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sem autorização escrita do mesmo.
Rosa - por Sonia Rodrigues
registrado na Fundação Biblioteca Nacional
sob o n323414 livro 592 folha 74
Ministério da Cultura - Escritório de Direitos Autorais
ISBN 85-904649-9-7
1
Rosa - por Sonia Rodrigues
Crédito da capa: lay-out e montagem: Pablo Basile
Ilustração: Mary Cassat: “Spring: Margot Standing in a Garden”
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Rosa - por Sonia Rodrigues
ROSA
Romance de Sonia Rodrigues
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Rosa - por Sonia Rodrigues
RITUAIS DE ELÊUSIS
Os mitos de Deméter e Perséfone retratam em sua complexidade o intrincado relacionamento
mãe-filha, revelando o feminino em todas as dimensões interiores.
No templo de Elêusis, edificado por Deméter durante sua peregrinação pela Terra em sua
sofrida busca pela filha desaparecida, realizavam as sacerdotisas rituais em homenagem à deusa,
rituais hoje desconhecidos para nós.
Os misteriosos rituais de Elêusis, no entanto, acontecem todos os dias, no coração de cada
mulher. Todo coração feminino é um templo da Deusa.
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Rosa - por Sonia Rodrigues
PRIMEIRA PARTE
VÉSPERA DE NATAL
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Rosa - por Sonia Rodrigues
Tempo de alegre expectativa
“o melhor da festa é esperar por ela”
A semana de Natal sempre é uma correria contra o tempo, para as donas de casa que querem
seu lar impecável, as comidas no capricho, os enfeites perfeitos.
Os dois rapazinhos e o pai fizeram sua parte estocando bebidas na despensa, polindo o carro,
limpando a garagem, carregando compras. Também colaboraram no grosso da faxina pesada –
esfregar vidraças, portas, encerar os pisos.
Fiona não contava com a ajuda das filhas, pois Roseli e Rosália chegariam na véspera de Natal,
uma vindo de São Carlos e outra de Jundiaí..
Todas as cortinas, toalhas e guarnições de mesa foram lavadas, engomadas e passadas a ferro.
A árvore, as guirlandas, os vasos de flores, as velas, os enfeites de mesa, bem como a prataria e
os cristais das grandes ocasiões foram limpos e polidos. Cada recanto da casa fora cuidadosamente
limpo.
A cozinha cheirava bem – pãezinhos de côco, mousse de uva, Saint-Honoré, docinhos vidrados
de ameixas e nozes, bolo de frutas, sorvetes, assados, castanhas e a guarnição para a ceia.
Rosália com o marido, bem como Roseli, chegaram após o almoço, com pilhas de presentes
para serem colocados sob a árvore de Natal.
Fiona avisou Sofia da chegada de Rosa, sua filha mais velha. Sofia, a vizinha, era amiga de
Rosa desde o maternal. As duas meninas haviam estudado juntas até o Colegial, separando-se após a
faculdade, quando Rosa mudara-se para a Bahia e Sofia para o Rio Grande do Sul. Após quatro anos,
Sofia divorciara-se e voltara para Santos. Fiona a convidara para a ceia, pensando que as duas amigas
gostariam de reencontrar-se. E a presença de Sofia poderia facilitar o seu reencontro com a filha
primogênita.
Eram cinco horas da tarde quando Fiona finalmente sentou-se, suspirando de satisfação, recém
saída de um banho perfumado, prendendo os cabelos na nuca com uma fivela de ouro e pérolas.
Nélson, Márcio e Gustavo jogavam cartas com Sofia. Roseli folheava uma revista, junto à
janela. Orgulhosa de sua família e de sua casa, satisfeita consigo mesma, Fiona esperava por Rosa,
ansiando por abraçar, ouvir e olhar a filha predileta.
Há dois anos não se viam, anos de silencioso sofrimento.
Tantos desentendimentos e dissabores nos últimos anos! O tumultuado casamento, o
nascimento da netinha doente, aquele desagradável incidente com Roseli, a morte do bebê, o
divórcio... e Rosa sempre defendeu o marido em seus desatinos. Quando o sujeito a abandonara, ela
fora para bem longe, para o oeste paulista. Poucas cartas, poucos telefonemas, muitas evasivas, sempre
aquela frieza, aquela mágoa mal oculta. Era preciso dar um basta naquilo!
Fiona aguardava ansiosamente o encontro de reconciliação, decidida a viver um Natal
perfeitamente feliz.
Fiona não sabia que, quando a campainha soasse, e ela se precipitasse para a porta, o sorriso
iria congelar, o braço iria paralisar se a caminho do abraço e quando Rosa entrasse, todos se
levantariam, silenciosos e espantados.
6
Rosa - por Sonia Rodrigues
Raízes
“não há lugar como o lar”
Fiona era uma mulher metódica, meticulosa e dedicada ao lar. Criara cinco filhos à moda do
Velho Mundo, com disciplina, religião e carinho, dosados com bom senso, pois Fiona era uma mulher
de inteligência invulgar. Justamente por isso permanecera em casa, pois parecia-lhe que produzir bons
seres humanos para um mundo caótico era mais importante que produzir coisas, mesmo que estas
coisas fossem projetos científicos. Fiona era generosa e gostava de pessoas, principalmente de
crianças.
Aos cinqüenta anos, Fiona podia orgulhar-se de ter escolhido o marido com sabedoria. Nélson
era um pai presente no lar, enérgico sem ser severo, amoroso sem ser permissivo; um marido gentil
que, em trinta anos de casamento, nunca a magoara com ironias, piadinhas ou casos amorosos.
Dos cinco filhos, somente Rosália, com sua exuberância de formas e alegre tagarelice, dera-lhe
preocupações. A moça chamava a atenção dos rapazes por onde quer que passasse, usava biquínis,
decotes e aderia aos mais loucos modismos. Rosália ouvia os sons mais estranhos, batizados de
‘música’ por seus bizarros companheiros, rapazes tatuados com três brincos em cada orelha e moças
de cabelos cor de rosa.
Rosália preocupara Fiona, sobressaltada com a possibilidade de drogas, delinqüência, acidentes
ou coisa pior.
Fiona nem conseguia colocar em palavras este ‘pior’, mas todos na família sabiam do que se
tratava. De qualquer forma, foi um alívio e uma surpresa quando Rosália casou-se com o filho de um
pastor metodista e passou no concurso para auditor fiscal. Ninguém diria, ao olhar aquela mulher
jovem a jogar xadrez com o marido tão sossegadamente, vestindo um discreto conjunto verde-água,
ninguém diria, dizia eu, que na adolescência ela assistia a shows de Rita Lee e ameaçava tatuar uma
serpente nas costas.
Roseli, a filha mais nova, cursava a faculdade de farmácia e era a que mais se parecia com
Fiona – branquinha, os loiríssimos cabelos longos ondulados e os olhos claros a vagar espantados e
apáticos pelo mundo ameaçador. Roseli tinha pouca iniciativa e mostrava-se arredia desde aquele
lamentável episódio, há três anos atrás, quando fora quase estuprada em seu próprio quarto...
felizmente Fiona regressara a casa mais cedo do que previra, a ponto de evitar... Fiona afastou as
lembranças ruins com um enérgico balançar de cabeça. Nada realmente acontecera, mas Roseli era
uma dessas naturezas sensíveis, nas quais a imaginação provoca maiores danos que os fatos reais.
Essa moça quieta pouco conversava com a mãe, mas era uma companheira maravilhosa para os irmãos
menores, com quem jogava bolinhas de gude, bafo, dominó, pião e até pula-sela.
Os meninos, lavados, penteados e cheirosos, estavam sentados na sala a fazer o que mais os
encantava: lendo. Mário, o mais velho, estava relendo O Jovem Fazendeiro, de Laura Ingalls Wilder, e
Gustavo folheava As Mais Belas Histórias de Walt Disney.
Rosa, a filha mais velha, estava para chegar. Pensando em sua primogênita, Fiona suspirou.
Rosa...
Olhando para um dos porta-retratos na sala de estar, Fiona encontrou-se com ela mesma e com
Nélson, em uma foto em preto e branco que trazia para o presente os sorrisos dos jovens enamorados.
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Rosa - por Sonia Rodrigues
Lembranças
‘recordar é viver’
Fiona conheceu Nélson aos dezessete anos.
Ela entrara com duas primas em uma sorveteria, quando escutou uma voz na mesa ao lado
dizer:
- Vou casar-me com aquela loira de vestido vermelho.
Fiona olhou na direção do petulante rapaz. Ele sorriu-lhe e ela virou-lhe as costas. Ouviu os
sons
de cadeiras que se arrastavam e de passos e risos a se aproximarem.
- Boa tarde, nós gostaríamos de nos apresentar e conversar um pouco. Eu sou Nélson e estes
são meus amigos Juca e Orlando. Nós chegamos do Rio esta manhã. Somos turistas. Podemos sentar
aqui com vocês?
- Não – disse Fiona.
- Claro que sim – disseram as primas, entusiasmadas.
Nélson permaneceu em pé, enquanto os amigos se instalavam ao lado das outras moças. Fiona
continuava muito séria, ao passo que os olhos de Nélson não desviavam dela. Quando ela o encarou,
soube que ele era o homem com quem se casaria.
No verão seguinte estavam casados e Fiona engravidou pela primeira vez.
Desde que soube da gravidez, todos os momentos da vida de Fiona pertenceram inteiramente
ao bebê. Se comia, pensava que o alimento formaria o seu corpinho; se bebia, era porque ele tinha
sede; se tomava sol, era para fortalecer os ossos do pequeno milagre que se realizava em seu vente.
Fiona cantava para alegrar o nenezinho, lia para ele, exercitava-se para ele. Até mesmo quando Nélson
a abraçava, era para aquele pequenino ser em formação que ela canalizava aquele amor.
Quando Rosa nasceu, Fiona estabeleceu com ela uma simbiose tão estreita que a vida familiar
transcorria tranquila e rítmica como um relógio.
Durante quatro anos Fiona comia, mexia-se e até respirava em sintonia com a filha, felizes
ambas, seguras de si e risonhas com só as pessoas muito amadas conseguem ser.
E então veio Rosália.
