os berka - Data 3D

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os berka - Data 3D
EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
O DESAFIO DO PRÓXIMO MILÊNIO:
A GLOBALIZAÇÃO DO CRIME
de armas, o jogo ilegal, o roubo de cargas, os assaltos a bancos, a venda de
proteção a empresários, etc, nas mais diversas regiões do globo.
Com o dinheiro fácil do crime, após a necessária lavagem, importantes
capitais voltam a circular sob a capa de insuspeitos investimentos geridos
por impolutos testa de ferro. Parte desse capital irá financiar campanhas de
políticos apadrinhados pelo crime organizado, lubrificará os órgãos de segurança e policiais. Há países onde fica impossível discernir onde termina
a ação do Estado e onde começa a iniciativa do crime organizado. Alguns
países, principalmente na América Latina, já tiveram em seu governo partícipes e personalidades envolvidas no crime organizado.
Com o término da Guerra Fria, o arrefecimento dos desafios geopolíticos e a criação dos blocos econômicos, observamos o redesenhar do mapa
de riscos de nosso mundo. Ultrapassadas as lides ideológicas, os confrontos
inter-raciais, a minimização dos conflitos filosóficos e religiosos, depara-se a
humanidade com instigantes desafios que a remetem rumo ao desconhecido.
A realidade nos quatro quadrantes da Terra prenuncia um novo inimigo, um
novo combate: o crime.
Cada país, cada região, apresenta peculiaridades no que toca a modalidade e incidência de crime.
Não menos importantes, apesar da conotação distinta de componentes ideológicos, políticos ou religiosos, as organizações terroristas também
contribuem de maneira decisiva para a insegurança mundial. Atentados em
centros comerciais, metrôs, aeroportos, estações ferroviárias, escolas; sequestros e atentados a aeronaves e homens públicos, assaltos a bancos – constantes no cenário da sociedade civilizada. Movimentos ditos de libertação,
unidades suicidas e centros de treinamento para operações guerrilheiras frequentam com assiduidade as páginas dos periódicos do mundo inteiro.
Os crimes autóctones, isto é, típicos de determinada realidade geográfica, estão umbilicalmente ligados às razões étnicas, psicossociais, culturais
e econômicas. Assim, na Sicília, na Itália, os crimes d’onore consagraram
a lupara (espingarda de cano serrado) como instrumento para lavar com
sangue afrontas pessoais e familiares. O jogo do bicho, tipicamente brasileiro, apesar de parente das tómbolas espanholas e das quinielas uruguaias e
argentinas, encontra em nosso território uma expressão sociológica distinta
do jogo popular de nossos vizinhos. O nosso bicheiro, via de regra, assume o
mesmo papel assistencialista aos seus protegidos que a Cosa Nostra.
Além do crime comum e violento, outra modalidade vem preocupando os especialistas de segurança, pelo aumento de incidências e pela sofisticação dos meios: o white-collar crime (crime do colarinho branco).
Os Cartéis de Cáli e Medellín, na Colômbia, além de empresariar o cultivo, o processamento e a distribuição da cocaína em nível mundial, também
exercem significativo papel dentro da estrutura do poder político e econômico daquele país. Pequenos países do Caribe vocacionaram-se como paraísos
fiscais, e assim por diante...
Com o avanço tecnológico, crimes como fraude, estelionato, falsificação e desfalque têm propiciado aos criminosos resultados maiores que os
auferidos com os crimes violentos. A informática, a eletrônica e suas ferramentas são usadas à saciedade por modernos meliantes, que usufruem normalmente de um avanço tecnológico acelerado e pouco preocupado com a
componente segurança.
Porém, mais significativos que esses crimes, os crimes comuns: crimes
contra o patrimônio, homicídios, sequestros, tráfico de drogas, lenocínio, entre outros, são os que aumentam vertiginosamente as estatísticas de todos
países. Não cabem aqui digressões de cunho sociológico, mas a grosso modo
podemos apontar o alto nível de desemprego, a má distribuição de renda, a
falta de planejamento estratégico dos governos e o apelo do lucro fácil como
as causas mais correntes do aumento da criminalidade.
Uma modalidade foi incrementada do fim da Guerra Fria, a espionagem – agora, com matizes distintos e desprovidos de ideologias e nacionalismos. Espionagem industrial, comercial e financeira são novas realidades da
antiga profissão glamourizada nos romances de capa e espada. A competição
brutal entre as empresas, a globalização da economia, os avanços tecnológicos e os desafios da produtividade incrementaram em muito essa atividade
marginal, que tem o provimento de recursos humanos e tecnológicos oriundo das organizações e agências de inteligência de diversos países. Com o desmantelamento de certas estruturas, com o remodelamento de outras, com a
diminuição dos efetivos, sobrou mão de obra altamente qualificada, agora
disponível inclusive para práticas delitivas.
