OS CAMINHOS ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO EM CORDA
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OS CAMINHOS ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO EM CORDA
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 OS CAMINHOS ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO EM CORDA BAMBA, DE LYGIA BOJUNGA Elaine Bezerra (UFU)1 Miriane Pereira Dayrell Souto (IC-CNPQ/UFU)2 Patrícia Francielly A. Lara Silva (UFU)3 Samilla Akemi Nagasaki (IC-FAPEMIG/UFU)4 RESUMO: Este trabalho tem como objetivo traçar análises acerca do real e do imaginário infantil na obra Corda Bamba, de Lygia Bojunga. A menina Maria, principal personagem da narrativa, tem sua vida marcada por intensos sentimentos e muitos acontecimentos delicados. Por meio da imaginação, ela busca o entendimento do que se passa ao seu redor, tentando suprir ausências, compreender fatos e pessoas. A proposta primordial deste trabalho é analisar os caminhos escolhidos por Maria, que perpassam o real e o imaginário em meio a significativos símbolos e elementos que são essenciais na obra. Para analisar os símbolos foi utilizado como fonte bibliográfica o Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Além disso, foram considerados como fatores importantes a linguagem, o espaço em que a narrativa se desenvolve e a caracterização dos demais personagens. A obra foi vista com um olhar crítico, o que foi fundamental para saber mais sobre Maria e suas reações diante dos problemas que a vida lhe impôs e também entender de forma mais aprofundada o universo das relações humanas. Palavras-chave: Imaginário, Real, Ficção, Literatura Infanto-Juvenil. O livro Corda Bamba, de Lygia Bojunga, permite uma leitura crítica e interessante. A narrativa é contada em 3ª pessoa, com narrador onisciente, e é feita “in medias-res”, pois o narrador começa a contar a história no meio dos acontecimentos. Isso desperta a atenção do leitor e instiga sua curiosidade com relação ao que aconteceu anteriormente. A temática do livro aborda sentimentos difíceis de serem compreendidos pelas crianças, tais como: a morte, a ausência, a saudade, a insegurança e o medo. Além disso, a autora trata de um assunto atual e delicado, que é o problema das diferenças sociais. Há um espaço urbano, a cidade do Rio de Janeiro, um espaço onírico, os sonhos de Maria e o circo, lugar onde trabalhavam os pais da menina. A linguagem empregada na narrativa é bem próxima à realidade de crianças e jovens e, por isso, aproxima o leitor do narrador. A autora busca trabalhar a linguagem, carregando-a de imagens e símbolos, reproduzindo a oralidade do próprio público ao qual o livro é destinado, ou seja, as crianças e préadolescentes. O discurso que predomina é o estético. A criança é vista como um ser pensante, capaz de apreender significados importantes por meio da linguagem, dos símbolos e da própria forma como a narrativa foi construída. Além disso, ao final da narrativa, a criança sai da história modificada, pois toda a trajetória da personagem Maria leva ao leitor o mesmo amadurecimento alcançado por ela. Maria é uma criança dividida entre duas realidades muito diferentes: em uma delas ela é artista de circo, vive uma vida com regras, mas é feliz assim, junto aos pais e aos amigos; na outra, ela tem a presença marcante da avó materna, Dona Maria Cecília de Melo, que vive do luxo e na solidão. A narrativa conta ainda com os personagens secundários, como Barbuda e Foguinho, ambos trabalham no circo e são amigos de Maria; o menino Quico; o senhor Pedro; a professora Eunice e também os pais de Maria, Márcia e Marcelo. Graduada em Letras. Universidade Federal de Uberlândia – Instituto de Letras e linguística. E-mail: [email protected] Graduada em Letras. Bolsista CNPQ/UFU de Iniciação Científica. Universidade Federal de Uberlândia – Instituto de Letras e linguística. E-mail: [email protected] 3 Graduanda em Letras, 8º período - Universidade Federal de Uberlândia – Instituto de Letras e linguística. E-mail: [email protected] 4 Graduada em Letras. Bolsista FAPEMIG/UFU de Iniciação Científica. Universidade Federal de Uberlândia – Instituto de Letras e linguística. E-mail: [email protected] 1 2 Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 93-97, jul./dez. 2010 93 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 A menina Maria sofre com a perda dos pais e, para se proteger de tanta dor, ela “se fecha” em