nº 23 - Editorial Franciscana
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nº 23 - Editorial Franciscana
CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA 23 Editorial Franciscana BRAGA - 2003 1 Ficha Técnica Coordenador: Fr. José António Correia Pereira, ofm Editorial Franciscana Apt. 1217 4711-856 BRAGA Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735 E-mail: [email protected] Edição on-line no site: www.editorialfranciscana.org Capa: Desenho de Fr. José Morais, ofm Edição: Editorial Franciscana Propriedade: Província Portuguesa da Ordem Franciscana Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1 Caderno 23 - 2003 Cada número dos Cadernos é vendido avulso 2 CLARA DE ASSIS, A “MULHER EVANGÉLICA” DO SÉCULO XIII Ir. Maria Otília Fontoura osc A MENORIDADE EM CLARA DE ASSIS Marco Bartoli ALEGRIA E PAZ Fr. Timothy Radcliffe op A REGRA, UM CAMINHO A SEGUIR SEM CONCESSÕES AO ESPÍRITO DO MUNDO Mensagem de João Paulo II às irmãs Clarissas, por ocasião dos 750 anos da morte de Santa Clara de Assis 3 1 — Estudos CLARA DE ASSIS, A “MULHER EVANGÉLICA” DO SÉCULO XIII Ir. Maria Otília Fontoura osc 5 CLARA DE ASSIS, A “MULHER EVANGÉLICA” DO SÉCULO XIII 1. Vocação e missão de Clara 1.1. Vocação 1.2. Missão 2. São Damião: ideal e desafio 2. 1. Uma fraternidade evangélica 2. 2. O trabalho como expressão de pobreza 2. 3. Vida de oração e contemplação: – Oração litúrgica e comunitária – oração pessoal 2. 4. Vida eucarística: adoração e louvor 2. 5. Em fraterna amizade 2. 6. Em comunhão com a humanidade sofredora 3. Francisco e Clara: uma vocação comum, um mesmo carisma, uma mesma família religiosa 6 1. Vocação e missão de Clara 1.1. Vocação Em 1207, Francisco ajoelhava diante do crucifixo bizantino de São Damião. Estando em oração, sentiu que Jesus lhe dizia: ―Francisco, vai e repara a minha Igreja que ameaça ruir ‖1. Não compreendendo, então, o mandato do Senhor, lançou-se na reconstrução da ermida. Quando, algum tempo depois, pedia a colaboração dos que passavam, uma palavra profética saiu da sua boca: ―Vinde e ajudai-me na reconstrução de São Damião, porque um dia hão-de morar aqui umas senhoras, cuja fama e vida santa glorificará o Pai celeste em toda a Igreja‖2. Francisco, que nessa altura ainda não tinha irmãos, acabava de anunciar de forma profética, sob a acção do Espírito, a Segunda Ordem Franciscana e a missão de Clara e suas Irmãs: ser claridade, ser como cidade edificada na montanha, manifestando, com a vida, a glória do Pai celeste. Clara era ainda menina, quando Francisco, uns doze anos mais velho do que ela, dá início à sua vida evangélica. Na Quaresma de 1211, a jovem, que desde há algum tempo prestava atenção ao viver de Francisco, acompanhada de sua mãe e irmãs, ouve as suas pregações em São Rufino. Sensibilizada pelo ardor com que o jovem fala e convida à conversão a Cristo e aos irmãos, a uma profunda conversão interior, pede para falar com ele. Depois de alguns encontros, como refere Celano, Clara Offreduccio está decidida a seguir o mesmo caminho que Francisco e seus Irmãos vão trilhando. O movimento franciscano encantava a jovem. Contudo, a mentalidade medieval referente à mulher, condicionava as suas opções. Sabe-se, porém, que dos grupos pauperístas, como os valdenses, cátaros, humiliatas e outros, faziam parte mulheres, o que a Igreja contestava. Quando Deus pôs Clara no caminho de Francisco, a jovem é acolhida como uma bênção. O Irmão reconhece, de imediato, ser ela o objecto da profecia de São Damião. Clara e as Irmãs que o Senhor lhe enviasse, vive————— 1 LCL, 10, in FF II, p. 247. 2 TCL, 9-17, in FF II, pp. 69-70. 7 riam, pois, em clausura contemplativa no mosteiro anexo àquela pequena Igreja3; seriam o complemento da Primeira Ordem Franciscana. O seu rosto feminino. Contactado D. Guido, bispo de Assis, Francisco aceita das mãos de Deus, com imensa satisfação, esta primeira filha e, com permissão do mesmo prelado, começa a sua formação evangélica. Na noite que se seguiu ao domingo de Ramos de 1212, a conselho de Francisco e com o assentimento do prelado, Clara ―deixou a casa paterna, a cidade e os familiares e apressou-se a ir para Santa Maria da Porciúncula‖4, onde os Irmãos celebravam as sagradas vigílias. Despojada das suas jóias e vestes de festa e cortados os cabelos, Clara compromete-se diante de Deus e da Igreja, ali representada pelo Irmão Francisco, a seguir o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência e sem próprio. Clara não se sentia vocacionada para o casamento nem tão-pouco para ser monja, mas sim para ser irmã menor. Nesta noite de domingo de Ramos, afirma, com toda a potencialidade do seu ser, o direito que lhe assiste, à luz do Evangelho, de escolher livremente o seu caminho. O gesto de Clara restabelecia o primado de Deus e afirmava a liberdade de uma mulher cristã seguir Jesus Cristo, segundo o impulso do seu coração: de abraçar Cristo pobre como virgem pobre. Clara Offreduccio não podia inserir-se em mosteiros do seu tempo, verdadeiros senhorios detentores de privilégios e direitos. O estilo de vida das monjas beneditinas, das cónegas regrantes de Santo Agostinho, ou das reclusas, não respondia ao seu anseio. Era seu desejo, conforme o mandato de Cristo, fazer opção pela pobreza evangélica, pela fraternidade ————— 3 O testemunho de Tiago de Vitry, bispo de São João d‘ Acre, sobre o movimento franciscano tem-se prestado a opiniões algo confusas. Em carta de 1216, falando sobre o movimento, diz: ―…as mulheres moram em comunidade em vários hospícios perto das cidades. Não recebem nada, vivendo do trabalho de suas mãos‖. Paul Sabatier interpretando o texto, defendeu o princípio de que as Clarissas, nos primeiros tempos, não tiveram clausura e se entregavam ao cuidado dos doentes e leprosos. Alguns estudiosos franciscanos, entre os quais Lemmes y Oliger, depois de profunda análise da questão, pronunciando-se contra a posição assumida por Sabatier, afirmam que as damianitas sempre viveram na clausura do seu mosteiro (Ignacio Omaechevarria, ofm, Escritos de Santa Clara y documentos complementarios, edición bilingüe, BAC, Madrid, 1982, pp. 34-36). 4 LCL, 8, in FF II, p. 246. 8 cristã. Desejava descer a tomar lugar entre os pobres, os oprimidos, os servos, os sem direitos. Desejava entregar-se a Cristo por amor dos homens, seus irmãos. Após a Páscoa de 1212, estão em São Damião as três primeiras irmãs menores: Clara, Inês e Pacífica. Cumpria-se a profecia do Senhor. Alma genuinamente franciscana, feita a deslumbrante descoberta do amor gratuito do Pai, revelado em Jesus Cristo, Clara imergiu, com toda a potencialidade do seu ser no absoluto de Deus, como consequência do enamoramento por Cristo pobre e crucificado e n‘Ele se abraçou com a plenitude do Amor, a humanidade e a criação. Clara tem uma vocação peculiar. A discípula do Pobrezinho de Assis, seguidora de Cristo em estilo novo, não é monja mas sim irmã: irmã menor, irmã pobre, irmã vocacionada para a fraternidade. O estilo de vida que abraça é novidade na Igreja. Clara é uma mulher nova, uma mulher forte e fiel, cheia de fé e de esperança, que sabe o que quer e é capaz de percorrer todos os caminhos para chegar aonde Deus a impele. Mas, é mais do que isso: é uma inovadora que, rompendo com formas e tradições monásticas, faz nascer em São Damião um novo estilo de vida contemplativa: vida em fraternidade e serviço, vida pobre, humilde e simples, uma vida acentuadamente eucarística e em sintonia com a humanidade sofredora; em suma, vida de seguimento de Cristo pobre e crucificado. Como íamos dizendo, o Senhor anunciara pela boca de Francisco a origem da Segunda Ordem, cujo berço seria exactamente São Damião. No Testamento, Clara reconhece ser ela e suas Irmãs, presentes e futuras, o alvo da profecia. Com efeito, falando de Francisco, escreve: ―…iluminado pelo Espírito Santo, profetizou, com grande alegria, a nosso respeito, tudo o que mais tarde o Senhor veio a confirmar‖5. Clara era uma mulher de fé e fidelidade. Daí, que a sua vida fosse uma peregrinação impulsionada pela força criadora de uma promessa. Esta mulher forte e fiel, acreditou que era possível a vivência radical do Evangelho e, totalmente tomada por Cristo, lançou-se, cheia de confiança e sem vacilar, no seguimento dos seus passos. Assim, soube dar resposta, ————— 5 TCL, 11, in FF II, p. 69. 9 com a vida, às exigências divinas, à força sedutora que para ela era o ―Senhor Jesus‖. Sendo a vida de oração, de intercessão e de comunhão com Deus comum às diversas formas de vida consagrada, no caso da Clara, o específico consiste no seu chamamento e envio profético. 1.2. Missão de Clara Houve tempos em que o ideal de alguém se identificava com o trabalho de santificação pessoal. Respondendo a Cristo e sob a orientação de Francisco, a ―Plantazinha‖ soube situar a sua doação e missão em termos eclesiais. Estava bem persuadida, assim como suas Irmãs, de que Deus as chamara para serem espelho e exemplo para os outros, para serem evangelicamente missionárias, para serem colaboradoras do próprio Deus junto dos homens, suporte dos membros mais fracos do corpo místico de Cristo, como se lê na terceira carta por ela escrita a Inês de Praga por 1238. Por isso se sentiam impelidas a peregrinar na Igreja de Deus. Clara sente-se chamada, a partir do mais íntimo do seu ser, a edificar a Igreja, a dar a vida, a derramá-la toda inteira, não para sua realização pessoal, mas porque recebeu um apelo: olhar, ver, ser luz, testemunhar na Igreja de Deus, para glória do ―Altíssimo‖ e para bem dos homens. A sua missão é, de certo modo, confirmar os outros na verdade, no amor, na beleza que viu e que tocou. Daí que, para a discípula do Pobrezinho de Assis, o importante, o sumamente importante, fosse a sua transformação em ícone da divindade, o abraçar e tocar o Verbo da vida, como se lê nas suas cartas a Inês de Praga. No percurso espiritual de Clara divisamos Belém, Nazaré e o Calvário, quais livros abertos à contemplação da apaixonada pelo Senhor Jesus Cristo que, de ouvinte atenta da Palavra evangélica se torna espelho dessa mesma Palavra. Como muito bem diz o nosso Ministro Geral, Frei Giacomo Bini, em Clara de Assis, um hino de louvar, a fiel discípula de Francisco e suas Irmãs, ―a partir do claustro da sua interioridade, seguindo o exemplo de Maria, tornam-se acolhimento, morada e ícone do Deus de amor‖6, testemunho que se projectava no exterior. ————— 6 Frei Giacomo Bini, Clara de Assis, um hino de louvor, Roma, 2002, p.12. 10 De São Damião, cada Irmã descobre todo o mundo e, fazendo suas as alegrias, aspirações, preocupações e necessidades dos homens, por suas próprias mãos as apresenta ao ―Pai das misericórdias‖, na expressão da ―Plantazinha‖ de Francisco. Abrasada no ardor missionário, desejosa de abraçar o mundo inteiro e se dar ao Senhor pelo martírio, Clara teria ido para Marrocos se o seu pai espiritual disso a não impedisse. Durante a sua doença, que durou uns trinta anos, a virgem Clara, à semelhança do crucificado do Alverne, está crucificada com Jesus Cristo e, em atitude redentora, permanece todos os dias em amorosa doação. Abrasada em amor, totalmente voltada para os outros, está em continua comunhão com seus irmãos em Cristo. Em todos pensa, por todos ora e sofre. Para todos tem uma palavra evangélica, de ternura, de compreensão e estímulo. Mesmo no seu leito de dor, mantém com as autoridades eclesiásticas, com os seus Irmãos no carisma, com pessoas amigas, importantes ou de condição simples, as melhores relações. Ela é, diante de todas as necessidades, um suporte e apoio espiritual. Na clausura, no seu leito de doença, a Irmã Clara avança, à semelhança do Serafim de Assis, no caminho da Cruz, identificando-se com o Esposo. Conforme a expressão de Frei Giacomo Bini, Francisco e Clara são semente lançada à terra que morrem para frutificar. Esta morte, amorosa e quotidiana, fazia parte da missão destes arautos de Cristo que, fiéis ao Evangelho se entregam e vivem com audácia o desafio da pobreza absoluta, da loucura da Cruz, do despojamento total, do amor incondicional ao Criador e às criaturas. Sim, o mistério da Cruz era, e continua a ser, o cerne da espiritualidade franciscano-clariana. Seguir ―Cristo, o Pobre crucificado‖, identificar-se com Ele, n‘Ele se transformar, eis a razão de viver dos humildes seguidores do Evangelho, no século XIII. ―Se com Ele morrermos na cruz da tribulação, com Ele habitaremos na gloria dos santos‖7, escreve Clara a Inês de Praga. O sofrimento vivido em profunda união com Cristo, seu Esposo, identifica-a com o mesmo Cristo. São Damião interpela! São Damião é ideal e desafio É fonte de vida nova! ————— 7 Cf., 2CCL, 21, in FF II, p. 95. 11 O P. Larañaga diz que ―Clara, na sua clausura contemplativa, levou à plenitude o sonho mais profundo de Francisco de Assis: a ânsia de contemplar o Rosto do Senhor e de se dedicar exclusivamente a cultivar o desejo de Deus‖8. Ali, mãe e filhas, revestidas da ―dama pobreza‖, como transparência do Evangelho de Cristo, denunciam o pecado do seu tempo e de todos os tempos: o orgulho, a falta de amor, o egoísmo, a cobiça, o poder. É que a sua pobreza é o Cristo pobre. São Damião é comunidade profética que, ao mesmo tempo que interroga e responde, é facho de luz que compromete. Mas, para tanto, é preciso subir a montanha da dor, é preciso morrer, para tocar, para possuir o Absoluto, para ser transparência do mesmo Senhor. A sociedade do Século XIII precisou de Francisco e de Clara para recuperar o sentido de Deus, o sentido de fraternidade. A Igreja do século XIII precisou de Francisco e de Clara para reencontrar a sua identidade evangélica. São Damião, um espelho de Eternidade! Testemunha de que Deus está, de que a sua luz ilumina, de que o seu amor marca e transforma, de que Deus é todo o bem, o único bem. A herança das Irmãs Pobres, como dos Irmãos Menores, era só Deus. Quem viu e tocou o Senhor, de nada mais precisa. Ele basta. Clara era a transparência de Jesus. No Testamento, Clara exorta vivamente as suas Irmãs a ―que se esforcem por seguir sempre o caminho da santa simplicidade, humildade e pobreza, e que levem uma vida santa‖. Desta santidade de vida brotaria a luz, o esplendor, a beleza espiritual, a claridade, o odor da ―boa fama‖ ao perto e ao longe. Seriam, então, cidade edificada no alto da montanha anunciada pelo Cristo bizantino de São Damião. ————— 8 Inácio Laranãga, ofm cap, O Irmão de Assis. Vida profunda de São Francisco, Lisboa, 1980, p. 239. 12 2. O mosteiro de São Damião – Ideal e desafio São Damião, no dizer de Miglioranza, ―mais do que um mosteiro, foi um ideal, um desafio, um sonho feito realidade‖9. Um ideal feito de mansidão, de humildade, fraternidade, de sentido profundo de Deus e de empenhamento ao serviço de todos. Um amor incomensurável de Deus e das suas criaturas transparecia daquele ―pobre conventinho‖, que enchia de mistério e emoção até os mais afastados de Deus. Poucas vezes a vivência cristã se revestiu de tanta suavidade e encanto! 