O outro que não existe, existe?
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O outro que não existe, existe?
Latusa Digital – ano 3 – Nº 25 – novembro de 2006 O Outro que não existe, existe? (a psiquiatria, a psicanálise e o declínio do pai) Adriano Amaral de Aguiar* Tem sido discutido no Campo Freudiano como as novas configurações da subjetividade incidem na prática e na teoria da psicanálise. A globalização, na nossa perspectiva, é marcada pelo declínio generalizado da função paterna sendo denominada por Jacques-Alain Miller e Éric Laurent como a época do Outro que não existe1. Mas se trataria realmente de uma inexistência do Outro na época atual? Ou Miller e Laurent nos apontam antes as coordenadas estruturais de uma época em que assistimos à materialização de um outro Outro? Gostaria de tentar responder a essa questão, analisando algumas transformações culturais decisivas para a constituição da subjetividade contemporânea e as disjunções encontradas entre psiquiatria e psicanálise frente ao declínio da função paterna. O Inconsciente é a política Em seu Curso de Orientação Lacaniana (2001-02), Jacques-Alain Miller desenvolve um aforisma de Lacan encontrado no Seminário “A lógica da fantasia” que diz: “Não digo mesmo ‘a política é o inconsciente’ mas simplesmente ‘o inconsciente é a política’”. Para Miller a definição “o * Psiquiatra, ex-aluno do ICP-RJ, coordenador da residência em psiquiatria do CPRJ - Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro. 1 MILLER, J.-A., Laurent, É. (colaboração) El Outro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005. 1 inconsciente é a política” constitui um desdobramento da definição inicial de Lacan segundo a qual “o inconsciente é o discurso do Outro”. Dizer que o inconsciente é a política é levar até as últimas conseqüências o que Freud descobre na sua análise do Witz, a saber, a “formação do inconsciente como processo social”.2 Segundo Miller, com essa definição Lacan amplia e amplifica o conceito de inconsciente, transportando-o para além da esfera exclusivamente individual e familiar para colocá-lo na polis, na cidade, fazendo-o depender da História. Sendo assim, Miller pôde afirmar que o que chamamos de globalização é uma estrutura social que difere daquela do tempo de Freud. Segundo Miller, o nascimento da psicanálise é ele mesmo um efeito da estrutura social do final do século XIX até meados do século XX, caracterizada por Michel Foucault pela noção de sociedade disciplinar, uma estrutura social caracterizada pela imposição de interditos potentes, especialmente sobre a sexualidade, e organizada pela hierarquia e pela onipresença da função paterna.3 O Outro disciplinar As sociedades disciplinares, situadas por Foucault nos séculos XVIII e XIX e atingindo seu apogeu no início do século XX, se caracterizaram por estarem organizadas em grandes meios de confinamento: prisão, hospital, fábrica, escola, família. A rígida demarcação do espaço que caracteriza a estrutura disciplinar não se reflete apenas na arquitetura panóptica de suas instituições, mas também no modo como o espaço subjetivo é experimentado. “A cada indivíduo seu lugar”, diz Foucault, a disciplina opera sobre os indivíduos delimitando as fronteiras que o comportamento de cada um deve respeitar4. O lugar da criança em relação aos pais, o lugar da esposa frente ao marido, da mãe para com os filhos, da mulher perante a sociedade, dos alunos para com 2 MILLER, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana (2001-2002), Le désenchantement de la psychanalyse. Inédito. 3 Idem, ibidem. 4 FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Ed. Vozes, 1987. 