Fiona não conseguiu ser para esta segunda filha a gestante dedicada que fôra com Rosa. Não
repousava o suficiente, pois havia Rosa para cuidar. Suas conversas mentais com o feto eram
frequentemente interrompidas pelas solicitações da filha mais velha. Fiona percebeu que não poderia
ser mãe tempo integral deste segundo bebê, o que a deixou angustiada. Pois então era verdade que os
pais não amam os filhos todos da mesma maneira, pelo menos não se dedicam a todos os filhos do
mesmo modo, como gostariam.
Esta foi um época dolorosa para Fiona, que sentia a gravidez afastá-la de Rosa e sentia Rosa
afastá-la do bebê que trazia no ventre. E ainda havia Nélson, com quem ela gostaria de conversar e
namorar horas a fio, como em solteira. Fiona sentia tanta falta do marido que de bom grado se privava
de sono só para poder ficar um pouco mais em sua companhia. Assim, ela estava sempre muito
cansada, e, quando Rosália nasceu, ela caiu doente para valer.
Subitamente privada da companhia da mãe, sentindo a angústia do pai, vendo entrar na casa um
pacotinho chorão, a rotina doméstica entregue às mãos de uma tia impaciente, Rosa passava os dias
sentada na cama, agarrada a um urso de estimação, enquanto seu mundo virava de pernas para o ar.
Após dez dias, Fiona voltou para casa. Rosa não queria mais o seu colo.
8
Rosa - por Sonia Rodrigues
Fiona não imaginava que uma criança pudesse sofrer com tal intensidade, nem que o
sofrimento pudesse modificar radicalmente uma personalidade tão jovem.
Rosa fora uma alegre e tagarela criaturinha que desabrochava como uma flor. Fiona encantarase em acompanhar seus pensamentos, suas fantasias, adivinhar-lhe os desejos, as intenções, os
sentimentos. Esta flor murchara.
Fiona nunca conseguiu estabelecer com Rosália a doce cumplicidade dos primeiros anos de
Rosa. E a filha mais velha era agora para ela uma completa estranha. A comunicação entre as duas
estava rompida. A menina agia como se fosse “Rosa sozinha contra o mundo” e procurava coragem
para sobreviver a cavalinho sobre o joelho do pai.
Fiona adivinhava que Rosa a culpava por aqueles dolorosos dias e que esta era uma culpa sem
perdão.
Crianças às vezes tomam decisões assim radicais.
Fiona desconfiava que Rosa decidira não perdoá-la nunca e nunca, nunca mais confiar nela.
Infelizmente Fiona estava certa.
Com Rosa e Rosália a casa transformara-se em uma arena, onde se travava uma disputa feroz.
A beleza deslumbrante de Rosália complicava a situação. Rosa herdara traços marcantes da família
que, em conjunto, eram pouco femininos – um queixo proeminente e quadrado, testa alta, corpo esguio
e uma altura invulgar.
Ante o inferno em que se transformara o antes doce lar, Fiona resolvera não mais ter filhos.
Roseli aconteceu por acidente.
Rosa contava doze anos quando Roseli nasceu e adotou-a, para grande espanto de Fiona.
Enquanto Rosália, enciumada, criava toda sorte de problemas, Rosa demonstrou uma maturidade
precoce. Rosa limpava a casa, fazia a comida, acalentava o bebê; oferecia-se para ir às compras e ainda
procurava convencer Rosália a não atrapalhar.
Roseli era uma bonequinha loira. Nélson encantara-se por ela, pois era uma Fiona em
miniatura. Ela dizia para Rosa:
- Claro, ela não é tão inteligente como você na idade dela, nem é capaz de compreender minhas
idéias como você, minha companheirinha – pois Rosa era a confidente e a secretária do pai. Com a
desculpa de estar com os olhos cansados, Nélson fazia a filha mais velha ler para ele todos os filósofos
e todos os clássicos da estante, e, noite após noite, discutindo literatura, ele ia moldando o caráter dela.
Rosália não se prestava a este tipo de conversa. Depois de ler Lassie e Tarzan, ela se dedicara aos
livros de culinária, preferindo ajudar a mãe com as sobremesas.
Percebendo que este terceiro bebê trouxera um pouco de alívio à tragédia familiar, Fiona, que
adorava crianças, aventurou-se mais duas vezes, sendo abençoada por dois garotos saudáveis e
tranqüilos, mimados pelas irmãs e excepcionalmente inteligentes.
E a família viveu feliz por alguns anos.
9
Rosa - por Sonia Rodrigues
Asas
‘tal pai, tal filha’
Os Natais eram os dias mágicos da infância de Nélson, que esperava ansiosamente pelo que
considerava a noite mais feliz do ano.
No Natal os primos vinham de longe, havia o gordo leitão de carne saborosa, a família
cantando junta tantas músicas bonitas sob a batuta do avô maestro, e, melhor do que tudo, havia Papai
Noel.
Nélson fazia questão de proporcionar a suas crianças momentos felizes e mágicos nos Natais.
Desdobrava-se para inventar surpresas, adivinhar desejos, descobrir passatempos de salão. Nos
últimos anos, as desgraças que se abateram sobre Rosa haviam amargado o gosto dos Natais. Verdade
é que a filha parecia correr atrás de infortúnios, o que mais aumentava sua dor de pai. Este ano, no
entanto, Rosa estava vindo para o Natal, e Nélson sentia um desejo intenso de estreitá-la em seus
braços e protegê-la, como o fizera nos dias em que ela fôra uma garotinha.
Nélson recordava-se...
‘ Era uma tarde de abril. Ventava muito e a maré estava alta.
Nélson levara Rosa à praia, mas a garotinha não queria entrar na água, nadar, boiar, levar
caldos nem ser arrastada como um jacaré pelas mãos firmes do pai; deixara-se ficar sentada a seguir
com os olhos as gaivotas em vôo.
- Que foi, minha princesinha?
- Quando é que aquela Rosália vai embora?
- Ela vai ficar. Nós já conversamos sobre isso.
- Mas você é só meu. Você é meu pai, não é o pai dela.
- Sou seu pai. Sou pai de Rosália também. Meu coração é bem grande para vocês três, a
mamãe e vocês e ainda tem muito espaço para outras pessoas.
- Não é justo. A mamãe já fica o tempo todo com ela.
- Mamãe ficava o tempo todo com você, quando você era um bebezinho.
- Eu ainda sou pequenininha.
- Você é uma menina crescida o bastante para poder brincar no mar e tomar sorvetes.
A maré começava a baixar. A cada nova onda, o mar recuava um pouco. Dezenas de siris
corriam para esconder-se em buraquinhos na areia.
- Está vendo os siris, querida?
- Estou, papai.
- São bichinhos medrosos, que levam a vida a esconder-se em buracos na areia. Quando não
estão fugindo, estão machucando, espetando os pés dos distraídos.
- E daí?
- Você anda se comportando como um siri, toda brava, se escondendo pelos cantos.
Uma lágrima rolou pelo nariz de Rosa.
- E daí, quem se importa? Aquela chata da Rosália não vai embora mesmo...
- Olha aquela gaivota ali, que bonita.
-É
- Quando está lá em cima, voando, a gaivota vê a praia inteira. A gaivota enxerga longe, ela
pode ver lá do alto muitas coisas que nós não vemos daqui.
-É
- Ela é livre.
- Deve ser gostoso voar.
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Rosa - por Sonia Rodrigues
- Nós podemos voar.
- Não, não podemos.
- Podemos, sim. Há muito tempo atrás um menino chamado Santos Dumont resolveu que o
homem poderia voar como os pássaros. E ele tanto desejou voar, que cresceu e inventou o avião.
- Não é a mesma coisa, pai.
- Nós também temos planadores, balões e asas delta.
- E daí?
- Daí... nós podemos voar! Não é preciso ter asas de verdade para voar. É preciso ter
imaginação.é preciso ser mais esperto que o siri. Se as gaivotinhas se encolhessem em seus ninhos
com medo, não aprenderiam a voar.
- As gaivotinhas têm medo, papai?
- As gaivotinhas têm medo, sim. O ninho delas é lá no alto, nas pedras, elas têm medo de cair.
Um belo dia caem, mas abrem as asas e voam. Aí perdem o medo e ganham o mundo. Ficam voando
lá no alto, livres e felizes.
- É, lá no alto...
- Nós também somo como gaivotas, Rosa. Um dia deixamos o ninho e aprendemos a voar.
Rosa ficou olhando durante muito tempo e depois falou:
- Um dia você me contou uma história sobre um menino que voava e chegou muito perto do
sol e morreu.
- Ah, Ícaro! Sim, Ícaro morreu porque não obedeceu a seu pai, foi imprudente. Mas as gaivotas
não se queimam, elas têm o bom senso de ficar longe do sol.
- Então algumas pessoas não devem ter asas.
Nélson ficou admirado com esta observação.
- É, Rosa, acho que algumas pessoas nasceram para siris.
- Papai, o que você é: siri ou gaivota?
- Eu sou uma gaivota. E você?
- Eu também.
- Vamos então voar nas asas do sonho.
Nélson pegou a pequena pela barriga e correu com ela pela praia, suspendendo-a no ar:
- Olha a minha gaivotinha! Vamos voar!’
Adulta, Rosa voara para longe, voara como Ícaro, desastradamente, voara para onde ele não
podia protegê-la com seu amor de pai.
E agora Rosa voltava para o ninho, e Nélson esperava poder fortalecê-la e prepará-la para o
vôo das águias.
Que Rosa voasse livre, poderosa e bela, que descortinasse amplos horizontes e que, voando,
olhasse de frente para o sol!
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Rosa - por Sonia Rodrigues
Escolhas
‘Que mito está-me vivendo agora? – Jung’
Rosa, inteligente e precoce, aprendeu a ler muito cedo.
Diariamente Nélson saía cedo para o trabalho, Fiona se ocupava com a casa e o novo bebê, e
Rosa enfiava-se nos livros.
Antes de Rosália nascer, a rotina era Fiona e Rosa compartilharem canções, historinhas e
atividades domésticas.
Rosa gostava de trabalho caseiro, mas agora não se tratava mais de trabalho compartilhado,
pois enquanto ela varria o quarto, Fiona não estava a seu lado conversando, Fiona ocupava-se com o
bebê.
Antes Fiona lia para Rosa e com Rosa; agora Rosa lia sozinha. Rosa evitava barulho, para que
o bebê não acordasse aos gritos. A leitura era a fuga ideal, pois no Reino Encantado , Rosa continuava
a ser a única princesa, e os príncipes, as fadas e os gênios das lâmpadas eram só dela.
