Coração de Corda
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Coração de Corda
CORAÇÃO DE CORDA By Carina Portugal SMASHWORDS EDITION ***** PUBLISHED BY: Carina Portugal on Smashwords Coração de Corda Copyright © 2013 by Carina Portugal Illustrations © 2013 Ana Santo ISBN: 9781311937070 Smashwords Edition, License Notes Thank you for downloading this free ebook. You are welcome to share it with your friends. This book may be reproduced, copied and distributed for non-commercial purposes, provided the book remains in its complete original form. If you enjoyed this book, please return to Smashwords.com to discover other works by this author. Thank you for your support. O seu suporte e respeito pela propriedade da autora serão apreciados. Este conto é pura ficção e qualquer semelhança com pessoas, locais ou eventos é pura coincidência. As personagens são produtos da imaginação da autora. ***** Um grande agradecimento à Ana Santo por ter ajudado com a capa, e ao Tchaikovsky por me ter inspirado e acompanhado durante a escrita e revisão do texto. ***** CORAÇÃO DE CORDA ***** Londres, 1852 Como um véu negro que se abate sobre o olhar, as luzes apagaram-se em redor da plateia, deixando os espectadores cegos com a sua brusquidão. Apesar disso, depressa a visão se acostumou ao novo ambiente. Com o decair das luzes, também as conversas cessaram. Sentado na primeira fila, Philip deixara de ouvir as reclamações de Timothy em relação às cadeiras menos confortáveis do Teatro Dark Forest. Não era a primeira vez que ali iam, muito pelo contrário, mas o seu amigo, que por sinal fora quem o convidara, insistia nas críticas, esperançado de que o novo director do local mandasse remodelar toda a sala. Sem esperar por mais nada, devagar, as cortinas vermelhas foram corridas, revelando o palco ornamentado em tons de branco e azul, os cenários abstractos lembrando uma mistura de água e céu a tocarem-se. No centro, encontrava-se um nenúfar branco por desabrochar. A orquestra deu então início ao ballet, numa melodia suave que tomou os espectadores nos seus braços invisíveis. Não havia um único homem a tocar flauta, violino ou piano; todo o instrumental era formado por uma única máquina de complexidade apreciável, criada por um músico que também se notabilizara na área da física e da mecânica. Philip recostou-se, enquanto observava uma dúzia de bailarinas delgadas, vestidas de dourado, a entrarem em cena, caminhando devagar, os braços erguidos acima da cabeça, sincronizadas com a música e entre si. Rodearam o nenúfar, dançando à sua volta, oscilando ora para mais perto, ora para mais longe. Por vezes estendiam os braços, lembrando raios de Sol que tentavam tocar a flor. Por fim, as pétalas começaram a mover-se e, uma a uma, caíram em sucessão, revelando uma jovem acocorada em pose fetal. Ao ritmo da orquestra, o corpo desdobrou-se até esta ficar de pé. Os orbes de um azul safira fixaram-se na plateia e Philip sentiu-se a estremecer quando se detiveram em si, por um instante de segundo, lembrando dois lagos claros onde podia cair se a sua atenção se desequilibrasse. A jovem bailou sem sair da área circunscrita do nenúfar, por alguns momentos, permitindo que os espectadores absorvessem a sua delicadeza dentro do fato branco cuja saia era feita de pétalas e o espartilho ornamentado com bordados de flores douradas. Deu depois um salto delicado no ar, como se saindo da flor para o mundo desconhecido. Um sorriso leve iluminou o rosto de Philip, durante todo o ballet, enquanto seguia os movimentos fluidos com um olhar atento e escutava a orquestra, como que tentando distinguir cada uma das notas. Para além disso, aquela bailarina com aspecto de porcelana encantara-o de uma forma estranha. O seu talento conseguia transmitir-lhe a verdadeira essência do bailado, mais até do que a música. Quando o espectáculo chegou ao fim, aplaudiu com sinceridade e, antes que o amigo dissesse fosse o que fosse, levantou-se. – Tenho um assunto a tratar – declarou, com uma palmada no ombro dele. – Podes voltar a casa sem mim. Depois apanho uma carruagem. Timothy abriu a boca para protestar, no entanto já Philip se distanciava com passos apressados. Recolheu o seu casaco e a cartola, na recepção. Quase à saída do teatro, uma mulher segurava de encontro ao peito uma braçada de rosas que vendia a quem acabara de assistir ao bailado. Philip contemplou as flores e, de arrasto, o decote proeminente que o espartilho revelava, como se as flores estivessem ali com esse mesmo propósito. A vendedora piscou-lhe o olho. – Deseja uma rosinha, amável cavalheiro? – perguntou, com um sorriso que faria qualquer homem questionar-se se ela estaria ali somente para vender as rosas. – Uma rosa branca, por favor – pediu, depois de ponderar um pouco. Quando pagou à mulher, perguntou-lhe em que direcção ficavam os bastidores e foi para lá que se dirigiu, com a flor numa mão e a cartola noutra. Pelo caminho, uma das bailarinas vestida de dourado passou por si. – Pardon, mademoiselle! – disse, para lhe chamar a atenção antes que fugisse. Pelo que ouvira, todo o elenco de bailarinas era francês. – Poderia indicar-me onde posso encontrar a donzela de branco? Os olhos da jovem saltaram entre ele e a rosa que segurava, antes de sorrir em modo de compreensão. – Último camarim do corredor, monsieur – respondeu, com um sotaque típico. – Merci! – agradeceu, dirigindo-lhe um sorriso sincero antes de se precipitar na direcção indicada. Estacou em frente à porta e inspirou fundo. Compôs a gola do casaco, certificando-se de que não pareceria menos do que um cavalheiro. Preparava-se para bater à porta do camarim quando um grito furioso o alcançou, fazendo-o estremecer. A mão de Philip deteve-se. Fora a voz de um homem que se fizera escutar. Talvez a bailarina por quem passara o tivesse enganado, dirigindo-o para o local errado. Uma saraivada de palavras brutas atravessaram aquele entrave e chegaram até si num francês quase perfeito, no entanto conseguia perceber que o dono delas estava longe de ser original desse país. Conseguiu distinguir as expressões “família falida e sem sustento”, “é a miséria que lhes desejas” e “devem-me a vida”. Pouco depois de as palavras cessarem, um estalo ecoou lá dentro. Ponderava em afastar-se, pensando que o melhor talvez fosse não interferir, apesar de a consciência o espicaçar, quando a porta se abriu de rompante. Deu de caras com um homem bastante mais alto que ele, o rosto muito vermelho de fúria e o monóculo a pender da casaca, oscilante. Philip ainda relanceou o camarim, conseguindo vislumbrar a jovem bailarina vestida de branco com uma mão sobre o lado direito do rosto, a soluçar, antes de a porta se fechar. – Boa noite. Angelique não poderá recebê-lo hoje, lamento – disse o homem, num tom frio de quem pouco lamentava. O olhar cinzento lembrava uma lâmina prestes a atacá-lo. Dito isto, partiu, com a mão direita crispada na bengala, enquanto na esquerda segurava um papel firmemente amarrotado. Philip não se moveu, nem chegou sequer a abrir a boca, enquanto o homem desaparecia. Depois olhou a rosa e soltou um pequeno suspiro. Talvez o melhor fosse mesmo ir-se embora. Com cuidado, pousou a flor à porta do camarim, rezando para que ninguém a pisasse. Esperava que a bela donzela não passasse pelo presente sem o ver. Feito isto, partiu. No exterior, a chuva inglesa caía em debandada, as poças de água enchiam a estrada e não havia uma única carruagem à vista. Philip suspirou novamente, enquanto punha a cartola. O motor de um dirigível, que se atrevia a calar a chuva por momentos, encheu a noite, antes de se perder na escuridão. Era ousado viajar entre as nuvens com aquele tempo. Passou junto à entrada monumental da central de energia, que jazia a poucos metros do teatro. As paredes da estrutura pareciam emanar calor, enquanto uma incansável chaminé dia e noite libertava fumo negro. Um estrangeiro, ou até mesmo alguém de fora de Londres, miraria a central com cepticismo, considerando-a demasiado pequena. No entanto, a sua verdadeira estrutura escondia-se sob as muitas casas da cidade, como um monstro subterrâneo que devorava não só os interiores das minas de carvão, como o material que era importado de outros países. Era o motor escondido que fazia andar a capital Britânica e Philip nutria um enorme respeito pelos seus trabalhadores incansáveis, cujo trabalho era raramente valorizado. Vinte minutos depois, quando dobrou a esquina da sua casa, viu que uma das luzes do primeiro andar ainda estava acesa. Abanou a cabeça, com um sorriso leve, ao mesmo tempo que metia a chave à porta e entrava. Um calor bem-vindo rodeou-o. Ali mesmo, tirou a primeira camada da roupa, para não encharcar a carpete, e foi espreitar o seu aprendiz à sala de trabalho. Ao escutálo, Nicholas virou de imediato o rosto para si, perscrutando-o de cima a baixo, antes de largar o brinquedo de corda em que estava a trabalhar sob a luz de um candeeiro a gás. Tinha uma lupa presa à testa por uma faixa de couro. – Está encharcado… – censurou, olhando-lhe para as meias que por acaso tinham um buraco junto ao dedo grande. – Não tenho culpa da chuva – riu-se, chegando-se à mesa de trabalho para ver o que estava a preparar o aprendiz. Várias peças dentadas e pequenas engrenagens espalhavam-se por ali com uma ordem meticulosa. – Uma boneca. É para o teu orfanato? Nicholas ganhou um rubor bastante óbvio, que condizia com o cabelo ruivo revolto e disfarçava as sardas que lhe salpicavam as bochechas. Acenou levemente. – Está a ficar bastante bonita – garantiu, pegando-lhe e examinando-a com o olhar de um profissional. – Um dia tiras-me o lugar. – Nunca! Vai ser sempre o melhor – disse o rapaz, de imediato, com uma sinceridade comovente. – E nem eu quero substituí-lo, só quero servir como ajudante. Devo-lhe demasiado. Philip passava metade da semana a ouvir aquilo, e repetia a resposta, uma e outra vez, incansavelmente. – Não me deves nada. Estás aqui porque preciso de um aprendiz inteligente e com vontade de aprender – declarou, afastando-se da mesa. – E também preciso de um aprendiz que descanse o necessário. Já é tarde, vai deitar-te, Nick. O rapaz insuflou as bochechas antes de se levantar, no entanto foi seguido por um som metálico, arrastado, que se fez ouvir como uma chamada de atenção, quando se endireitou. – Estás a precisar de óleo nas articulações – asseverou Philip, mais seriamente, lançando-lhe uma mirada de soslaio. – Põe-no antes de te deitares. Finalizada esta última recomendação, recolheu-se ao seu quarto, onde trocou de roupa. Mesmo antes de se deitar, já sentindo um cansaço pesado, tirou de um dos cantos da gaveta da cómoda uma chave dourada. Levantou a camisa e mirou o peito nu onde, um pouco desviado para o lado esquerdo, estava um orifício metálico em forma de fechadura. Introduziu a chave mecanicamente, já habituado à rotina, e deu-lhe dez voltas completas. O peito vibrava a cada movimento, percorrido por uma sensação de formigueiro. Nunca corria o risco de que o coração artificial lhe pudesse parar durante a noite. Ele próprio o construíra e conhecia os perigos fatais de um tal esquecimento – há