Verdadeiramente preocupante é a desenvoltura do crime organizado em todo o mundo. Inspirados nas organizações mafiosas ítalo-americanas, grupos criminosos de diversas regiões do mundo têm se esmerado
em empresariar o crime e operar os negócios ilegais do tráfico de drogas,
a indústria do sequestro, a prostituição, a lavagem de dinheiro, o comércio
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A REALIDADE BRASILEIRA Recentemente, o crime organizado, dando mostras de adequação aos
novos tempos, de contemporaneidade, ingressou em dois novos campos:
o crime cibernético e a manipulação e roubo de informações de bancos genéticos. Ambas as áreas, consideradas estratégicas para os países
em termos de operacionalidade da sociedade moderna (telecomunicações,
transporte, energia e afins) e pela importância relacionada ao futuro da humanidade, têm causado preocupação aos governos.
Má distribuição de renda, êxodo rural e a consequente favelização das
cidades, falta de educação e saúde, desemprego; falta de perspectivas de vida
para grande parte da população que vive abaixo da linha da pobreza, sistema penitenciário falido, polícia inoperante e muitas vezes corrupta; justiça
morosa e ineficiente, falta de combate efetivo ao tráfico de drogas – são os
componentes básicos para o aumento assustador do crime no Brasil.
Outro fenômeno observado neste mundo de rápidas mutações é que
parte significativa da economia informal dos países tem sido direta e indiretamente manipulada pelo crime organizado. Aqueles setores da economia
ignorados pelo Estado ou (pelo excesso de sua atividade intervencionista)
tangidos para a clandestinidade têm sido abraçados por aqueles que necessitam de justificativas para seus ativos.
Diariamente, acontecem em média oito a dez assaltos a bancos na cidade de São Paulo. No ano de l996, somente no estado de Santa Catarina,
um dois mais seguros do país, com melhor distribuição de renda e melhores
índices de qualidade de vida, foram cometidos cento e dezesseis assaltos a
bancos. A média de sequestros no Rio de Janeiro é de 5 a 8 pessoas por mês.
Brasília, a Capital Federal, considerada uma das mais seguras cidades brasileiras, apresenta média de l2 a 20 homicídios por semana.
Não é de hoje que a indústria do entretenimento é alvo de investidas do crime organizado. O boxe, o turfe e o show business já tiveram ídolos construídos pela ação do dinheiro de origem escusa. Filmes e músicas
foram alavancados pelo marketing mafioso, obscuras starlets e cantores
medíocres conheceram a ribalta pelas mãos do crime. Hoje, seguramente, a
indústria da pornografia constitui um dos mais promissores negócios do
crime organizado; vídeos, literatura e páginas na Internet exploram a pedofilia e constituem o mais novo ramo dos meliantes. Canais de televisão, produtoras de cinema e promotoras de shows integram os negócios de inúmeras
organizações criminosas.
Desaparecem em todo território nacional cargas, caminhões e motoristas –estatísticas que, apesar de contraditórias, indicam números elevados.
O Brasil, até pouco tempo consumidor e corredor de exportação da cocaína colombiana e boliviana, agora apresenta-se como processador da pasta
básica e grande produtor de maconha. Com grande número de menores de
idade nas ruas, é um dos maiores consumidores de cola de sapateiro e crack.
Heroína e ecstasy são as novidades avassaladoras.
A rede bancária, seguramente a mais automatizada da América Latina, paga um alto preço por implantar tecnologias de automação sem a devida
preocupação com a segurança dos sistemas. Hackers causam estragos nos
computadores de bancos e instituições públicas e privadas. O “dinheiro de
plástico”, criado para dar maior operacionalidade e segurança, é o novo alvo
de fraude e manipulação criminosa.
As quadrilhas do Comando Vermelho e outras têm sido abastecidas
com armamento de última geração por contrabandistas que operam a partir
do Paraguai e do portos de Santos (São Paulo) e de Paranaguá (no estado
do Paraná). Equipamentos de rastreamento de telefones celulares, escutas
telefônicas e microfones direcionais já são utilizados pela criminalidade.
O desaparecimento de crianças e idosos atinge proporções assustadoras e, em grande parte, pode ser atribuído a criminosos. A prostituição infantil, alavancada pelo turismo sexual internacional, constitui outra mazela
brasileira.
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ALDEIA GLOBAL E CRIME
Os crimes financeiros são constantes nos noticiários da imprensa braseira. A constatação do envolvimento de bicheiros com o tráfico de drogas e
a pistolagem desenha os contornos ainda incipientes do crime organizado
brasileiro. No bairro da Liberdade, em São Paulo, é notória a atuação da
Yakusa e da máfia coreana explorando trabalho escravo de imigrantes ilegais
na indústria da tecelagem.
