Unica Zürn, a Alucinada Subtil
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Unica Zürn, a Alucinada Subtil
Leituras / Readings Saúde Mental Mental Health Unica Zürn, a Alucinada Subtil Unica Zürn, the Subtle Hallucinated “As iniciais H.L.M. da empresa parisiense de construção imobiliária são, aos seus olhos, uma saudação, um grande sorriso que lhe enviam. A megalomania, tão agradável, com o sentimento delicioso de já estar no centro de todos os acontecimentos, surge-lhe como um estado de eleição.” Este excerto, que pertence ao livro autobiográfico “O Homem-Jasmim”, foi escrito pela artista surrealista alemã Única Zürn. O sentimento expresso nele pela autora, essa sensação “de estar no centro de todos os acontecimentos”, corresponde à vivência que Klaus Conrad descreveu, no seu livro clássico “A esquizofrenia incipiente”, como sendo a experiência nuclear da denominada fase apofánica da esquizofrenia, a anastrofé, “a vivência que tem o doente esquizofrénico de que tudo gira a sua volta”. O texto de Única Zürn é pródigo em transcrições de conceitos psicopatológicos da esquizofrenia, no entanto, o que torna este livro um testemunho único, é o talento que a autora mostra para transformar a vivência do adoecer psicótico num texto poético de rara beleza. Única Zürn nasceu em Berlim, durante a Primeira Grande Guerra, no bairro residencial de Grunewald, no seio de uma família abastada – o pai era oficial de cavalaria, profissão que abandoFig. 1- Unica Zürn por Man Ray. nou para trabalhar como editor e jornalista. A sua adolescência, que decorreu durante os conturbados anos da República de Weimar, ficou marcada pela separação dos pais. Adrian Gramary Médico Psiquiatra A partir de 1931, e ao longo da era nazi, trabalha na UFA, a maior produtora cinematográfica alemã na altura, primeiro como auxiliar de escritório e depois como argumentista de Centro Hospitalar Conde de Ferreira Rua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Porto e-mail: [email protected] filmes de publicidade. Em 1942, casa com Erich Laupenmühlen, com quem teve dois filhos (Katrin e Christian). Após a separação, em 1949, perde a 48 Leituras / Readings Volume XI Nº2 Março/Abril 2009 custódia dos filhos, e passa a viver como jornalista e escritora, mente do mundo que a frequentando os círculos artísticos de Berlim. Para financiar a rodeia e até de esquecer sua subsistência, escreveu cerca de 140 contos para a impren- a realidade – é isso o que sa diária berlinesa e diversas peças radiofónicas. ela quer.” Após a Segunda Guerra Mundial, em 1953, conhece o pintor e Por intermédio de Bell- fotógrafo surrealista Hans Bellmer (1902-1975), artista inclas- mer, Zürn conhece os sificável, famoso como criador de fetiches surrealistas, graças artistas do círculo surrea- a sua famosa série de bonecas (Poupées). Apaixona-se por lista parisiense: Man Ray, ele e, nesse mesmo ano, o casal parte para Paris. Marcel Duchamp, Max Fig. 3- La poupée de Hans Bellmer. Ernst, Hans Arp e HenFig. 2- Unica Zürn e Bellmer - desenho de Hans Bellmer. ri Michaux. O primeiro deixou-nos dela um famoso retrato fotográfico em escorço. O encontro com Michaux, por quem se diz que esteve apaixonada, será decisivo para a sua obra posterior: ele tornar-se-á, na forma duma relação imaginada e sob as iniciais H.M., no protagonista do livro O Homem-Jasmim. A relação com Bellmer tinha, sem dúvida, muito na linha do transgressor mito surrealista do amour fou, um componente sadomasoquista, que ela teve a coragem de reconhecer: “O meu destino é ser uma vítima eterna”, escreveu. Nesse sentido é inevitável recordar a chocante série de fotografias que Bellmer fez, em 1958 - usando a perfomance própria dos rituais de bondage sadomasoquista - nas quais o corpo de Única Zürn aparece, em diferentes posições, atado com um cordel, Na cidade das luzes, incitada por Bellmer, Única Zürn começa como se fosse um pedaço de carne para assar. “Ela gostava a desenhar e a escrever anagramas, uma espécie de jogo de de experienciar a dor com o prazer”, confessa Zürn num dos palavras, que resulta do rearranjo das letras de uma palavra seus escritos. Bellmer, por sua vez, era um grande perverso ou frase para produzir outras palavras. O anagrama foi uma que, sublimou, como outros artistas, as suas pulsões sádicas das técnicas usadas pelos surrealistas – como a “escrita au- através da arte, mas também foi o seu companheiro, o seu tomática” ou os “cadáveres esquisitos” – para tentar reduzir principal apoio artístico e emocional e o fiel defensor dos seus ao mínimo o efeito das instâncias de controlo e repressão do direitos quando Única, já muito desequilibrada, demonstrava subconsciente. Se