Rosa leu todos os seus livros e os da infância de seus pais, toda a coleção infantil de Monteiro
Lobato, todos os livros da Condessa de Séguyr, O Mundo da Criança e O Tesouro da Juventude. Então
começou a ler livros de aventura e as maravilhosas histórias da mitologia grega.
Na escola, as notas de Rosa eram as melhores e seu comportamento nota dez. Quanto a amigo,
Rosa só conversava com a vizinha, Sofia, que compartilhava sua paixão pelos livros. Da casa de
Sofia, Rosa trazia novidades: Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo, histórias policiais e de
mistério.
As duas brincavam de pirata, aventuravam-se pelas costas da França e Inglaterra e tinham lá
suas conversas que nenhuma outra criança entendia. Trocavam livros, idéias e experiências. Rosa
ganhara do pai um microscópio e uma luneta; Sofia tinha um laboratório químico juvenil e espaço na
área de seviço que não era invadido por mãozinhas curiosas de irmãs menores. Nesta área as amigas
esqueciam-se do tempo em meio a fórmulas e experiências em que buscavam os segredos da pedra
filosofal.
A coleção Os Jovens Cientistas e os livros de ciência das Edições Melhoramentos estavam
gastos de tanto serem folheados pelas cientistas mirins, que colecionavam e catalogavam quase tudo:
pedras, conchas, folhas, selos. Insetos não, preferiam vê-los vivos.
Rosa ganhou uma bolsa de estudos total no melhor colégio da cidade, graças a suas excelentes
notas. E aos sábados começou a dar aulas particulares para outros alunos em dificuldades em aprender.
Fiona observava que a filha era objetiva, gentil e bem humorada, além de paciente.
As colegas de classe gostavam de Rosa; ela é que recusava os convites, preferindo ficar em
casa entre seus livros ou com Sofia.
Na adolescência, Rosa começou a retirar livros da biblioteca da escola e da municipal. Leitora
voraz, lia de quatro a cinco volumes por semana. Envolvida no trato com os filhos menores, Fiona e
Nélson não perceberam a mudança nas leituras de Rosa.
Refugiando-se em devaneios sobre o amor perfeito, a mocinha começou a folhear as coleções
Rosa e Menina-moça, os romances de José de Alencar e os poetas românticos. E de repente aficionouse às fotonovelas, que lia nos salões de cabeleireiro aonde ia com Sofia fazer as unhas.
Rosa julgava-se feia. Sendo bem mais alta que as colegas, seu andar poderia ter porte e altivez,
no entanto era apenas desajeitado. Não gostando de música, mal sabendo dançar, desconhecendo
canções populares, Rosa estava em desvantagem social quando em grupo.
Aos quinze anos, durante uma viagem de navio com a família, Rosa conheceu o primeiro
namorado, um argentino, tão culto quanto ela, com quem discutia física quântica à luz das estrelas e
12
Rosa - por Sonia Rodrigues
que a introduziu no misterioso reino das derivadas e dos cálculos integrais. Tal idílio científico durou o
exato tempo da viagem – vinte dias – um postal de Buenos Aires e um cartão de Natal.
O fim era esperado e não causou grande decepção, ao invés criou em Rosa esperanças,
perigosas esperanças, e avivou-lhe desejos, perigosos desejos, de novos beijos, novos toques, novos
enleios carinhosos.
O colegial e a faculdade, no entanto, passaram por ela sem romance. Houve o professor de
química, solteiro, por quem ela se apaixonou sem reciprocidade. Havia os rapazes de costume,
querendo o de costume, com as conversas de costume, e, como de costume, encontrando em Rosa
desdém e tédio.
Aquele ser especial, aquele companheiro mental, ah!, aquele não apareceu!
Rosa, mulher madura, inocente e cheia de sonhos, formando-se em computação, subiu
rapidamente na vida, colecionando promoções. Comprou carro, apartamento e viajou.
Em férias na Bahia, às vésperas do Carnaval, encontrou-se sozinha na praia de Itapuã. Os
companheiros de excursão, fugindo da chuva, voltaram ao hotel; ela abrigou-se em um bar, esperando
a tempestade amainar.
Só, com a mente repleta de pensamentos românticos sobre amores de verão, Rosa encontrou o
olhar de Carlos, moreno alto, violeiro, sorriso maroto, à procura de mulher.
Olharam-se. Sorriram. Rosa, que Carlos julgou ser uma mulher experiente, entregou-se sem
reservas ao que ele pretendia que fosse uma loucura de carnaval e ela supunha ser o grande amor de
sua vida.
Dias de beijos ardentes, noites de música, bebida e ternos aconchegos, risos, passeios, boa
comida, tudo acabou para Carlos quando Rosa embarcou de volta a São Paulo, entre promessas de
telefonemas cartas que nunca vieram, promessas que – Carlos bem o sabia e Rosa o ignorava –
sempre se fazem e nunca se cumprem.
Rosa descobriu-se grávida.
Como Carlos não respondesse a suas cartas nem atendesse a seus telefonemas, ela largou tudo
e voltou à Bahia. Ela trouxe Carlos para passar a Páscoa em Santos, apresentou-o como namorado,
sem dar maiores explicações para seu súbito sumiço.
Fiona sabia reconhecer um ‘rato’ quando via um e não tinha dúvida alguma: Carlos era um
cafajeste do pior tipo. Não se preocupou, contudo, confiante de que Rosa depressa por si mesma
descobrisse o engano.
O rapaz, hospedado na casa de Fiona, dormia até tarde e passava as tardes a jogar futebol na
praia com a turma dos desocupados; falava alto, gargalhava, contava piadas inconvenientes e usava um
vocabulário de desesperar um professor de português. Não tinha nenhuma gentileza para com os
anfitriões – um vinho, flores, nada.
E para grande espanto de Fiona, Rosa não se dava conta dos defeitos do moço. Para ela, ele era
espontâneo, alegre e criativo. Quando ele partiu, ela sustentou sua escolha e mostrou-se mesmo
agressiva ante a desaprovação da família.
Certa tarde, Fiona recebeu um bilhete de Rosa, que demitira-se do emprego e fôra para a Bahia;
quinze dias depois recebeu o convite de casamento da filha.
Um desatino total – os dois desempregados, Carlos ainda na faculdade, vindo de uma família
pobre de assustar. Para Fiona, Rosa enlouquecera. Só quando a neta nasceu, cinco meses após o
casamento, Fiona compreendeu o porquê da pressa, mas nunca entendeu o mau passo da filha.
Rosa não confiava em Fiona. Nem em Nélson. Em ninguém. Parecia-lhe que, se não casasse
com Carlos, não casaria com mais ninguém. Carlos a olhara como mulher e, se ela não ficasse com
Carlos, nunca mais haveria um homem em sua vida. Pois se não houvera outro homem antes, agora, se
ela se tornasse mãe solteira...
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Rosa - por Sonia Rodrigues
E assim, Rosa insistiu em casar. Seu relógio biológico clamava pela maternidade. E ela
desejava tanto companhia, risos, música, carinho... sua solidão moral já não fazia questão de um
companheiro mental, apenas de um companheiro, de qualquer um, pois a proximidade dos trinta fazia
com que Rosa se sentisse, além de feia, velha.
A princípio Carlos sugeriu que Rosa abortasse. Quando percebeu que a família dela estava
financeiramente estável, pensou nas vantagens de um casamento. Ele gostava da vida boêmia, e afinal
acabou partindo sem falar em casar.
Rosa então procurou os pais dele para um confronto.
‘Paulistana sem vergonha’ foi a primeira reação dos futuros sogros, para quem ela é que
procurara por encrenca. Rosa chorou, era moça direita e religiosa, disposta a dar um lar a seu filho, e,
para si mesma, carinho para as noites solitárias.
Afinal, Carlos assumiu sua responsabilidade e casaram-se. Alugaram um quartinho nos becos
da Cidade Baixa, pois não tinham dinheiro para mais, Carlos deixou os estudos e arrumou um
emprego qualquer. Em quatro meses colecionou sete demissões, dezenas de orgias, bebedeiras e
desentendimentos com os vizinhos.
Rosa não conseguia emprego. Alugara seu apartamento em São Paulo e este aluguel garantia a
comida.
Carlos bebia, jogava e fumava. O violão era o companheiro noturno nos bares para onde ele às
vezes arrastava Rosa, exibindo-se a beber, a contar piadas e a paquerar outras. Se Rosa não o
acompanhasse, ele passava a noite fora, sem esconder suas proezas.
Deixando a vergonha de lado, Rosa telefonou para Fiona, tencionando voltar para casa, mas o
orgulho a atraiçoou; não teve coragem de abrir-se com a mãe e começou de mau jeito:
- Mãe, não estou bem, não consegui emprego...
Fiona, magoada, interpretou mal, pensou que a filha quisesse dinheiro. Ora, Fiona não daria um
centavo para Carlos gastar em suas noitadas!
- Você não quis casar? Agora, agüente!
- Mamãe, você não pode ajudar? Moro em um lugar horrível, o dinheiro mal dá para a
comida... – ‘e eu quero voltar para casa’ foram as palavras que Rosa não conseguiu pronunciar.
- Eu avisei. Você insistiu em casar com este traste. – se Rosa dissesse ‘eu quero voltar para
casa’ Fiona teria enviado a ela a passagem de avião no mesmo dia.
- Não sei o que fazer, mãe.
- Problema seu, agora o mal está feito, é arcar com as conseqüências.
- Eu darei um jeito – Rosa desligou.
As próximas semanas ficaram registradas como nebulosas na memória de Rosa. Pesada, com
fome, não tinha ânimo para o trabalho caseiro. Carlos reclamava da sujeira, da comida, da falta de
dinheiro, da pouca receptividade e do mau aspecto da mulher, acusando-a de ter estragado a vida dele,
obrigando-o a parar de estudar, então deitava-se com ela como o mais apaixonado dos amantes para
em seguida sumir na noite.
Rosa não tinha como pagar seu seguro saúde. Vendera o carro e Carlos desaparecera com o
dinheiro. Em conseqüência, ela terminou o pré-natal na rede pública e o parto foi em hospital
municipal com o médico de plantão, instalada em uma enfermaria geral.
