Ler um trecho - Editora Hagnos

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Ler um trecho - Editora Hagnos
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Repensando a vida e a morte
Nick Pollard
O presidente George Bush encurtou seu descanso no feriado de Páscoa, porque se sentiu fortemente impelido a tomar uma posição sobre o assunto e decidiu assinar uma Conta
Emergencial que não existia até então. Quase todos os norteamericanos tinham uma opinião sobre o assunto. O tema dominou os jornais, o rádio e a televisão. Foi discutido em salas
de conferências, igrejas e bares. Mas sobre o que todos estavam
falando? Sobre o fato de o Tribunal de Justiça ter determinado
que se privasse uma mulher muito doente de água e comida
para que ela viesse a morrer.
Terri Schiavo tinha 26 anos quando entrou no que os
médicos chamam de estado vegetativo permanente (Persistent
Vegetative State, PVS). Nesse caso, isso aparentemente ocorreu
por danos causados ao cérebro em virtude de uma parada cardíaca
temporária. Nos quinze anos seguintes, Terri não conseguiu
falar, mover-se ou alimentar-se. Não restavam dúvidas de que
ela estava vivendo num corpo bastante debilitado. Havia,
no entanto, muita discussão sobre seu estado de espírito, se
estava em paz ou se sentia-se atormentada. Também discutiam
18
Brincando de Deus
sobre se ela desejaria viver, sendo alimentada através dos tubos
conectados ao seu corpo, ou se preferia que fossem removidos
para que pudesse morrer.
Contudo, a discussão maior se deu entre seus pais, que
queriam mantê-la viva, e o esposo, que queria deixá-la morrer.
Durante toda a primavera de 2005 a maior parte da população
mundial participou do debate. Finalmente, o processo decidiu
a favor do marido, e, em 18 de março de 2005, os tubos de alimentação foram removidos. Nos treze dias seguintes, o mundo inteiro a acompanhava enquanto morria. Ninguém assistiu
Terri tão de perto quanto seus pais, que ficaram ao lado de seu
leito, e mais tarde declararam:
Ver alguém desidratar e sentir fome até morrer é algo tão
cruel que é impossível esquecer, ainda mais quando se trata
da própria filha [...] Vê-la desvanecendo-se enquanto ela
tenta desesperadamente respirar é algo que transcende a
compreensão humana.4
Por mais solidário que alguém possa se sentir em relação
aos pais de Terri e em relação à própria Terri, é preciso lembrar que havia outro grupo de pessoas que também estava lá e
sentiu muita angústia e dor: os médicos e enfermeiros. Eles foram treinados durante muitos anos para ajudar e salvar pessoas
doentes; seu desejo é sempre fazer o melhor pelos pacientes.
No entanto, naquela situação lhes era exigido que “brincassem
de Deus”. Foram os médicos e enfermeiros que retiraram os
4
Disponível em www.terrisfight.org (em inglês).
Repensando a vida e a morte
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tubos de Terri. E, como vimos na introdução do livro, seriam
os médicos e enfermeiros que não poderiam reanimar a pequena Charlotte quando ela parasse de respirar.
UMA BIFURCAÇÃO NA ESTRADA
A ocorrência de situações desse tipo tem crescido cruelmente, e
o motivo principal é o avanço contínuo da ciência médica. Há
poucos anos, os médicos não seriam capazes de manter Terri ou
Charlotte vivas. As coisas, no entanto, mudaram e continuam
mudando. Mais que isso, essas mudanças não estão restritas às
melhorias nas técnicas tradicionais da medicina. Elas parecem
oferecer-nos caminhos totalmente novos para entender e lidar
com os seres humanos. Na verdade, parecem prometer um
mundo todo novo, livre de doenças, dor ou mesmo morte.
Com certeza, esse é o objetivo final dos pesquisadores de áreas
como clonagem, modificação genética, pesquisas com célulastronco, nanotecnologia e seleção genética.