seu próprio mundo e tenta esquecer tudo o que aconteceu. Ela quer “apagar” da memória as imagens e sentimentos que a fazem infeliz e, para isso, ela começa a abrir portas, cada uma de uma cor específica, que trazem lá dentro, cada qual, um pouco de sua história. Dessa forma, Maria busca o entendimento dos acontecimentos que marcaram sua vida. Ela passa por um processo de amadurecimento, que tem como fio precursor o sofrimento, as perdas e a difícil convivência e adaptação à vida com a avó. O leitor é levado a conhecer e se identificar com o amadurecimento de Maria e com isso, pode sentir as angústias e incertezas da personagem. O livro Corda Bamba é uma narrativa que trilha por dois “caminhos”: o real e o imaginário. Ou seja, o exterior, em que a realidade é cruel para Maria, e o interior, em que a menina busca entender sua própria vida e os conflitos que tanto a fazem sofrer. A partir disso, inúmeras críticas podem ser levantadas e muitos fatores necessitam ser analisados dentro da narrativa. Um olhar crítico deve ser lançado para tentar compreender não só Maria, mas o universo das relações humanas. Partindo da relação de Maria com a avó, é possível entender como são diferentes os mundos de ambas as personagens e como é difícil para Maria se adaptar ao estilo de vida de sua avó materna. Dona Maria Cecília é uma mulher que sempre possuiu uma condição de vida abastada. Isso fez dela uma pessoa materialista, que pensa poder comprar tudo e todos com o seu dinheiro. Foi assim que ela agiu com Márcia, sua filha, ao tentar comprar Marcelo, impedindo o relacionamento amoroso dos dois. Mas, foi em vão. Também foi assim que Dona Maria Cecília agiu com relação aos seus três maridos, na base da troca: eles davam a ela carinho e atenção, em troca de uma vida financeira segura. Os casamentos não duravam muito tempo, porque Dona Maria Cecília se comportava de maneira muito controladora. Com o quarto esposo, no entanto, foi um pouco diferente. Pedro não aceitava seguir as regras de Dona Maria Cecília e, tampouco, se deixava subjugar por ela. Assim, além dos maridos e do genro, Dona Maria Cecília quis também “comprar” a neta, Maria. Deu a ela tudo o que uma garota poderia sonhar em ter, menos o essencial: compreensão. O ápice da manifestação do caráter materialista de Dona Maria Cecília foi na festa de aniversário de sete anos de Maria, quando a avó deu a ela de presente uma pobre senhora que contava histórias. Maria, ao perceber isso, fica completamente transtornada. Ela não aceita a forma com que a avó vive e trata as pessoas a sua volta. Outra relação interessante dentro da narrativa diz respeito à professora particular de Maria, Dona Eunice. É uma relação de hierarquia, em que a professora se mantém rígida com Maria, durante todo o tempo em que a aula transcorre, não se importando se a menina aprende devidamente o que ela ensina ou se ela está desconfortável com o cachorro que não sai de seus pés, enfim, não dá a atenção e incentivo devido para que Maria se sinta à vontade para aprender. Tal relação representa a autoridade que o universo adulto exerce sobre o universo infantil. Na história, há uma quantidade significativa de símbolos que são muito sugestivos e ajudam na construção e no valor da narrativa. A corda, a janela, as portas, pelas quais Maria busca rememorar o seu passado, todos formam um conjunto de símbolos que são primordiais para o entendimento e as percepções do leitor. A seguir, serão analisados separadamente cada símbolo. A corda é o símbolo inicial que conduz Maria até as portas que irão “desvendar” os mistérios que ela procura entender, sempre partindo de sonhos, sendo a corda a passagem do plano da realidade para o plano fantástico. A corda pode ser considerada como uma representação de ataduras, limitação ou liberdade infinita, dependendo do contexto no qual se encontra, representa o meio, bem como o desejo de subir. A corda também está ligada à ascensão, a uma espécie de vínculo; neste simbolismo há o desejo de virtudes secretas ou mágicas, que trazendo para este contexto, pode-se dizer que se tratam das inúmeras promessas e pedidos que são feitos, os quais ninguém tem acesso. Por isso, Maria inicia uma viagem para dentro de si mesma, pois, desse modo, ela poderia ser livre. Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 93-97, jul./dez. 2010 94 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 Maria vai em busca de sua identidade por meio da corda bamba, um elemento circense. A atividade artística é vista como uma forma do indivíduo liberar suas tensões, a fim de melhor integrar-se ao grupo social, livre dos conflitos existenciais. Outro símbolo importante é a janela. Tanto a corda quanto a janela são símbolos iniciais dos "caminhos" que Maria começa a traçar para descobrir as verdades de sua vida. São elementos precursores como se fosse um "motor" para a construção do espaço imaginário em que Maria busca desvendar os conflitos de sua interioridade, tendo como base também, a sua própria realidade. A janela pode ser considerada como símbolo de receptividade, além de representar sensibilidade às influências externas. É também uma representação da consciência. Maria, por meio da janela, tem acesso às portas. Ou seja, a janela representa o consciente, a própria realidade da menina, em que a mesma se baseia para alcançar o inconsciente e assim compreender as “lacunas” de sua memória. O que serve de ligação entre esses dois é a corda, como se fosse um elo. Assim, Maria começa uma jornada em que a “abertura de portas” representa a busca pelo inconsciente, pelas memórias perdidas ou pelos fatos que ela não queria se lembrar. As portas têm cores diferentes, sendo possível associar a cor com o que a porta esconde. A primeira porta que ela tenta abrir é a de cor vermelha, mas não consegue. Essa questão, acerca da respectiva porta, será tratada posteriormente. Quando não consegue abrir a porta vermelha, Maria segue para a segunda, a porta branca. Ao abrir a porta branca vê que nela está o quarto da avó, onde ela presencia a briga da mãe e da avó por causa de Marcelo, e a fuga de Márcia para viver com ele. Nessa porta, Dona Maria Cecília aparece mais jovem, há dez anos, tentando “comprar” Marcelo, para que ele deixasse Márcia. Fazendo uma relação com a cor branca da porta que Maria abre e a situação que ela encontra lá dentro, há toda uma significação, pois o branco pode simbolizar o absoluto. Ele significa tanto a ausência ou a soma das cores. É também a cor de passagem, no sentido de rituais de passagem de momentos transitórios como a morte e o renascimento. E o contexto que é representado pela porta branca marca o significado da cor, pois quando Márcia enfrenta a mãe autoritária e dominadora, indo embora com Marcelo, há uma transição de fase, na qual ela irá deixar a superproteção de Dona Maria Cecília e dar outro rumo para sua vida. Em outro momento, quando Maria adentra a porta de cor amarela, é como se ela abrisse a porta dos seus sentidos, todos eles de uma só vez. Ao sentir o vento tocar seu rosto, emaranhar seus cabelos, o cheiro do mar e os pés afundando na areia, Maria sente uma alegria desmedida, uma felicidade imensa que toma conta de todo o seu ser. Ela se sente viva e toma consciência disso de uma maneira muito bonita: vendo seu próprio nascimento. Seus pais estão ali, dentro de um barco enorme e dando a ela o presente mais valioso de todos: a vida. A cor amarela representa exatamente essa luz, ou seja, é o brilho da vida. E mais do que isso, o amarelo também traz consigo o significado da fertilidade e daquilo que tem muito valor, pois lembra o ouro. Assim, Maria é presenteada com a vida e, em troca, dá a seus pais um grande presente também, pois se torna o bem mais precioso dos dois. O barco, dentro deste contexto da narrativa, traz vários sentidos. Simboliza a travessia que traz Maria à vida, ou seja, a passagem de um mundo ao outro. Além disso, podemos dizer que o barco representa o berço do nascimento de Maria, o que deixa claro a simplicidade da família circense, pois o barco é feito de jornal. Outra relação que pode ser feita com o barco é com o útero materno, pois Maria foi concebida dentro do barco, e lá mesmo nasceu. Porém, ao passar pela porta cinza, Maria se vê frente a frente com uma angustiante situação. Ela está sozinha no camarim do circo e tem apenas quatro anos de idade. Os pais estão se apresentando na corda bamba e a avó chega até ela, com muitos sorrisos e promessas. Maria, com sua pureza de criança, não compreende as intenções da avó e vai com ela. A cor cinza, neste contexto, representa a tristeza de Maria por se separar de seus pais e da vida no circo, que ela tanto gostava. Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 93-97, jul./dez. 2010 95 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 Depois do “rapto”, Maria encontra a porta em que não há menção de cor. Nela, Maria se vê no seu aniversário de sete anos, junto com a sua avó e muitos presentes, bolo e doces. Maria está triste e ganha de sua avó uma velha que conta histórias. A velha morre de tanto comer. A ausência de cor é símbolo de um mundo onde todas as cores, em sua qualidade de propriedades de substâncias materiais, tenham se desvanecido, o que pode ser comparado com a perda de valores em que comprar uma pessoa seria impensável, sendo uma situação subumana. Assim, a ausência de cor produz na alma o mesmo efeito do silêncio absoluto. Um silêncio de indignação, ao pensar que o ser humano pode ser tão cruel, que o poder e o dinheiro podem comprar tudo, até mesmo uma pessoa. Depois, Maria abre a porta azul. Lá dentro chove muito. É o reencontro dela com os pais, depois de ter sido “raptada” pela avó. Ela vai embora com a mãe para o circo onde eles recomeçam uma nova vida. É nesta porta também que Maria aprende a se equilibrar na corda e se apresenta com os pais, numa linda noite de espetáculo. A cor azul pode simbolizar uma profundidade imensa, se opõe ao vazio da ausência de cor e significa a pureza e o infinito. Nesse sentido, o reencontro com os pais faz Maria viver uma alegria imensa depois de ter conhecido a cruel realidade ao viver com sua avó. Maria, ao passar por todas essas portas, apenas ouvia conversas quando se aproximava da porta vermelha. Depois de abrir todas as portas e completar dez anos, teve a certeza de que poderia abrir a porta vermelha. E assim aconteceu, consegue abri-la. Lá dentro, vê que seus pais se apresentariam na corda bamba, sem usar a rede de proteção, pois precisavam de muito dinheiro. É nesse momento, que os pais de Maria morrem, ao caírem da corda bamba. Ao adentrar a porta vermelha Maria se lembrou da mais angustiante das lembranças. O vermelho pode significar a maturidade, que antes a menina não tinha para compreender a gravidade dos fatos. O vermelho também pode simbolizar a morte, traz uma ambivalência de sentidos, como representação de momentos de transição. Depois de abrir todas as portas e enfrentar os fatos mais marcantes e difíceis de sua vida, Maria, agora mais segura, entendendo melhor sua própria história, descobre novas portas. Elas são coloridas e dentro há uma imensidão de nada, de espaços inteiros vazios onde ela passa muito tempo organizando coisas. Maria sonha. Ela preenche cada cantinho do quarto com expectativas de uma vida inteira, com sonhos e desejos do seu coração. Ela faz planos para o futuro e sabe que um dia poderá tomar conta de sua própria vida, fazer as suas escolhas sem depender da avó. Ela sonha em se casar e ter a sua casa, seus filhos, enfim, uma vida bem diferente da que sua avó vive. Dessa forma, Maria vive um momento de esperança e de otimismo no futuro, depois de tanto sofrimento. A história de Maria provoca no leitor reflexões que buscam compreender, além das relações humanas, a dificuldade da criança de entender o que parece ser normal ou corriqueiro. As transições, as diferentes pessoas, as perdas e o autoconhecimento são etapas de um grande aprendizado. Os elementos exteriores atuam fortemente no “desbravamento” de seu interior e, a partir de sonhos, sua memória é ativada e, assim, a menina passa por um processo de amadurecimento. Lygia Bojunga, com imensa criatividade e astúcia, cria uma história em que a interioridade da menina Maria é desvendada, a profundidade dos sentimentos e emoções dá ao leitor a sensação de participar dos caminhos percorridos por Maria. As metáforas e os símbolos permitem interpretações que buscam representar e ativar as mais belas ou complexas emoções humanas. O próprio leitor é levado a “caminhar na corda bamba”, usar sua intuição e conhecimento de mundo para buscar o que cada símbolo quer representar e assim compreender e participar da história de Maria. Corda Bamba é uma narrativa esteticamente elaborada, capaz de desencadear interpretações e percepções extremamente ricas acerca da interioridade da criança diante de sua própria vida e de suas vivências. Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 93-97, jul./dez. 2010 96 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 REFERÊNCIAS: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. BOJUNGA, Lygia. Corda bamba. 23. ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2008. Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 93-97, jul./dez. 2010 97