Na noite em que a filha nasceu, Rosa esperou em vão pelo marido, antes de aventurar-se de
madrugada pelas esquinas a telefonar de orelhão para parentes e amigos à sua procura. Táxis
recusavam-se a entrar nos becos àquela hora tardia e ela enfrentou um ponto de ônibus, rezando
interiormente porque por ali rondavam tipos estranhos.
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Rosa - por Sonia Rodrigues
Há algumas semanas habituara-se a rezar, buscando na oração algo que não sabia direito. Lia
livros espíritas, protestantes e católicos, tanto fazia, desde que afastassem os pensamentos de medo,
remorso, incerteza e desamparo.
Há menos de um ano, pensava Rosa, eu tinha plano de saúde classe A com direito ao Hospital
Albert Einstein, um bom salário, um carro último tipo. Hoje estou desempregada, a pé, à noite e meu
filho vai nascer no SUS.
Carlos chegou ao hospital ao raiar do dia, bravo porque um homem fizera o parto de sua
mulher , quando deveria ter sido uma médica, pois ele queria o privilégio de ser o único homem a
conhecer aquele corpo. Ao saber que era menina, não escondeu a decepção:
- Ao menos este estorvo poderia ter parido um macho.
A menina nascera com problemas cardíacos graves, necessitando de cirurgias corretivas e com
pouca chance de sobrevida.
As vozes interiores de Rosa sussurravam ‘é castigo de Deus, quem mandou não guardar a
virgindade?’; ‘é seu carma, um sofrimento depurador’.
Nélson carregou a filha e a neta para casa, assim que chegou a Salvador e descobriu em que
tugúrio a filha vivia. O genro veio a tiracolo.
- A situação vai melhorar, pai. Encontrei um ex-professor que me garantiu um trabalho na
universidade assim que eu me desembaraçasse.
- O que?
- Assim que eu ‘desengravidasse’ – riu Rosa – Esse professor é espanhol.
- E daí?
- Daí eu poderei pagar um aluguel em um lugar melhor. E também um corretor de São Paulo
arrumou um comprador para o meu apartamento.
- Não venda. Carlos vai torrar o dinheiro.
- Pai, eu preciso do dinheiro para o tratamento da menina. Vou procurar o melhor cardiologista
para a Camila. E trate bem do pai da minha filha.
- Quem sabe, sugeriu Fiona, vocês dois não arrumam emprego em São Paulo? Quem sabe com
uma filha este rapaz crie juízo.
No entanto, na semana seguinte, aconteceu o drama.
Rosa saíra para vacinar Camila. Fiona regressou a casa mais cedo e surpreendeu Carlos nu, a
esgueirar-se para o quarto de Roseli, que dormia. A moça acordou aos gritos e Carlos defendeu-se
canhestramente; um passatempo tão inocente, não machucava ninguém, se não fosse a bisbilhotice da
sogra ninguém ficaria sabendo...
Roseli chorava. Nélson chamou a polícia e expulsou o genro. Rosa acusou a família de histeria,
pediu um pouco mais de compreensão para um rapaz pressionado pela sociedade e retirou-se com o
marido, pois seu lugar era ao lado do pai de sua filha.
O casal ajeitou-se em um quarto de pensão. Rosa arrumou umas aulas particulares e Carlos
passava os dias, segundo ele, a procurar emprego, e, segundo Rosa, secretamente, pois ela jamais
confessaria uma coisa dessas aos pais, a gastar o dinheiro dela com drogas.
Vinte dias depois Carlos sumiu no mundo, fazendo o grande favor de abandonar Rosa, para
fugaz alegria de Nélson e Fiona. Pois Rosa não voltou para a casa dos pais; colocou a filha em uma
creche assim que arrumou trabalho e tentou refazer a vida. Digo tentou porque a moléstia de Camila
consumia todo o dinheiro da mãe. Quando a garota faleceu, aos dezoito meses, Rosa perdeu a saúde, a
juventude e a alegria.
Os pais de Carlos compareceram ao enterro, com notícias sobre o rapaz: estava no Acre,
estudando medicina.
Nélson foi sarcástico:
15
Rosa - por Sonia Rodrigues
- Medicina? No Acre? Só se ele estuda com os índios ianomanis...
Fiona buscava um meio de aproximar-se de Rosa, em vão. A moça encolhia-se em si mesma
sem falar nem olhar para ninguém. O pai conseguiu abraçá-la, mas não consolá-la. E Nélson
compreendeu, admirado, que Rosa amava Carlos, irracionalmente como só a carne pode amar, e Rosa,
Nélson sabia disso, era uma mulher de um homem só.
Rosa resolveu enterrar-se em vida, como se costuma dizer, pedindo transferência para uma
cidade distante no oeste paulista, a 500 km do litoral e por dois anos permaneceu longe da família,
para grande tristeza de Fiona, que se espantava:
- Por que ela quer afastar-se de nós?
E então, aquela reaproximação. Aquele tão desejado reencontro.
Pelas cartas e telefonemas, Fiona sabia que Rosa chefiava um CPD – Centro de Processamento
de Dados – em uma importante firma da região, tendo, portanto, um alto salário; comprara carro e
casa, pagando ambos os financiamentos com alguma dificuldade; freqüentava um grupo de casais
amigos, um coral, um centro espírita (convertera-se na Bahia) e nada, nem uma palavra mesmo a
respeito de um novo amor. Nenhuma menção a Carlos, tampouco.
A campainha soara.
E lá estava Rosa agora, parada à soleira da porta de Fiona, naquela véspera de Natal,
imensa...inegavelmente grávida.
16
Rosa - por Sonia Rodrigues
SEGUNDA PARTE
TRECHOS DO DIÁRIO DE ROSA
17
Rosa - por Sonia Rodrigues
13 anos
março 17
Márcia deu um baile no salão do prédio. Aniversário de 13 anos. Os meninos ficaram todos
enfileirados de um lado e as meninas sentadas do outro. O pai da Márcia animou uma quadrilha e uma
dança da vassoura, aí todos dançaram. Depois só alguns meninos tiraram algumas meninas para
dançar. O menino que dançou comigo tinha um passo duro e falava pouco. Também falei pouco. Não
gostei. A gente não pode rir, contar piada e brincar como a gente faz no colégio.
Novembro 22
Márcia quer transformar o baile de sábado em um programa. Sei não. Os primos dela, um com
quatorze, outro com quinze, trazem os rapazes do Colégio Santista. E ela convida as garotas do
Colégio São José. Todo mundo fica cheio de dedos e quando dançam parecem ter quatro pés.
Conversa de menino é muito chata, futebol, carro, rock. Só algumas meninas que têm irmãos
conseguem rir e ficar à vontade. Este sábado a Márcia inventou uma tarde de jogos: memória, pingpong, brincadeiras de salão. Ficou um pouco mais gostoso, mas os rapazes nunca conversam realmente
com as moças. É só pose.
14 anos
fevereiro 23
Por que insisto em ir nos bailes da Márcia? Quase nunca danço. Nunca sei o que fazer com as
mãos. Fico muda e suo o tempo todo. Hoje havia um menino novo. Sofia disse que ele perguntou a ela
se eu tinha namorado. Ele atravessou o salão na minha direção, eu saí correndo, me enfiei no banheiro
e depois corri para casa.
Março 27
Aquele menino apareceu de novo no aniversário de Sofia. O nome dele é Márcio. Não comi
nada porque o garoto estava toda hora me olhando. E eu toda hora me escondia na cozinha, até que a
Sofia me arrastou para o banheiro, fechou a porta e perguntou qual era o problema. O que nós meninas
faríamos se não houvesse banheiros?
- Bem, e se ele me pedir em namoro? Eu digo que vou perguntar para a minha mãe? E sei lá se
a minha mãe vai deixar, não é?
Sofia brigou comigo:
- Se ele pedir você em namoro? Rosa, você não existe! Nós estamos no final do século vinte,
querida. Os garotos não pedem para namorar as meninas. Eles chegam, conversam, pegam na mão,
abraçam, você dá corda, aceita, incentiva ou não. Se ele pegar na sua mão e você tira e vai embora,
isto é dar um fora, um não. Se você deixa a mão, você aceita a paquera, é assim que funciona. E sua
mãe não tem nada a ver com isso.
- Como não? E se ela não deixar?
- Rosa, você não fala de sua mãe, você fica quieta. Você conta para a sua mãe depois, e se ela
não quiser, aí você decide se explica para o rapaz que a sua mãe é contra ou se explica para a sua mãe
que a vida é sua e seu namoro é problema seu.
- Então os meninos não pedem mais as meninas em namoro? E as meninas não pedem mais a
autorização dos pais? Bem, quando estas regras mudaram?
18
Rosa - por Sonia Rodrigues
- Alô, Rosa, bem-vinda ao mundo real.
Sofia não tem paciência de responder minhas perguntas. Não tenho coragem de falar com meus
pais. E quando o Márcio me tirou para dançar, eu falei que não, que meus pés doíam. Ele sentou e
ficou conversando e eu gostei de conversar com ele.
Março 30
Consegui conversar com meu pai. Ele disse que eu posso namorar quem eu quiser desde que
eu leve para casa e apresente.
Quando a Márcia soube o que eu fiz no aniversário da Sofia, riu e disse:
- Para que a Rosa ia querer um namorado, afinal? Ela não ia saber o que fazer com ele.
Todas as meninas riram, mas eu acho que não entendi o motivo do riso.
Abril 20
Márcio estava na praia. Jogamos frescobol. Depois nós entramos na água, todo mundo, três
rapazes e três garotas. Depois ele me pagou um sorvete, andamos pela beira da água, aí ele pegou na
minha mão e eu me senti muito, muito esquisita. Eu me senti tão mal que tirei a mão. Ele pegou na
minha mão de novo e disse que queria namorar comigo. Eu disse que não queria e saí correndo. Chorei
escondida no banho. Por que não sou como as outras garotas?
Abril 21
Tremenda dor de cabeça. Briguei com Sofia, com minha mãe, com minha irmã. Chorei a tarde
toda.
Maio 27
Festa no colégio. Sofia sugeriu que eu conversasse com alguns meninos para perder o medo.
Ela ensaiou umas conversas comigo aqui em casa, umas coisas bobas que os meninos gostam de falar:
nomes das bandas, nomes das músicas do momento, comentários sobre uns filmes badalados, umas
perguntinhas básicas e umas piadinhas para relaxar. Conversei com um garoto, primo de uma colega
da classe, ele falou sobre carros e esportes o tempo todo. Ele tentou me abraçar e eu me afastei mas
consegui não sair correndo.