Alguns argumentam que deveríamos receber de braços
abertos tais avanços e adentrar o mais rapidamente neste mundo tão fascinante. Gregory Stock, diretor do Programa de Medicina, Tecnologia e Sociedade da Escola de Saúde Pública da
UCLA (Universidade de Los Angeles) é um deles. Seu livro
Redesigning Humans5 (Replanejando o ser humano) argumenta que deveríamos usar a tecnologia para desenvolver a raça
humana. Ele acredita que o progresso contínuo da tecnologia
médica é inevitável e que quanto antes começarmos a usá-lo
tanto melhor será para todos nós.
5
Gregory STOCK, Redesigning Humans (Profile Books, 2002).
20
Brincando de Deus
Por outro lado, há pessoas como Francis Fukuyama, da
Universidade John Hopkins, que recomendam mais precaução.
Seu livro Nosso futuro pós-humano: conseqüências da revolução
da biotecnologia6 argumenta que a engenharia da genética
humana não é inevitável e que deveríamos tomar providências
para evitar a possível “extinção do homem”.
CRIANDO VIDA E MORTE
Apesar de essa discussão desenvolver-se em nível acadêmico, ela
também ocorre em nível bem mais popular. Assim como acontece com todas as grandes questões da vida, os escritores e produtores de romances, filmes, músicas e programas de televisão
contribuem para a discussão. Eles têm muita influência sobre o
pensamento das pessoas. Na verdade, a maioria da população é
mais influenciada pelas idéias expressas na mídia do que pelas
discussões existentes no mundo acadêmico (embora o trabalho
acadêmico acabe influenciando escritores e produtores da mídia). Conseqüentemente, enquanto buscamos entender como
nós, cristãos, devemos nos posicionar sobre essas questões, devemos também considerar as idéias que estão sendo veiculadas
na cultura popular. Aqui estão alguns exemplos:
O filme O enviado (Godsend)7 conta a história de Paul e
Jessie Duncan (Greg Kinnear e Rebecca Romijn-Stamos),
6
7
Francis FUKUYAMA, Our Posthuman Future: Consequences of the Biotechnology
Revolution (Profile Books, 2002). (Nosso futuro pós-humano: conseqüências da revolução da biotecnologia, Rio de Janeiro: Rocco, 2003). Para ler artigo sobre os livros
de Stock e Fukuyama, veja Peter S. Williams, “Mere Humanity”, CultureWatch.
Disponível em www.damarais.org/content/content.php?type=5&id=92.
Dirigido por Nick Hamm (Lion Gate Films, 2004). Para ver o guia de estudo de
Louise Crook, “Godsend”, acesse CultureWatch: www.damaris.org/content/content.php?type=1&id=224 (em inglês).
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que são os dedicados pais de Adam (Cameron Bright). O garoto morre num acidente de carro aos oito anos de idade. Isso
deixa os pais desolados, pois Jessie não pode ter outros filhos.
Contudo, o dr. Richard Wells (Robert De Niro), um importante médico especialista em fertilidade, oferece a eles ajuda,
pois está envolvido secretamente numa nova tecnologia de
clonagem. O médico retira material genético do corpo de
Adam e cria uma cópia biologicamente perfeita. Nos primeiros oito anos de vida, o clone de Adam cresce sem maiores
problemas. No entanto, quando ele ultrapassa a idade em
que o primeiro Adam morreu, tudo começa a mudar. O garoto passa a ter pesadelos, e estes sonhos parecem pertencer
a outro menino.
Embora o filme não trate apenas da questão ética que
envolve a tecnologia de clonagem (e se ela deveria ou poderia
ser aplicada em humanos), ele retrata de modo profundo as
questões espirituais da existência humana e o que significa ser
humano.
Questões como estas são consideradas de uma perspectiva
diferente por Jodi Picoult em seu livro My Sister’s Keeper8 (O
guardião da minha irmã). Ele conta a história das irmãs Anna
e Kate. Kate tem dezesseis anos e sofre de leucemia. Anna tem
treze anos e é considerada pelos pais a solução para a doença da
irmã, já que fora concebida por fertilização in vitro e poderia
ser sua doadora. Anna, porém, não está muito feliz com seu
papel. Ela quer se ver livre do controle dos pais e das necessidades da irmã. Poderia ela fazer isso? Ou deveria fazer isso? Quem
8
Jodi PICOULT, My Sister’s Keeper (Atria Books, 2004). Leia o capítulo 7 para
ver um guia de estudo desse livro.
