Da vez primeira - Homo Literatus
Transcrição
Da vez primeira - Homo Literatus
Da vez primeira* Caio Riter** I — A carne. Pela fresta aberta na janela do quarto ainda mergulhado nos cheiros e sombras da noite que se finda, espia a rua de vazios em que o vento arrasta pelo meio-fio uma folha de papel. Já não mais pura, ela dança, roça-se na pedra que determina a calçada e geme. Ergue-se, alça-se do chão, balança — ora tênue, ora violenta — numa dança cujos acordes o desejo do vento dá. Pedaço branco de papel largado, resto entregue à estranha volúpia da madrugada. Que palavras trará marcadas em sua pele? Poderá ter sido carta de amor, gesto de desejo, como os poucos que Rita recebera? Pudera ser voz do passado a recordar certa tarde para sempre perdida e desejada de retorno? Vai- se o papel, curva-se à vontade do vento frio que o empurra, violenta-o ali mesmo contra o muro sujo e fétido de urna das tantas esquinas da Volunta. Joga-o na poça sobrada da chuva da noite, umedece-o, ani-quila-o, vitimado que fica às rodas do automóvel que surge e desvirgina a rua solitária de pneus e de gentes. Pingos que chovem despertam cães que dormem rente ao muro. Eles, também sujos, abrem olhos vagarosos, se lambem e se erguem em espreguiçamentos. Um mete o nariz no outro, busca cheiros, busca gostos. De cão. Rita se volta para dentro, esquece a rua com suas poças, papéis e cães, se joga na cama; as costas nuas da camisola roçando o árido da colcha ainda estendida. Fecha os olhos e o homem vem, como todas as noites, ele vem, e é sempre ele, mas nunca. Basta abrir os olhos e some. Estranho que, na negrura da noite, possa vê-lo tão sólido, em pele e músculos, em peito de pêlos e boca molhada, e mãos, quase tentáculos, que caminham pelo tudo. Sabe seu cheiro, conhece seus beijos, e sabe do encaixe perfeito entre suas pernas. Só ele, o que vem todas as noites. Homem conhecedor: desperta umidades, jejua seu corpo e mais a atiça e a faz querer querer querer. Abre os olhos, busca no ainda escuro do quarto a certeza de não estar sozinha. Não a encontra. Consulta o relógio, já é hora, mas a vontade de ficar assim jogada, sem compromissos, só espera, se faz cada vez mais. E se não saísse para a rua, e se não pisasse hoje a calçada de vai-e-véns, e se se deixasse no aguardo, quem sabe ele não viria? Ele, ele-mesmo, não ele-no-corpo-de-tantos, não ele apenas metade. É lento o erguer-se, como é lento o rascar dos pés sobre o parquê, roçar de corpos, suar de peles, línguas de pano em mamilos no tirar da camisola e no ir-se para o banho. Atrás de si, o bichano geme miados de leite e ração. Um afago e o hálito quente na mão umedecida pela baba felina. — Bichano, sussurra no nariz do animal, que recua a cabeça. A mulher sorri. Beija o gato, suspira, deixa que a camisola fique atirada no chão e não se importa quando, ao voltar-se, percebe o bicho a aninhar-se, as unhas cavando seu nicho, puxando fios. A água sai num jato forte, morno, lhe vai pelos cabelos, escorre pelas costas, penetra-lhe a pele e a relaxa, são mãos do seu homem de sonho a acarinhar- lhe o ventre, são lábios a fazer carinho na nuca, no meio dos seios, no abaixo do umbigo, no entre das coxas, no atrás do joelho. E o sabonete ou a necessidade de xampu nos cabelos curtos adiam a chegada daquilo que a água, agora quente, lhe oferece. E seca-se. E sai do banheiro. E veste-se. O bicho ainda ali, quieto sobre a camisola-ninho, só a percebe quando o barulho do leite escorre para o prato enchendo-o de uma brancura encorpada. Mia, aproxima- se, lambe-lhe o pé, lambe o líquido branco, se sacia. E sua sede aumenta a de Rita. Na