Maio 28
Eu estava no banheiro do clube com a Sofia – até parece que metade da minha vida acontece
dentro dos banheiros – e como a parede é grudada com a do banheiro dos meninos, deu para ouvir a
conversa deles. Os meninos estavam zoando com o Filipe, aquele da festa do colégio:
- E aí, Filipe, ta a fim da ET?
- Eu, não, eu me amarro na Amelinha.
- A gente viu você conversando com a ET na festa. Como é mesmo o nome dela? Rosa? Uma
garota feia daquelas devia se chamar Canhão. E ela nem usa maquiagem para disfarçar.
Os meninos riram e Sofia olhou para mim muito sem graça.
- Eu não estou atrás de canhão, só fiz foi fazer ciúme para a Amelinha, mas se ela desse mole,
bem...
- Pois eu nem se desse mole. Êta menina feia!
Eu bem que podia ter ido dormir sem essa.
19
Rosa - por Sonia Rodrigues
15 anos
janeiro 12
Fico a me olhar no espelho. Sou alta demais, magra demais, ossuda, queixo pontudo, ossos do
rosto saltados, tenho olheiras e testa alta. Morro de vergonha de sair de casa. As pessoas me dão
apelidos, sei porque às vezes elas falam alto e ouço: a girafa, a vassoura, a ET.
Ninguém pensa nos sentimentos mais. Esta estória de beleza interior, é tudo papo furado. Mas
tem uma porção de gente feia casada no mundo. Pelo menos não sou gorda.
Janeiro 20
Tenho saído de óculos escuros para disfarçar as olheiras. De noite posso usar maquiagem mas
não resolve muito.
Janeiro 28
Todos os rapazes me acham feia e riem de mim. Sou sem graça. Não abro a boca perto deles.
Não sei conversar. Quer saber? Eles é que são uns bobos. Se eu encontrasse um menino que gostasse
de música clássica e lesse os livros que eu leio eu acho que seria diferente.
Março 18
Quem se importa com rapazes, afinal? Bobos que me chamam de traça de livros, CDF e nem
sei mais o quê. Estou farta! As meninas da escola dizem que eu devia estudar menos e namorar mais.
Deixa estar. Elas vão ver quem vai conseguir os melhores empregos, eu ou elas. Quem vai fazer a
melhor faculdade, passar de primeira no vestibular, isto é prioridade agora, mas elas não pensam
assim, as tontas. Sei que têm rolado uma porção de festinhas e eu não tenho sido convidada. Escuto os
bochichos. Sou a chata estraga-festas. Sofia está namorando e então eu fico curtindo a família nos fins
de semana. Nada contra. Adora a minha família. Até a Rosália está ficando legal. Só me chateio
porque parece que o mundo inteiro tem um namorado, menos eu.
Agosto – retorno de férias..
Rosália disse que o namorado que arranjei – vivas, vivas para mim, que desencalhei! – é tão ET
quanto eu.
Gostei muito dele, um rapaz realmente fino, sofisticado, inteligente. Mas foi um namoro de
férias, coisa de viagem de navio. Ele é estrangeiro, como eu poderia continuar a vê-lo? De minha
parte, eu gostaria de escrever cartas e mais cartas, mas ele não escreveu, não telefonou nem respondeu
ao postal que eu enviei quando cheguei em Santos. Se ele quiser, sabe onde estou. Sempre posso me
lembrar desta viagem e de meu primeiro beijo, e do segundo, e do terceiro, e de meu primeiro amor.
Tão bom... Bom demais!
17 anos
Janeiro 5
Meu primo Luiz convidou-me para ser madrinha de seu casamento. O padrinho é um charme.
Chama-se Paulo, eu o vi algumas vezes em casa de meus tios. Quem sabe eu desencalho? Eu estou-me
formando no colegial, ele na faculdade, são só cinco anos de diferença, e, pelo que sei, ele está avulso!
20
Rosa - por Sonia Rodrigues
Janeiro 30
Experimentei o vestido. De longas mangas esvoaçantes, verde, é lindo! Meus cabelos ficam
mais dourados e meus olhos ganham realce. Marquei maquiagem e cabelo em um salão chique. Será
uma festa linda, no Clube da Orla, o baile será no terraço com vista para o mar! Estou entusiasmada!
Fevereiro 20
Que dança, que nada! Um vexame só! Que droga de casamento!
Começou perfeito. Sorrisos, palavras gentis, gente bonita e perfumada, fotos para a posteridade
blábláblá. Saímos da igreja e fomos para o clube, onde foi o casamento civil.
O Paulo, a meu lado, elegantérrimo. Os padrinhos todos assinaram o livro depois dos noivos e
começou a festa.
Eu me viro para o Paulo e faço alguns dos comentários que ensaiei durante a semana em frente
ao espelho, para não engasgar nem parecer boba. Ele responde, retribui com algumas perguntas e
começamos a andar ao redor do salão. A conversa se anima, ou pelo menos eu me animei com o
sorriso dele e desandei a falar e a rir, achando que estava agradando e imaginando quando iríamos para
a pista de dança e ele então me interrompe e acaba com minhas fantasias:
- Olha, hoje é o casamento do meu melhor amigo e nossa turma de faculdade está toda aqui
reunida. Esta pode ser a última oportunidade em anos de estarmos todos juntos e eu vou ficar com
eles. Não repare, não, mas vou deixar você com sua família e vou curtir meus amigos. Com licença.
Assim falando, ele empurrou-me pelo cotovelo até a mesa de meus pais, deu um cumprimento
rápido, virou as costas e atravessou o salão em sentido contrário. Ele ficou o restante do tempo com
um grupo de rapazes e moças muito animados. Eu me senti tão humilhada! Meu rosto pegou fogo,
fiquei sem ar, parecia que todo mundo no salão tinha percebido que eu levara um fora sem
precedentes.
Mamãe admirou-se:
- Que aconteceu?
Quando eu contei, meu pai exclamou zangado:
- Que grosseirão!
Eu comecei a soluçar que era tudo culpa de minha feiúra, porque eu sou mesmo muito feia,
mas mamãe foi firme:
- Não o deixe perceber que você ficou magoada. Não dê este gostinho a ele. Circule pelo salão,
ria, brinque, divirta-se, pelo menos procure divertir-se, faça de conta que a festa está ótima.
Papai disse:
- Minha filha, você está linda. Você é alta, tem um porte elegante, uns olhos expressivos, é uma
mulher inteligente, educada e de muito bom coração. Não deixe um burro cego estragar sua festa.
Eu ri do ‘burro cego’ e comecei a pensar no Sérgio de quatro, com orelhas longas, a zurrar, e
me senti melhor.
Fiz como mamãe aconselhou. Dei a volta ao salão, parando em cada mesa para falar duas ou
três frases com as pessoas que eu conhecia. Em algumas mesas fui convidada a sentar e então
permaneci mais tempo, fiz questão de rir bastante, falei bobagens, fingi estar me divertindo, sempre
sem olhar na direção do Sérgio. Quando passei pela mesa de meu primo, cumprimentei os noivos, fiz
algumas perguntas básicas sobre o local da viagem de lua-de-mel e a nova residência, elogiei as
músicas e a decoração do salão antes de ir embora. Alguns dos amigos de meu primo me fizeram
perguntas, brincaram, foram gentis e eu me despedi antes que pudessem se cansar de mim.
Foi uma festa realmente longa, muito, muito longa. Chorei a noite toda e acordei com olhos de
sapo.
21
Rosa - por Sonia Rodrigues
abril 10
Minha prima vai-se casar e convidou-me para ser madrinha. O padrinho será um outro primo.
Meus primos e primas são bem mais velhos que eu. Cinco ou seis anos parece ser muita diferença
quando um tem cinco e outro onze anos. Agora não parece tanto, mas agora é tarde e Inês é morta.
Eles ficam me convidando para ser madrinha já que outros primos e primas estão sendo convidados
também, mas quando eu era pequena eles fugiam de mim. Meus pais entravam comigo pela frente e
eles fugiam pelos fundos para não terem de brincar comigo; trancavam os brinquedos para eu não
mexer e não estragar. Quando chovia e eles tinham de ficar em casa e os tios diziam: ‘brinquem com
sua prima’, eles torciam o nariz, reclamavam que não queriam brincar comigo porque eu era muito
boba e me chamavam de café-com-leite em todas as brincadeiras. Agora eles estão formados e
casando, querem fazer média, como se eu fosse uma prima normal. Como se eu pudesse esquecer
quanto eles me trataram mal! Mas o noivo da minha prima é muito simpático. Pena que ela o
encontrou primeiro que eu.
maio 25
O casamento foi ontem.
O padrinho de meu futuro primo é um amor de pessoa.
Quando entrei na igreja, toda linda, maquiada, de cabelos trançados no alto e o longo vestido
azul marinho com cauda curta, dei por ele e sorrimos. Quando subi ao altar ouvi quando ele perguntou
quem é esta moça simpática e fiquei corada e toda quente por dentro.
Durante a festa, fomos apresentados. O nome dele é Edgard.
Circulei pelo salão, mantendo os ombros eretos, a queixo erguido, olhando por cima dos
ombros como fazem as coelhinhas da Playboy e fui de grupo em grupo, cheio de classe, ficando um
pouco só em cada grupo para não chatear ninguém e não dar chance de ser expulsa de grupo nenhum.
Volta e meia eu encontrava o Edgard ou ele arrumava um jeito de penetrar no grupo em que eu estava.
Como se brincássemos de gato e rato.
Ao final da festa, só as pessoas mais chegadas permaneceram, e sentei-me ao lado das primas,
que hoje estavam civilizadas e gentis, Edgard sentou-se em frente a mim e a conversa rendeu. De
viagens a poesias, falamos de todos os assuntos que me agradam e antes de ir embora ele me disse:
- Gostei muito de conhecer você.
Parecia um cavalheiro à moda antiga. Fui dormir feliz e com a cabeça cheia de sonhos.
Mini-conto.
Do bolso do colete verde ele tirou um magnífico relógio de corrente de ouro. Até hoje não sei
se me apaixonei pela meiguice de seus olhos ou se pelo charme dos tempos antigos.
junho 26
Sou mesmo uma barata tonta.