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Brincando de Deus
tem o direito de decidir o que acontece com o corpo de outra
pessoa? Estas são apenas algumas questões evocadas pelo livro.
PEÇA DE REPOSIÇÃO
Em 2005, um filme levou as questões feitas em O enviado e My
Sister’s Keeper a um nível totalmente novo. A ilha (The Island)9
conta a história de um estabelecimento médico que usa a clonagem para criar corpos como peças de reposição e usar suas
partes nos seres de origem quando necessitassem delas. Como
em O enviado, o filme trata a clonagem como elemento capaz
de evitar que as pessoas sofram conseqüências de acidentes e
doenças. Contudo, diferentemente de O enviado, a clonagem
é feita antes que a pessoa morra, para que as partes do corpo
sejam criadas antecipadamente e estejam prontas no momento
da necessidade. Assim como em My Sister’s Keeper, em A ilha a
tecnologia é usada para fornecer órgãos para transplantes, a fim
de salvar a vida de alguém que esteja doente. Diferentemente
de My Sister’s Keeper, para remover os órgãos é preciso matar
o clone, a fim de que determinada parte do corpo possa ser
“ceifada”.
Toda a trama de A ilha é centrada na expectativa de que nós,
os espectadores, nos identifiquemos com os clones, que serão
assassinados, em vez de nos identificarmos com as pessoas que
deram origem a eles e que devem ser salvas. Assim, acompanhamos a história de Lincoln Six Echo (Ewan McGregor) e
Jordan Two Delta (Scarlett Johansson) quando percebem que
algo está errado e fogem do laboratório, em busca das pessoas
9
Dirigido por Michael Bay (DreamWorks, 2005). Leia o capítulo 8 para ver um
guia de estudo desse livro.
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que lhes deram origem, e acabam confrontando o cientista
que está por trás da tecnologia, o dr. Merrick (Sean Bean).
É até possível sentir certa simpatia por Merrick. Ele parece ter começado como um médico bondoso, cheio de boas
intenções, que só queria o melhor para seus pacientes. Pensou que poderia conseguir isso fazendo uso da mais avançada
tecnologia existente e, em certo ponto do filme, descreve sua
relutante trajetória até onde se encontra no momento. Talvez
a perspectiva do médico nos faça pensar mais profundamente
no poder sedutor dos avanços contínuos na medicina tecnológica, assim como a necessidade de pensar cuidadosamente no
que estamos fazendo.
“ANTES DE MAIS NADA, NÃO FAZER NADA QUE PREJUDIQUE”
Podemos até pensar que uma atitude tão bárbara quanto a do
dr. Merrick para com o ser humano jamais aconteceria na vida
real. Com certeza temos um sistema natural de limitações e
inspeções capaz de nos proteger contra esse tipo de abuso. Mas
será que podemos ter tanta certeza assim? É possível ter um
conjunto de regras lógicas e razoáveis que nos proteja contra
possíveis danos? Essa é uma idéia que foi abordada em outro
filme: Eu, robô (I, Robot).10 Como muitos outros filmes recentes, este explora o possível impacto do avanço da tecnologia na
vida como a conhecemos, mas dessa vez o foco é a robótica e
a inteligência artificial.
10
Dirigido por Alex Proyas (Twentieth Century Fox, 2004). Para ler mais sobre
Eu, robô, veja o capítulo 5 deste livro. Para ver um guia de estudo sobre o filme,
leia “I, Robot”, por Tony Watkins, em CultureWatch: www.damaris.org/content/
content.php?type=1&id=202 (em inglês).
