textos críticos
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Seguir contando por Jacopo Crivelli Visconti, 2011 O casamento (1) é no campo, o noivo não chega. A noiva, de braços cruzados, olha para longe, imóvel, enquanto o vento levanta seu véu e seu vestido, deixando à vista tornozelos firmes e sapatos pretos. Ao lado dela, outra mulher a acompanha na espera, no que parece ser um vestido florido, mais curto que o da noiva, e menos sensível aos caprichos do vento, tanto que quase não se mexe, apenas se levanta fugazmente, e volta a cair. Essa rigidez do vestido sugere um tecido grosso, áspero e acabado sem excessivos requintes. É um vestido de festa, mas de muitas festas, um dos poucos no armário da irmã da noiva (deve ser a irmã: os mesmos cabelos pretos, os mesmos tornozelos fortes e bem plantados no chão, a mesma cor de pele). Perto delas, mas longe o suficiente para deixar claro para todos que não se sente parte do grupo, a filha pré-adolescente da irmã da noiva (nesse caso, são os chifres a sugerir uma relação) observa-as, ou talvez olhe apenas na direção em que elas por acaso se encontram, mas para bem longe, muito além delas. Também é possível que, apesar de tudo, não sejam mesmo irmãs, apenas vizinhas (2) . Moram perto dali, atrás do muro bege, em casas geminadas. Vieram até aqui para entender o que estava acontecendo: a menina, que agora se acalmou e fica olhando para o chão, chorava, não conseguia se explicar, as duas saíram de casa apressadas, sem pegar casaco, e agora tentam proteger-se do frio cruzando os braços, mas não está adiantando muito, e elas continuam sem entender. A menina vez por outra murmura algo quase incompreensível, fragmentos de uma história, ou de um sonho: uma mexicana que segurava uma flor vermelha (uma gérbera, será que ela disse mesmo gérbera?), a mão de um menino que, emergindo de algum lugar, roubava um balão laranja. Talvez fosse o balão da menina, e por isso ela chorava. Ou talvez fosse medo mesmo, medo dessas vozes (3) que ela não para de ouvir… As pinturas recentes de Cristina Canale, se com recente entendemos as produzidas ao longo da última década, são cheias de histórias assim, que começam e não terminam, que criam atmosferas, colocam as premissas, introduzem os personagens e param. A presença recorrente de manchas de cor que, assim como podem vir a representar elementos reconhecíveis também podem ficar amorfas, e alguns toques surreais, bem exemplificados pelos chifres das que imaginamos ser a irmã da noiva e sua filha, transportam-nos para um universo onírico, fabuloso. As histórias contadas por essas telas não estão necessariamente comprometidas com a realidade do jeito que a conhecemos, poderiam derreter-se a qualquer momento, dissolver-se em algo irreconhecível. Essa dissolução latente é a ameaça que paira, como uma morte anunciada, sobre todos os personagens das histórias de Cristina Canale. A crítica tem analisado esse embate entre a figuração e a abstração nas suas pinturas, geralmente, de um ponto de vista formal e, mais especificamente, cromático, como se tudo se reduzisse a uma questão pictórica, quase autorreferencial. Essa leitura, mesmo que indiretamente, situa esses trabalhos na linhagem pictórica modernista, que entendia o quadro como um espaço autossuficiente, em que as cores e as formas remetem apenas a si mesmas, sem nenhum desejo de reproduzir algo externo, consequentemente tendendo a enfatizar e escancarar as caraterísticas fundamentais da pintura (bidimensionalidade, matéria da tinta etc.), que em outras épocas eram vistas como obstáculos a ser superados, mimetizando-os até fazê-los desaparecer. E, de fato, as telas de Cristina Canale são abertamente “pinturas”, no sentido que não aspiram a ser confundidas com janelas abertas, por onde o espectador estaria observando o mesmo mundo que o rodeia, para recorrer à célebre metáfora de Leon Battista Alberti. Isto é, sua figuração não tem nenhuma ambição mimética. (1) Casamento, 2010-2011, 140 x 165 cm, óleo sobre tela. (2) Vizinhas, 2011, 180 x 200 cm, óleo sobre tela. (3) Vozes, 2011, 140 x 180 cm, óleo sobre tela. Por outro lado, é necessário ir além de uma leitura apenas formalista: nas telas de Cristina Canale existe, colocada com a mesma clareza e mantida num estado de suspensão e indefinição análogo ao que caracteriza a luta entre abstração e figuração, um impasse da narrativa, que oscila entre a construção de histórias reconhecíveis e quase convencionais em sua aparente linearidade (um casamento, uma visita ao zoológico com a neta, uma aula de violino etc.) e o abismo de um mergulho sem volta na afasia da pura cor; entre premissas claras, principalmente no que diz respeito à maneira como as cenas e os personagens são construídos, e a interrupção abrupta das histórias que a artista, consciente e até programaticamente, escolhe não desenvolver para além dessas premissas. Se essa correspondência entre forma e conteúdo é evidentemente coerente, ela instaura também um curto-circuito crítico, no sentido de que, se, como vimos, as premissas pictóricas poderiam ser consideradas ainda inscritas na tradição modernista, a narrativa fragmentada, onírica e, em última instância, indecifrável coloca-nos em cheio no âmbito da pós-modernidade. Apesar de acadêmica, a contraposição entre os aspectos “modernistas” e “pós-modernistas” desses trabalhos tem o mérito de evidenciar a complexidade de uma obra que está longe de encerrar-se em questões formais ou técnicas. De fato, a análise do caráter truncado das histórias, e a maneira como, apesar disso, a obra de Cristina Canale não se furta a seguir contando algo, permite imaginar que o estímulo para a criação surja, para ela, exatamente do desejo de contar histórias. Dito de outra forma, cabe imaginar que as formas à beira da dissolução, o inacabado que distingue essas telas, constituam o recurso encontrado pela artista para contar suas histórias da maneira que lhe parece mais adequada (ou, de acordo com os mais fervorosos teóricos da pós-modernidade, a única maneira ainda possível). Se aceitarmos essa interpretação, eis que o estilo tão pessoal dessas pinturas deixa de ser apenas um capricho, uma solução meramente estética, para tornar-se uma escolha quase ontológica, uma declaração de poética. Os personagens que a artista nos apresenta não emergiram do magma de cor apenas para preencher as telas ou para transformar uma vocação abstracionista em figuração: pelo contrário, cada elemento representado tem uma função a cumprir, contribuindo para o equilíbrio do conjunto. O cerne dessas pinturas não deve ser buscado (ou não exclusivamente) no embate entre figuração e abstração, mas sim nas histórias que contam e, mais ainda, na maneira como elas são contadas. Texto de Jacopo Crivelli Visconti para exposição individual de Cristina Canale na Galeria Nara Roesler em 2011. Entre a ordem e o ícone por Fernando Cocchiarale, 2011 Cristina Canale mostrou pela primeira vez o seu trabalho na exposição Como vai você, Geração 80?, inaugurada na Escola de Artes visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 14 de julho de 1984. Sua trajetória artística começa, portanto, no âmbito de um marco emblemático da arte brasileira recente, já que participou (com 122 artistas de vários lugares do Brasil, muitos, como ela, também jovens e pintores) da mostra que tornou pública, nacionalmente, a reação da pintura à desmaterialização da arte, então hegemônica. O minimalismo, a arte Conceitual, a arte povera, a Body Art e a Land Art foram decisivos para o que se convencionou chamar de desmaterialização da arte. A despeito de suas diferenças, essas tendências surgiram como contrapontos críticos às poéticas formalistas, voltadas para a produção de objetos destinados à contemplação estética. Desmaterialização não significava, porém, imaterialidade, mas a experimentação de métodos alternativos de invenção poética independentes dos ofícios e da produção artesanal de objetos. Ao priorizarem a idéia em detrimento da obra (conceituais); a apropriação de objetos descartados pelo consumo em lugar dos procedimentos técnicos convencionais (povera) e a efemeridade de performances e intervenções em lugar da perenidade da obra de arte (Body Art e Land Art), essas tendências da produção contemporânea trilharam caminhos opostos aos da materialidade da pintura, da escultura e demais meios artesanais. Na década de 80, entretanto, a situação se inverte. A restauração da hegemonia do campo pictórico torna-se o tema central do debate artístico, agora capitaneado por um novo agente cultural, o curador, que progressivamente ocupou o