Música Popular e Música Clássica: Água e Óleo?

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Música Popular e Música Clássica: Água e Óleo?
Música Popular e Música Clássica: Água e Óleo?
Por Laura Rónai
com colaboração de Cláudio Frydman
Ensaio cedido para publicação no projeto Músicos do Brasil: Uma Enciclopédia Instrumental,
patrocinado pela Petrobras através da Lei Rouanet
www.musicosdobrasil.com.br
(...) na maioria das vezes quando o músico erudito fala a
respeito da música popular, a impressão que se tem é que uma freira
enclausurada dá uma palestra sobre sexo; e, quando o popular fala do erudito,
parece mais que na tal palestra alguém da assistência súbito se levanta para
discutir sobre o sexo da própria! Ou seja, parece que ninguém entende de nada,
e ninguém se entende.
Henrique Pedrosa
A proposta que recebemos era espinhosa: traçar as tênues fronteiras entre a música popular e
a erudita, particularmente no Brasil. Discutir as diferenças entre a abordagem erudita e a abordagem popular, e
mostrar de que maneira essa ponte é feita. Parece fácil, mas não é. E a gente corre o risco de passar por freira
pontificando sobre sensualidade!
Quem de nós já não ouviu aquele clichê básico: “não existe música clássica e música popular,
existe música ruim e música boa“? A frase é uma saída honrosa para uma pergunta difícil: afinal, o que é
música popular? E o que é música clássica? Os eufemismos não resolvem o problema: música erudita, música
de concerto, música instrumental... são apenas outras tantas maneiras de driblar a questão.
O próprio Grove Dictionary online, referência segura para acabar com todas as brigas e pôr o
ponto final nas polêmicas mais acirradas, nos acompanha na viagem rumo ao topo do muro, ao tentar explicar
o que é música popular:
“É, no entanto, um dos termos mais difíceis de definir com precisão.
Isso acontece em parte por que seu significado (e o de palavras equivalentes em
outras línguas) historicamente tem se alterado e frequentemente varia de cultura para
cultura; em parte porque suas fronteiras são enevoadas, com peças ou gêneros
individuais entrando ou saindo da categoria, ou sendo classificados dentro ou fora
dela, de acordo com o ponto de vista de diferentes observadores; e em parte por que
os usos históricos mais amplos da palavra ‘popular’ lhe conferiram uma riqueza
semântica que resiste a qualquer redução.”
Mas definir os termos esbarra numa barreira ainda maior. Quais termos precisam ser
definidos? Quais deveríamos usar, para contrastar os dois tipos de música? E são apenas dois os tipos a serem
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definidos, ou há toda uma camada intermediária, que desafia conceitos e definições? Em artigo no Jornal do
Brasil, já lá se vão 24 anos, o jornalista Luiz Paulo Horta1 declara:
“(...) Turíbio Santos, por exemplo, acaba de ser agraciado com o
prêmio de Música Erudita do Governo do Estado. Aplicado a Turíbio, esse termo
soa quase como um xingamento. Pois se há alguém que venha se preocupando por
aqui em mostrar que a música clássica não é erudita, esse alguém é justamente
Turíbio. Imagine, se considerar o violão um instrumento “erudito”!...
Os ingleses, pessoas extremamente práticas, jamais tiveram dúvidas a
este respeito: música clássica, para eles, é “classical music”, e pronto. Aqui, quando
se fala em “música clássica”, costumam objetar os que têm pruridos semânticos, mas
música clássica não seria só música correspondente ao período do Classicismo
vienense – isto é, a música de Haydn e Mozart?
Esta é, evidentemente, uma noção “erudita”. É preciso ter algum
conhecimento da história da música e da arte para saber que entre o período barroco
e o período romântico houve um período que é o Classicismo propriamente dito”.
