diálogos sobre os conflitos raciais na narrativa ficcional em da cor

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diálogos sobre os conflitos raciais na narrativa ficcional em da cor
IV SECIRI
SEMINÁRIO DE ESTUDOS CULTURAIS, IDENTIDADES E RELAÇÕES
INTERÉTNICAS
GT 4- Estudos Culturais e possibilidades de pesquisa.
DIÁLOGOS SOBRE OS CONFLITOS RACIAIS NA NARRATIVA FICCIONAL
EM DA COR DO PECADO
LAILA THAISE BATISTA DE OLIVEIRA
DIÁLOGOS SOBRE OS CONFLITOS RACIAIS NA NARRATIVA FICCIONAL
EM DA COR DO PECADO
LAILA THAÍSE BATISTA DE OLIVEIRA
Mestranda no PPGCOM – UFS
[email protected]
O presente artigo pretende analisar de que forma é apresentada a questão racial
na telenovela e a construção da representação da mulher negra na narrativa ficcional da
novela Da Cor do Pecado exibida na emissora Rede Globo no período entre 26 de
janeiro e 28 de agosto no horário das 19h, em 2004, dirigida por Denise Saraceni,
escrita por João Emanuel Carneiro com a colaboração de Angela Carneiro, Vicent
Villari e Vinícius Vianna.
Para realizar a análise serão utilizados enquanto método a análise estrutural da
narrativa, proposta por Roland Barthes (1980) e a análise de conteúdo proposta por
Laurence Bardin (1977). Considerando que “Da Cor do Pecado” foi a primeira novela
global a apresentar uma protagonista negra, interpretada por Taís Araújo, atriz que
também protagonizou a primeira personagem negra em uma telenovela na rede
Manchete, Xica da Silva (1997), traz como plot1 a questão racial, período em que o
racismo ganha notoriedade nas políticas públicas do governo federal, já que em 2002 é
criado o Programa Nacional de Ações Afirmativas.
Para dialogar sobre as questões raciais será utilizado como aporte teórico as
leituras de Kabengele Munanga (1986) e Lilia Shwarcz (1996), e para compreender as
características e a construção das narrativas ficcionais as obras de Renata Palottini
(1998), Imacollata Vassalo Lopes (2009) e Solange Couceiro (2001).
Ao tratar da análise da narrativa ficcional seriada do tipo telenovela, é preciso
identificar quais os recursos narrativos que os objetos escolhidos recorrem para a sua
produção. A interpretação desse código/mensagem pode ocorrer no plano textual e no
plano imagético, levando em consideração diálogos, cenário, figurino, trilhas sonoras e
outros, o recurso de closes, intensidade de aparição, o personagem marcado por um
1
Plot é um termo para designar uma característica da estrutura da telenovela, que segundo Renata
Pallottini(1998) é o enredo, ou seja, o tema que suscita a história da obra.
tema musical, são recursos elementares, são elementos que caracterizam a personagem
em seu contexto social. Nesse caminho deverão ser identificadas as tramas e elucidar as
construções dos personagens.
“A telenovela seria, assim, uma história contada por
meio de imagens televisivas, com diálogo e ação, criando
conflitos provisórios e conflitos definitivos; os conflitos
provisórios vão sendo solucionados e substituídos no decurso da
ação, enquanto os definitivos – os principais – só são resolvidos
no final” (PALLOTTINI, 1998, p.35)
A telenovela Da Cor do Pecado narra a história de uma mulher negra, pobre e
maranhense, Preta de Souza (Taís Araújo), que se apaixona por um homem rico, branco
e do Rio de Janeiro, Paco Lambertini (Reinaldo Gianechini), que rejeita os bens da
família. Paco está noivo de Bárbara (Giovana Antonelli) uma mulher branca que ele não
ama e que é ambiciosa, ele então, resolve se afastar do convívio do pai e da noiva e
viaja ao Maranhão com a finalidade de fazer pesquisas na área da botânica.
Paco é filho de Afonso Lambertini (Lima Duarte), um empresário ambicioso,
viúvo, e que apenas conta com a amizade e a confiança da governanta da mansão,
Germana (Aracy Balabanian) que ajudou na criação do seu único filho, Paco.
A abertura da telenovela também chama a atenção tanto no plano imagético ao
apresentar na região do colo de uma mulher negra o nome “Da Cor do Pecado”
impresso e pensamos na correlação entre pecado, cor negra e a sexualidade da mulher.
