A análise de necessidades de formação como estratégia de

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A análise de necessidades de formação como estratégia de
Subnetwork F
Parallel Session 2.2: 11.00-12.30
Day 2 Saturday 29 May
Room 7
Session F6: In-Service training
Ângela Rodrigues, Universidade de Lisboa
A análise de necessidades de formação como estratégia de
promoção de uma prática reflexiva na formação contínua de
professores.
Abstract:
A análise de necessidades de formação na formação contínua de professores apresenta-se
como uma prática corrente legitimada pelo desejo de garantir planos e programas de
formação que correspondam às necessidades das escolas e do sistema educativo e também
às necessidades dos seus directos destinatários, os professores. Ligada a uma função
instrumental de apoio aos processos de organização e planificação de sistemas de
formação, esta prática, ocultando que as necessidades de formação são fenómenos
subjectivos, socialmente construídos, minimiza o papel dos formandos e o de uma prática
reflexiva na determinação /tomada de consciência de objectivos para a formação.
A presente comunicação incide na descrição de um dispositivo de formação contínua,
criado de acordo com os princípios do projecto I.R.A.( investigação, reflexão, acção) em
que a análise de necessidades se inscreve, de um ponto de vista epistemológico e
metodológico numa linha construtivista (Guba, 1990; Bourgeois, 1991), demarcando-se da
linha paradigmática objectivista. O estudo permite-nos argumentar no sentido de que a
análise de necessidades construídas no contexto real de trabalho, no âmbito de modelos de
formação centrados na análise das práticas e no quadro de metodologias de investigaçãoacção é uma estratégia de intervenção formativa capaz de desenvolver uma atitude
reflexiva no professor, entendendo esta como a resultante do uso sistemático de um
método, cuja essência é a de "tornar estranho o que nos é familiar" ou de "não se
conformar com a dúvida, a confusão e a perplexidade", perguntando o quê, para quê,
porquê...
1
Introdução
A convição, amplamente aceite, "que o professor é a chave derradeira para a mudança
na educação e para a melhoria da escola" (Hargreaves, 1994: IX) é responsável pelo
espaço considerável que a formação dos professores, nomeadamente a formação contínua
ocupa nas agendas da investigação em educação e da intervenção nos sistemas educativos.
Os anos 90 criaram novas missões à escola e, dentro dela aos professores, exigindo a todas
as entidades que gravitam em torno do eixo da formação de professores (ver Imig e
Switzer, 1996) um esforço de reflexão e de reforma orientados para a satisfação de novas
necessidades de formação.
Em Portugal, também a institucionalização recente da formação contínua de professores,
no início da década de 90, suscitou uma multiplicidade de relevantes problemas a
propósito do seu desenvolvimento. Passado um primeiro momento em que a grande
preocupação parece ter sido a da criação de estruturas materiais e financeiras, a questão de
conhecer e discutir o impacto das actividades de formação nas práticas dos professores e
das escolas tem vindo a desenvolver-se, manifestando-se na procura de formas mais
adequadas de proceder a avaliação e também na pesquisa de metodologias para conhecer
as necessidades de formação,sejam as do sistema educativo e das escolas (traçando o perfil
desejado), ou as dos professores.
"Devem ter-se em conta as necessidades dos formandos e das escolas", "a maior falha da
formação é a de não se fazer de acordo com as necessidades dos formandos", "os
formadores desconhecem as necessidades reais dos professores"...- estes são alguns dos
modos de dizer repetidamente ouvidos e lidos. Contudo, este recorrente tema discursivo
não parece ter sido acompanhado no plano da acção por práticas rigorosas de
determinação e análise de necessidades de formação, nem no plano do conhecimento pelo
interrogar dos seus fundamentos epistemológicos e metodológicos (ver Oliveira, 1997;
Leite, 1997; Estrela et al 1998a; Estrela et al 1998b).