Nosso respeitado crítico está coberto de razão, é claro. A denominação de música erudita
parece mesmo ser um preciosismo, e voltarmos à boa e velha expressão “música clássica” talvez fosse
sensato. Porém a solução não é tão simples como parece. Acontece que “clássico” tem uma inevitável
conotação de qualidade. Um “samba clássico”, ou um “choro clássico”, são aqueles que foram consagrados
pelo tempo, e que de certa maneira simbolizam o próprio gênero. “Carinhoso”, por exemplo, é uma peça
clássica, neste sentido. Assim, quando falamos em música clássica, acaba transparecendo certo viés
preconceituoso: é como se as músicas clássicas já nascessem consagradas, já fossem clássicas por sua própria
gênese. E evidentemente isto não é verdade.
Pode-se dizer de Os Planetas, de Gustav Holst, que é um clássico. Mas quantas outras obras
desse compositor atingiram reconhecimento semelhante? O Bolero de Ravel é um outro caso parecido,
consideradas as devidas proporções. Na verdade existe aqui uma ironia: O Bolero atingiu tal notoriedade que
acabou por se tornar “popular”...
Mas a ojeriza de Horta pelo termo “erudito” tem mesmo razão de ser. De certa forma, a
classificação de música como “erudita” com sua óbvia implicação de refinamento, soa como uma espécie de
prêmio de consolação: OK, posso não vender, ninguém ouve o que escrevo, não ganho nada sendo
compositor, mas ao menos tenho da sociedade o reconhecimento pelo alto nível da minha produção...
O que acontece também é que em música popular o que fica na memória das pessoas é
geralmente a obra, mais do que o compositor. Peças adquirem uma espécie de vida própria, que não se alastra
para as outras do mesmo compositor. Quem não conhece Alá-lá-ô? É sem dúvida uma marchinha clássica.
Mas quem é que sabe que seus autores são Haroldo Lobo e Antônio Nássara? Já na música clássica é mais o
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Atualmente editorialista do jornal O Globo.
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nome do compositor que confere certo status às peças por ele compostas. Qualquer um sabe que Beethoven é
um compositor importantíssimo. E assim se aceita, tacitamente, que qualquer peça de Beethoven é um
clássico, indiscutível e bom. Mas Beethoven, além de suas obras fundamentais e inquestionavelmente
excelentes, escreveu uma enorme quantidade de música medíocre e que não merece nem o epíteto de clássica,
nem tampouco o de “popular”, uma vez que se encontra justificadamente esquecida.
A confusão é mesmo grande, e não dá sinais de que vá se desfazer num futuro próximo.
Talvez com a especialização crescente, chegue um dia em que o popular e o clássico estejam definitivamente
separados e perfeitamente etiquetados na cabeça das pessoas. Mas não parece que isso esteja acontecendo, ou
mesmo que seja desejável. Ernesto Nazareth, por exemplo, seria popular? Não de acordo com Aline Oliveira
Martins. Em seu artigo intitulado Tensão e conciliação entre música popular e música de concerto no piano
nacionalista brasileiro a pesquisadora de Tocantins comenta:
“Carioca é considerada obra de difícil execução para pianistas
populares ou amadores, devido à tonalidade de sol sustenido menor e trechos que
utilizam uma técnica específica, evidenciando o problema de estabelecer limites
entre a música de concerto – particularmente o pianismo chopiniano – e a música
popular na obra de Nazareth”.2
E somente para nos atermos ao mesmo círculo de compositores, Chiquinha Gonzaga, autora
do famoso Corta Jaca, e de Ó abre alas (composta em 1899), primeira marcha registrada na história do
carnaval brasileiro, seria erudita? O que dizer de compositores como Francisco Mignone, que durante algum
tempo compôs obras eruditas assinando seu próprio nome, e obras populares com o pseudônimo “Chico
Bororó”: porque teve que assumir um pseudônimo para exercer tal atividade? Por que é que Guerra Peixe, que
escreveu música popular com os pseudônimos de Bob Morel, Jean Kelson e Célio Rocha, mas assinou
inúmeros sambas, boleros (em parceria com Jair Amorim) e até mesmo marchinhas de carnaval (em parceria
com Jararaca) com o próprio nome, é considerado um compositor erudito? Os disquinhos infantis da Série
Carrossel, muitos arranjados ou compostos por compositores importantes como Radamés Gnatalli ou Cláudio
Santoro, que povoaram a infância de tanta gente, se inserem em qual categoria?
