O FIGURATIVISMO NAS ARTES URBANAS DE PARINTINS/AM: DA

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O FIGURATIVISMO NAS ARTES URBANAS DE PARINTINS/AM: DA
O FIGURATIVISMO NAS ARTES URBANAS DE
PARINTINS/AM: DA VIABILIZAÇÃO DE OPERAÇÕES
COMUNICATIVAS À PRODUÇÃO DE SIGNOS SOCIAIS
Marivaldo Bentes da Silva
PPGAV-EBA-UFBA - Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de
Belas Artes da Universidade Federal da Bahia
[email protected]
Evailson Oliveira Inomata
UFAM - Universidade Federal do Amazonas
[email protected]
Resumo
Este artigo reúne reflexões sobre a contribuição da linguagem figurativa às artes
urbanas da cidade de Parintins, no Amazonas, em seu desempenho como
operação comunicativa, ação no espaço cotidiano da vida e signo social. Tendo
em vista o manancial de manifestações artísticas dirigidas ao urbano local,
priorizamos um conjunto de murais representando paisagens amazônicas, cuja
abundância tem lhe permitido se projetar como a forma de arte de encomenda
mais difundida na cidade e, numa visão mais ampla, reafirmar o lugar privilegiado
que o figurativismo ainda ocupa na produção artística contemporânea. As
reflexões aqui expostas tentam responder a interrogações acerca da natureza e
do propósito do emprego massificado do figurativismo nos murais parintinenses,
prevendo iluminar as bases e os destinos deste fenômeno e, ao mesmo tempo,
dar densidade aos estudos sobre o uso da arte como linguagem convencional,
simbólica e de fácil compreensão.
Palavras-chave: artes urbanas, iImagem, figurativismo, linguagem simbólica.
Abstract
This paper presents reflections on the contribution of figurative language to urban
arts in the city of Parintins, Amazonas, in his role as communicative operation,
action in everyday life and social space of the sign. Given the wealth of artistic
events aimed at the urban site, we prioritize a set of murals depicting Amazonian
landscapes, whose abundance has allowed to protrude as how to more
widespread demand for art in the city and, in a broader view, reaffirm the place
privileged that the figurative still occupies in contemporary artistic production. The
reflections presented here attempt to answer questions about the nature and
purpose of the massiveness use of figurative murals in Parintins, predicting
illuminate the bases and targets of this phenomenon and at the same time, give
density to studies on the use of art as conventional language , symbolic and easy
to understand.
Keywords: urban arts, image, figurativism, symbolic language.
1
Considerações preliminares
O presente artigo constitui mais um de nossos esforços voltados para a compreensão
das artes urbanas da cidade de Parintins, estado do Amazonas, tema que, ainda hoje,
reclama por reflexões que o encarem diretamente e com justeza e, desse modo,
confirme a hospitalidade do espaço urbano parintinense para outras manifestações de
arte, além daquelas ligadas à Festa do Boi bumbá, as quais, a propósito, costumam
constituir o motivo da citação da cidade nas discussões sobre arte urbana.
Nesta nova investida, que resulta da pesquisa1 que temos desenvolvido, desde
2014, junto ao Curso de Doutorado do PPGAV/EBA/UFBA, oferecemos atenção ao
papel da linguagem figurativa na constituição de um tipo específico de arte de
encomenda, que tem se materializado no espaço urbano parintinense na condição de
murais que reproduzem paisagens amazônicas. Sobre a questão, temos um
pressuposto fundamental: a predileção pelo figurativismo estaria assentada num gosto
local enraizado pela figuração e, em especial, na convicção generalizada de sua
capacidade de comunicação para a veiculação de mensagens concernentes à
natureza.