Embora a prática de análise de necessidades de formação suscite críticas e desconfiança
(Charlot, 1976; Correia, 1996; 1989), é relativamente fácil acordarmos em aceitar que o
conhecimento das necessidades dos (e, sobretudo, pelos) formandos é uma condição
importante da eficácia da formação, que deve haver um ajustamento da formação às
necessidades sociais e individuais (muitas vezes opostas ou contraditórias), e que deve
existir uma preocupação de rigor com o diagnóstico nas intervenções que se fazem no
domínio da formação.
Mas encontramos uma razoável diversidade de pontos de vista e muita ambiguidade no
que se refere ao significado preciso que se atribui à expressão análise de necessidades de
formação. Situando-nos no terreno específico da acção formativa podemos interrogar:
Que fins justificam e legitimam a análise de necessidades? Com que metodologias se faz
essa análise? Relativamente a que referencial se determinam as necessidades? Que
decisões são esperadas na sequência de uma análise de necessidades de formação?
São apenas algumas das muitas questões com que se desenha a problemática da análise de
necessidades de formação contínua de professores no plano da intervenção. No plano
investigativo podemos ainda interrogarmo-nos Que objectos se podem configurar numa
2
análise de necessidades? A que fenómenos se referem? Que metodologias permitem dar
conta desses fenómenos? Qual o sentido da investigação em análise de necessidades?
Face à variedade de conceitos de "necessidade de formação" (remetemos para anterior
trabalho, Rodrigues, 1991) podemos, como Barbier e Lesne (1986) apontar para dois
registos fundamentais. Um primeiro, próximo de ideia de exigência, com conotação
objectivista, postula a existência objectiva da necessidade e a possibilidade do seu
conhecimento objectivo (Kaufman, 1973; 1977; 1992; Kaufman e Herman, 1991; Witkin,
1984; De Ketele et al, 1988; Montero, 1985, 1987, 1990). Outro, de conotação
subjectivista, partindo de uma abordagem mais interpretativa da necessidade, define-a
como um fenómeno subjectivo e eminentemente social, afirmando a sua dependência do
sujeito e do seu contexto bem como dos sujeitos e dos contextos envolvidos na sua
recolha, identificação e análise.
Podemos dizer que a análise de necessidades de formação para os primeiros é uma
operação de determinação de necessidades, enquanto para os segundos se trata de uma
operação de construção ou de desocultação de necessidades.
Limitada a necessidade ao estatuto de entidade inscrita na mente do sujeito, autores há
para quem o discurso, sendo a via de acesso é, contudo, uma via imperfeita, porque
enviesada pelas condições da sua produção. Por contraste, para outros (Bourgeois, 1991;
Rousson e Boudineau, 1981), numa linha construtivista, a necessidade não tem sequer
existência ontológica própria no campo mental do sujeito, fora do sua expressão
discursiva, pelo que o objecto de análise não é "uma "coisa" mental, uma invariante,
escondida nas profundezas do sujeito" (:35). Para Borgeois (1991) a necessidade não se
esconde atrás do discurso mas constrói-se no discurso, donde o objecto da análise é o
próprio discurso, e o objectivo da mesma é "reconstruir (compreender), com o sujeito, o
sentido que atravessa o discurso na sua singularidade hic et nunc.".
Partilhamos com Barbier e Lesne (1986), Rousson e Boudineau (1981), Bougeois, (1991)
entre outros, o postulado teórico segundo o qual não é possível constatar necessidades
ontologicamente objectivas, dependendo estas dos sujeitos, grupos ou sistemas que as
percebem e do contexto onde emergem, dos agentes sociais que as recolhem e detecta, das
respectivas metodologias de recolha e de análise e, naturalmente, dos respectivos valores e
objectivos de referência.
Dispositivo de formação
As práticas correntes de análise de necessidades na formação contínua privilegiam
abordagens objectivistas, servidas por metodologias do tipo sondagem (Witkin, 1984), e
exercem uma função instrumental de apoio aos processos de organização e planificação de
sistemas de formação (Stufflebeam et al. 1984; Stufflebeam e Shinkfield, 1989),
traduzindo-se na produção de objectivos pertinentes para orientar a acção (Barbier e
Lesne, 1986), geralmente segundo modelos centrados na aquisição de conteúdos
determinados em exterioridade relativamente aos contextos reais de trabalho.