lugar da crítica de arte. Na nova conjuntura as exposições e seus derivados perenes, catálogos e textos curatoriais, se tornaram as fontes primárias essenciais da produção artística da chamada pós-modernidade. De acordo com a pesquisadora de arte e teórica espanhola Anna Maria Guash: que pode ser dito em qualquer caso é que, para a pós-modernidade, as exposições são o que na definição e legitimação das vanguardas históricas, do futurismo ao surrealismo, foram os manifestos e o que para as neovanguardas surgidas depois da Segunda Guerra Mundial representaram os discursos de historiadores e, particularmente, de críticos”. (1) Ainda assim, não se trata de supor que a participação de artistas em eventos curatoriais como o da mostra do Parque Lage em 1984, seja automaticamente consagradora. O ponto de partida de Canale (tal como o de outros que integravam a mesma mostra) só se tornou, portanto, relevante de um ponto de vista retrospectivo, fixado a partir da inscrição atual de sua obra na produção visual brasileira. Passadas quase três décadas, hoje é possível distinguir os participantes que seguiram os caminhos da pintura – um dos poucos ofícios ainda integrados à produção artística, no qual a dedicação ao fazer manual, é necessária e indispensável – e mesmo os que os transbordaram para outras mídias, daqueles que, por razões diversas, abandonaram a carreira que sua participação parecia então anunciar. O lugar e a importância da obra de Canale no universo plural da arte contemporânea brasileira devem ser, portanto, pensados a partir do exame dos contextos artísticos, brasileiro e internacional, nos quais sua obra floresceu, e do mapeamento das transformações significativas ocorridas em seu processo de trabalho nestes vinte e sete anos, contados a partir de sua primeira exposição, em 1984. (1) GUASH, Anna Maria. Los Manifiestos del Arte Posmoderno / Textos de exposiciones 1980-1995, Madrid, Akal Editorial, 2000. P. 5 Sobre as razões da retomada da pintura Um dos principais traços da produção contemporânea, desde suas primeiras manifestações na década de cinquenta, vem sendo o da expansão da produção artística para meios, suportes e materiais não convencionais. Nesse contexto (prenunciado, aliás, por Marcel Duchamp, pelo dadá e o surrealismo) o fazer artesanal deu lugar a procedimentos tais como a apropriação de objetos e materiais de trabalho extraídos do cotidiano; a utilização de meios tecnológicos como a fotografia, o super 8, o vídeo e a assimilação de espaços urbanos, institucionais, do corpo e do conceito como suportes disponíveis às práticas dos artistas. Os 20 primeiros anos de implantação e consolidação da arte contemporânea, cujo marco internacional pode ser localizado tanto nas experiências do grupo Japonês Gutai, da Pop inglesa e norte-americana, quanto, no grupo transnacional Fluxus parecia ter relegado os meios convencionais e artesanais das artes, sobretudo a pintura, a um papel secundário. As razões teóricas para essa revolução eram sólidas e intelectualmente consistentes. Tiveram sua origem não somente na crítica de Marcel Duchamp (1887-1968) a uma arte retiniana, mas na própria dinâmica das sociedades industriais que revogaram o fazer artesanal em nome da produção serial de bens utilitários. A nova ordem produtiva suscitou também, ao longo do século XIX a invenção de novas tecnologias ótico-químico-mecânicas tais como a fotografia, o cinema, etc. que exigiam um mínimo de habilidade manual tal como observou, por exemplo, Walter Benjamin. (2) A volta à pintura num momento em que sua hibernação de quase duas décadas parecia, para alguns, irreversível, resultou da convergência de fatores independentes que se cruzaram na cena artística mundial a partir do final da década de 70. Os textos curatoriais das exposições que a relançaram (3) identificavam como sua principal adversária a expansão de uma arte intelectual e desmaterializada (se confrontada com a materialidade da pintura e da escultura) consagrada a partir do minimalismo e da arte conceitual. Por essa época o termo conceitual já havia transbordado o âmbito restrito para o qual fora proposto, passando a designar todas as obras cuja feitura exige a utilização de meios tecnológicos, de materiais (objetos) apropriados do cotidiano, ou trabalhos nos quais a idéia pareça tão ou mais importante do que sua configuração formal. A luta pelo retorno a hegemonias perdidas costuma passar pela desqualificação, reativa e maniqueísta, dos que as usurparam. Parece ter sido este o caso de boa parte da argumentação produzida para justificar a volta à pintura. Voltar, portanto, significava não somente uma escolha pessoal, mas devolver à arte (e ao mercado) algo que os experimentalismos haviam pretendido superar: os suportes e meios reconhecidamente artísticos (Pintura, etc.), o fazer artesanal e a expressão, em crise desde o crepúsculo dos abstracionismos. Confrontada com a radicalidade das poéticas de desmaterialização da arte, a frágil defesa teórica desse retorno ao fazer manual soava conservadora e difícil de ser defendida. Não foi, portanto, no front teórico, que se deu o triunfo da retomada da pintura como meio hegemônico das artes. (2) Benjamin,Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In Magia e Técnica, arte política / ensaios sobre literatura e história da cultura, obras escolhidas, São Paulo, Editora Brasiliense, 1987. (3) Dentre esses textos mencionamos: “Bad” Painting de Marcia Tucker, mostrada no The New Museum of Contemporary Art, Nova York, 1978; A New Spirit in Painting, de Christos Joachimides, realizada na Royal Academy of art de Londres, em 1981; Vanguardia/Transvanguardia de Achille Bonito Oliva, na Mura Aureliana da Porta Metronia a Porta Latina, em Roma, 1982 e A Bela Enfurecida, de Paulo Roberto Leal, Sandra Mager e Marcus de Lontra Costa para a mostra Como vai você, Geração 80, inaugurada em julho de 1984, nas escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Esquecida, no entanto, a fragilidade dos argumentos em prol da pintura é evidente que a produção por eles legitimada foi, ao contrário, muito bem sucedida. A nova expressão pictórica resultou em obras de inegável interesse e importância tanto para a arte brasileira (Cristina Canale, Beatriz Milhazes, Carlito Carvalhosa Daniel Senise, Enéas Valle, Fábio Miguez Hilton Berredo, Jorge Duarte, Leda Catunda, Luiz Pizarro, Luiz Zerbini, Nuno Ramos, Paulo Monteiro, Rodrigo Andrade e, posteriormente, Adriana Varejão, Augusto Herkenhoff, entre tantos outros), quanto para a arte produzida no exterior (Anselm Kiefer, A.R.Penk, David Salle, Enzo Cucchi, Francesco Clemente, Georg Baselitz, Jean-Michel Basquiat, Jörg Immendorf, Julian Schnabel, Keith Haring, Kenny Scharf, Markus Lupertz, Sandro Chia, por exemplo). O exame do ideário produzido em torno da volta à pintura na década de oitenta tem por fontes primárias privilegiadas as exposições e os textos curatoriais (Anna Maria Guash). Desse ponto de vista, a mostra Como Vai Você Geração 80? correspondeu funcional e simbolicamente às suas equivalentes internacionais, inaugurando uma nova maneira de legitimar e de lançar novas tendências artísticas. Na regência da histórica mostra brasileira estavam Marcus de Lontra Costa, diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, e curador com Paulo Roberto Leal e Sandra Mager. No texto A Bela Enfurecida, publicado na Revista Módulo Especial, catálogo oficial da exposição Como Vai Você Geração 80?, os curadores criticam os caminhos percorridos pela arte das décadas anteriores: “Afinal, trata-se de uma nova geração, novas cabeças. E, se hoje, ninguém alimenta o pedantismo de se “entrar para a história”, de ser o tal, o que todos esperam é poder fazer alguma coisa, sem os pavores conceituais. Trata-se, enfim, de tirar a arte, donzela, de seu castelo, cobrir os seus lábios com batom bem vermelho e com ela rolar pela relva e pelo paralelepípedo, em momentos preciosos nos quais o trabalho e o prazer caminham sempre juntos”. (4) O título é quase uma convocação à guerra. Adormecida durante o pesadelo conceitual, a pintura teria finalmente despertado, enfurecida, para reconquistar seu lugar no Olimpo das artes. Não há no enfrentamento acima proposto nenhum argumento semelhante àqueles usados na polêmica travada começo do século passado entre as vanguardas históricas européias, então restritas ao âmbito das linguagens plástico-formais. A argumentação que permeia A bela Enfurecida, ao contrário, explora a potência político-passional inerente a polarizações, tais como: “pavores conceituais” x prazer de pintar; teoria x prática, projeto