Dessa
componentes,
conjugação,
embora
gestados
resultaria
no
um
âmbito
patrimônio
da
iconográfico
individualidade,
cujos
alcançariam
rapidamente o domínio coletivo, primeiro, porque o tema da natureza, que os murais
exploram de maneira insistente, tem grande aceitação entre os parintinenses e,
segundo, porque o figurativismo, de que se servem sem variações, lhes permitem se
colocar como “rostos” desta natureza, reconhecíveis e valorizados por toda a
comunidade.
1
Realizada sob orientação do Prof. Dr. Eugênio de Ávila Lins e com auxílio de bolsas da
CAPES, a pesquisa de doutorado intitulada “Artes populares e espaço urbano: imbricamentos
entre a festa do boi bumba de Parintins e a cidade” procura explicar o interesse parintinense
pelo povoamento do espaço urbano com murais artística representando paisagens
amazônicas e esclarecer suas ramificações enquanto tendência de intervenção urbana.
Interessa-nos a experiência coletiva de apropriação e estetização da cidade de Parintins/AM e
não um grupo específico de murais. Desse modo, a presença da natureza como tema é o
critério fundamental para o ingresso do mural na pesquisa. Quatro longas viagens de estudo
foram empreendidas até o momento, as quais possibilitaram a realização de inúmeras
conversas informais e entrevistas com artistas, moradores e visitantes, além de observações,
registros fotográficos e audiovisuais dos processos de trabalho e dos próprios murais. A
pesquisa tem recebido contribuições valiosas de artistas parintinenses, como Evailson Inomata
(também autor deste texto), Josinaldo Mattos e Raimundo de Oliveira Barbosa (ROB).
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2 As artes urbanas parintinenses e a presença dos murais
Em nenhum outro momento de sua história, a cidade de Parintins serviu a tantas
manifestações de arte urbana, potencialmente capazes de subverter a austeridade e
impessoalidade dos elementos de sua paisagem e impregná-los com devaneios,
críticas, afetos, desejos de sociabilidade, inconformismo, denúncia política, ludicidade,
entre outros. Desse processo de apropriação e estetização do urbano, de caráter
simultaneamente espontâneo e convencionado, arbitrário e submisso a regras,
inesperado e previsível, participam pinturas, aerografias, mosaicos, pichações,
grafites, esculturas em vulto e em alto-relevo e, em menor número, colagens e
estêncil, cuja proliferação se tornou sintomática da intensa produção e pesquisa dos
artistas locais, bem como de sua abertura para proposições artísticas que fluem e se
atualizam em outros centros.
Apesar da multiplicidade de manifestações e do desejo ascendente dos artistas
de avançar em liberdade expressiva, a partir da rejeição a regras e convencionalismos
estéticos, o espaço urbano parintinense tem sido monopolizado por uma forma de arte
que justamente tem fixado fórmulas e esquematismos, instituído cânones e filiações,
que permite e cultiva o exercício criativo e a investigação formal, mas sem se
preocupar com a deflagração de inovações ou discursos e posturas vanguardistas.
Estamos falando de murais que representam elementos da natureza, em geral,
constituindo paisagens. Evoluídos de murais em que a natureza constava como “pano
de fundo” para outros temas, cujas raízes historiográficas costumam levar seu estudo
a mergulhar no mito, estes murais, que, a nosso ver, merecem o nome de “murais de
paisagem”2, têm vivido um momento de euforia produtiva, que não deixa dúvidas
quanto à sua condição de arte de encomenda mais exitosa de Parintins.
Tomando como suporte a superfície de fachadas, frontões, paredes e muros,
valorizando, destas últimas estruturas, tanto a face interna quanto a externa, os murais
estão presentes em residências, instituições de ensino (Escola Thomazinho Meirelles
e Centro de Educação Tadashi Inomata), espaços para eventos (Chácara do Hélio;
2
A expressão constará neste e em documentos futuros identificando os murais pintados, em
alto-relevo ou aerografados, localizados em espaços públicos e privados e que fazem uso do
figurativo para tratar fundamentalmente da paisagem natural, mas sem inibir a presença do
homem, quase sempre desempenhando um papel secundário nas composições. A valorização
do termo “mural” em detrimento de “painel”, nesta formulação conceitual, se deve ao fato das
referidas realizações operarem como uma arte profundamente vinculada à arquitetura e outros
elementos imóveis, explorando o caráter plano de uma parede ou criando o efeito de uma nova
área de espaço, aspectos que escapam do relacionamento dos painéis com a arquitetura,
comumente superficial e temporário.