2.1. Uma fraternidade evangélica A Regra de Santa Clara não é apenas a base jurídica que dá existência à sua Ordem, um documento histórico que se olha com veneração e amor. É antes a expressão de um carisma peculiar, de um programa de vida sempre actual e sempre adaptável a tempos e lugares. Condensação do genuíno carisma da Ordem, perpassada pela docilidade ao Espírito do Senhor, pela abertura à Igreja e à humanidade, tem em si mesma a vitalidade evangélica. Contrariamente ao que se verificava com as então existentes, a Regra de Santa Clara é fraterna, humana e flexível. A pessoa da Irmã, cercada do maior respeito, ganha dignidade e direitos que na época não eram reconhecidos à mulher. Inteligente e criativa, a Irmã Clara soube dar vida a um estilo novo, distanciado do estilo monacal do seu tempo. Um estilo evangélico. Nos mosteiros existentes no século XIII, a autoridade – o abade ou a abadessa –, centro de uma orgânica estável e minuciosa, ocupando o vértice de uma pirâmide, tudo prevê e determina. Nas fraternidades franciscanas, portanto, entre as damianitas, o centro é ocupado por Jesus, dispondo-se as Irmãs em seu redor. A igualdade, a amizade, vínculo de união, surge como fruto da felicidade comum. Em São Damião, não havia estruturas verticais; não havia classes sociais nem privilégios, a não ser o privilégio de ser pobre. Ali havia a simplicidade e a igualdade dos filhos de Deus. Só Cristo e a sua Mãe pobrezinha serviam de modelo às damianitas. ————— 9 C. Miglioranza, ofm conv, ―Santa Clara de Asís‖, in Misiones franciscanas conventuales, Buenos Aires, p. 77; citado por Maria Victoria Triviño, osc, in Clara de Asís ante el espejo. História y espiritualidad, Madrid, 199, p. 105. 13 No mosteiro de São Damião, vivia-se, de facto, em fraternidade. Ali, havia Irmãs igualmente consultadas e ouvidas. Os assuntos respeitantes à utilidade e bem espiritual das Irmãs eram tratados em reunião conventual e até as mais novas deviam ser ouvidas, ―pois muitas vezes é ao mais pequenino que o Senhor revela aquilo que mais convém.‖10 O relacionamento era perfeito: era fraternidade. Estamos diante de uma estrutura horizontal, dignificante da pessoa humana, porque estrutura evangélica. Um dos aspectos mais meritórios da Regra de Santa Clara é a participação das Irmãs nas responsabilidades comuns: - todas devem dar o seu consentimento na recepção de novas vocações 11; - todas tomam parte na eleição da abadessa12; - nenhuma dívida importante deve ser contraída sem o consentimento das Irmãs13; - para a escolha de Irmãs para os diversos cargos, é necessário o consentimento da comunidade14; - a abadessa e as Irmãs são responsáveis pela guarda da pobreza, pelo cuidado das doentes, pela observância do silêncio e da clausura, para conservar a unidade do amor mútuo e da paz15; - a abadessa e suas Irmãs tratarão com caridade a Irmã culpada 16. Porém, é nas passagens em que emprega o nós, que Clara imprime mais firmemente e a sua personalidade e, simultaneamente, acentua a corresponsabilidade das Irmãs, dando ao texto o valor de um compromisso comum. Vejamos: - ―quando alguém … vier ter connosco‖17; ————— 10 RCL, IV, 18, in FF II, p. 50. 11 RCL, II, 1, in FF II, p. 45. 12 RCL, IV, 1 e 7, in FF II, p. 49. 13 RCL, IV, 19, in FF II, p. 50. 14 RCL, IV, 22, in FF II, p. 51. 15 RCL, VI, 10-11, p. 53; VIII, 1-6, p. 55; VIII,12-17, p. 56; V, 1-4, p. 56;V, 5-14, pp. 51-52, in FF II. 16 RCL, IX, 4-6 e 18, in FF II, p. 57– 58. 17 RCL, II, 1, in FF, II p.45. 14 - ―considerando o bem-aventurado Pai que não temíamos nenhuma espécie de pobreza, … mas que, pelo contrário tínhamos estas coisas por grande delícia, … escreveu-nos a forma de vida‖18; - ―para que eu, … juntamente com minhas Irmãs‖19; - ―E assim … a fim de que observemos a pobreza e humildade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que firmemente professamos‖20. E as citações podiam multiplicar-se. A consciência da responsabilidade da Irmã, ou seja a corresponsabilidade fraterna, tem a máxima expressão no capítulo quarto, onde se lê: ―… tanto a abadessa com as irmãs devem confessar, com toda a humildade, as faltas e negligências públicas e comuns‖; e, como acima referimos, ―… os assuntos respeitantes à utilidade e bem espiritual da comunidade devem ser tratados em capítulo‖21. E, porque a pessoa da Irmã é olhada com todo o respeito em função da dignidade que lhe é conferida pelo Evangelho, a Madre ―há-de comportar-se entre as suas Irmãs como serva de todas, familiar e disponível, atenta às necessidades das sãs e das doentes22; todas as Irmãs devem cuidar e servir as Irmãs doentes, como gostariam de ser servidas, caso se encontrassem na mesma situação 23. E, para construir dia a dia a fraternidade sobre a base do amor, as Irmãs empenhar-se-ão em evitar a ―soberba, vanglória, inveja e avareza, cuidados e solicitude das coisas deste mundo, depreciação, murmuração, discórdia e desavença24. Em suma, em São Damião, todas se amavam com o amor de Cristo; todas, conscientes de que eram chamadas a trabalhar na concórdia e na paz, se auxiliavam mutuamente; todas se sentiam responsáveis pelo bem comum. Estamos diante de uma fraternidade evangélica. ————— 18 RCL, VI, 2,, in FF II, p. 53. 19 RCL, VI, 1, in FF II, p. 52. 20 RCL, XII, 12, in FF II, p. 62. 21 RCL, IV, 16-17, in FF II, p. 50. 22 RCL, IV,10-12, p. 50; VIII, 12-13, p. 56; X, 4, p. 59, in FF II. 23 RCL, VIII, 14,, in FF II, p. 56. 24 RCL, 6, in FF II, p. 59. 15 2.2. O trabalho como expressão de pobreza Praticar a pobreza voluntária subtraindo-se à lei geral do trabalho, seria deformar os conselhos evangélicos, os princípios cristãos. Francisco e Clara compreenderam essa realidade. Por isso, consideravam o trabalho ―uma graça‖. A Irmã Clara, no seguimento do mandato de Cristo, trabalhava e queria que as suas Irmãs trabalhassem ―fiel e devotamente‖. O trabalho, que começava depois de Tércia, deveria ser honesto e de comum utilidade; deveriam trabalhar com devoção e fidelidade para evitar a ociosidade, inimiga da alma, sem perderem o espírito de oração e devoção ao qual todas as coisas devem subordinar-se. Durante o trabalho o silêncio era habitual, pedido pelo coração, para permanecerem em união com o Senhor. Somente era quebrado quando necessário e, então, deveriam falar em voz baixa e em poucas palavras25. As damianitas, dado que viviam em profunda união com Cristo, conheciam o valor do silêncio, do recolhimento, e dele sentiam necessidade íntima. É que, o trabalho, embora sendo um meio de subsistência, era simultaneamente uma forma de amar e de orar: amar a Deus na acção. Dentro de uma visão franciscana, quer o trabalho quer a oração, impregnados de amor contemplativo, testemunham Cristo, presente entre os seus filhos. Por isso, quando os lábios da ―Plantazinha‖ e suas Irmãs se calavam, começavam a orar as mãos26. O trabalho era ―graça e bênção‖ Sabe-se que no mosteiro de São Damião havia um horário de trabalho que coordenava as actividades quotidianas. É que o trabalho era, com a esmola, a forma de normal de subsistência. Clara, recusando toda a possessão, tudo o que constituísse rendimentos – propriedades ou dotes –, afirma a sua fidelidade ao Evangelho e a sua vontade de que a fraternidade seja e permaneça voluntariamente pobre. Ela, como mãe e mestra daquela comunidade nascente, dava exemplo de aplicação ao trabalho. Nunca queria estar ociosa, mesmo durante a doença. A Irmã Pacífica de Guelfuccio depôs no processo de canonização que ―durante o tempo em que esteve doente, a ponto de não se poder erguer do leito, pedia que a sentassem e, amparada com almofadas, fiava e tecia os panos com que confeccionava os corporais que depois oferecia às ————— 25 RCL, V, 4, in FF II, p. 51. 26 Chiara Augusta Lainati, osc, Santa Clara de Asís, 2ª edición, Oñate (Guipúzcoa), 1993, p. 120. 16 igrejas do vale e das colinas de Assis‖27. Uma vez contou uns cinquenta, muito belos e perfeitos. Os trabalhos femininos tinham, então, um âmbito restrito. Excluindo o fiar, tecer e bordar, dificilmente se poderia pensar em algo mais, pelo menos dentro da clausura. Segundo alguns autores, Clara teria algum tecelão em Assis que colaborava com o mosteiro no fornecimento das matérias primas e na aceitação dos trabalhos confeccionados. Em São Damião trabalhava-se. Nobres ou plebeias, damas ou servas, tornadas Irmãs, fiavam, teciam, faziam todos os trabalhos domésticos, cuidavam da horta com simplicidade e alegria. Da horta recebiam vários produtos, essencialmente legumes e hortaliças que serviam para o quotidiano da comunidade. Era a graça de poder trabalhar, a graça de formar e ser fraternidade. Também cultivavam, no jardim e claustro do mosteiro, belas e variadas flores. Como acima íamos dizendo, os trabalhos realizados em São Damião, não eram suficientes para sustentar a comunidade. Quando isso acontecia, Clara recorria à ―mesa do Senhor‖. Saíam, então, as Irmãs externas a receber os dons que o Pai lhes oferecia. Também dois Irmãos Menores estavam ao serviço da comunidade para auxílio da sua pobreza28, recebendo, em seu favor, das mãos dos assisienses ou populações circunvizinhas, o que o Senhor sabia precisarem. Os mosteiros medievais tinham a sua subsistência assegurada com rendas. Clara e suas Irmãs viviam do trabalho e da ajuda dos fiéis. Viver do trabalho num mosteiro medieval era viver em pobreza. Estar assegurada a subsistência duma comunidade contemplativa pelo trabalho e pela caridade dos fiéis era novidade na Igreja e doutrina impensável na Idade Média. Porém, Clara e suas Irmãs sabiam que, se o Senhor alimenta as aves do céu e veste os lírios do campo, não deixaria de velar por aquelas que, confiantes, se entregavam à sua providência. O mosteiro de São Damião, caminhando na sequela Christi, tornou-se, de facto, conforme o desejo de Francisco encarnado por Clara, oásis de pobreza evangélica29. ————— 27 PC, I, 11, p. 142; ver também: PC, II, 12, p.147-148 e VI,14, p.173, e ainda LCL, 28, p. 262, in FF II. 28 PC, I, 15, in FF II, p. 143. 29 René-Charles Dhont, Chiara, madre e sorella, p. 10 17 2. 3. Vida de oração e contemplação – Oração litúrgica A vida litúrgica, elemento primário da vida contemplativa, aparece em São Damião como o centro, o cerne, do viver quotidiano. De facto, uma comunidade contemplativa é sustentada e vivificada pela oração litúrgica comunitária – celebração eucarística e ofício divino –, que marcam o ritmo duma caminhada espiritual. Daí a necessária abertura à Palavra de Deus e à união fraterna. Sabemos que São Francisco queria ver os Irmãos reunidos cada dia para uma única missa de fraternidade em cada lugar onde estivessem. Junto de São Damião residia uma pequena fraternidade de Frades Menores, entre os quais havia dois clérigos aos quais competia celebrar quotidianamente a Eucaristia, administrar os sacramentos às suas Irmãs e anunciar-lhes a Palavra do Senhor. Com quanta fé e amor, Santa Clara e suas Irmãs participavam na celebração eucarística!… E esta celebração era tão importante que, nos dias em que era permitida a comunhão, se houvesse doentes impossibilitadas de se deslocarem ao coro, o capelão entrava na clausura e a Missa celebrava-se na intimidade familiar ―para sãs e enfermas‖. A fraternidade franciscana, ainda que inteiramente distanciada dos esquemas monásticos, atribuiu, desde o início, grande importância ao ofício divino como oração oficial da Igreja. Daí, que, em São Damião, o ofício divino fosse logo considerado como imprescindível oração de louvor, no qual, salvo as Irmãs que não soubessem ler, todas deviam participar. Nem a Irmã Clara poderia fazer de outra forma, dado que a fraternidade de São Damião desejava ser versão contemplativa feminina do ideal de Francisco. Clara, ao dispor que o ofício divino fosse rezado conforme o costume dos Frades Menores, o ofício da Santa Igreja Romana, era determinada pelo seu grande desejo de união com a Primeira Ordem: um mesmo ritmo de oração seria o melhor testemunho de unidade de espírito existente entre as filhas e filhos do Irmão Francisco. À semelhança do que fizera o ―seu Pai e mestre‖ entre os seus Irmãos, Clara não quis estabelecer duas classes de Irmãs. 30 Em São ————— 30 A introdução de várias categorias de Irmãs na Ordem de Santa Clara, feita posteriormente, foi contrária à Regra e anticarismática. Hoje, porém, esse desvio está 18 Damião não havia coristas e leigas. Assim o pedia o carisma franciscano. Todas, com igual direito, participavam no ofício divino. Estavam, porém, dispensadas as que não soubessem ler, como acima dissemos, ou se encontrassem impedidas por razões de saúde. Sabemos, pelas fontes biográficas que, em São Damião, o ofício divino estava distribuído ao longo das 24 horas do dia, santificando assim a caminhada quotidiana. Era recitado com devoção e harmonia, com a simplicidade própria de espírito franciscano, sem exibição de instrumentos ou Irmãs especializadas no canto, pois Clara não queria, de forma alguma, que ali reinasse a ostentação que, tantas vezes, se verificava nos mosteiros de beneditinas e cónegas regrantes31. Nesta oração de louvor e de súplica a Deus Pai, feita em união com Cristo, Clara dava exemplo com a sua assiduidade e pontualidade. Era ela que à meia-noite despertava as Irmãs, tocando delicadamente em cada uma, para não interromper o sono das doentes, gesto de fina caridade. Quando as Irmãs chegavam já ela havia acendido as lâmpadas e preparado tudo para a oração32. Eram, então, recitadas Matinas. Santa Clara não apresenta nenhuma prescrição concreta em relação a outras formas de oração comunitária, salvo o ofício de defuntos que deviam rezar quando alguma Irmã falecesse33. Clara, não prescreve orações e devoções comunitárias, nem tão-pouco confiava o bom andamento da comunidade à multiplicidade de regulamentos disciplinares. Acreditava, sim, na unção do Espírito Santo que ensina e guia os passos dos seus eleitos. Por isso, no capítulo quinto da Regra, Clara fala do ―espírito de santa unção e devoção ao qual todas as coisas devem servir‖ e recomenda no décimo que as Irmãs ―acima de todas as coisas devem desejar ter o espírito do Senhor e o seu santo modo de operar, orar sempre a Deus com um coração puro‖. Em São Damião, a oração contemplativa não estava sujeita a uma regulamentação. Não era necessário, pois, cada Irmã se abria à acção divina com espontaneidade e amor. Ouçamos Celano: ————— ultrapassado (Lázaro Iriarte, Letra e espírito da Regra de Santa Clara, Porto Alegre, 1978, pp. 36-37. 31 Isto não impede que, nos tempos hodiernos, conforme o actual critério da Igreja, o canto tenha lugar nas celebrações litúrgicas das Clarissas. Antes pelo contrário, sabendo que o canto é caminho de ascensão para o Senhor, devem dar solenidade e expressão musical às celebrações, e mesmo estimular a presença e participação dos fiéis. 32 Cf. PC, II, 9; X, 3, pp.147 e 185, respectivamente e LCL, 20, p. 257, in FF II. 33 RCL, III, 6, in FF II, p. 48. 19 ―De tal modo as damas pobres adquiriram o dom da contemplação que nela aprendem o que se deve fazer e o que se deve evitar; conseguem com extrema facilidade manter-se na presença de Deus, no louvor divino e nas orações‖34. – Oração pessoal As damianitas desenvolviam e aprofundavam a oração pessoal. Depois de Vésperas, que tinham lugar à meia tarde, todo o tempo era consagrado à oração a sós com o Esposo. Embora sendo Completas, o último período de oração comunitária, cada uma entregava-se, com grande liberdade, ao colóquio com o Senhor, fazendo, muitas vezes vigília até à madrugada. Essa longa oração, fruto de um grande amor, aproximava a terra e céu, enriquecendo a comunidade dos homens. O exemplo de Clara arrastava. As Irmãs que depuseram no processo de canonização são unânimes em afirmar que madonna Clara era ―assídua na oração e na contemplação e quando regressava da oração, o seu rosto era mais claro e belo que o sol, e que das suas palavras emanava uma doçura maravilhosa. Parecia até que já vivia no Céu‖35. Ao sair da oração animava e confortava as Irmãs. Segundo elas e o seu primeiro biógrafo, Tomás de Celano, tinha momentos preferenciais para consagrar-se à oração contemplativa e pessoal: à meia-noite, terminada a recitação de Matinas, quando ficava só por longo tempo, pela manhã depois de Tércia, ao meio dia depois de Sexta. Durante as horas de Sexta e depois de Noa, que a associavam à Paixão de Cristo, era tocada de grande compunção e desejo de ser imolada com o Senhor36 Clara gostava de centrar-se no aniquilamento de Jesus Cristo, não somente na imolação da Cruz, mas também no mistério de humilhação e pobreza de Belém e da Eucaristia. E, sabendo que Maria santíssima, a Mãe pobrezinha, era o melhor caminho para chegar ao Verbo de Deus, Clara amava-a ternamente. As damianitas no silêncio do mosteiro contemplavam embevecidas Jesus na simplicidade do presépio de Belém, no mistério eucarístico, na loucura amorosa da cruz, na glória da Jerusalém celeste. Todas procura————— 34 1C, 20, in FF I, 2ª edição, p. 245. 