2 os professores, do empregado frente ao patrão e a obediência incondicional ao pai, ou àquele que, em cada instituição, venha a ocupar esse lugar. Todos os espaços físicos e subjetivos devem ser demarcados, classificados, ordenados e controlados para que nada fique no interstício, daí a importância da sanção normalizadora, que faz do exame uma técnica central do poder disciplinar, garantindo sua estrutura hierárquica. A função que a psiquiatria historicamente assumiu na constituição das sociedades disciplinares é bastante conhecida, desde o famoso livro de Foucault sobre a história da loucura5. Cabia à psiquiatria justamente essa função de normalização da diferença (nada no interstício) na sociedade e de exclusão da desrazão no interior da instituição disciplinar por excelência, o manicômio. Cabe aqui apontar já uma primeira disjunção entre psiquiatria e psicanálise. Enquanto o surgimento da primeira é contemporâneo e correlato ao nascimento da sociedade disciplinar, a segunda aparece para dar conta do mal-estar gerado por esta estrutura social e já é um prenúncio do seu declínio. A recusa à disciplina Os acontecimentos de maio de 1968 marcam uma certa virada na cultura do século XX. Havia a partir dali uma recusa generalizada a tudo o que caracterizava a sociedade disciplinar. As instituições, a hierarquia, os lugares pré-definidos para cada sujeito na organização social estavam todos sendo colocados em questão. Nenhuma descrição poderia retratar tão bem o espírito do momento quanto a palavra de ordem inscrita nos muros de Paris: “É proibido proibir”. Era a função paterna que estava em questão. Segundo Robert Castel, maio de 68 e os anos que se seguiram foram marcados pelo deslocamento da política para o plano da vida cotidiana, fazendo emergir certa superposição entre revolução pessoal e revolução 5 FOUCAULT, M. A história da loucura na idade clássica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995. 3 social6. Agora, a liberação do sujeito e a libertação das massas faziam parte de um só e mesmo combate. A militância política se voltava então para alvos mais delimitados, onde houvesse certa base de implicação pessoal direta. As assim chamadas “lutas setoriais” deslocaram o foco do combate político para novos setores institucionais – hospitais, prisões, instituições pedagógicas – e também para o próprio sujeito da liberação, dando origem às lutas contra as opressões cotidianas, as lutas das minorias sexuais, raciais, o feminismo, a liberação sexual, etc. O combate revolucionário passava agora necessariamente pela liberação do sujeito. Nesse contexto marcado por um imaginário político de liberação e vivido na época como uma recusa generalizada à repressão, a crítica à psiquiatria desfrutava de certo interesse especial, não só pelo horror às suas instituições, mas também porque o que era reprimido pela psiquiatria era a própria loucura que, nas versões mais idealizadas, era tomada muitas vezes como portadora de certa verdade misteriosa sobre a existência, sempre reprimida pela pressão social que a degradava em doença mental. A psicanálise, por sua vez, contribuiu para esse movimento de liberação e de deslocamento da política para o plano da vida cotidiana, na medida em que difundiu na sociedade a idéia de que as neuroses e o mal-estar na cultura eram decorrentes da repressão imposta à sexualidade, em virtude dos valores e costumes morais que tradicionalmente sustentaram a civilização através de suas instituições. Como diz Miller a psicanálise mudou o mundo. Não o fez por meio de uma influência direta sobre a política propriamente dita (partidos, sindicatos, etc.), mas pela via de uma transformação dos costumes e dos valores morais7. Algo do recalque foi levantado em escala social, pois a psicanálise, ao se difundir, promoveu na sociedade “o reconhecimento e a aceitação da ‘carne’, isto é, a necessidade de satisfação das pulsões, na falta 6 CASTEL, R. A gestão dos riscos. Da anti-psiquiatria à pós-psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1987. 7 MILLER, J.-A. “Lacan e a política”. Em: Opção Lacaniana, n° 40. São Paulo: Eolia, agosto 2004. 4 do que o resultado é mal-estar, neurose, sintoma”8. A apropriação que o capitalismo fará dessa “liberação”, para fazer dela uma biopolítica, é algo que deve nos interessar se quisermos compreender os dias de hoje.9 Do “sonho acabou” aos “sonhos vendidos” A difusão social do marxismo e da psicanálise no final dos anos 60 fazia acreditar que se revolucionaria, num mesmo movimento, o modelo políticoeconômico e os costumes, fazendo do Estado e suas instituições os principais focos nos quais se deveria combater o poder e a repressão impostos aos sujeitos pela tradição e pela hierarquia. Na época, uma aliança marxismopsicanálise parecia mesmo “natural”, já que o capitalismo industrial funcionava ancorado na hierarquia, na tradição, na