O Computador e a Leitura “Natural”

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O Computador e a Leitura “Natural”
O Computador e a Leitura “Natural”
Cilza Carla Bignotto
Quanto valeria um pensamento que nunca fosse
transformado por seu objeto? Talvez escutando as coisas, os
sonhos que as precedem, os delicados mecanismos que as
animam, as utopias que elas trazem atrás de si, possamos
aproximar-nos ao mesmo tempo dos seres que as produzem,
usam e trocam, tecendo assim o coletivo misto, impuro,
sujeito-objeto que forma o meio e a condição de possibilidade
de toda comunicação e todo pensamento.
Pierre Levy
1
Há poucos meses, chegaram às lojas de informática dos Estados Unidos dois modelos de
“livro eletrônico” 2 . São bem parecidas, as máquinas produzidas pelas empresas Softbook e
NuvoMedia: imitam o formato de um livro; são pequenas, mas pesam cerca de um quilo; possuem
telas de cristal líquido e botões na lateral direita, que servem para o leitor mudar de página,
sublinhar textos, alterar o tamanho das letras. O “livro” da Softbook ainda tem capa de couro que
protege a tela, e pode ser virada para trás durante a leitura. A maior novidade, porém, segundo os
fabricantes, é a capacidade de armazenamento desses livros eletrônicos: eles podem carregar até
cem mil páginas de um “livro normal”. O leitor pode guardar uma biblioteca dentro de um único
computador.
Mas se os PCs, os computadores pessoais usados no dia-a-dia, já possuem essa capacidade há
muito tempo, por que tanto alarde? Uma olhadinha no anúncio do livro eletrônico da Softbook
pode ajudar a entender melhor a expectativa com que o produto está sendo esperado:
If your job depends on always having the latest information available, what do you dream
about these days? Less paper. Significantly less paper. Fewer large documents to print, carry,
organize, distribute, archive, and manage. And at the same time, you're probably in constant
search of a cost-effective, practical way to get information in a truly readable format.
Technology has certainly evolved to the point where this should be easy, right? Not exactly.
For years, computers have forced people to learn to work in a certain somewhat unnatural way -instead of imitating the way people naturally and comfortably work. Computing technology has
effectively addressed how to collect, store, access, and distribute large volumes of information, but
it has fallen short of tackling how people really like to read.
1
LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. O Futuro do Pensamento na Era da Informática. Tradução de
Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1998, p.11.
2
FERNANDES, Manoel. “Clone Eletrônico: com o formato de livro, nova máquina é capaz de armazenar um
biblioteca inteira”. In: Revista Veja, 8/07/98, p. 69.
2
Enter the SoftBook system. An entirely new approach that uses innovative technology to
make information more accessible while helping people read the way they do naturally.
Há
3
várias afirmações interessantes nos trechos reproduzidos acima – afirmações que
apontam não para a incrível possibilidade de se ter possuir centenas de obras dentro de apenas uma
máquina, mas para o fato de que esta máquina é materialmente semelhante a um livro. O grande
trunfo do livro eletrônico é o seu formato,
que permitiria, segundo a empresa, conseguir
informações de uma maneira “truly readable” . Readble , palavra grifada na propaganda, poderia
ser traduzida por legível. A princípio, a idéia de que a legibilidade de uma obra dependa do formato
do suporte em que ela está contida causa um certo estranhamento, já que esta legibilidade é
deslocada do interior do texto para seu exterior.
No segundo parágrafo, esse deslocamento aumenta: a legibilidade do texto vai além do
suporte, chega no leitor . As pessoas teriam sido forçadas durante anos pelos computadores a
trabalhar de uma maneira não natural e sem conforto. A tecnologia dos computadores teria
falhado no aspecto material; apesar de facilitarem a coleta, o armazenamento, o acesso e a
distribuição de informação, o formato das máquinas não permitiria que as pessoas leiam do jeito
que realmente gostam. Esse jeito natural de trabalhar com textos, mencionado na publicidade;
essa maneira gostosa de ler, que o fabricante do livro eletrônico pretende resgatar, e que estaria
diretamente relacionada com a forma do suporte que abrigará o texto, pode ser um ponto de
partida interessante para se discutir alguns aspectos da materialidade da leitura. O discurso
publicitário que anuncia o livro eletrônico estabelece como “ponto forte” do produto a forma do
hardware, da máquina, e não as qualidades do software, do programa que fará com que os textos
apareçam na tela.