x expressão; mente x corpo e forma x matéria. A argumentação em defesa da retomada da pintura reinstaurou, portanto, o dualismo entre mente (intelecto) e corpo (lugar do prazer por excelência) que alguns artistas brasileiros dos primórdios da contemporaneidade haviam tentado superar (artistas remanescentes do neoconcretismo, notadamente Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape; etc.) com o objetivo de reaproximar arte e vida. Existe, enfim, uma afinidade evidente entre os argumentos que justificavam a mostra brasileira e aqueles que legitimaram todas as exposições internacionais voltadas à mesma época para a defesa da pintura. Ao tom intelectual das tendências minimalistas e conceituais esses argumentos opunham a volta do fazer (pintar) como meio de recuperar a subjetividade do artista e do público a partir do prazer sensível. Em entrevista concedida a mim sobre o seu trabalho, Cristina Canale afirma que seu processo, ainda que intuitivo, não prescinde de uma atitude autocrítica e reflexiva, essencial para não deixá-lo refém do hedonismo. (4) Revista Módulo Especial, catálogo oficial da exposição Como Vai Você Geração 80?, Rio de Janeiro, 1984. “Só prazer em pintar, realmente nunca tive. Mesmo nos momentos mais fluídos o meu processo sempre foi pautado em fazer-e-criticar-e-prosseguir, indo e voltando sempre, é empírico e crítico, me solto para ver o que acontece e ter o que analisar, acredito na intuição mais que na razão. É um processo que inclui sofrimento, não decido fácil e cada decisão é dolorosa, a tal intuição que tanto prezo nem sempre dá o ar da graça. (5) O caráter predominantemente ideológico dos textos curatoriais das exposições que celebravam o retorno à pintura não deve ser avaliado e impugnado, por conseguinte, de um ponto de vista somente acadêmico. As questões que moviam os discursos desses curadores respondiam primeiramente às demandas políticas então comuns aos sistemas de arte de diversos países. Na situação específica do Brasil, a essas demandas superpunha-se mobilização massiva, otimista e prazerosa, em torno da campanha por eleições diretas que contagiou a sociedade e os jovens brasileiros e precipitou o fim da ditadura militar. São questões, portanto, que só fazem sentido se buscadas numa via oposta à das exigências teórico-metodológicas que perpassaram a arte na década de 70. Outro fator que contribuiu para o afrouxamento crítico dos textos de exposições se refere ao teor autoral que as práticas curatoriais conquistaram a partir da inflexão representada pela exposição Quando as atitudes se tornam Forma, realizada sob a curadoria do crítico suíço Harald Szeemann, na Kunsthalle de Berna, em 1969, para celebrar a desmaterialização da arte. O sentido autoral conquistado por Szeemann serviu, neste caso, paradoxalmente, à causa oposta: foi usado, nos anos 80, como um dos principais instrumentos do retorno à materialidade da obra de arte. Ao preterirem a pesquisa e a interpretação das informações coletadas, em nome de hipóteses mais intuitivas - cujos nexos são muitas vezes estabelecidos por meio de licença poética - estes curadores se aproximaram de processos de invenção/criação, afastando-se dos procedimentos acadêmicos que a crítica de arte havia perseguido anteriormente. A ideologia da nova pintura Na passagem da década de setenta para a de oitenta, parte considerável dos argumentos ideológicos, práticos e mercadológicos que moviam a cena artística internacional convergiam para a reconciliação com a pintura. Para Achille Bonito Oliva, curador que lançou Transvanguarda italiana, “A desmaterialização da obra e a impessoalidade executora, que caracteriza a arte dos anos sessenta conforme um desenvolvimento rigorosamente duchampiano, são superados pelo restabelecimento da manualidade, no prazer da execução que reintroduz na arte a tradição da pintura.” (6) Em um tom crítico semelhante, o curador Christos Joachimides escreveu no texto de apresentação da exposição New Spirit in Painting (Londres, 1981) “A descoberta da fotografia, conta a lenda, deu o coup de grâce na pintura figurativa, sendo a moral de história, como os historiadores da arte se apressaram em assinalar, a que a arte havia seguido uma evolução linear e progressiva desde Cèzanne, passando pelo cubismo e Mondrian, até, digamos Ad Reinhardt ou o minimalismo. Tão crasso erro repercutiu seriamente na compreensão da pintura (5) Entrevista concedida por Cristina Canale como subsídio ao presente texto. (6 ) Vanguarda / Transvanguarda, realizada em Roma, abril-junho de 1982 e logo em seguida em Milão, in Los Manifiestos del Arte Posmoderno). durante a maior parte dos anos setenta. A ênfase desmedida na idéia de autonomia que postularam o minimalismo e seu último apêndice, a arte conceitual, estava fadado ao fracasso. Logo a vanguarda dos setenta, com seus olhares estreitos e puritanos, alheias a qualquer prazer dos sentidos, perde seu ímpeto e começa a estancar-se.” (7) O ressurgimento da pintura na década de 80 foi legitimado a partir de algumas noções genéricas, que terminaram se tornando uma ideologia do novo campo pictórico. Elas não se restringiam, porém, às polarizações anteriormente mencionadas (idéia x prazer de pintar; projeto x expressão; mente x corpo e forma x matéria). Para parte considerável dos críticos, curadores, artistas e colecionadores então engajados na volta a esse meio ancestral das artes, a fatura expressiva e o empaste da tinta (chamado à essa época de pintura matérica) (8) predominantes no neo-expressionismo alemão, se tornaram, então, indicadores da boa pintura. Nesse sentido, o regresso ao pictórico nos anos 80 subverteu a autonomia poética que a fatura matérica possuía no abstracionismo. Tido anteriormente como um valor autônomo, o empaste estava agora a serviço da criação de ícones. Por outro lado a sensualidade da matérica de seus resultados (feita de tinta), opunha-se naturalmente ao teor intelectualista e desmaterializado da arte minimal e de seus desdobramentos conceituais. Se os gestos investidos no fazer pictórico eram decisivos para o corpo matérico da obra, este último tinha por finalidade despertar sensações visuais no olho (corpo) espectador. Como conseqüência lógica da valorização da corporeidade e da sensibilidade em detrimento de questões inteligíveis, a defesa do regresso à pintura, por extensão, privilegiou a expressão como guia da criação. O compromisso da nova arte com a experiência pessoal de cada artista suscitava, pois, não só a narrativa e a figuração, como também a feitura expressiva. Por conseguinte a pintura que ressurge nos anos oitenta era avessa aos rigores formais do modernismo clássico. Movida por ideias predominantemente temáticas e por questões plásticas difusas, a produção dos pintores da década de 80 não resultou na criação de uma proposta visual fundada num vocabulário formal e numa linguagem comuns. Não pode ser, portanto, pensada nos mesmos moldes em que pensávamos as vanguardas históricas. A defesa de meios técnicos (ou de ofícios), como a pintura, pela geração 80 era insuficiente para a configuração de um Ismo, sufixo que entre o final do século XIX e a metade do século XX, no jargão modernista, passou a designar os movimentos artísticos surgidos em torno de questões plástico-formais comuns a alguns artistas. Os resultados plurais da volta à pintura nos anos 80 do século passado revelam-nos a diferença entre as questões que passaram a informar a produção contemporânea e o formalismo, hegemônico durante as seis primeiras décadas do século passado. Ainda assim, a eleição de procedimentos técnicos de produção é sempre crucial para os artistas e para os que pensam a respeito do sentido de um determinado momento da produção artística. Não há, pois, nada de estranho na valorização da expressão pessoal e do tratamento empastado predominante na nova pintura surgida nos anos 80. Essa valorização, no entanto, consolidou uma compreensão restritiva da pintura: a redução do pictórico ao matérico (empaste). (7) A New Spirit in Painting (in Los Manifiestos del Arte Posmoderno). (8) O conceito de pintura matérica foi produzido para designar a produção de alguns pintores informais europeus, surgidos no pós-guerra, que aplicavam sobre suas telas materiais extraídos do mundo, como areia, gesso, estopa, sucata,etc.. Nesta acepção inicial seriam matéricos artistas como Jean Dubuffet (1901-1985), Jean Fautrier (1898-1964), Alberto Burri (1915-1995), Bem como alguns neo-expressionistas alemães , como Anselm Kiefer, dentre outros. Para esses artistas a matéria seria dotada de uma significação auto-referente, restrita