O CRIME NÃO RESPEITA FRONTEIRAS. A utopia da aldeia
global, que até bem pouco tempo parecia distante, concretizou-se. As comunicações via satélite, os cabos submarinos de fibra ótica ligando continentes,
a junção da comunicação com a informática, a globalização da economia,
enfim, a troca acelerada de informações e experiências entre povos das mais
remotas regiões fez o nosso velho mundo tornar-se pequeno.
Na cidade de Foz do Iguaçu, fronteira do Paraguai com o estado do
Paraná, membros do Hezbollah e Hamas transitam livremente ostentando
em seus carros adesivos de movimentos pró-palestinos. Anos atrás, um dos
capos da máfia italiana, Tommaso Buscetta, foi capturado operando no Brasil. Os cartéis de Cáli e Medellín possuem prepostos e negócios neste país.
Apesar das fronteiras legais e naturais, apesar da existência de blocos
econômicos, apesar da existência da Babel de centenas de idiomas e milhares
de dialetos, apesar da diferença entre as etnias – o crime, tal qual a maldade
humana, desconhece fronteiras e não possui limites geográficos. A distinção
étnica ou linguística não constituem empecilhos para a disseminação do
moderno câncer que ataca a sociedade humana: o crime organizado.
Enfim, o Brasil está dentro dos parâmetros da modernidade, faz parte
da aldeia global.
As sociedades constituídas veem-se impotentes para o combate eficaz
dessa nova ameaça. Com limitações ao conceito do princípio da territorialidade do direito, com a preocupação do respeito à soberania dos Estados,
o combate torna-se inócuo e estéril. Enquanto a marginalidade cruza tranquilamente oceanos, fronteiras, comete seus delitos num país e homizia-se
em outro; enquanto vultosas somas são subtraídas na Europa e alvejadas
nas lavanderias do Caribe, reina a impunidade, cresce a ameaça. O dinheiro
conseguido com o tráfico de drogas nos Estados Unidos transforma-se na
indústria de plástico no Brasil. Os rublos conseguidos pela máfia russa com a
exploração da indústria do caviar transformam-se em escudos que irão comprar mansões mediterrâneas em Portugal, Espanha, ou na ilha de Chipre. A
máfia ítalo-americana investe em restaurantes em Moscou; a máfia russa, na
indústria peleteira argentina; os colombianos do Cartel, em restaurantes e
hotéis de luxo no Caribe, etc...
A tecnologia trouxe-nos o crime virtual, cujos autores podem estar
do outro lado do mundo e, no entanto, fazerem-se sentir bem próximos e
reais quanto aos malefícios que causam.
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CRIME X PAZ MUNDIAL
Seguramente, o que irá resultar positivamente é a firme disposição
dos países em cooperação mútua, consubstanciada em iniciativas concretas
de repasse de tecnologia e informações, treinamento e operacionalidade conjunta. Adequação das leis internacionais e de tratados de extradição, criação
de organismos internacionais de repressão e combate ao crime organizado
e, finalmente, tribunais internacionais – medidas que, mais cedo ou mais
tarde, terão que ser implantadas.
No antigo senado romano, na Roma da época dos césares, ecoava pelas
paredes a voz tonitruante de um senador que alertava: Delenda est Carthago
–Cartago deve ser destruída! À época, Cartago era somente um importante
entreposto comercial na costa africana. No entanto – anos depois, e sem que
tivessem dado ouvidos às admoestações do senador – Aníbal, o cartaginês,
cruzou os Alpes com seus elefantes e quase derrotou a orgulhosa Roma.
Há muito que o mundo, em todos os continentes, aspira à PAZ. Para
alcançá-la, a humanidade precisa vencer alguns desafios. E o nosso próximo
desafio será o combate mundial ao crime organizado.
O mundo deve entender que pregar o combate internacional ao crime
organizado não significa estimular a síndrome do terror. No entanto, devemos ter em mente que os apetites de lucro fácil dessas organizações criminosas não possuem limites. Sua ousadia, idem: tal qual câncer insidioso, penetra em todos os tecidos sociais ignorando classes, estamentos, instituições
e fronteiras, estendendo seus tentáculos como um polvo apocalíptico. Nada
e ninguém pode se considerar imune às suas investidas. Generais já participam do mercado negro de armas, políticos integram a arca dos criminosos
juntamente a dirigentes de órgãos de segurança; governos sofrem assédio
de seus prepostos, que buscam imunidade, trânsito livre, impedimentos às
deportações e extradições. Em vários países os cartéis de drogas aliaram-se a
organizações guerrilheiras buscando desestabilizar o poder constituído.
