conhecimento de gramática e produção textual - SIMELP
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conhecimento de gramática e produção textual - SIMELP
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. CONHECIMENTO DE GRAMÁTICA E PRODUÇÃO TEXTUAL José Gaston HILGERT1 RESUMO - Para o ensino da língua materna o professor acolhe alunos que já sabem a língua. O objetivo do ensino é, então, levar os alunos a conhecerem a língua que falam e a dominarem o manejo dela para as diferentes finalidades em que ela é usada na vida. Manejá-la significa explorar os seus recursos, as suas potencialidades nas mais variadas instâncias dos indivíduos em interação. E explorar os recursos implica, antes, identificálos, conhecê-los, o que remete ao domínio das regras que comandam o uso da língua, em suma, à gramática. Há quem se volte – com um certo furor às vezes - contra o ensino da gramática, o que até se justifica quando ele divorcia a gramática da língua em uso. Mas esse ensino é absolutamente imprescindível quando se pensa a gramática do ponto de vista de seu uso na produção de sentidos nos textos. Pretende-se mostrar, nesta comunicação, o quanto a adoção de certas estratégias de enunciação e a percepção de seus efeitos de sentido nos textos dependem de conhecimentos gramaticais seguros. Faz-se referência específica aqui à pessoa, ao tempo e ao espaço, que são as três grandes categorias da enunciação. Quem enuncia é sempre um eu que o faz num tempo agora e num espaço aqui. A partir dessa instância de princípio de todo ato enunciativo, abremse amplas e complexas possibilidades de manipulação dos recursos gramaticais de pessoa, tempo e espaço na enunciação, visando à produção de múltiplos efeitos de sentido. Como só manipula com eficiência esses recursos quem muito bem os conhece, fica estabelecido que um sólido conhecimento da gramática da língua constitui um saber indispensável para uma produção discursiva competente. PALAVRAS-CHAVE: enunciação; ensino; gramática; língua; texto. Considerações iniciais Há quem se volte – com um certo furor às vezes - contra o ensino da gramática, o que até se justifica quando ele divorcia a gramática da língua em uso. Mas esse ensino é imprescindível quando se pensa a gramática do ponto de vista da produção da recepção de sentidos nos textos. Pretende-se destacar, nesta fala, o quanto a adoção de 1 Universidade Presbiteriana Mackenzie/São Paulo-SP, Centro de Comunicação e Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras. Rua Piauí, 143, 2º. Andar, Pós-Graduação em Letras, Bairro Higienópolis, CEP – 01241-001 São Paulo-SP, Brasil. Endereço eletrônico: [email protected] . 128 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. certas estratégias de enunciação e a percepção de seus efeitos de sentido nos textos dependem de conhecimentos gramaticais seguros. A gramática na produção e recepção de sentidos nos textos As crianças, quando começam a estudar a língua materna na escola, já sabem sua língua. Isso quer dizer que a falam com a competência necessária para as interações que constituem suas práticas sociais e que dominam, com grande discernimento, a adequação dos usos linguísticos às variadas situações em que se realiza a comunicação por meio da linguagem verbal. Em síntese, sabem a língua porque sabem usá-la tanto do ponto de vista linguístico quanto do pragmático. Acrescente-se ainda que esse saber em fase pré-escolar se revela, em geral, no uso falado da língua, pois raramente crianças têm maior desenvoltura na escrita e na leitura antes de irem para a escola. Qual é então o objetivo do ensino da língua para as crianças quando chegam à escola? Em síntese, deve-se admitir que esse objetivo é ampliar a competência do manejo linguístico da criança, por outros meios (que não só os da prática linguística cotidiana) e para novos fins (que não somente os que movem a rotina). Afinal, a escola não pode ser “uma outra pracinha ou banco de esquina” (FRANCHI, 1991: 35). No uso linguístico, os fins determinam os meios, isto é, configuramos esse uso aos perfis das instâncias de vida em que as comunicações linguísticas se realizam. A escola, na medida em que abre novos palcos de realização humana – e nisso consiste seu papel formador e educativo –, promove e mostra novos contextos e novas formas de interação que, por sua vez, exigem novas competências e desenvolturas linguísticas, dentre as quais têm particular destaque as relacionadas ao domínio da escrita e da leitura. O ensino da língua na escola consiste, então, em habilitar as crianças ao