às suas propriedades plástico-visuais. Essas ideias tiveram uma penetração considerável nos repertórios didáticos de alguns artistas-professores responsáveis pela formação dos novos pintores nas melhores escolas de arte do Brasil da década de 80. Dentre elas destacava-se a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, instituição das mais representativas, conhecidas e respeitadas da retomada da pintura no país. Consequentemente são ideias que informaram os projetos e as paixões de parcela importante dos artistas dessa geração. Cristina Canale e a Geração 80 Ao ingressar na escola de Artes Visuais do Parque Lage, aos 18 anos de idade, Cristina Canale não poderia supor que se tornaria uma das pintoras mais importantes do Brasil. A essa época ela também fazia dança clássica e moderna. Além disso, cursava sem qualquer entusiasmo economia na PUC do Rio de Janeiro. Mas o Parque Lage não foi uma vivência diletante na formação de Canale. Ela estava determinada a experimentar diversas formas de expressão visual, do desenho à pintura e, até mesmo, o cinema, idéia que não levou adiante, já que os processos técnicos da pintura por dependerem unicamente do controle, do trabalho e do esforço da própria artista, cativaram-na definitivamente. Os primeiros professores de Cristina foram Charles Watson, John Nicholson e Luiz Ernesto, artistas responsáveis pela formação de muitos jovens que buscavam a Escola de Artes Visuais para aprender pintura. Após esse período básico, Canale fez um curso de colagem com Nelly Gutmacher. Finalmente, por cerca de dois anos e meio estudou com John Nicholson, período em que ela deu por concluída sua formação. No entanto, há que considerar também que a formação do artista não se dá apenas dentro dos limites da relação formal ensino/aprendizagem. A convivência afetiva entre ele e seus pares geracionais, termina por criar canais para o diálogo, para a troca de experiências e ideias a respeito de seus processos de trabalho, sendo tão decisiva para a sua formação quanto as salas de aula e os ateliês das escolas de arte. Alguns colegas de Cristina na EAV não só se tornaram artistas, como também seus amigos e interlocutores. Dentre os mais próximos estavam Beatriz Milhazes, Chico Cunha, Daniel Senise, Luiz Pizarro e John Nicholson, que fora professor de todos eles. Posteriormente Canale tornou-se também muito amiga de Salvio Daré, pintor Catarinense então radicado no Rio de Janeiro, prematuramente falecido em São Paulo, em 1996. Cristina relembra que: “Conversávamos mais sobre o processo e as questões especificas de obras determinadas. Por exemplo, Daniel passava no meu atelier e comentava que um quadro que eu achava estar precisando ainda de muita tinta, estava pronto. As conversas giravam em torno das dificuldades concretas do processo ou de atitudes. Eram mais práticas que teóricas”. (9) Entretanto foi somente por volta de 1983 e 1984, após ter concluído a graduação em economia e a sua formação no Parque Lage, que Cristina cogitou seriamente a possibilidade de tornar-se artista. Seus trabalhos iniciais tinham como suporte o papel. Tanto na exposição do Parque Lage, quanto em sua primeira individual, na galeria Contemporânea, no Rio de Janeiro, Canale participou com desenhos. Mas ainda que executados com materiais tais como guache, pastel, etc., destinados ao papel, esses trabalhos eram mais próximos à pintura, antecipando-se ao mergulho pictórico que a artista viria dar a partir de 1985. Cristina Canale esclarece-nos como se deu essa primeira inflexão de seu processo criativo. (9) Entrevista concedida por Cristina Canale como subsídio ao presente texto. “A partir de 1985, parei com papel e parti para as telas, depois de breve tentativa com tinta acrílica, me dediquei à pintura a óleo sobre tela. A temática menos figurativa, suprimiu a figura humana de meus trabalhos por uns tempos. Usava as formas arquitetônicas da cidade, arcos da lapa, catedral, viadutos etc. como imagens iniciais e, em seguida, procurava as formas arquetípicas delas, até chegar às cruzes e círculos, que durante um pequeno período usei para constituir paisagens (meio duras, lembravam mais cemitérios ou restos de uma Guerra). Este geometrismo durou cerca de um ano e pouco. Foi sendo suavizado e cheguei às paisagens mais liquidas: as cruzes viraram ilhas , por exemplo, e os círculos, ondas do mar. Era um mundo com muita água , mar, rios, lagoas, cercada de montanhas e ilhas, muita National Geographic Magazine, fundos de pinturas renascentistas e Rio de janeiro, claro. Quando cheguei à paisagem, respirei mais livremente, pude soltar cor e matéria.” (10) O tratamento matérico das pinturas iniciais de Cristina, evidenciava seu compromisso com o ideário da Geração 80 absorvido na Escola de Artes Visuais. Canale, no entanto, começou a perceber nessas telas a inadequação entre a feitura matérica e os seus resultados icônicos (cruzes, mandalas, etc.). A materialidade do empaste não conseguia impor-se como uma maneira de pintar condizente com os signos arquetípicos que então interessavam a artista. Essa disjunção não lhe satisfazia. Sua vontade de superá-la era maior do que a de buscar na radicalização do divórcio entre imagem e matéria a força necessária para impulsionar o desenvolvimento de uma poética consistente. Nem a autorreferência matérica, nem a representação icônica, portanto, deviam, na opinião de Canale, se destacar separadamente. A solução encontrada pela artista foi integrar matéria e imagem no corpo da pintura. Ela conseguiu entrelaçá-las na tela de tal maneira que uma e outra terminaram se tornando a mesma coisa. Em 1987, Cristina mostrou seu trabalho em duas exposições realizadas na Galeria do Centro Empresarial Rio – a coletiva Novos Novos e uma individual. Ao longo da preparação da individual começaram a surgir suas primeiras paisagens. Ainda que compartilhasse com parte significativa dos novos pintores o interesse pela pintura matérica, Cristina Canale preferiu buscar, na história da arte, as referências para a renovação de seu trabalho – referências que para a artista são como adubos. Ao concentrar-se na pintura de paisagens, a artista não só delimitou um campo de ação, como passou a dialogar com um vasto acervo teórico, técnico e icônico, produzido ao longo de séculos, do qual obteve respostas para muitas de suas indagações. Segundo Canale, as paisagens desse período foram produzidas a partir do: “uso da tinta fluida, do solvente, de muita matéria, mais o que eu chamava de fenomenologia da tinta - jogava a tinta na tela e deixava rolar, depois definia o que me interessava. Como adubos dessas mudanças fundos paisagísticos da pintura renascentista, arte japonesa (perspectiva vertical), Monet (white lilies), versus tratamento pictórico a la impressionismo e Pollock e Guignard. Gostava do tratamento pictórico que Gerhard Richter dava aos seus quadros abstratos e da composição na arte japonesa da fase Edo (Biombos, Ogata Korin).Tinha muito adubo neste momento…” (11) (10) Entrevista concedida por Cristina Canale como subsídio ao presente texto. (11) Idem A arte japonesa e, posteriormente, a pintura de Jackson Pollock, possuíam uma concepção espacial e um padrão de ocupação do plano pictórico alternativos ao modelo clássico de paisagem. Da tradição oriental, Cristina assimilou, tal como Guignard anteriormente havia feito, a representação da profundidade pela superposição dos elementos da paisagem em camadas e não a partir da perspectiva ocidental que depende da linha do horizonte. Por outro lado, o sucesso da ilusão naturalista pretendida pela pintura clássica exigia uma pincelada de pouca densidade, uniforme, já que o empaste realçava o plano da tela sobre a qual se superpunha, dificultando a percepção de profundidade. A all over painting, de Pollock, combinada com uma difusa influência das Ninféias de Monet, permitiu a Canale contornar alguns desses impasses colocados por seu trabalho inicial. Doravante ela podia mobilizar toda a superfície das telas, não só por meio da matéria, como pela distribuição das imagens por toda a superfície pictórica. Nas paisagens de Cristina Canale produzidas entre 1987 e 1990 o tratamento matérico não está mais a serviço da solidez da cena pintada como seria de esperar. Ao contrário, ele a liquefaz por meio de escorrimentos de tinta cuja função é evocar a imprecisão inerente aos contornos das águas do mar, de rios e quedas d’água, e à luminosidade de ilhas, arquipélagos, vales, vulcões. Nesses quadros, a matéria pigmentar também se transforma, por analogia, em representação da matéria luminosa e das sombras que