Vivemos num mundo enfermiço, onde o laissez-faire, laissez-passer
de governos permissivos foi substituído pelo acumpliciamento e pela criminalização das estruturas sociais e governamentais.
Hoje, essa assertiva é aceita nos quatro quadrantes da Terra, sendo
tema de alentadas obras de jornalismo investigativo e analistas político-sociais, como: Ilícitos, de Moisés Nain; Economia Bandida, de Loretta Napoleoni; A Verdade sobre o Grupo Bildberger, de Daniel Estulin; Honoráveis
Bandidos, de Palmério Dória, etc. Muitas dessas obras de denúncia social e
política foram levadas às telas, tanto no Brasil como no exterior.
Apesar das preocupações da ONU e dos governos de diversos países,
o crime, seja autóctone ou transnacional, vem crescendo constantemente,
catapultado que foi pela globalização das comunicações e do sistema financeiro, principalmente. As diversas faces da Economia Bandida têm nome,
mas não endereço fixo: Cosa Nostra, Camorra, União Corsa, N’Draguetta,
tríades chinesas e coreanas, Yakusa, máfias russas, ucranianas e chechenas,
etc...
Com o afrouxamento mundial das medidas de segurança, de instalações militares, centros de pesquisa, centros de energia nuclear, centros
informáticos, corremos o risco de vermos tornar-se realidade o que até o
presente considerávamos ficção: terroristas ou simples criminosos chantagearem governos com ameaças de artefatos atômicos, armas químicas,
vírus cibernéticos. Já existem zonas de risco mundialmente conhecidas como
não recomendáveis ao turismo ou ao comércio internacional. Em algumas, a
justificativa é a existência de organizações terroristas/guerrilheiras; noutras,
a atividade mafiosa cobrando proteção a empresários.
Após o desenvolvimento da Administração Participativa, dos métodos
Kaizen, Kanban e Just-in-time, nossos executivos, premidos pela necessidade de ganhos de produtividade, esgotaram sua capacidade de inovação e
soluções mágicas; então, por iniciativa própria ou contaminada pelo modus
faciendi dos países mais desenvolvidos, abeberaram-se nos mananciais da
competitividade exacerbada, metamorfoseada em competição – primeiro
antiética, depois criminosa.
Se os governos não tomarem resolutas medidas para conter, combater
e exterminar essas atividades criminosas em seus territórios, arriscarão sua
soberania, pois nenhum vizinho quer ter ao seu lado uma terra de ninguém.
O mesmo Conselho de Segurança da ONU que hoje se reúne para decidir intervenção internacional em determinado país para a preservação da democracia, para evitar genocídios, para preservar as fontes de energia, irá questionar a intervenção em países que não conseguem cuidar da própria casa.
No entanto, devido a esse problema ter conotação global, a solução impõe-se
globalmente. Somente através do esforço conjunto do concerto de nações é
que poderemos ter a solução desse desafio à humanidade.
Ao término da Guerra Fria, os efetivos e estruturas de inteligência
de todo o mundo sofreram de reducionismo. Desaparecida a motivação
ideológica, orçamentos foram enxugados, operações complexas de espionagem foram desmontadas. Grande número de profissionais altamente treinados viram-se, de uma hora para outra, desempregados e sem condições
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de serem absorvidos pelo mercado de trabalho, seja de seus países de origem, seja internacional.
Com a globalização, a oportunidade de emprestarem seus conhecimentos e experiência ao esforço operacional das empresas multinacionais
– Business Intelligence, a bola da vez. Americanos exportaram para países
sob sua órbita os conceitos e práticas da Inteligência Gerencial; os franceses,
da Inteligência Competitiva. Sob esses dois nomes pomposos, a competição
feroz, aética e criminosa. Sem rodeios: a espionagem industrial e de negócios.
Depois, a simbiose do mundo empresarial com o mundo político, a
meleca geral. Inicialmente, pontual; depois, a criminalização das instâncias
partidárias. Agora, o salve-se quem puder irrestrito, democrático, republicano. Nós nos tornamos uma terra de ninguém, dissoluta, amoral, cúmplice
e ao mesmo tempo vítima do individualismo feroz e do amarfanhamento da
alma nacional.
Esta história trata de uma sociedade em decomposição, da idolatria ao
dinheiro e ao poder. De gente sem Deus. Qualquer semelhança com personagens e acontecimentos não é fortuita, é o retrato de muitos de nós. Gostaria
de dar minha parcela de estímulo para uma reflexão coletiva e individual,
para uma correção de rumos, para a reconstrução da brasilidade.