alguns anos atrás, bebera demais e deitara-se sem fazê-lo; acordara a meio da noite, com uma dor tremenda no peito, e tivera de correr à procura da chave para dar corda ao coração, antes que fosse tarde demais. Desde esse dia que deixara o álcool de lado, pelo menos ao jantar. Em contraste com a noite anterior, o dia nascera claro, com poucas nuvens brancas a pairar no céu, arrastadas pela brisa. A chaminé atarefada de uma fábrica expelia a poluição do carvão, mesclando o azul com um leve tom cinzento e dando ao ar o típico fedor da poluição. As estradas eram percorridas ora por coches e carroças puxadas a cavalo, ora por veículos movidos a vapor que eram a novidade dos londrinos mais abastados. Devagar, Angelique descia a rua estreita, com atenção às montras das lojas. Parou de frente para uma delas, mirando uma colecção de brinquedos cujas cores sobressaiam com alegria, assim como várias caixas de música forradas a veludo. Indecisa, pensou por um momento, antes de abrir a porta do pequeno estabelecimento. Um sino tilintou com vontade, avisando quem deveria estar a atender da chegada de um novo cliente. Ao dar conta que não havia ninguém ao balcão, a jovem vagueou entre as prateleiras, com um pequeno sorriso nos lábios. Em pequena não tivera mais do que uma boneca de trapos que a mãe lhe costurara, por isso achava todo aquele mundo fascinante. Deteve-se em frente de uma boneca muito parecida consigo e dobrou-se para a ver melhor. O vestido de folhos, muito branco, fora confeccionado ao detalhe; os olhos azuis eram feitos de cristal incrustado em porcelana; e os cabelos dourados quase de certeza que eram verdadeiros. Tirou as luvas e guardou-as na bolsa de mão, antes de pegar na boneca com cuidado, afagando-lhe o cabelo. Um súbito tossicar fê-la dar um salto reflexo. Com o susto, a boneca escorregou-lhe das mãos e caiu sobre o soalho. O ruído da porcelana a estilhaçar foi como um grito do brinquedo ao sentir que ficava sem um braço. Angelique olhou para o balcão, com as mãos sobre a boca e os olhos derramando puro arrependimento, fitando, sem palavras, o dono da loja. Por sua vez, Philip estava espantado com aquela presença inesperada. Quando escutara o toque do sino, nunca imaginara encontrar um anjo a vaguear entre os seus brinquedos. Por um momento, ocorrera-lhe que a bailarina poderia vir agradecer-lhe a rosa, porém descartara a ideia no segundo a seguir, já que ela não tinha forma de saber quem lhe oferecera a flor. Saiu de trás do balcão e foi ter rapidamente com ela. Não estava nada preocupado com a boneca, ao contrário de Angelique que parecia quase à beira das lágrimas. – Eu pago – disse, de imediato, mesmo antes de Philip abrir a boca. O seu rosto começava a perder a palidez, dando lugar ao rubor de vergonha. – Peço perdão pelo que aconteceu. Diga-me só quanto devo, por favor. Com um sorriso, o inventor baixou-se e apanhou a boneca e cada um dos pedaços maiores de porcelana. – Não é necessário, mademoiselle. A culpa foi minha que a assustei – disse, com amabilidade. Curvou-se perante ela, em modo de perdão. – O meu nome é Philip Reeve. Em que posso ajudá-la? Angelique piscou os olhos e alternou o olhar entre Philip e a boneca, antes de abanar a cabeça. – Não, Monsieur Reeve, insisto em pagar e levar a boneca. Não é menos boneca por só ter metade de um braço – acrescentou, recompondo-se do susto. – Tal como uma pessoa não é menos pessoa por lhe faltar alguma parte do corpo. Philip sorriu ao ouvir aquilo e fez um leve aceno, concordando. Era interessante saber que uma jovem tão bonita parecia não ter preconceitos para com deficientes físicos. – Como quiser, então. Mas vou tapar isto para que não se corte, com licença. Deixou a boneca sobre o balcão e desapareceu para uma sala contígua que estivera encoberta por uma cortina. Angelique esperou-o, segurando na bolsa com ambas as mãos para se impedir de mexer e estragar mais algum brinquedo. Philip regressou pouco depois e tratou de remediar aquele coto partido, muito cuidadosamente, cobrindo-o de tecido branco, como se fossem ligaduras. Após o curativo, pô-la na caixa que lhe era devida. – Agora que já tratámos desta donzela mais pequena, passemos à maior – sorriu para Angelique, desejando ser-lhe útil. – Vinha comprar algo em concreto? – Vi algumas caixas de música muito bonitas – confessou, rodando a cabeça na direcção da montra. – Gostaria de comprar uma, com algum espaço interior, para oferecer. E queria também encomendar mais vinte, para entregar no teatro. Deixo-as à sua escolha, mas gostava que tivessem todas a mesma melodia. – Vinte? – perguntou, estupefacto. Angelique sorriu e acenou, em modo de confirmação, levando Philip a apressar-se e a ir escolher algumas caixas, levando-as até ao balcão. Mostrou-lhe os interiores, explicou-lhe alguns pormenores técnicos, como o tipo de madeira, e falou-lhe também das melodias, umas mais alegres, outras melancólicas. Após uns minutos pensativos, Angelique decidiu-se por aquela que era feita de ébano, talhada com inúmeros pormenores exóticos que a faziam parecer originária de um país oriental. Quando já acabara de tratar da venda, e de agendar a entrega das restantes caixas para essa tarde, Philip ousou dar corda a outros assuntos. – Gostou da rosa que lhe deixei à porta do camarim? – Ela mirou-o com um espanto nítido que o fez corar um pouco, atrapalhado. – Assisti ontem ao bailado e foi maravilhoso. Por isso, os meus parabéns, mademoiselle. Um sorriso despontou nos lábios róseos de Angelique. Estava habituada aos elogios, já não a embaraçavam, porém agradecia-os sempre. – Perdoe-me a indiscrição. É casada ou comprometida de alguma forma? Talvez estivesse a levar a ousadia aos limites, no entanto precisava de esclarecer um ponto importante que ficara a remoê-lo desde a noite anterior. – Sou comprometida com a minha profissão – respondeu Angelique, franzindo levemente as sobrancelhas. – É com ela que estou casada. – Então que direito tem um homem de lhe bater ou ameaçá-la? O rosto da jovem perdeu a pouca cor que tinha. Olhou em volta como um bicho encurralado e apressou-se a pegar nos pacotes com a boneca e a caixa de música. – Foi um prazer, monsieur Reeve. Desejo-lhe muita sorte com a sua loja de brinquedos. Perdoe-me por qualquer incómodo. Angelique precipitou-se para o exterior movimentado, tão depressa quanto conseguiu, deixando Philip ao balcão. Enquanto ele lhe mirava a silhueta delgada dentro do vestido, a descer a rua sem olhar uma única vez para a montra, ponderava na fuga súbita que a sua questão causara. As engrenagens do seu coração falavam-lhe do medo surpreendente que vira no olhar da bailarina. Se pudesse descobrir quem aquele homem era, talvez encontrasse uma forma de a ajudar. Os dedos tamborilaram sobre o balcão antes de tomar uma decisão. Tirou então o avental de trabalho e dirigiu-se à oficina contígua. – Nick, vou sair. Não sei se me irei demorar, por isso ficas a tomar conta da loja. O rapaz levantou o olhar para o mestre, um pouco espantado, antes de fazer um aceno de compreensão. Tinha curiosidade em relação aos assuntos de Philip, mas não se sentia no direito de fazer perguntas. Isso violaria, de alguma forma, o compromisso de confiança que havia entre os dois, dizia-lhe a sua cabeça. – Avô, avô! – A garotinha entrou de rompante no escritório do velho homem de bigode espesso. – O senhor dos brinquedos quer falar contigo! Com um sorriso, Philip ficou parado à porta, de cartola segura nas mãos, vendo a garotinha saltitar até perto do avô, empoleirando-se nos braços da cadeira para lhe segredar ao ouvido. Ainda assim, as palavras alcançaram-no revelando o desejo da criança de ter uma nova boneca que cantasse para ela. Era uma proeza difícil fazer com que uma boneca dissesse mais do que “mamã”, quanto mais cantar. – Eu depois trato disso, agora deixa o avô sozinho com este senhor – pediu, empurrando-a levemente para que se fosse embora. Quando a criança saiu, acenando a Philip, o director do teatro, Creighton Crawford, fez-lhe sinal para que entrasse e fechasse a porta. O escritório fora mobilado em tons de dourado e carmesim, sofás confortáveis e estantes elegantes arrumavam-se ordeiramente, tudo para dar aconchego ao aposento. Timothy roeria as unhas se soubesse que andava a sentar-se em cadeiras desconfortáveis enquanto existia uma sala daquelas no teatro. Após uma conversa inicial de cavalheiros, a qual Philip encurtou o mais possível, tocaram finalmente no assunto fulcral. – Ontem à noite, antes de sair do teatro, deparei-me com um homem que nunca vi na cidade. Não deve ter mais de quarenta anos, muito alto, cabelo loiro, olhos cinzentos e monóculo – descreveu, tentando captar algum reconhecimento no rosto do seu ouvinte. – Estava perto dos camarins. Um brilho surgiu nos olhos escuros do director do teatro. – Presumo que seja Casimir Sherwood, o encenador. Um homem muito educado, por sinal – comentou, recostando-se na cadeira. – Mas porquê o interesse? Philip desviou o olhar para o topo da cartola pousada no colo, as sobrancelhas tão franzidas que quase se tocavam. – Um cavalheiro de fachada – constatou, antes de voltar a encará-lo. – Desconheço as razões, no entanto não deveria ser aceitável que um homem assim batesse numa mulher que não lhe é nada. Aquelas palavras apanharam o director completamente desprevenido. – Bater? Isso são acusações sérias, Mr. Reeve. Em que é que se baseia? – Dobrou-se sobre a grande barriga e apoiou as mãos na secretária, entrelaçando os dedos. – Viu alguma coisa? – Vi e ouvi, neste mesmo edifício, Director Crawford – disse, fazendo questão de enfatizar o novo título do velhote, para que ele estivesse ciente das responsabilidades que carregava. – Ele bateu numa das bailarinas. – E como é que pode ter a certeza de que essa bailarina não tem qualquer relação com Casimir? Pode perfeitamente ter sido um arrufo, não acha? – Não, não acho! Ainda há pouco ela me disse que não tinha nada com ele. E mesmo que tivesse, nada dá o direito de agredir assim numa senhora – protestou, batendo na mesa com o punho fechado. Crawford arregalou as sobrancelhas, estupefacto. – Não sabia que agora era um acérrimo defensor dos direitos das mulheres. Por curiosidade, sabe-me dizer o nome dessa bailarina? Só assim poderei tentar resolver o caso. Tentar – frisou, para que Philip não tivesse todas as esperanças do mundo. – Sra. Angelique. Não sei se é o nome verdadeiro, ou se é somente artístico – confessou, inspirando fundo para se acalmar um pouco. O sorriso que tomou o rosto do velho homem não lhe agradou nem um pouco. – Angelique Blanc? Oh, Mr. Reeve… – riu-se, sem que Philip visse onde estava a graça de tudo aquilo. – Sabe que nem todas as mulheres são os anjos que parecem? Não se deixe enganar tão facilmente. O rumo da conversa estava a desagradá-lo. Fosse Angelique o que fosse, nada disso apagava aquilo a que assistira. – Vai fazer alguma coisa, ou não? É que se não, dirigir-me-ei às autoridades e apresentarei queixa do Teatro – avisou, semicerrando os olhos. – A guarda até pode não fazer nada, mas tenho a certeza que um pequeno escândalo terá o seu efeito. O director ficou