As mulheres na história da fotografia brasileira Autoría
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As mulheres na história da fotografia brasileira Autoría
Mesa temática: Tecnologias del cuerpo, arte y performance Título: As mulheres na história da fotografia brasileira Autoría: Amélia Siegel Corrêa (Doutora em Sociologia/USP; Pós-Doutoranda em Sociologia pela UFPR) Pertenencia institucional : Universidade Federal do Paraná Correo de contacto: [email protected] ; [email protected] As mulheres na história da fotografia brasileira: alguns apontamentos Esta texto apresenta uma reflexão teórica e metodológica sobre o lugar ocupado por mulheres na história da fotografia brasileira. Trata-se de uma pesquisa em andamento iniciada neste ano de 2014, dentro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba. Para tanto, começo pela apresentação de alguns dados quantitativos, e em seguida parto para uma reflexão ancorada na crítica feminista à história da arte, que permite refletir teoricamente sobre os dados apresentados. Por fim, ressaltamos a importância deste tipo de abordagem e de intervenções feministas na história da fotografia1. Fotografia, profissão masculina ? Afim de definir um parâmetro inicial de pesquisa, apresentarei dados quantitativos relativos à presença de mulheres em algumas obras importantes sobre a história da fotografia brasileira e nas principais coleções de fotografia do país. Tais escolhas foram pautadas por um critério de visibilidade, ou de notoriedade, afinal a existência de fontes e registros é indicativo de reconhecimento no campo. Contudo, no caso das mulheres, é importante que a este critério seja somada uma crítica metodológica da seletividade subjacente a estes registros Neste sentido, podemos partir da questão: As mulheres e suas fotografias foram visíveis como deveriam em relação a quantidade e a influencia que tiveram ? No caso norte-americano, por exemplo, as pesquisas sugerem que até pouco tempo, poucos trabalhos haviam sido realizados sobre fotógrafas. Segundo Rosenblum 2, a seleção do que deveria ser lembrado era realizada por homens, e muitas vezes as 1 Parafraseando Griselda Pollock em seu texto “Feminist interventions in the histories of art” In: POLLOCK, Griselda. Vision and Difference. London: Routledge, 2003. 2 ROSENBLUM, Naomi. A history of women photographers. 3ed. Abbeville Press Publishers, 2010. mulheres eram esquecidas, diminuídas, num processo que obscureceu contribuições importantes, e ignorou totalmente aquelas que não tiveram fama. No caso brasileiro, a Coleção Mestres do Século XIX do Instituto Moreira Salles, importante referência para os estudos do periodo oitocentista, é composta por imagens produzidas por estrangeiros que moraram ou que passaram longas temporadas no país, na qual não há nenhuma autoria feminina 3 . Já no Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro4 de Boris Kossoy 5 , que abrange o período entre 1833-1910, apenas quarto mulheres figuram entre centenas de homens. Discursos normativos que vinculavam as mulheres à maternidade, e os valores de época que falavam da crença na inferioridade intelectual feminina podem ter contribuído para estes baixos números. Outro aspecto que pode ter contribuido para a quase inexistência de mulheres é o problema da autoria. Durante séculos às mulheres eram negadas a autoria de produções culturais as mais diversas, desde a música, passando pela literatura e pela pintura. Um exemplo relevante pode ser observado dentro da família real brasileira. Como se sabe, D. Pedro II foi um adepto e incentivador da fotografia desde jovem6, e sua filha, a Princesa Isabel, teve aulas de fotografia com Marc Ferrez e Revert Klumb7. Contudo, não se tem notícia, nem mesmo dentro da coleção que recebeu o seu nome, de fotografias de sua autoria8. Dentre os casos presentes no referido Dicionário está o da fotógrafa Fanny Volk, em Curitiba 9 . Ela que aprendeu a fotografar com a mãe, foi casada com o também imigrante alemão Adolph Volk. Com o marido Fanny trabalhou no estúdio fotográfico até que, em 1904, o casal se divorcia e ele retorna para a Alemanha. Desde então, ela passa a conduzir o estúdio; um caso bastante raro no início do século XX brasileiro. Este caso chama a atenção para uma questão relevante: muitos casais 3 A coleta destas informações foi realizada na sede do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro e também através do site do mesmo: http://ims.com.br/ims/explore/artista/mestres-do-seculo-xix 4 KOSSOY, Boris. Dicionário histórico-fotográfico brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910) São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2002. 5 Boris Kossoy é um fotógrafo, historiador, pesquisador e professor. Um dos maiores estudiosos da história da fotografia brasileira, com diversas obras publicadas, cf.: http://www.boriskossoy.com/ 6 Ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 7 FILGUEIRAS, Carlos A. L. A química na educação da Princesa Isabel. Quím. Nova [online]. 