as frases representam o mundo organizado não ter capacidade para tratar com os marchantes. Única Zürn e lógico, então a busca de outras frases numa frase significa tinha por ele sentimentos que oscilavam entre a admiração e a a busca de outros mundos atrás do mundo do dia-a-dia. A submissão. Talvez ela se tenha vingado dele no fim, quando em escrita anagramática, assim como a cabala, tornaram-se para 19 de Outubro de 1970, se atirou pela janela do apartamento Zürn quase uma obsessão, com as quais se afastava cada vez de Bellmer em Paris. Ele, paralisado desde há alguns anos, mais do mundo real. Ela própria descreveu este comportamen- nada pôde fazer para evitar o desenlace fatal, e não teve outra to. “Prazer inesgotável o de procurar uma frase dentro doutra escolha senão contemplar impotente o gesto dela desde a sua frase. A concentração e o grande silêncio que este trabalho cadeira de rodas. Bellmer morreu em 1974 e foi enterrado ao exige dão-lhe a oportunidade de poder isolar-se completa- lado de Única no cemitério do Père-Lachaise, sob uma campa 49 Leituras / Readings Saúde Mental Mental Health com uma inscrição onde parece ecoar a história de amor além protecção junto de outras pessoas com quem se relacione, da morte d´O Monte dos Vendavais, romance tão caro para os pois não encontra o afecto necessário na mãe e o pai está surrealistas: “o meu amor seguir-te-á até a Eternidade”. muitas vezes ausente em viagem, limitando-se a digerir sozinha Os primeiros sinais de esquizofrenia surgiram em Zürn em a sua dor. A saída é a fuga para a imaginação: “Com toda a 1957. A partir dessa altura a doença acompanhou-a, em sur- violência tem de se salvar na fantasia para suportar a vida”. tos, até a morte, tendo de ser várias vezes internada em diver- O seu consolo é o amor passivo por um homem adulto, que sas clínicas psiquiátricas: Wittenau, em Berlim; e Sainte-Anne, só conhece de vista da piscina. Quando o seu amor secreto Maisson Blanche, La Chesnai e La Rochelle, em Paris. Durante é descoberto pela família, proíbem-lhe as idas à piscina. Tal os internamentos recebeu inúmeras visitas de Henri Michaux, proibição corta-lhe a derradeira saída. A realidade torna-se- que se encarregava de levar papel para ela desenhar. lhe insuportável sem aquele amor – mesmo que totalmente Os seus desenhos e pinturas, de carácter automático, muito passivo. Desespera-se. “Não o ver mais é para ela a morte”. próximos de alguns desenhos das colecções de Prinzhorn ou Nessa mesma noite, pressagiando o suicídio real que produzir- de Dubuffet, representam, com um traço denso, obsessivo e se-á quarenta e dois anos mais tarde, atira-se pela janela do repetitivo, fantásticas criaturas: quimeras, híbridos de animais, quarto, pondo fim à vida. plantas e humanos, ou seres bizarros reticulados que nos fa- Os seus contos impressionam pela mistura de exibicionismo zem pensar em constelações, animais abissais ou organismos emocional e radical honestidade e pela facilidade com que microscópicos. A sua obra pictórica foi exposta, com prefácio diluem as fronteiras entre o real e o surreal, o sonho e a rea- de Max Ernst na galeria Le Point Cardinale de Paris em 1962 lidade. Mostra predilecção pelo paradoxo, pelo absurdo. As e 1964, mas só se tornaria mais conhecida após a grande histórias, reflectindo a fidelidade pelo mundo da sua infância, exposição retrospectiva realizada na Alemanha em 1998. desenrolam-se na Alemanha da República de Weimar; e em A sua obra literária, em grande parte publicada postumamente, foi criada à margem dos círculos literários, e sem perspectivas de publicação. A par dos contos e folhetins em jornais berlinenses, durante a vida de Zürn só foram publicados o pequeno volume de anagramas Hexentexte (1954) (Textos de Bruxas) e o conto Dunkler Frühling (1969). Nesta última obra (Primavera Sombria), a autora descreve o acordar psico-sexual de uma rapariga. O próprio título do livro torna clara a óptica com que Zürn aborda o tema e o expõe; narra as alegrias e os desejos, mas sobretudo os lados sombrios da sua infância: os medos, a violência sexual e o aparecimento de pulsões masoquistas. “Com toda a força da sua imaginação, chamava ardentemente por um homem selvagem, de instintos assassinos”, lemos nas suas páginas. O texto oferece-nos imagens perturbadoras e violentas, como o episódio em que a protagonista inicia-se na masturbação com uma tesoura; ou aquele sonho em que rodeada por um grupo de homens encapuçados e vestidos de preto, e violada com uma faca que finalmente se transforma na língua de um cão. A narrativa, que tem muito de confissão ou de livro de segredos, inicia-se com as primeiras percepções