J.C. Berka
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ÍNDICE
O SEQUESTRO DE DENNIS STEINNER......................................................................8
FRENTE A FRENTE COM OS SEQUESTRADORES?..............................................50
DENNIS STEINNER..........................................................................................................9
AMANTE E CONFIDENTE...........................................................................................51
CAROLINA HERRERA, A CACAU..............................................................................10
A VIAGEM DE CACAU..................................................................................................54
NEGOCIAÇÃO E PAGAMENTO DE RESGATE.......................................................12
O ANJINHO......................................................................................................................57
GOTTARDO BARCELOS...............................................................................................17
CONFRONTANDO CACAU.........................................................................................64
CAROLINA PARA OS ÍNTIMOS..................................................................................18
A VIDENTE E OS SEQUESTRADORES......................................................................70
CLAUDIO MOYANO .....................................................................................................19
SINUCA DE BICO...........................................................................................................73
EM BATALHA NÃO SE LIMPA FUZIL........................................................................20
MONITORAMENTO......................................................................................................75
EM CAMPO......................................................................................................................23
PAGANDO O SEGUNDO RESGATE...........................................................................77
PAULICEIA DESVAIRADA............................................................................................25
QUEM SEMEIA................................................................................................................79
BIANCA.............................................................................................................................26
JARBAS...............................................................................................................................82
ÂNGELA............................................................................................................................83
A MORTE DO ASPONE.................................................................................................29
CRISTINA..........................................................................................................................31
CONEXÃO RUSSA..........................................................................................................84
MARLENE.........................................................................................................................33
A DECISÃO DE CACAU................................................................................................85
JANTANDO COM MARLENE......................................................................................34
O QUE ACONTECEU COM DENNIS?.......................................................................88
SUMIÇO............................................................................................................................36
GASPADIN BARCELOS..................................................................................................89
ENQUANTO ISSO...........................................................................................................37
COMO TUDO COMEÇOU...........................................................................................92
A DESCOBERTA DE COCO..........................................................................................40
NÃO DESEJE O MAU DE SEU INIMIGO, PLANEJE-O!..........................................95
ENGODO..........................................................................................................................41
MOSCOU...........................................................................................................................96
ROSE...................................................................................................................................43
DIA DA CAÇA OU DO CAÇADOR?...........................................................................98
HELGA...............................................................................................................................46
REPOUSO OU PURGATÓRIO DO GUERREIRO...................................................101
CARLA...............................................................................................................................48
PUNTA DEL ESTE.........................................................................................................106
ÍNDICE
EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
O SEQUESTRO DE DENNIS STEINNER
O carona saltou e bateu no vidro do motorista com uma arma, ordenando
que desligasse o motor e lhe desse as chaves do veículo. Ato contínuo, dirigiu-se aos passageiros e ordenou a Dennis que descesse. Ignorou a presença
de Cristina, e sequer interessou-se pelos pertences de Dennis, sua pasta e
celular.
São Paulo, Avenida Paulista, esquina com a Frei Caneca. Número
2006, 35º andar. Sede da First Team, a maior empresa de assessoria de imprensa, comunicação e marketing político do país. Quinhentos funcionários,
entre publicitários, jornalistas, designers e especialistas em mídia eletrônica.
Filiais em Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, Buenos Aires, Caracas e Santiago do Chile. Sócios-proprietários: Dennis Steinner e Carolina Herrera.
Em meio a gritos irados, Dennis foi levado sob a mira da arma até a
moto, e colocado entre o piloto e o carona. Cinquenta metros adiante, a moto
dobrou à direita, desaparecendo no caos do trânsito de São Paulo.
Dennis fora sequestrado!
Sexta-feira, 25 de novembro de 2005, 20h30. Dennis manda o office
boy comprar lanche para os que ainda estavam trabalhando: Bianca, sua
secretária, Marlene, gerente administrativa, Helga, encarregada de relacionamento com estruturas partidárias e políticas, e Cristina, encarregada da
conta ESE – Empresa Espanhola de Petróleo. Marlene e Tuiuiú, o office boy,
estavam terminando a mudança do arquivo morto do 35º andar para o 17º.
Os demais, Dennis inclusive, estavam pondo a pauta em dia, já que ele voltara naquele dia de uma viagem de uma semana aos Estados Unidos. Para
Dennis, sanduíche natural e suco de acerola; para os outros, hambúrgueres
e Coca-Cola.
Às 21h30, Dennis tinha um compromisso: jantar com um pré-candidato à Presidência da República. Como este tinha fama de namorador,
Dennis providenciou a companhia de Cristina, jovem e ambiciosa jornalista
recém-vinda da Itália, onde morara com o marido e o filho nos últimos três
anos. Anteriormente, havia trabalhado por dois anos com Cacau. Cristina
já estava acostumada aos pedidos do patrão, no sentido de ser “simpática”
com determinados clientes. Porém, Dennis nunca lhe pedira que fosse para
a cama com alguém, a opção era sua.