Chega a ser irônico que a maior qualidade de um computador seja a de imitar, pelo menos
em aparência, um livro – invenção cuja origem se perdeu em algum lugar e em algum momento do
começo deste milênio. Afirma a reportagem brasileira que noticiou a chegada dos livros
eletrônicos:
Pouco a pouco, o computador começou a melhorar ou até mesmo a substituir muitas das
antigas invenções humanas, como as máquinas mecânicas de escrever. Poucas coisas, contudo,
parecem tão invulneráveis a essa invasão tecnológica quanto o bom e velho livro. Fácil de
manusear, barato, dotado para muitos de um apelo que beira o fetichismo, ele é uma das poucas
coisas que atravessaram os últimos séculos sem substituto.
4
3
Trecho de anúncio exibido no site da empresa: http://www.softbook.com
4
Idem 2
3
Mas o que faz de um livro, um livro? Seu formato? Para os leitores contemporâneos, a
palavra livro provavelmente remeterá à imagem do objeto descrito pelo dicionário Aurélio 5 : “1.
Reunião de folhas ou cadernos, soltos, cosidos ou por qualquer outra forma presos por um dos
lados, e enfeixados ou montados em capas flexível ou rígida. 2. Obra literária, científica ou
artística que compõe, em regra, um volume” .
Se o livro é feito de folhas, então o produto da Softbook – cuja publicidade fala do “sonho”
de se eliminar papel (“less paper”) – não é um livro. O livro eletrônico é feito de plástico, com
placas e chips, cristal líquido e processador. Sua “interface” apresenta páginas que podem ser
“viradas” – uma ilusão digital – quando se aperta um botão. Mas não são páginas de papel, presas
no meio de uma capa.
Por outro lado, quando se fala em “Biblioteca de Alexandria”, não se pode pensar em
folhas presas pelos lados. Os “volumes” da mais célebre biblioteca da Antiguidade eram rolos de
papiro. E uma mesma obra era dividida em vários desses rolos; a Ilíada, com seus 24 cantos,
formava 24 volumes. Quando se fala nos setecentos mil volumes que teriam constituído o acervo
da biblioteca, é preciso lembrar que eram necessários vários volumes para conter uma única obra –
e que a idéia de “volume” que temos hoje não se aplica à Alexandria do século II antes de Cristo 6 .
Regredindo ainda mais na linha do tempo, Albert Labarre, conservador da Biblioteca Nacional de
Paris, informa que
O aparecimento do livro está ligado aos suportes da escrita. O mais antigo parece ser a pedra,
desde as pictografias rupestres até as estelas e inscrições do antigo Oriente e da Antiguidade
Clássica. (...) Mas, não estamos ainda no domínio do livro; as inscrições monumentais são pouco
manejáveis e portáteis. Foi sem dúvida a madeira o primeiro suporte dos verdadeiros livros; as
palavras que designam o livro em grego, biblos, e em latim, liber, tinham no seu sentido
primário o significado de casca de árvore, e o caracter que ainda designa livro em chinês figura-o
sob a forma de tabuinhas de madeira ou bambu. Isso significa que na memória coletiva dos povos
7
que forjaram essas palavras, esta matéria aparecia como o primeiro suporte do livro .
Estamos bem longe da “reunião de folhas ou de cadernos” descrita pelo dicionário Aurélio
no verbete livro. A escrita já teve como suportes a pedra, o mármore, a argila, o cobre, o bambu,
5
HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª edição, revista e
aumentada; 26ª reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
6
Ver a esse respeito MARTINS, Wilson. A Palavra Escrita: História do Livro, da imprensa e da biblioteca.
Segunda edição, ilustrada, revista e atualizada. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.75.
7
LABARRE, Albert. História do Livro.Tradução de Maria Armanda Torres e Abreu. São Paulo: Cultrix, 1981,
p. 8-9.
4
a madeira, a seda, a cera, o papiro, o tecido, o couro e os ossos de animais, o ferro... além do
papel. E os materiais usados para se escrever nesses suportes também foram os mais variados. Das
pouco manejáveis e portáteis pedras, vamos ao facilmente manejável e portátil livro eletrônico.
Se obras já foram lidas em tabletes de argila, por que se fala tanto ultimamente no “fetiche do
livro” (de papel) e se discute tanto a sua substituição pelo computador? Seguindo o princípio de
que u m livro é, originalmente, o suporte de uma obra, o computador não substituiria o livro –
ele já seria um livro.