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Clube de Cabos e Soldados de Parintins), sedes de projetos sociais (Projeto Cidadão IRAPAM), da Prefeitura Municipal, da 3º Delegacia Regional de Parintins, da 4ª Zona
da Justiça Eleitoral, igrejas (Templo da Igreja Batista Regular), praças e de inúmeras
unidades comerciais, incluindo lojas, bares, restaurantes, hotéis, pousadas e motéis.
Encontram-se dispersos pelo perímetro da cidade, sendo facilmente encontrados na
zona central, onde se registra um número mais elevado de exemplares, e também em
sua periferia, confirmando sua popularidade enquanto fenômeno de arte pública.
A fixação dos parintinenses em paisagens em forma de murais alcançou um
nível tão elevado de massificação na cidade, que é possível encontrar casas vizinhas,
de diferentes proprietários, exibindo obras e outras unidades praticamente tomadas
por painéis, como o Hotel Ilha Bela, de Edmilson Prado, e o espaço de
evento/residência, de Hélio Batista, com 14 e 16 imponentes exemplares
respectivamente. Neste último tipo de empreendimento, as obras fazem uso de toda a
superfície disponível, num impulso de mascarar a aparência primeira da edificação e,
ao mesmo tempo, assumir monumentalidade.
A produção de murais de paisagem se assenta no uso de três técnicas básicas,
empregadas isoladamente e, com maior frequência, de maneira associativa: a pintura,
a escultura em relevo e a aerografia. A pintura acompanha o fenômeno desde o
princípio, mas sem representar hoje a técnica mais solicitada, talvez, se pensada
como acréscimo às realizações em alto-relevo. Pela natureza do trabalho, a tinta
acrílica se impõe como a mais difundida, muito embora implique restaurações
constantes, sobretudo, quando empregada em murais em ambientes externos; a
escultura em alto-relevo tem assumido preponderância nas escolhas dos moradores,
em termos de técnica, apesar de seu uso ser dispendioso e laborioso, quando
comparado ao das demais categorias. O interesse local pela tridimensionalidade tem
se mostrado tão acentuado que, por vezes, são incorporadas esculturas de vulto ao
mural em alto-relevo, que reforçam a percepção tátil e exploram, ao máximo, as
sensações de matéria, volume, peso e espaço, como no caso de alguns exemplares
presentes na face externa dos muros do Centro Cultural e Esportivo Amazonino
Mendes (Bumbódromo) e na estrutura de base circular, disposta no centro da Praça
da Liberdade. Finalmente, a aerografia, uma técnica de pintura que começou a ser
usada na produção de painéis recentemente. Apesar dos custos pouco elevados, da
rapidez de sua execução e das possibilidades expressivas oferecidas, a técnica ainda
não chegou a constituir tendência, interessando, no momento, a poucos artistas.
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O fato dos murais se servirem simultaneamente da pintura, do alto-relevo, com
auxílio ou não de esculturas de vulto, e ainda da aerografia permite que a comunidade
como um todo seja capaz de encomendar obras, independente de suas condições
financeiras e, desse modo, alimentar a riqueza, complexidade e dinamismo de um
espaço de produção artística que visa deixar registrado, nos diferentes espaços da
cidade, o quanto a natureza, real ou imaginada, é valiosa para os parintinenses.