ultrajado. – Isso é injusto, Reeve! Sabe perfeitamente que não tenho nada a ver com o que se passa nos bastidores! Nem sequer sou responsável pelos grupos que aqui vêm actuar. – Mas é responsável por aquilo a que os espectadores assistem quando estão dentro deste edifício – disse, levantando-se da cadeira, como se se preparasse para ir já de seguida falar com as autoridades. Philip não era uma pessoa extremamente importante, mas detinham para com ele um certo grau de respeito pelo trabalho que desenvolvia na sua oficina, e o seu nome era conhecido até pela própria Rainha Vitória do Reino Unido, a mando de quem já construíra um coração artificial para o príncipe mais novo. – Eu irei falar com o Casimir a respeito do que aconteceu. Não voltará a ocorrer, sob pena de não lhes pagar nem mais uma libra pelo trabalho – garantiu Crawford, erguendo também o corpo pesado, da sua poltrona demasiado confortável. – Tenha um bom dia, Mr. Reeve. – O mesmo lhe desejo, Director – disse, com um leve aceno. – Com licença. Quando abriu a porta para sair, estremeceu, meio assustado, ao dar com Timothy demasiado perto desta. O amigo lançou-lhe um sorriso inocente. – Estava à tua espera, Philip! Vi-te entrar no teatro e pensei convidar-te para tomar um café – declarou, antes de relancear Crawford. – Bom dia, Director! Philip revirou os olhos e abanou a cabeça, antes de fechar a porta atrás de si. Puxou o amigo para longe do edifício e só quando a fachada vitoriana do teatro ficou fora de vista é que o mirou de soslaio. – Estavas a ouvir à porta – acusou, caminhando mais calmamente. – Que idade é que tens? Timothy ajeitou a manga esquerda do casaco de cabedal, pensando no que responder. No entanto, acabou por optar pela verdade. – Estou cansado da vida de aviador – comentou, olhando para o céu onde um dirigível cruzava os ares. – Ando a tentar descobrir alguns podres da vida do barrigudo, para o tirar da direcção do teatro. Alguém tem que mudar aquelas cadeiras horr… Desequilibrou-se de súbito, quando o pé tropeçou na tampa de uma sarjeta que dava acesso aos esgotos e aos labirintos da central de energia, e só não se estatelou no chão porque Philip o agarrou pelo braço. – Bons reflexos, homem das engrenagens – gracejou, antes de se endireitar e fazer de conta que nada acontecera. – Como estava a dizer, tenho de começar a olhar mais para o chão e menos para o ar. Assentar, talvez casar… quando a tua irmã aparecer por aqui e largar os dirigíveis e as calças. Ela fica tão bem de vestido… Philip soltou um suspiro exasperado. – Ela vem visitar-me um dia destes, não sei bem quando – confessou, deixando Timothy com um brilhozinho nos olhos. Era impossível conseguir ter uma conversa lógica com aquele homem, já que ele saltava de assunto como um ponteiro de relógio salta os segundos. Atrás deles, a sarjeta levantara-se por completo e um adolescente, com o rosto coberto de fuligem, emergiu do interior dos túneis, com uma chave-inglesa nas mãos. Ponderou em pedir desculpa por ter feito o cavalheiro tropeçar, contudo teve medo que fizessem queixa dele a um superior. Isso seria o suficiente para o despedirem. Apoiado na bengala, Crawford dirigiu-se às traseiras do teatro, onde ficavam os aposentos dos artistas. Havia muitos que não tinham posses suficientes para se instalar noutro sítio, e sempre era melhor um cubículo do que dormir na rua. Bateu à porta do quarto maior e aguardou, impaciente. Enquanto isso, tirou o relógio de bolso do interior do casaco e fez uma careta de desagrado ao ver as horas. A porta abriu-se antes de ter tempo de o voltar a guardar. Muito acima da altura do velho, Casimir lançou-lhe uma mirada. Era um homem inegavelmente belo e inegavelmente frio que era raro ver sorrir. A camisa aberta até meio do peito revelava que o seu corpo estava treinado para ser mais do que um encenador, equiparando-se com o de um atleta de músculos não muito proeminentes, contudo definidos. – Precisamos de falar sobre uma das tuas raparigas, a Angelique – informou o director, num tom baixo –, e sobre o teu comportamento. Não me interessa o que fazes com ela quando estão sozinhos, no entanto não quero que levantes nenhum tipo de suspeitas. A última coisa que desejo é ver algum guarda a vasculhar por aqui. Casimir arqueou uma das sobrancelhas muito claras. – É melhor não falarmos à porta – declarou, recuando. – Entra. Quero saber a razão dessa conversa, ao pormenor. Depois de a porta se fechar, nenhuma palavra trocada entre os dois alcançou o exterior. O tilintar do sino à entrada da loja fez com que Nicholas acorresse ao balcão. Depois de um breve almoço com o seu mestre, ficara novamente a tomar conta da loja, sozinho. Esperava-o uma esbelta jovem vestida de branco, cujas mãos apertavam e torciam as asas da bolsa de mão. Os olhos irrequietos de Angelique caíram sobre ele, e havia neles um misto de desgosto e alívio ao não reconhecer quem desejava. Nicholas sempre dera imensa atenção os pormenores, por isso também não lhe escapou da vista uma madeixa de cabelo loiro que se soltara do gancho e a qual não fora reposta no devido lugar, assim como o pó de arroz que parecia querer esconder a pele corada do rosto. Talvez demasiado corada. Trazia consigo um perfume fresco que deveria fazer as delícias de quem permanecia ao seu lado, apesar de ele torcer o nariz. – Boa tarde, em que posso ajudá-la? – perguntou, educadamente. – Gostaria de falar com monsieur Reeve – disse, com um sorriso trémulo. Contemplou os dedos e os pulsos de metal articulado do rapaz, que a camisa deixava ver, com uma ponta de espanto que lhe arqueou as sobrancelhas. Nicholas abanou a cabeça, como resposta antecipada. – Mr. Reeve ausentou-se, mas não deve tardar. Se não a posso ajudar, talvez queira esperar um pouco por ele. ‒ Pensou por um segundo, avaliando qual a melhor atitude. O que faria Philip se estivesse no lugar dele? – Eu… – Angelique hesitou, olhando para a porta por um momento, como se esperasse ver alguém entrar. – Posso esperar um pouco, sim. Não tenho pressa. – Então, sugiro que me acompanhe até ao piso de cima. O mestre não gostaria que o esperasse aqui, sem qualquer comodidade – decidiu, passando a mão pelo cabelo despenteado. Fez-lhe sinal para que o seguisse através da oficina pouco arrumada, onde se espalhava toda uma miríade de ferramentas, projectos por acabar e livros sobre estranhos engenhos. Tudo junto fazia com que o lugar lembrasse mais um laboratório do que uma simples oficina de trabalho. Sobre uma das bancadas, repousava o que deveria ser uma máquina com a forma particular de um rim, onde as peças se sobrepunham, algumas tão pequenas que lembravam cabeças de alfinete. Por um momento, Angelique debruçou-se sobre o órgão, de olhos arregalados. Aquilo não era um brinquedo, de todo. Nunca se interessara pela mecânica, por isso punha em causa a funcionalidade de um aparelho como aquele e duvidava de que conseguisse harmonizar-se com o corpo. No entanto, se Philip Reeve se dedicava àquele tipo de trabalho, para além da fachada infantil da loja, era porque, de alguma forma, acreditava na sua utilidade. Ou então era louco. – Não mexa em nada – ordenou a voz de Nicholas, ríspida, já junto às escadas que levavam ao piso superior. – …Por favor. Decidira acrescentar as duas palavras, para amenizar o tom. Philip não teria gostado que ele tratasse mal uma senhora, mesmo que a senhora estivesse a meter o nariz onde não devia. Angelique endireitou-se rapidamente e fez um leve aceno, apressando-se a segui-lo. – Peço perdão, monsieur… Nicholas ignorou o pedido implícito de lhe dizer o seu nome. Não estava habituado a conviver com pessoas. O amigo de Philip chamava-lhe anti-social e frisava sempre que, com aquela má disposição, nunca iria encontrar uma mulher que o quisesse. Mas ele também não queria uma mulher… o seu mestre também não tinha nenhuma. Chegados à zona da casa dedicada à habitação, Nicholas levou-a para uma pequena sala de estar muito acolhedora. Indicou-lhe o sofá, para que Angelique se sentasse, e depois retirou-se para a cozinha onde, muito contra a vontade, pôs uma chaleira ao lume. Foi à dispensa verificar se ainda havia biscoitos de amêndoa e perguntou-se intimamente, com um sorriso nos lábios, sobre o que aconteceria se a jovem donzela de branco fosse alérgica. Antes de descer para voltar à loja, Nicholas ponderou em dizer novamente para que Angelique não mexesse em nada, no entanto torceu a língua e limitou-se a ir-se embora, deixando-a sozinha. Durante cinco minutos, ela ficou quieta, tentando controlar a respiração, descontrair-se, parecer natural. Contudo, seria impossível, sem encontrar uma coisa que lhe prendesse a atenção. Isso aconteceu quando ouviu o chiar insistente da chaleira. Acorreu à cozinha e baixou o lume de imediato, antes de olhar em volta. Talvez pudesse ajudar o rapaz ruivo em alguma coisa, não queria dar demasiado trabalho. Tirou as luvas e pousouas na bancada da arrumada cozinha, antes de começar a abrir armários e a procurar as ervas que podia usar no chá. Foi naquela tarefa que Philip a encontrou, quando procurou pela senhora que queria falar com ele. Encostou-se à ombreira da porta da cozinha, de sobrancelhas arregaladas, contemplando Angelique a mexer o chá já preparado. Sem querer, ela tocou com indicador no exterior da chaleira e soltou uma exclamação de dor, levando depois o dedo à boca. – Eu trato do resto, não precisa de fazer mais nada – garantiu Philip, anunciando a sua presença. Com um salto, Angelique voltou-se para ele, ainda com a ponta do dedo na boca. O rubor de embaraço conseguia notar-se por debaixo do pó de arroz. – Estava só a tentar ajudar – desculpou-se, baixando o olhar. O inventor riu-se levemente e foi buscar duas chávenas e um tabuleiro, preparando o que faltava. – E eu agradeço. O Nicholas não se teria lembrado a tempo – notou, deduzindo que fora o aprendiz que pusera a água a aquecer. – Vamos para a sala, mademoiselle? É mais confortável do que a cozinha. Angelique seguiu-o, já perdido o à-vontade e recordada do porquê da sua presença ali. Sentouse na cadeira que o cavalheiro puxou e ajeitou o vestido, de modo nervoso. Depois de Philip a ter servido, mexeu o açúcar e esperou que fosse ele a abordá-la. Porém, o inventor parecia preferir observá-la, enquanto bebericava o chá. O silêncio deixava-a ainda mais ansiosa e o tiquetaque do relógio pendurado na parede estava longe de ajudar, insinuando uma contagem decrescente do tempo que lhe restava. Acabou por tossicar, enquanto os dedos brincavam com a colher de prata. – O rapaz que trabalha para si… notei que os braços dele não são humanos – disse, tentando começar a conversa por uma ponta diferente, para não ser tão directa. O inventor fez um pequeno aceno. – Nem os braços, nem as pernas, e o mesmo se aplica a parte do tronco, na verdade. O seu antigo corpo foi destroçado quando o dirigível onde viajava se despenhou. Milagrosamente, não morreu e alguns dos órgãos vitais ficaram intactos. – Soltou um suspiro. – Mas não foi para falar dele que aqui veio, pois não? A bailarina mordeu o lábio inferior por um segundo. – Vim agradecer-lhe a sua atitude, monsieur Reeve. – Baixou