Pergunto a minha tia pelo Edgard e ela me conta que ele tem namorada firme, que ela está
fazendo um curso de seis meses no exterior e por isso não pode vir ao casamento; que os dois estão
pensando em noivar e casar antes do fim do Natal e que ele irá morar no exterior com ela, estão os
dois a enviar currículos e a procurar emprego, estas coisas.
Penso e percebo que ele não me incentivou, não pediu telefone, nem me elogiou, foi
extremamente correto o tempo todo, eu é que me encantei com a gentileza dele e imaginei um montão
de coisas. Só por ter ouvido ele perguntar quem eu era e comentar que me achou simpática. Ele cruzou
22
Rosa - por Sonia Rodrigues
comigo pelo salão porque estava fazendo o mesmo que eu, circulando. Eu também trombei inúmeras
vezes com outras pessoas e nem por isso conclui que estas outras pessoas estavam me seguindo. Pelo
menos fui feliz um mês inteiro, imaginando a continuação de um romance que nunca existiu. Buá...
como eu sou patética!
Quero ser feliz! Quero namorar, casar, ter filhos. Não conseguirei jamais se não aprender os sinais que
os homens enviam quando:
A - Estão apaixonados pela gente.
B - Estão entediados com a gente.
C - Somos apenas mais outro ser humano vivendo no mesmo planeta, ou seja, indiferentes.
Faltam-se conhecimentos básicos para decodificar o comportamento social dos homens. Vivi isolada
entre mulheres por muitos anos, enfiada naquele colégio de freiras por fora da realidade e nem tive
irmãos mais velhos para conviver.
Sou como um analfabeto a quem dissessem: ‘responda a esta carta’. E eu nem mesmo sei o abecedário.
18 anos
janeiro 2
Entrei na faculdade. Vou para Ribeirão Preto. Morar no campus. Tudo novo. Vida nova.
Março 12
Justo quando penso que estou curada, começa tudo de novo! Palpitações, tremores, aquela sensação de
calor, o ar que falta... Pronto! Lá vem a recaída! E eu que me cuido tanto, bem que me protejo, evito as
situações de risco, os locais perigosos, os ares duvidosos. Sofre-se tanto!
A sujeição a esta situação é terrível, a ansiedade é contínua, a euforia tão desejada e a tanto custo
conseguida é tão fugaz... e o desejo louco por aquela sensação gostosa, indescritível, maravilhosa, é
imperioso , apaga da consciência tudo o que não lhe diga respeito, e a busca compulsiva
recomeça...quer mais...e mais....e mais.... Oh, que obsessão!
A abstinência provoca uma dor terrível, quer-se morrer, quer-se chorar, a vergonha nos domina se
pensarmos que os outros possam adivinhar nossa miserável dependência, nosso vício secreto, nosso
comportamento tão descontrolado e infantil.
A cura é um martírio. Cada pedacinho de nosso corpo arde, é como ser esfolado vivo. Resiste-se sabese lá como à tentação do suicídio. O lento e gradual retorno à realidade finalmente acontece. Só para,
em uma manhã distante, tropeçar-se em um sorriso e render-se sem luta ao inevitável doce tormento da
paixão.
DROGA!!!!
Março 15
O rapaz do sorriso chama-se Alexandre e está no último ano de Física. Quando falei para Catarina que
eu o achava bonito, ela perguntou ‘tá esperando o quê?’ e se enfiou comigo pela biblioteca adentro e
forçou um encontro.
Era final de tarde. Ela dirigiu-se direta a ele e falou:
- Você faz Física, não faz? Pois eu sou a Catarina e esta é a Rosa, nós estudamos Computação.
Ele sorriu e apresentou-se. Catarina continuou:
23
Rosa - por Sonia Rodrigues
‘Nós viemos devolver uns livros e vamos até a cantina tomar um café. E se você vier conosco
poderemos conversar.’
Incrível, mas funcionou. Alexandre abriu o mais lindo dos sorrisos e ficamos por horas papeando
sobre tudo, pedimos pizza, sorvete, a noite chegou e nós lá papeando... pena que ele está indo para São
Paulo na próxima semana, arranjou um estágio remunerado por lá e vai ser transferido. Ele disse que
se nos encontrarmos de novo antes dele partir, fará questão de conversar de novo conosco.
Foi uma conversa de amigos. Eu me senti gente. Dez! Acho que ele nem reparou que éramos
mulheres. É o primeiro rapaz que me atrai realmente em muitos anos, e ele está indo embora. E eu nem
sei se ele tem namorada.
Graças a Catarina, tive uma tarde feliz.
Quando chegará minha vez de ter um namorado de novo?
Quando eu era pequena achava que essa coisa de namorado era assim como uma instituição, porque
você é crescida, tem um namorado e pronto, eles estariam lá a disposição, automaticamente, sei lá.
Março 23
Conheci um rapaz superlegal, estuda na minha classe, chegou hoje, entrou na terceira lista. O apelido
dele é Birigui, ele nasceu lá, em Birigui. Eu nem conheço esta cidade.
Junho 29
Eu mereço! Não, eu não mereço!
Falta de conhecimentos básicos dá nisso.
Meses de longas conversas, telefonemas, presentes, bilhetinhos, passeios ... e eu achando que o
namoro está a caminho. Birigui presta atenção em mim, Birigui está cada vez mais amigo, Birigui não
está namorando, Birigui está aguardando um momento apropriado para se abrir comigo e o tempo
passando e nada mas eu achando que o romance está esquentando.
Ontem o Birigui se isola comigo no apartamento dele e me encara:
‘tenho que ter uma conversa séria com você, muito séria, querida, porque nós somos apenas amigos,
eu gosto muito de você, só que você não percebeu que eu ...não faça fantasias a meu respeito, porque
eu..você nem percebeu, então te conto, eu sou gay.’
Catarina caiu na gargalhada quando eu contei.
‘você não sabia?’
Ainda estou chorando. Sem chance.
Como sou ridícula. Patética. Completa alienígena da galáxia de Andrômeda. E.T.
20 anos
Agosto 3
Fim de semana.
Tranco-me no quarto e estudo sem parar. Se parar vou pensar nas festas e passeios que o pessoal do
campus faz e não me convida. To fora. Sou ET assumida. Um peixe fora d’água.
24
Rosa - por Sonia Rodrigues
UM PEIXE NO POMAR - (fábula)
Era uma vez, no tempo em que os animais falavam, um peixe.
Poluíram os mares. Asfixiado, vendo morrer os companheiros e não desejando ter a mesma
sorte que eles, nosso peixe refugiou - se em um pomar.
Ante a indiferença polida das laranjas, pos - se a descrever as maravilhas ocultas dos
oceanos: os deslumbrantes corais, as preciosas pérolas, a delicadeza das anêmonas, o suave bailar
das caravelas e a melodia encantadora das sereias.
- Nós não saímos do lugar. Não sei de nada dessas coisas - disse uma das frutas - Mas já ouvi
falar de rebanhos de gado, e quando te vi, pensei que fizesses parte de um.
- Que idéia ! O peixe é livre, o boi é castrado! - exclamou nosso herói.
- És um animalzinho bem estranho - comentou uma coruja, que a tudo observava calada - Pois
dize - me : de que te adianta ser um peixe, se as águas estão envenenadas ?
moral da história : Há situações na vida em que se está irremediavelmente condenado.
Setembro 30
Fim de semana. Mais um de uma longa série. Sozinha, assisto a filmes com legendas em inglês. Leio
dúzias de livros. Para quê?
Outubro 18
George! Enfim! Uma luz no fim do túnel. Ruivo, risonho, bom papo, o rapaz estuda Engenharia.
Enturmado, tem me visitado e me levado junto para os programas com a turma dele e umas meninas
da minha classe. Dez!
Outubro 29
Feliz! Feliz! Feliz!
Novembro 9
George tem se superado em simpatia, mas, ontem, eu o convidei para ir ao cinema e ele me respondeu
seco ‘só nos dois não tem graça’. Não entendi nada. Enganei-me de novo. Será outro gay?
Novembro 11
Catarina matou a charada. Ela disse que era por causa da Sheila. Que George está me usando para se
aproximar da Sheila. Acontece que a garota é casada. Fiquei esperta. Comecei a reparar que todas as
vezes que saímos no meio da turma está ou chega a Sheila e que eles saem sempre separados, mas
logo em seguida um do outro. Hoje fiz algo horrível. Eu segui os dois e eles estão se encontrando, sim.
Liguei para o George e o encostei à parede. Ele confessou, pediu o maior sigilo... que cara burro, eu
aqui sobrando e ele atrás de mulher casada.
Eu e meu eterno azar. Será azar mesmo?
25
Rosa - por Sonia Rodrigues
24 anos
Dezembro 2
Formatura chegando e eu sem par para dançar a valsa comigo, além de meu pai. Vou convidar o
Birigui. Amigo bom tá ali.
Março 25
Emprego bom. Salário bom. Comprei um carro. Financiei um apartamento. Meus esforços estão sendo
recompensados. Só falta o namorado. Parece que o ditado é verdadeiro ‘homem não gosta de mulher
inteligente.’
Abril 19
Se mais um homem casado me cantar vou dar um grito. Por que eles pensam que uma mulher sozinha
tem de estar querendo sair com eles? Um deles teve a coragem de me dizer que eu precisava fazer sexo
com alguém e ele servia perfeitamente para mim!
Maio 22
Por que tenho de ter este sonho doido de casar e ter filhos? Está virando obsessão. Não penso em outra
coisa. Nada mais tem importância nesta vida. Não consigo pensar em outra coisa. O tempo todo. E o
tempo passa devagar.
25 anos
Fevereiro 10
Minhas primeiras férias remuneradas. Chegamos a Salvador, fomos ao Avarandado e caiu uma
chuvarada grossa. O pessoal, decerto com medo de encolher, voltou ao hotel. Resolvi ficar. Não vim a
Salvador para isolar-me no hotel. A baianada está toda cantando e sambando e eu entrei em um trio
elétrico me sentindo a própria Gabriela Cravo e Canela. Um moreno simpático olhou, sorriu e me
seguiu por um longo trecho. Quando parei para comer um sanduíche ele puxou conversa e convidoume para assistir o desfile. Aceitei, mas passo antes pelo hotel para trocar as sandálias por outras mais
baixas, que estes saltos estão me matando. Quando entramos no elevador ele me beijou, então acho
que desta vez acertei. Faço figa e torço por mim. Valei-me, Iemanjá e Senhor do Bonfim!