35 PC, I, 9; II, 9; IV, 4, pp. 141, 147 e 163 respectivamente; VI, 3-4; VII, 3, p.171-172 e 175; X, 3, p. 185, in FF II. 36 LCL, 30, p. 264, in FF II. 20 vam ―viver em íntima união com Cristo, aderir a Ele com todas as fibras do seu coração‖37, vê-lo nas criaturas e na criação, vê-lo na bondade dos homens, no sorriso da criança, na beleza do sol, no perfume da flor. Para as Irmãs de São Damião, como para toda a alma franciscana, viver em oração contemplativa era também entrar com todas as criaturas de Deus, no mundo do Louvor, da Glória, do Amor e do Encanto. A contemplação franciscana tem o seu matiz próprio. Em Francisco, como em Clara de Assis, a vida contemplativa brotou do encanto. Eles não estão em função de si mesmos, mas da Igreja e do mundo. O segredo das suas vidas foi o enamoramento por Jesus Cristo e, na sequência desse enamoramento, o seu grande ideal foi a identificação com Cristo pobre e crucificado, que se traduziu em seguimento. A vivência radical do santo Evangelho foi neles uma consequência do êxtase de amor por Jesus.38 Adorar! Foi esse o sonho lindo de Clara de Assis. Em São Damião, Clara e suas Irmãs viviam imersas na adoração do Altíssimo, Omnipotente e Bom Senhor. 2. 4. Vida eucarística: adoração e louvor No século XIII, à medida que os teólogos aprofundaram a doutrina eucarística, pondo em relevo a permanência de Cristo nas sagradas espécies, viu-se a conveniência de que a reserva destinada aos doentes saísse dos armários, onde nem sempre se encontrava com a devida dignidade e se colocasse em lugares mais apropriados, em tabernáculos abertos na ábside ou em ―imagens-sacrários‖ que guardavam uma pequenina caixa; podia colocar-se também sobre o altar em cibórios ou numa bela urna em forma de arca, que se ia enriquecendo com metais nobres e pedrarias39 Em São Damião havia uma caixinha ou urna de prata e marfim para a reserva do Santíssimo, colocada sobre o altar, que permitia às damianitas a adoração permanente. Ali vivia-se em amorosa adoração, pois Clara de Assis era uma ―Mulher Eucarística‖. ————— 37 4 CCL 9, in FF II, p. 107. 38 David de Azevedo, ofm, S. Francisco de Assis, Fé e Vida, Braga, 1984, pp. 30-43. 39 Jiménez, História de la espiritualidad franciscana, Barcelona, 1969, p. 647 21 De facto, entre as Irmãs Pobres, no seguimento da doutrina do IV Concílio de Latrão (1215), desenvolveu-se a espiritualidade eucarística, praticando-se, como se disse, mesmo a adoração e desagravo ao Santíssimo Sacramento, o que era novidade. As damianitas foram as pioneiras a acolher esta doutrina conciliar e de tal forma que Santa Clara aparece como arauto no reflorescimento eucarístico do século XIII. A piedade popular assim o compreendeu; os artistas representam repetidamente Santa Clara com a custódia nas mãos. É uma linguagem de símbolos que expressa quanto a sua vida esteve vinculada ao sacramento do Corpo do Senhor. Clara desejava que suas filhas comungassem; ela, quando o fazia, comovia-se até às lágrimas, segundo depõem algumas Irmãs no processo de canonização40. Na Regra deixou determinado que as Irmãs comungassem sete vezes por ano: ―No dia do Natal do Senhor, na Quinta-Feira Santa, na Páscoa, no Pentecostes, na Assunção de Nossa Senhora, na festa de S. Francisco e no dia de Todos os Santos‖41. Hoje parece-nos incompreensível esta prescrição da Regra. Contudo, naquela época representava um grande amor à Eucaristia. Sabemos que o IV Concílio de Latrão, querendo incrementar o amor ao Corpo e Sangue do Senhor, determinou que os fiéis se confessassem e comungassem uma vez por ano 42. Em função da época, e desta prescrição conciliar, a determinação de Santa Clara representava, pois, um grande amor ao Santíssimo Sacramento, um verdadeiro culto pelo Corpo do Senhor. Nos dias em que as religiosas comungavam, Santa Clara, querendo ver a comunidade, tanto as sãs como as doentes, reunidas em volta do altar, permitia a entrada do capelão, tendo, então, lugar a celebração eucarística no interior da clausura43. Clara penetrava e vivia o mistério da fé, sinal de unidade, vínculo de caridade. Este amor à Eucaristia e à adoração, novidade no século XIII, como já referimos, deixou-o Santa Clara às suas Irmãs e filhas como legado perpétuo. E tão gostosamente tem sido assumido por todas que, desde há oito séculos, não há mosteiro da Segunda Ordem Franciscana ————— 40 PC II, 11, III, 7, IX, 10, pp. 147, 154, 184 respectivamente e LCL, 28, p. 262, in FF II. 41 RCL, III, 14, in FF II, p. 49. 42 Lázaro Iriarte, Letra e espírito da Regra de Santa Clara, p. 50. 43 RCL, III, 15, in FF II, p. 49. 22 onde não se faça a adoração eucarística todo o dia ou pelo menos umas largas horas44. Não faz sentido que se procure, em raízes adventícias e tardias, os alicerces ou incremento da adoração, louvor e desagravo do Santíssimo Sacramento tão peculiar à Segunda Ordem Franciscana. No mosteiro de São Damião está a raiz, e bem alicerçada e profunda, do amor eucarístico que as filhas de Santa Clara devem viver e difundir. A Irmã Clara e suas Irmãs eram mulheres evangélicas, mulheres eucarísticas! Os seus dias deslizavam alegres e felizes na contemplação amorosa de Cristo, com quem queriam identificar-se. Aquelas boas religiosas, no escondimento do claustro, vivendo em pobreza, oração silenciosa e contemplativa, proclamavam o encanto que Deus é e assumiam, com Cristo, as dores, as alegrias e as esperanças dos homens. 2. 5. Em fraterna amizade Clara era delicada, afável e atenta às necessidades das suas Irmãs. Havia nela uma visível simpatia para com todas, que se traduzia em expressões de ternura, em atitudes ditadas pelo muito amor que havia em seu coração de mãe e de irmã. Clara era feliz, imensamente feliz. E, porque o era, tinha necessidade de deixar transparecer em gestos rasgados de profunda amizade toda a sua riqueza interior. Acolhedora, compassiva e cheia de misericórdia, a Irmã Clara quer que se preste atenção às jovens, às doentes e às fracas, não só no sentido físico, mas também e, sobretudo, no sentido espiritual. Vejamos: - ―Às irmãs incapacitadas de cumprirem todo o rigor da observância, aconselhava-as a contentarem-se com um regime mais suave. E, quando alguma se sentia mais perturbada pela tentação, ou era dominada pela tristeza, era ela mesma que a chamava à parte e a consolava‖45. ————— 44 Há também testemunhos certos de que, em 1230, João Parente, Ministro Geral dos Frades Menores, tomou providências para que se colocasse o Santíssimo Sacramento em píxide de prata ou marfim em lugar seguro, o que as Irmãs fizeram. Conserva-se uma custódia que dizem ser do tempo de Santa Clara, embora haja algumas dúvidas sobre o assunto. 45 LCL, 38, in FF II, p. 269. 23 - Clara permite que as Irmãs, ―sempre e em toda a parte, possam dizer, em poucas palavras e em voz baixa, o que for necessário‖46. - Deseja que na enfermaria, ―para distracção, consolação e serviço das doentes‖, as Irmãs possam sempre falar47e ―que nada lhes falte, quer em conselhos quer na alimentação quer em qualquer outra coisa que a doença exija48; - que as doentes… ―possam usar travesseiros de penas… e pantufas e meias de lã‖49. Clara, com o seu admirável jeito de ser irmã e mãe carinhosa, dava importância às relações interpessoais no seio da fraternidade. Quer que as relações fraternas sejam repassadas de carinho, de muita amizade; que entre as Irmãs haja abertura, e um amor tão grande, que possam ―Confiadamente manifestar umas às outras as suas necessidades, pois, se uma mãe ama e cria a sua filha carnal, com quanto mais carinho não deve cada qual amar e ajudar a sua irmã espiritual‖50!… Com amor e zelo evangélico, estimula todas as suas Irmãs ao perdão recíproco, vínculo de caridade. A amizade fraterna, o amor de Cristo estavam tão presentes na fraternidade!… Clara a isso estimulava suas Irmãs e filhas: ―Amai-vos umas às outras com o amor de Cristo, manifestai em obras o amor que vos vai no coração, a fim de que, movidas por este exemplo, as irmãs se sintam estimuladas a crescer cada vez mais no amor de Deus e na mútua caridade‖ A Plantazinha é presença amiga. O encanto que lhe vai na alma traduz-se nos mais delicados gestos que lhe sugere o seu coração maternal. Ouçamos Tomás de Celano: ―A venerável abadessa não cuidava só do bem espiritual das irmãs, também zelava, com imensa caridade pelo seu bem-estar físico. Assim, nas noites frias, enquanto as irmãs dormiam, era ela própria que as cobria‖ 51. Gostava de prestar às Irmãs doentes os mais delicados serviços, de lavar os pés às Irmãs externas quando regressavam com os dons que o Senhor lhes proporcionara, e, sem qualquer escrúpulo, dispensava do jejum as ————— 46 RCL, V, 4, in FF II, p. 51. 47 RCL, V, 3, in FF II, p. 51. 48 RCL, VIII, 13, in FF II, p. 56. 49 RCL, VIII, 17-18, in FF II, p. 56. 50 RCL, VIII, 15-16, in FF II, p. 56. 51 LCL, 38, in FF II, p. 269. 24 doentes, as fracas e as jovens. Clara, boa e amiga, cultivava entre as suas filhas os mais finos sentimentos e isso contribuía, como diz Celano, para que ali não houvesse lugar para tibiezas ou desencantos52. Era na contemplação de Deus, no contacto directo com o Senhor, que esta ―mulher evangélica‖ encontrava força para ser amor, para ser mãe. Diz-nos Celano que, quando Clara regressava da oração ―inflamada pelo fogo do altar do Senhor, transmitia palavras ardentes que incendiavam o coração das irmãs. Todas ficavam admiradas da doçura que saía da sua boca e do extraordinário brilho que emanava do seu rosto‖53. As longas horas de contemplação amorosa que Clara todos os dias passa junto do Santíssimo Sacramento, fazem crescer no seu íntimo a amizade, o encanto, o respeito para com cada uma das Irmãs. Elas são um dom de Deus, são a expressão da ternura do Pai. Diante delas, a santa abadessa sente-se mergulhada em adoração. Não admira, pois, que no seu relacionamento com cada Irmã, a Plantazinha de Francisco use, muitas vezes, palavras repassadas de carinhosa amizade: queridas filhas, filhinhas, senhoras minhas, irmã e mãe, esposa e mãe. Não deixaremos de dizer que esta amizade cristã e franciscana era extensiva a todos quantos privavam com Clara, particularmente seus Irmãos da Primeira Ordem. A Francisco, seu mestre espiritual, muitas vezes se dirige com o carinhoso apelativo de Pai e, quando o bondoso Frei Reinaldo a visitou no leito de dor, a Irmã Clara mostrou-lhe o seu reconhecimento e fraterna amizade chamando-lhe ―querido Irmão‖54, como refere Celano. 2. 6. Em comunhão com a humanidade sofredora A oração contemplativa da Clara e de suas Irmãs, era cheia de fé e de esperança. Centrava-se nos interesses do Pai e nas necessidades dos homens: a glória do Senhor, a sua vontade, o seu reino de amor, as urgências eclesiais e da humanidade em geral. Em São Damião vivia-se em profunda comunhão com os demais. Ali existia a mais delicada sensibilidade diante das reais e graves necessidades da Igreja. A sua vida interior, a ————— 52 LCL, 20, in FF II, p. 257. 53 LCL, 20, in FF II, p. 256. 54 LCL, 44, in FF II, p. 273. 25 contemplação do Senhor em que viviam mergulhadas, mantinha-as abertas, atentas e receptivas aos seus irmãos em Cristo. Celano fala com entusiasmo do poder de intercessão, do fascínio, do poder de irradiação da fraternidade: lares que começavam a viver mais cristãmente; mosteiros que se renovavam espiritualmente; inimigos que se perdoavam; doentes que ficavam curados; casais que, decidindo-se pela vida de consagração, de comum acordo seguiam Cristo na vida religiosa; donzelas que, movidas pelo exemplo da virgem Clara, abraçavam a vida do claustro. A santidade daquelas almas generosas fez-se torrente que, como os braços de um rio, irriga a Igreja e o mundo. Como era forte a sua sensibilidade eclesial!… O cardeal Hugolino, em carta dirigida a madonna Clara diz cheio de confiança: ―recomendo-te a minha alma e o meu espírito, tal como Cristo se encomendou ao Pai no alto da Cruz, para que, no dia de juízo, respondas por mim, caso não te tenhas preocupado o suficiente com a minha salvação 55. Mais tarde, quando papa, com o nome de Gregório IX, quantas vezes confiava as suas dificuldades às Irmãs do mosteiro de São Damião!… E que diremos do seu carinho, do seu zelo, da sua oração para com os Irmãos Menores doentes, como Frei Estêvão, preocupados ou necessitados de alento; das suas Irmãs doentes, aflitas ou quiçá desencantadas; dos muitos doentes que recorriam a Clara?… Não era ela, para todos, canal de graças?… Que dizer do alento, do amor, que tantas vezes infundiu na alma do Irmão Francisco?!..Basta recordar a sua ternura, o seu poder espiritual sobre o seu Pai e mestre aquando da crise da Primeira Ordem por 1221-1223; a confiança nela depositada quando desejou saber a vontade do Senhor: continuar a pregar ou dedicar-se à contemplação? Quando sabia concretamente de alguém que ofendia a Deus, sofria e intercedia pela sua transformação. Foi assim que o cavaleiro Hugolino que, durante mais de vinte e dois anos vivera separado da esposa Guiduccia, como depôs no processo de canonização de Clara, se reconciliou com ela e voltou ao lar56. São muitos os testemunhos da eficácia da intercessão de Clara e suas filhas em favor da cidade de Assis. Sempre que algum problema, ameaça ou calamidade se fazia sentir, os assisienses sabiam que tinham no mosteiro mãos levantadas ao Céu suplicando perdão e bênção. Eles sabiam ————— 55 CHg. 3, in FF II, p. 432. 56 PC, XVI, 4, in FF II, p. 207. 26 que São Damião era o seu baluarte de defesa, porque oásis de oração e de paz, e a ele recorriam com confiança. Foi o que aconteceu aquando das incursões dos sarracenos em 1240 e de Vital de Antuérpia, sob as ordens de Frederico II, em 1241. A oração e penitência das religiosas, recebida pelo Senhor, libertou a cidade do assédio 57. 