3 O figurativismo dos murais como gosto enraizado
Por constituírem uma arte de encomenda, que atende a desejos individuais diversos,
porém, com alguma relação com o tema da natureza, os murais têm se desenvolvido à
luz do primado do tema, sujeitos a um assunto com amplas possibilidades de
traduções plásticas, porém, determinado e fixo. Desenvolveu-se também dentro dos
limites do figurativismo, já que seus financiadores, em geral, os fornecedores das
ideias seminais da composição e condutores dos rumos da execução, parecem se
recusar a dissolver os conteúdos em soluções não figurativas e, assim, afastar-se da
representação objetiva da realidade. Aliás, o tratamento figurativo dos temas não
parece ser uma opção para a comunidade contratante e sim uma condição, uma
decisão que nasce junto com a ideia de produção de um mural, imune a discussões e
dúvidas.
As composições dos murais, viabilizadas pelo figurativismo, apresentam
soluções tão variadas quanto os conteúdos de que se servem, mas passíveis de
serem organizadas em dois grandes grupos: o primeiro reúne composições que se
notabilizam pela profusão de elementos, pela irregularidade de sua organização e pela
simpatia confessa pelo decorativismo. Seu planejamento parece arbitrário, como se a
distribuição dos elementos se desse ao acaso e visando apenas o aproveitamento
total do espaço reservado ao mural. Mas esta arbitrariedade é apenas aparente, já que
tudo é causal e racionalmente elaborado, prevendo a criação de um ambiente
embebido pelo verde da floresta e povoado de animais que convivem – ao menos no
plano artístico – harmoniosamente.
Pela fartura de elementos, gosto pelo devaneio e espírito decorativista, este
primeiro grupo de murais nos faz pensar naquelas pinturas de paisagens do holandês
Frans Post, de temática brasileira, realizadas logo após seu retorno para Haarlem, em
1644. Nestas, feitas a partir de inúmeros esboços e lembranças acumuladas no Brasil,
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a paisagem se desfaz de sua precisão documental e tem “sua serenidade perturbada
pelo excesso de lagartos, tatus e aves, pelas cobras que engolem gambás e pelos
arranjos de elementos vegetais e topográficos, que tentam potencializar a ideia de
exuberância tropical” (LEITE, 1967, p. 84).
O segundo grupo é identificado por composições coerentes, equilibradas,
serenas, que se apresentam como resultados de uma visão fiel e, ao mesmo tempo,
poética da região e uma atitude contemplativa e contida diante da magnitude da fauna
e da flora tropicais. A fantasia é permitida, mas as paisagens permanecem
subordinadas à realidade e, justamente por isso, acabam sendo vistas como mais
reflexivas, informativas e com carga mais densa de significados, quando comparadas
às do grupo anterior.
Interessante constatar que algumas composições deste grupo parecem
responder a um interesse pela narrativa, ao se concentrarem num instante de uma
situação que captura a atenção e o gosto do espectador pelas vias do suspense e lhe
concede a possibilidade de imaginar seu desfecho. São casos exemplares o mural em
alto-relevo (figura 1) da propriedade (Rua Senador Álvaro Maia, Centro) de Francisco
José Vasconcelos (Tibica), que mostra um gavião real, de garras postas, voando em
direção a um bicho-preguiça que, agarrado a uma vistosa embaúba, ensaia uma
defesa inútil, ou o mural (Rua Rio Branco, Centro), encomendado pelo mesmo
proprietário e seguindo a técnica do anterior, em que uma onça pintada caminha sobre
um galho no sentido de sua extremidade, onde se encontra encurralado, apreensivo e
indefeso um filhote de macaco-prego. Há ainda o imponente mural em alto-relevo da
residência de Hélio Batista (Estrada Parintins/Macurani, Jacareacanga), no qual um
pescador3 é representado no momento exato em que se esforça para conduzir, para
dentro de sua canoa, um enorme pirarucu recém-capturado.