2004, vol.27, n.2, pp. 349-355. 8 As 1200 fotografias pertenciam ao acervo particular de Isabel e do Conde D’Eu, e foram encontrados na Europa pelos pesquisadores Bia e Pedro Corrêa Lago. Ver: Coleção Princesa Izabel – Fotografia do Século XIX”. Rio de Janeiro: Editora Capivara, 2008. 9 Ver: SIMÃO, Giovana. Fanny Paul Volk: Pioneira na fotografia de estudio em Curitiba. Tese de Doutorado em Sociologia, UFPR, 2010. trabalhavam juntos nos estúdios para dar conta de todo o processo fotográfico, mas são transformados pela história em atribuições aos homens. Dados que convidam a pensar o quanto as fontes contribuem para o obscurecimento das trajetórias femininas. Uma aproximação com o caso das artistas acadêmicas brasileiras também pode contribuir para pensarmos na viabilidade das mulheres atuarem no campo da fotografia: as pintoras da época que tentavam ingressar na Academia ou nos Salões eram frequentemente consideradas amadoras, uma forma de julgar as mulheres presentes em diversos textos do período, e que representa uma tradução da crença de uma inferioridade feminina corrente na época, negando-se a elas o pertencimento à categoria artista10. A arte feminina é frequentemente interpretada como uma expressão dos limites do seu sexo; as qualidades universais da arte estariam além do seu alcance11 O período modernista na arte brasileira, que contou com importantes artistas como Tarsila do Amaral e Anita Malfati, teve poucos expoentes femininos na fotografia. Em A fotografia moderna no Brasil12, a única representante do sexo frágil foi a imigrante alemã Gertrudes Altschul. Da mesma forma, a Coleção Fotografia Modernista Brasileira do Banco Itaú, tem 27 homens e 1 mulher. Já o Instituto Moreira Salles, que possui a melhor compilação de fotografias brasileiras das sete primeiras décadas do século XX conta com 8 mulheres (quase todas estrangeiras) dentro de um universo de cerca de 50 profissionais homens. O caso da Coleção Pirelli Masp, criada em 1991 e considerada uma das mais importantes do país, permite pensarmos que, mesmo no final do século XX, a inserção das mulheres era ainda muito inferior àquela dos seus colegas homens. A coleção foi criada com uma intenção ser uma “referencia visual significativa da história da fotografia brasileira”13 que se encontra dentro do acervo de um dos mais importantes museus brasileiros, o Museu de Arte de São Paulo. Ao observar os catálogos de obras premiadas e que fazem parte do acervo, vemos que dos 289 nomes, 52 são mulheres (aproximadamente 20%), o que indica (se compararmos com o final do XIX e começo do XX), um aumento na quantidade de mulheres fotografas com 10 SIMIONI, op cit. 11 FELSKI, Rita. Why feminism doesn’t need an aesthetic (and why it can’t ignore aesthetics) In: FELSKI, Rita. Doing Time: Feminist Theory and Postmodern Culture. New York: NYU Press, 2000. 12 COSTA, Helouise; RODRIGUES, Renato. A fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2004. 13 SOARES, Carolina. Coleção Pirelli-Masp de Fotografia: Fragmentos de uma memória. Dissertacão de Mestrado em Artes, USP, 2010. reconhecimento da crítica especializada. Como se percebe, o critério da visibilidade no século XX nos leva a selecionar, pelo menos nesta fase inicial de pesquisa, artistas “institucionalizadas”. No âmbito da sociologia da arte, há muito se questiona o mito do gênio criador 14 , mas apesar de todo o avanço no sentido de desmitificar e descontruir a noção de gênio e de artista, os autores canônicos sobre o assunto não inserem a categoria gênero em suas reflexões. Logo, é preciso ir além e incorporar às discussões da sociologia e da história social da arte uma perspectiva baseada numa crítica feminista da arte que, já na década de 1970 colocava a pergunta: porque nunca houve grandes mulheres artistas?15 Esta pergunta é possível de ser feita graças a uma crítica política da noção de “sujeitos universais”, predominantes das narrativas tradicionais em história da arte, usualmente centradas na crença do gênio criador, que por sua vez supõe um sujeito masculino e branco. A epistemologia feminista tem contribuído para repensar os cânones da história da arte e, neste caso, mais especificamente da fotografia. Logo, recuperar dados históricos de mulheres artistas ou produtoras culturais precisa ser feito simultaneamente à desconstrução dos discursos e práticas da história da arte. Logo é preciso, de saída, inscrever socialmente aqueles que escrevem a história da arte que é um discurso construído por certos sujeitos em determinados contextos, e são perpassados por categorias de pensamento que guiam suas percepções, com distinções de classe, raça e gênero16. O ponto de vista branco e masculinista foi tido por muito tempo como o único para a história da arte, e mostra-se atualmente insuficiente para contemplar as mais diversas atividades artísticas. É preciso ressaltar, contudo, que ao mesmo tempo em que não acreditamos num sujeito universal que faz a arte – ele tem lugar, gênero, classe, raça - tampouco pensamos que a alma feminina possa estar presente nas imagens de mulheres fotógrafas. Tal ideia esta igualmente baseada em ideais românticos de criatividade ao ver a arte como uma expressão translucida da psique do seu criador. Como coloca Felski, a experiência feminina não pode ser considerada uma categoria universal, e 14 Como se observa, por exemplo, nas seguintes obras: ELIAS, Nobert. Mozart, a sociologia de um gênio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1994; BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo, Cia. das Letras, 2002 e HEINICH, Nathalie. La sociología del arte. 1a ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 2002. 