rua de prédios antigos que penetra por baixo do viaduto da Conceição e envereda para o centro da Capital, cachorros disputam pequenos pedaços de carne expostos ao acaso no chão. II — Os cães. O quarto homem só subiu atrás de Rita por volta do meio-dia, quando a fome já lhe introduzia ruídos no estômago e a chuva retornava, monótona e lenta. Abriu-se, entregou-se para um homem de pressas, fugido em horário de almoço, que falava pedaços, que tinha olhos de cigano, que pouco se despiu e que não a reconheceu. Era o mesmo, o tempo, porém, outro o fizera. E na emoção do peito que arfava e batia descompassado, ela se entregava como da primeira vez, e nada lhe importava que ele não a percebesse, que ele não visse a garota assustada, que permitiu ousadias, que não soube parar, que chorou ao ver-se tingida de sangue. De olhos fechados, já era o outro que ali estava, aquele que amara no há muito tempo naquela tarde de medos, tarde de dia santificado à padroeira dos navegantes. Debaixo da ponte do Guaíba, entre cascas de melancias e coro de hosanas à Virgem. A ponte se erguendo majestosa para que o barco da Santa, carregadinho de flores, passasse bem no meio. Pontaria certeira. A ponte se abrindo: chuva de pétalas e papel picado. Choro e cânticos. Deixou-se tocar de novo, como a nenhum outro, e permitiu que ele a beijasse, que, aos poucos, se sentisse dono, e se perdesse no tempo, que se entrava na tarde embora o relógio gritasse expedientes. Ele lhe deu as costas, acendeu um cigarro, caminhou até o banheiro e ela pode ouvir o jato grosso da urina a tingir de amarelo a limpidez da água. E, da cama, ouvindo os ruídos do homem que vinha cio há muito, desejou que assim mesmo o fosse. Quando ele retornou, trazia os olhos mais apertados e a marca de homem era forte na calça de brim. Sorriu e disse que se ia, contou o dinheiro e largou sobre a cama, na proximidade de um toque de mãos. Depois sentou-se, falou do atraso, e riu da própria irresponsabilidade. Falou da mulher e dos três filhos, e do sonho de que o maior se tornasse craque do Grêmio. Então, silenciou e ficou à espera. E se Rita o abraçou, se o puxou de novo para si, se gemeu enquanto o despia. de tudo, é porque o queria de volta. Queria-o rapaz, queria-o seu homem de novo, e se desabrochou, toda pele e boca, e fez o que aprendera com tantos que deitaram naquela mesma cama e que desconheciam que sua entrega era, decerto, preparação para o encontro que agora ocorria. Ele ali, vindo sabe-se lá de que compromissos, ele que agora sorria malicioso e que lhe pedia coisas sem pudor. Ele que a chamava de minha cadelinha e que desistia da pressa no proveito daquele corpo de mulher. — Sou tua, gemeu, num não querer reconhecimento. Arranhou as costas que ele lhe oferecia, beijou- lhe o pescoço, e a boca o buscou como não se permitira na primeira vez. Sentiu-se menina, e sorveu daquele homem como nunca, buscando no contato esperado, as madrugadas insones, as vezes que o teve sem corpo, no contato das peles de outros e tantos. — Minha cadelinha, repetiu ele, só minha, como daquela vez debaixo da ponte, lembra? E a apertou entre os braços, e já era tarde para relutar. Deixou-se, então: folha de papel. Cachorro a lambuzar-se no lodo da poça da chuva. * Conto publicado na coletânea de Contos Eróticos: Porto Alegre: curvas e prazeres, organizada por Volnyr Santos. **CAIO RITER nasceu em Porto Alegre, em 1962. É escritor e professor pós-graduado em Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autor de Teias de silêncio (contos), Pra lá e pra cá, Chico, O tesouro iluminado (infanto-juvenis), todos pela WS Editor.