3
Cabe aqui mencionar que os murais de paisagem, embora interessados no ambiente natural,
não excluem a participação do homem ou indícios de sua interferência, como casas e
embarcações. Porém, o trata costumeiramente de maneira secundária, dispondo-o ao fundo e
sem grande importância visual. Isso significa que o mural da residência de Hélio Batista, cuja
cena é protagonizada pelo homem, é um caso excepcional na produção local.
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Figura 1 – Mural da propriedade de Francisco José Vasconcelos
Rua Senador Álvaro Maia, Centro
Artista: Josinaldo Matos e Jucelino
Fonte: fotografia dos autores
As diferenças expostas há pouco, em termos de soluções compositivas, nos
orientam quanto à possibilidade de um novo agrupamento, desta vez, determinado
pelas variações no tratamento dado aos elementos vegetais, animais, topográficos e
também arquitetônicos e humanos. Num primeiro grupo, poderíamos organizar
aqueles murais cuja composição seria baseada na observação da realidade, sem
idealismo e estilização, de modo que a aparência física dos elementos seja imitada e
reconhecida em seus mínimos detalhes. Mais próximas do naturalismo, estas
composições se mostram sofisticadas, complexas e formalmente ambiciosas,
expressões físicas da experiência e pesquisa do artista, que costuma não se fechar no
repertório de referências visuais guardado na memória para fazer uso daquelas
encontradas em fotografias, sites de busca e livros.
O segundo grupo acolheria aqueles murais que, seguindo certa tendência
realista, apresentam idealizadamente a aparência dos elementos da natureza, distante
de como estes realmente são. O alimento temático é reconhecível, mas seu
tratamento formal parece recusar a semelhança e a verossimilhança.
Um terceiro grupo seria formado por murais de composições ingênuas,
incipientes e de forte inclinação para o caricatural. Em geral, sua autoria está
associada a pessoas de formação artística mínima, que, atendendo ao desejo de
possuir murais em suas propriedades, se entregam amadoristicamente à elaboração
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das paisagens e às técnicas de feitura, e também a artistas, por assim dizer, intuitivos,
que, apesar da superficialidade e ocasionalidade de seu envolvimento com a arte
figurativa e, em alguns casos, com as técnicas associadas aos murais, têm
conseguido espaço neste terreno de produção, justamente pelo baixo custo de sua
mão de obra. Nesse sentido, a negação da visão “oticamente fiel ao natural”,
registrada nos trabalhos deste grupo, não é intencional e sim uma consequência da
pouca experiência daqueles que abraçam sua execução.
É nosso dever advertir que os limites deste agrupamento, estabelecido pela
qualidade do tratamento formal, são imprecisos. Ou seja, avaliando individualmente os
murais, percebemos a existência de gradações nas representações geradas dos
elementos da natureza, o que significa que seríamos capazes de organizar tais
realizações – sem desconsiderar nenhum tipo de autoria – segundo uma linha de
maturação, que se iniciaria com os painéis de dimensão primitiva e teria como término,
até o presente, aqueles que tiveram maior êxito em sua aventura de retratação da
natureza amazônica.
Apesar do grande valor oferecido localmente à novidade e imparidade, são
comuns murais com projetos imagéticos apresentando elementos e composições
bastante similares, o que nos impede de ver tais realizações como impermeáveis a
influências recíprocas. Há casos em que a representação do mural aparece como uma
clara “versão” da aparência de outros, com resultados, por vezes, beirando a paródia,
em virtude da incipiência da imitação. Outros exemplares, mais apegados às ideias de
pastiche e colagem, resultam da justaposição de elementos e soluções tomadas de
empréstimo de outros trabalhos. Tais casos são indicativos da capacidade de
retroalimentação da arte dos murais, que faz uso de seu próprio programa iconográfico
e fórmulas compositivas, instituídas e atualizadas sempre dentro dos limites do
figurativismo. E, afinal, em que consiste o envolvimento profundo e amplamente aceito
dos murais de Parintins com a figuração?