26
Rosa - por Sonia Rodrigues
O ÚLTIMO DIA DO SÉCULO XX
Fiquei muitos anos sem ver Sofia. Minha amiga Sofia, que estava hoje conosco na casa de meus pais.
Um dia, dez anos e três filhos depois de nossa formatura no colegial, me aparece Rosália com minha
amiga a tiracolo.
Eu não poderia me esquecer daquela época. Eu acabara de me mudar para Taiaçu, e, porque ali o
aluguel era mais barato, eu morava em frente ao cemitério, na rua da prostituição. Minha filha caçula
acabara de nascer e Carlos sumira com minha poupança e meu carro, que estava ainda por ser pago.
Rosália tentava fazer graça e dizia que eu tinha uma filha em cada cidade onde passava e eu ria sem
vontade e retrucava que pelo menos elas eram todas de um mesmo pai.
Quando eu saía para trabalhar deixava as meninas em casa sozinhas, as mais velhas cuidando do bebê,
minha casa cheirava eternamente a mijo. Uma colega de trabalho convenceu com uma vizinha minha a
largar a roça para ser babá de minhas filhas, fazendo a moça olhar pela janela e espiar as três sozinhas
lá dentro. Foi assim que consegui a babá, que eu nem tinha ânimo para procurar. Eu mal penteava o
cabelo, não me pintava, minhas roupas estavam tão velhas quanto meu fusca – sim, eu tive um fusca,
aquele modelo clássico popular da Volkswagen. Nem sei como não perdi o emprego, acho que o
patrão ficou com pena, sei lá.
Quando contei para Sofia como engravidei da terceira filha, ela escreveu um conto, que me entregou;
fiquei tão zangada que briguei com ela, eu não tinha coragem de encarar a depressão em que me
afundara nem meu ridículo comportamento de mulher do tipo Amélia.
Colo este conto aqui, hoje, como um marco da virada de página que eu dou junto com o planeta, hoje.
Uma página que se fecha em minha vida, neste último dia do século.
Amanhã é já uma Nova Era.
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Rosa - por Sonia Rodrigues
A INCRÍVEL HISTÓRIA DE ABIGAIL
- Cada um tem exatamente aquilo que merece - quantas vezes eu não afirmei, maldosamente
até, referindo - me aos pesares alheios e às vezes acrescentando algum provérbio popular do tipo
“quem semeia vento colhe tempestades” ou “cada um faz a sua cama”.
Como eu era pedante, intolerante, sobretudo tola. Paguei por minha língua bem caro.
Em primeiro lugar, a gravidez. Jesus, como é que eu ia explicar aquilo em casa? E na igreja,
como é que eu ia contar ao pastor? Quero dizer, quando se tem 23 anos, um diploma universitário e
uma severa educação crente.
Eu e minha prima fôramos passear em Camboriú. Conhecemos uma turma divertida na praia ,
pela manhã, e ao final da tarde, sentamo - nos a tomar sorvete. Minha prima foi chamada ao telefone e
um dos rapazes convidou - me a caminhar junto ao mar. Que poderia haver de mais inocente que um
passeio à beira - mar, de dia, em público ? Esse rapaz tocava violão e sem dúvida percebera a emoção
que a música despertava em meu íntimo. Ele me disse que, no fim da praia, sobre os penhascos,
avistava - se uma magnífica paisagem ao por do sol. Fomos até lá, ele gentilmente elogiando minha
aparência e minhas opiniões e eu sorrindo embevecida por ouvir tantas coisas agradáveis.
Sobre as pedras, estávamos à vista de todos. Ele saltou para uma depressão entre as rochas, que
nos ocultava, e chamou - me para ver nem me lembro mais que coisa bonita. Quando me aproximei,
enlaçou - me por trás e beijou - me os ombros, a nuca... De tão surpresa, demorei um instante a reagir.
Instante fatal! Um langor, um frêmito de desejo percorreu - me, a mim, tão ignorante de meu próprio
corpo. Tentei correr, ele segurou - me firmemente e calou - me com um beijo. Debati - me, lutei, no
entanto lutava contra dois inimigos: ele e meu corpo. Implorei que era virgem, que me respeitasse, que
viria gente, que nos surpreenderiam. Debalde. Senti - me estuprada e, no entanto, de que maneira tão
suave e doce...
- Está vendo, minha flor? Não te quero mal, só quis fazer um bem e te dar alegria a nó dois,
minha bela flor de maracujá.
E assim falando , conduzia - me de volta ao hotel, como se conduz uma criança. Eu mal sabia
de mim, andava como que em um sonho. Na manhã seguinte, ele deixara o hotel, mas consegui o
endereço dele com a funcionária da recepção, a pretexto de enviar - lhe um postal.
Recife. Quão longe, Virgem Santíssima! E meu pessoal detesta nordestino, essa gente tão
diferente de nós, sulistas, que até parecem ser um outro povo.
A vergonha, a confusão, eu escondi. Mas e o filho, Deus meu? Quando percebi a gravidez,
sofri demais. Grávida de um desconhecido! De um estupro, pois não deixara de o ser.
Eu tinha de cumprir o meu dever.
Escrevi para ele, não obtive resposta. Corajosamente, tirei férias e parti à sua procura. Recebeu
- me sorrindo, porém insultou - me ao perguntar se eu garantia que o filho era dele, se eu não saíra
com outros homens. Tentou induzir - me a um aborto. Procurei os pais dele e contei minha história.
Afinal de contas, disseram eles, eu era uma paulista desavergonhada, que esta gente do sul não tem
moral nenhuma e suas mulheres comportam - se como homens. Envergonhada, chorei. Disse - lhes :
“Sou crente, vivo de acordo com a religião, não mereço isso”. A estas palavras, estudaram - me com
atenção e condoeram -se de minhas lágrimas.
Passarei por cima das cenas lastimáveis que assisti entre pais e filho, eu, na casa de um
desconhecido, forçando um casamento com um homem a quem só vira uma vez em circunstâncias tão
humilhantes, entregando - me a um futuro incerto para garantir um nome a uma criança, poupar meus
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Rosa - por Sonia Rodrigues
pais da vergonha, proteger - lhes a honra, coisas que para eles e para mim também tinha muito valor e
agora parecem - me somente um amontoado de tolices.
Abandonei o emprego, anunciei meu noivado, mudei de cidade, casei - me em dois meses.
Meus pais, que ignoravam minha gravidez, irritaram - se muito, não simpatizaram com Rui e não
compreendiam meu desatino. Minha pobre mãe deve ter compreendido a pressa ao fazer as contas
quando minha primeira filha nasceu, contudo não deve ter entendido quando eu engravidara.
Meus sogros obrigaram Rui a procurar emprego e estudar à noite. Ele não agüentou o ritmo do
trabalho, abandonou os estudos, começou a beber, ofendia - me com um vocabulário horrível, acusava
- me de haver - lhe estragado a vida, fazia cenas de ciúmes... Não demorou a perder o primeiro
emprego, depois outro e mais outro, não esquentava lugar. Eu sustentava a casa.
Eu sofria e chorava ao escrever a meus pais, mas eles retrucavam que eu escolhera minha sina
e não devia reclamar.
Surpreendi Rui em atitude íntima com a vizinha. Não disfarçou. Que homem pode. E deve. E
toda uma barbaridade de um palavrório machista.
Passou a não fazer mais segredos de suas aventuras, ao contrário, delas narrava - me os
detalhes mais eróticos. Se eu me recusava a ele, forçava - me a coisas das quais me envergonho. Era
preferível ceder e com terror eu percebia meu corpo responder a ele como a um virtuose que tocasse
seu violino arrancando dele refinadas e doces melodias.
Quando nasceu a criança, ele emocionou - se a tal ponto que alimentei esperanças de vê - lo
modificar - se. Ele desejava um filho homem, um macho. Nascera uma menina. Ele insistia: “Vamos
fazer outro já”.
Meu corpo mal se recuperara da primeira gravidez e já esperava o segundo filho, na ilusão de
que ele abandonasse as outras mulheres e resolvesse ser um bom pai de família.
Ele desempregou - se uma vez mais e viemos para o sul, morar perto dos meus, quem sabe se
freqüentando um ambiente religioso e longe das más influências...qual! Vi - me envolvida em outro
pesadelo familiar, quando ele tentou seduzir minha própria irmã. Meus pais não entenderam que eu o
apoiasse, porém eu estava grávida e era meu dever permanecer ao lado do pai de meus filhos e garantir
um lar para as crianças.
E então ele trouxe outra mulher para dentro de casa e quase enlouqueci, pois ele disse que
queria assim mesmo, as duas morando na mesma casa... e ela grávida também!
Foi a outra quem resolveu a questão, quis mudar de cidade e casar. Ele pediu o divórcio e
deixou - me.
Passaram - se três anos antes que ele finalmente aparecesse para visitar as filhas. Empurrou me para o quarto com aquela tão sem cerimônia desavergonhada de quem não pede, manda. Nem viu
as filhas, que estavam na escola, mas deixou - me grávida de novo.
Não pude explicar esta nova gravidez a ninguém. A coitadinha nem sobrenome de pai teve.
Passaram - se mais dois anos, eu sempre trabalhando, rezando e levando mi ha vida
honestamente, trabalho - casa - igreja, sem tempo para mim, sem tempo para diversões.
Ontem atendi ao telefone, era ele. Fui encontrá - lo qual um autômato, quando o vejo parece
que entro em transe hipnótico, não posso resistir - lhe. Ele trouxe a outra junto, diz que nos ama
igualmente. Nem perguntou pelas meninas. Tem com a outra um “macho”, com o nome e a cara do
pai. Tornou - me a convidar - me para ir morar com eles, tudo uma só família.
Levou - me a um quarto de hotel, quanto mais penso nisso, mais nauseada fico.
E se eu engravidei de novo?
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Rosa - por Sonia Rodrigues
O PRIMEIRO DIA DO SÉCULO XXI
Amanhece o novo milênio. A chuvinha enjoada, que cancelou o sol de domingo e impediu a
passagem do século à beira-mar, persiste, fria, fina e ventosa.
A ilha está mergulhada em cinzas. Do cinza chumbo da serra ao cinza pálido do leste, toda uma
gama de matizes sombrios.
Nem saio para comprar jornal. Coloco no prato um pedaço de panettone e algumas frutas.
Como e volto a enrolar os pés no cobertor, ao lado do cachorro que dorme enroscado em meu
travesseiro.