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Brincando de Deus
Eu, robô se passa num futuro quando os robôs fazem parte
da vida das pessoas. Eles fazem o trabalho que ninguém mais
quer fazer: fazem compras, limpam, servem comida e bebida e
depois limpam todo o lixo que fica. Isso parece maravilhoso e
perfeitamente seguro por causa da Primeira Lei da Robótica,
segundo a qual “Um robô não pode ferir um ser humano ou,
por omissão, permitir que um humano sofra algum mal”. Mas
não é esta lei que o filme explora. A pergunta que Eu, robô faz é:
uma lei lógica e racional pode proteger-nos do impacto adverso causado pelo desenvolvimento tecnológico? É interessante
como essa lei fictícia11 é comparável a um princípio fundamental da ética médica na vida real. Esta é a regra que nos remete a
Hipócrates, aceita por todos os médicos e geralmente expressa
como primum non nocere: “antes de mais nada, não fazer nada
que prejudique”. Este pode ser um perfeito meio de segurança
para os médicos de hoje e os robôs de amanhã. Tal lógica racional apela aos que estão usando a lógica e a razão para avançar na
tecnologia médica. Contudo Eu, robô busca enfatizar algumas
limitações dessa lógica aparentemente racional.
No filme, um supercomputador, seguindo a Primeira Lei da
Robótica, procura fazer o possível para proteger os humanos,
até que ele começa a perceber que, ao agir por si mesmos,
os humanos tendem a ser violentos uns com os outros. Por
causa de suas escolhas, os humanos prejudicam uns aos outros.
Assim, o supercomputador conclui que a melhor maneira de
proteger os humanos é fazer com que parem de machucar uns
aos outros, tirando-lhes a liberdade. Na verdade, ele tem um
11
Para saber mais sobre as Três Leis da Robótica, leia o capítulo 5.
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senso de urgência, já que sabe que não pode permitir que os
humanos se machuquem por sua falta de ação, ou seja, ele tem
de fazer alguma coisa bem rápido. É aí que esse computador
passa a controlar uma nova série de robôs e procura usá-los para
dominar o mundo, a fim de fazer dele um lugar mais seguro
para os humanos. Ao exigir que se tenha uma lógica sem falhas,
o computador também conclui que é racional matar alguns
humanos durante o processo de dominação, com o objetivo de
salvar um número maior de vidas no futuro.
Enquanto isso, o filme As possuídas (The Stepford Wives)12
explora a mesma questão por um ângulo diferente. Os especialistas de Stepford criam robôs perfeitos para substituir suas
esposas e então aproveitam uma vida idílica em que as “esposas” os servem de todas as maneiras possíveis. Ao chegar um
novo homem em Stepford, os outros tentam persuadi-lo do
real valor de substituir a esposa problemática e importuna.
A solução lhe parece atraente. Na verdade, a idéia de trocar
a esposa por um robô perfeito é bem convincente, mas ele se
recusa a seguir essa lógica e no final expõe os motivos. Por que
ele faz isso? O filme esclarece: porque ele a ama, com todos
os defeitos e falhas. É esse tipo de amor que também traz a
resposta ao enredo de Eu, robô. Na cena final, vemos o herói
falar sobre a primazia da compaixão em relação ao raciocínio
lógico.
12
Dirigido por Frank Oz (Paramount, 2004). ([NR]: As duas produções, uma
em 1975 e outra em 2004, renderam dois títulos em português: Mulheres perfeitas e As possuídas, respectivamente.) Veja também o artigo “Flawed Perfection”, de Louise Crook, em CultureWatch: www.damaris.org/content/content.
php?type=5&id=392 (em inglês).
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Brincando de Deus
OUSE SER SÁBIO
O uso do raciocínio lógico na ética tem uma história filosófica
muito longa. Sua influência tornou-se maior durante os séculos
XVII e XVIII (período conhecido como Iluminismo). Foi nessa época que os filósofos começaram a encorajar a sociedade a
pensar por si mesma, em vez de seguir cegamente os dogmas da
Igreja. Immanuel Kant, por exemplo, um dos principais pensadores da época, tinha um bordão que resumia as necessidades
da época. “Sapere aude”, disse ele. O bordão que literalmente significa “ouse ser sábio”, acabou sendo interpretado como
“ouse pensar por si mesmo”. E foi assim que a cultura fundada
nos princípios do Iluminismo (que por vezes é chamada de
Modernismo) passou a valorizar a lógica e a razão.