Na história do cristianismo a origem do pecado está associado a mulher que seria a
responsável pelas tentações humanas, representada na figura de Eva.
Outro elemento que precisa ser analisado é o nome dado a protagonista. Preta foi
o nome atribuído à personagem, uma moça negra, pobre e nordestina. Nome que
expressa uma categoria etno-racial que representa uma população que historicamente
viveu mais de um século de escravidão, motivada pela exploração da mão de obra
escrava do povo africano. Segundo o Dossiê Mulheres Negras, produzido pelo Ipea em
2013, o nordeste, assim como o norte, são as regiões que tem mais concentração de
mulheres negras em sua população, em 2009 essa proporção chega a 69,9%.
Em um cenário paradisíaco Paco conhece Preta e eles se envolvem durante a
passagem dele pelo Maranhão, Preta filha única de dona Lita (Solange Couto),
engravida de Paco, no mesmo período em que Bárbara engravida do seu amante e
engana a todos dizendo estar grávida de Paco. Bárbara arma um plano para afastar Preta
e Paco, e nesse plano ela envolve Dodô (Jonathan Haagensen), homem negro,
maranhense e ex-namorado de Preta, e o seu amante Kaíke (Tuca Andrada), que fazem
com que Paco acredite que Preta ainda mantem relações com seu ex-namorado. Bárbara
então ocasiona um acidente com Paco em um helicóptero, Paco fugia para que seu pai
não o internasse, convencido por Bárbara, na viagem eles discutem e o helicóptero cai,
Bárbara dá uma pancada em Paco que desmaia e cai no mar, ela se salva.
Para todos os efeitos Paco está morto para todos, no entanto, ele é salvo por
Ullisses Sardinha (Leonardo Brício) que ao descobrir que Paco não é o seu irmão
Apollo que viajava com ele e que em uma briga contra bandidos dentro do barco caiu no
mar, ele se desespera e pede que Paco assuma a identidade de Apollo, Paco aceita, pois
decide não voltar mais para sua família e sua cidade.
O decorrer da trama girará em torno do reconhecimento da família de Paco em
relação ao filho de Preta, em que ela afirma ser filho de Paco, mas sua palavra e
convicção com relação a sua honestidade não serão suficientes para o convencimento do
milionário e pai de Paco, drº Afonso Lambertini, interpretado por Lima Duarte.
A trama continua retratando Preta enquanto a nordestina, negra e pobre no Rio
de Janeiro, que tenta provar a sua honestidade através da recusa de dinheiro, ela
consegue cativar Germana, governanta da família, que ao longo da trama ajuda Preta
provar que Raí é filho de Paco. Germana cria uma relação maternal com Preta, onde em
diversas passagens afirma que sua intuição revela que Preta é uma moça boa e honesta.
Germana é quem irá segurar os ímpetos de Preta, com a finalidade de não permitir que
ela faça enfrentamentos diretos com Drº Afonso Lambertini, convencendo-a que o
empresário é um homem bom, apenas amargurado por conviver com pessoas
interesseiras.
No primeiro capítulo, Paco ao chegar a São Luís (MA) se depara com uma roda
de Tambor de Crioula. É nesse momento que ele vê Preta, personagem de Taís Araújo
pela primeira vez, maravilhado, os dois trocam olhares enquanto Preta dança
sensualmente. A cena é formada por closes dos olhos de Paco e do rosto de Preta, e a
trilha sonora acionada é uma música romântica interpretada pela cantora Cássia Eller
para dar o clima de um possível romance.
O Tambor de Crioula é um elemento fundamental na construção da personagem
Preta nessa narrativa, demarca a importância que Preta dá a tradição de sua cidade, de
alguém que vivencia os traços culturais do seu local.
O Tambor de Crioula tem sua origem no Maranhão, e é uma dança
tradicionalmente feita por mulheres, onde os homens tocam. A roda de mulheres
acontece diante dos três tambores (grande, meião e crivador), em geral está ligada a
festas religiosas ou a pagamentos de promessas, mas seu caráter é festivo e não sagrado,
tem por finalidade a diversão dos participantes. (FERRETI, 2012)
A dança se torna uma característica marcante para apresentar através da
narrativa um povo alegre, onde a dança é apresentada enquanto uma característica nata
da mulher negra maranhense, e o orgulho de valorizar a dança enquanto elemento de
uma identidade coletiva.
