A bola da vez

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A bola da vez
A bola da vez
LUÍS GUILHERME DE MENDONÇA
LUÍS GUILHERME DE MENDONÇA
A bola da vez
Eram 5h48 da manhã e Joãozinho já estava desperto, ainda sob os lençóis, é
verdade, mas somente cumprindo tabela, como se diz. O silêncio característico do
horário em nada ajudava o turbilhão de coisas em sua cabeça: “É hoje! É hoje!”,
repetia a criança com uma euforia ímpar e contida. Tamanha energia se convertia, a cada vagaroso minuto dos pequenos traços vermelhos de seu relógio digital,
no melhor receptor sonoro de que já se teve noticia. Suas orelhas quase tremulavam tentando captar o primeiro sinal sonoro fora de seu quarto e, ao mesmo
tempo, já aquecia os músculos pois sabia que quando chegasse o momento o salto
da cama seria imediato. Bastou um click do interruptor luminoso para que desencadeasse uma linha de produção inteira – lençol, pijama, armário, travesseiro,
camisa, bermuda, meia, tênis, porta, bom dia mãe! Com um olhar ainda pregado
e estranhando a prontidão do filho, sua mãe eleva os olhos aos ponteiros e números da sala que marcavam 6h30. Mais confusa ainda, retornou o olhar ao filho:
- Que isso, meu filho, porque está arrumado a essa hora?
- É hoje, mãe. É hoje que meu tio me prometeu levar no Shopping de Bolas!!!
O maior lugar de bolas do mundo! Do mundo inteirinho! Ele disse que vai me
comprar uma bola de futebol. Sabia?
Com olhar materno e admirando a empolgação pueril do filho, responde-lhe
com a mesma sensatez fria dos adultos, que tanto irritava João:
- Mas meu filho, lá só abre às 9h da manhã e, provavelmente, seu tio nem acordou ainda e lá nem é tão longe daqui.
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Aquele balde d’água fria só fez crescer sua inquietação pois sabia que teria
ainda uma série de burocracias matinais que jurava serem desnecessárias naquele
dia. Cabisbaixo, caminhou em direção à cozinha repensando a situação e torcendo o nariz: “Num abriu?! O que você sabe de bolas? Você nunca foi lá!”.
Quando ia botar a língua para fora, sua mãe se virou e lhe pediu ajuda com as
xícaras. O sentimento de eternidade novamente reinava e somente se foi quando o
interfone findou toda aquela rotina matutina. Era seu tio.
Tudo naquele dia parecia especial dali em diante. O velho carro do seu tio estava mais novo, o cachorro do vizinho menos chato, seu coração mais acelerado.
João prestava atenção em cada detalhe do caminho para ter certeza de que não
perderia nada. Uma placa anunciava que o sonho era realidade: Grande Shopping de Bolas – MANTENHA-SE À DIREITA. Apenas uma curva separava,
agora, João do seu objetivo. Com o olhar fixo e com a testa pregada no vidro do
carro, viu, abasbacado, surgir o imenso monstro esférico de concreto e aço.
Vidrado e imóvel, perdeu alguns segundos desembaçando agilmente com a manga
da blusa o vapor taquipneico que a proximidade com o vidro causou. Ainda lamentando o fugaz desperdício, acelerou a abertura da janela girando agressivamente a manivela que o libertaria. Sua vontade era de gritar, tamanha emoção de
saber que em minutos iria escolher a bola que tanto queria.
Bastou seu tio estacionar e Joãozinho, tão logo abria a porta, já se pôs a correr.
Vendo a inutilidade de lhe chamar atenção, o tio acelerou para tentar acompanhar a criança. Enquanto corria, João não pôde deixar de crescer sua coerente
imaginação infantil e pensar como seria o tamanho do pé que chutaria aquela colossal estrutura esférica.
A luzinha vermelha piscando no sensor era o anúncio da iminente abertura da
porta de vidro. Naquela fração de segundo, o mundo de Joãozinho parou e ao
mesmo tempo o separou de uma realidade fantástica. Tudo acontecia lentamente,
a porta, as crianças lá dentro, as vozes mudas...a porta se abriu. O pequeno soprar
do ar condicionado o despertou para um sonho e o adormeceu para uma realidade.