o olhar. – O director veio falar comigo a respeito do que o senhor viu ontem, e depois falou também com Casimir. Ele prometeu não voltar a tocar-me. Philip contemplou-a como se procurasse os defeitos num invento quase acabado de criar. – Então porque é que não me parece aliviada? – quis saber, por fim, os olhos alternando entre a mão que ainda não deixara de brincar com a colher e o rosto pálido que não o encarava. Não ia acusá-la directamente de lhe estar a mentir, queria saber até onde o tentaria enganar. – Eu estou muito aliviada – garantiu rapidamente, acenando. ‒ Mas não deixo de estar nervosa e é difícil de acreditar. Não foi a primeira vez que ele me bateu. O inventor perguntou-se intimamente se seria a última vez, no entanto não quis pressioná-la. Não se habilitaria a uma nova fuga, como se o monstro fosse ele. Estendeu a mão e agarrou a dela, a que não parava de remexer na colher. – Prometa-me que, se voltar a acontecer, me dirá, para que a possa ajudar – pediu. E com a outra mão levantou-lhe o rosto, para a poder fitar nos olhos bonitos, aquosos. Disfarçavam bem as lágrimas, se Angelique estivesse à beira de chorar. – Prometa-me, por favor. A resposta não chegou logo, fazendo-se demorar como se apelasse ao suspense. Todavia, quando veio, ficou muito longe daquilo que Philip esperava. – Por favor, meta-se na sua vida, para seu bem. Nada disto lhe diz respeito. Não quero que volte a interceder por mim, não quero que… volte a procurar-me. – A mão dela soltou-se da sua e recolheu-se ao colo, juntando-se à outra. – Mas não fui eu que a procurei, foi a senhora que veio até mim – notou, querendo perceber aquela súbita mudança. – Estou preocupado consigo, estou… As restantes palavras ficaram-lhe presas na garganta, quando Angelique tirou de debaixo da mesa uma pequena pistola, apontando-lha ao peito, sem hesitar. Estivera, muito provavelmente, guardada na bolsa. Philip sentiu como se lhe fosse apontado um pequeno canhão de guerra. – Eu sei cuidar de mim, monsieur, por isso faça o que lhe peço. Não volte a procurar-me, fique com os seus brinquedos e com a sua vida – declarou, antes de se levantar da cadeira. – Tenha uma boa-tarde. Em choque, Philip ficou pregado à cadeira, enquanto ela saía sem mais delongas. As palavras de Crawford, que lhe diziam que nem todas as mulheres eram os anjos que pareciam, reavivaram-se na sua cabeça. Talvez a personalidade de Angelique estivesse para além da sua imaginação, contudo acreditava que havia uma razão muito forte para ela lhe apontar uma arma, muito mais forte do que a violência de um encenador para com as suas bailarinas. Aquele acontecimento, para além de lhe aumentar a preocupação, incendiara-lhe a curiosidade. Tinha que descobrir quais as consequências de se disparar contra um coração de corda, para medir os riscos que poderia correr. Nessa noite, Philip convidou Timothy para jantar lá em casa e ele próprio cozinhou. Depois de o estômago estar bem aconchegado, o amigo recostou-se na cadeira, sorvendo um cálice de vinho do Porto. Escutou o inventor, as sobrancelhas erguendo-se à medida que ele lhe contava o que acontecera nessa tarde. A reacção de Nicholas era, em algumas partes, similar, porém havia ultraje e preocupação misturadas com ela, coisas que Timothy não expressara. – A bailarina apontou-te mesmo uma arma? Isso é… – O amigo olhou para o tecto, pensando numa boa definição. – Hilariante? – Ela podia tê-lo morto – interpôs-se Nicholas. – Devia apresentar queixa à guarda! – E a francesa acusava o Philip de assédio sexual, ou algo do género – notou Timothy, com um encolher de ombros. – Ele está aqui, bem vivinho e a contar-nos coisas interessantes, muito interessantes… Mirou a bebida, por um momento, pesando tudo o que Philip lhe contara. A rapariga queria claramente manter a distância e teria uma razão suficientemente importante para chegar ao ponto de ameaçar de morte um homem que se voluntariara para a ajudar. Não queria ser ajudada e não parecia ser masoquista, por isso haveria a possibilidade de estar a esconder qualquer coisa importante. – Talvez não fizesse mal se tentássemos saber um pouco mais deste assunto… e tens de me dar uma garrafita deste vinho, é mesmo bom – acrescentou, já fora do contexto. – Podes ir buscar uma a Portugal. Agora continua o que estavas a dizer antes. Como é que podemos saber mais sobre o assunto? – Philip cruzou os braços, mirando o amigo. – Bem… assim de repente… podíamos espiar os dormitórios deles, enquanto estivesse a decorrer algum ballet – sugeriu, com um sorriso torto. Timothy gostava de aventuras, por isso nitidamente a ideia parecia-lhe interessante. – Talvez encontrássemos uma pista, alguma carta, uma camisa com sangue e um buraco no peito… Philip arregalou os olhos, recordando-se de um pormenor no qual não pensara. – Uma carta – sussurrou para consigo. – Ele levava na mão um papel, quando o vi sair do camarim de Angelique. Da forma como estava amarrotado, podia ter alguma coisa escrita que o tivesse enraivecido. Mas esse papel já não deve existir. Nicholas olhava de um para o outro, não acreditando no que estava a ouvir. – Mas deve existir qualquer pista. Arranja uma engenhoca que abra portas e janelas, amanhã à noite entramos em acção. O rapaz abanava a cabeça, incrédulo, enquanto via o mestre levantar-se e ir até à sala de trabalho. Regressou com um instrumento circular que Nicholas conhecia bem e usava casualmente quando necessitava de fazer cortes cirúrgicos a peças metálicas, contudo as funções da ferramenta iam muito além disso. Também conseguia criar chaves, através de um mecanismo de adaptação da forma. Philip chamava-lhe modelador de chaves. – Não, mestre, por favor… não faça isso, é imprudente. Se o apanharem vai ser preso e podem maltratá-lo… – apelou Nicholas, não querendo vê-lo a embarcar em tal loucura. – Porque haveria de tentar ajudar essa senhora? Ela não quer! Timothy soltou uma risada malandra. – Porque o teu mestre está embeiçado pela bailarina. Amor à primeira vista, já ouviste falar? É uma coisa desse género. Isso fomenta nele o espírito de herói ‒ explicou, fazendo Philip corar ligeiramente e abanar a cabeça. Aquele tipo só dizia parvoíces… O aprendiz ficou ainda mais estarrecido ao ouvir aquela explicação. Não conseguia sequer imaginar o inventor ao lado de uma mulher que não fosse a irmã, Charlotte. No entanto, Nicholas também não a via propriamente como uma mulher. Não havia ninguém na ruela estreita que dava acesso às traseiras do teatro. Pairava nela um fedor que ia para além da poluição normal do ar, um das razões que explicava a falta de vida humana. Para além disso, a distância que separava os candeeiros de luz fraca era bastante maior do que o normal, criando zonas onde as sombras esguias reinavam. Alguns caixotes empilhavam-se junto às paredes, abandonados. Com a gola da casaca negra subida e as mãos nos bolsos, Philip caminhava discretamente pela estrada. O seu passo não denunciava pressa, porque na verdade aguardava um sinal. Fora Timothy quem entrara pela porta da frente, para levantar menos suspeitas. Se alguma das bailarinas, o director, ou mesmo Casimir Sherwood o vissem por ali, desconfiariam certamente das suas intenções. Aguardou, o olhar saltando ao longo das janelas que lembravam bocas escuras. Não obstante a atmosfera soturna que o rodeava, era noite de lua cheia. Felizmente, o astro ainda não se erguera o suficiente para juntar a sua luz à dos candeeiros. O ruído abafado de máquinas a trabalhar sem descanso chegava-lhe aos ouvidos, através das sarjetas que soltavam um fantasmagórico bafo de calor, e era o suficiente para lhe encobrir as passadas. Philip era só mais uma sombra, mas, ao contrário das outras, mexia-se. Acabou por se encostar à parede, camuflando-se com ela e com os restantes objectos. Por vezes uma luz vaga, porém súbita, acendia-se, fazendo-o desencostar-se e dar um passo em frente, mas só para se voltar a apagar no segundo a seguir. No interior do edifício, Timothy saltava de quarto em quarto, apressando-se a experimentar o modelador de chaves em cada uma das portas. Ao inserir a pequena peça de metal na fechadura, esta emitiu uma série de estalidos. Quando o barulho cessou, era claro o significado de que o instrumento adquirira a forma da chave. Rodou-o e destrancou a porta, empurrando-a para trás. Guardou a ferramenta no bolso e apressou-se a acender uma vela que trazia consigo. A luz alaranjada tocou os objectos que se espalhavam sem ordem, no quarto. Ali via-se uma cartola, acolá um lenço, a cama estava desfeita, a porta do guarda-roupa aberta… O aposento de um homem. Encontrara o que queriam. Fechou-se no quarto rapidamente e pousou a vela no único sítio organizado: a secretária. Depois acorreu à janela de guilhotina e puxou-a para cima. – Homem das engrenagens? – sussurrou, metendo a cabeça de fora. Philip foi ter com ele rapidamente, não fosse Timothy lembrar-se de levantar o tom. O amigo deu-lhe espaço e, com um pouco de balanço, saltou para o parapeito da janela. Não era o homem mais ágil de Londres, mas fazia questão de se exercitar um pouco, para manter o coração sincronizado. – Começamos pela secretária, é o único sítio arrumado. Este é pior que eu – murmurou o aeronauta, pensando na bagunça eterna da sua casa. O inventor não comentou e acendeu uma segunda vela, para ajudar na busca. Deu uma vista de olhos nos papéis sobre a secretária, sem encontrar nada de interessante, e depois vasculhou as três gavetas. A primeira estava vazia, a segunda tinha um conjunto de cartas já abertas. Philip leu-as na diagonal, todavia não lhe interessava o agendamento de novos espectáculos na Rússia e na Alemanha. A última gaveta guardava uma pistola punhal-francês. Quanto a Timothy, alternava o seu movimento entre virar do avesso os bolsos dos casacos e das calças que apanhava à mão e escutar à porta, certificando-se de que ninguém vagueava pelo corredor. – Talvez não haja nada – disse Philip, endireitando as costas. – Ou talvez não estejamos a procurar nos sítios correctos. O amigo olhou em volta, de sobrancelhas franzidas, antes de pegar na cadeira arrumada junto à secretária. Pousou-a junto do guarda-fatos e subiu-a, para a seguir abrir a mala de viagem que estava aí arrumada. – Traz uma vela para aqui, que nem sequer vejo a ponta do meu nariz – pediu, enquanto tacteava o interior da mala com cuidado. Philip obedeceu-lhe e levou uma das velas até perto dele, erguendo-a o mais que podia acima da cabeça. A primeira coisa que saiu da mala foi uma caixa que o inventor reconheceu de imediato. – Vendi-a ontem à Angelique – sussurrou, enquanto o amigo a abria e espreitava o interior vazio. – Ela disse-me que a iria oferecer… – Hm… – fez Timothy, em modo de comentário, revirando a caixa de música com pouco cuidado e sacudindo-a. Um tilintar saiu de dentro dela, como se houvesse peças soltas. – Já não deve estar muito boa. Ele não deve ter gostado da compra. Arrumou-a na posição precisa em que estivera, antes de tirar um maço de correspondência de um dos cantos da mala. Agitou-o em frente da cara de Philip, com um sorriso trocista, e saltou da cadeira. Após passar revisão