Por que então o computador não é aceito como livro? Essa pergunta tem alimentado
debates, artigos, teorias variadas – algumas publicadas na Internet, a maioria impressa em papel.
Em primeiro lugar, o computador (leia-se PC), é uma máquina grande. As inscrições monumentais
não podem ser consideradas “verdadeiros livros”, segundo Labarre, por serem “pouco manejáveis e
portáteis”; estes mesmos aspectos materias prejudicam o computador. Não basta, portanto, que
um objeto seja suporte de obras escritas para ser considerado livro; é preciso que ele permita o
manejo destas obras da maneira fácil e prática que as folhas de papel encadernadas permitem.
Uma das vantagens oferecidas pelos novos livros eletrônicos é justamente a facilidade de
transporte – problema para o qual, aliás, as empresas de hardware têm oferecido soluções em
forma de laptops, notebooks, palmpilots. Por menores e mais leves que sejam estas máquinas,
entretanto, o domínio do livro de papel continua assegurado por um bom motivo: ele não precisa
de eletricidade para funcionar. Os computadores precisam de uma fonte de energia para que seus
programas de textos funcionem – e pode haver algo mais desagradável para um leitor do que uma
súbita falta de energia justamente no momento em que, depois de 500 páginas de investigações e
suspense, o nome do assassino seria finalmente revelado? O papel continua sendo um lugar mais
seguro para assassinos e detetives de romance.
Por fim, não basta ao leitor de obras em computador apenas o conhecimento da tecnologia
que permite que os códigos linguísticos sejam decifrados. Além de ser alfabetizado, o usuário do
livro eletrônico precisa ter um conhecimento mínimo de tecnologias ainda misteriosas (pelo
menos para a maioria da população alfabetizada) para fazer a máquina funcionar. Há vários
softwares, todos diferentes, que permitem a disponibilização e o manuseio de textos; para
conseguir que uma obra simplesmente apareça na tela, é preciso conhecer um pouco o modo de
operação de determinados programas. Bem mais fácil virar páginas.
Não é à toa que, ao se analisar um suporte da escrita ancestral como a pedra, ou um suporte
da escrita mal saído da ficção científica, como o computador, as categorias utilizadas para conferir
a estes objetos a qualidade ou não de livro sejam todas extraídas do velho, barato, confiável e
facilmente manejável suporte de papel.
5
Mas esse “velho” livro, que “atravessou séculos sem substituto”, não foi sempre da
maneira como o conhecemos hoje. A origem dos primeiros livros de folhas dobradas e
encadernadas é controvertida; mas sabe-se que no século II já havia textos bíblicos nesse formato
em comunidades cristãs
8
. O códex, que substituiu os rolos, lembra em aparência o livro atual;
entretanto, suas folhas eram de pergaminho, matéria rara e cara; não havia numeração de páginas,
e nem índice. Para economizar material, as palavras eram abreviadas; folhas eram raspadas para
servir de suporte a um novo texto; as páginas eram grandes, e o livro, pesado. Além disso, havia as
diferentes caligrafias dos copistas, e as ilustrações feitas à mão, que tornavam cada exemplar
único.
Ao longo dos séculos, a tecnologia do livro foi sendo aperfeiçoada, com a utilização de
papel, matéria-prima mais barata, a padronização do tamanho das páginas em vários formatos
(por exemplo, o in-fólio, de folha dobrada em dois e quatro páginas; o in-quarto, de folha dobrada
em quatro e oito páginas); a adoção de números para identificar as páginas, entre outras
modificações; até aquela que foi chamada de “revolução”: a invenção da imprensa. Portanto, do
códex de folhas enormes de pergaminho, costuradas e preenchidas à mão, ao livro impresso, feito
em série e com páginas de papel coladas, houve muitas substituições. Quando a propaganda da
Softbook relaciona a palavra
tecnologia com os computadores, reflete o imaginário
contemporâneo: ao pensar em tecnologia, pensamos em computadores. Esquecemos de que o livro
de papel também é “tecnológico”, e que seus componentes passaram por “upgrades” até chegar à
forma que encontramos em livrarias.