3. Francisco e Clara: Uma vocação comum, um mesmo carisma, uma mesma família religiosa Recordando, como acima ficou dito, que a Segunda Ordem Franciscana, sob a acção do Espírito, foi profeticamente anunciada por Francisco, quando reparava a igrejinha de São Damião, podemos dizer que tem a raiz nas palavras dirigidas a Francisco quando, ainda no início da sua caminhada de conversão, foi interpelado por Cristo a reparar a sua Igreja. Desde, então, Clara passou a existir no coração e na mente do Irmão, como a ―senhora pobre‖, ―a cristã‖, a mulher evangélica, que o Senhor punha ao seu lado para fazer a mesma caminhada de fé e de vida de seguimento de Cristo, numa dimensão que, embora não sendo paralela, era complementar. A Pomba prateada ou Pomba do franciscanismo, como repetidamente a chama Guedes de Amorim58, é a pedra angular sobre a qual assenta a nova Ordem, tradução feminina, sob a forma claustral, do ideal de Francisco, seu pai e mestre espiritual. Sendo única a vocação franciscana renovar a vida de Cristo na terra , nasce daí a necessidade de uma total abertura à vontade do Pai em amor contemplativo, ao seguimento e transformação em Cristo, o Pobre Crucificado, e, simultaneamente, a disponibilidade ao serviço dos homens, no anúncio da Palavra. Francisco irá mundo fora, liberto das coisas materiais, disponível para caminhar, cantando como ―arauto do grande Rei‖, e comprometido somente com Cristo, numa imensa clausura aberta, num convento feito ao ar livre, entre o arvoredo, as ervas do campo e as flores; a sua ―Plantazinha‖, mulher de fé profunda e de pobreza, no silêncio contemplativo, como o de Maria, ficará com suas Irmãs no seu pequeno mosteiro. Nesse ————— 57 Cf. PC, II, 20, p. 150; III, 18-19, p. 157; VI, 10-11, p. 173; IX,2, p. 181; XIII, 9, p.199, XVIII, 6, p. 212, in FF II; também LCL, 21-23, pp. 257-259, in FF II. 58 Guedes de Amorim, Francisco de Assis, Renovador da Humanidade, Lisboa, 1960, pp. 188, 247, 397, 402 e outras. 27 oásis de amor e de paz, estas filhas de Deus oram, amam e contemplam, para que Francisco e seus Irmãos, na sua vida itinerante e humilde, possam reparar a Igreja do Senhor. A ―Flor de Altura ―, como gentilmente a chama o poeta José Régio,59a mulher evangélica do século XIII, dentro do pequenino mosteiro de São Damião, no segredo de Deus, numa longa noite de silêncio contemplativo, fecundando a acção de Francisco e seus Irmãos, adorando e orando pela humanidade inteira, é o complemento da vocação do ―Poverello de Assis‖. Inseridas na fraternidade que tinha Francisco por cabeça, comum era a sua missão: restaurar a Igreja de Cristo, ser luz, ser claridade. E único era o carisma, pois, como dizia o Irmão Francisco, ―… um só e mesmo espírito levou os irmãos e as senhoras pobres a deixaram o mundo‖60. E o testemunho daquelas mulheres evangélicas era força fecundante que, como rio de águas cristalinas, levava vida e vigor espiritual aos homens, seus irmãos. Não admira que em Clara, coração aberto ao mistério de Cristo, Francisco encontrasse força e luz em situações de obscuridade e de dúvida. Os anos iam passando. Para o ―Pobrezinho de Assis‖, a grande família que o Senhor lhe dera, era uma árvore única, crescendo com expressões diferentes, mas complementares. Francisco e Clara surgem como exemplo maravilhoso de um relacionamento amigo e terno, sempre orientado para Deus, único e sumo bem. Detecta-se neles algo de misterioso, de fascínio, de transfiguração. Eram espelho de Deus. Em suma: O frade menor e a irmã clarissa, porque enamorados por Jesus, eram e são chamados à identificação com o Senhor, à vivência do Evangelho, em pobreza e fraternidade. Ambos são chamados a responder com a vida, à ordem do Senhor: ―Francisco, vai e repara a minha casa que, como vês, está quase em ruína‖61. Uma mesma vocação, um mesmo ideal, uma mesma responsabilidade, uma mesma resposta a dar. 62 A diferença está tão somente na forma de concretizá-la: ————— 59 Em louvor de Santa Clara (organizado por Armindo Augusto), Braga, 1954, pp. 199-200 60 2C, 204, in FF I, 2ª edição, p. 537. 61 2C, 10, in FF I, 2ª edição, p. 367. 62 Chiara Augusta Lainati, osc, Santa Clara de Asís. Prólogo à edição espanhola, p. 7. 28 O frade menor actua, por mandato do Senhor, no meio dos irmãos, proclamando e testemunhando a plenitude do amor de Jesus Cristo, a bondade de Deus e a fraternidade dos homens; a irmã clarissa, no escondimento do claustro, vivendo em pobreza, em oração silenciosa e contemplativa, dá testemunho de Cristo em contemplação a sós com o Pai, proclama ―o encanto que Deus é‖ e assume, com Cristo pobre e crucificado, as dores, as alegrias e as esperanças dos homens. Francisco e Clara!… Uma Família Franciscana, uma mesma vocação, um mesmo ideal: o encanto, o enamoramento por Jesus Cristo. Uma só e mesma vocação contemplativa. O Irmão Francisco e a sua ―Plantazinha‖ tinham consciência desta missão comum. Francisco, diante da fidelidade das damianitas, mulheres evangélicas, fortes e fiéis no seguimento da Cruz e na vivência do carisma, quis assumi-las como filhas, e isso, em seu nome e dos seus sucessores, conforme o texto de Celano: ―Quando o Pai, mercê das numerosas provas de altíssima perfeição, as viu decididas a aceitarem, por amor de Cristo, toda a espécie de trabalhos e provações, e a não se desviarem nunca das santas normas recebidas, prometeu-lhes firmemente, a elas e às que viessem a professar o mesmo teor da vida pobre, o seu apoio e o dos irmãos. Enquanto viveu, manteve sempre escrupulosamente esta promessa e, prestes a morrer, recomendou encarecidamente aos irmãos que tivessem por elas as mesmas atenções‖63. Clara e suas Irmãs, viam em Francisco o pai, o irmão e, de certo modo, a mãe que as alimentava com a sua espiritualidade; o mestre que as levava sempre a superarem-se para as mergulhar em Deus. No Testamento, o escrito mais impregnado de recordações pessoais e franciscanas, que encerra todo o carisma da Segunda Ordem, a Pomba do franciscanismo, evoca com a alma cheia de emoção e gratidão, a pessoa daquele que foi ―nossa coluna e única consolação, nossa fortaleza, nosso fundador, assistente no serviço de Deus‖64 e, que, ―movido de grande ternura para connosco, se obrigou, por si e pela sua Ordem, a ter por nós, tal como por seus irmãos, diligente caridade e uma solicitude particular‖65. Como consequência, Clara abandona-se a esta protecção e solicitude: ―Do ————— 63 2C, 204, in FF I, 2ª edição, p. 537. 64 TCL, 38 e 48, in FF II, pp. 71 e73. 65 TÇL, 29, in FF II, 71. 29 mesmo modo recomendo as minhas irmãs presentes e futuras ao sucessor do nosso bem-aventurado Pai Francisco e a toda a sua Ordem, para que nos ajudem a progredir cada vez mais no serviço de Deus e a observar cada vez melhor, sobretudo, a santíssima pobreza‖66. Ao redigir a Regra, a Irmã Clara, recordando que no início da sua conversão, ela e suas irmãs, haviam prometido obediência ao bem-aventurado Francisco, no capítulo I, deixa expresso o seu desejo e a sua vontade de forma irrevogável: ―… da mesma maneira promete obediência inviolável aos seus sucessores. E as outras Irmãs estejam sempre obrigadas a obedecer ao sucessor do bem-aventurado Francisco‖67. Quem não vê implícita, nas entrelinhas dos textos de Francisco e de Clara, a vontade de tão santos fundadores, de que as Irmãs Clarissas tenham com o Primeira Ordem Franciscana ligação jurídica bem definida?… Esta filha querida do ―Poverello‖ encarna, de forma ímpar, o ideal recebido e, na clausura de São Damião, sustenta e anima os seus Irmãos na fidelidade ao projecto de Francisco. Depois da sua morte, a 11 de Agosto de 1253, os Irmãos Menores ―descobrem em Clara a guarda do projecto evangélico originário‖68. Deus, condutor da história dos homens, em cada época suscita os profetas de que a Igreja precisa. No século XIII, Francisco e Clara foram instrumentos de Deus para a renovação necessária e adequada. ————— 66 TCL, 50, p. 73; RCL, 4, p. 53, in FF II. 67 RCL, I, 4, in FF II, p. 45 68 Frei Giacomo Bini, op. cit., p. 21. 30 A MENORIDADE EM CLARA DE ASSIS Marco Bartoli* ————— * Das Actas do Congresso celebrado em Roma, em 26 e 27 de Novembro de 2002, Minores et subditi omnibus 31 A MENORIDADE EM CLARA DE ASSIS O tema da minoritas (menoridade) em Clara de Assis é um problema historiográfico assaz intrigante sob muitos aspectos. Entrando nele directamente, poderíamos perguntar: por que razão os discípulos de Francisco se chamaram irmãos menores e as mulheres, que também prometeram obediência, nunca se chamaram irmãs menores? A resposta não é tão simples como pode parecer, tanto mais que a designação de irmãos menores não é de todo ignorada nas fontes coevas, nem a menoridade, como conteúdo, deixou por certo de merecer alguma vez todo o apreço da própria Clara1. Afonso Marini recorda, por exemplo, uma passagem da segunda carta a Inês da Boémia, em que se diz: ―Eu te exorto a não esqueceres o teu santo propósito e, qual outra Raquel, não ————— 1 Eu mesmo, como muitíssimos outros antes de mim, a propósito da da menoridade de Clara, mesmo em sede de congresso, utilizei outro famoso texto dos escritos de Clara, da Regra, que diz: ―Com efeito, muitas vezes é ao mais pequenino que o Senhor revela aquilo que mais convém”(cf. Fontes Franciscanas II, Editorial Franciscana, Braga, 1996, obra que citaremos neste artigo como FFII). A expressão é ao mais pequenino(menor) que o senhor revela, é tirada da regra de S. Bento (cf.3,3), mas ali se diz iuniore (o mais jovem). Clara parece ter substituído conscientemente a palavra iuniore por minori tirando o acento tónico do problema da idade para a importância no seio da comunidade. Tudo isto pode ser sugestivo, mas devemos deixar isto de parte, porque uma leitura recente duma Bula que continha a Regra, conservado no Protomosteiro, estabeleceu que a leitura correcta é iuniori, tal como vem na Regra de S. Bento. Agradeço ao P. Lehmann o haver-me esclarecido sobre este erro, e sobretudo o último estude de CHIARA AGNESE ACQUADRO, ――Frecuentemente el Señor revela al menor lo que es mejor‖. Um erro de leitura já velho, de cinco séculos». Em Collectanea Franciscana 71 /3-4(2001), 521-526. 32 percas de vista as motivações do início. Mantém-te firme no que já alcançaste‖2. Segundo Marini, ―Raquel, mulher de Jacob, com a irmã mais velha, Lia, era tida como símbolo da vida contemplativa, já que no Génesis 20,16, se lê que Raquel é a filha menor de Labão. Ora o «início‖ a que Inês, qual outra Raquel, é convidada por Clara a ter sempre presente, parece ser aqui a ―menoridade‖ franciscana, mais do que a contemplação em sentido estrito 3. Seja como for, em todos os escritos de Clara o termo menor está exclusivamente associado aos irmãos menores, como se o ter de aludir sequer à condição de menoridade lhe provocasse algum pudor ou reserva. É talvez devido a este silenciamento que, tanto quanto sei, não são muitos os estudos dedicados ao tema da menoridade em Clara de Assis4. Esta escassez de estudos não deixa de nos surpreender um tanto, pois sabemos, por outra parte, que o primeiro e conhecidíssimo testemunho sobre o movimento iniciado por Francisco de Assis falava explicitamente não só de irmãos como também de irmãos menores. Aludo aqui, como se está a perceber, à carta de Tiago de Vitry, escrita em 1216, imediatamente após a sua participação em Perusa nas exéquias de Inocêncio III: ―Apesar de todo o mal que grassa pelo mundo, encontrei uma grande consolação ao ver uma enorme quantidade de homens e de mulheres renunciar a todos os bens e a deixar, por amor de Cristo, a vida mundana. Eram vulgarmente chamados Irmãos e Irmãs menores. Tanto o senhor Papa como os Cardeais professam uma grande estima por estes irmãos‖5. Poder-se-ia pensar que Tiago de Vitry se tivesse simplesmente confundido, aplicando às mulheres o mesmo nome utilizado para os homens. Mas talvez se possa avançar outra explicação. Alguns anos mais tarde, o Papa Gregório IX, na carta Ad audientiam nostram de 21 de ————— 2 2CCL 11 3 «Antologia degli scritti di santa Chiara», a cura de A. MARINI, em Chiara d’Assisi. Con Francesco sulla via di Cristo, Asís-Santa Maria dos Anjos 1993, 51-661; 115-152, a citação está na p. 132. 4 Um dos pouco que em tempos relativamente recente se interessou pelo temo foi P. OPTATO VON ASSELDONK, ――Sorores minores‖. Um nova visão do problema», em Sel. Fran. 69 (1994) 373-406. 5 FFII p. 477 33 Dezembro de 1241, tomava posição contra algumas mulheres a quem chamavam ―minoretae‖ (menores): ―Aos veneráveis irmãos, Arcebispos e Bispos que recebam esta carta, saúde e bênção apostólica. Sabeis certamente que chegou ao nosso conhecimento o caso de algumas mulheres que circulam pelas vossas cidade e dioceses e falsamente afirmam fazer parte da ordem de São Damião. Para se tornarem mais credíveis, andam descalças e vestem o hábito das monjas da dita Ordem. Por isso lhes chamam descalças, cordígeras ou menores. É sabido que as monjas de S. Damião vivem a clausura perpétua como serviço prestado a Deus. E uma vez que isso causa perplexidade à Ordem de São Damião e indignação aos Frades Menores e esta falsa Ordem causa escândalo aos ditos frades e às ditas monjas, ordenamos com esta Carta Apostólica, a todos vós, que as obrigueis, com censura eclesiástica, a renunciar a tal hábito e respectivo cordão, depois de as terdes admoestado logo que sejais informados da sua presença, concedendo-lhes faculdade de apelar‖6. Era pois desta forma que o Papa afirmava não convir tal menoridade às monjas da Ordem de São Damião, embora, por outro lado, as suas palavras sejam a prova provada de que a menoridade nos meados do século XIII não era apanágio apenas de homens, antes andava igualmente associada a grupos de mulheres que viviam a opção franciscana numa vida itinerante. A este respeito, Maria Pia Alberzoni observou ser ―significativo que tal fenómeno (das minoretae) só se tivesse manifestado nos inícios da década de 40 de 1200, o que poderá indiciar o facto de haverem estado até então no centro das atenções, mercê da mediação de Frei Elias, e de serem reconhecidas de alguma maneira pela Ordem franciscana ou por uma parte dela, e encaminhadas na direcção das que definimos como fundações de clarissas (clareanas)‖7. Segundo um testemunho tardio, Francisco teria reagido vivamente contra a denominação de irmãs menores a si próprias arrogada por certos ————— 6 FFII p. 474 7 M.P. Alberzoni, Chiara e il papato, Milan, 1995, 91. Há que observar que no século XVII, L. Iacobili, historiador da santidade da Umbria, anotava, referindo-se ao ano 1216: ―Santa Clara de Assis veio a Folinho em companhia de Marsebilia e Cristiana, suas discípulas, para edificar um mosteiro da sua Ordem de São Damião, chamado depois das Minorisse…”, Folinho, Biblioteca Iacobilli, cod. A.V. 6, c. 56; ed. Em M. SENSI, ―Le clarisse a Foligno nel sec. XIII‖, em CF 47 (1977), 358, documento II. 34 grupos femininos, ou porventura a elas atribuída a partir do exterior 8. Teria inclusivamente invocado a assistência do cardeal Ugolino para que ―de futuro, se não chamassem irmãs menores, mas dominae, ou seja, senhoras9. Embora tardia, esta tradição revela no entanto que persiste um certo embaraço nos ambientes franciscanos, face ao termo menores aplicado às mulheres, embaraço que vemos repercutir-se ainda em Fra Mariano de Florença, no início do séc. XVI, no seu Libro della dignità et le excellentie… ―Mas quando São Francisco voltou de Santiago e ouviu da parte dos irmãos que se tinham edificado mosteiros em muitas terras e cidades e que muitas irmãs se chamavam menores, grandemente se doeu por não querer tê-las ali perto, dando aso a que os irmãos tivessem familiaridades com mulheres e daí se levantassem sinistras suspeitas entre o povo. Pelo que não quis tomar conta delas, excepto as já mencionadas, de São Damião‖10. Parece certo, todavia, que em contextos de algum modo periféricos, relativamente à região umbro-toscana onde nasceram as primeiras comunidades próximas da experiência de São Damião, a designação de ————— 8 «Dizia o mesmo Fr. Estevão que o bem-aventurado Francisco não queria ter familiaridade com nenhuma mulher e não permitia que as mulheres o tratassem com modos familiares; só parecia ter afecto para com a bem-aventurada Clara. E, não obstante, quando falava com ela ou falava dela, tratava-a sempre com o nome de ‗cristã‘. E tinha grande solicitude para com ela e seu mosteiro. E nunca autorizou a fundação de outros mosteiros, mesmo que alguns tenham sido abertos, mas por influência de outros. E quando soube que as mulheres, reunidas nesses mosteiros, se chamavam irmãs, perturbou-se muito e exclamou: ―O Senhor tirou-nos as mulheres e o diabo deu-nos as irmãs‖. O Cardeal Hugoloino, bispo de Óstia, então Protector da Ordem dos Menores, acompanhava estas irmãs com grande afecto. Uma vez ao despedir-se de Francisco, disse-lhe: ‗Confio-te estas senhoras‘. Francisco, então, respondeu-lhe com graça: ‗Santo pai, de agora em diante não se chamarão irmãs menores, mas como tu disseste, senhoras‘. E desde então, chamaram-se Senhoras e não Irmãs», em Fonti Francescane 2682-2683. 