O estudo que vamos apresentar corresponde a um dispositivo de formação contínua
desenvolvido no respeito pelos princípios do projecto I.R.A.(Estrela et al, 1998c),
3
inscreve-se na lógica da formação pela investigação e a partir das situações de trabalho e o
seu eixo central é o estudo das necessidades de formação construídas e consciencializadas
no decurso desse processo formativo e também no decurso do processo de trabalho em
situação real.
Considerando a natureza do objecto de estudo - necessidades de formação definidas como
acabámos de referir - bem como a natureza do contexto onde seria apreendido umprocesso formativo centrado na situação real de tabalho, desenvolvido num tempo
longo (dois anos), com um pequeno grupo de professores, e pautado por valores
subjacentes aos modelos de formação centrados na análise (Ferry, 1987) - recorremos, no
que se refere à recolha e à análise de dados, às orientações da investigação interpretativa,
no sentido dado por Erickson (1989:196), de investigação que se centra no estudo da
acção, "comportamento físico e interpretações de significado do actor e daqueles com
quem interage" (:214) e não apenas nos comportamentos, enquanto manifestações
exteriormente observável.
Não cabe agora tecer considerações sobre as dificuldades metodológicas que esta opção
nos trouxe, embora seja de salientar que elas se situaram no terreno da gestão (1) da
necessária implicação, enquanto investigadora, para apreender o real lá onde ele emergia
na sua complexidade significante, (2) da necessária participação na acção, enquanto
membro do grupo de formação onde na maior parte do tempo assumíamos e nos era
atribuído o papel de formadora-recurso, e (3) da criação de mecanismos de distanciação
entre nós e o objecto de estudo.
Centrámo-nos na função de director de turma que, sendo uma função com que os
professores se confrontam desde a sua entrada na carreira, não é alvo de preparação
sistemática na formação inicial e também não beneficia de modo sistemático da formação
contínua e, guiadas pelas advertências de Erickson (1989:250) quanto a importância da
negociação do acesso ao lugar no caso da investigação interpretativa, escolhemos uma
escola com 3º ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário, onde tínhamos acompanhado
um outro núcleo do IRA, considerando que o conhecimento que havíamos obtido da
escola e dos seus professores, bem como a boa aceitação da nossa presença por parte do
corpo docente e da direcção da escola eram razões positivas para a escolha.
Não nos bastava constituir um grupo por justaposição de pessoas aderindo a um projecto
de investigção-acção. A nossa motivação última dirigia-se à criação de condições que nos
dessem acesso ao campo a observar como participantes, ou seja, reduzindo o mais possível
o nosso "estrangeirismo"; ao mesmo tempo o objecto a observar nesse campo requeria o
criar condições para que os directores que viessem a participar o pudessem fazer dentro de
um espaço com a maior liberdade possível, sem os constrangimentos avaliativos que
condicionam a palavra.
Através do Conselho Directivo, que deu apoio logístico e incentivo ainda que sem vínculo
institucional, foi dirigido um convite aos directores de turma da escola a quem foi feita a
apresentação geral do projecto. Procurámos deixar aberto um amplo campo de negociação
relativamente às preocupações dos professores que quisessem participar, facilitando a
constituição de uma "comunidade de interesses" (Kemis e McTaggart, 1992:71).
Ponderadas a vontade de participar e a disponibilidade de horário em comum (três horas
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num dia por semana), constituíu-se um grupo de quatro directoras de turma, com idades
comnpreendidas entre os 29 e os 39 anos, na base de um contrato informal, assente na
participação voluntária, na responsabilidade partilhada pelos processos a desencadear e na
reversibilidade de papéis, embora se reconhecessem as competências específicas de cada
uma. Ao grupo coube, portanto, a responsabilidade pela condução de um processo cujo
início teve como único constrangimento externo a sua sujeição aos objectivos e princípios
gerais enunciados na reunião inicial. Os conteúdos e as estratégias decorrerram da
negociação do grupo que, reflectindo sobre os objectivos e sobre as realizações que foi
obtendo, introduziu as formas de regulação contínua que achou relevantes.