a meia dúzia de cartas, ficou a olhar para uma delas, muito intrigado. No papel fora impresso um esquema que lhe lembrava uma mistura do mapa de um labirinto com pormenores mecânicos. Não havia qualquer inscrição explicativa nas margens. Passou a folha a Philip, esperando uma elucidação intelectual. – É a rede da central de energia – esclareceu, com um olhar atento sob a luz trémula. – Mas não percebo porque haveria uma coisa destas estar entre as cartas. – A central que fica aqui mesmo ao lado – notou Timothy, pensativo. – Os interesses dele são peculiares, para não dizer suspeitos… – As caldeiras estão marcadas – notou, tocando com o dedo na que ficava mais perto do teatro. – Todas, sem excepção. Ele deve ter obtido o mapa a partir de algum dos engenheiros. Mas porquê? Para quê? Por entre o silêncio do quarto, só interrompido pelo estalar ocasional dos pavios a arder, puderam escutar duas vozes masculinas, provindas do corredor. Identificaram facilmente a de Crawford. Timothy praguejou, arrebatando rapidamente o esquema das mãos do inventor. Dobrou-o atabalhoadamente e meteu-o entre as outras cartas, antes de as arrumar no canto da mala e fechá-la. Foi nesse momento que uma chave entrou na fechadura da porta. Ele saltou da cadeira e correu para a entrada, sem esperar por mais nada. Apoiou o ombro contra a porta, impedindo que fosse aberta. As reacções do inventor bloquearam por um momento, temendo que fossem descobertos. Sob as ordens gestuais do amigo, apagou a vela que segurava e arrumou a cadeira no devido lugar. Do outro lado da porta, alguém rodava a maçaneta, tentando forçar a entrada. Os resmungos irritados chegavam até eles. Com um sopro, Philip extinguiu a segunda vela e guardou-a no bolso. No entanto, faltava a parte mais difícil: fugir dali sem serem apanhados. Com os encontrões que eram agora dados à porta, mal Timothy se desencostasse dela, esta escancarar-se-ia. – Tranca-a – sussurrou Philip. Sabia que isso iria denunciar de imediato a presença deles, porém dava-lhes tempo para saltar pela janela e correr dali para fora. Como estava escuro, com sorte não os reconheceriam e tomá-los-iam por ladrões. O aeronauta fez um pequeno aceno e tirou o modelador de chaves do bolso. Este ainda apresentava a última forma utilizada, o que facilitava a tarefa. Respirou fundo e começou a contar até três, até que viu que Philip não se dirigia à janela. Antes, enfiava-se debaixo da cama de casal. O inventor não estava com planos de sair dali tão cedo, não antes de descobrir um pouco mais sobre as intenções de Casimir Sherwood. – És maluco ‒ ciciou, abrindo muito os olhos. Philip limitou-se a fazer sinal para que ele saísse pela janela, sem ele. – Se tu morres… Não disse mais nada, deixando a ameaça no ar, e introduziu a chave na fechadura, fazendo rodar o canhão tanto quanto era possível. Do exterior ouviu-se uma exclamação grave e um estranho deslizar cortante de metal. Um instante depois de Timothy se ter desencostado, uma lâmina fina perfurou a madeira e chegou ao interior do quarto, tocando-lhe de raspão no ventre e arrancando-lhe um gemido de dor. Sem esperar para ser esventrado, ele precipitou-se para a janela e saltou. A porta escancarouse a tempo de Casimir, de espada em punho, vê-lo desaparecer pela janela. Um rosnar perigoso encheu o quarto, fazendo Philip encolher-se tanto quanto podia no seu esconderijo poeirento. Por todas as peças dentadas da sua oficina, esperava não ser descoberto. Por um momento, Casimir observou a mancha vermelha na ponta da espada. Depois, com mais força do que a necessária, embainhou-a no interior da bengala que camuflava a sua verdadeira natureza e foi fechar a janela. – Maldição… – silvou, na direcção de Crawford que acabara de fechar a porta atrás de si. As luzes do quarto foram acesas, revelando que tudo parecia demasiado no sítio para um assalto. Para além disso, ninguém tocara nos objectos de valor, como o relógio de bolso incrustado com pedras preciosas, sobre a cómoda, ou o fio de ouro de onde pendia um crucifixo. O encenador inspeccionou o quarto com toda a atenção, no entanto nada encontrou fora do sítio. – Talvez não tenham tido tempo para roubar nada, chegámos a tempo de o evitar. Só é estranho que tivessem uma chave do quarto – notou o director, o rosto bochechudo expressando algum alívio. Casimir escrutinou-o também a ele, não lhe bastando fazê-lo com o quarto. – Isto não foi nenhuma tentativa de traição, pois não? – O tom perigoso e o olhar álgido fizeram Crawford estremecer. – Por quem me toma? Estamos no mesmo barco, Casimir. Nem sequer sonhei em traí-lo – volveu, de sobrancelhas franzidas. – Se quiser, apesar de não me agradar, informarei a guarda a respeito do assalto. – Não. A última coisa que quero é ter alguém a vasculhar-me o quarto – declarou, sentando-se à borda da cama. – Quando é que chegam as garrafas de gás? No seu esconderijo, Philip apurou melhor a audição, depois de encolher a barriga ao testemunhar como as tábuas que suportavam o colchão se tinham dobrado na sua direcção, querendo espremê-lo contra o soalho. – Serão entregues de madrugada. E pode ter certezas de que o seu efeito soporífero foi testado e teve total eficácia. Ao fim de dez minutos de inalação, devem estar todos a dormir – garantiu Crawford, ao ver que ele iria levantar outra questão. – Quanto aos esconderijos, já não vai usar as caixas de música, pois não? Sempre me pareceu uma ideia descabida e que poderia correr mal, no entanto, agora com o Reeve a farejar por aí… Casimir passou uma mão pelo rosto, pensativo. Ele gostara da ideia das caixas de música, por mais extravagante que fosse. O som de uma música de embalar a acompanhar os efeitos soporíferos do gás daria todo um aspecto poeticamente macabro à situação. – As caixas serão usadas. Não há perigo de que nos denunciem, porque serão destruídas durante a explosão. E se sobrar alguma ‒ esboçou um sorriso ténue mas maldoso –, talvez as culpas recaiam sobre o nosso prezado Mr. Reeve. Em todo o caso, o mecanismo delas será adaptado para que possam libertar o gás junto às caldeiras. Só depois de todos estarem a dormir é que poderemos agir com mais segurança e levar os barris de pólvora para os subterrâneos. Quero o material pronto, para amanhã à noite agirmos: a pólvora, as carruagens, as roupas de operário… tudo, sem falhas. Philip tapou a boca, não só para conter uma exclamação, mas porque compreendia agora a magnitude do que estava a ser tramado. Vinte caixas de música para as vinte caldeiras da central de energia. Quando os operários tivessem adormecido, Casimir planeava rebentar com tudo, matando centenas, senão milhares de homens que trabalhavam dia e noite longe da luz do Sol. As engrenagens do seu coração pareciam gritar para que saísse dali e corresse até ao posto policial mais próximo, no entanto teria de esperar uma altura propícia. E esperar, depois de saber aquilo, era pura tortura. – Não se preocupe – garantiu Crawford. – Vai voltar para acabar de assistir ao ballet? – Não, vou ficar aqui. Não quero habilitar-me a encontrar outro ladrão ou espião dentro do meu quarto. – Voltou a desembainhar a espada, aproximando a lâmina dos olhos. – Diga à Angelique que venha ter comigo, quando o espectáculo acabar. O director fez um leve aceno e acabou por sair, deixando Casimir e Philip a sós. O inventor tirou a mão da boca e deixou-a escorregar até ao peito, por precaução. Não queria que o som metálico do coração o denunciasse a alguém de ouvido de tísico, tal como muitos conseguiam detectar o tiquetaque de um relógio. O chiar e o movimento da cama avisou-o de que o encenador se levantara. Controlou a respiração, mantendo-a tão serena e indetectável quanto possível. Por entre o pequeno espaço que existia entre as pregas da colcha que caía em direcção ao chão, e a própria madeira do soalho, vislumbrou os sapatos bem engraxados dele a passearem-se pelo quarto. Depois de encontrar um trapo por ali perdido, Casimir limpou o sangue que tingira a sua arma, não permitindo que um único resquício a maculasse. Quando terminou a tarefa, foi até à secretária donde tirou a pistola, levando-a depois para a mesa-de-cabeceira, onde ficaria bastante mais à mão, caso fosse necessário um tiro certeiro. Acabou por se deitar, a olhar o velho tecto de pintura já a estalar. Passou mais de uma hora. Philip mexia-se muito levemente, querendo desentorpecer o corpo. Não lhe calhava nada bem tropeçar durante a fuga… se chegasse a haver uma. Por fim, alguém bateu à porta, que se abriu sem esperar por autorização. – Angelique, finalmente. – Casimir sorriu-lhe, sentando-se na cama. – Sinto-me tenso, preciso de uma massagem com as tuas mãos de anjo. – Só uma massagem? – perguntou a bailarina, céptica, baixando-se e desapertando as sapatilhas. – Talvez não só – concedeu, contemplando-a com interesse. – Mas podemos começar por aí. Sem comentários, Angelique levantou a borda da colcha da cama, pronta para atirar as sapatilhas lá para baixo, como arrumação improvisada. Porém, mal o fez, os seus olhos encontraram os de Philip. Arregalou as sobrancelhas, enquanto o inventor levava um dos dedos aos lábios, pedindo-lhe silêncio. Interiormente, ele rezava a todos os anjinhos para que ela não o denunciasse. Com um piscar de olhos estupefacto, a bailarina arrumou as sapatilhas e deixou a coberta voltar a cair. Philip fez questão de tentar ignorar o que se passou a seguir. Depois do que deveria ter sido uma pequena massagem silenciosa, a luz do quarto baixou de intensidade e a cama testemunhou mais movimento, de tal forma que as tábuas começaram a ranger. Talvez não tivesse sido assim muito mau, se o encontro entre bailarina e encenador tivesse ficado por aí, porém começou-se a ouvir a respiração ofegante deles, e depois os gemidos entrecortados. Engoliu em seco e passou uma mão pelo rosto, controlando-se para não sair dali disparado. E pensar que Angelique sabia que ele estava ali escondido e continuava a fazer tudo aquilo! – Estás a magoar-me, pára – ouviu-a dizer, por entre um gemido mais enfático provindo de Casimir. Percebeu que ele não parou, de forma alguma. Controlou-se, convencendo-se de que seria pior se se denunciasse. Não sobraria só para si, que não tinha nenhuma arma com que se defender. Em Angelique recairia parte da culpa, e não conseguiria nem imaginar o que aquele homem sem escrúpulos lhe poderia fazer. Ao fim de mais algum tempo de movimento, o quarto sossegou, escutando-se somente as respirações ofegantes dos dois amantes. Minutos depois, nem isso era perceptível. Philip continuou sem se mexer, atento ao que se passava por cima de si. Os minutos seguintes foram tortuosos, passando tão devagar que pareciam fazer troça do inventor. A luz fraca continuou acesa, o que poderia significar que algum dos dois ainda poderia estar acordado. Sem aviso, a voz de Angelique ressoou no quarto, mais alta do que seria de prever, fazendo-o conter a respiração. – Casimir? – chamou, sem obter qualquer resposta mais expressiva do que um ronco. Philip presumiu que aquilo fora um teste de verificação do estado dormente do encenador, por isso, com cuidado, saiu de debaixo da cama e