No século XX, houve uma mudança gradual do Modernismo para o Pós-Modernismo, o que levou muitas pessoas a
perder a confiança na lógica e na razão, embora muitas ainda
continuem acreditando no valor da lógica. Esse é especialmente
o caso dos que trabalham com tecnologia, pois são a lógica e a
razão que lhes permitem desenvolver sua tecnologia. É também
a lógica e a razão que eles buscam aplicar quando consideram
questões éticas relacionadas ao avanço dessa tecnologia.
Talvez o exemplo mais conhecido seja Peter Singer. Embora ele seja filósofo não tecnólogo, tem interesse particular em
trabalhar com as implicações éticas dos avanços na biotecnologia. Singer é fundador e co-editor do periódico norte-americano Bioethics (Bioética) e é também professor do Centro de
Valores Humanos da Universidade de Princeton. Já escreveu
muito sobre o que ele crê tratar-se de decisões lógicas e racionais que deveríamos tomar em resposta aos dilemas éticos do
mundo moderno – e não tem medo de pôr de lado crenças e
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valores tradicionais para buscar caminhos novos que respondam a novos desafios. Por exemplo, em seu livro Rethinking
Life and Death (Repensando a vida e a morte)13, que tem como
subtítulo “O colapso da nossa ética tradicional”, ele argumenta que os caminhos pelos quais tradicionalmente pensamos
a vida e a morte não respondem à pressão dos dolorosos e
complexos dilemas médicos surgidos nos últimos anos com a
ampliação assustadora da tecnologia médica, que dá aos médicos o poder de salvar e prolongar a vida.
A FALTA DE IMPORTÂNCIA DO SER HUMANO
Singer reivindica que não mais é possível manter a inviolabilidade da vida como a pedra fundamental da nossa percepção
ética. Devemos descartar a antiga ética e substituí-la por algo
novo. Edificar algo novo requer uma base, um conjunto de
princípios do qual começar. Assim, um dos mais importantes
princípios adotados por Singer é a distinção humanista secular
e moderna entre “ser humano” e “pessoa humana”. Singer fala
que o ser humano é um membro da espécie Homo sapiens, mas
a pessoa humana é muito mais que isso. Uma pessoa humana,
segundo ele, está ciente de si mesma em diferentes épocas e
lugares e também é capaz de antecipar o futuro, assim como
de ter desejos e vontades para esse futuro.
Essa distinção é muito importante para Singer, pois é por
meio dela que o pensador busca argumentar que o ser humano
não tem o mesmo direito à vida que a pessoa humana. Assim, ele defende a teoria de que alguém em estado vegetativo
13
Peter SINGER, Rethinking Life and Death (Oxford University Press, 1995).
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Brincando de Deus
permanente ou com várias deficiências cerebrais pode até ser
um ser humano, mas não é uma pessoa humana. Conseqüentemente, diz ele, matá-lo nem sempre estaria errado e em muitos casos seria o melhor a fazer.
De qualquer forma, Singer não pára por aí. Ele aplica sua
lógica implacável ao caso de bebês recém-nascidos. Argumenta
que todos os recém-nascidos fazem parte dessa categoria. Alega
que nas primeiras semanas de vida os bebês não estão cientes
de sua existência e não são capazes de fazer qualquer inferência
ao futuro nem de ter vontades e desejos. Então, Singer afirma
que “matar um bebê recém-nascido jamais será a mesma coisa
que matar uma pessoa”. E, para que não haja dúvida, ele literalmente quer dizer matar o bebê, não apenas permitir que ele
morra. Acrescenta que, “se uma decisão for tomada pelos pais
e médicos de que é melhor que o bebê morra, acredito que deveria ser possível acatar tal decisão... tomando-se atitudes reais
para dar fim à vida do bebê de maneira rápida e humana”.14
CANTANDO EM OUTRO TOM
Como podemos responder a uma posição como essa? Aqui
estão três possíveis maneiras:
Primeiro, temos de concordar que isso é totalmente lógico
e racional. Dessa forma, precisamos aceitar sua crença e procurar formas de aplicá-la em todas as situações possíveis, até nos
casos do bebê Charlotte e de Terri Schiavo.