manejo competente da língua em novas realidades de vida, o que implica que esse ensino esteja 129 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. em estreita sintonia com a ação educativa. Em outras palavras, o ensino da língua precisa se inserir num lúcido projeto de educação, do qual se alimenta e para cujo desenvolvimento concorre. Com base nessas primeiras considerações, a linguagem e seu domínio são focalizados do ponto de vista de seu uso nas interações humanas. As crianças aprendem a falar, a dominar a língua, na medida em que vão crescendo no convívio com os outros. E o desenvolvimento da língua continua pela vida afora por força das práticas sociais dos indivíduos (BAKHTIN, 1979), que são determinadas pela interação. Nessa perspectiva, a linguagem, ao mesmo tempo em que viabiliza as práticas sociais, é instituída por elas. Decorre daí que dominar a língua é saber manejar os seus recursos para maximizar a qualidade das interações nas práticas sociais. Por essa visão preconiza-se que todo e qualquer trabalho sistemático de aprendizado linguístico – e aqui a referência é ao ensino da língua na escola - deva voltar-se ao desenvolvimento da competência comunicativa, tanto nas interações faladas, quanto nas que se realizam por meio de textos escritos. Como a comunicação só acontece por meio de enunciados e não por palavras e frases (BAKHTIN, 2003), entende-se que, na escola, o tempo deve ser usado para o trabalho com o texto (que se situaria no âmbito dos enunciados) e não ocupado para o ensino da gramática (que focalizaria as palavras e a frases). É indiscutivelmente verdadeiro que as aulas de língua portuguesa devem ter como fim último o desenvolvimento da competência de uso da língua, que se manifesta na perfórmance textual dos alunos, seja como autores, seja como leitores. O ensino da língua deve partir do texto e levar para ele. Trata-se da formação pelo e para o texto, no dizer de Irandé Antunes (2005). Nenhuma atividade destinada à formação linguística pode desviar-se desse norte. 130 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. Mas, por paradoxal que possa parecer, é precisamente nessa perspectiva que o ensino da gramática se impõe, já que entendemos por esse ensino, aqui, o conjunto de ações que levam o aluno a tomar consciência dos mecanismos de funcionamento da língua na produção e na percepção de sentidos nos textos. Quando se considera, então, a gramática do ponto de vista de seu uso na produção de sentidos nos textos e quando se ponderam os conhecimentos gramaticais necessários para uma leitura competente, pensamos ser o seu ensino absolutamente imprescindível. Nessa perspectiva, queremos aqui focalizar alguns aspectos da enunciação, destacando o quanto a adoção de certas estratégias de enunciação – particularmente marcadas pelo manejo de recursos gramaticais - e a percepção de seus efeitos de sentido nos textos dependem de conhecimentos gramaticais seguros. Sabemos que enunciação é o ato de um sujeito-destinador (o enunciador) interagir, em situação de comunicação, com um sujeito-destinatário (o enunciatário). Nessa interação cabe ao enunciador, em sentido amplo, um fazer persuasivo e ao enunciatário um fazer interpretativo. O produto da enunciação é o texto. Nele estão projetadas as estratégias enunciativas acionadas, consciente ou inconscientemente, pelo sujeito da enunciação2. Quem enuncia é sempre um eu que o faz num tempo agora e num espaço aqui. A pessoa, o tempo e o espaço são, então, as três grandes categorias da enunciação. Na construção do texto, o enunciador, em interação com um enunciatário, maneja essas categorias, às vezes de forma astuciosa, para produzir os mais variados efeitos de sentido e, assim, alcançar seus propósitos persuasivos. Ora, essas três categorias da enunciação envolvem três grandes campos dos estudos gramaticais: a pessoa (pronomes), o tempo (verbos) e o espaço (advérbios). Isso significa que o 2 Por sujeito da enunciação entende-se o enunciador determinado pelo enunciatário, o co-enunciador. 