Metodologias de formação (pela investigação)
Ao longo das sessões realizadas semanalmente considerámos que os procedimentos de
natureza investigativa a serem usados tinham uma função formativa para as directoras de
turma - eram estratégias de formação - sendo remota apretenção de produzir resultados de
investigação, no sentido que é dado a esta expressão na investigação positivista. As
técnicas de observação da realidade que usámos, situadas no quadro das metodologias
interpretativas, foram sendo aplicadas em função das necessidades de desenvolvimento dos
projectos do grupo. A tomada de consciência dos valores e pressupostos subjacentes à
construção dos instrumentos de leitura da realidade e aos esquemas da sua análise
constituíu uma meta para lá da qual se processaram as mudanças de comportamento e de
atitude de acordo com a diversidade biográfica e situacional de cada membro do grupo.
Ao longo dos dois anos de duração do projecto, em total voluntariado, os trabalhos
desenvolvidos podem agrupar-se em torno de alguns focos nucleares:
(1) Definição de uma problemática comum - Centrou-se no levantamento e análise de
problemas sentidos na prática quotidiana pelas participantes. Permitiu uma primeira
aprendizagem dos mecanismos de construção de instrumentos de pesquisa, nomeadamente
da elaboração de questionários, de guiões de entrevista, de formas simples de análise de
conteúdo.
(2) Elaboração de um referencial da função de director de turma - Centrou-se na
construção de grelhas de análise dos normativos que regulamentam a função; na reflexão
heurística e crítica sobre competências requeridas para as funções e actividades
emergentes dos documentos. Centrou-se ainda na auto-observação das práticas, obrigando
as directoras de turma a objectivar verbalmente as actividades realizadas bem como os
objectivos e as consequências das mesmas. Permitiu aprendizagens no campo da análise de
conteúdo, da análise de funções e ainda no que se refere à construção de um referencial de
função.
(3) Relatos de incidentes - Centrou-se na descrição objectivante das situações
problemáticas seleccionadas por cada directora de turma, seguida da sua análise e
enquadramento social, político, pedagógico bem como na reflexão sobre as possibilidades
de uma intervenção formativa. Permitiu aprendizagens de técnicas de observação da
realidade educativa, de modelos de caracterização de situações pedagógicas, de
construção de instrumentos de observação, de aplicação de técnicas de análise de dados.
(4) Pequenas pesquisas pontuais - Centraram-se em temáticas correspondentes a
necessidades ou interesses emergentes da análise dos incidentes relatados (exemplo:
5
levantamento das representações dos alunos relativamente a escola; levantamento das
representações dos alunos relativamente ao director de turma). Permitiram aprendizagens
ligadas ao processo investigativo: definição de uma problemática, enquadramento teórico
da mesma, construção dos instrumentos, análise e discussâo dos dados.
(5) Estudo do caso da turma 9ºY - Centrou-se na caracterização da situação de indisciplina
do 9ºY visando encontrar pontos de entrada para intervir junto dos alunos, dos
professores e dos pais. Permitiu cimentar algumas das aprendizagens anteriormente feitas.
Resultados do dispositivo
No que respeita o objecto de pesquisa, as necessidades de formação desocultadas ou
construídas no decorrer do processo de formação pela investigação e a partir das
situações reais de trabalho, o dispositivo fez emergir dados de dois tipos distintos,
graficamente observáveis na fig 1.