disciplina e na repressão, produzindo uma certa ortopedia, uma “anátomo-política dos corpos”, como dizia Foucault 10 . No entanto, o que não se podia perceber ainda é que o capitalismo, para funcionar, não depende de nenhuma transcendência, ou seja, de nenhum vínculo com o Estado e da sua lógica de governo disciplinar, nem com a Igreja Católica e da sua moral sexual repressiva. Muito pelo contrário, a lógica de funcionamento do capitalismo só depende de uma lei – que tudo possa e deva ser trocado por dinheiro. Trata-se de uma lei que, diferentemente da lei veiculada pelo Nome-do-Pai, não é transcendente nem interdita, sendo ao contrário, imanente e propulsiva, funcionando muito mais intensamente em um ambiente de liberação, num neoliberalismo sem barreiras e sem interdições, num espaço liso e sem atritos como disse Bill Gates. Por isso Deleuze e Guattari insistiram tanto nesse caráter de fluidez absoluta que aproxima capitalismo e esquizofrenia.11 8 Idem, ibidem. 9 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999. 10 Idem, ibidem. 11 DELEUZE, G. & Guattari, F. O antiédipo. Lisboa: Ed. Assírio e Alvin, 1996. 5 O capitalismo foi, assim, capaz de se renovar pegando carona no movimento de liberação sexual e de contestação à hierarquia, se desfazendo das amarras que tinha com o Estado e com a tradição. Se, num primeiro momento, o cabelo comprido dos Beatles foi um significante que colocava em questão toda a moral tradicional, no modo mesmo em que esta se encarnava na própria estética coletiva dos corpos, em um segundo momento, o cabelo comprido é vendido como um modelo para todos, um meio inédito encontrado pelo capitalismo para vender uma nova estética da existência e transformar em produto até mesmo o semblante de anticapitalista. Talvez por isso o próprio John Lennon tenha sido um dos primeiros a anunciar: “o sonho acabou”. De fato o sonho acabou tão rápido que já na década seguinte, Cazuza emprestava voz à sua geração pedindo uma ideologia para viver, com seus heróis mortos de overdose e os sonhos todos vendidos. Nos anos 80 os hippies deram lugar aos yuppies, e a subjetividade liberada logo se encontrava sem confrontação, se transfigurando num potencial psicológico que não tinha outro objetivo a não ser a sua própria cultura. A sociedade inteira se reestruturou segundo a lógica da moda, da sedução e da renovação permanente, instaurando o reinado do efêmero e a cultura hedonista típica do nosso tempo12. A normatividade social passou a se impor não mais pela disciplina, mas pelo modelo da escolha e do espetáculo. Hoje é uma mais-valia de gozo ou de eficiência que procuramos extrair não tanto das nossas profundezas, mas da superfície corporal sempre conectada aos gadgets e às drogas inventadas pela aliança do capitalismo com a ciência. De um outro Outro Vivemos assim uma época em que o real do gozo predomina sobre o ideal, como previu Lacan em “Radiofonia”, sensível às mudanças por vir. O Nome-doPai entra em declínio e vemos a ascensão do objeto a ao zênite social. O 12 LYPOVETSKY, G. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004 6 esfacelamento dessa função de exceção que constituía o Nome-do-Pai implica numa transformação da estrutura do Outro social. Freud, em “Totem e tabu”, caracteriza a estrutura do Outro social a partir de uma exceção fundadora (o assassinato do pai da horda primitiva) que constitui esse Outro como um todo limitado, uma sociedade de irmãos regida pela lei da interdição do incesto. A lei, sempre referida ao pai morto, constitui o Outro como um conjunto, como um Outro Todo. Esse Outro Todo não é, no entanto, todo-poderoso e sem limites, trata-se pelo contrário, de um Outro limitado e delimitado, porque furado pela exceção. A função do pai é esse elemento suplementar antinômico que faz limite e que constitui um todo, organizado e estável. Essa estrutura é a matriz da hierarquia, tão característica da sociedade disciplinar.13 A globalização, por sua vez, é um processo que coloca todas as estruturas hierárquicas em questão. Vemos todos os dias o respeito às hierarquias e à tradição ceder em nome do novo. No Seminário 20: Mais, ainda, Lacan retoma a lógica freudiana da exceção em “Totem e tabu”, para dar conta do gozo feminino, mas subverte a lógica clássica que seria “não havendo exceção não há todo” para assinalar que “não havendo exceção há nãotodo”14. O Outro que se materializa com a globalização apresenta essa estrutura do nãotodo, pois se trata justamente de um Outro constituído pelo declínio da função de exceção dada pelo Nome-do-Pai. Segundo Miller, o verdadeiro sentido do nãotodo lacaniano, não é de um Outro incompleto ou limitado, mas, pelo contrário, trata-se de um Outro não furado e, por isso mesmo, disforme, disperso, inconsistente, sem limites e sem fronteiras.15 13 MILLER, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana (2001-2002), op. cit. 14 VIEIRA, M. A.