O que nossas pesquisas de campo nos permitiram constatar é que o caráter
figurativo dos murais reflete um gosto pela figuração de raízes profunda na experiência
estética e produção artística da comunidade local. São figurativos, por exemplo, os
entalhes em madeira, as esculturas de molongó-branco, as cuias pretas decoradas
com incisões, as bolsas de algodão estampadas manualmente e toda sorte de
souvenir, encontrada nos mercados, lojas e feiras, assim como as esculturas e outras
intervenções com fins decorativos introduzidas em praças e equipamentos públicos.
Na mesma esteira, seguem a pintura de ateliê, praticada tanto por artistas autodidatas
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quanto por aqueles com alguma formação institucional; a pintura de aprendizes nas
escolas de arte, os quais, a propósito, não escondem seu fascínio pelo tema da
natureza; as pinturas internas de algumas igrejas católicas, fundadas, inclusive, na
estética das pinturas medievais e renascentistas; as festas populares, como
Pastorinha, Quadrilha e Boi bumbá, destacando-se, desta última, as apresentações de
Garantido e Caprichoso, que, por sua condição de espetáculo, têm elevado, ao
máximo, o uso do figurativismo, perseguindo a semelhança, como provam o
tratamento de suas alegorias e personagens, em especial, do boi alegórico,
componente central da festa, cada vez mais próximo de um boi de verdade, na
aparência e também na performance.
A constelação de exemplos exposta acima reforça a ideia de enraizamento do
gosto pelo figurativismo, ao mesmo tempo em que lança raios de luz sobre suas
ramificações no domínio da produção artística. Isso nos habilita a considerar a
instituição do figurativismo como traço definidor da arte dos murais de paisagem como
convenção efetuada a partir de uma tradição predominante, em termos de
representação, que explora todas as possibilidades expressivas do figurativismo e, ao
que parece, sem qualquer preocupação em constituir uma “outra língua” para esta
modalidade de arte urbana.
4
O figurativismo como impulso à capacidade comunicativa dos murais
Para além de sua filiação a um gosto enraizado, a preponderância do figurativismo
nos murais de paisagem corresponde a uma necessidade de comunicação dos
encomendadores, cuja supressão, segundo seu entendimento, apenas pode ocorrer
por meio da linguagem figurativa, o que nos coloca frente a um pensamento
cristalizado acerca da suposta superioridade da eficiência da figuração na
comunicação de mensagens, quando comparada a soluções não figurativas.
A presença insistente e destacada da natureza nos murais abre uma série de
possibilidades de interpretação, assim como a preferência por determinados
elementos, conformações, arranjos, combinações, vistas, cores e técnicas. Das
motivações levantadas nas entrevistas e conversas informais, podemos destacar o
interesse sumário de valorização das qualidades naturais da região, assumido como
ação que deveria ser adotada por todos os moradores;
alguns moradores
assinalaram o caráter irrecusável desta predileção, ou seja, sendo a paisagem natural
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uma marca da identidade do território e da própria identidade cultural dos
parintinenses, dificilmente estes recorrerão a temas externos; houve os que
declararam o desejo de ressaltar experiências e identificações afetuosas com a
natureza em sua forma, por assim dizer, mais bruta, construídas durante a
permanência ou longos e sucessivos encontros com a paisagem da zona rural do
município de Parintins. Nesse caso, os murais, apresentando maior compromisso com
a subjetividade, são transformados em depositários de memórias afetivas e vias
permanentes de acesso a relações com os “lugares amados” (BACHELARD, 1993),
oferecem concretude a imagens e percepções do passado, que, até então, ficavam
retidos em fotografias, vídeos e na chama imprecisa da lembrança.