131 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. enunciador, quando projeta seus propósitos no enunciado, manipulando as categorias da enunciação, na verdade manipula as variadas expressões gramaticais em que essas categorias se realizam. No que respeita à pessoa, por exemplo, o enunciador, quando se instala no enunciado como um narrador em primeira pessoa, produz o efeito de sentido de proximidade com o leitor, dando assim a seu discurso um caráter subjetivo, pessoal, parcial, eventualmente de cumplicidade. E quando ainda, no texto, faz referência ao leitor, ao tu da interlocução, cria a ilusão de informalidade, de diálogo. Esse procedimento muitas vezes inscreve, como efeito de sentido, a oralidade das interações face a face no texto escrito. E se o enunciador quiser produzir efeitos contrários a esses, isto é, se seu objetivo é manter distância do leitor, produzindo um discurso formal, objetivo, imparcial, impessoal, esconderá as marcas de subjetividade do eu e optará por um narrador em terceira pessoa. Se estendermos essas considerações sobre a pessoa nos textos aos procedimentos de embreagem actancial, lembramos que Fiorin (1996) relaciona vinte possibilidades de usar uma forma de pessoa pelo valor de outra, implicando cada subversão efeito de sentido específico. No que respeita à categoria enunciativa tempo, o enunciador explorará especialmente os recursos dos modos, tempos e aspectos verbais da língua. Manejandoos, ele encontrará um amplo campo de criatividade na produção de sentidos, podendo até subverter a anterioridade, a simultaneidade e a posterioridade do tempo cronológico na construção das verdades discursivas. Poderá trazer, assim, o passado para o presente, produzindo, no efeito de presentificação, a ilusão de que o outrora é atual, de que o ontem é hoje, como é prática recorrente em manchetes e reportagens jornalísticas, em 132 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. documentos e textos históricos. Por outro lado, o hoje também poderá ser projetado no futuro ou situado no passado, criando, dessa forma, poderosos efeitos de ironia e crítica, tão frequentes na ficção. De forma semelhante poderá ele também manipular os recursos apresentados pelos dêiticos espaciais. O aqui e o lá poderão ser criativamente manipulados para produzir efeitos de discurso que reforçam verdades e criam outras. O desconhecimento da gramática da língua não só impede a exploração das potencialidades de sentido das formas e estruturas gramaticais na produção dos textos, mas também inviabiliza, na leitura, a percepção de muitos sentidos os quais o uso criativo das expressões gramaticais imprime nos textos. Há um momento, então, na formação escolar, na vida acadêmica e profissional, em que o discernimento gramatical da língua se impõe para um desempenho linguísticodiscursivo competente, particularmente no âmbito da produção e da interpretação de textos. Seguindo esse raciocínio, tem de se admitir que a ausência de um ensino produtivo da gramática na escola priva os alunos das condições necessárias para apreciarem, com competência e proveito, até mesmo o acervo literário expresso em sua língua. Por fim, é preciso acrescentar que, sem um bom domínio da gramática nem sequer é possível infringir com competência as normas gramaticais para produzir efeitos de sentido. A esse propósito, valendo-me bastante livremente de um dos seus mais belos poemas, evoco aqui o poeta brasileiro Manoel de Barros: muitas vezes é nos desvios que se encontram as melhores surpresas e os ariticuns maduros. “Há que apenas saber errar bem o seu idioma”. E termina o poema, referindo-se ao Padre Ezequiel, que fora seu preceptor e lhe ensinara a apreciar os “defeitos” das frases e não só a beleza delas: 133 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. “Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agramática”. Portanto, o ensino da gramática também é necessário para o domínio da agramática. Um pensamento conclusivo Como pensamento conclusivo, lembramos que, na medida em que se considera o texto como produto da enunciação, abrem-se amplas e complexas possibilidades de manejo dos recursos gramaticais de pessoa, tempo e espaço na enunciação, visando à produção de múltiplos efeitos de sentido. Como só maneja com eficiência esses recursos quem muito bem os conhece, compreende-se por que um sólido conhecimento da gramática da língua constitui um saber indispensável para uma produção discursiva competente. Referências bibliográficas ANTUNES, Irandé. 2005. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola. BAKHTIN, Mikhail. 1979. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec. BAKHTIN, Mikhail. 2003. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 87. FIORIN, J.L. 1996. As astúcias da enunciação. São Paulo, Ática. FIORIN, J.L. 2003. Pragmática. In: J.L. FIORIN (org.). Introdução à linguística: princípios de análise. São Paulo, Contexto, v. 2, p. 161-185. FRANCHI, Carlos. 1991. Criatividade e gramática. São Paulo: SE/CENP. 134
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