Fig1
Durante e após o processo de formação - emergência de necessidades
Identificadas, consciencializadas
DURANTE o processo de
formação
Dispositivo
de formação contínua
- pela investigação
- centrado na situação real de
trabalho
Necessidades
emergentes
Identificadas, conhecidas,
APÓS o processo de formação
Com efeito, o processo de desenvolvimento do projecto permitiu a emergência de
necessidades de formação que foram identificadas, conhecidas, consciencializadas pelo
grupo durante esse processo. Umas vezes resultaram da reflexão (exame analítico) sobre
os resultados da aplicação de instrumentos de recolha de dados concebidos directamente
para apreensão do objecto "necessidades de formação", como é o caso de questionários ou
de entrevistas. Outras vezes foram evidenciadas durante os processos de reflexão e debate
que acompanharam ou o relato e análise de incidentes do quotidiano ou os processos de
concepção, execução e de análise de pequenos projectos de investigação acção realizados
pelo grupo.
Relativamente aos dados pontualmente recolhidos, resultantes, portanto, de uma
intervenção "cirúrgica" num preciso momento temporal, foram analisados enquanto o
processo fluía, no grupo, e os seus resultados foram reinvestidos no mesmo processo,
dando lugar ao aprofundamento das necessidades ou à sua satisfação.
Relativamente aos dados obtidos no processo, importa referir que uns foram analisados e
reinvestidos DURANTE o processo, enquanto outros foram "capturados" e artificialmente
retidos para serem analisados APÓS o terminar do projecto.
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Os primeiros articulam-se com o debate reflexivo que acompanhou, sobretudo, o relato e
a análise dos incidentes. A selecção dos fenómenos relatados, a sua descrição objectivada,
a sua inserção em contextos situacionais, políticos, éticos e pedagógicos servida pelo
questionamento sistemático (quem, onde, o quê, para quê, porquê, positivo, negativo...)
foi sem dúvida motivo para a desocultação e construção de necessidades de formação,
como foi também cenário para a resolução de algumas delas. Embora tivéssemos tentado
apreender esses momentos, o fluir do tempo deixou certamente muitos vazios. É que a
construção, em situação de formação, das necessidades de formação ocorreu muitas vezes
sem que nenhuma das participantes tivesse disso consciência, entre outras razões, porque
demasiado empenhadas no processo.
Visando diminuir os efeitos das dificuldades/ambiguidades relativas aos mútiplos papéis
que vivíamos, de investigadora participante e implicada e de formadora não menos
implicada, mas querendo manter alguma distanciação relativamente ao cenário,
recorremos a dois processos complementares no que se refere à recolha e tratatamento dos
dados do processo. Partindo de apontamentos escritos que tomámos durante o desenrolar
ou imediatamente após as sessões de trabalho, de gravações magnéticas das mesmas bem
como dos resultados parciais dos pequenos estudos que foram sendo realizados no grupo,
ganhámos distanciação temporal sobre o processo experienciado, ao fazer a sua análise
alguns meses após o fim do projecto; por outro lado, procedemos a análise dos dados,
tratando-os como se fossem produtos obtidos em exterioridade, mediante a técnica da
análise de conteúdo.
Não vamos referir o número de vezes que lemos as notas e ouvimos os registos, numa
apreensão sincrética, explorando-os de forma a ganhar estranheza e distância relativamente
ao que mantínhamos na memória e sobretudo na relação afectiva com o processo que
experienciámos.
Sem uma grade de leitura previamente construída procedemos ao levantamento dos
campos temáticos abordados, entendendo por tema os conteúdos de discussão que
tivessem ocupado centralmente o grupo durante um tempo significativo.
Considerámos que os campos temáticos abordados, tendo em conta o cenário geral do
projecto, eram sempre reveladores de alguma modalidade de necessidade de formação,
sendo manifestações de carências de natureza informativa ou relativas a competências
técnicas; de preocupações no quadro da direcção de turma; de dificuldades de
desempenho, assumidasou apenas pressentidas; de desejos e expectativas relativos a uma
melhoria do conhecimento ou da acção no campo da direcção de turma.
Por outro lado, considerámos que o levantamento dos campos temáticos se faria no
quadro do grupo como entidade singular, não discriminando nenhum dos seus membros.