Todas essas mudanças transformaram não só o livro, mas também o leitor. Ler um rolo de
papiro, que precisa ser seguro com as duas mãos para se manter aberto, é diferente de ler um
códex, que pode ser apoiado em uma mesa, deixando as mãos livres para anotar ou consultar
outros livros; o que por sua vez é diferente da leitura de um livro impresso de bolso, que pode ser
manuseado em qualquer lugar – e que se for perdido, não causará grande prejuízo ao dono. O jeito
“natural” de ler propagandeado pela Softbook, não é nada natural; a humanidade levou séculos para
“desenvolvê-lo”. A tecnologia do livro e da leitura – solitária, interiorizada, “confortável” – está
tão entranhada em nós que esquecemos que é uma tecnologia, e que aprendemos a utilizá-la. Roger
Chartier, em A ordem dos Livros, afirma que
Com efeito, cada forma, cada suporte, cada estrutura da transmissão e da recepção da escrita afeta
profundamente os seus possíveis usos e interpretações. Nestes últimos anos, a história do livro
empenhou-se em analisar, em diversas escalas, esses efeitos sobre o sentido das formas. (...) A
cada vez a constatação é idêntica: a significação, ou melhor, as significações, histórica e
8
Idem, ibid., p. 21-26.
6
socialmente diferenciadas de um texto, qualquer que ele seja, não podem separar-se das
modalidades materiais que o dão a ler aos seus leitores.
É para compreender melhor as possibilidades de leitura abertas pelo computador que se
refez esse caminho das pedras ao códex; inscrevendo a tela de cristal líquido em uma história da
leitura que pressupõe a materialidade dos suportes da escrita como fundamentais para
a
interpretação dos textos. Retomando a epígrafe deste artigo, os pensamentos fixados pela escrita
são transformados pelos objetos que suportam essa escrita. Compreender os “delicados
mecanismos” dos suportes que sustentam os textos, e as utopias, pesquisas e influências sociais que
se escondem em sua materialidade, é condição importante para a interpretação não só da prática
cultural da leitura, através dos tempos, mas também para a interpretação das obras contidas nesses
suportes.
Este artigo deve se restringir a um pequeno recorte, dentro da vastidão de possibilidades
oferecidas pelo tema da materialidade da leitura – restrição imposta, também, pela sua
materialidade de artigo. Os mecanismos que se pretende analisar aqui são aqueles que caracterizam
a assim chamada multimídia: hipertexto, ícones, imagens e sons que são inseridos no texto
eletrônico e que por sua vez inserem nele instruções de leitura diversas daquelas existentes em
textos impressos. E por meio dessa breve análise do que existe por trás do objeto computador,
pensar as mudanças que ele pode provocar na prática da leitura.
No livro eletrônico, o leitor aperta botões para acessar novas camadas de texto, ocultas
sob a “página” que aparece na tela. É guiado por ícones (setas, por exemplo) que o informam da
existência de mais informações escritas, ou imagens, que podem aparecer na superfície ao
comando de um “clique”. A inserção de ícones, camadas de outros textos sob o texto “principal”,
e efeitos especiais, como sons, imagens que “dissolvem”, e outras “surpresas”, em obras
apresentadas no computador, tem causado algumas polêmicas. Essas “intervenções” não
deformariam o texto original, a ponto de transformá-lo em algo diferente – um outro texto? Uma
obra concebida para ser lida no computador, cujo texto esteja desde o início associado a outras
mídias e a outros textos, pode ser chamada de livro?
Por enquanto, livros que tiveram os textos adaptados para a leitura em computador vêm
sendo chamados pelo nome do suporte onde são gravados: cd-rom. Assim foi com o best-seller
The Sophie’s World, de Jostein Gaarder; transformado em uma produção multimídia, está sendo
chamado de cd-rom, e não mais de livro. No entanto, na caixa do produto pode-se ler “This
edition©1997 MIP”. Edição, um termo emprestado da tecnologia da imprensa em papel, é usado
para marcar o ano e o nome da “editora” (MIP) do produto, assim como é feito nos volumes de
papel. As imagens, sons, joguinhos e textos informativos inseridos no texto original foram criados
por uma equipe. Poderiam ser essas pessoas consideradas co-autoras da obra? A versão em cd de
7
The Sophie’s World diz que o produto é “baseado” no livro de Jostein Gaarder. A transposição do
texto de um tipo de suporte para outro, que possui outros recursos de leitura, modificou tanto a
obra que esta não poderia mais ser considerada semelhante à que é vendida em impresso. Ainda que
não se tivesse adicionado nada ao texto, o modo de se disponibilizar uma obra no computador
pressupõe tantas mudanças estruturais que pode-se dizer que não seria o “mesmo livro”.