conscientes da rapariga: a descoberta do próprio corpo e o fascínio pelo sexo oposto, dirigido inicialmente ao pai. No entanto, é molestada sexualmente pelo irmão, mas não tem a possibilidade de se defender contra tal violência ou procurar 50 Fig. 4- Desenho de Unica Zürn. Leituras / Readings Volume XI Nº2 Março/Abril 2009 termos de atmosfera são marcadas por motivos extraídos de nações; volta a deixar o ambiente onde vive e esforça-se por mitos e contos fantásticos, bem como pelo mundo do circo, conseguir uma nova vida independente. Também esta tentativa dos saltimbancos e vagabundos. Os protagonistas são muitas acaba numa clínica psiquiátrica. vezes crianças, a quem, abandonada a realidade do dia-a-dia, O livro tem linhas de contacto com o interesse do surrealismo acontecem coisas maravilhosas. pela loucura e pelas experiências que transcendem, através A sua obra mais conhecida, O Homem-Jasmim, permaneceu de alucinações induzidas, a realidade do dia-a-dia, como inédita durante muito tempo, sendo publicada postumamente, foi a experimentação com drogas (pensemos em Cocteau, primeiro em tradução francesa (Paris, 1971) e depois em ale- Michaux ou Artaud). A alternância de perspectivas interior e mão, em 1977. Até onde nós sabemos, esta é a única obra exterior (vivência e comentário da loucura) cria uma tensão que de Zürn da qual existe uma cuidada tradução em português, se mantém até ao final da narrativa. Esta tensão é suportada publicada pela editora & Etc. Nesta crónica documental e poé- através da excelente manipulação da alternância de planos da tica da sua loucura, Zürn narra o surgimento e a evolução dos realidade e da memória, sonho e alucinação. seus delírios e alucinações, falando de si própria em terceira O seu amigo André Pierre de Mandiargues, que definiu como pessoa, como se se contemplasse de fora. “diabólica” a beleza de Única Zürn, referiu-se a ela como “uma A protagonista encontra em 1957, em Paris, um homem alucinada subtil”. Sabemos que no fim do livro, ela própria que considera a personificação da sua visão de infância do questiona-se se a sua paixão pelo extraordinário e pelo mundo “Homem-Jasmim”. Mantém uma relação imaginária com esse da imaginação não será a causa das frequentes recaídas na homem, sabe-se hipnotizada à distância e segue as suas psicose, como se esta fosse uma válvula de escape ou um instruções. Surgem assim as vivências de influência e as alte- refúgio face à insatisfação provocada pelo mundo real. A sua rações da consciência do eu. Os actos e estados próprios do foi, sem dúvida, uma vida vivida testando os limites, pondo eu são vivenciados não como próprios mas sim como dirigidos a prova continuamente uma frágil estrutura psicoemocional, ou influenciados pelo Homem-Jasmim. “Um magnetizador pendurada em equilíbrio instável na corda bamba entre a maravilhoso, dotado de uma extraordinária força de vontade a perversão e a psicose. hipnotiza, vá ela para onde for. Impõe-lhe a sua vontade e ela nada pode fazer contra isso. Foi assim que cometeu os actos Fig. 5- Capas dos livros de Unica Zürn. mais extravagantes porque ele assim o queria”, podemos ler no livro. Em breve se separa dele. Deixa Paris e viaja para Berlim, sua cidade natal, onde é esperada por amigos. Durante a viagem, e já em Berlim, continuam os delírios, as alucinações, os fenómenos de automatismo mental. Primeiro saboreia o insólito do novo estado em que se encontra. “Se alguém lhe tivesse dito que era preciso ficar louca para ter estas alucinações, sobretudo a última, de bom grado teria aceitado. São a coisa mais espantosa que algum dia lhe foi dado ver.” A narradora faz esta apreciação; a protagonista age consciente de que as suas invulgares experiências são normais. Não se apercebe da Bibliografia: diferença entre as alucinações e o mundo “real”, “parecendolhe absolutamente normal tudo quanto faz, não compreende a Combalía V (2006): Amazonas con pincel. Vida y obra de las grandes súbita cólera dos amigos.” O seu comportamento bizarro (por artistas del siglo XVI al siglo XXI. Destino – Imago Mundi. Barcelona exemplo, atira pela janela os óculos dum homem desconheci- Foster H (2008): Dioses prostéticos. Akal. Madrid do) leva-a por fim ao internamento numa clínica psiquiátrica. Os Zürn U (2000): O Homem-Jasmim. Editora & Etc. Lisboa amigos berlinenses apoiam-na e animam-na durante a estadia Zürn U (2004): El trapecio del destino y otros cuentos. Siruela. Madrid na clínica. Finalmente é libertada, volta para Paris e retoma a Zürn U (2005): Primavera sombría. Siruela. Madrid vida que levava. Mais em breve surgem novos delírios e aluci- Zürn U (2006): El hombre Jazmín. Siruela. Madrid 51