Segundo, devemos aceitar que essa é uma posição totalmente
lógica, mas depois argumentar que mostra o perigo de uma
14
Peter SINGER, FAQ, III. “The Sanctity of Human Life”. Disponível em www.
princeton.edu/~psinger/faq.html (em inglês).
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perspectiva racional bastante parcial. Foi essa a abordagem
divulgada nas famosas palavras de Blaise Pascal: “O coração
tem razões que a própria razão desconhece”. Para Pascal, e
outros que têm a mesma visão, a lógica é importante, mas
requer uma perspectiva mais ampla da razão que reconheça
o valor da intuição e até mesmo a possibilidade da revelação.
Se as pessoas estiverem preparadas para considerar tais
possibilidades, provavelmente vamos querer convencê-las
da possibilidade de haver um Deus que nos pode revelar a
verdade de forma direta pelas Escrituras ou de forma indireta
através da consciência que ele nos deu.
Terceiro, devemos questionar a validade de seu argumento. Um argumento nada mais é do que um processo que liga
duas premissas (duas afirmações sobre a realidade) para formular uma conclusão. Então, podemos definir argumento
como:
Premissa
Premissa
Conclusão
Os filósofos chamam a isso silogismo. O exemplo clássico
de silogismo foi dado pelo filósofo grego Aristóteles (daí nos
referirmos a esse tipo de raciocínio como “lógica silogística
aristotélica”):
Premissa: Sócrates é um homem.
Premissa: Todos os homens morrerão.
Conclusão: Logo, Sócrates morrerá.
30
Brincando de Deus
Esse é um argumento sólido. No entanto, há três coisas que
podem tornar imperfeito um argumento. Primeira, quando
se usa uma lógica não válida. Isto é, a conclusão não segue as
duas premissas de maneira lógica. Segunda, os termos podem
ser ambíguos. Ou seja, palavras podem ser usadas para significar coisas diferentes em diferentes situações. Terceira, as
premissas podem ser falsas. Isto é, uma ou ambas as premissas
podem ser afirmações falsas sobre o mundo.
Desse modo, analisando-se o argumento usado por Singer,
temos de nos perguntar se ele é sólido ou se cai na armadilha
de usar uma lógica não válida, termos ambíguos ou premissas falsas. Para que possamos considerar isso, primeiro temos
de expressar seu argumento como um silogismo, talvez da seguinte maneira:
Premissa: Os humanos não têm direito automático à vida se
não tiverem ciência de sua existência no tempo.
Premissa: Bebês recém-nascidos não têm ciência de sua existência no tempo.
Conclusão: Logo, bebês recém-nascidos não têm direito
automático à vida.
Devemos então concluir que esse argumento é logicamente
válido e não faz uso de termos ambíguos. Todavia, são suas
premissas verdadeiras? Temos de aceitar a segunda premissa
(embora possamos questionar nossa inferência a esse conhecimento). Mas é a primeira premissa uma afirmação verdadeira
sobre o mundo? Ou se trata apenas de uma afirmação de
Singer? De onde ele tirou isso? Por que deveríamos aceitar
sua afirmação em vez de aceitar outra alternativa, como, por
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exemplo, “Os humanos têm valor, importância e direitos
porque Deus os criou à sua própria imagem”?
Desse modo, voltamos ao mesmo território em que estávamos na segunda resposta a Singer: considerar a possibilidade
de que talvez exista um Deus que revela sua verdade a nós.
E essa é uma boa posição da qual partir ao argumentarmos
sobre tais assuntos com as pessoas. Queremos ajudar as pessoas a entender as questões e também queremos responder às
perspectivas que fazem parte de nossa cultura. No entanto,
queremos principalmente que as pessoas ouçam o que a Bíblia
diz: “Delas também falamos, não com palavras ensinadas pela
sabedoria humana, mas com palavras ensinadas pelo Espírito,
interpretando verdades espirituais para os que são espirituais”
(1Co 2.13, Nova Versão Internacional).

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