9 Cf. STANISLAO DA CAMPAGNOLA, Introduzione, em Fonti FrancescaneI, p.315 10 MARIANO DE FLORENCIA, Libro della dignitá et le excellentie del Ordine della Seraphica Madre delle Povere Donne Sancta Chiara da Assisi (Biblioteca de Estudios Franciscanos 18), edição preparada por G. Boccali, Florencia-Assis 1986, 55, n. 39. Isto no seguimento duma larga tradição, dado que, por exemplo, numa compilação de Paris do século XIII, na perícopa narrada por Fr. Estevão, vem anteposta a assinatura ―(Francisco) não queria que se chamassem menores, mas senhoras‖, AFH 76 (1983), 89, n. 504. 35 irmãs menores fosse aplicada também a experiências de vida em comum. É o caso, por exemplo, de Verona, cujas transformações institucionais foram estudadas por Varanini11; não se devendo também esquecer que no códice de Volterra, onde se encontra o texto audite poverelle, junto à regra de Clara, se lê: ―Esta é a Regra das senhoras ―minoritas‖ de Verona da Ordem de santa Clara de Campo Márcio‖12. Digno de menção é ainda o caso de Trento. onde um grupo de mulheres, de inspiração inegavelmente franciscana, vivia, ao que parece, uma vida religiosa em comum ao serviço dum hospital13. O caso de Trento surge ainda mais significativo se tivermos em conta o facto de terem partido precisamente de Trento as quatro mulheres que deram início ao mosteiro de são Francisco de Praga, projectado e fundado em íntima e explícita relação com São Damião por Inês da Boémia14. Importa não esquecer finalmente que as mulheres que se tinham reunido em volta de Isabel, irmã do rei Luís IX; eram habitualmente chamadas minorese (minoritas?) e que numerosos mosteiros, também em Itália (entre os quais o de São Lourenço in Panisperna, em Roma) tinham tomado a Regra e denominação de Isabel15. Em todo o caso, no território umbro-toscano, a partir da década de 40 do ano 1200, o termo menores deixa de se aplicar às comunidades de vida religiosa feminina agregadas à experiência de Clara. A condenação formal das ―minoretae‖ constituía de facto um impedimento insuperável ao uso do mesmo termo para as comunidades de vida religiosa unidas a São Damião. É bem conhecido, por outra parte, o facto de que, enquanto nas Constituições de Ugolino se preferir o termo senhoras pobres, Clara, nos seus escritos, prefere falar de irmãs pobres, conforme diz solenemente no começo da Regra: ―A forma de vida da Ordem das Irmãs Pobres, instituída pelo bem-aventurado Francisco, é esta: observar o santo Evangelho de ————— 11 G.M. VARANINI, «Per la storia dei Minori la Verona nel Duecento», em Minoritismo e centri venetoi nel Duecento, edicão preparada por G. Gracco («Civis. Studi e testi», 7 (1983)), 93-101. 12 A notícia relativa à Audite Poverella encontra-se na Collectanea Franciscana 48 (1978), 17. Cf. Também a nota de G. Bocali ao texto de mariano de Florencia, Il libro della dignitá…, 58, n.1. 13 G.M. VARANINI, Uomini e donne in comunitá, (Quaderni di storia religiosa 1994). 14 Sobre os acontecimentos veja-se A. MARINI, Agnese di Bohemia, Roma 1991, (Biblioteca seráfico-cappucina, 38). 15 Cf. A. BLASUCCI, «Clarisse Isabelliane o Minoresse», em Dizionario degli Stituti di Perfezione, II, Roma (1975), 1.146. 36 Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade.‖ Nenhuma dúvida pode haver de que, aqui, Irmãs Pobres é a tradução no feminino de Irmãos Pobres, que se encontra na respectiva passagem da Regra bulada. A hipótese que se pode legitimamente adiantar é que Clara, na impossibilidade de usar o termo irmãs menores (sobretudo depois da carta Ad audientiam nostram de Gregório IX) teria optado por Irmãs Pobres, expressão que mais próxima lhe soava. Fica no entanto por explicar a relutância por parte das mais altas autoridades eclesiásticas relativamente ao uso do termo menores, aplicado às experiências religiosas femininas. Nesse intento, talvez seja útil tentar estabelecer qual o valor semântico do termo no séc. XIII. Desejaria tomar como ponto de partida a definição de menoridade optada por Pedro de João Olivi no seu comentário à Regra, por se tratar dum texto redigido poucos anos depois da morte de Clara e reflectir de algum modo a cultura e sensibilidade então dominantes em toda a Ordem. ―Ao falar, pois, dos irmãos menores, mostra claramente que a principal virtude e razão desta Regra está na suma submissão e humildade e na unidade íntima do amor fraterno‖16. É meu entendimento que Olivi identificava nestas palavras dois significados principais, um, por assim dizer, de cariz social, a ―submissão, e o outro, mais especificamente religioso, a ―humildade‖. Relativamente ao primeiro aspecto, parece-me indubitável que menoridade tem um valor muito concreto: o daquele que se encontra na situação de dependência, de inferioridade, de submissão em relação a outrem, como recorda Francisco no Testamento: ―Éramos sem letras e a todos submissos.‖. Conforme já notava Estanislau de Campagnola, ―a origem da designação de irmãos menores nasceu sem dúvida de um tipo de conduta evangélico, mas exprimia também uma renúncia às distinções entre ―maiores‖ e ―menores‖ que dominavam e se entrechocavam nas grandes cidades italianas. Exactamente quando Francisco voltava de Roma, concluiu-se em Assis (9 de Novembro de 1210) um pacto entre ―maiores‖ e ―menores‖, em virtude do qual a população do Município ————— 16 D. FLOOD, Peter’s Olivi Rule Commentary, Wiesbaden 1972, 117. 37 obteve a isenção do serviço e menagem feudais em vista duma pacífica convivência entre as duas classes‖17. A menoridade franciscana revestia-se também de um carácter especificamente social. Para usar as mesmas palavras de Raoul Manselli: ―entrar a fazer parte (da fraternidade) significava também aceitar a vida, ou seja, aquela condição de marginalidade relativamente ao resto da sociedade que Francisco escolhera depois do encontro com o leproso e que, baseada na leitura do Evangelho, ele próprio tinha podido precisar e clarificar depois, averbando por escrito o projecto duma Regra a aprovar pelo Papa‖18. Parece-me ter sido justamente este aspecto social que constituiu o maior problema para as mulheres que desejavam seguir Francisco no caminho da menoridade. O abandono de qualquer estatuto social garantido e a opção duma vida a todos submetida devia constituir motivo de preocupação, tratando-se de mulheres jovens como Clara e suas companheiras. Há uma reflexão sobre este problema na Legenda da virgem Santa Clara, quando se fala da reacção dos familiares apenas souberam que Clara se tinha refugiado em São Paulo das Abadessas: ―…juntaram-se e dirigiram-se ao local. Usando da força e da violência, conselhos dissuasores e promessas vãs, tentaram demovê-la de situação tão humilhante e tão em desacordo com a sua condição e sem precedentes nas redondezas‖19. Os familiares querem convencer Clara a renunciar a tal vileza (vilitas), que as Fontes Franciscanas traduzem por ―condição de humilhante baixeza‖, de todo inconveniente para a famílias e sem precedentes na região. Esta ―vileza‖ de Clara, como já tentei demonstrar noutra ocasião, não consistia tanto na opção pela vida monástica, como certamente na venda que fizera do dote e na distribuição do seu produto pelos pobres.. Neste sentido, a vileza identifica-se com a submissão e a menoridade: uma vez em São Paulo das Abadessas, Clara devia ser não já uma monja de coro, mas, muito mais modestamente, uma simples irmã serviçal. Tal condição ————— 17 STANISLAO DA CAMPAGNOLA, Introduzione, em Fonti Francescane, p. 315. 18 R. MANSELLI, Vida de san Francisco de Asís, Ed. Franciscan Aránzazu, Oñati, 1977 19 LCL 9, FFII, p. 246 38 era considerada aviltante para uma jovem, filha duma das melhores famílias de Assis. Que a Legenda não se enganava muito, ao descrever a opção de Clara como desusada na região, pode ver-se no confronto com outras vidas de santas mulheres, suas contemporâneas. Se examinarmos, por exemplo, o antigo ofício litúrgico redigido em honra de Filipa Mareri antes de 1247, verificamos como esta mulher, de nobre linhagem, escolheu certamente o desprezo do mundo com as suas dignidades e riquezas, mas permaneceu no território do feudo da família com algumas companheiras, depois de ter recebido do irmão um público instrumento de estável isenção e de perpétua liberdade. Em suma, mesmo escolhendo a via evangélica do amor a Deus e ao próximo, Filipa era e continuou a ser baronesa 20. Percurso análogo ao de Filipa é o de Margarida Colonna, que continuou a viver no feudo da família, unida aos seus famosos e importantes irmãos21. Rosa de Viterbo, que provinha duma família porventura nada pobre, era certamente mulher do povo e não uma aristocrata, e a sua opção de vida religiosa, permanecendo laica, não comportou qualquer mudança no ponto de vista social22. Mudança em sentido inverso foi a que viveu Margarida de Cortona, que, para alcançar uma impossível proeminência social, fugiu de casa para viver maritalmente com um jovem abastado de Montepulciano. A morte súbita deste levou Margarida a uma amarga reflexão sobre as suas opções de vida e, em consequência, a escolher sem vacilações o caminho da penitência. Do ponto de vista pessoal, certamente que Margarida terá tido uma consciência humilíssima de si mesma, unida a um arguto conhecimento do próprio pecado, mas do ponto de vista social nada ————— 20 Cf. E. PASZTOR, «Filippa Mareri e Chiara d‘Assisi», em Donne e sante. Studi sulla religiosità femmenile nel Medio Evo, Roma 2000, 173-196. 21 Sobre Margarita Colonna consulte-se: B. Margherita Colonna. Le due vite scritte dal fratelo Giovanni senatore in Roma e da Stafania monaca de S. Silvestro in Capite, textos inéditos do século XIII ilustrados e publicados pelo P. Livario Liger, OFM, Roma, 1935. 22 Entre as muitas publicações sobre Rosa de Viterbo, gostaria de aconselhar o que sinteticamente escreveu, há algum tempo, o P. MARIANO D‘ALATRI, Rosa da Viterbo tra mito e storia, en «Lunario Romano 1979»: Feitos e figuras de Lazio medieval, 345-354. 39 houve, no seu percurso biográfico, que se assemelhasse à mencionada ―vileza‖ que tinha caracterizado o de Clara de Assis. 23 Outra figura, sempre associada ao mundo dos laicos que gravitavam em torno do movimento franciscano, além do de Margarida de Cortona, é Humiliana dei Cerchi. Também ela, não obstante as graves incompreensões que a opuseram ao pai depois da morte do marido, permaneceu sempre em casa da família, no centro de Florença24. Um pouco à semelhança das outras piedosas mulheres, viveu uma vida de penitência e de mortificação pessoal, praticando a pobreza voluntária e a renúncia aos bens. Apesar disso, de nenhuma delas se poderia falar de autêntica opção de menoridade, enquanto opção de submissão e de ignobilidade. A única figura feminina que, em certo sentido, se aproxima de Clara neste aspecto só além dos Alpes a vamos encontrar. Refiro-me a Isabel de Hungria. Falecido o marido, renunciou ao seu próprio estatuto social, vendeu os bens e, com o produto granjeado, mandou construir uma leprosaria, onde passou o resto dos breves dias servindo os enfermos e os pobres25. A menoridade, tanto para Clara como para Isabel, teve também um valor social: ambas renunciaram às comodidades próprias da sua condição a fim de se colocarem conscientemente ao serviço de todos, designadamente dos últimos dos últimos. Em Clara, certamente mais do que em Isabel, esta opção foi por ela encarnada numa vida religiosa em comunidade, e é por isso que, tanto a dimensão social como a religiosa de menoridade, aparecem nela estreitamente unidas. ————— 23 No que respeita a Margarida de Cortona, o texto de referência é a Legenda de vita et miraculis Beatae margaritae de Cortona, edição crítica preparada por Fortunato Iozeelli, Grottaferrata 1997. 24 Sobre as Humiliatas vejam-se os trabalhos de Ana Benvenutti, reeditados em «In Castro poenitentiae». Santità e società femmenile nell’Italia medievale, Roma 1990 sobre todo mas pgs. 59-100. 25 Sobre Isabel da Hungria e sobre a relação da sua espiritualidade com o dos Frades Menores consulte-se «Elisabetta d‘Ungherria», em Il grande libro dei Santi, Dizionario enciclopédico, col. I, Cinisello Bálsamo 1998, 591-594. 40 A par da submissão, encontramos em Clara, fortemente vincada, a humildade. Na Legenda da virgem Santa Clara sublinha-se a miúdo, quase como uma constante de biografia monástica, o facto da abadessa não desdenhar dos serviços mais desprezíveis. De Clara se diz inclusivamente que não tinha o menor pejo em esvaziar os vasos de cabeceira das irmãs doentes e de as servir à mesa, mas, para além deste lugar comum hagiográfico, cuja veracidade se não deve pôr em dúvida26, impõe-se sublinhar a forma como Clara quis construir a sua comunidade sobre o modelo duma família normal, mas numa correlação diametralmente inversa. A frase que melhor ilustra este modelo está contida no capítulo X da Regra, onde se diz: ―A abadessa trate as irmãs com tanta familiaridade, que possam elas falar-lhe e tratá-la como senhoras a sua serva; pois assim deve ser: que a abadessa seja a serva de todas as irmãs‖27. Apesar desta frase ter paralelo equivalente na Regra bulada28, pode considerar-se como uma expressão basilar do pensamento da santa. Clara sabia muito bem com que perversidade se dirigiam os senhores às suas servas nas casas senhoriais e, por isso, quis inverter explicitamente este modelo na sua Regra: a abadessa devia aceitar ser tratada como serva pelas irmãs. Neste sentido, embora a palavra, nos escritos de Clara, jamais se aplique ao serviço em favor das irmãs, a sua humildade comunitária encarna duma maneira precisa uma atitude de fundo da menoridade inculcada por São Francisco: a do serviço. Ministrare significa ―servir‖, mas servir nos trabalhos domésticos, como Marta do evangelho, que se lamentava ao Senhor de a irmã a ter deixado sozinha a ministrare. O retrato que Clara faz na sua Regra da abadessa é justamente a de serva ou, melhor ainda, a de famula (que é o exacto paralelo feminino de minister) que não desdenha ocupar-se das actividades mais servis. Este aspecto da sua humildade revela, a meu ver, melhor que qualquer outro, o lado doméstico e comunitário, por assim dizer, da menoridade de Clara. Ainda hoje, se é verdade que as abadessas clarissas, diferentemente do que acontece noutras famílias religiosas, não apresentam no hábito qualquer sinal exterior que exteriorize a sua dignidade, deve-se provavelmente à influên————— 26 LCL 12, FFII p. 249. 27 RCL 10, 4-5, FFII p. 59. 28 2R 10, 5-6. 