As trilhas sonoras compostas para o cinema não são enquadradas como “populares”, mas não
deixam de ser “de consumo”. O compositor austro-húngaro Erich Wolfgang Korngold tem sido cada vez mais
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Na verdade há diversas músicas populares que apresentam tonalidades com muitos acidentes. Apesar de
ser incomum, não nos parece que seja isto que determine o grau de “erudição” de uma peça. Além do mais,
frequentemente músicos populares fazem modulações para outros tons com desenvoltura até mesmo maior do que seus
colegas de formação clássica. .
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dissociado de seu trabalho como compositor de cinema, e suas peças são ouvidas hoje como “música pura”,
sendo nome freqüente nas coletâneas da revista Gramophone, a mais conhecida publicação sobre música de
concerto. O mesmo caminho seguem o húngaro Miklos Rozsa, os italianos Nino Rota e Ennio Morricone,
assim como o grande Bernard Herrmann, compositor favorito de Hitchcock. O argentino Lalo Schifrin (autor
do tema inconfundível de Missão Impossível), cujo disco The Dissection And Reconsruction Of Music From
The Past As Performed By The Inmates Of Lalo Schifrin's Demented Ensemble As A Tribute To The Memory
Of The Marquis De Sade foi um dos maiores sucessos populares da década de 60, misturou cravos, flautas
doces e sonoridades assumidamente barrocas a uma levada jazz-pop. Num desenvolvimento previsível, mas
ainda assim surpreendente, a sisuda e sofisticadíssima revista Fanfare, especializada em crítica de CDs
eruditos, abriu recentemente uma seção permanente de crítica dedicada à música composta para filmes ...de
Bollywood!
Há pouco estreou o filme Café dos Maestros, um documentário sobre Tango, com entrevistas
com a velha guarda sobre a música e seus executantes. É intrigante notar a total ausência de Astor Piazzolla,
cujo nome não é nem ao menos mencionado. Porque sua música não segue exatamente os cânones aplicados
ao gênero?
Mas não é necessário recorrer a exemplos geograficamente tão distantes de nós. Durante
muitos anos o Rio viu o Projeto Aquarius encher de gente a Quinta da Boa Vista e outros lugares igualmente
enormes, para assistirem sinfonias de Tchaikovsky e Mahler. Populares ou clássicas? O projeto Um Piano
pela Estrada, de Arthur Moreira Lima, que adentra o interior do Brasil levando recitais para piano, são
classificáveis em qual modalidade? E a ópera, um divertimento eminentemente popular na Itália, por que
constitui programa elitista no Brasil?
A questão nos remete a um episódio já antigo, mas varrido para debaixo do tapete, e lá
esquecido. Um conhecido flautista foi participar de um congresso da American Flute Association, com uma
comunicação sobre o flautista fluminense pioneiro Pattápio Silva. Escolheu particularmente uma peça, que
consta de uma gravação histórica, na qual o locutor da rádio anunciava, em altos brados algo como: “E agora
ouviremos Pattápio Silva, tocando Variações de flauta”. Pois o nosso pesquisador disse que se alongaria sobre
“uma peça inédita de Pattápio” sobre a qual ninguém havia escrito nada ainda. Falou, falou, falou... até que o
fórum foi aberto para discussões e perguntas. Imediatamente um dos musicólogos americanos presentes
apontou um pequeno detalhe: a peça em questão não era de Pattápio, mas sim do alemão Wilhelm Popp!