Após lancharem, desceram Dennis, Bianca e Cristina, permanecendo
na empresa somente Marlene e Tuiuiú. Em vez de solicitarem o carro de aluguel que possuíam sob contrato, estavam com pressa e resolveram caminhar
até a próxima esquina para apanharem um táxi num ponto que frequentemente atendia a empresa. Dennis e Cristina tomaram o táxi, que imediatamente rumou para o endereço no Morumbi. Bianca tomou outro rumo, para
apanhar o metrô.
O táxi já estava circulando há uns 10 minutos quando o motorista
disse que iria tomar um atalho, pois àquela hora, numa sexta-feira, o trânsito estava impossível. Mal tinham acessado uma rua repleta de guaritas de
segurança privada, bastante sombreada pela ramada de inúmeros plátanos,
quando o carro foi interceptado por uma moto ocupada por dois indivíduos.
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DENNIS STEINNER
Acreditando-se um modelo de elegância masculina, sem pejo chamava
a atenção de seus interlocutores para o que vestia ou estava usando. E muitas
vezes superando-se no ridículo, chamava a atenção de suas funcionárias, enfatizando a falta de combinação de cores ou por estarem vestindo produtos
populares e sem grife.
Dennis nascera em 1950, na cidade de Curitiba, Paraná, filho único de
um contabilista e uma professora. Loiro, olhos cinzentos, um metro e noventa, boa- -pinta, desde cedo foi um namorador incorrigível. Avesso à prática
de esportes, já na adolescência começara a fumar e beber; primeiro socialmente, depois compulsivamente.
Interessante que, apesar de possuir barco na marina de Angra dos
Reis, casa de praia em Paraty, fazendas no sul da Bahia e em Goiás, sítio
nas proximidades da Grande São Paulo, fazenda em São José do Rio Preto,
não dava importância aos veículos. Quem os comprava era Cacau, e ele raramente dirigia. Preferia o uso de táxi ou veículos alugados com motorista.
Simpático e carismático, na faculdade de jornalismo liderou o centro
acadêmico, e posteriormente elegeu-se para a direção da UNE – União Nacional dos Estudantes. Nessa época, iniciou-se nas drogas: primeiro bolinhas
e maconha, depois, já formado, no Rio de Janeiro, cocaína, LSD, etc...
Apesar de ser visto pelo mercado como profissional competente e brilhante, muitos de seus clientes o tinham como um dândi afetado, e não faltava quem achasse que ele era gay.
Dono de um excelente texto, logo foi convidado para ser editor de uma
famosa revista de atualidades. Em seguida, surgiu a oportunidade de ser correspondente de uma agência de notícias em Londres. Permaneceu cinco anos
na Inglaterra, onde graduou-se em marketing político. Voltando ao Brasil,
assumiu a direção comercial da Playboy e começou a lecionar jornalismo
investigativo na Universidade do Rio de Janeiro. Ali conheceu Carolina Herrera, a Cacau, que de aluna foi promovida à condição de namorada. Depois,
esposa e sócia.
Apesar de todas suas frescuras, era um grande comilão: comia grande
parte de suas funcionárias, e ainda fazia hora extra fora dos escritórios.
Apesar de demonstrar carinho e admiração por Cacau, com quem teve quatro filhos, não se furtava às suas aventuras amorosas, tampouco era discreto.
Cacau não passava recibo, no entanto confidenciava sua contrariedade à sua
amiga e funcionária Marlene, que trabalhava com o casal desde o início da
empresa.
Depois de anos de vida desregrada, movida a muito álcool e drogas,
Dennis começou a sentir os sintomas da falta de cuidados com a saúde e
começou a maneirar seu hábitos. Diminuiu o cigarro e a bebida, e raramente
fazia uso de drogas. Começou sua fase de dependência de barbitúricos e ansiolíticos. Apesar de modificar sua dieta e beber raramente, somente conseguia dormir por volta das 4h da madrugada, à base de comprimidos e depois
de assistir a três ou quatro filmes. Seu gênero preferido era policial, ou fitas
hot e pornôs. Geralmente sexo bizarro ou grupal.
Se na juventude seu comportamento já indicava um déficit de inteligência emocional, com o passar dos anos, com o sucesso na carreira e
o envolvimento constante com um mundo acelerado, glamouroso, cheio de
oportunidades para os mais afoitos e espertos, Dennis piorou sensivelmente
sob o ponto de vista psicológico. O jovem simpático e carismático metamorfoseou-se num arrogante, insensível e boçal. Altamente competitivo e competente, era um verdadeiro trator: passava por cima de tudo e de todos. Usava seu charme e poder de manipulação para obtenção de seus objetivos.