modelam os motivos. O fato de ter nascido e vivido, até os trinta e dois anos, no Rio de Janeiro, uma cidade-paisagem, influenciou-a. Mas é importante ressalvar que essa influência da exuberância carioca nunca foi icônica. Suas pinturas rarissimamente representaram a cidade. Entretanto, dela absorveram as curvas (a baía, praias e lagoas), o relevo (morros e pedras enormes) e, sobretudo, a espacialidade (sistema no qual esses traços ou formas se organizam). A partir de 1991 sua pintura se transforma no que Cristina que passou a chamar de muro de flor. A tela era frequentemente coberta, da base ao topo (all over) por dezenas de flores que barravam a visão do horizonte e, por conseguinte, limitavam a sensação de profundidade. Mas em 1993, o all-over muro-de-flor tinha virado um beco sem saída para a artista. Muita matéria com pouca variação de tratamento, faziam com que ela se sentisse prisioneira da materialidade. O impacto da experiência alemã Em 1993 Cristina Canale muda-se para Berlim. Desse mesmo ano até 1996 estuda na Academia de Artes de Düsseldorf, graças a uma bolsa de estudos concedida pelo DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst / Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico). Estes anos foram determinantes para a transformação radical da produção de Cristina. Lá ela retomou o trabalho sobre papel e pode produzir obras de pequenos formatos, abandonar o tratamento pictórico da imagem e, finalmente, descobrir a potência da linha como uma alternativa à matéria na criação de espaços: uma espacialidade contrária ao all over que predominara em sua ultima série de pinturas feitas no Brasil Sobre o impacto causado pela retomada de seus estudos na Alemanha, Cristina comenta: Fui orientada por Jan Dibbets, que apesar de ser um artista conceitual tinha um excelente olho para pintura e uma sensibilidade especial, influenciada pela pintura contemporânea holandesa (em especial Renee Daniels). Ele me fortaleceu a ideia que a intuição é o elemento primordial do processo, isso me surpreendeu nele. Quando fui para a Alemanha estava disposta a “limpar” o meu trabalho, aquela tinta toda, a obrigação da matéria, estava me prendendo, o trabalho não avançava. Na Alemanha, comecei o processo com pequenas aquarelas ao ar livre e elas foram a pedra fundamental para uma nova orientação no trabalho. Acho que chegaria a algo nesta direção se eu tivesse ficado no Brasil, mas seria mais complicado. O Rolf Behm (12) também me ajudou nesta passagem, ele veio de uma pintura expressiva, foi aluno do Lüpertz na academia, e sabia se movimentar neste mundo da pintura européia. (13) Se anteriormente os elementos da paisagem eram modelados e iluminados por meio da pasta pictórica, o impacto de seus estudos em Düsseldorf fez com que a definição desses elementos passasse a ser feita por meio da superposição de transparências e pela combinação de linha e mancha. Cristina dedica-se, então, ao desenho de observação em parques públicos, nos jardins botânico e zoológico, para depois transpô-los para formatos maiores em papel, e para a pintura em tela. Em lugar das paisagens voluminosas (14) da década de 80, os primeiros desenhos e quadros produzidos, por Canale, na Alemanha, são organizados por meio de detalhes quase planos de motivos vegetais, que sugerem frutos, bagas e flores (o zoom botânico de Cristina). São fragmentos de paisagens criados por superposições cromáticas, por transparência ou opacidade, que iluminam o espaço das telas sem a representação explícita de luz e sombra das pinturas da fase antecedente. Foi um processo de depuração. Canale reviu seus canones a partir da diluição da matéria pictórica, da aproximação ao objeto, do predomínio da forma sobre a matéria e da ruptura com a tensão expressiva que caracterizava o seu trabalho. A arte européia das décadas de 30, 40 e 50 e a produção de Jean Arp e Henry Matisse marcaram (ou adubaram) essa etapa do trabalho de Cristina. A superação, na Alemanha, dos preceitos pictóricos que a situavam no contexto da Geração 80 marca uma inflexão fundamental da obra de Canale. Desde então, as transformações de seu trabalho devem ser buscadas unicamente na maturação interna ao processo criativo, e não mais em influências externas, como aquelas geracionais do começo de sua produção. Se por um lado o impacto da experiência alemã fez com que a artista trocasse, por um breve período, a tela pelo papel (para retomá-la, posteriormente, em outras bases); por outro, o afastamento do Brasil, parece ter sido responsável por sua reconciliação com as cores, a luz e os motivos brasileiros, após uma identificação inicial com a forma mais selvagem e agressiva de pintar do neo-expressionismo. A influência brasileira manifesta na obra de Cristina, não se restringia, porém, à absorção direta do ambiente urbano-paisagístico do país. Canale apreendeu também algumas conquistas feitas por artistas que como ela, contribuíram, a partir de suas obras, para a construção de um imaginário local. Os ícones de Goeldi e Guignard e as cores de Volpi, interessavam-na, então, particularmente. Desdobramentos e inflexões da pintura de Cristina Canale a partir de 1996 Após a intensidade e a inquietação dos três anos iniciais de sua pintura na Alemanha, o zoom botânico dos desenhos de observação e das pinturas deles derivadas começara a se esgotar. Esse esgotamento, porém, não foi temático, mas processual. (12) Pintor alemão casado com Cristina Canale desde 1998. (13) Entrevista concedida por Cristina Canale como subsídio ao presente texto. (14) No sentido empregado por Merleau-Ponty, Maurice. O olho o espírito. Ed. Abril, São Paulo, 1984. Coleção Os Pensadores. Desde cedo, Cristina compreendeu que seu processo criativo não se consumava na invenção de formas (motivos) e imagens. Entretanto ela também percebeu que referências visuais extraídas do mundo real ou de outros campos icônicos poderiam ser bons pretextos para a marcha de seu processo, contribuindo para a ordenação do espaço pictórico, para sua estrutura, sem que ela fosse privada do envolvimento emocional com o que estava pintando. Assim, quando a série zoom botânico, marco da depuração da pintura de Cristina ao início de sua experiência alemã entre 1993 e 1995, deixou de responder às suas indagações pictóricas ela foi buscar novos motivos (formas) para pintar. Desta vez, em lugar de processá-los por meio do desenho de detalhes vegetais observados diretamente nos parques e jardins, ela encontrou esses novos motivos nas formas vegetais e florais já processadas pelo Art Nouveau, e no geometrismo decorativo do Art Déco (1996-1998). Ao contrastar a sinuosidade de elementos orgânicos com as formas construídas do ornamento Canale começa a elaborar um sistema pictórico, ainda hoje em formação, no qual a dinâmica intuitiva que perpassa sua obra é confrontada com possibilidades de ordenação mais abstratas e planares do espaço pictórico. Para Cristina, a relação entre a construção desse sistema e as inflexões determinadas pela mudança periódica dos motivos, vem sendo processada ao longo das duas últimas décadas. “Até a vinda para a Alemanha, evitava as afirmações formais da linha. Com o passar do tempo a imagem pintada foi se tornando mais importante e se sofisticando, ficando mais especifica, ganhando contornos mais particulares. Atualmente assumo a figura (ou forma) como um componente primordial. Chego a um determinado universo (crianças na paisagem, férias, turistas fotografando, animais domésticos e seu habitat, poltronas vazias etc.) e a temas que me identifico e que podem ser pictoricamente ricos. Desenvolvo a partir daí uma série de trabalhos em torno daquele motivo, até ele esgotar-se para mim. Às vezes um motivo retorna mais adiante dentro de outro (a poltrona de 98 com o poodle de 2008, por exemplo, ou as flores da década de 90 dentro da padronagem do vestido da mulher madura de 2010/11). Coleto-os de duas maneiras combinadas. Fotos tiradas sem grandes pretensões, álbuns de família. Mais recentemente incluo motivos de revistas, imagens fora da minha intimidade. Parei de precisar de imagens e pessoas muito queridas... fora isso, esboços, desenhinhos, e desenhos mais elaborados. Criei duas bandas para mim: uma que fala da relação figuração e abstração, material livre versus material conduzido e outra que tensiona a narrativa e a não narrativa. Dosagem mínima de contexto para o máximo de contextualização possível. Se ainda não cheguei a isso, pretendo chegar”... (15) Há algum tempo que as bandas acima mencionadas fundamentam os caminhos do trabalho de Canale. Entretanto, o teor genérico e