41 cia da menoridade de Clara ao longo duma tão grande experiência comunitária. Se voltarmos à definição de menoridade proposta por Pedro de João Olivi, sobre que nos detivemos ao princípio, há ainda um ponto a salientar: ―Ao falar, pois, dos irmãos menores evidencia claramente que a principal virtude e razão desta Regra consiste na perfeita submissão e humildade e na íntima unidade do amor fraterno‖. Para Olivi, a perfeita submissão e humildade não é certamente uma debilidade, antes uma força (virtude) e um sentido profundo (razão) da Regra. Talvez valha a pena determo-nos neste sentido de força e de virtude, já que na linguagem corrente de hoje a menoridade anda frequentemente associada a uma ideia de debilidade, se não mesmo de aviltamento e sujeição. Aqui chegado, permito-me sair de uma envolvência estritamente historiográfica para observar como hoje em dia um modelo cultural em certo sentido superior, sobretudo nos países mais ricos, cultiva e reforça o sentido de impotência29. Este sentido funciona no caso da multiplicação das informações que caracterizam o mundo globalizado. Nunca, como hoje, os homens e as mulheres tiveram um tal acesso às notícias do mundo inteiro. Toda a notícia mereceria uma reacção, um assumir de responsabilidades, segundo o princípio enunciado por Paulo VI (―jamais poderemos dizer que não sabíamos‖). Se não queremos ser esmagados pelo sentido de culpa, impõe-se que nos refugiemos no sentido de impotência que permita dizer: os problemas são tantos que nada posso fazer. Por isso, a impotência chega a ser funcional para o caso da pretendida inocência ou, talvez melhor, para a não culpabilidade. Em certos aspectos, este sentido de impotência compagina-se com a menoridade. Ambos albergam o conhecimento da própria pequenez e finitude pessoais, mas, ao passo que a impotência, apregoada pelos actuais mass media, induz à resignação e passividade relativamente ao mundo e seus problemas, a menoridade optada por Francisco era conhecida por toda a primeira geração minorítica (pelo menos até Pedro de João Olivi, inclusive) como uma virtude, uma força e uma oportunidade. ————— 29 O P. RICOEUR, em La memoire, l’histoire et l’oubli, Paris, 2000, dedicou páginas interessantes ao tema da sensibilidade vitimista. 42 Para mim tenho que este sentido forte de menoridade foi igualmente o de Clara, que, desfrutando embora de um sentido vivíssimo da sua pequenez, possuía também um fortíssimo sentido de que a menoridade por ela escolhida voluntariamente era abençoada pelo Senhor que a confortava. É o que transparece, por exemplo, na sua famosa bênção, com cujas palavras me parece oportuno concluir: ―Eu vos abençoo durante a minha vida e depois da minha morte, quanto posso e mais do que posso, com todas as bênçãos que o Pai das misericórdias concedeu ou venha a conceder aos seus filhos e filhas espirituais, no céu e na terra, e com as quais um pai ou mãe espiritual abençoa e abençoará seus filhos e filhas espirituais. Assim seja‖. Traduziu Fr. José David Antunes 43 ALEGRIA E PAZ Fr. Timothy Radcliffe op* ————— * Conferência proferida durante o Capítulo Geral dos Franciscanos – Junho de 2003 45 ALEGRIA E PAZ É para mim uma grande alegria estar no meio de vós. Quando eu fui Mestre Geral dos Dominicanos, a relação com a vossa Ordem era muito importante para mim. Tive uma grande amizade com Fr. Hermann e Fr. Giacomo e os nossos Conselhos reuniram, em conjunto, por várias vezes. Pediram-me para partilhar convosco alguns pensamentos sobre a missão. A concepção franciscana e dominicana de missão é ao mesmo tempo semelhante e diferente.. Temos uma longa história partilhada sobre a missão. O primeiro documento oficial da Igreja enviando os franciscanos em missão, assinado por Honório III em 1225, também se dirigia aos dominicanos. Fomos enviados juntos como missionários ao norte de África. Também houve problemas entre nós, como sempre acontece entre irmãos. Quando li o relatório do Fr. Giacomo a este Capítulo Geral, pareceu-me semelhante àquele que enviei ao nosso último Capítulo. Enfrentamos os mesmos desafios e temos projectos semelhantes: uma comunidade internacional em Bruxelas; o reforço duma comunidade em Istambul; renovação na África do Norte, etc. E também temos uma Comissão de Direitos Humanos em Genebra. Algumas vezes tive de me concentrar para me assegurar que não estava a ler o meu próprio relatório. Mas também somos muito diferentes, como o foram Francisco e Domingos. Assim espero que o que vou dizer sirva de complemento. Se não, ficarei consolado recordando um dos meus irmãos da Conferência dos Estados Unidos: Quando se sentou, depois de falar, pareceu-lhe que os aplausos tinham sido fracos. Um pouco desgostoso desabafou com o vizinho: ―Espero que a conferência não tenha sido tão má‖! Ao que o outro respondeu: ―Deixa lá. A culpa não é tua, é de quem te convidou‖! 46 Primeiro, um comentário introdutório: estão a reflectir sobre a missão num clima de crise para a vida religiosa. A maioria das Ordens religiosas sentem as mesmas dificuldade: A escassez de vocações em algumas partes do mundo e o abandono desta forma de vida. No seu relatório diz o Fr. Giacomo: ―Nestes anos a Ordem decaiu em número e isto ainda será mais notório nos próximos tempos‖. Num tempo de crise, é fácil perder o ardor missionário e voltar-se para dentro. É tentador preocupar-se pela sobrevivência, de forma que cada Província olha as suas próprias necessidade e esquece a missão de toda a Ordem, cada comunidade pensa na sua própria sobrevivência e esquece a Província e cada frade esquece o seu irmão e pensa só nas suas próprias necessidades. Quando começamos a pensar em termos de sobrevivência, estamos acabados. Por que razão um jovem se haveria de juntar a nós, se só pensamos em sobreviver? Ainda bem que neste Capítulo não foram ir por aí e quiseram pensar na missão. O mais importante é não temer esta crise. A nossa missão está em partilhar a vida de Cristo. E a vida de Cristo esteve marcada pela crise. A sua missão alcança a máxima crise na Última Ceia. Jesus reúne os discípulos à sua volta, quando a comunidade se está quase a desintegrar: Judas já O tinha vendido; Pedro está prestes a negá-lO. E a maioria dos outros discípulos vai fugir. A vida de Cristo encaminha-se para o fracasso e a derrota. Mas é num momento de crise que realiza o gesto tão cheio de esperança: Toma o pão e dá-o aos seus discípulos dizendo: ―Isto é o meu corpo entregue por vós‖. Quando a comunidade se está desintegrando, proclama a nova Aliança. Cada eucaristia que celebramos actualiza o memorial desta crise vencida e transcendida. Não há nada que temer perante as crises. A Igreja nasceu duma. Seguir a Cristo é passar por numerosas crises. As nossas Ordens viveram muitas: para vós a morte de Francisco, para as nossas Ordens a crise da peste negra, a reforma, a revolução Francesa, os dolorosos e gloriosos anos depois do Concílio Vaticano II. As crises são o trampolim para o Reino. Os Franciscanos, ainda mais que os Dominicanos, sempre acentuaram que a sua missão se enraizava na forma de vida, a sua vida. Fr. Giacomo diz no seu relatório: ―Mais que geográfica, a missão dos Franciscanos é 47 antropológica‖1. Intuo que no coração de sua missão está a alegria de S. Francisco. A sua regra manda que os frades vão pelo mundo ―com alegria e felicidade‖. Ninguém acredita que um pregador tristonho é portador de boas notícias. Como escreveu Nietzsche: ―Os discípulos de Cristo deveriam mostrar-se mais redimidos‖. S. Francisco e seus primeiros irmãos viviam cheios de alegria. As cartas de Clara estão cheias de alegria. O mesmo se pode dizer de S. Domingos e seus primeiros irmãos. Muitas vezes se descreve a S. Domingos como um homem que ria com seus irmãos. E esta é a autoridade mais fundamental dum pregador. Conta a história que um dia um grupo de noviços começou a rir durante as Completas. Um dos irmãos mais velhos zangou-se com eles por rirem na igreja. Mas Jordão da Saxónia, sucessor de S. Domingos, repreendeu-o e disse aos noviços: ―Riam até vos apetecer e não liguem ao que diz este irmão. Tendes a minha autorização. Devemos rir quando nos conseguimos libertar do maligno… riam, pois, e manifestem contentamento até à saciedade‖. Um frade tristonho não podia ser membro da Ordem dos Pregadores. O Cardeal Suhard, antigo Bispo de Paris, escreveu: ―Ser testemunho não consiste em comprometer-se com propagandas ou amotinar as turbas, mas em crer num mistério vivo. Significa viver de tal forma que a própria vida não teria sentido se Deus não existisse‖2. As pessoas seriam atraídas ao Evangelho se encontrassem em nós uma alegria inexplicável, que não teria sentido se Deus não existisse. Seriam atraídos e ficariam atónitos com a nossa alegria. Teria que ser um sinal interpelativo vivo e um convite. Um dia passando pela cidade velha de Jerusalém, de regresso a casa, vi, através duma porta, uma casa cheia de Hassidin que bailavam. Na sua alegria eu vi a sua fé. Francisco acreditava que a própria vida é uma entrada na vida de Jesus. E a missão de Jesus começou com a alegria do Pai no baptismo. Emerge das águas e escuta-se uma voz dizendo: ―Tu és o meu filho muito amado, em ti pus as minhas complacências.‖ A fons et origo da missão de ————— 1 P. 88 2 Growth or Decline, Notre Dame 1951, quoted by S. Hauerwas, Sanctify the Time, Edimburgh 1998, p. 38. 48 Jesus é a alegria que o Pai tem no Filho e a alegria que o Filho tem no Pai, que é o Espírito Santo. O mestre Eckhard, dominicano e místico alemão, diz que no centro da vida de Deus há um riso incontível. ―O Pai ri com o Filho e o Filho ri com o Pai, e o riso traz prazer e o prazer traz alegria e a alegria traz amor.‖3 Diz que a alegria de Deus é como um cavalo galopando num campo, cortando o ar com prazer. Toda a nossa pregação é um convite às pessoas a encontrar o seu lugar nessa alegria. Jesus iniciou a sua missão participando numa festa e bebendo com cobradores de impostos e prostitutas. Encontrou prazer em estar com eles; deleitava-se na sua companhia. A Igreja não tem nada que dizer sobre qualquer assunto, mormente sobre moral, enquanto as pessoas não sintam a Igreja como um espaço de alegria, no qual se Deus se compraz. A gente mais marginal, cujas vidas são uma tragédia e não vivem de acordo com as leis da Igreja, deveriam encontrar em nós, uma comunidade que, de muitas formas, lhes diz: ―É maravilhoso que existais‖. Os pregadores deveriam estar motivados por uma indescritível alegria, que se levanta como um sinal interpelativo. Porque são estas pessoas tão felizes? Qual é o seu segredo? Neste Capítulo os franciscanos reflectem sobre a missão da Ordem num contexto novo, o da aldeia global na qual todos os seres humanos são vizinhos. Creio que a alegria franciscana tem, aqui, um especial testemunho a oferecer. Antes de mais é uma alegria que brota da pobreza, o que parecerá uma loucura num mundo em que o dinheiro comanda. Depois é uma alegria que sonha com o Reino e que é vital para um mundo que já não sonha com o futuro. A alegria de Francisco era a de um homem pobre que tudo recebia como uma prenda. Como nada possuía, então viveu num mundo de total generosidade. Cada bocado de pão era um presente. Diz-se que no Capítulo das Esteiras, S. Domingos ficou surpreendido com a confiança que os 5000 frades tinham em ser alimentados com ofertas (Fl 18). Naturalmente os historiadores dominicanos duvidam da historicidade deste relato. ————— 3 Sermão 18, in F. Pfeiffer, Aalen 1962 quoted in Murray, op. Cit. P. 132 49 Esta mendicidade era mais que optimismo. Era uma maneira de estar no mundo, onde tudo é experimentado como um dom. Francisco era um homem sempre surpreendido pelos presentes que Deus lhes dava: comida e bebida, luz e água, irmãos e irmãs e até a existência. Ser um mendigo é viver num universo de dons. E Francisco teve sempre a alegria de um eterno Natal. Este sentido de dom foi central, também, para a teologia de Tomás de Aquino. Ele acreditava que se olhando o mundo com claridade, com Veritas, verdade, então via-se que tudo é um dom de Deus. Percebe-se assim que a alegria franciscana e dominicana fundem as suas raízes numa visão do mundo em clave de gratuidade. Francisco recusou o mundo de seu pai, que era um comerciante, um homem de mercado. Mas desde então o mundo inteiro converteu-se num mercado. Tudo se converteu numa comodidade com um preço. Nos tempos de Francisco e Domingos, ninguém pensava que pudesse possuir terras. Alguém podia ter o uso da terra, mas esta pertencia a Deus. Segundo Aquino, toda a posse privada estava condicionada pela bem comum de toda a humanidade. Mas gradualmente tudo se pôs no mercado que é este mundo moderno: terra e água, e sobretudo os seres humanos. Agora quatro ou cinco das maiores companhias internacionais estão em competição pela propriedade de todas as sementes e, por este meio, da fertilidade da terra. Há até quem queira ter a propriedade do mapa humano de ADN, tomando posse da nossa própria natureza. Por isso a alegria do Poverello contradiz a forma moderna de olhar a realidade e abre os nossos olhos para uma nova maneira de encarar o mundo. A minha experiência diz-me que os irmãos mais felizes são os pobres. Vivem num mundo de dons e quando falam de Deus as suas palavras têm autoridade. (E se não sabem como desfazer-se das riquezas, podem entregá-las aos dominicanos, para ver quem é mais feliz!…) A alegria franciscana oferece outro tipo de desafios à nossa aldeia global. É um desafio com perpectiva utópica. É a alegria daqueles que já têm um pé no Reino. Isto verifica-se, sobretudo, nas histórias de S. Francisco com os animais. Elas sugerem mais do que parecem. Quando pregava às aves ou reconciliava os habitantes de Gúbio com o lobo, vemos como o Reino começa a tornar-se presente: ―Então o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos, e um menino os conduzirá‖ (Is 11, 6). 50 Diz-se que quando pregava aos peixes, estes se retiravam felizes (Fl 40). (Eu sou um dominicano típico porque a minha primeira reacção a estas histórias é perguntar como é possível saber se um peixe está feliz! Temos uma relação diferente com os animais. Talvez porque somos animais, os Domini Canes (cães do senhor)… pelo que devem tratar-nos bem). Albertto Magno interessava-se pelos peixes, mas não os queria compreender. Queria saber se faziam ruído ou não quando acasalavam e oferecia às ostras pedaços de metal para ver se era verdade que os comiam. Tinha uma serpente como mascote que se embebedou e andava perdida pelos claustros4. Esta utópica alegria franciscana é um convite ao nosso mundo posmoderno. Vivemos numa sociedade que perdeu por completo a capacidade de o sonhar no futuro. Eu cresci numa cultura onde se acreditava que a humanidade se dirigia a algum sítio. Para uns era o paraíso capitalista, para outros o paraíso socialista. Os carros e os aviões tornavam-se cada dia mais velozes. Os países foram libertados do governo tirânico da Inglaterra. Até a comida inglesa mudou. Podiam-se comer rãs e caracóis. O Reino estava próximo. Todos estes sonhos os resumiu Martin Luther no famoso discurso de 28 de Agosto de 1963: ―Eu tenho um sonho‖. O sonho era a liberdade, quando ―todos os filhos de Deus, homens negros e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos forem capazes de se dar as mãos e cantar com as palavras do velho cântico espiritual dos negros: ―Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus Todo-Poderoso, somos finalmente livres.