Respeito humano, ética e moral não faziam seu caráter. Epicurista, vivia em
função de seus prazeres e do dinheiro. Ostentava compulsivamente, chegando às raias do ridículo.
Era carinhoso com os filhos, e atencioso com as amantes. Sua relação
com Cacau era intrigante: apesar de aparentemente amá-la como no início
de seu relacionamento e demonstrar afeto e amizade, era extremamente
competitivo na condução da empresa, disputando o mando e as atenções.
Raramente chegava aos escritórios antes das 14h, saindo por volta das 20h.
Quase sempre fazia as refeições na empresa, dispondo para isso de uma cozinha completa e de uma copeira em tempo integral.
Roupas de grifes caras, duplicadas, abarrotavam seus guarda-roupas.
Quinze ternos Armani, quarenta pares de sapatos italianos e de cromo
alemão. Colecionava relógios, e o mais barato custara-lhe duzentos mil reais.
Centenas de gravatas de seda italiana. Tinha fixação por camisas polo pretas,
possuía dezenas, muitas ainda na embalagem. Era obcecado por perfumes,
tinha uma quantidade enorme deles, caríssimos. Loções, cremes, e produtos
de toucador, possuía em abundância.
Costumava, ao término do expediente, caminhar as seis quadras que
o separavam de seu apartamento em São Paulo. Duas vezes por semana, frequentava uma academia perto de sua casa. Morava num confortável aparta-
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mento de cobertura, somente com a empregada doméstica – a família residia
no Rio. De quinze em quinze dias, passava o final de semana com os filhos.
Cacau dividia-se entre as duas cidades, porém raramente dormia no apartamento de São Paulo.
Apesar de tudo, Dennis não era muito diferente da fauna e flora que
pulula nas urbes brasileiras e integra o mundo dos negócios e a high society.
Aparentemente tranquilo e transparente; no entanto, havia outro Dennis
Steinner. Outro, com muitos segredos e mistérios. Talvez esse outro tenha
gerado ventos que colheriam tempestades...
CAROLINA HERRERA, A CACAU
Carolina era quinze anos mais nova que Dennis. Nasceu no Rio de Janeiro, filha de pais uruguaios. Seu pai, um coronel uruguaio que fora adido
militar no Brasil, encantou-se com a Cidade Maravilhosa e trouxe sua mulher, historiadora, para o Rio. Sua esposa já viera grávida, nascendo sua filha
mais velha, Graziela, dois meses após chegarem à sua nova pátria. Cacau
nasceu dois anos depois.
Inicialmente, moraram no bairro do Botafogo, e quando as filhas ingressaram na universidade, mudaram para a Urca. Tranquilas e estudiosas
ambas, somente deram alegrias aos seus pais, na infância, adolescência e
juventude. Graziela graduou-se em odontologia e logo casou com um militar
lotado no antigo SNI. Cacau desde nova manifestou interesse pelo jornalismo e sonhava ser correspondente no exterior. Logo na adolescência, iniciou
o estudo do inglês e do francês. Como falavam quase sempre em espanhol
em casa, atingiu a idade adulta dominando com fluência quatro idiomas.
Na juventude, Cacau teve algumas paqueras, porém seu interesse
maior era sua formação profissional; nisto teve grande influência de sua
mãe, mulher culta e politizada. No terceiro ano do curso de jornalismo, Cacau foi aluna de Dennis. Apesar de atraída por seu professor, Cacau procurou
manter distância, já que a fama de Dennis o precedia. E ela, criada num lar
sólido, queria repetir o êxito conjugal dos pais. Assim que evitou durante
dois anos seguidos o assédio de Dennis.
Já formada, Cacau começou a estagiar na Rede Globo. Quatro anos
mais tarde, já era a diretora de comunicação da emissora. Era vista como
uma profissional dedicada e competente. Estimada pelos subordinados, gozava de intimidade com a família Marinho, dona da Globo, principalmente
com o chefe do clã, o poderoso Roberto Marinho.
Cacau tornara-se uma mulher bonita e atraente. Cabelos negros, olhos castanho-escuros, pele clara, corpo sinuoso e, usando uma expressão
uruguaia, muito utilizada por sua mãe, para defini-la: dueña de una mirada
pícara (dona de um olhar malicioso, brejeiro). No ambiente agitado de uma
rede de televisão, não passaria incólume ao assédio masculino. Engrenou alguns relacionamentos, porém efêmeros. Ao que tudo indicava, a moça estava
comprometida com sua carreira.
Certo dia, a pedido de Roberto Marinho, compareceu a um evento promovido pela Associação Brasileira das empresas de Publicidade e Marketing.