invisível dessas bandas, ainda que possa sinalizar suas intenções (e isso é essencial para uma poética consistente), não poderia torná-las sensíveis. É necessário, também, ver como essas intenções se concretizaram nas obras, tanto no que se refere à sua ordem espacial, quanto no que respeita a pincelada, oposta ao empaste utilizado até 1993. O uso mais liquefeito da tinta tornou possível a superposição de planos translúcidos. São considerações relevantes que, entretanto, não completam o sentido de seu processo, pois ficam aquém do dínamo poético que o põe em marcha: a busca de novas possibilidades pictóricas da paisagem por meio da síntese das duas bandas referidas pela artista. (15) Entrevista concedida por Cristina Canale como subsídio ao presente texto. Ao repassarmos os principais momentos inflexivos de seu processo de trabalho podemos observar a alternância de períodos nos quais ora prevalece um tratamento pictórico-espacial mais planar, ora a retomada da paisagem (que implica numa ordenação espacial da tela pontuada por referências da tridimensionalidade) de uma maneira sempre renovada. Assim vem acontecendo desde que, lá por volta de 1987, Canale chegou à paisagem para superar os impasses entre o tratamento matérico da pintura e os símbolos arquetípicos que deste decorriam. Para preservar o empaste, ela trocou o âmbito simbólico (cruzes, mandalas, etc.) pela a solidez e pela liquidez do mundo natural. Sua chegada à Alemanha forneceu-lhe elementos para a ultrapassagem do matérico, já então exaurido como meio inventivo para a artista. Se o zoom botânico (1993-1995) deixou para trás esse entrave geracional, as formas Botânicas e ornamentais (1996-1999) já prenunciavam as duas bandas que passaram a mover sua pintura. Após seis anos experimentando alternativas aos repertórios usados em seu começo brasileiro (1984-1993), Cristina passa, a partir de 1999, a construir o espaço de suas pinturas, em função de uma ordem baseada numa tridimensionalidade mínima. Antes isoladas e centralizadas no quadro, sem profundidade espacial, as poltronas passaram a integrar ambientes “mais espacializados”, como salas, varandas e terraços. Surgem os “Interiores”, e com eles a procura de concisão formal, observável nos planos chapados e na utilização de diagonais acentuadas. De 2001 a 2003, Cristina Canale retornou às paisagens. Sua estruturação, no entanto, agora tira partido de formas arquitetônicas inspiradas na aparência externa das casas de alguns amigos (casas, muros, etc.). As poltronas da fase anterior foram substituídas pelas casas ou se desmembraram em muros que se contrapõem ao cenário (o entorno paisagístico) do qual fazem parte. São, portanto, interferências geométricas, em um fundo gestual, mais fluído (vegetação, lago, piscinas). Depois de três anos de sua última volta à paisagem estes trabalhos pareciam-lhe ainda incompletos. Faltavam personagens para habitá-los. A figura humana começa a aparecer nas pinturas feitas pela artista a partir de 2004, impregando-as de um calor silencioso evocado pelo cotidiano, tal como sua pintura parece emanar, sem ruídos, das finas entranhas das telas, para as suas superfícies, numa pulsão pictórica inversa ao empaste. Um pouco mais tarde, cerca de 2006, Canale introduziu novos motivos de bom rendimento pictórico tais como patas, padrões de pelo de animais domésticos, outras cores (cães de vários tipos e raças, gatos de rua, gatos de madame, cavalos de corrida, etc.) que reaproximaram-na, também, dos ambientes internos nos quais esses novos protagonistas costumam circular no cotidiano. Planos mais próximos, outro repertório de formas: ladrilhos, lajotas, passaram a orientar a organização espacial dos trabalhos. Ao inserir homens e animais nas telas, ela opõe à perenidade espacial da arquitetura e da cena ambiental, o tempo dinâmico da vida que estas acolhem. Não se trata aqui de movimento, literalmente inexistente nos diferentes elementos que coexistem num mesmo lapso da cena pictórica, mas da sugestão de dinâmicas temporais opostas como aquelas capturadas pela fotografia. As paisagens e ambientes recentemente processados em pintura por Cristina Canale demonstram como a correlação das duas bandas - figuração x abstração e narrativa x não-narrativa - continua norteando o processo criativo da artista. Texto de Fernando Cocchiarale para a publicação Cristina Canale. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2011. Caminhos da pintura e o peixe amarelo* por Luiz Camillo Osorio, 2010 A ida para Berlim em meados da década de 1990 deu à pintura de Cristina Canale uma personalidade própria, um estilo singular. Se já se destacava entre os pares da geração 80, a partir daí sua obra ganhou força incontestável. Seu compromisso com a pintura, ao contrário de lançá-la para fora do seu tempo, vai comprometê-la com as múltiplas temporalidades que convivem e se enfrentam no presente. Sua pincelada assume a crença moderna na potência autônoma da forma. A experiência da pintura deve se sustentar por si mesma, sem se pautar em uma referência externa, nem tampouco se isolar numa intransitividade que recuse o mundo. Não se trata de uma crença arbitrária e formalista, indiferente às questões do presente, mas de uma aposta na capacidade de o olhar criar para si desejos e sentidos próprios. O tempo do olhar potencializa a experiência e não se esgota na identificação de algo fora dela. Seja na aspereza mais opaca da série dos botânicos, seja na vibração cromática das pinturas mais recentes, sua obra cativa o espectador no primeiro contato. Diante de suas telas surge-nos uma figuração que parece existir por si, independentemente das convenções pictóricas que estruturam o aparecer das coisas. Há uma intensidade plástica que convoca o olhar sem um sentido dado de antemão. Convocação que põe o olho a trabalhar na difícil transformação da mera sensação em sugestão de sentido. Há familiaridade no que vemos: com plantas, jardins, cenas casuais, uma temática simples e desprovida de tragicidade – característica que dissolve a influência expressionista. Nesse aspecto, a calma, o luxo e a voluptuosidade das telas de Matisse lhe falam mais de perto. Sem perda, todavia, da intensidade cromática e da sensualidade da pincelada. Deleuze, em seu livro sobre Francis Bacon, faz uma observação sobre a cor que interessa resgatar aqui: o colorismo não significa apenas cores que entram em relação (como em toda pintura digna desse nome), mas a cor que é descoberta como a relação variável, a relação diferencial de que depende todo o resto [...] se a cor é perfeita, quer dizer, se suas relações foram desenvolvidas por elas mesmas, você tem tudo, a forma e o fundo, o claro e o escuro. (1) Nas pinturas de Canale vemos que são as relações de cor que articulam as figuras no espaço, atraindo os corpos, dilatando ou comprimindo as formas, enfim, criando campos de força que mobilizam a nossa percepção. As figuras aparecem nas pinturas de Cristina Canale como se brotassem na própria tela. Na série orgânica, então, isso é mais evidente. Há tanta cumplicidade entre as figuras e o fundo, entre a linha e a cor, que a impressão é de que elas vieram de dentro, como pequenas células que repentinamente germinaram e cresceram na superfície do quadro. É como se a figura fosse surgindo para potencializar campos/massas de cor postos em tensão. Não é tanto um exercício de precisão da linha, mas de contenção e expansão de uma energia cromática. De início, seja através de esboços realizados ao ar livre ou de fotografias tiradas de algum motivo interessante, há uma sugestão figurativa, mas será na execução da pintura que a artista define, pela constituição dos campos de cor, quais os elementos que de fato permanecerão na tela. A presença da figura é um ponto importante para a discussão de seu vínculo com a tradição moderna. Digo isso, na medida em que se tomou a abstração, a partir de uma leitura modernista simplificadora, como recusa da figura. Esta, todavia, não é toda a verdade da pintura moderna. Toda uma vertente expressionista, passando por Giacometti e Francis Bacon, assume a figura, assumindo, concomitantemente, a liberdade do acontecimento pictórico. A linha, a cor, os planos, elementos constituintes da “razão abstrata”, estão na origem de todo processo de figuração. Em vez de tomar a (1) Gilles Deleuze. Francis Bacon: lógica das sensações. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 138-139. abstração como uma superação da figura, esta é que seria um desdobramento daquela. A figuração só assume qualidade pictórica uma vez constituída uma afecção na superfície da tela dada pelos elementos “abstratos” da pintura. Nestas suas pinturas recentes, há um esforço construtivo da linha que se mostra através da articulação geométrica do espaço. A presença mais evidente da figura junto com a energia cromática de costume poderia saturar a superfície pictórica, não fosse esta contenção dada pela estruturação mais gráfica do espaço. Ao falar destas pinturas mais recentes, a artista declara que se sente “mais atenta à estrutura do quadro, meio que para rebater a figuração. Tenho procurado mais nitidez na estrutura, planos mais próximos, os campos de cor mais nítidos etc. Acho que no caso destes trabalhos com animais, entrou mais humor também”. (2) Esta maior nitidez estrutural da linha aparece mais nas pinturas do que nos desenhos. Onde a cor está mais diluída e os vazios deixam as massas de cor respirar, a linha pode ser mais solta e divagante. O que se percebe nestas obras de Cristina Canale é uma atenção obstinada em relação aos meios da própria pintura – sua faceta moderna – ao mesmo tempo em que eles produzem na superfície da tela um repertório de sensações que intensificam nossa abertura para o mundo. Ao contrário da tradição figurativa, não há uma cena anterior ao quadro, mas algo que se desenvolve a partir do jogo de forças entre potências cromáticas e gráficas. É uma figuração sem representação, sem narração, construída a partir de sensações pictóricas e em nome de uma libertação das formas de ver em relação aos modelos achatados de visibilidade. Acima de tudo, a pintura de Canale é mais mancha do que linha, submetendo a figura às palpitações cromáticas e não deixando o contorno se estabilizar. Nessa vibração, as coisas não se acomodam e estão sempre se contaminando, em constante metamorfose. Em um pequeno conto intitulado “Teoria das cores”, o poeta português Herberto Helder nos fala de um pintor e de um peixe vermelho. Quando chegava à tonalidade desejada na tela eis que surge no peixe um nó preto atrás da cor encarnada. Ao meditar sobre as razões da mudança exatamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo. (3) Esta liberdade, que é uma espécie de fidelidade do artista à máxima poética de fazer ver sem se prender ao já visto, dá à pintura de Cristina Canale um frescor próprio. E, à pintura, uma atualidade necessária, de modo a multiplicar os modos e o tempo da nossa percepção das coisas. Texto de Luiz Camillo Osorio para a exposição de Cristina Canale no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro em julho-agosto de 2010. * Este texto é uma versão ampliada e retrabalhada do que foi publicado anteriormente pela Galeria Nara Roesler, São Paulo, julho-agosto de 2008. (2) Observações apresentadas em troca de e-mails da artista com o autor no mês de abril de 2008. (3) Herberto Helder. Os passos em volta. Lisboa: Assírio & Alvim, 1994, p. 23 e 24. Agradeço a Madalena Vaz Pinto pela apresentação deste poeta. No Rastro da Pintura por Daniela Bousso, 2003 Cristina Canale é uma artista triunfante no contexto da pintura brasileira. Descende de uma linhagem de pintores – a geração 80 – que aparentemente teriam vindo para ficar, mas, anos depois, viram suas produções pulverizadas e datadas. Não fossem o conhecimento e a densidade, atributos intrínsecos à sua obra, certamente a artista teria sido apanhada pela obsolescência que estão enfrentando muitos pintores que emergiram da explosão da pintura informada pelo eixo Milão/Berlim dos anos 80. A missão do pintor tornou-se um enorme desafio hoje, depois que a Transvanguarda tornou-se um arremedo Pós-Moderno. Somado a isso, a arte dos anos 90 voltou-se para uma espécie de inteligência artificial: representação ou imagem? Real ou virtual? Fato é que a tela pintada tornou-se pura fixidez, ao passo que a imagem proveniente dos meios tecnológicos tornou-se fluida A subjetividade da pintura teve seu prolongamento nas representações da fotografia e do vídeo. Mas o que permanece como um fio condutor na trama da história é a busca da representação, antiga na vida do homem. De Lascaux aos Egípcios passando pela antiguidade clássica; da extensão desses percursos à Renascença assistimos ao aperfeiçoamento dos sistemas miméticos via aprofundamento da perspectiva. O aparecimento da fotografia no final do séc. XIX revolucionou o entendimento tradicional da representação mas, mesmo assim, isso não significa a superação da pintura como se ela fosse prescindível. A pulsão do artista é livre e sua legitimidade deve ser garantida, independentemente das regras do jogo de cada momento ou de modismos. A arte contemporânea incorporou e integrou a diversidade, seja de discursos e poéticas, seja de suportes ou meios. A criação artística não pode ser julgada por conceitos que a enquadrem em meras declarações de morte “desta” ou “daquela” tendência ou procedimento. É perfeitamente válido o artista dedicar-se ao meio pictórico hoje. Embora possa parecer quase uma heresia ser pintor, tão banalizado o ofício se tornou num meio em que convivem desgastes de mercado e desvios de discernimento crítico. A preponderância dos discursos teóricos que privilegiaram a materialidade pictórica e tridimensional no final dos anos 80 e na primeira metade dos anos 90 trouxe como resultado a exclusão de toda produção artística que não aderia a esses cânones. Como conseqüência criou-se um mal-estar, por sua vez causador de uma adversidade no meio artístico que até hoje ronda a pintura: rechaçam-se a estetização e a diluição dos discursos presentes na arte moderna, como também sua incorporação oportunista feita por osmose. Foram tachados de “formalistas” aqueles que permaneceram identificados com um certo grupo de ações e conteúdos circunscritos e agora patina ao redor dos acontecimentos na cena contemporânea na vã tentativa de se equilibrar sobre seus corrimões de papel... Mas a obra de Canale manteve-se ilesa e passou ao largo da pobreza que caracteriza o atual panorama da pintura brasileira. Juntamente com ela, alguns artistas da sua geração permaneceram: Marina Saleme, Nelson Screnci, Beatriz Milhazes, Adriana Varejão e Carlos Uchoa são alguns exemplos de artistas que constituíram universos pictóricos próprios, longe dos guetos e das perspectivas de reserva de mercado. A pintura de Canale atravessou o milênio e chega em 2003 sem a pretensão do novo ou do original, mas com a densidade de quem conhece o percurso das vanguardas históricas. Esta a consciência fundamental necessária ao pintor dos nossos tempos: noções bem fundadas na história da arte. Em Canale, acima de tudo, contrariando certas teses que afirmam que a pintura brasileira não se funda na tradição, identifica-se, ao longo da sua obra, uma certa luminosidade... esta luminosidade, impregnada da ambiência e da paisagem carioca, revela um olhar que passeou também pela história da arte brasileira: a presença de pintores que se dedicaram à construção de um imaginário brasileiro, como Visconti, Grimm, Pancetti e Guignard transparece na sensualidade que perpassa a luz na pintura de Canale. A artista construiu uma obra de limites entre figuração e abstração: da impregnação matérica em suas obras do início dos anos noventa – chegando muitas vezes a depositar os pigmentos diretamente do tubo de tinta sobre a tela nas paisagens que traduzem a luminosidade do Rio de Janeiro – à diluição do cromatismo presente em suas telas mais recentes, Canale foi abrindo espaço para que se evidenciasse a presença do linear. A linha passou a integrar o seu universo gerando uma espacialidade na tela que pode ser traduzida por diversidade de planos e profundidades. Se antes a matéria farta constituía o repertório tátil da tela, agora as linhas operam para constituir uma inversão no mecanismo do olhar e da fruição propriamente dita. Mas a linha sempre esteve subjacente na pintura da artista. Mesmo camuflado pelas massas cromáticas, o linear é que configura o pictórico nas obras de Canale. Se hoje as suas representações tratam de interiores, de objetos banais, de assuntos do cotidiano e de paisagens, é porque todas elas são delírios, ilusões líricas que constituem um pretexto para pintar. Para Canale, a pintura é essencial como forma de vida, é uma espécie de esgrima, um duelo que se exerce no cotidiano e que em última instância se destrava no embate com a tela. É um diálogo consigo mesma, por meio do qual testa sua capacidade de chegar a um extremo que se materializa na concreção física da obra. É certo que Cézanne e Monet sempre informaram seu universo pictórico. Os excessos que se configuravam nas paisagens criadas por ela entre 1990 e 1992 - nas quais as massas de