A valorização desses traços culturais e históricos do povo negro é enfatizado nas
primeiras cenas, o resgate da sua herança sócio-cultural é a negritude. (MUNANGA,
1986)
Mas a sensualidade também é explorada na cena, retomando o estereótipo da
mulata brasileira, tão exaltado pela cultura nacional e exportado por todo o mundo,
responsável por uma imagem hiperssexualizada da mulher negra.
“A constelação brasileira de estereótipos inclui também
a “mulata sexy” o produto presumivelmente lascivo e sensual
da mistura racial, perturbadora da paz erótica. De acordo com as
mitologias reinantes, a adoração da mulata pode ser remontada
à idolatria portuguesa pelas princesas mouras de pele
escura”(STAM, 2008, p.459)
O biólogo pergunta a um morador local onde ele pode encontrar uma feira de
ervas natural o morador responde que é no Centro Histórico. O Centro Histórico de uma
cidade não é apenas um espaço, mas carrega em si a memória de uma população que
através daquele espaço subsistiu com o comércio informal. Desde a venda de alimentos,
de ervas medicinais, do artesanato, como também é ocupado para o lazer do povo
através da prática de suas tradições, como os jogos de capoeira, as danças como o
próprio Tambor de Crioula e outras. É um espaço onde possibilita notar o recorte social
e racial daqueles que frequentam.
O estado do Maranhão não foi escolhido à toa para ser o cenário do contexto
social vivido por Preta de Souza, tendo em vista que de uma população com 6.200,000
habitantes, 74,3% dessa população é negra, segundo o PNAD (2005).
Acompanhado de sua câmara fotográfica, Paco vai conhecendo os artesanatos, a
comida típica até parar na barraca de ervas, e ser atendido por Preta (trilha sonora
acionada), dessa vez sem a saia rodada que foi substituída por uma saia longa e justa e
um top de crochê laranja.
O contraste entre o turista branco e as roupas da vendedora de ervas, que trazem
elementos da tradição de um povo como o crochê e o uso de cores vibrantes.
Ela começa a tentar adivinhar qual é o problema de saúde dele para a busca de
ervas, e demonstra toda a sua simplicidade com as palavras. Ele se apresenta e explica
que está fazendo uma pesquisa sobre ervas medicinais na cultura popular e gostaria de
conversar com ela, oferece dinheiro em troca e ela se ofende.
Nessa cena é apresentada a dicotomia entre o conhecimento das ervas medicinais
adquirido através de uma tradição familiar, representado por Preta, e o conhecimento
científico, representado por Paco, que é um botânico desenvolvendo sua pesquisa, o
reconhecimento da ciência medicinal se sobrepõe ao do conhecimento popular do uso
das ervas medicinais.
Paco: Cinquenta reais está legal? Mas pode ficar tranquila que é só pra conversar
mesmo.
Preta: Pode guardar os seus R$50,00, eu converso de graça e com quem eu
quero, se fosse educado combinava de conversar comigo depois do trabalho.
Ele retoma a confiança dela ao ajudar seus amigos feirantes a fugir da
fiscalização, logo eles saem para conversar, se reaproximam, e quase se beijam quando
Bárbara liga e ele atende, ao desligar notou que Preta foi embora. No dia seguinte ele
volta a procura-la na barraca de ervas e ela o surpreende, eles retomam a conversa.
O diálogo travado na cena já aponta para o „problema‟ que a novela pretende
abordar, e será o motivador do chamado por Pallottini (1998) de conflito definitivo da
trama, que é o racismo, o racismo velado.
Preta: Veja só se eu não tenho razão, um rapaz bonito como você que veio lá do
sul, deve ser de boa família, deve ter uma namorada, não tem? Então, vai querer o quê
comigo? A gente não tem futuro, melhor ficar só na lembrança.
Paco: Você é muito preconceituosa sabia? Quem sabe o que eu quero e o que eu
não quero sou eu.
No diálogo é apresentada a desconfiança de Preta que entende que a sua
condição social e consequentemente a sua raça é inferior em relação às mulheres
brancas e ricas, essa leitura do mundo dele feita por ela é constatada ao dizer que ele é
de “boa família”, e em seguida concluir que eles dois juntos “não tem futuro”. Mas ela é
questionada por ele de forma contundente, como se fosse um insulto. A intelectual e
ativista feminista negra Lélia Gonzales, que teve uma intensa atuação na produção sobre
trajetórias e vivências de mulheres negras sobre uma perspectiva feminista no Brasil
pontua:
“Como todo mito, o da democracia racial oculta
algo para além daquilo que mostra. Numa primeira
aproximação, constatamos que exerce sua violência
simbólica de maneira especial sobre a mulher negra.
Pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre
no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se
transfigura na empregada doméstica. É por aí que a
culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se
exerce com fortes cargas de agressividade. É por aí
também que se constata que os termos mulata e
doméstica são atribuições de um mesmo sujeito”
(GONZALES, 1984, p. 228).
Assim, fica claro que a desconfiança da personagem em relação ao interesse
afetivo de um homem branco tem origem no histórico do racismo velado ainda tão
presente na sociedade brasileira, e problematizado na novela.
A telenovela então cumpre o seu papel de narrar os dramas vivenciados pela
sociedade a partir da vida privada, se consagrando como a narrativa da nação brasileira,
ela tem o potencial de pautar as temáticas debatidas no País (LOPES, 2009) O ambiente
das telenovelas é a relação familiar, as tramas e enredos giram em torno de um núcleo
familiar, e a produção é consumida em sua maioria pelas famílias brasileiras. “A TV e o
rádio cobrem 98% do território brasileiro, levando informações, entretenimento, valores
éticos e políticos aos mais distantes recantos do país” (OROFINO, 2005, p. 40)
Preta apresenta as praias do Maranhão para Paco, e lá eles vivem intensamente
um romance, adormecem e acordam na praia fazendo promessas de amor. A cena revela
a importância da cena externa para determinadas tramas, Preta, conhecedora da sua
cidade, leva Paco para desbravar as praias e os lugares de belezas naturais da cidade a
pé, revelando o espírito de aventura e a simplicidade da protagonista, reforçando que “a
história traz o personagem que traz o seu entorno” (Pallottini, 1998, p.97)
Figura 1.
A novela não só inovava com a primeira protagonista negra em uma novela
global, e com um casal inter-racial como casal principal, mas apresentava cenas
sensuais e de beijos. Anteriormente na história das telenovelas globais já houveram
outros casais inter-raciais, fator que sempre gerou polêmica na sociedade, mas que
nunca ocuparam o papel de protagonista.
“A telenovela é, pois, narrativa que veicula
representações da sociedade brasileira, nela são atualizadas
crenças e valores que constituem o imaginário dessa sociedade.
Ao persistir retratando o negro como subalterno, a telenovela
traz, para o mundo da ficção, um aspecto da realidade da
situação social da população negra, também revela um
imaginário, um universo simbólico que não modernizou as
relações interétnicas na nossa sociedade” (COUCEIRO, 2001,
p.98).
Já na segunda fase da novela, após o desaparecimento de Paco, Preta decide
procurar a família do seu filho com Paco, ao encontrar com o Drº Afonso, pai de Paco,
esse mostra desconfiança e rejeição a Preta e seu filho Raí, ele não acredita que seu
filho primogênito se envolveria com uma mulher negra do Maranhão. O estigma que
recai sobre a mulher negra é revivido nesse conflito, a não confiabilidade, a associação
Durante o decorrer dos capítulos eles conflituam, e Preta segue na tentativa de provar
sua honestidade e cativá-lo. Apesar de toda a desconfiança, Drº Afonso se afeiçoa ao
personagem Raí, que por diversas vezes é chamado por Bárbara de „mulatinho‟, e até
antes de cativar Afonso também era chamado nesses termos. É Raí que irá mediar esse
processo de aceitação entre Drº Afonso e Preta, ele que é resultado da miscigenação
entre uma mulher negra e um homem branco, é a possível solução para o racismo
internalizado de Afonso.
Figura 2.
Na figura 2, cena em que Preta pede para Afonso para morar na cabana que foi
de Paco, fica evidente a afeição de Afonso por Raí, o menino é o símbolo da democracia
racial, é a ferramenta para apaziguar as relações de conflitos raciais existentes, e com a
solução que é peculiar a novela, através do amor, então é através dele que será resolvida
a questão racial. A telenovela tem “caráter, sobretudo maniqueísta que enfatiza as
soluções dadas pela emoção e que vê o ser humano como alguém que traz em si os
componentes do bem e do mal que o irão definir” (PALLOTTINI, 1998, p. 56)
Como isso a telenovela individualiza um problema social, e a resposta para tais
conflitos é apresentada na mediação feita por Raí, filho de Preta, que começa a ser
educado nos moldes de uma família burguesa, aprendendo xadrez, duas línguas, o uso e
tipos de talheres nas refeições, e paralelamente, vai induzindo a mãe a se inserir nessa
nova vivência, Preta é convencida a falar mais baixo e a ir se comportando dentro dos
padrões aceitáveis de sociabilidade no espaço de uma família branca e burguesa.