Delimitado o corpus sobre o qual recaíu a nossa análise e estabelecida a unidade de
análise, procedemos ao respectivo levantamento, descontextulizando os temas tratados,
seguindo as orientações gerais sobre a análise de conteúdo (Tesch, 1990; Huberman e
Miles, 1991; Bardin, 1989; Ghiglione et al, 1985; Weber, 1990; Estrela, 1986; Rodríguez
Gómez et al. 1995), privilegiando a etnográfica (Altheide, 1987, cit Tesch, 1990:26), e
fazendo emergir indutivamente as categorias, procurando o rigor sem impedir o exercício
da intuição (Rodríguez Gómez et al,1995: 27).
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A prática da intersubjectividade entre analistas é, nesta fase, praticamente a única garantia
de que o investigador não projecta para lá do razoável a sua forma peculiar de ver/olhar a
realidade. Dada a natureza do dispositivo montado e do processo por ele possibilitado essa
não foi uma preocupação nossa por considerarmos que nenhum analista poderia ter acesso
aos implícitos de quem esteve no grupo, introduzindo, certamente, efeitos tão perversos
quanto os da subjectividade do analista. Assim, procurámos nos processos de análise de
conteúdo o controlo possível, situando inferência apenas no termo de um processo
descritivo e controlado por procedimentos objectiváveis, evitando a apropriação sincrética
e subjectiva do sentido do dito. Ao mesmo tempo fomos comparando os dados obtidos
com outros já coligidos e que haviam sido sujeitos a formas de validação fenomenológica.
No que respeita aos dados do processo, os campos temáticos identificados confirmaram e
reforçaram resultados anteriores, obtidos mediante instrumentos específicos, aplicados
pontualmente. Contudo, a riqueza da sua apreensão, no momento em que eram vividos e
contextualizados numa situação que exigia resposta em concreto, na acção, deu-lhes a
força da autenticidade situacional e sobretudo permitiu equacionar de forma integrada
questões relativas as necessidades de formação, sem as transformar num catálogo de
objectivos, de actividades ou de temáticas. Com efeito, pudémos percorrer um caminho
entre a objectivação descritiva da situação actual tal como era experienciada pelas
participantes, a explicitação dos valores e pressupostos subjacentes a situação ideal que
servia de referencial oculto e, a explicitação da representação do lugar da formação para
passar de uma a outra (Fig.2).
Figura 2
Da situação actual à desejada: lugar da formação
Objectivação da situação actual
tal como é experienciada
Representação das possibilidades da formação
Objectivação dos valores e
pressupostos subjacentes à
situação ideal
Conclusão
Do ponto de vista da formação, a apreciação global que podemos fazer, baseadas na
avaliação feita pelos actores participantes no projecto, permite considerar como aspectos
positivos (1) a implementação de uma atitude investigativa face a realidade pedagógica,
anteriormente apreendida de forma holística e sincrética; (2) a participação colaborativa
que afastou os juízos e as avaliações e os conselhos, contrariando o isolamento e
individualismo anteriores; (3) a centração sobre a análise das práticas, e não sobre as
pessoas e seus comportamentos, que facilitou a apropriação, o reinvestimento na prática e
a mobilização para futuros desenvolvimentos da formação, ao ritmo, motivação, interesses
e necessidades de cada uma.
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De um ponto de vista mais analítico consideramos que a centração na análise das práticas
diárias das directoras de turma, permitiu desenvolver actividades de objectivação verbal de
problemas ou situações vividas como problemáticas, através do questionamneto de si
próprio (o que é que eu sei disto? porque é que eu acho que deve ser assim? porque é que
eu não faço assim...) e do questionamento direccionado as dificuldades percebidas, suas
origens, suas consequências políticas, éticas e pedagógicas. A objectivação verbal foi,
assim, o instrumento para criar a necessária distanciação relativamente a experiência,
primeiro passo de uma "teorização" do saber experiencial. Criou condições para furtar as
directoras de turma a observação pedagógica flutuante, rotineira e esteriotipada que foram
adquirindo no campo da socialização espontânea na escola e centrou-as na procura
deliberada de dados objectiváveis do real, sobre os quais pudessem decidir de forma
ajustada as situações singulares em que diariamente se viam envolvidas e, sendo caso
disso, enunciar necessidades de desenvolvimento e de formação.