Para Roger Chatier, os procedimentos de produção de um livro feitos por
editores,
tipógrafos e ilustradores inserem na obra “instruções” que “podem sugerir leituras diferentes de um
mesmo texto” 9 . Essas instruções “cruzam” com “as convenções, sociais ou literárias”, inscritas
no texto pelo autor, que permitirão a “sinalização, classificação e compreensão” da obra. A
“mecânica literária” e a mecânica da produção material do livro estabelecem sinais que apontarão
para um determinado “protocolo de leitura” – e quando autor e editor têm diferentes “intenções”
com relação ao público consumidor, o resultado pode ser a decepção do leitor, que compra um
livro de bolso chamado A Moreninha, cuja capa mostra um belo par de pernas nuas e promissoras,
e só encontra no texto longos e recatados vestidos...
De qualquer forma, editores, tipógrafos e ilustradores não são considerados, geralmente,
autores de uma obra, mesmo que haja exceções. Ainda que se diga “prefiro o Racine da Gallimard”,
Racine é o autor. A idéia de autoria de uma obra, porém, tal como a conhecemos hoje, é bem
diferente do que era no tempo de Racine:
Socialmente, o autor é o último elemento que aparece na história do livro. (...) Com efeito,
pode-se dizer que até ao século XVIII a sociedade não reconhece o autor como uma identidade
definida: individualmente considerado e celebrizado, conforme o grau de seu sucesso, o autor não
tem existência social, não é ainda uma das rodinhas da grande engrenagem. Ele existe como
indivíduo, não como membro de uma corporação; não é um profissional nem tem problemas
profissionais. Muitos, até acreditavam que seria vergonhoso ganhar qualquer dinheiro com a coisa
escrita; mas não o era, contraditoriamente, o mecenato .
10
O cd-rom surgiu em uma época em que os direitos do autor são valorizados e respeitados
(pelo menos nos códigos civis). E quanto aos autores do software utilizado para gravar e
apresentar o texto? E os autores das imagens, sons, hipertextos inseridos na obra? Estes outros
recursos carregam diferentes instruções de leitura, além daquelas arranjadas no texto pelo autor.
Um poema de Castro Alves, em uma tela de cristal líquido, com palavras em cores diferentes
indicando links para notas explicativas, declamado por um ator, e com imagens de navios
9
CHATIER, Roger. “Do livro à leitura”. In: CHATIER, Roger (org.). Práticas de Leitura. Tradução de
Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p.96.
10
MARTINS, Wilson. A Palavra Escrita: História do Livro, da imprensa e da biblioteca. Segunda edição,
ilustrada, revista e atualizada. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.392-393.
8
negreiros surgindo por entre as estrofes, seria lido de maneira idêntica em um livro de papel, em
preto e branco, sem notas, imagens, som? E as pessoas que escolhessem a voz e o ritmo da
declamação, o tipo de imagens e o modo como elas apareceriam, as palavras do poema que
remeteriam a outros textos e o modo como esses links seriam feitos – essas pessoas seriam coautoras do poema? Essa obra ainda seria um poema de Castro Alves?
A publicidade do livro eletrônico da Softbook
não menciona obras literárias; pelo
contrário, já começa relacionando o produto a trabalho: “If your job depends on always having
the latest information available, what do you dream about these days?”. Em seguida, apela para a
praticidade do computador: “And at the same time, you're probably in constant search of a costeffective, practical way to get information in a truly readable format.”. Ao enfatizar um aspecto
social da leitura, a necessidade dela para trabalhar, o anúncio remete a uma importante questão,
comentada por Jay David Bolter 11 :
Until recently it was possible to believe that the computer could exist with the printed book.
Computers were for scientific analysis and business data processing. Pragmatic writing (business
letters, technical reports, and stock prices) could migrate to the computer, but textes of lasting
value – literature, history, scholarship – would remain in printed form. Now, however, this
distinction between lasting texts and pragmatic communication is breaking down. Computers are
beeing used for all kinds of writing, not just office memos and stock quotations. We shall see that
the computer has even fostered a new genre of literature, one that can only be read at the
computer screen. (Grifos meus).
Esta última afirmação de Bolter toca no eixo dos debates sobre a influência da
materialidade de um novíssimo suporte sobre a literatura. O computador foi aceito como
ferramenta de trabalho por cientistas, homens de negócios, profissionais liberais; só agora começa
a tornar-se aceito (por uma minoria) como suporte para textos “canônicos”. Antes de analisar
este aspecto, porém, é bom lembrar que os textos literários há muito passam pelo computador
antes de serem impressos. A digitalização, porém, tem servido apenas para melhorar a qualidade
tipográfica dos impressos.