‖ Quarenta anos depois, esses sonhos perderam-se. O muro de Berlim caiu, terminou a guerra fria, mas como escreveu Fukuyama, a história terminou. Vivemos na geração do hoje, do imediato, que tem medo de pensar no amanhã. Não se vive o sentido duma humanidade a caminho para um destino comum: o triunfo sobre a pobreza e a injustiça. Tivemos algumas vitórias: derrubou-se a apartheid e já não existe o império soviético. Mas há poucas situações como o Brasil do presidente Lula, que nos oferecem alguma razão para acreditar que os sonhos ainda se podem realizar. Parte da vossa missão como franciscanos é, certamente, renovar ————— 4 Simon Tugwell OP, Albert and Thomas: Selected Writings, New York, 1988, p. 29 51 os sonhos da humanidade. É uma alegria que rejeita a resignação e o fatalismo. Parra isso precisais de vos deixar penetrar duma alegria escatológica, que seja a antecipação da alegria do Reino. Esta utopia pode acabar mal, como sucedeu com os seguidores de Joaquim de Fiore, os Fraticelli. Se o Evangelho deve ser pregado, temos de sonhar. Dizia Oscar Wilde que nenhum mapa do mundo é exacto se não inclui a utopia. Desta maneira a missão franciscana, fundada na alegria da generosidade de Deus, desafia a mentalidade do mercado, onde tudo é comprado e vendido. Será uma alegria escatológica que mantém viva a aventura do nosso peregrinar. Se tendes que renovar o espírito de missão, então reflecti sobre como manter viva esta alegria em vossas comunidades. Estão os irmãos alegres em fraternidade? Isto implica um cuidado verdadeiro pela felicidade do outro. Necessitamos de estar atentos à felicidade do nosso irmão. Se não o fazemos, então as nossas pregações serão vazias. Necessitamos de nos alegrar em nossos irmãos e deleitarmo-nos com o seu ser. Mesmo sendo muito difíceis, talvez loucos, podemos aprender a olhá-los como Deus os olha, deleitando-se na sua mera existência. São Francisco pede que nos alegremos com o que o Senhor faz e diz através dos irmãos. Precisamos de nos deleitar assim com eles. Quando Fr. Ricério passava por tempos de sofrimento e desespero, só precisava que Francisco lhe dissesse que o amava, coisa que ele fez. ―Meu filho caríssimo, frei Ricério, de entre todos os irmãos que há no mundo, eu te amo de maneira particular‖ (Fl 27). Preocupamo-nos assim pela felicidade do irmão? Temos coragem de lho dizer? Estão os nossos olhos abertos para os aceitar como dom de Deus? Também devemos estar atentos aos sonhos dos irmãos. A maioria das pessoas são atraídas para a vida religiosa porque sonharam com uma vida transformada. Isto ainda é mais certo tratando-se dos franciscanos. O Poverello encanta os corações jovens. Acontece que quando os jovens nos procuram constatam que o seus sonhos estão longe da realidade ordinária e monótona da vida religiosa, onde vivem pessoas que não são melhores que a maioria das pessoas do mundo. Isto é um choque e uma desilusão. Os sonhos desvanecem-se e os jovens ficam tristes e muitas vezes desertam. Precisamos de encontrar maneira de formar os nossos jovens como sonhadores realistas, sem excluir a alegria utópica de Francisco. Precisamos de irmãos com olhos abertos, capazes de nos olhar como 52 somos, culpados, pecadores, débeis, e que, mesmo assim, podem sonhar. Precisamos de os motivar para projectos loucos, como a ideia louca de Francisco de ir converter o Sultão. Precisamos de os deixar experimentar e fracassar algumas vezes e deixá-los sonhar de novo. Isto, certamente, que faz parte da missão franciscana em relação ao mundo cuja actual geração não olha para além do amanhã. Uma verdadeira e profunda alegria cristã, cruza-se com a capacidade de experimentar a tristeza e o sofrimento. De outra maneira seria um gozo cego. Se os nossos corações não estão abertos ao sofrimento, então a nossa alegria não passa dum contentamento vazio. A alegria de Francisco é inseparável das chagas. Quando contemplou o Serafim do Alverne, ―baralhavam-se na alma a tristeza e a alegria incontida…‖(LM 6,1). S. Domingos é descrito como rindo de dia com os irmãos e chorando de noite com Deus o pecado e o sofrimento do mundo. Precisamos de partilhar a Paixão de Cristo e todas as paixões do mundo: alegria, tristeza e moléstias. Só seremos profundamente felizes se formos tocados pela crucifixão deste mundo e pelas chagas de Cristo marcadas nos pobres. A rede de informação global conecta-nos com as multidões de seres humanos do planeta. É uma rede onde circula a informação, as notícias, a cultura e, sobretudo, o dinheiro. É um maravilhoso mundo novo, mesmo que muitas vezes, perante tanto informação, nos apeteça pôr de parte o computador. Mas esta rede mundial de informação só inclui parte da humanidade. Mais de 60% dos seres humanos nunca usou o telefone. A maior parte de África está excluída. Mas há uma rede mais ampla, da qual ninguém escapa e é, muitas vezes, invisível. É a rede global da violência. A rede mundial do crime é muito mais ampla que o comércio legítimo e está a crescer. Três das maiores industrias de hoje são o contrabando de drogas, de armas e a prostituição. Estas industrias são alimentadas pela imensa pobreza e desigualdade do mundo, que leva campesinos em muitas partes do mundo a cultivar cocaína e heroína e a milhões de mulheres e crianças a vender o seu corpo. Há também um comércio crescente de órgãos. Quando os pobres não têm mais nada para vender, vendem rins e córneas. É a crucifixão dos pobres. Para muitas pessoas do ocidente esta violência está oculta. No dia 11 de Setembro de 2001 explodiu perante os nossos olhos. 53 Nesse dia a violência chegou a casa de cada um. Tudo o que tentamos esconder, tornou-se violência visível. A alegria de Francisco será superficial, se não é aprofundada pela dor perante a violência e o sofrimento do mundo. As pessoas trazem em si as chagas de Cristo. A pregação de Francisco, desde o princípio que estava encaminhada para a construção da paz. Francisco cresceu num mundo violento. A violência alastrava nas cidades do norte da Itália. Pregava construindo a paz, como ficou patente em Gúbio, entre o povo e o lobo. Uma das primeiras grandes pregações dos franciscanos foi em 1233, a grande devoção. Foi uma missão partilhada com os dominicanos. A pregação era, sobretudo, reconciliação dos inimigos. Frequentemente a pregação culminava com o beijo público da paz. Os frades muitas vezes tinham autoridade para libertar os presos e perdoar as dívidas. Era a cura da comunidade. Mas Francisco também foi confrontado com a violência das cruzadas contra o Islão que ele rejeitou na sua visita ao Sultão. Como podem os seus irmãos ser pregadores da paz neste mundo violento e crucificado? Primeiro que tudo devemos marcar presença em lugares de sofrimento. Isto significa que devemos correr o risco de nos expor à violência deste mundo. A Regra primitiva cita Mateus: ―envio-vos como ovelhas no meio de lobos‖ O primeiro requisito é estar aí, vulneráveis e desprotegidos ante a violência do mundo. Nem todos os lobos podem ser domesticados tão facilmente como o de Gúbio. Como Mestre dos Dominicanos surpreendeu-me, nas minhas viagens pelos lugares mais obscuros e violentos, encontrar a Igreja presente através de sacerdotes e religiosos e, sobretudo, através das irmãs. Depois da fuga generalizada – homens de negócios, diplomatas, até agências humanitárias contra a SIDA – a Igreja mantinha-se firme no seu posto.. Pierre Claverie era um dominicano francês que foi bispo de Oran, na Algéria. Foi assassinado em 1996 por fundamentalistas islâmicos por se opor à violência. Os sacerdotes aconselharam-no a sair perante a iminência do perigo e ele ficou. Umas semanas antes de ser assassinado, escreveu: ―A Igreja realiza a sua vocação quando está presente nas ruptures (soa melhor em francês), nas fracturas que crucificam a humanidade em sua carne e unidade. Jesus morreu estendendido entre o céu e a terra e seus braços estenderam-se para reunir os filhos de Deus separados pelo 54 pecado que os isola e os coloca uns contra os outros e contra O mesmo Deus. Colocou-se a si mesmo nas linhas de fractura do pecado. Na Algéria passa uma das linhas sísmicas que cruzam o mundo: Islão/Ocidente, Norte/Sul, ricos/pobres. Aqui estamos verdadeiramente no nosso lugar, porque é o lugar donde podemos vislumbrar a luz da ressurreição.‖ Na vossa primeira Regra acrescenta-se uma insinuação tipicamente franciscana: uma maneira de estar presentes é ―não abrirem debates nem discussões, (como os dominicanos, claro!) mas mostrarem-se submissos a toda a humana criatura por amor de Deus(1Pe 2, 13)‖. Como diz a regra, os pobres são os mestres (CCGG 93). Recordo um dominicano francês que veio viver em Oxford nos anos setenta, para aprender Bengali, preparando-se para a sua missão na Índia. Durante anos trabalhou como sacerdote na Citroen, mas agora sentia-se atraído pela sua nova missão. Numa ocasião perguntei-lhe quais eram os seu planos ao chegar. Que projectos tinha feito? Respondeu que não tinha planos. Ia para servir os pobres e os pobres lhe diriam o que devia fazer. Estar sujeito a toda a humana criatura por causa do Senhor, significa que trabalhamos com os seus critérios e a partir das suas necessidades. Não vamos com programas pre-empacotados, antes deixamos que nos digam o que precisam. Esta é a nossa alegria. Isto ainda é mais evidente quando estamos presentes nos lugares onde as religiões se encontram. A violência neste mundo está cada vez mais relacionada com a religião. Frequentemente são as religiões do mundo que dão voz a todas as dores, à pobreza, e ao sentido da injustiça que violenta os pobres. É a religião, especialmente o Islão, que mais protesta contra as culturas ocidentais que estão devorando o mundo, destruindo as culturas locais. É por isso que necessitamos franciscanos dispostos a estar sujeitos a toda a humana criatura por causa do Senhora, ali onde as culturas se encontram e se chocam. Estamos a crescer na Europa de Leste onde nos encontramos com os cristãos Ortodoxos. Precisamos de estar presentes como os que servem essas crenças Ajudamos a fortalecer e a renovar os Ortodoxos na Rússia ou somos olhados como presença competitiva e destruidora? Estamos a ajudar os Ortodoxos a ultrapassar os tempos estéreis do Império 55 Soviético? Tanto os franciscanos como os dominicanos assumiram as missões nos países islâmicos como prioridade da Ordem. Estamos aí para servir os muçulmanos na sua luta para enfrentar a modernidade ou estamos aí para os converter? Quando Pierre foi sepultado, cerca de mil muçulmanos participaram no seu funeral e uma jovem mulher deu o seu testemunho. Disse: ―Pierre conduziu-me à minha fé. Era o bispo dos muçulmanos.‖ No fundo estamos a enfrentar os mesmos desafios do tempo de Francisco: violência urbana e violência inter-religiosa. A nossa violência é global. Nossos irmãos e irmãs, na República Democrática do Congo, sofrem com uma guerra que está ligada aos países ocidentais que vendem armas em troca de diamantes. Nós estamos ligados aos países que vendem armas e ganham dinheiro com esse negócio. Ao mesmo tempo estamos ligados aos que as compram e são assassinados com elas. Quando há desnutrição em países de África, isso anda ligado frequentemente aos imensos subsídios que os Estados Unidos e a União Europeia dão aos seus agricultores, causa de destruição da agricultura de muitos estados africanos. Estamos ligados votando a favor ou contra políticos que impõem barreiras alfandegárias de comércio injustas, enriquecendo com alimentos baratos e estamos ligados aos que por causa dessas políticas morrem de fome. A morte de milhões de pessoas vítimas da SIDA está ligada à resistência de companhias farmacêuticas em fornecer medicamentos baratos para os pobres do Terceiro Mundo. Se temos de servir os pobres e deixar que eles sejam nossos mestres, então a nossa presença é global. Precisamos de tomar consciência de que os nossos territórios provinciais não são ilhas incomunicáveis de vida religiosa, mas que fazem parte duma ordem mundial que acarreta novas responsabilidades e um novo sentido de identidade. A violência global necessita de uma resposta franciscana global. Não chega que os irmãos do Congo enfrentem a violência do Congo. Também diz respeito aos franciscanos americanos, franceses e britânicos. Todos participamos na rede de violência. Se pensamos em termos de nossas pequenas províncias locais estamos agarrados a um mundo que está morrendo. Todos os frades se devem sentir em casa, neste mundo novo em que as fronteiras nacionais já não são importantes. Pertencemos às primeiras 56 organizações multinacionais da história. As fronteiras nacionais não significaram nada para Francisco e Domingos. Domingos nasceu em Espanha, fundou a Ordem em França, estabeleceu a cúria central em Itália e esperava morrer pregando aos Comos na Europa de Leste. Nascemos na mini-aldeia global do século XIII. Deveríamos florescer no grande mundo do século XXI. Se quando o Ministro geral pede voluntários para uma missão internacional nos desculpamos com as necessidades da Província, é sinal de que ainda estamos agarrados ao velho mundo do estado-nação. Uma reflexão final. Como podemos proclamar um palavra enérgica a este novo mundo? Frente ao poder do mercado global, qual é a nossa força? Frente à imensa riqueza dos donos do narcotráfico, das máfias do crime, que podemos fazer? Frente à indiferença de tantas pessoas ao cristianismo, como fazer escutar a nossa voz? Os jovens que no Ocidente buscam uma religião, quase sempre correm atrás duma forma de budismo já gasto ou dum panteísmo da New Age. Como podemos pronunciar uma palavra que atravesse estas barreira de indiferença e hostilidade? Estou convencido que estamos a entrar numa cultura que pode ser altamente receptiva ao Evangelho. Só temos é de encontrar uma forma de o proclamar. A velha era do capitalismo industrial está morrendo. O mundo já não se rege pelo intercâmbio de matérias pesadas, da exportação de ferro e carros. O poder não é primordialmente industrial com base no vapor, carvão ou energia atómica. Está emergindo um novo mundo marcado pela circulação das ideias, símbolos e sinais. Estamos a entrar na ―sociedade semiótica‖. É um mundo de imagens e de ícones. Uma companhia mais que bens, vende logotipos, marcas através das quais as pessoas constróem a sua identidade. Coca-cola não é só uma bebida, mas um símbolo desta pertença à aldeia global. Um McDonalds abre-nos a porta a esta cidadania universal. No mundo da revolução industrial, o cristianismo podia, com frequência, parecer débil. Que fábricas possuíamos? Que força podíamos exercer? Stalin perguntou: ―Quantas divisões militares tem o Papa?