Esse branqueamento do negro/negra foi tido como um melhoramento da raça no
período pós-escravagista, um mecanismo de afastar o estigma que carrega a negritude.
Esse mecanismo é utilizado na telenovela como solução para o racismo sofrido por
Preta através do abandono de elementos vivenciados por ela no Maranhão.
“O indivíduo pode ser azul, moreno, mulatinho, moreno
claro, roxo, vede até, ou seja, invoca-se uma quantidade enorme
de nuanças para permitir a diferenciação. Em uma sociedade em
que há apenas um século ser negro era ser escravo, e que
embora se soubesse que existiam diferenças étnicas, todos os
negros eram agrupados como africanos porque eram escravos,
aí, evidentemente, ser branco é um valor; branquear-se é um
valor, não ser negro é um valor” (SHWARCZ, 1996, p.59)
É objeto de preocupação quando a telenovela, como já foi reforçado por
Vassallo (2009) que representa a narrativa da nação e pauta as questões discutidas na
agenda do dia, media o debate sobre o racismo e as questões raciais balizando o seu
diagnóstico não como uma questão social e sim pessoal, como é o exemplo do
personagem Afonso Lambertini, interpretado por Lima Duarte, onde a raiz do seu
racismo não está na sua construção social e nem vinculada ao histórico de escravidão
pelo qual o país passou, é apresentada como se sua origem estivesse na ausência de
amor e na aproximação de pessoas ambiciosas
Essa ausência de amor é suprida com a chegada de Raí, a representação da
criança mulata que irá mediar os conflitos raciais entre negros e brancos apresentando
como solução para uma convivência inter-racial pacífica: o amor, a miscigenação e a
absorção de um modelo de vida da família branca, sudestina e rica. Apesar de Raí
também trazer conflitos e disputas com relação à herança, ele também simboliza a
miscigenação e a possibilidade de união das raças.
“E a partir da idéia de um povo misturado desde os
primórdios, foi elaborado, lenta e progressivamente, o mito de
democracia racial. Somos um povo misturando, portanto
miscigenado; e, acima de tudo, é a diversidade biológica e
cultural que dificultaria a nossa união e o nosso projeto
enquanto nação e povo. Somos uma democracia racial porque a
mistura gerou um povo que está acima de tudo, acima das
suspeitas raciais e étnicas, um povo sem barreiras e sem
preconceitos. Trata-se realmente de um mito, pois a mistura não
produziu a declarada democracia racial, como demostrado pelas
inúmeras desigualdades sociais e raciais que o próprio mito
ajuda a dissimular – dificultando, aliás, até a formação da
consciência e da identidade política dos membros dos grupos
oprimidos” (MUNANGA, 1996, p. 216 apud SHWARCZ,
1996).
No centro do conflito da trama está a relação estabelecida entre as personagens
Preta (Taís Araújo) e Bárbara (Giovana Antonelli). A primeira é a protagonista da
trama, e a segunda a antagonista, e os conflitos estabelecidos entre elas serão marcados
pela questão racial, o binarismo marca bem os personagens negra/branca, pobre/rica,
simples/ambiciosa, formação escolar incompleta/formação superior completa. Bárbara
enxerga em Preta uma ameaça, primeiro na relação com Paco e depois devido a fortuna
de Drº Afonso Lambertini (Lima Duarte), já que Bárbara sabe que Raí é realmente filho
de Paco.
Diante disso, a antagonista que é representada por uma mulher branca, classe
média alta, sofisticada dentro dos padrões estabelecidos na sociedade, criará diversas
armadilhas para que Preta seja sempre vista como mentirosa, dissimulada,
descontrolada, ou seja, alguém em que não e deve confiar. Para isso Bárbara utiliza o
problema racial a favor dela, mulher branca que está acima de qualquer suspeita,
diferente de Preta que seus hábitos e características não são bem recebidos nesse meio
social.
Ao descobrir o hospital onde Bárbara estava internada após tramar contra Preta e
Paco, Preta vai ao hospital conversar com Bárbara e a acusa de assassinato. Bárbara
responde a acusação da seguinte forma “seu é que ele não vai ser, ele não é para o seu
bico neguinha”. Preta responde a provocação agredindo Bárbara e é retirada pelos
enfermeiros.
Bárbara sabe que ao acionar a raça na discussão com Preta, vai ofendê-la a ponto
de fazer com que ela perca o controle e queira resolver o problema numa briga física,
fazendo parecer que ela não é „civilizada‟, e que isso é uma característica da população
negra.