Apenas o locutor da gravação antiga havia omitido este fato, e o palestrante/flautista não havia se dado ao
trabalho de pesquisar o assunto a fundo.
Por que mencionamos o caso? Certamente não pelo insólito da situação. Mas sim porque nos
chama a atenção o fato de Pattápio ser às vezes considerado um compositor popular, mas a ninguém ocorreria
classificar Popp desta forma. E, no entanto o estilo de ambos, como se pode deduzir, é semelhante a ponto de
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ser confundível. Peças como Margarida, Zinha, Oriental (sobretudo Oriental!) poderiam perfeitamente ser
ouvidas em qualquer salão de Viena, e em nada desfiam características eminentemente brasileiras. Ainda
assim, não falta quem diga que Pattápio é compositor popular.
Joaquim Callado, autor de Flor Amorosa, conhecido como “pai do Choro”, portanto pioneiro
da música popular instrumental brasileira, foi professor do Conservatório Imperial de Música, e do Liceu de
Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, e nesta sua função era, evidentemente, um músico erudito. Existe uma
história famosa (e questionável), relatada por Iza Queiroz Santos, de um duelo entre Callado e o famosíssimo
flautista belga Reichert, “vencido” pelo flautista brasileiro, em que ambos tocaram a mesma obra,
evidentemente, tendo assim Callado demonstrado que estava ao corrente dos últimos desenvolvimentos de
técnica flautística europeus. Seja ou não apócrifa a história, mostra que Callado gozava de uma reputação
brilhante, que não era “maculada” pelo seu status de músico de Choro.
Fazendo uma pequena digressão: recentemente o grupo Re-Toques fez uma tournée
patrocinada pelo SESC pelo Brasil inteiro, executando apenas obras clássicas contemporâneas brasileiras. De
início, o projeto poderia parecer uma loucura rematada: afinal, estaria o público de Ouricuri ou Pato Branco
preparado para ouvir um compositor moderno? Não faria mais sentido levar obras de Bach ou Vivaldi, mais
acessíveis ao público leigo? Durante as apresentações, porém, pode-se constatar um fenômeno curioso: uma
vez que aquele público de pequenas localidades perdidas no mapa nunca havia tido contato com qualquer
música clássica, também não tinha expectativa alguma a respeito: Johann Sebastian Bach ou Sérgio Roberto
de Oliveira3 (um jovem compositor carioca) são igualmente exóticos para um habitante de Mazagão Novo, e
recebidos com igual isenção e boa-vontade.
Então freqüentemente o problema de engavetar a música como clássica ou popular é
simplesmente uma questão de expectativa. Ou, no seu sentido primeiro, de pré-conceito. As diferenças entre
os dois tipos de música são estabelecidas com base em diversas formulações: no seu grau de sofisticação
estrutural, na especificidade da formação instrumental, por permitirem (ou não) improvisação, pela maior ou
menor liberdade concedida ao intérprete, pelo sucesso (ou não) alcançado, pela intenção inicial do compositor,
pela sua escolaridade ou origem social. São todos critérios muito subjetivos, e insuficientemente abrangentes
em si.
Existem pessoas que definem os dois tipos de música com base em sua simplicidade ou
sofisticação. Porém a teoria de que o popular possui uma estrutura musical simples cai por terra quando
pensamos no Choro e na música popular instrumental em geral, por exemplo – a complexidade de suas
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É interessante observar que em seu site profissional Sergio escancara sua “vida dupla” tendo um link
direcionado exclusivamente para sua carreira na área da música popular!
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melodias e harmonias apresenta dificuldades técnicas até para um músico de formação acadêmica, e portanto
teoricamente com uma técnica bem desenvolvida.