A centração em práticas investigativas focadas nos problemas da direcção de turma
permitiu, por outro lado, desenvolver actividades básicas da metodologia científica;
desenvolver competências técnicas de observação, de recolha e de análise de dados;
desenvolver processos de questionamento do contexto onde agiam, situando-se também
no plano de equacionar os constrangimentos políticos, ideológicos e institucionais; alguns
momentos de um trabalho teórico, fugindo ao universo fechado dos conhecimentos do
grupo de formação. Saliente-se que a apropriação da informação, procurada porque ou era
útil ao trabalho da directora de turma ou a prossecução da reflexão no grupo, colocou a
teoria ao serviço da prática.
Por último, a centração no pequeno grupo permitiu provocar o confronto de opiniões,
crenças e pontos de vista entre as participantes, alargando o campo das experiências,
possibilitando inúmeras trocas produtivas (ainda que ocultas ao olhar do investigador) e
partilha das subjectividades; quebrar o isolamento de cada uma, desenvolvendo o espírito
colaborativo ao mesmo tempo que anulava as atitudes avaliativas; enveredar pelos
caminhos da autoformação (se bem que se não é auto não chegará a ser formação). O
trabalho de formação autocentrado (assistido pelo questionamento dos outros membros do
grupo) deslizou da identificação dos temas, conteúdos, atitudes, valores considerados
pelas directoras de turma como necessidades de formação para um processo que
procurava resituar as necessidades de formação em quadros mais latos do que a acção
pedagógica imediata do director de turma e que se interrogava sobre os valores e as
finalidades subjacentes as propostas e cenários apontados.
Em termos de ter desenvolvido a reflexividade das professoras em causa consideramos que
a actividade indagadora levada a cabo sistematicamente durante as sessões de trabalho
conduziu as professoras a abandonar progressivamente a perspectiva meramente
instrumental da formação contínua, para as encaminhar para espaços e níveis mais
elevados de pensamento crítico, sobre si próprias, sobre a escola, sobre as práticas
docentes na direcção de turma, questionando os fundamentos éticos e políticos do que
faziam (ou do que outros fazem). Do pedido de "receitas" ou da questão "como fazer?"
deslizaram para o "porquê?" e "para quê?". As finalidades da acção passaram a ter um
lugar maior nas preocupações das directoras de turma, como atesta o seu discurso.
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Do ponto de vista da investigação sobre as necessidades de formação o desenvolvimento
do projecto parece poder levar a dizer que as necessidades, conceptualizadas a partir das
dificuldades sentidas na prática, das carências percebidas e dos desejos de mudança
manifestados, quando determinadas por processos de leitura objectivista, necessariamente
distanciados do processo de trabalho, tenderam a traduzir-se em pedidos de formação em
áreas de conteúdo (teórico ou metodológico) próximas da organização disciplinar
académica. Diferentemente, quando foram construídas na análise e questionamento das
práticas concretas, necessariamente recorrendo a metodologias de recolha e de análise
interpretativas que conciliam os dados da acção com os significados em situação,
tenderam a traduzir-se em pedidos de resolução de problemas, para os quais, ao invés de
receitas pré fabricadas, se ofereceu o algoritmo fundamental que é o o do processo
investigativo - identificação de uma problemática, seu enquadramento no saber já
constituído, construção de instrumentos para recolha e para análise de dados do real,
tomada de decisão em função dos resultados obtidos sem seguidismo aplicacionista.
Em suma, o processo formativo que experienciámos constituíu um poderoso instrumento
de conhecimento (auto e hetero) das necessidades de formação destas directoras de turma,
ao mesmo tempo que se constitui como um dispositivo poderoso de desenvolvimento de
uma atitude de reflexividade sobre as práticas.
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