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Correu, correu e correu! Queria ver aquele mundo novo, cada corredor, cada
esporte, cada tipo de bola, apresentações, celebridades. Nunca a palavra corredor
teve sentido tão ambíguo como naquele momento. Futebol, vôlei, beisebol, handball, boliche, basquete, tudo que fosse lúdico e esférico estava lá. Cores, flâmulas e
placas direcionavam aquela avalanche de crianças inebriadas pelo espetáculo. O
som ambiente anunciava a chegada do mascote do lugar: o Pelotão! Um enorme
homem fantasiado de bola com insígnias e condecorações de exército comandava
a festa e fazia tudo girar. Era cíclico.
Novamente a sensatez fria de um adulto interrompeu tamanha euforia ao
lembrá-lo do óbvio: “Viemos para que pudesse escolher uma bola. Já escolheu?”,
disse o tio tentando delimitar o fim da expedição. Joãozinho sempre soube o que
queria mas apesar de tamanha exposição ainda não tinha encontrado. Virou-se
para o engomado atendente e disse a ingênua frase:
- Moço...eu queria uma bola de futebol.
Com uma solicitude, no mínimo, forçada respondeu-lhe:
- Claro, meu jovem. Temos bolas para canhotos, destros, pernetas, para defesas
difíceis, para dribles desconcertantes, específicas para as peladas de sábado, para
embaixadinhas até 100, 500 e 1000, para...
O som da voz daquele atendente foi se tornando cada vez mais baixo e confundindo o pequeno João, ao mesmo tempo que lhe trazia um certo desespero
quanto ao desfecho daquilo tudo. Em tom firme e levemente mais alto o interrompeu:
-TÁ BOM! EU QUERO SÓ UMA BOLA DE FUTEBOL!
Com um olhar sem graça típico dos adultos quando assumem que a culpa é da
criança, o vendedor engomado engoliu seco e voltou-se à Joãozinho com um sorriso amarelo e uma voz paciente geralmente reservada às crianças arteiras dos outros:
-Então é justamente disso que estou falando. Vamos lá, como é essa sua bola
de futebol? Tenho certeza de que vamos encontrar.
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-Ora, moço. Uma bola de futebol! Uma bola para eu brincar com meus amigos na rua, com meu pai, para eu levar na escola, no clube, para eu chutar do jeito
que eu quiser e fazer quantas embaixadinhas e defesas eu quiser. Entendeu? –
disse Joãozinho com sábia petulância.
Agora, com desdém imenso, quase menosprezo, disse o vendedor já de cara
fechada:
-Pois não, o que você quer é uma Bola de Família e Comunidade. Vá até o
13o corredor à esquerda, quinta estante de baixo para cima.
“Bola de que?”, pensava Joãozinho, mas já não queria papo com aquele
homem. Depois de alguns minutos e direções erradas, lá estava ela como bem o
vendedor falou. Era linda. Redonda, claro, mas quase poligonal. Os hexágonos de
couro branco que rodeavam o pentágono negro diziam por si só. Era aquela a
bola. Eram poucas e, talvez, quase esquecidas, mas não havia qualquer dúvida.
Aquilo era uma bola de futebol. Olhou bem para a mesma e sentiu a textura e
cheiro do couro novo e a abraçou. Missão cumprida.
A volta no carro foi repleta de estórias do que viu e, sempre repetitivo, Joãozinho não escondia sua empolgação. Em casa mal podia esperar a chegada do pai
para contar a maior aventura de todos os tempos. Revivendo tamanha euforia,
dominou a mesa de jantar por memoráveis 5 minutos, contando, quase sem
fôlego, sobre suas peripécias no mundo da bola e culminou com o troféu:
-Tcha-nan!!!
Era a bola que seu tio lhe dera. Aplausos na mesa. E Joãozinho conclui trazendo o que talvez seria a maior novidade do seu dia:
-Pai, sabia que a bola de futebol agora se chama Bola de Família e Comunidade?
-É...meu filho...às vezes temos que reinventar a bola – disse o pai enquanto
partia o bife finalizando a epopeia do filho.
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