Só muito recentemente textos digitalizados começaram a ser
disponibilizados em cd-roms ou na internet; mesmo assim, esses textos são apresentados de
maneira que imita o formato dos livros de papel e suas páginas em sequência linear.
Mas ainda estamos no início da era da publicação eletrônica. Os primeiros livros impressos,
como a Bíblia de Guttemberg, não diferiam muito dos manuscritos, apesar de serem os primeiros
11
BOLTER, J. David. Writing space: the computer, hypertext, and the history of writing. New Jersey: Lawrence
Erlbaum Associates, Inc, 1991, p. 2.
9
exemplares de uma tecnologia revolucionária
12
. As entrelinhas e os caracteres são mais regulares
do que os feitos à mão, mas o layout das páginas é idêntico. Foi preciso um bom tempo até que os
tipógrafos começassem a fazer livros menores, com letras mais finas, mais espaço em branco e
menos abreviações. Aliás, para aqueles que argumentam que não se pode levar um computador
para ler na cama, é preciso observar que, na época dos primeiros livros impressos, ninguém
pensaria em levar um enorme, caro e precioso incunábulo in-fólio para o leito.
O computador, como suporte de textos, está apenas começando a ser explorado. Seus
recursos unem a mecanicidade prática e o resultado final acurado da tipografia com a “liberdade”
do manuscrito: é possível escrever e reescrever um texto na tela do computador, mudar o tamanho
e o estilo das letras, sublinhar, colorir trechos, sempre obtendo uma apresentação perfeita, com
relação ao layout. Também é cada vez mais freqüente o uso de símbolos, como na escrita
hieroglífica ou pictórica: botões, setas, ícones indicando a existência de sons ou imagens, sinais
gráficos representando emoções ou estados de espírito (as chamadas “emoticons”, usadas pelos
internautas).
A tecnologia do computador também proporciona a experiência de um tipo de leitura que
não é possível no suporte de papel . O leitor pode saltar de um trecho para outro de uma obra, por
meio do recurso do hipertexto, sem necessariamente seguir a ordem determinada pelo autor. Podese argumentar que, num livro impresso, elementos como notas de rodapé podem proporcionar
“saltos” desviantes do texto original. Também se pode pular páginas, ler o final da história antes
do começo... A leitura de um texto eletrônico, porém, permite o aparecimento de notas (ou o seu
desaparecimento) no mesmo plano do texto principal. E não existe a noção de princípio e fim que
a materialidade do livro sugere, com suas folhas encadernadas em uma sequência determinada e
numeradas.
Mas a grande diferença reside na possibilidade de se pode ler trechos de várias fontes, quase
que simultaneamente, no computador. Podem-se abrir diferentes obras, em diferentes línguas, em
uma mesma tela; pode-se acessar outra história clicando uma palavra, e depois um trecho de
biografia, e em seguida um parágrafo de outro romance do mesmo autor – tudo aparecendo na
mesma tela, como partes de uma só obra computacional, organizada pelo leitor. A possibilidade de
“navegar” por diversos textos e fragmentos de textos, escolhendo os rumos da leitura, é que está
fazendo surgir um tipo de literatura que pode apenas ser lida em computadores. Em algumas
histórias, desenvolvidas experimentalmente em sites como http//:www.zaz.com.br, os leitores
decidem a ordem de acontecimento dos fatos da narrativa; ou melhor, decidem a ordem em que
eles devem aparecer na leitura. Também participam da produção da história, mandando
argumentos, opiniões e mesmo escrevendo partes dela.
12
Idem ibid, p. 3.
10
Para Jean Marie Goulemout,
Ler é dar um sentido de conjunto, uma globalização e uma articulação aos sentidos produzidos
pelas seqüências. Não é encontrar o sentido desejado pelo autor, o que implicaria que o poder do
texto se originasse na coincidência entre o sentido desejado e o sentido percebido, em um tipo de
acordo cultural, como algumas vezes se pretendeu, em uma ótica na qual o positivismo e o
elitismo não escaparão a ninguém. Ler é, portanto, constituir e não reconstituir um sentido. A
leitura é uma revelação pontual de uma polissemia do texto literário. A situação da leitura é, em
decorrência disso, a revelação de uma das virtualidades significantes do texto
13
.