15 NOCLIN, Linda. Why have there been no great women artists ? In: Art and Sexual Politics. 2. Ed. New York, Macmillan Publishing co., 1974. 16 SIMIONI, … op cit. muito menos passível de ser lida, ou de estar visível nas obras de arte. Pensar que a arte reflete uma experiência social é em si mesmo uma crença social17. Outro aspecto que precisa ser considerado é de um certo sexismo institucional do qual fala Pollock, que limita a participação das mulheres no mundo artístico. Também Linda Noclin buscou tratar desta questão, ao perceber como as instituições que formavam artistas tinham diferentes formas de encorajar ou inibir certos grupos de indivíduos. Para além desta variável importante, a marginalidade feminina é também reforçada pela linguagem, vocabulário, e normas de avaliação estética18. No caso das fotografas brasileiras, nota-se a quase inexistência da contribuição das mulheres nas primeiras décadas de difusão da fotografia no país. Elas começam a figurar no cenário a partir de meados dos anos 1960, sendo a maioria delas estrangeiras. Já ao observar o número de mulheres presentes nas principais coleções brasileiras de fotografia, percebe-se que o campo da fotografia permanece pouco aberto à participação das mulheres e sua inserção na profissão. A próxima etapa desta pesquisa buscará analisar as trajetórias destas fotógrafas, tendo em mente que gênero não proporciona uma explicação para a carreira delas e para as motivações de seus trabalhos, e nem dos impactos que tiveram. Mas ao mesmo tempo não é um mero acidente19. É preciso, pois, ao invés de aceitar esta tragédia narrativa da ausência das mulheres na historia da arte, analisar com cuidado as circunstâncias que permitem ou constrangem a criatividade feminina. Compartilhamos, por fim, com as colocações de Pollock sobre a importância do trabalho do feminismo na historia da arte – que vai muito além de “inserir” as mulheres na historia oficial: “A questão é mais ampla: o pensamento feminista confronta todo o campo das historias das praticas artísticas e culturais com suas questões sobre diferença, formulando novas teorias e métodos de análise que permitem reescrever a monocultura ocidental falocêntrica de forma que inclua as historias de mulheres e de outros, para que as próximas gerações herdem um sentido da pluralidade e diversidade de culturas que compõe sociedade.”20 17 FELSKI, ... op cit 18 Idem. 19 Heartney, Eleanor et al. After the Revolution: Women Who Transformed Contemporary Art. Munich: Prestel, 2007. 20 Pollock, op. cit. (tradução minha). Bibliografia BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo, Cia. das Letras, 2002. COSTA, Helouise; RODRIGUES, Renato. A fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2004. ELIAS, Nobert. Mozart, a sociologia de um gênio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1994. FELSKI, Rita. Why feminism doesn’t need an aesthetic (and why it can’t ignore aesthetics) In: FELSKI, Rita. Doing Time: Feminist Theory and Postmodern Culture. New York: NYU Press, 2000. FILGUEIRAS, Carlos A. L. A química na educação da Princesa Isabel. Quím. Nova [online]. 2004, vol.27, n.2, pp. 349-355. HEARTNEY, Eleanor et al. After the Revolution: Women Who Transformed Contemporary Art. Munich ; Prestel, 2007. HEINICH, Nathalie. La sociología del arte. 1a ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 2002. KOSSOY, Boris. Dicionário histórico-fotográfico brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910) São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2002. NOCLIN, Linda. Why have there been no great women artists ? In: Art and Sexual Politics. 2. Ed. New York, Macmillan Publishing co., 1974. POLLOCK, Griselda. Vision and Difference. London: Routledge, 2003. ROSENBLUM, Naomi. A history of women photographers. 3ed. Abbeville Press Publishers, 2010. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. SIMÃO, Giovana. Fanny Paul Volk: Pioneira na fotografia de estudio em Curitiba. Tese de Doutorado em Sociologia, UFPR, 2010. SIMIONI, Ana Paula. Profissão artista. Pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo, Edusp/ Fapesp, 2008. SOARES, Carolina. Coleção Pirelli-Masp de Fotografia: Fragmentos de uma memória. Dissertacão de Mestrado em Artes, USP, 2010.