“A hipermodernidade lacaniana”. Em: Latusa, n° 9. Rio de Janeiro: EBP-Rio, 2004. 15 MILLER, J.-A.- “Uma partilha sexual”. Em: Clique, n° 2. Belo Horizonte: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, 2003. 7 O título “O Outro que não existe e seus comitês de ética”, do Curso de Orientação Lacaniana de 1996-97, não indica então o fim do Outro. Trata-se antes de caracterizar a materialização na sociedade contemporânea de um outro Outro. Diferentemente do Outro que se funda a partir da exceção e que, por isso, se diz Todo, agora teríamos um Outro não-todo.16 Outra psiquiatria A psiquiatria contemporânea também segue essa lógica globalizada e extrapola todos os limites e fronteiras. Antes simbolizada pela “loucura” e pelos “manicômios”, a psiquiatria hoje abrange um campo de atuação bem mais vasto, cobrindo um espectro que vai da esquizofrenia ao aprimoramento das performances cotidianas dos indivíduos17. Trata-se de uma transformação na estrutura das forças que atuam no campo. O poder psiquiátrico não se passa mais no espaço fechado do manicômio, nem opera efetuando aquela rígida distinção entre loucura e normalidade tão criticada nos anos 60. Os poderes que atravessam o campo da psiquiatria investem agora prioritariamente na indeterminação (no interstício) dos limites entre o normal e o patológico, tomando como foco principal de sua incidência as fronteiras abertas da depressão, do transtorno do pânico, da fobia social, da hiperatividade, da impotência, etc. O último censo sobre a prevalência de transtornos mentais nos Estados Unidos mostra isso com uma crueza espantosa: pouco menos do que metade (46,4%) da população americana sofre de alguma doença mental durante a vida, segundo os critérios diagnósticos do DSM IV.18 Temos aí uma das características principais da sociedade globalizada. Nessa sociedade se vende não apenas produtos. Vender uma mercadoria é também 16 VIEIRA, M.A. “A hipermodernidade lacaniana”, op. cit. 17 AGUIAR, A. A Psiquiatria no divã. Entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. 18 KESSLER, R. et al. Lifetime Prevalence and Age-of-Onset Distributions of DSM-IV Disorders in the National Comorbidity Survey Replication Arch Gen Psychiatry, 62:593-602, 2005. 8 fabricar um modo de existência, é colocar as subjetividades e as mercadorias umas em relação às outras. Não se produz uma mercadoria sem que seja produzido ao mesmo tempo o seu consumidor19. No campo da psiquiatria a indústria farmacêutica lança mão dos veículos de comunicação (jornais, revistas, televisão) para “ensinar” a população sobre as ”doenças” e estabilizar na sociedade o discurso biológico e os critérios diagnósticos, fazendo com que os indivíduos aprendam a reconhecer em suas experiências cotidianas “sinais” de determinados transtornos mentais. São verdadeiras campanhas de marketing, voltadas para chamar a atenção do público para doenças supostamente “pouco diagnosticadas” e “pouco tratadas” na população20. O paciente já chega ao consultório com seu diagnóstico, propondo a medicação que deseja.21 Um bom exemplo é a reportagem do jornal O Globo sobre a descoberta de uma nova doença do cérebro: o consumismo. O título – “A pílula anticonsumo” – já indicava o tipo de tratamento proposto, e a reportagem alertava sobre a descoberta de uma nova “doença” que supostamente afetaria pelo menos 8% da população mundial, sendo 90% mulheres de vinte e cinco a sessenta anos. Um antidepressivo era anunciado como a pílula que poderia curar a “doença” e a “explicação médica” do fenômeno fazia alusão ao neurotransmissor que remete aos novos antidepressivos: “O ‘shopping center’ do cérebro – as áreas ativas quando selecionamos marcas de produtos – foi revelado na revista científica ‘Neural Plasticity’. Os cientistas suspeitam que essas áreas do cérebro são maiores nas mulheres, e que as compradoras compulsivas sofrem de um distúrbio: a queda na produção de serotonina”.22 19 HARDT, M. & Negri, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001. 