No capítulo 40, momento em que Preta já está no Rio de Janeiro com Raí, e é
convidada a estar presente na festa de Afonso Lambertini, se sente incomodada e
insegura mesmo estando com Felipe (Rocco Pitanga), em relação a como os convidados
da festa irão olhar para ela e trata-la, com medo de que Bárbara apronte alguma situação
constrangedora para ela. Mesmo tomando todas as cautelas para evitar o confronto com
Bárbara, ele acontece.
Bárbara: Não fica com medo não, esse vestido está enganando muito bem, vou te
dar uma dica, você fica quietinha, procura não chamar atenção, a festa está cheia, as
pessoas estão distraídas, é bem capaz de elas não perceberem que você não é do nosso
nível.
Preta: Dá o fora Bárbara
Bárbara: Esse lugar aqui não é para você neguinha, você e seu filho são uma
grande piada para todos nós, são duas atrações, aberrações de circo.
Após as inúmeras provocações que Preta recebeu de Bárbara, ela simula uma
reação agressiva, mas logo é contida com a chegada de Afonso na sala, ela sai de cena e
Afonso questiona o que está havendo entre elas duas.
Bárbara fala com Afonso “o senhor não podia ter esperado sair o resultado do
exame para convidar essa crioula para sua casa?”.
Essa sequência de diálogos demarca bem a forma como os conflitos acontecem
durante toda a novela, a questão racial é acionada a todo momento por Bárbara, que
entende que ao ofender Preta se utilizando dos mecanismos do racismo, consegue
provoca-la, e reforça para Preta uma suposta inferioridade diante dos demais,
demarcando que ela não será reconhecida socialmente porque os negros e negras
também não são.
Essa forma de discutir a questão racial nas relações remete ao período em que os
cientistas e teóricos que produziam sobre a história dos povos no Brasil justificavam as
diferenças através de argumentos que fortaleciam o racismo.
“Para E. Renan (1823-92) existiriam três grandes raças
– branca, negra e amarela – específicas em sua origem e
desenvolvimento. Segundo esse autor, os grupos negros,
amarelos e miscigenados “seriam povos inferiores não por
serem incivilizados, mas por serem incivilizáveis, não
perfectíveis e não suscetíveis ao progresso”(Renan,
1872/1961)” (SHWARCZ, 1993, p.82)
Bárbara é a personificação de um racismo justificado socialmente, é um racismo
que não é velado, mas que o diagnóstico do enredo para o racismo de Bárbara é a falta
de ética e de moral, e essa falta foi gerada pela ausência do amor e da atenção dos pais
na criação de Bárbara, que a fez se tornar uma mulher ambiciosa e vil, dessa forma,
mesmo com toda a relevância de se trazer a temática racial para a agenda do dia, ao
final o que se conclui é que o racismo só vai partir de pessoas que são más. A reflexão
que é importante também ser feita é a garantia que é dada a Bárbara para que ela
produza tantas ofensas a Preta sem nunca ser indagada por isso é o conceito de
branquidade, onde o „ser branco‟ torna o sujeito livre de qualquer julgamento, o torna
neutro. Piza (2002:72 apud Barbosa 2008:59) reflete sobre a questão da branquidade da
seguinte forma:
“Ao grupo de descendentes de asiáticos – japoneses,
chineses, coreanos – os que são chamados a responder pelo
estereótipo da inteligência e do sucesso profissional. Se um
falha, alguém vai se lembrar de que os “japoneses são
superinteligentes e bem sucedidos. Então por que você falhou?”
Mas, se uma pessoa estiver estacionando um carro em lugar
proibido, alguém pode lembrar que “só negros fariam isso!”.
Entretanto, entre brancos, falhar nas expectativas que se
formam em torno de alguém ou cometer uma infração de
trânsito levará um palavrão pelas costas, que poderá no máximo
ofender a mãe preposta para estas ocasiões, mas jamais o
conjunto dos brancos, o grupo racial ao qual pertence. A
expectativa para os três sujeitos é determinada pela sua
racialidade, mas apenas dois são racializados – o japonês e o
negro. O branco preserva a sua individualidade”.
A citação acima reflete de que forma é construída a neutralidade de Bárbara diante dos
demais personagens, a sua branquidade lhe garante o conforto da confiança e
honestidade que estão subentendidos na cor, e que permite que ela possa julgar qualquer
outro personagem que não pertença ao seu grupo racial.
Referências:
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