Mesmo quem pensa que a principal diferença entre as estéticas é a improvisação, caminha por
terreno minado. É verdade que a música popular geralmente demanda uma criatividade imediata, uma forma
de erudição que não se aprende na escola. Mas não devemos esquecer que há também espaço para a
improvisação na música denominada “erudita”, como por exemplo, a ornamentação e o uso do baixo contínuo
no barroco e as cadências livres no classicismo.
Outra diferença freqüentemente apontada entre o popular e o clássico é que a música clássica
seria escrita para formações muito específicas, não admitindo “improvisação” no campo das combinações
instrumentais; já as combinações instrumentais das obras populares não costumam ser pré-determinadas. Mas
é claro que se pensarmos nos períodos anteriores a 1760 tal afirmação é totalmente equivocada. Até mesmo
por razões comerciais, obras barrocas geralmente carregam no frontispício indicações do gênero: “para flauta,
flauta-doce, oboé ou violino”.
Mas se existem músicas que não conseguimos facilmente encaixar no paraíso da música
popular ou no inferno da clássica (ou vice-versa, dependendo do ponto de vista), mais intrigante ainda é o
purgatório daquelas que se encontram relegadas a um meio termo. Quando se fala em música de salão (valsas,
polcas, habaneras, etc.) é praxe não a classificarmos como popular, mas também não a consideramos clássica.
Na verdade ela é geralmente vista como uma espécie de música clássica de segunda categoria, assim como a
opereta. Se hoje as valsas de Johann Strauss são vendidas na seção de clássicos das lojas de música, e recebem
suntuosas interpretações de maestros do nível de Harnoncourt (regendo nada mais, nada menos do que a
Orquestra do Concertgebow, uma dos conjuntos “classe A” do mundo!), já houve época em que nenhum
músico clássico de respeito ousaria confessar sua predileção por este repertório, mesmo sob tortura! E nem foi
há tanto tempo assim. O que relega essas peças para o limbo de uma meia-vida?
Uma hipótese muito plausível é a manifestação de certo esnobismo intelectual, infelizmente
bem comum, que valoriza as peças de maneira inversamente proporcional a seu sucesso comercial. Aquilo que
é consumido por uma parcela minúscula da população, que é mais hermético e menos imediatamente acessível
ao ouvido, adquire uma conotação de refinamento, uma chancela de exclusividade que é bem cara aos
intelectuais. Não é a toa que Antonio Vivaldi, o mais “popular” dos compositores barrocos, tenha sido
considerado, durante décadas, um compositor vulgar, repetitivo e desprovido de méritos reais. Sua reabilitação
como “compositor sério” é recente, e muitos melômanos ainda fazem questão de torcer o nariz à simples
menção do nome do Padre ruivo.
Então o que separa o joio do trigo, será uma questão de nível de elaboração? Não mesmo! Se
a gente pensa nas peças de piano do compositor francês Erik Satie, elas são estruturalmente muito mais
simples do que as valsas de Johann Strauss, e no entanto são consideradas “mais clássicas”. As peças para
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piano do francês Charles-Valentin Alkan, verdadeiras jóias em miniatura, que apenas recentemente estão
sendo devidamente apreciadas, são de uma simplicidade absolutamente estarrecedora, de um despojamento
melódico e harmônico total, certamente muito maior do que a sofisticação harmônica de um Tom Jobim. E no
entanto Jobim é certamente popular. Ou não?
No Brasil, a falta de fronteiras claras entre popular e erudita vem de longe. A partir de 1808,
com o aumento da importância do Rio de Janeiro como capital, a cidade passou a adquirir um peso cultural
muito grande e a ditar moda para o resto do país. Músicos do Brasil inteiro, e mesmo do exterior,
encontravam na cidade um ambiente propício para exercer suas profissões, e já em meados do século os
teatros em que se podia ouvir música de bom nível se espalhavam.