Se ler é “dar uma articulação aos sentidos produzidos pelas seqüências”, o modo como a
obra é apresentada – a maneira como suas seqüências são ordenadas dentro do suporte –
interferirá, por hipótese, em seu sentido. E as modificações provocadas pela mudança de suporte
podem criar um novo gênero literário – como J. D. Bolter afirmou que acontecerá com a
“passagem” das obras impressas para a tela. Isso já ocorreu, por exemplo, quando, no século
passado, “o barateamento das ilustrações, entre outras inovações técnicas da tipografia”, fez surgir
os folhetins:
Torna-se tão importante esse espaço da liberdade e da recreação [o folhetim]que, ao lançarem
depois da revolução burguesa de 1830 as bases da moderna revolução jornalística, Émile de
Girardin e seu ex-sócio e pirateador , Dutacq, logo perceberam as vantagens financeiras que dele
tirariam. Deram ao feuilleton o lugar de honra do jornal (...). As vantagens do “civilizador”
empreendimento: “Publica um folhetim cotidiano. Oferece mais variedades que qualquer outro.
Custa no entando menos da metade que os outros”. (...) Lançando a sementeira de um boom
lítero-jornalístico sem precedentes e aberto a formidável descendência, vai-se jogar ficção em fatias
no jornal diário, no espaço consagrado ao folhetim vale-tudo. (...) A receita vai se elaborando aos
poucos, e, já pelos fins de 1836, a fórmula “continua amanhã” entrou nos hábitos e suscita
expectativas. Falta ainda fazer o romance ad hoc que responda às mesmas, adaptado à novas
condições de corte, suspense, com as necessárias redundâncias para reativar memórias ou esclarecer
o leitor que pegou o bonde andando. No começo da década de 1840, a receita está no ponto, é o
filé mignon do jornal (...). Brotou assim, de puras necessidades jornalísticas, uma nova forma de
ficção, um gênero novo de romance: o indigitado, nefando, perigoso, muito amado,
indispensávem folhetim “folhetinesco” de Eugène Sue, Alexandre Dumas pai, Soulié, Paul Féval,
Ponson du Terrail, Montépin, etc. etc.
14
13
GOULEMOT, Jean Marie. “Da leitura como produção de sentidos”. In: CHARTIER, R. (org.). Práticas de
Leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 108.
14
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 58-59.
11
No Brasil, a necessidade de se preencher diária ou semanalmente espaços em jornais para
leitores loucos por folhetins rendeu A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, O Guarani, de
José de Alencar, O Ateneu, de Raul Pompéia, entre outros atuais marcos da literatura nacional. As
“instruções de leitura”, como cortes, redundâncias, capítulos com finais cheios de suspense,
inseridas nos textos pelas características materiais do suporte jornal, terminaram por direcionar a
criação de um novo gênero literário. Consagrada a obra, porém, esta era publicada em livro. O que
nos leva de volta à questão do livro de papel como suporte, por excelência, dos textos canônicos
da tradição literária.
O livro de papel têm sido, há muitos séculos, símbolo de conhecimento e de autoridade.
Observando pinturas medievais que retratam a Virgem Maria, Deus, Jesus Cristo, percebemos que é
freqüente nelas a presença do livro. Reis, santos, poetas, foram e são pintados segurando um livro,
lendo, escrevendo. As folhas encadernadas possuem também um atributo desejado por poetas,
alcançado (pelo menos segundo o “mais sagrado dos livros”) por santos e auto-investido por reis: a
imortalidade – ou pelo menos, uma longa durabilidade. Quando a escrita surgiu e a memória (da
qual depende a imortalidade) passou a ser confiada a suportes de texto, estes por conseguinte
tornaram-se também representações daquilo que continham: a tradição, a cultura, o saber. Caros e
raros, artisticamente manufaturados e decorados, os primeiros livros tiveram sua imagem associada
à imagem daqueles que podiam possui-los, de maneira que riqueza e poder juntaram-se às outras
idéias à que eles remetiam, como objetos.
O mundo foi comparado a um livro vezes sem conta; assim como o corpo humano e
mesmo a alma. A palavra divina materializou-se em páginas sagradas, e o objeto livro, para várias
religiões, é concretização da manifestação da divindade. A força dessas metáforas ajuda a entender
a idéia de que a leitura de um livro é “natural”, diversamente da leitura de um computador. Aliás,
não se fala “leitura de um computador”, e sim, “leitura no computador”. A máquina ainda não
substituiu o livro, e parece que precisa imitar seu formato para o fazer. No imaginário das pessoas
que vivem as mundanças trazidas pela informática, um livro ainda é de papel. Como aceitar que a
literatura, ápice da realização técnica e artística que a escrita pode expressar, guardiã dos valores,
idéias, e da capacidade humana de criar, de contar histórias; enfim, como aceitar que a literatura,
essa grande sequência de imortais por tradição (ainda que contestados), seja lida em uma tela de
computador?