Contudo,
o
discurso
predominante
é
aquele
que
visa
denunciar
o
desaparecimento da natureza nos domínios da cidade. Mas, ao invés de falarem
diretamente das queimadas, da derrubada de árvores, do contrabando de animais e
plantas silvestres, da poluição dos rios, os moradores, aproveitando a capacidade que
os murais lhes oferecem de falar abertamente e para muitas pessoas a respeito de
suas inquietações individuais, assumem as condições da natureza local e investem
em sua caracterização e, sobretudo, positivação e sobrevalorização, visando
representar
simbolicamente
a
grandeza
da
natureza
amazônica.
Procuram
materializar, no espaço urbano, noções comumente usadas para conceituá-la –
abundância, diversidade, vitalidade –, mas que os crimes do homem contra a
natureza têm comprometido seu emprego efetivo.
De algum modo, os murais com composições profusas e inquietantes, resultado
do abuso de elementos naturais e vegetais, e aqueles com paisagens serenas, livres
de contaminação e da presença humana, inspiram esse tipo de pensamento, que
parece ter instituído algumas fórmulas iconográficas, como revoadas de pássaros e
bandos de capivaras, para tratar da questão da abundância (figura 2), e casais de
aves acomodados em ninhos feitos em frondosas árvores e grupos de tracajás pondo
seus ovos, em bancos de areia ou barrancos, às margens dos rios e lagos, como
alusão ao desejo de perpetuação da natureza. Logo, na análise de determinados
murais, os desejos de personalização, individualização, animação e decoração dos
espaços não podem ser vistos separadamente da intenção de promover a reflexão
acerca do processo de degradação do meio natural e de nossa participação nesse
processo, ainda que a partir da representação de paisagens belas, frondosas e
idílicas.
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Figura 2 – Mural da Pousada Linhares
Rua Armando Prado, São José
Artista: Evaldo e Osias
Fonte: fotografia dos autores
Não se trata de admitir a “dimensão política” da arte dos murais de paisagem,
tomando alguns de seus exemplares como produtos do engajamento de seus
proprietários nos movimentos em favor da preservação da natureza. Afinal, a
preocupação com o estado atual das questões ambientais ainda não teve forças para
deflagrar soluções plásticas e formais que encarem diretamente o problema. Trata-se
de reconhecer que os murais podem constituir focos de reflexão, com ressonâncias
muito mais amplas e profundas no meio social parintinense do que aquelas
comumente atribuídas por visões apressadas e interessadas em leituras práticas.
Vale pontuar que os murais, não apenas os que conjugam o elogio à natureza
com supostos interesses preservacionistas, conseguem atingir, ao mesmo tempo, os
domínios do individual e do coletivo. Os sentimentos e interesses sobre os quais está
assentada a constituição de sua visualidade, embora gestados na esfera da
individualidade, acabam repercutindo no meio social e encontrando correspondência
nos sentimentos e interesses de tantos outros moradores, que se relacionam com os
murais apenas como espectadores. Ora, Crespi (1997) já havia dito que a arte é a
mais alta expressão do imaginário coletivo e uma das principais funções é integrar os
indivíduos de uma determinada sociedade a um tempo histórico específico. O autor
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objetiva que “a produção artística constitui um âmbito da cultura extremamente amplo
e variado, no qual encontram expressão, ao mesmo tempo, emoções, dimensões de
desejo e do imaginário individual e coletivo, representações da realidade natural e
social, concepções do mundo e da vida” (CRESPI, 1997, p. 170). Dessa maneira, os
murais deixam de expressar apenas as intenções e necessidades dos indivíduos que
os encomendam para postular um universo de mensagens compartilhado por todo um
grupo social, no caso, a comunidade local. E, desse modo, são alçados à condição de
signos sociais: através destas realizações, os parintinenses manifestam a sua
identidade e pertença a um grupo e, ao mesmo tempo, reivindicam e instituem essa
pertença, em formas plásticas de presença permanente no espaço urbano.