matéria espessa evidenciavam um conflito entre as formas (hoje grafismos) e o pictórico - reaparecem na materialidade diluída, agora pura luz, transmutados por um olhar que absorve a lição da pintura impressionista e a desloca para a apreensão do cotidiano, dos universos domésticos, da interioridade. A busca da intimidade do lugar, de um sinal de vida, de um movimento, desencadeia um processo e um espaço de ordenação da existência mesma, horizonte que se descortina e consolida uma subjetividade contemporânea mediante o rastro da pintura. Texto de Daniela Bousso para a exposição individual de Cristina Canale no Paço das Artes em São Paulo em 2003. Paisagem: Tradição e contemporaneidade na pintura de Cristina Canale por Fernando Cocchiarale, 1999 Esta é uma mostra resumo da obra de Cristina Canale. Se a pequena quantidade de trabalhos expostos não permite o mapeamento, passo à passo, do que produziu nos últimos dez anos, a concentração de algumas de suas pinturas mais representativas, torna possível a apreensão conjunta dos elementos básicos da poética dessa artista. Lançada, em 1984, pela mostra Como vai você , Geração 80?, Cristina fazia parte do grupo de jovens alunos da Escola de Artes Visuais do Parque Laje que passaram a integrar, após este evento, um dos núcleos mais consistentes e conhecidos da retomada da pintura, no país. Sintonizados, esteticamente, com as questões da arte internacional, embora não fechados em torno de princípios plásticos-formais rigorosos, a maioria desses artistas propunha o retorno à figuração, e manifestava, em graus diversos, o interesse das possibilidades expressivas da matéria pictórica. Dentre os representantes brasileiros da nova pintura, Canale talvez tenha sido um dos que mais se aprofundaram na exploração dessas questões características da arte dos anos 80. Até 1987, o sentido arquetípico dos signos então utilizados por Cristina (cruzes e mandalas), não tinha qualquer compromisso com o tratamento matérico dado às pinturas. Essa desintegração, no entanto, não interessava a artista. Sua vontade de superá-la era maior do que a de buscar, na radicalização do divórcio entre imagem e matéria, a força necessária para impulsionar o desenvolvimento de uma poética consistente. Para Canale, a única solução aceitável residia no esforço de integrá-las em um corpo único de múltiplos sentidos. A partir de então, sua opção por um gênero tradicional da pintura, a paisagem, tornou possível a harmonização do conflito e o início de um profícuo diálogo com a arte, aspectos que emprestaram as suas obras, uma identidade própria. Representação e materialidade raramente aparecem conjugadas na história da pintura. O sucesso da ilusão naturalista exigia uma pincelada de pouca densidade, uniforme, já que o empolamento da tinta enfatizava o plano da tela em detrimento de sua virtual profundidade. Mas o discurso naturalista teve, também, adversários. A emergência do Barroco revogou por dois séculos o uso da pincelada uniforme do renascimento, reabilitada, somente no século XIX, pelo Neoclassicismo e por seus desdobramentos acadêmicos. Em um sentido também divergente do Naturalismo, artistas como Turner (1775-1851) e Monet (1840-1926) não consideravam a pintura como a arte da representação da imagem permanente das coisas, mas sim a da captação e registro do efeito da variação luminosa sobre os objetos. Esboçadas pela luz, representadas por meio de pinceladas de espessuras diversas, suas paisagens possuíam elementos matéricos que posteriormente seriam adotados, de modo análogo, pelos expressionismos. Entretanto, a designação pintura matérica evoca um fenômeno típico de algumas poéticas do abstracionismo informal, da década de 50 – dentre elas as de Jean Dubuffet (1901-1985), Jean Fautrier (1898-1964), e também, em uma outra medida, Georges Mathieu (1921), Phillip Guston (1913-1980), Clifford Still (1904-1980), etc.,- para as quais a matéria pictórica era portadora de uma significação auto-referente, restrita às suas qualidades plástico-visuais. Quando, nos anos 70, a Arte Conceitual, a Body Art e a Land Art colocaram, na ordem do dia, a desmaterialização da arte, o predomínio das imagens-técnicas – fotografia, cinema, vídeo -, tornou-se quase absoluto, pois eram as únicas capazes de registrar a efemeridade dessas manifestações. nos anos 80, as artes plásticas, em uma espécie de nostalgia do objeto estético, reavaliaram as imagens pictóricas, fazendo-as, novamente, uma tendência mundial da arte. Embora pintores como os da Transvanguarda italiana, e muitos outros artistas, de vários países, tenham adotado um repertório imagético visivelmente conservador, que via “todas as linguagens do passado como reversíveis” (A. B. Oliva) , o tom estético contemporâneo foi dado pelo Neo-Expressionismo alemão. A novidade estava na combinação do legado matérico do Informalismo, com uma nova modalidade icônica do Expressionismo: mais simbólica e, talvez, mais histórica, só que vista pela subjetividade fragmentada do artista pós-moderno. Embora partilhasse com o Neo-Expressionismo o interesse pela pintura matérica, Cristina Canale preferiu deixar de lado as influências de seus colegas de geração e buscar, na história da arte, as referências para a renovação de seu trabalho. Ao concentrar-se na pintura de paisagens, a artista não só delimitou um campo de ação, como passou a dialogar com um vasto acervo teórico, técnico e icônico, produzido ao longo de séculos, do qual obteve respostas para muitas de suas indagações . Nesse sentido, encontrou na arte japonesa e, posteriormente, na pintura de Jackson Pollock, uma concepção espacial e um padrão de ocupação do plano pictórico, alternativos ao modelo clássico de paisagem. Como na tradição oriental, Cristina passou a ocupar o quadro da base até o topo, sugerindo a profundidade de um modo diferente daquele da perspectiva, que dependia da linha do horizonte. Entretanto, embora o tratamento matérico igualasse forma e fundo, essa antiga distinção hierárquica da pintura clássica persistia visualmente: os elementos de definição da paisagem, por seu carácter icônico, seguiam destacados do fundo matérico. A idéia da all over painting, de Pollock, combinada com uma difusa influência das Ninféias de Monet, permitiu a canale mobilizar toda a superfície da tela, não só por meio da matéria, como pela distribuição uniforme das imagens. A influência desses artistas marcou seu trabalho de 1990 até 1993, quando viajou para estudar na Alemanha. Nas pinturas produzidas entre 1987 e sua partida do Brasil, as paisagens de Cristina Canale parecem emanar da espessa camada pictórica das telas. No entanto, não podemos considerá-las como meros pretextos para uma pintura matérica. A função plástica do tratamento pictórico soma-se, na obra da pintora, à uma função simbólica. Em seus quadros, a matéria pigmentar transforma-se, por analogia, na representação da matéria luminosa que modela as imagens. Luzes e sombras desempenham, no mundo visível, uma função correlata à do pigmento no universo do quadro: ambos são condições essenciais da visibilidade. O período que passou na Alemanha foi determinante para a transformação radical do trabalho de Cristina. A simples troca da tela pelo papel, levou-a a produzir obras de pequeno formatos, a abandonar o tratamento matérico da imagem e, finalmente, a descobrir a potência expressiva da linha. Se os elementos da paisagem eram antes modelados e iluminados por meio da pasta pictórica, sua definição, agora, é feita pela superposição de transparências e pela combinação de linha e mancha. Em lugar das composições “voluminosas” da década passada, os quadros de hoje são compostos por planos cromáticos que simultaneamente iluminam e emprestam profundidade às paisagens, sem a representação explícita, de luz e sombra, das pinturas de outrora. O abandono de um repertório que a situava no contexto da Geração 80 é significativo: doravante, as razões das mudanças na obra dessa artista devem ser procuradas, antes, na maturação de seu processo criativo, do que na eventual influência de novas tendências estéticas. Assim como havia se afastado da tela para reencontrá-la adiante em novas bases, sua ausência do país, de modo análogo, talvez seja responsável pelo abrasileiramento icônico e cromático-luminoso de seus quadros mais recentes. Cristina Canale, uma vez mais, confirma a importância da contribuição de seu trabalho para a renovação da pintura brasileira. Texto de Fernando Cocchiarale para a exposição individual de Cristina Canale no Palácio das Artes em Belo Horizonte em 1999 e Paço Imperial no Rio de Janeiro em 2000.