ergueu-se devagar. O olhar cruzou-se novamente com o de Angelique, que se cobria somente com um lençol branco, deixando a pele nívea dos braços e da parte superior do peito a descoberto. Embaraçado, desviou o olhar daquela mulher disfarçada de anjo. – Saia – sussurrou a bailarina, olhando na direcção da janela. – Antes que ele acorde. O inventor não esperou por outra incitação e, com passos silenciosos, dirigiu-se à janela, a qual abriu muito lentamente. Quando já tinha espaço suficiente para passar, mirou Angelique uma última vez, reconhecendo a tristeza tisnada no rosto de porcelana, que nem a falta de roupa nem o cabelo desalinhado podiam esconder. Não se deu ao trabalho de fechar o vidro, correndo para longe do teatro, tão depressa que, cinco minutos depois, e sem qualquer aviso, um pico de dor lhe perfurou o peito. Cambaleou, até se encostar a uma parede, ofegante, e levou a mão ao preciso lugar onde estava a fechadura. Tomou consciência do tempo que passara e da urgência que tinha em chegar a casa, se queria manter-se vivo. Era como se tivesse escapado de uma armadilha para correr para outra. Mais lentamente, e sempre apoiado à parede, dirigiu-se a casa. Ainda estava a uns bons vinte metros da porta quando esta se abriu de rompante e Nicholas se precipitou na sua direcção, numa corrida acompanhada de rangeres metálicos. – Nick – sussurrou, feliz por ver o seu aprendiz. Sentia que a nitidez estava a fugir-lhe da visão, com o baixar do nível de oxigénio circulatório. – O Timothy… – Está lá em cima – completou o rapaz. – Venha, eu ajudo-o. Passou um dos braços de Philip sobre os ombros e ajudou-o a atravessar a estrada, para ultrapassar os últimos metros que o separavam de casa. Chegados lá, deixou-o ficar sentado no sofá e correu até ao quarto do mestre, voltando, pouco depois, com a pequena mas preciosa chave. Abriu-lhe a camisa, sem pedir autorização, e inseriu-lha no peito, rodando-a as vezes suficientes para que a corda do coração voltasse a funcionar normalmente. – Obrigado, Nick. Não sei o que seria sem ti – confessou Philip, levando a mão ao cabelo do aprendiz e despenteando-o, como se ele ainda fosse uma criança. Nicholas corou ligeiramente e baixou o olhar, tirando as mãos do peito do inventor. – Alguém tem de cuidar de si quando se mete em sarilhos, não tem? Philip deu uma risada curta e irónica. – E que sarilhos… Quando, no dia seguinte, Philip e o Inspector bateram à porta do escritório de Crawford, o director pareceu genuinamente espantado com as acusações que lhe atiraram à cara. – Penso que, na noite passada, Mr. Reeve teve um tremendo pesadelo, ou então bebeu um pouco a mais. Nunca vi ideia mais descabida! – notou o homem, soltando uma gargalhada animada. – Eu, com esta idade, um terrorista que quer destruir Londres? A mesma Londres onde investi ao comprar este magnífico edifício? A mesma Londres onde o meu filho e a minha neta vivem? O Inspector, de bigode perfeitamente aprumado, escrutinou o director, no entanto ele parecia um poço de sinceridade. Mas era um poço tão fundo que era impossível ver se tinha água ou se secara. – Então talvez não se importe que revistemos o teatro e os anexos – sugeriu. – De modo nenhum, Inspector. Faça como se estivesse em sua casa, com todo o respeito – acrescentou, saindo de trás da secretária. Pouco depois, levou-os a visitar cada compartimento, da sala de teatro à mais pequena dispensa de vassouras e esfregonas. Nem sequer uma pista que indicasse actividades suspeitas foi encontrada. Por último, dirigiram-se aos quartos anexos. O primeiro que visitaram foi o de Casimir Sherwood, que lhes lançou um olhar da mais pura indiferença. – Quer revistar? Reviste. Não vai encontrar nada – garantiu, dando passagem ao Inspector enquanto se encostava diligentemente à ombreira da porta, de braços cruzados. O olhar do encenador cruzou-se com o do inventor e, sem que o Inspector tivesse hipótese de ver, esboçou na direcção dele um sorriso sádico de vitória. – Em todo o caso, se está a seguir alguma denúncia deste senhor – começou, sem desviar a atenção de Philip, como que em modo de provocação –, então talvez deseje saber que ele anda a perseguir uma das minhas bailarinas. Talvez pense que, desacreditando-me, consegue fazê-la cair nos seus braços. Os ciúmes fazem com que um homem tenha as mais pérfidas ideias. Um tom mais corado assomou ao rosto do inventor, que, no entanto, se obrigou a manter a postura. Mesmo antes de poder ripostar contra aquilo, o Inspector cortou-lhe a palavra. – Talvez. Contudo, Mr. Reeve nada ganhava com uma falsa denúncia, para além de ele próprio poder ser exposto ao ridículo. – Não se diz que os inventores têm algumas peças trocadas? – perguntou, tocando com um dedo numa das têmporas. – Construir próteses é um tanto ou quanto mórbido, e pode tê-lo afectado. A vontade de Philip era deixar-lhe uma marca bem negra e um inchaço nos lábios que apagasse aquele sorriso sacana. Cerrou os punhos e manteve-os junto ao corpo, para não se tentar ainda mais. Acabaram por abandonar o teatro, de mãos vazias, e o inventor regressou a casa, remoendo-se em frustração. Mal o viu, Nicholas correu para si. As mangas estavam arregaçadas um pouco acima do cotovelo, revelando ambos os antebraços feitos de peças metálicas às quais os nervos e tendões tinham sido ligados de forma exímia. O olhar preocupado do aprendiz mirou-o de cima a baixo, para confirmar que estava inteiro. – O que aconteceu? Não está com boa cara – notou. Philip encolheu os ombros e desviou o olhar. – Não encontrámos nada, eles devem ter algum esconderijo nas redondezas ‒ suspirou, afastando-se do aprendiz para pegar numa caixa de música ainda por acabar. Observou o mecanismo interno que produzia a música e ao qual iriam ser ligadas as garrafas de gás. – Nicholas, quero que partas ainda hoje para a casa de campo dos meus pais. Se acontecer alguma coisa em Londres… O rapaz abanou a cabeça, não acreditando no que ele estava a ordenar-lhe. – Não vou a lado nenhum sem si. Faço sempre tudo o que me pede, mas isso não. E não insista, que não vou mudar de planos – acrescentou. – Não sei o que está a planear, não lhe vou perguntar, porque se quisesse que eu soubesse ter-me-ia dito. Mas vou ficar à sua espera nesta casa, não o vou abandonar. Philip não conseguiu deixar de sorrir e, sem aviso, abraçou o aprendiz contra si, sentindo como se ele ainda fosse o rapaz de treze anos que ajudara quase a reviver, com o auxílio do melhor médico de Londres. – Tonto. És como um filho para mim, por isso é-me difícil ver-te correr perigo. No entanto, também já és adulto, por isso a escolha é tua. Nicholas nunca conseguira ver o inventor como um pai, mas sim como um salvador. Ou, quiçá, como um cavaleiro que fizera tudo para o salvar. Com um certo pouco à vontade, retribuiu o abraço, sentindo-se a recuar muitos anos no tempo, até à altura em que vivia no orfanato, junto com as outras crianças. Todas elas teriam desejado um abraço quente muito parecido com aquele. Como homem, Nicholas sempre se considerara apenas uma amostra com medo do mundo. Porém, por alguma razão que desconhecia, aquele abraço apertado causava-lhe um temor irracional que o levava a querer não soltar Philip por nada. Contudo, tinha de o deixar seguir o caminho que escolhera, por isso baixou os braços e libertou-o. A meio da tarde, o céu enchera-se de nuvens plúmbeas que lembravam castelos assombrados. Pouco demorou até que as estradas e os passeios se enchessem de poças de água e lama. Ainda estavam encharcados quando, ao cair da escuridão, Philip e Timothy se dirigiram ao teatro, os sapatos e as botas sujando-se a cada poça que não viam e pisavam. Nessa noite não haveria bailado, ou qualquer representação artística, segundo o plano de espectáculos. Assim sendo, o edifício mergulhara-se na penumbra, não existindo uma única janela donde brotasse vida. Rodearam-no, sempre atentos, até chegarem à ruela visitada na noite passada. Timothy descalçou as luvas de cabedal, antes de se ajoelhar junto a uma das tampas maciças que davam acesso aos subterrâneos. Usando toda a sua força, conseguiu levantá-la um pouco e empurrá-la para o lado, quebrando o véu de silêncio com o arrastar de metal sobre pedra. – A partir daqui, tem cuidado com as próprias sombras – avisou o aeronauta. – E tem o revólver à mão. Enquanto o via desaparecer pela abertura no chão, Philip perguntou-se quantas vezes o amigo já teria feito trabalhos daquele género, para se mostrar tão calmo e estratégico. Sozinhos na cave do teatro, Casimir ajudou Angelique a descer até aos subterrâneos, segurando-a por uma mão. Dificilmente alguém a reconheceria como a protagonista de um ballet francês, porque o seu rosto fora coberto de fuligem, as roupas femininas trocadas pelas de um operário maltrapilho, largas o suficiente ao ponto de disfarçarem as formas corporais, e o cabelo escondido dentro de um boné de rapaz. Debaixo do braço, Angelique levava uma das caixas de música, tentando não oscilá-la demasiado. Os pés encontraram solo firme. – Tens dez minutos até activares o mecanismo. Não dês nas vistas. – A voz de Casimir ecoou até ela, espreitando-a. – Quando estiverem todos a dormir, envia-me o mensageiro. Depois de um pequeno aceno, Angelique infiltrou-se pelo labirinto de túneis. Candeias alaranjadas ladeavam ambos os troços do caminho e a sua luz parecia aquecer ainda mais o ambiente já de si embrenhado num calor húmido que se colava à pele. Trabalhar ali seria de todo uma questão de sobrevivência para os homens de muitas famílias. Tirou do bolso um mapa tosco dos subterrâneos, e seguiu a linha vermelha que fora riscada e que a guiava à caldeira mais próxima, a cem metros dali. Puxou o boné para a frente dos olhos, quando o ruído de máquinas a trabalharem e as vozes ásperas dos homens preencheram os túneis. Na atmosfera saturada pairava uma mistura de suor com o cheiro a carvão queimado, que lhe dava vontade de vomitar. Com cuidado, espreitou a zona ampla onde fora montada a enorme caldeira alimentada por carvão e água. O vapor que produzia era incessante. Ali o calor tornara-se horrível, fazendo com que maior parte dos homens andasse em tronco nu, todos eles escorrendo transpiração. Empurrando um carro de mão, um garoto, com não mais que doze anos, passou por si e lançou-lhe um sorriso tão incrivelmente animado que lhe partiu o coração. Agarrou a caixa com mais força, sentindo o remorso a tentar demovê-la. Se não o fizesse, Casimir matá-la-ia, e às restantes bailarinas. As suas famílias sofreriam o mesmo destino. Abanou cabeça, afastando do caminho, mais uma vez, a piedade. Com uma descontracção fingida, Angelique avançou para a sala principal e olhou em volta, escolhendo o melhor local para esconder o presente envenenado. Os operários, demasiado ocupados para desconfiarem da presença de mais um entre eles, mal a olharam. Como a madeira era escura, camuflou a caixa atrás de um enorme monte de carvão. Depois de se certificar de que a hora havia chegado, deu corda ao mecanismo e afastou-se rapidamente, enquanto a música, que mal conseguia competir com todo o ruído, começava a destilar o gás invisível. Longe da