Curioso animal, o cachorro. Aos poucos assenhora-se da casa e torna-se silenciosamente
indispensável.
Continuo a observar meus pensamentos e percebo que não sei se me despeço da Era Cristã ou
do Século da Televisão. Dizem que na era que se inicia, a Era de Aquário, não haverá mestres. Os
mestres já disseram tudo o que havia para ser dito. A Era de Aquário, ao que parece, será a era em que
os mestres desaparecem e abandonam a humanidade à própria sorte.
E a chuva continua...
Nas últimas décadas, tornou-se costume em Santos romper o ano na praia, usando roupas
brancas. Na areia encontra-se todo tipo de gente: famílias, namorados, barracas de clubes e
associações fazendo churrasco ao som de um samba, a cerveja correndo solta... Os cultos afros fazem
roda em torno de seus babalorixás e pais-de-santo, aos sons de seus cantos e danças os fiéis oferecem
flores e velas a Iemanjá.
Antes da potente iluminação de holofotes, esta ida ao mar tinha sabor de estrelas e de mistério.
Agora é tudo ‘seguro’, ‘civilizado’ e nada romântico, mal e mal se enxerga a lua.
Eu costumava levar uma rosa branca e pular sete ondas agradecendo o momento mágico, de
pés descalços na água fria, acalentada pelo marulhar das vagas, estonteada pelo cheiro do mar.
O oceano já existia antes dos primeiros homens e tem assistido impassível à saga da família
Hominidae.
A chuva lava os erros e as mágoas. Assim, podemos ter a ilusão de que o milênio começa
limpo.
APÓS O ALMOÇO
A chuva dá uma trégua e saio para um passeio. Sigo pela lateral da igreja do Embaré até os
jardins da praia.
A igreja de Santo Antonio do Embaré é, na minha opinião, a mais bonita de Santos. Sua
arquitetura gótica destoa dos altos edifícios que a espremeram impiedosamente. Por fora parece estar
em ruínas, mas por dentro estão bem conservados os afrescos, os vitrais, os entalhes.
Em frente à igreja, separando a segunda pista da ‘avenida da praia’, a fonte com a estátua de
Santo Antonio, rodeada pelas dezenas de pombos que vivem nas torres da igreja.
Atravesso a avenida e sigo pelo calçadão da praia, por entre os magníficos jardins, onde a
moda atual é fazer caminhada.
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Rosa - por Sonia Rodrigues
Caminho sempre que há bom tempo, ou seja, quase que diariamente, e raramente encontro um
rosto conhecido, não porque os meus horários sejam irregulares, e sim porque, nesses tempos
apressados, todos tem horários irregulares.
É estranho perceber que não chamo mais a atenção dos homens. O espelho, no entanto, mostrame uma mulher elegante, de curvas suaves e rosto liso. Aos quarenta anos, é-me difícil aceitar que me
tornei uma dessas ‘madames com cachorro’, não pelo cachorro, que merece toda a atenção e carinho
deste mundo, é pelo ‘madame’, sinônimo de mulher chata, mulher sem homem, fora do mercado.
Quase ia escrevendo mercado matrimonial, porém casamento é hoje idéia risível e anacrônica. As
pessoas na sociedade de hoje são descartáveis.
Minha vida ameaça tornar-se um buraco negro e eu, uma pessoa amargurada, sem brilho nem
alegria. Se eu me contrair bastante e deixar-me morrer, talvez expluda como um Big-bang e inaugure
um novo período de brilho, agitação e poder.
Lembro-me de que, há dez anos atrás, eu caminhava pelo Canal 5, observando as luzes de
Natal.
Na minha infância usavam-se lâmpadas de todas as cores, mas, com o passar dos anos, a
preferência ficou com as luminárias brancas pequeninas, usadas em contornos de renas, trenós e
estrelas, tudo muito monótono, sem falar no aspecto bizarro dos coqueiros de Natal. Em minha
opinião, muitas cores trazem mais alegria e árvore de Natal tem de ser pinheirinho mesmo.
Eu caminhava em direção à praia, no ar abafado da noite, que o ruído das marolas refrescava
um pouco.
No meu caminhar era-me inútil olhar para o chão ou para o céu. Nem as pedras nem as estrelas
sabiam a resposta que eu insistentemente buscava: ‘como foi que consegui...nada?’ E a letra da música
do Chico Buarque a cantarolar de mansinho continuamente em meus ouvidos como um acalanto:
‘já conheço os passos desta estrada
sei que não vão dar em nada...’
Então decidi retirar-me da vida. Enterrar-me viva, já que não podia morrer. Deus recusava
levar-me e um suicídio seria punido com a reencarnação. Sempre há quem diga que não há outra vida,
que tudo se acaba com a morte, mas na dúvida, é melhor não arriscar.
Assim foi que deixei simbolicamente esta vida e exilei-me no oeste paulista, bem longe do mar,
por longos anos.
Ora, deixando de enrolação, o fato é: se Sofia confirmar as minhas suspeitas, sou capaz de
abandonar tudo amanhã mesmo e exilar-me de novo, bem mais longe, para nunca mais voltar.
SEGUNDO DIA DO NOVO MILÊNIO
Passei hoje por todas as emoções do arco-íris, logo eu que sou tão ruim de cores, sou branco
no preto.
Sofia levou todas as nossas crianças ao cinema e fiquei aqui, no apartamento dela, a reler o
conto que ela escreveu sobre mim.
Agora a raiva passou e pus-me a gargalhar sozinha, a rir-me desta patética Abigail, esta louca
com nome de ganso.
Sofia tem razão. Eu enlouqueci e não sabia.
Quando penso que poderia ter tido uma vida diferente sinto pena e raiva de mim mesma.
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Rosa - por Sonia Rodrigues
Ontem vi Carlos na TV, sambando e comemorando a chegada do Novo Milênio, em um
documentário da TV Globo. Meu pai engasgou e derramou café no tapete. Eu me fiz de sonsa quando
percebi o pânico em seu olhar.
Mentiras: há dois anos voltei a Santos, com a notícia da morte de Carlos, recebida através de
meu sogro, e o súbito desaparecimento da família dele, que se mudou sem deixar endereço para
contato. Eu fizera o mesmo quando minha primeira filha morreu.
Fatos: papai contratou um detetive que descobriu contrabando, estelionato e...bigamia. Não fui
a única tonta a sustentar o garotão. Papai negociou com ele: seu desaparecimento de minha vida pela
liberdade. O que mais me dói é a falta de amor deste homem pelas próprias filhas. Eu bem que poderia
ter escolhido um bom pai para elas! Sofia sabia de tudo e guardou segredo.
Esta madrugada eu e Sofia trocamos muitos e-mails. Hoje ela emprestou-me a tranqüilidade de
seu apartamento para que eu me recuperasse de tantas emoções.
Coisa estranha: eu e Sofia só conversamos sobre o externo – livros, filmes, fatos, idéias. O
interno a gente coloca no papel. Na adolescência tocávamos diariamente bilhetes vários e longas
cartas. Atualmente a conversa é por e-mails. A voz não consegue expressar o que o coração não
compreende. Coisa de intelectuais.
De repente, sinto-me no olho do furacão. Sinto-me livre, leve, flutuando... estou chorando e as
lágrimas são de alívio... algum enigma dentro de mim se resolveu. Alguma peça quebrada consertouse. Sinto-me inteira. Outra.
Papai está on-line e enviei uma mensagem para ele agora mesmo, para tranqüilizá-lo. Sei o que
ele teme, que eu desapareça com suas netas e vá atrás do ex. Escrevi: ‘obrigada. Você fez bem.’
Simples assim. Em seguida telefonei e perguntei se não podemos todos ir passar picaré na praia, como
nos meus tempos de menina. Ele respondeu que passaremos puçá, que picaré foi proibido. Havia riso
em sua voz. Ouvi meu riso responder ao dele.
Sei como será.
Entramos descalços no mar. As gotas de chuva escorrem pelo nosso corpo, colando as roupas à
pele, o mar acolhe-nos, morno e ondulante, e a note envolve-nos protetoramente. Os pés rangem na
areia, às vezes pisamos em pilhas de bolachas de praia.
As crianças vão separando em seus baldinhos siris, peixinhos, lulas, camarões. Esta noite, com
o puçá, provavelmente só pegaremos siris e amanhã faremos uma sirizada.
Às vezes as gaivotas aparecem, apesar de ser noite, e o flip-flop de suas asas é agradável de se
ouvir.
Tenho sido uma gaivota aventureira. Agora vou instalar meu ninho em uma rocha firme, como
naquele belíssimo poema de Cassiano Nunes: ‘pertenço à espécie dos pássaros, que se embriagam de
amplidões, sem que lhes amorteça o instinto do ninho’.
Estou zen. Sinto-me pássaro, ilha, poetisa. Inspirada, até alinhavei uns versos. Os primeiros
desta Nova Era.
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Rosa - por Sonia Rodrigues
Nasci na ilha,
Onde a vida é
restrita
sofrida
erodida
pelas marés
pelos ventos.
Quem nasce na ilha
É um pouco universal.
O mar tem ecos de eternidade,
A voz de antes da humanidade,
Mas a terra...
Ah, que estranho fascínio o da terra!
Eu, criatura da ilha,
Com uma alma insular,
Quero criar raízes.
Vivo em crises.
Impludo.
Expludo,
Quando escuto
E luto
Para decidir
Qual impulso seguir:
Quando sinto
O chamado secular do mar,
O chamado secular da terra,
Mãe-terra.
Sigo
Aflito.
Anfíbio
Ambíguo.
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Rosa - por Sonia Rodrigues
EPÍLOGO
Este livro chegou, sentou-me e escreveu-se. Eu, a autora, é quem sinto ter sido escrita pelo
livro.
Pensei primeiro em chamá-lo Fênix, por retratar a descoberta do feminino na grande virada
emocional que se processa no momento em que cada mulher se liberta do passado.
Tal título com certeza afastaria os que desconhecem mitologia, e algum livreiro desavisado
poderia escondê-lo entre os exemplares de História Antiga.
A história de Rosa é uma fusão de vivências de muitas mulheres que conheci e admirei. Não
me perguntem o que é que a autora quis dizer com isto. Eu apenas comuniquei a vocês a história que
me contaram estas personagens. Acreditem ou não, isto não faz diferença.
A vida não tem porquês. Tem comos.
Amei o processo!
FIM
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