Os músicos, assim como na Europa, se desdobravam em múltiplas funções. Estávamos ainda
longe da especialização que vem se tornando uma norma no mundo hoje. Flautistas eram também oboistas,
saxofonistas, clarinetistas, maestros e até mesmo cantores. Como hoje em dia, também corriam de emprego
para emprego, para aumentar seus ganhos. O francês Pierre Laforge, por exemplo, um dos primeiros (senão o
primeiro) a editar música no Brasil, em 1834, além de integrar a Real Capela era membro da Real Câmara, e
tocava na Orquestra de S. Pedro de Alcântara. Nos cafés e ambientes mais descontraídos, a música ocupava
lugar de destaque.
A música popular, como a gente a considera hoje, com uma existência praticamente
autônoma, com seus próprios locais de desenvolvimento – os bares, os cabarés, os teatros de revista – só viria
a constituir um campo de emprego específico já em fins do século XIX. Até lá, os músicos eram
principalmente empregados nas orquestras e nas igrejas, e claro, se dedicavam tanto à música mais “séria”, a
música sacra – quanto aos saraus e à música ligeira, nas casas de espetáculo que começavam a florescer na
capital.
Como não havia ainda registro gravado de música, e a rádio e os discos ainda não eram
correntes, o comércio de partituras para uso doméstico e profissional se expandia e gozava de imensa
popularidade. Quem pensa em partituras, imagina que sejam de peças clássicas, como Polonaises de Chopin.
Afinal, o popular se divulga de ouvido, não precisa de partitura, certo? Errado! Essas partituras, muitas ainda
vivas em coleções e bibliotecas, mostram uma saudável mistura de gêneros e estilos e são calmamente
classificáveis como música popular. Mesmo hoje em dia, os songbooks que vêm sendo editados mundo afora,
inclusive no Brasil, nada mais são do que música popular sendo transcrita em arranjos para violão (com
cifras), piano, ou outro instrumento qualquer em partituras, bem ao estilo de antigamente. O perigoso é que a
aplicação de conceitos às coisas demanda um juízo de valor, afinal toda crítica é uma metalinguagem. Partir
de um determinado ponto de vista, inevitavelmente nos afasta de outros, mesmo que escolhamos os melhores
critérios para formulá-los.
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No Brasil, o termo “popular” apresenta diferentes significados, dependendo da época. Mario
de Andrade, em seu famoso “Ensaio sobre a música brasileira” (1928), o aplica à música “folclórica” – o que
entendemos hoje como “popular”, para ele era depreciado como “popularesco”. A sigla MPB só viria a ser
empregada mais ostensivamente a partir de meados dos anos 1960, como forma de instituir uma “tradição”
musical e promover uma barricada ao Rock e ao Iê-Iê-Iê da Jovem Guarda, que então despontavam com força.
Assim o rótulo MPB passa a ser uma espécie de atestado de qualidade. Hoje se discute de forma acalorada
quem deve ou não pertencer a este panteão; fenômenos como o brega, o pagode, o axé e o funk são postos a
parte desta questão e são os “popularescos” da vez...
Não se pode esquecer também que a função e o status dos gêneros musicais variam muito de
acordo com o país e as tradições culturais reinantes, e o lugar ocupado pela música na vida dos cidadãos de
cada região. Sabemos, por relato de viva voz, que em Fiume, pequena cidade do Norte da Itália, com um
Teatro de Ópera imponente, a ópera era divertimento altamente democrático. E juntamente com a classe
média, que se deleitava com espetáculos trazidos dos grandes centros, operários vestiam sua melhor fatiota e
rumavam nos fins de semana para o Teatro, onde seguiam a ópera da vez acompanhando a partitura, que
todos sabiam ler...