O sonho de nosso século XX, em seu final, é o de poder superar a contradição que assombrou
por muito tempo a relação que os homens do Ocidente mantiveram com o livro. A biblioteca do
futuro, tal como esboçada, é em certo sentido uma biblioteca sem paredes, como aquelas
edificadas sobre papel por Gesner, Dori ou La Croix du Maine. Mas diferentemente dos catálogos
que forneciam nomes de autores, títulos de obras, às vezes resumos ou excertos, ela está inscrita
em um lugar no qual todos os textos podem ser convocados, reunidos, lidos numa tela. No
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universo da comunicação à distância que a telemática e a numerização autorizam, os textos não
são mais prisioneiros da sua materialidade original. Separados dos objetos sobre os quais estamos
habituados a encontrá-los, eles podem ser transmitidos sem que o lugar de sua conservação e o de
sua leitura sejam idênticos.
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Essa “imaterialidade” dos textos, que flutuariam, transformados em bytes, por cabos,
satélites, monitores, é a grande revolução do computador. Bibliotecas inteiras, ligadas por
infindáveis links, seriam “desdobradas”em monitores particulares obedecendo simples comandos
do leitor. Em lugar de apreender a supefície de uma obra, seu volume e peso, e fazer um
“sobrevôo” por suas páginas, vamos abrindo suas sequências na mesma tela, que nos permite abrir
outras e outras obras, em uma espécie de “mergulho” que pode ser infinito. Mas esse tipo de
apresentação dos textos depende de uma materialidade: é preciso dominar a tecnologia da máquina
para poder utilizá-la. Assim como é preciso entender que se lê um livro pelo princípio, que as
linhas estão ordenadas da esquerda para a direita, e que há um índice no começo ou no final, nunca
no meio da história.
A materialidade do computador, que permite ler sequências de modo radicalmente diferente
do livro, certamente afetará a maneira como conhecemos e tomamos contato com a literatura.
Quando se navega por um texto, e a partir dele se vai a outras obras, o que não é, hoje,
considerado literário, ou “boa literatura”, pode passar a fazer parte de alguma obra canônica.
Imaginemos uma hipotética edição de Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, publicada na Internet,
em que haja um link que remeta ao diário de um marujo português que naufragou na mesma época
em que a personagem; diário que por sua vez remeta a um compêndio de sinais da marinha no
século XVIII; compêndio este que esteja ligado a uma panorama geo-político do século XVIII;
quando se voltar ao Robinson (se se voltar), o sentido da obra, modificado pela inclusão de
diferentes sequências em seu interior, será diferente.
A materialidade do suporte em que a obra se encontra, portanto, é fundamental para a
interpretação de seu conteúdo. Talvez, seja justamente esse o aspecto mais temido quando se
pensa na substituição do livro pelo computador. A autoridade das obras literárias, consagrada em
papel encadernado e referendada em prefácios, posfácios e apêndices, terá a mesma força quando
diluída, fragmentada e misturada em meio a milhões de outros textos?
Ainda é cedo para responder.
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CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e
XVIII. Tradução de Mary del Priore. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994, p.91.
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Cilza Carla Bignotto
Aluna de mestrado em Teoria Literária, no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Campinas (IEL/Unicamp), onde participa do Projeto Memória de Leitura. Estuda
a obra de Monteiro Lobato e está preparando uma versão multimídia para sua tese, que deve
ser defendida em outubro.
[Endereços dos links]
Projeto Memória de Leitura – www.unicamp.br/iel/memoria
Monteiro Lobato (artigo meu no site do projeto) – www.unicamp.iel/memoria/cilza.html
resumo
Estão chegando ao mercado “livros eletrônicos”, pequenos computadores com capacidade para
armazenar centenas de obras e que imitam o formato do livro de papel. Essas máquinas
permitiriam, segundo um dos fabricantes, que as pessoas leiam de maneira “natural”. Mas o
que seria a “leitura natural”? E de que modo o suporte da escrita – que já foi a argila, a pedra, o
pergaminho, e vem sendo cada vez mais a tela do computador – pode influenciar a maneira de
ler? Essas são algumas das questões analisadas nesse artigo.

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