vista dos inconscientes operários, Angelique tirou do interior do casaco uma máscara que colocou sobre a boca e o nariz. O gás poderia não se propagar para muito mais além do que aquela zona, no entanto qualquer prevenção seria bem-vinda. Consultou o relógio de bolso, contemplando o movimento lento do ponteiro dos minutos. Um a um, os homens começaram a ser atingidos pela sonolência, acabando por cair como robots desequilibrados que perdiam a energia. Passados os dez minutos, Angelique foi fazer a verificação dos corpos. O gás fora eficaz ao ponto de pôr o homem mais forte a dormir como uma pedra. Confirmado o estado de dormência, tirou do bolso uma pequena e leve ave metalizada. Deulhe corda e libertou-a, deixando que voasse até Casimir. Não fazia a mínima ideia de como ele conseguira embutir na invenção a direcção que esta deveria seguir, porém não duvidava do seu génio, nem da sua crueldade. Fora contratado por esses dois mesmos atributos. Enquanto esperava, a bailarina tirou a máscara e aproximou-se da caldeira fumegante, evitando pisar os homens adormecidos. Contemplou-a, mergulhada em culpa até ao pescoço. Não ficara muito tempo quieta quando reconheceu, bem ao meio das suas costas, o toque do cano de uma arma. – Levanta os braços devagar e mantém-nos assim. Queremos as tuas mãos longe das roupas – ordenou uma voz masculina, pressionando mais a arma. Angelique obedeceu, sem pensar duas vezes. – Philip, revista-o agora – acrescentou o homem que lhe apontava a arma. Perante os seus olhos azuis, a bailarina viu surgir o inventor. Num primeiro segundo, ele não a reconheceu, no entanto a fuligem não escondeu por muito tempo os traços faciais dela. – Angelique… quase que não a reconheci – notou, olhando-a de cima abaixo. Levou a mão à boina dela e tirou-lha, deixando que uma onda de cabelo loiro caísse para trás, como confirmação. – Antes de a revistar, diga-me, para que serviria isto? Para espanto da bailarina, ele tirou do bolso a ave de metal, cujas asas tremiam freneticamente por se libertar. – O sinal de aviso de que o Casimir podia avançar – disse, depois de um momento de hesitação. – Ele vai perceber que se passou alguma coisa, mais cedo ou mais tarde. Deviam ir-se embora enquanto podem. – Philip, revista-a! – Timothy chamou-o à atenção. O inventor respirou fundo. – Peço perdão – murmurou, começando a revirar-lhe os bolsos e a palpar-lhe a roupa. Pouco depois descobriu que a jovem não estava armada nem sequer com um canivete. Afastou-se alguns passos, sem deixar de a encarar. – Ajude-nos a desmascará-lo. Sei que não deve estar a fazer isto de livre vontade, não é má pessoa para me ter deixado fugir, ontem à noite. Porém, tem medo dele. Enfrente-o, mostre-lhe que é mais forte do que uma ameaça, ou algo parecido – apelou Philip. – Não deixe que ele a transforme numa assassina. Angelique desviou o olhar. – O senhor não compreende… – De facto, ele não é capaz de compreender o que o dinheiro pode comprar – disse uma voz súbita. Casimir surgiu de um dos túneis escavados, com passos lentos. Apontava-lhes um revólver e, por uma questão de espaço de manobra, manteve-se à distância de alguns metros. Timothy soltou um leve rosnar, ao olhar para trás. – Larga a arma ou eu disparo contra a rapariga – ameaçou. Casimir limitou-se a um encolher de ombros. – Então dispara. Depois disso, disparo eu contra um de vocês – garantiu, descontraído. – Não ganham nada em matá-la. Por isso é melhor largarem essa arma. Algum movimento brusco e eu disparo… O inventor olhou o amigo. Trouxera uma arma consigo, porém seria difícil tirá-la do bolso sem que o encenador desse conta. Ponderando as possibilidades que tinham, Timothy manteve o olhar preso em Casimir durante longos segundos. Só depois se atreveu a baixar a arma, muito devagar, acabando por pousá-la junto aos pés. – Angelique, baixa os braços e apanha essa arma – ordenou Casimir, por cima do eco sem descanso das máquinas. Em poucos segundos, encostaram Philip e Timothy contra uma parede, para logo a seguir a bailarina ir procurar uma corda entre as tralhas dos operários. Encontrou uma bastante áspera e longa, que talvez servisse para trabalhos nas minas, e com ela atou-lhes as mãos, incapaz de fitar qualquer um. Casimir obrigou-os a sentarem-se e deixou-a de guarda. – Não se armem em espertos – avisou, antes de lhes virar as costas e aproximar-se dos instrumentos principais de comando daquela zona da central. Debruçando-se sobre o painel, deu especial atenção ao indicador de pressão que estremecia sem se distanciar do nível intermédio necessário para a produção correcta de vapor. Manipulou então o mecanismo de forma que a pressão da caldeira aumentasse gradualmente. Quando abriu a porta da fornalha para verificar se estava bem alimentada com carvão, o calor das brasas incandescentes estendeu os braços e tentou alcançá-lo para o puxar para o seu Inferno que, esfomeado, pedia sempre mais. Forneceu-lhe algumas pazadas, antes de fechar a portinhola e passar uma mão pelo rosto que ficara vermelho do calor súbito. – Onde estão os barris de pólvora? – quis saber Philip, observando o encenador. Casimir limpava as mãos a um lenço, quando o mirou, com um esgar de troça. – Já foram espalhados pelo subterrâneo, há algumas horas. Foram rotulados como reservas de comida que só poderiam ser abertas em caso de emergência. Os operários são paus mandados, por isso, mesmo que tenham estranhado, não lhes diz de todo respeito. – Tocou com a ponta do sapato no rosto daquele que estava mais próximo. – São só formigas. Agora, mudando de assunto… Angelique, vou até às outras caldeiras, por isso ficas a vigiá-los. Confio em ti, não te atrevas a desiludir-me. – Não o farei – respondeu-lhe, mantendo o olhar nos prisioneiros. Dito isto, Casimir atreveu-se a virar-lhes as costas. Mal o tinha feito, um tiro rasou-lhe a cabeça. Ele praguejou e atirou-se rapidamente para trás de um monte de carvão, voltando a agarrar no revólver. Espreitou por cima do monte para descobrir que ambos os homens estavam de pé e bem desamarrados, e que a arma que a bailarina segurara antes voltara às mãos do dono. – És uma cabra traiçoeira, Angelique… – rosnou, de onde estava. Pegou num pedaço de carvão e sopesou-o, antes de o atirar na direcção contrária àquela para onde se precipitou logo a seguir. Disparou à queima-roupa com esperança de atingir, principalmente, algum dos dois homens. Eles depressa se refugiaram atrás da estrutura da enorme caldeira. As balas faiscaram quando embateram na parede, não sendo capazes de acertar nos alvos. Quando eles fugiram da sua vista, Casimir aproveitou a deixa para correr em direcção ao túnel mais próximo, tão depressa quanto conseguiu. Tinha cada linha da planta da central de energia fixada no cérebro, por isso tomou o caminho que levava à próxima caldeira. Queria acabar a sua tarefa, e não seriam dois metediços que o iriam impedir. Eles viram-no a passar como uma flecha e perceberam de imediato as suas intenções. Com um gesto rápido, Philip arrebatou o revólver das mãos do amigo e precipitou-se do esconderijo, correndo no seu encalço, sem esperar por Timothy. – Fiquem aí e baixem a pressão da caldeira! – gritou-lhes o inventor, a voz ecoando no túnel, enquanto se afastava cada vez mais. – E encontrem a pólvora e molhem-na! – Maldição para aquele tipo com a mania de herói – praguejou o piloto, preparando-se para esmurrar o metal fumegante. No entanto impediu-se a tempo de não sofrer uma queimadura grave. – Eu vou atrás dele – disse Angelique, seguindo as passadas de Philip e deixando para trás um homem de olhos arregalados. – Maldição para as mulheres! Os túneis conseguiam transformar-se num labirinto, por vezes bifurcando e trifurcando-se em galerias mais escuras e possivelmente menos frequentadas. Philip estacou, ofegante, ao chegar a um desses locais. Perdera Casimir de vista e não era sequer capaz de adivinhar que direcção ele escolhera seguir. Para além disso, deixara de ouvir os passos de corrida dele. Segurou bem no coldre do revólver, examinando os três caminhos. Um tiro mortal poderia esperá-lo quando fosse a virar alguma esquina, e a ideia estava longe de ser apelativa. Atrás de si, o som de uma respiração ofegante chegou-lhe aos ouvidos. Angelique alcançou-o alguns segundos depois, apoiando-se nos joelhos para ganhar fôlego. – Não está armada sequer – criticou o inventor, lançando-lhe um olhar de soslaio. – Devia ter ficado com o Timothy! – Não sou uma donzela indefesa – sussurrou-lhe, indo-se encostar a uma parede. ‒ E dois alvos são sempre melhores do que um só. Vá pelo túnel da esquerda que eu vou pelo da direita. – Mas… O estampido de um disparo, vindo do túnel da direita, fê-lo ressaltar-se. A bala atingiu-o, com uma dor que nunca experimentara, enterrando-se num dos braços e arrancando-lhe um gemido alto. Não lhe acertara mortalmente no peito por uma unha negra. Refugiou-se no túnel da esquerda, pressionando a mão contra o ferimento e sentindo o casaco ficar empapado em sangue quente. Naquela zona, o ruído maior da central atenuava-se. Dessa forma, Philip conseguiu escutar perfeitamente o ecoar do dar à corda a um qualquer mecanismo. Espreitou, tentando ver alguma coisa suspeita que lhe indicasse a origem daquele barulho familiar, no entanto não havia qualquer sinal. Ficaram os três muito quietos, aguardando um primeiro movimento revelador. Contudo, a resposta surgiu de repente ao lado da cabeça do inventor, caindo-lhe sobre o ombro com um peso leve. Philip olhou assustado para uma aranha de cobre cujas patas frágeis se apressaram a percorrerlhe o peito. Sacudiu-a com força, acometido de um terrível mau pressentimento a respeito daquele aracnídeo de corda que o detectara sem saber como. A invenção rebolou uma vez pelo chão antes de se voltar a precipitar freneticamente para si, com as oito patas a tentarem trepar-lhe pelos sapatos. Acabou por pisá-la com força, as peças metálicas estalando e deformando-se. Quando levantou o pé, descobriu que o bicharoco derramara uma substância esverdeada. Veneno, com toda a certeza. Pisou a aranha mais uma vez, para ter a certeza de que ela não voltava a funcionar. – Lamento, mas o seu brinquedo não sortiu efeito! – gritou Philip, pontapeando os restos para a galeria principal, esperando que Casimir os visse. No entanto, ao encenador, o grito soou distante, pois ele já avançara pelo túnel com passos silenciosos. A engenhoca, com quimiorreceptores para sangue, dera-lhe a distracção que ansiara. Virou numa passagem à direita, cuja saída desembocava a pouco menos de vinte metros das costas de Angelique. Sem que a bailarina se apercebesse, acelerou o passo. Quando entrou no campo de visão de Philip, a bala que o inventor disparou, e cuja direcção estava afectada pelas dores do braço esquerdo, não conseguiu acertar-lhe. O encenador agarrou Angelique pelo cabelo, sem cuidado, antes que ela tivesse tempo de fugir. Puxou-a para si, agarrando-lhe depois num braço, e apontou-lhe a arma à cabeça. – Reeve, tenha cuidado com esses disparos. Pode acertar neste bonito anjo aqui – notou Casimir, com um leve sorriso. – Aproxime-se um pouco, para o ver melhor. E