‖. Os exércitos e as armas ainda contam, como se viu na guerra do Iraque. Mas seremos capazes de pregar se encontramos os sinais e os símbolos apropriados. Os símbolos e as imagens falam com muita força. A queda do juro de Berlim foi mais que a destruição duma barreira física; a imagem do frágil 57 estudante em frente do tanque de guerra na Praça de Tianamen teve mais força que dez tanques. O 11 de Setembro foi mais que a terrível perde de vidas humanas e danos materiais. Foi um acto simbólico onde os símbolos do transporte modernos derrotaram os símbolos do poder económico e militar do Ocidente. Esses terroristas entendem o poder dos gestos simbólicos. Provavelmente que a única resposta efectiva será dada através de gestos que falem de paz. Um destes gestos foi a morte do nosso irmão, Michael Judge, o capelão dos bombeiros. Francisco foi um homem de gestos dramáticos. G.K. Chesterton escreveu: ―As coisas que disse foram mais marcantes que as coisas que escreveu. As coisas que fez foram mais imaginativas que as coisas que disse… desde o momento em que se despojou das vestes e as atirou aos pés do pai até ao momento em que se estendeu, moribundo, em forma de cruz sobre a terra nua, a sua vida foi marcada por atitudes inconscientes e gestos evidentes‖5. Como dizia Tomás de Celano, o seu corpo tornou-se língua para proclamar o Evangelho. Os frescos de Giotto falam com mais força de Francisco que de qualquer outro santo porque captam a força destes momentos. Não sabemos exactamente o que disse quando visitou o Sultão em Damieta. Mas sabemos que o gesto, em si, falou mais forte que as palavras. E sabemos que buscou o sinal maior que é o martírio. Como escreveu Francisco de Beer: ―A audácia de Francisco estava em pensar que o seu martírio falaria mais ao islão que à Igreja. Contra a extravagância das Cruzadas, o Islão requeria um testemunho radical de sentido radicalmente oposto. O martírio é a objecção mais forte contra aqueles que apoiam a intolerância de uma guerra santa. É uma anti-cruzada‖.6 ―Todos os irmãos deveriam pregar com as obras‖, está escrito na primeira Regra (1R 17, 3). Que obras se podem realizar de molde a agitaras ânsias contidas de aventura do mundo de hoje? Que sinais do reino podemos realizar? Podem ser grandes gestos públicos. O Papa é mestre nesta linguagem, como quando foi rezar ao Muro das Lamentações ————— 5 St. Francis of Assisi, London 1939, p. 106 6 ‗St Francis and Islan‘, Spirit and Life. A Journal of Contemporary Franciscanism Vol 6, 1994, p. 169 58 em Jerusalém. Ali os judeus lamentam-se da destruição do templo e rezam pelo Reino. O gesto do Papa falou mais que uma biblioteca. O gesto pode ser pequeno e imperceptível. Há três semanas visitei um casa de doentes da SIDA em Phnom Pen, dirigida por um sacerdote americano, o Jim. Jim não é um meigo pintainho e está batalhando para aprender Khmer. Visitei muitas destas casas em várias partes do mundo, mas nunca contactei com figuras tão enfraquecidas. Alguns conseguem recuperar as forças e regressar a suas casas por algum tempo. Mas a maioria vem para morrer. Observei a silhueta totalmente esquelética de um jovem, enquanto o lavavam e lhe cortavam o cabelo. Tinha um rosto tão sereno que quase me fez chorar. Poderíamos perguntar que diferença faz tudo isto no curso da história. Algumas pessoas vivem um pouco mais e depois morrem com dignidade. Mas, meus irmãos, esta pequena comunidade proclamou uma palavra sacramental que constrói o Reino. Por isso, mantenham viva a alegria de Francisco e de Clara. É esta alegria que dá autoridade à nossa pregação. Ninguém acredita que uma pregação triste traga boas notícias. É a alegria que abre os nossos olhos ao mundo dos dons. É a alegria que assinala a presença ao Reino e nos convida a prosseguir a aventura. Isto significa que nos devemos preocupar coma alegria de nossos irmãos. Devemos manter vivos os seus sonhos. Com o tempo essa alegria se aprofunda com a vulnerabilidade perante o sofrimento do mundo. Sem esse sofrimento que abre os nossos corações, essa alegria permanecerá superficial. Mas o sofrimento deste novo mundo é global e requer uma resposta global. Somos todos vizinhos uns dos outros. Precisamos de nos libertar das identidades demasiado limitadas: étnicas, nacionais e até das nossas amadas Províncias. Tenham confiança em que os gestos e sinais e símbolos podem falar com força neste mundo globalizado. Por isso vivemos num tempo maravilhoso para a vocação franciscana. Também é um tempo maravilhoso para a missão dominicana, mas isso é outro assunto. Tenham coragem para inventar gestos audazes que falem do Reino e serão escutados. Traduziu Fr. José António Correia Pereira 59 II– Documentos A REGRA, UM CAMINHO A SEGUIR SEM CONCESSÕES AO ESPÍRITO DO MUNDO Mensagem de João Paulo II às irmãs Clarissas, por ocasião dos 750 anos da morte de Santa Clara de Assis 61 MENSAGEM DE JOÃO PAULO II ÀS IRMÃS CLARISSAS, POR OCASIÃO DOS 750 ANOS DA MORTE DE SANTA CLARA DE ASSIS Amadas irmãs 1– A 11 de Agosto de 1253 concluía a sua peregrinação sobre a terra Santa Clara, discípula de São Francisco e fundadora da vossa Ordem, chamada Irmãs Pobres ou Clarissas, que hoje, nos seus vários ramos, conta com mais de novecentos mosteiros espalhados pelos cinco continentes. Setecentos e cinquenta anos depois de sua morte, a memória desta grande santa continua viva no coração dos fiéis. Por isso, nesta circunstância, é com prazer que dirijo à vossa família religiosa um pensamento cordial e uma saudação afectuosa. Numa celebração jubilar tão significativa, Santa Clara exorta-nos a compreender cada vez mais profundamente o valor da vocação, dom de Deus que é preciso frutificar. A este propósito escreveu no seu testamento: ―A nossa vocação é o maior de todos os benefícios que recebemos e diariamente continuamos a receber do nosso benfeitor, o Pai das misericórdias, pelos quais devemos render muitas graças; e quanto mais perfeita e sublime ela é, tanto mais d‘Ele nos tornamos devedores. Por isso diz o Apóstolo: conhece a tua vocação‖ (TCL 2-4). 2– Santa Clara, nascida em Assis à volta de 1193-1194, no seio da família nobre dos Favarone Offreducio, recebeu, sobretudo de sua mãe Ortolana, uma sólida educação cristã. Iluminada pela graça divina, deixou-se atrair pela nova forma de vida evangélica iniciada por São Francisco e seus companheiros, e decidiu empreender um seguimento mais radical de Cristo. Deixou a casa paterna na noite entre o Domingo de Ramos e a Segunda-feira Santa de 1211 ou 1212. Por conselho de São Francisco dirigiu-se á capelinha da Porciúncula, berço da experiência franciscana, 62 onde, no altar de Santa Maria, se desprendeu de toda a riqueza, para vestir o hábito pobre da penitência, em forma de cruz. Depois de um breve período de busca, chegou ao pequenino convento de São Damião, para onde foi também a sua irmã, Inês. Ali se juntaram a elas outras companheiras, desejosas de encarnar o Evangelho numa dimensão contemplativa. Perante a determinação com que nova a comunidade monástica seguia as pegadas de Cristo, considerando que a pobreza, o esforço, a tribulação, a humilhação e o desprezo do mundo eram motivo de grande alegria espiritual, São Francisco sentiu-se movido por afecto paternal e escreveu-lhes: ―Pois que, por inspiração divina vos fizestes filhas e servas do altíssimo e soberano Rei e Pai celestial, e vos tornastes esposas do Espirito Santo, abraçando uma vida conforme a perfeição do Santo Evangelho, eu quero e prometo, em meu nome e em nome dos meus irmãos, ter sempre para convosco, como tenho para com eles, diligente cuidado e solicitude particular‖(RCL 6, 3-4). 3– Santa Clara enxertou estas palavras no capítulo central da sua Regra, reconhecendo nelas não só um dos ensinamentos recebido do santo, mas também o núcleo fundamental do seu carisma, que se desenvolve no contexto trinitário e mariano do Evangelho da Anunciação. Com efeito, São Francisco via a vocação das Irmãs Pobres à luz da Virgem Maria, a humilde serva do Senhor que, ao conceber por obra do Espírito Santo, se converteu em Mãe de Deus. A humilde serva do Senhor é o protótipo da Igreja, virgem, esposa e mãe.. Santa Clara percebeu a sua vocação como um chamamento a viver segundo o exemplo de Maria, que ofereceu a sua virgindade à acção do Espírito Santo para se converter em Mãe de Cristo e do seu Corpo místico. Sentia-se estreitamente associada à Mãe do Senhor e, por isso, exortava assim a Santa Inês de Praga, princesa da Boémia, que se tinha feito clarissa: ―Vive unida à Mãe dulcíssima que deu à luz o Filho que nem os céus puderam conter. E, todavia, ela O levou no pequeno claustro do seu ventre sagrado e O formou no seu seio de donzela‖ (3CCL 18-19). A figura de Maria acompanhou o caminho vocacional da santa de Assis até ao final da sua vida. Segundo um significativo testemunho dado durante o processo de canonização, no momento em que Clara estava a morrer, a Virgem aproximou-se do seu leito e inclinou a cabeça sobre ela, que durante a vida foi uma imagem radiante da Sua. 63 O privilégio da pobreza 4– Só a opção radical por Cristo crucificado, que realizou com ardente amor, explica a decisão com que a santa se entregou no caminho da ‗altíssima pobreza‘, expressão que encerra em seu significado a experiência de desprendimento vivida pelo Filho de Deus na Encarnação. Ao chamá-la ‗altíssima‘, Santa Clara queria expressar de certo modo o despojamento do Filho de Deus, que a enchia de assombro: ―Se, pois, um tão grande Senhor – escreveu – desceu ao seio da Virgem Maria e apareceu desprezível, desamparado e pobre neste mundo, para que os homens pobres, desamparados e carenciados do divino alimento, n‘Ele se tornassem ricos possuindo o Reino dos Céus…(1CCL 19-20). Clara percebeu esta pobreza em toda a experiência de Jesus, desde Belém até ao Calvário, onde o Senhor ―nu ficou sobre o patíbulo‖(TCL 45). Seguir o Filho de Deus, que se fez nosso caminho, significava para ela não desejar mais que submergir-se com Cristo na experiência de uma humildade e uma pobreza radicais, que implicavam todos os aspectos da experiência humana, até ao desprendimento da cruz. A opção pela pobreza era para Santa Clara uma exigência de fidelidade ao Evangelho, até ao ponto de a levar a pedir ao Papa o ―Privilégio da pobreza‖, como característica da forma de vida monástica iniciada por ela. Inseriu este ―Privilégio‖, defendido tenazmente durante toda a sua vida, na Regra que recebeu a confirmação papal na antevéspera da sua morte, com a bula Solet annuere,de 9 de Agosto de 1253. Faz 750 anos. 5– Os olhos de Clara permaneceram até ao fim fixos no Filho de Deus, cujos mistérios contemplava sem cessar. Olhava como o olhar amante de esposa, desejosa de uma comunicação cada vez mais plena. Entregava-se, de maneira particular, à meditação da Paixão, contemplando o mistério de Cristo, que do alto da cruz a chamava e atraía. Escreveu: ―Vós que passais, contemplai e vede se há dor semelhante à minha. Respondamos com uma só voz e um só espírito a este grito de dor: a pensar nisto sem cessar, minha alma desfalece dentro de mim‖ (4CCL 25-26). E exortava: ―Desta maneira o teu coração se inflame duma caridade cada vez mais forte, ó rainha do rei celeste… e exclama… plena de anseios e com profundo amor: atrai-me… ó celeste Esposo‖ (ibid. 27-29). Esta comunhão plena com o mistério de Cristo introduziu-a na experiência da intimidade trinitária, na qual a alma toma cada vez mais 64 consciência de que Deus mora nela: ―Creio firmemente que, pela graça de Deus, a alma fiel se torna a mais digna de todas as criaturas, mesmo maior que o Céu. Sá a alma crente se transforma em sua mansão e seu trono pela caridade de que estão privados os ímpios‖ (3CCl 22-23). O testemunho luminoso da clausura 6– A comunidade reunida em S. Damião, guiada por Santa Clara, escolheu a vida segundo a forma do santo Evangelho numa dimensão contemplativa claustral, que se caracteriza por um ―viver em comum, na unidade de espírito‖ (RCL prol 5), segundo o ―modo de santa unidade‖ (ibid 16). A compreensão especial que Santa Clara teve do valor da unidade na fraternidade parece referir-se a uma profunda experiência contemplativa do Mistério trinitário. Com efeito, a autêntica contemplação não se isola no individualismo, mas realiza a verdade de ser um no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Santa Clara não só organizou na sua Regra a vida fraterna à volta dos valores do serviço mútuo, da participação e da comunhão, mas também se preocupou de que a comunidade estivesse solidamente edificada sobre ―a união do mútuo amor e da paz‖ (ibid 4, 22), e também de que as irmãs ―sejam sempre solícitas em guardar umas com as outras a união da mútua caridade, que é o vínculo da perfeição‖ (ibid 10, 7). Com efeito, estava convencida de que o amor mútuo edifica a comunidade e produz um crescimento da vocação. Por isso exortava no seu Testamento: ―Amando-vos umas às outras com amor de Cristo, manifestai em obras o amor que vos vai no coração, a fim de que, movidas por este exemplo, as irmãs se sintam estimuladas a crescer cada vez mais no amor de Deus e na mútua caridade‖ (TCL 59-60). 7– Santa entendeu este dom da unidade também na sua dimensão mais ampla. Por isso quis que a comunidade claustral se inserisse plenamente na Igreja e se enraizasse solidamente nela com o vínculo da obediência e submissão filial (cf. RCL 1, 12). Estava muito consciente de que a vida das monjas de clausura devia ser espelho para as outras irmãs chamadas a seguir a mesma vocação e testemunho luminoso para todos os que vivem no mundo. Os quarenta anos que viveu dentro do mosteiro de São Damião não limitaram os horizontes do seu coração, antes dilataram a sua fé na 65 presença de Deus, que realiza a salvação na história. São conhecidos os episódios em que, com a força da sua fé na Eucaristia, Santa Clara libertou a cidade de Assis e o mosteiro do perigo de eminente destruição. Fascinação espiritual e riqueza teológica da Regra 8– Não podemos deixar de destacar que a 750 anos da confirmação pontifícia, a Regra de Santa clara conserva intacta a sua fascinação espiritual e a sua riqueza teológica. A perfeita consonância de valores humanos e cristãos e a sábia harmonia e ardor contemplativo e rigor evangélico, reitera o valor da Regra para vós, queridas irmãs clarissas do terceiro milénio, como um caminho real que é preciso seguir sem adaptações ou concessões ao espírito do mundo. Santa Clara dirige a cada uma de vós as palavras que deixou a Inês de Praga: ―Feliz aquela a quem foi dado gozar desta íntima união e que aderiu com todas as fibras dos eu coração Àquele cuja beleza é contemplada por todos os santos do exército celeste‖ (4CCL 9-10). Este centenário oferece-vos a oportunidade de reflectir no carisma típico da vossa vocação de clarissas. Um carisma que se caracteriza, em primeiro lugar, por ser um chamamento a viver segundo a perfeição do santo Evangelho, com uma clara referência a Cristo, como único e verdadeiro programa de vida. Não é este um desafio para os homens e mulheres de hoje? É uma proposta alternativa à insatisfação e superficialidade do mundo contemporâneo, que parece ter perdido a identidade e já não percebe que foi criado para o amor de Deus que o espera na comunhão sem fim Vós, queridas clarissas, realizais o seguimento do Senhor numa dimensão esponsal, renovando o mistério da virgindade fecunda da Virgem Maria, esposa do espírito santo, a mulher perfeita. Oxalá que a presença dos vossos mosteiros totalmente dedicados á vida contemplativa sejam também hoje ―memória do coração esponsal da Igreja‖ (Verbi Sponsa 1), cheio de ardente desejo do espírito, implorando sem cessar a vinda do Cristo Esposo (cf Ap 22, 17). Ante a necessidade de um renovado compromisso de santidade, Santa Clara é também um exemplo da pedagogia da santidade que, alimentando-se duma oração incessante, leva a converter-se em contempladores do rosto de Deus, abrindo de par em par o coração ao espírito de Senhor, que 66 transforma toda a pessoa, a mente, o coração e as acções, segundo as exigências do Evangelho. 9– O meu desejo mais vivo, avalizado pela oração, é que vossos mosteiros continuem a apresentar ao mundo actual, que na sua generalidade anseia por espiritualidade e oração, a proposta exigente de uma plena e autêntica experiência de Deus, uno e trino, que se converta em irradiação da sua presença de amor e de salvação. Que Maria, a Virgem da escuta, vos ajude e que intercedam por vós Santa Clara e as santas e beatas da vossa Ordem. Asseguro-vos uma saudação cordial para vós, queridas irmãs, e para quantos partilham convosco a graça deste significativo acontecimento jubilar. A todas envio, de coração, uma especial bênção apostólica. Vaticano, 9 de Agosto de 2003 João Paulo II 67