20 MOYNIHAN, R. et al. Selling sickness: the pharmaceutical industry and disease mongering. British Medical Journal, 324: 886-891, 2002. 21 AGUIAR, A. A Psiquiatria no divã. Entre as ciências da vida e a medicalização da existência, op. cit. 22 MARINHO, A. “A pílula anticonsumo”. Em: O Globo, Rio de Janeiro, 31 de março de 2002, Jornal da Família, p. 1. 9 A psiquiatria contemporânea segue assim a tendência geral da medicina atual, que não se limita mais ao tratamento de doenças. O esfacelamento contemporâneo das fronteiras entre a natureza e a cultura fez com que também a medicina deixasse de ter como referência apenas a desordem na natureza, ou seja, a doença. A medicina agora passa a intervir na saúde de indivíduos que não estão doentes, mas demandam ajuda farmacológica ou cirúrgica para lidar com as “dificuldades da existência”, para “esculpirem" seus corpos, sua performance ou mesmo a personalidade, como assinalou Peter Kramer no livro Ouvindo o Prozac23. Alguns autores contemporâneos vêem nessas práticas um indício de que caminhamos para a era do pós-humano e de fato, como bem assinala Alain Ehrenberg, estamos vivendo, já no presente, em uma sociedade composta em grande parte, por indivíduos farmacohumanos.24 A psicanálise e o pós-humano No momento atual encontramos mais uma vez um entrecruzamento entre psiquiatria, psicanálise e política. Agora, no entanto, não é a cultura que recorre à psicanálise para revelar os sintomas da sociedade patriarcal e pedir a sua falência. A psicanálise é quem toma posição e intervém na política, inclusive para contemporâneas garantir do seu Outro lugar vêm no mundo. acompanhadas Pois de as transformações uma vontade de regulamentação que quer eliminar a psicanálise da cena do mundo. Não por acaso, é na França que isso se revela com a Emenda Accoyer, que adota o modelo da psiquiatria americana.25 O homem contemporâneo quer curar-se da psicanálise, pois já acredita realmente que é possível curar-se de si mesmo26. O empuxo contemporâneo 23 KRAMER, P. Ouvindo o Prozac. Uma abordagem profunda e esclarecedora sobre a “pílula da felicidade”. Rio de Janeiro: Record, 1994. 24 EHRENBERG, A. La fatigue d’être soi. Paris: Poches Odile Jacob, 2000. 25 MILLER, J-A. & Milner, J.-C. Você quer mesmo ser avaliado? São Paulo: Barechi, 2006. 26 LAURENT, É. “Guerir de la psychanalyse”. Em: Mental n° 11. Paris: NLS, 2002. 10 ao pós-humano convoca a psicanálise, a partir de sua ética, a tomar uma posição frente ao movimento do mundo. A psicanálise assume assim o lugar de um certo resguardo do humano na globalização. Não é que devamos ser contra a ciência, contra as tecnologias e nem mesmo necessariamente contra o artificialismo que sempre caracterizou o homem desde os seus primórdios. Não se trata também de choramingar a queda do pai, o que seria inscrever a psicanálise como uma ideologia e ainda por cima reacionária.27 Como diz Miller, se trata antes de sustentar um “isso não funciona” (ça ne marche pas). Para a psicanálise lacaniana, o homem não pode nem poderá nunca desconsiderar o furo real que o otimismo da ciência e do simbólico não consegue nunca preencher ou recobrir. Talvez, o mais importante que a psicanálise tenha a ensinar à cultura nos dias atuais seja que é sim possível prescindir do pai, mas só à condição de servir-se dele, ou seja, à condição de não perder de vista que o pai é apenas um dos nomes que inventamos para lidar com o furo real, mas este, o furo, é impossível de ser eliminado, posto que é constitutivo e constituinte do humano. Por mais perfeita que possa vir a ser a “linguagem” dos computadores, da manipulação genética ou mesmo das drogas inventadas pela ciência, ao se acoplar ao homem, haverá sempre algo irredutível em jogo, decorrente do fato de que o homem é o real da linguagem. 27 MILLER, J-A. “Uma fantasia”. Em: Opção Lacaniana, n° 42. São Paulo: Eolia, fevereiro de 2005. 11