pouse a arma. Contrariado, Philip obedeceu. Quando estavam a dois metros de distância, o encenador mandou que ele parasse e lhe atirasse o revólver pelo chão. A arma afastou-se demasiado de qualquer um dos três, com o pontapé que o inventor lhe deu. Vendo-o já desarmado, Casimir fez com que Angelique desse meia-volta e encostou-lhe o cano do revólver ao peito. Olhou só por um momento para Philip, certificando-se de que ele estava a observar, antes de puxar o gatilho. O som do disparo ecoou no túnel. O corpo da bailarina oscilou com o impacto da bala, antes de os joelhos perderem a força. Caiu para trás, o rosto manchado numa expressão de choque. Não soltou qualquer som. Quando tocou no chão, a Morte começara já a drenar-lhe a vida. – Reeve, é a sua vez – disse, levantando o olhar para o inventor. E a última coisa que viu foi Philip premir o gatilho do segundo revólver que tinha no bolso. A bala perfurou-lhe o crânio. O impacto estremeceu-lhe o corpo, fazendo-o lembrar uma marioneta desengonçada. Resvalou contra a parede e escorregou até ao chão, sem fechar os olhos. Um fio de sangue escorria-lhe do orifício feito pelo tiro. Por um momento tudo o que se ouviu foi o ruído de fundo da central. Philip olhava boquiaberto para o homem que acabara de matar, enquanto o braço descaía, devagar. Após o que lhe pareceu uma eternidade, e que na verdade não chegou a cinco segundos, o seu olhar recaiu sobre a outra vítima. Numa corrida meio trôpega, aproximou-se de Angelique e ajoelhou-se ao seu lado. Largou o revólver e levou a mão trémula ao pescoço dela para sentir a fraqueza da pulsação incerta que esmorecia a cada momento que passava. O peito da camisa estava ensopado e morno do sangue que vertia. Ignorando as próprias dores do braço, pegou na jovem ao colo e andou tão depressa quanto possível na direcção do local onde deixara Timothy. A meio caminho encontrou o amigo que, com prontidão, se voluntariou a transportar o corpo leve da bailarina. Não saíram por nenhuma sarjeta, mas directamente pela porta principal da central. Os trabalhadores, que os viram surgir esbaforidos pelas escadas de metal que levavam aos subterrâneos, pararam tudo o que estavam a fazer para os cercar. – Rápido, vão buscar o vosso carro de carga, tenho aqui uma rapariga a morrer! – ordenou Timothy, num tom ríspido que poucas vezes era visto, pondo-os a mexer. Poucos minutos depois, partiam na carroça suja de carvão. Sentado na zona de carga, Philip segurava nos braços a jovem cuja pele, sob as luzes da rua, parecia já a de um cadáver. O aeronauta guiava os dois cavalos a toda a brida, dando curvas que teriam posto os cabelos do inventor em pé, se este não estivesse demasiado preocupado com Angelique. – Não lhe sinto a pulsação – sussurrou Philip, falando consigo mesmo. O pânico encheu-lhe completamente o peito. – Timothy, mais depressa! Passaram-se somente cinco minutos até a carroça parar de abrupto em frente ao consultório particular do melhor médico de Londres. Timothy saltou do lugar de carroceiro e correu à porta, batendo nela com toda a força. Uma das luzes do piso de cima acendeu-se de súbito e uma janela abriu-se. A cabeça desgrenhada de um homem espreitou cá para fora, tentando perceber quem lhe perturbara o sono. – É uma emergência, desce já! – gritou-lhe Timothy, antes de ir ajudar Philip a tirar Angelique da carroça. Segundos depois, o médico abriu a porta, a atenção saltando entre os três. Os cabelos brancos manchavam o que outrora fora uma farta cabeleira negra e o rosto pouco enrugado não falava de todo da experiência que tinha. Eram os olhos castanhos, que depressa despertaram ao verem Angelique, que revelavam a sua sabedoria. O médico guiou-os para a sala de observação e disse a Timothy que pousasse a rapariga numa maca estreita. – O que é que aconteceu? – quis saber, pegando numa tesoura e indo de imediato cortar as roupas da bailarina para poder observar o ferimento. – Levou um tiro no peito – respondeu Philip, encostando-se a uma parede. Sentia-se meio zonzo com a perda de sangue. – No coração, penso. Ela já está morta, não está? Podes fazer alguma coisa? O médico fora buscar um bisturi e começava a abrir-lhe metodicamente a pele. Cortou de seguida as costelas da jovem, sem se preocupar com os espectadores, e, com um aparelho que expelia ar, tentou perceber o que se passara de verdade. – Ela precisa de outro coração, Philip – disse, soltando um suspiro. – E mesmo assim não estou certo de que recupere. – Então arranja-lhe um. – Não tenho nenhum coração disponível, homem – volveu o médico, abanando a cabeça. – Dê-lhe o meu! – quase gritou o inventor, agarrado ao braço. – Tire-o de mim e dê-lho! Timothy fitou o amigo, chocado. – Enlouqueceste! Não há certezas de que ela sobreviva, mesmo com um novo coração – fez ver, tentando chamá-lo à razão. – Não vais dar a tua vida em vão! – Vou dar-lhe o meu coração. Devo-lhe isso, por me ter ajudado na noite passada. E, se não o fizer, também posso ser condenado à morte por ter assassinado um homem. Assim sempre tento salvar alguém que tem a vida pela frente. Leonard, por favor – olhou o médico, esperando o parecer dele. Este último estava longe de concordar com as escolhas de Philip, no entanto era a sua vontade. – Preciso de uma autorização por escrito, para também não ser considerado um assassino – notou, baixando o olhar para Angelique. Enquanto Timothy abanava a cabeça perante o que iria acontecer, Philip redigiu uma pequena nota de autorização à remoção do seu coração, para transplante. – Isto não vai acabar assim! – disse-lhe o aviador intempestivo, antes de sair dali de punhos cerrados, incapaz de assistir ao que se seguiria. A porta bateu atrás de si. Perdendo assim a oportunidade de se despedir do amigo, Philip foi deitado noutra cama e sedado para não mais acordar. Á medida que a consciência lhe escapava, pensou em como era simples que tudo acabasse assim. Contudo, nunca fora aquilo que planeara, não de forma tão inesperada, de um minuto para o outro. Sem poder dizer adeus. Suspirou e fechou os olhos, deixando que tudo o mais se desvanecesse. Célere, Leonard Temple removeu o coração mecânico de forma a transfigurar o menos possível o peito do inventor e selou os vasos sanguíneos, evitando uma hemorragia. Usou soro fisiológico para o lavar da maioria do sangue e levou-o para o outro peito aberto que o esperava. Acoplou cada ventrículo e aurícula de metal aos vasos sanguíneos que lhes competiam e deu corda ao órgão. Feito isso, aguardou. Angelique não só estava há demasiado tempo inconsciente, como perdera muito sangue. Se sobrevivesse, poderia ficar com sequelas graves ou mesmo manter-se num coma profundo. Os segundos passaram devagar, contudo, aos poucos, os pulmões começaram a insuflar-se de ar. Estava viva, por agora. Lançou um olhar ao corpo de Philip, na outra cama e sentiu uma enorme dor por aquilo que acabara de fazer. Interrompendo os seus pensamentos, o telégrafo que instalara no consultório começou expelir papel sem aviso. Correu para ele e pegou-lhe, ainda com as luvas manchadas de sangue. Os olhos arregalaram-se com o conteúdo da mensagem. As pálpebras abriram-se aos poucos. No entanto, pesavam demasiado e por isso voltaram a fechar-se. Do pouco que vira, o tecto de madeira parecera-lhe uma visão estranha e deslocada. Quando adormecera, pensara que, na melhor das hipóteses, poderia vir a conhecer aquilo a que alguns religiosos chamavam de Paraíso. Inspirou um pouco mais fundo e uma dor horrível brotou-lhe do peito, cortando-lhe a respiração. Apesar de tudo, era uma dor incrivelmente familiar. – Mestre, por favor, não se esforce assim, respire devagar – pediu uma voz, que lhe parecia vir de muito longe, mas que ainda assim estava mesmo ali ao pé de si. – Nick – sussurrou, voltando a tentar abrir os olhos. Rodou um pouco a cabeça, seguindo a direcção donde viera a voz. Uma neblina espessa inundava-lhe a mente e pairava em redor da compreensão. – Onde estou? – Está em casa do Dr. Temple. Pregou-me um susto enorme, fico feliz por... – O tom do rapaz embargara-se, roubando-lhe as restantes palavras. Começara a chorar. – Eu… eu devia estar morto. – Era uma constatação perturbadora. – O Timothy chegou a tempo de me avisar e consegui trazer-lhe um coração. Philip abanou levemente a cabeça. – Mas não havia nenhum – sussurrou. – A encomenda de peças novas não tinha chegado… Nicholas passou uma mão pelo cabelo do mestre, como se tivessem trocado de lugares e ele fosse agora o adulto e Philip a criança. – Há uns tempos atrás, eu construí um protótipo de coração. Não é tão bom quanto os seus, mas serve para remediar, até poder fazer outro. Não podia deixar morrer a pessoa que me salvou a vida – confidenciou o rapaz. – Agora é melhor descansar. Ouvi dizer que o Timothy está mortinho que recupere, para lhe pôr a cara negra com uns quantos murros. – Isso não é um incentivo… – sorriu levemente, antes de tentar olhar para além do rapaz. – A Angelique? – Está estável, mas ainda não acordou. O Dr. Temple disse que a actividade cerebral parece normal – acrescentou, e isso roubou um suspiro de alívio ao inventor que voltou a fechar os olhos. – O senhor vai pedi-la em casamento? Philip teve uma súbita vontade de rir, no entanto foi capaz de se conter e limitar-se a outro sorriso. – Eu gosto de dar vida e de ajudar quem merece, foi por isso que fiz tudo isto. Mas não chego ao ponto de casar com ela, não faz o meu género… Sou um idiota. O aprendiz olhou-o, muito confuso, e ponderou se Philip não estaria a ficar com febre. No decorrer daqueles dias, ficara mesmo convencido que ele se apaixonara perdidamente pela bailarina com cara de anjo. Quando abriu a porta para sair do quarto e deixar Philip descansar, deu de caras com Timothy, de orelha encostada à madeira. Franziu as sobrancelhas, desagradado, enquanto o piloto lhe lançava um sorriso maroto. – Acreditaste mesmo na história de que o Philip estava apaixonado pela rapariga, não acreditaste? – quis saber, com uma risada baixa, depois de Nicholas fechar a porta. – Durante todos estes anos, alguma vez o viste com uma mulher? Ele gosta tanto delas quanto tu, se é que me entendes… E agora vou dormir uma sesta, que esta noite foi demasiado longa para mim. Perplexo e um pouco corado, o rapaz ficou estacado à entrada do quarto, enquanto Timothy se afastava pelo corredor. Olhou para trás, por um momento, e voltou a entrar com passinhos de lã, só para dar um beijo de bom descanso no rosto do seu mestre que já adormecera. FIM ***** Muito obrigada por ter lido o meu conto. Qualquer comentário ou crítica será uma mais-valia. Este conto é gratuito, feedback é a única “remuneração” que peço. Se quiser saber mais a meu respeito e dos meus trabalhos, poderá procurá-lo em: http://www.goodreads.com/author/show/4641165.Carina_Portugal ou http://asameiasdocrepusculo.blogspot.pt/ Poderão também seguir-me através do Facebook: https://www.facebook.com/pages/Carina-Portugal/178986332126267 Ou contactar-me por e-mail: [email protected] Se quiser conhecer mais trabalhos da artista Ana Santo, poderá consultar: http://morganadulac.deviantart.com/ ou https://www.facebook.com/morgdl