Retomemos aqui a importância da figuração. A rapidez com que as mensagens
introduzidas nos murais se deslocam do plano individual para o coletivo, se deve, em
grande parte, à sua comunicação pelas vias do figurativismo, que, como dissemos,
usufrui de ampla aceitação e estímulo no âmbito parintinense. Cada questão
introjetada nas propostas dos murais – valorização e celebração da natureza,
retomada de memórias afetivas, projeção da identidade do território, crítica social,
entre outros – é transformada pelos artistas em enunciados plásticos “quase
verbalizáveis”, facilmente compreendidos pela comunidade em geral, esta já bastante
familiarizada com as amplas possibilidades “descritivas” próprias da linguagem
figurativa.
É precisamente o caráter inteligível das imagens que chama a atenção dos
espectadores, que os faz interromper seu fluxo diário para um instante de
contemplação, e, numa leitura mais ampla, provoca a congregação, a aglutinação e,
finalmente, a incorporação de interesses, necessidades e gostos. Pois é preciso haver
um ponto comum para que as pessoas possam, de fato, se transformar num conjunto,
numa associação. A temática da natureza é o ponto-chave da reunião, seu símbolo
focal, o que confere ao vasto conjunto de murais, nascidos de desejos individuais, um
sentido e uma unidade. Porém, seus efeitos, certamente, seriam mais restritos se
apresentada através de concepções não figurativas. Diante disso, não nos parece
arriscado afirmar que a crença na eficiência da comunicação do figurativismo, no
imediatismo e na facilidade de sua compreensão, têm sido, em parte, responsável por
sua popularidade no sistema de produção de murais.
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5 Considerações finais
A linguagem figurativa é nuclear para a compreensão da popularidade dos murais de
paisagem na cidade de Parintins e também de seu êxito como operação comunicativa,
ação no espaço cotidiano da vida e signo social, já que potencializa, ao menos no
campo estudado, a capacidade das artes urbanas de contribuir de maneira concreta à
vida da sociedade, à convivência e à comunicação. Mas, apesar dos ganhos, o
figurativismo tem sido alvo de inúmeras críticas contrárias à sua preponderância na
visualidade dos murais, proferidas por uma parte da classe artística, inclusive, por
artistas que se ocupam destes trabalhos, os quais, como demonstram seus
depoimentos, estão convencidos de que a figuração é um obstáculo para o
“progresso” das artes locais, não apenas as urbanas.
É difícil saber se esse embate entre dois olhares, entre duas concepções,
acompanha o fenômeno dos murais desde o princípio, imprimindo-lhe um caráter
conflitivo. Sabe-se, porém, que o crescimento das realizações tem ocorrido ao lado do
aumento das críticas à sua ocorrência, colocando, de um lado, uma parte da classe
artística e, do outro, os demais artistas e os contratantes. Os críticos parecem
perseguir alguns objetivos: rejeitar os sistemas convencionais de representação, negar
ou minimizar a importância do “conteúdo” e exorcizar todo o realismo. Mas apesar
desta realidade discordante, não há como negar o êxito dos murais de paisagem, uma
conquista local que, aliás, tem experimentado, nos últimos anos, a expansão dos
limites geográficos a partir do trânsito de artistas e de sua atuação em cidades
próximas, como Itacoatiara, Nhamundá e Manaus.
6 Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo : Martins Fontes, 1933.
CRESPI, Franco. Manual de Sociologia da Cultura. Lisboa, Editorial Estampa. 1997.
LEITE, José Roberto Teixeira. A pintura no Brasil holandês. Rio de Janeiro: GRD,
1967.
SILVA, Marivaldo Bentes da. As artes urbanas de Parintins, associadas à festa do boi
bumbá: uma análise de suas representações figurativas. In: Iconografia: Pesquisa e
aplicação em estudos de Artes Visuais, Arquitetura e Design. UFBA; CEPESE.
Universidade do Porto (UP). Edufba, 2015.
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