Ocorre também que aquilo que é popular para uma geração pode bem vir a ser o clássico de
uma geração posterior. Claro que trememos só de pensar que a Gaiola das Popozudas poderá um dia vir a ter
status de clássico, mas não podemos descartar totalmente a idéia, por mais que possa parecer absurda! Richard
Shusterman comenta sagazmente o fenômeno:
“A própria história nos mostra claramente que o divertimento popular
de uma cultura (o teatro grego ou mesmo elisabetano, por exemplo) pode tornar-se o
grande clássico de outra época. Na verdade, até mesmo dentro do mesmo período
cultural, uma mesma obra pode funcionar tanto como arte popular quanto como arte
maior, dependendo da maneira com que é interpretada e apropriada pelo público. Na
América do Norte do século XIX, Shakespeare fazia parte do teatro nobre assim
como do vaudeville”.
O próprio público alvo consumidor de música varia muito de época para época. Até antes do
advento do rádio a música era feita para a classe letrada, para as elites. De início, mesmo depois da
disseminação do rádio, quem tinha acesso à música gravada pertencia a uma classe social bastante abastada.
Comprar discos nos primórdios da indústria fonográfica era para poucos. Hoje em dia, porém, com a maior
facilidade de aquisição dos chamados bens culturais e de consumo, a música que tem mais “popularidade” é
feita para o jovem, e é divulgada em dezenas de mídias diferentes, permeando a vida diária de todos. A
música “erudita”, “clássica” ou de “concerto” é vista pelo público comum como algo do passado. Já a música
de compositores vivos, que possui estética além do comum sistema tonal (dó ré mi...), é taxada de
“contemporânea”, para que não seja comparada com a música “velha”. Como analisa com muita propriedade a
jornalista Rosane Martins:
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“O problema em se definir cultura popular está também no fato de
querer segregá-la de outras manifestações, como a “cultura erudita”. Um grave
equívoco, pois cultura é por definição mistura, não existe cultura original.
Adicionado a isso, a partir do momento que as distâncias diminuíram entre cada uma
das comunidades geograficamente isoladas, não se pode mais falar em cultura pura,
não afetada por fatores externos. Toda cultura é híbrida e multifacetada. A
globalização fez diminuir as distâncias de espaço-tempo e acelerou essa verdadeira
mescla cultural”.
Em suma, o risco maior de se tentar criar categorias estanques para entender o fenômeno
musical é que por mais que seja possível aplicar conceitos, os critérios acabam se esgarçando diante da
riqueza e variedade das muitas manifestações sonoras a que chamamos de música. Depois de tantas voltas em
torno do assunto, resta apenas uma conclusão lógica: a fronteira entre o popular e o clássico não é uma linha
definida, mas sim um vasto território, fascinante e ainda não mapeado. Paradoxalmente, quanto mais se tenta
enxergar esta linha, quanto mais a ela se aplica uma lente de aumento, tanto mais ela parece sair do foco.
Talvez esteja na hora de desistirmos de achar uma resposta categórica para a questão, e partirmos para a
formulação de novas e excitantes perguntas.
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Referências Bibliográficas:
HORTA, Luiz Paulo. “Música Clássica? Erudita? De concerto?”. Jornal do Brasil, 26/02/85.
MARTINS, Aline Oliveira. “Tensão e conciliação entre música popular e música de concerto no
piano nacionalista brasileiro”. In: XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Música (ANPPOM). Brasília, 2006.
http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2006/CDROM/POSTERES/11_Pos_
Musicologia/11POS_MusHist_10-224.pdf
MARTINS, Rosane. blog: www.amalgama.blog.br
MIDDLETON, Richard e MANUEL, Peter. Grove Dictionary Online, verbete “Popular Music”.
http://www.oxfordmusiconline.com/public/book/omo_gmo
PEDROSA, Henrique. Música Popular Brasileira Estilizada. Rio de Janeiro: Universidade Santa
Úrsula, 1988
SANTOS, Iza Queiroz. Origem e evolução da música em Portugal e sua influência no Brasil.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942.
SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a Arte: o pensamento pragmatista e a estática popular. São
Paulo: Editora 34, 1998.
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