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Era a entrega do Prêmio Publicitário do Ano na América Latina, e a empresa
premiada foi a J.W. Thompson. O profissional, Dennis Steinner.
Fim do evento, Dennis grudou em Cacau e a convidou para um “chope
amistoso”. Para sua surpresa o convite foi aceito e, ao findar da noite, embalados pela música de um piano e tendo por fundo a paisagem dos contrafortes
das montanhas sobre o mar, estavam de mãos dadas, olho no olho e com a
convicção de que ali iniciara-se uma nova fase na vida de ambos.
Dona Lia, mãe de Cacau, não gostou nem um pouco da novidade. Não
pela diferença de idade, pois no Uruguai é normal o homem ser mais velho
que a mulher, mas pela pinta e fama de Dennis. Sexto sentido de mãe, raramente levado em conta pelos filhos.
Estavam namorando há seis meses quando Dennis fez uma dupla
proposta a Cacau: casarem-se e montarem sua própria empresa. Seus argumentos: ambos estavam profissionalmente bem situados, porém com limitações de crescimento profissional – por melhor que fossem, seriam empregados. A ambição de ambos fê-los ousar a abandonar seus ótimos empregos
e a começar vida nova. Casaram-se e montaram sua empresa, inicialmente
em São Paulo.
Aparentemente, foi o casamento perfeito: em casa ou no trabalho,
eram uma dupla afinada. Cacau revelou-se excelente administradora, e Dennis finalmente podia exercer plenamente sua criatividade e desenvolver o
que sempre quis: o seu negócio.
Descolados, competentes e ambiciosos, formavam um par que ganhou de amigos e conhecidos a alcunha de “casal vinte”. Além dos negócios
da empresa, ambos davam palestras, frequentavam as colunas sociais e logo
destacaram-se no mercado. Passaram a ter grandes clientes e importantes
contas publicitárias.
Abriram a filial do Rio de Janeiro, e logo a de Brasília. Depois, as outras. Porém, nessa vida nem tudo são flores...
À medida que os negócios foram crescendo, e suas equipes se profissionalizando cada vez mais, o enriquecimento veio como consequência,
e ambos foram sofrendo um processo constante e visível de mutação. Se
profissionalmente tornaram-se uma dupla de negócios imbatível, tocando de
ouvido, no campo pessoal e conjugal as coisas começaram a deteriorar rapidamente. E, o que foi pior, nenhum dos dois se importou: afinal, os negócios
iam excelentemente, seu patrimônio aumentava, propiciavam uma boa vida
aos filhos, seus egos eram diariamente gratificados com os êxitos empresar-
iais, e Dennis podia assediar as garotas que desejava em sua empresa – e
olha que não eram poucas, nem insignificantes. Tanto Dennis quanto Cacau
primavam pelo recrutamento exigente: não bastavam qualificações profissionais excelentes, era imprescindível também uma excelente apresentação.
Mulher feia não entrava para a First Team.
Cacau fazia vista grossa às peraltices do marido e, além de tudo, resignava-se a carregar o piano: administrava, atendia aos clientes preferenciais,
era a primeira a chegar aos escritórios e a última a sair. Viajava incessantemente, era a grife da empresa. Tornou-se frequente o pedido dos clientes
para serem atendidos por Cacau, sob alegação de que o outrora “gênio do
marketing e publicidade” agora vivia somente administrando sua vaidade e
seu harém.
A ambição de Cacau não tinha limites. O dinheiro entrara-lhe nas veias. Enquanto ela tornou-se uma workaholic, Dennis tornava-se cada vez
mais apático e ausente. Falava com frequência em vender a empresa e curtir
a vida. Evitava o contato com clientes, dava expedientes cada vez mais curtos
e voltou a consumir drogas.
A First Team tinha uma importante carteira de clientes. Petrobras,
Vale do Rio Doce, Bradesco, Banco do Brasil, Ambev, Embraer, GOL, TAM,
Caixa Econômica Federal, Sousa Cruz, etc. No total eram mais de 200 empresas nacionais e umas trinta multinacionais.
Fazendo um esforço para motivar Dennis, Cacau criou a área de marketing político, tema que parecia sob medida para seu marido, levando em
conta seu relacionamento e o desafio da importante área. Recentemente,
essa ferramenta foi incorporada no Brasil ao processo político-eleitoral. Alguns nomes pontificavam; no entanto, para surpresa de todos, Dennis em
pouco tempo tornou-se referencial da atividade, revigorado pelo desafio. Um
ano após, lançou um livro sobre o tema, e seu portfólio de clientes só fazia
aumentar.
Elegeu alguns governadores, vários prefeitos, e era cobiçado pelos pretendentes à Presidência da República. Tornou-se o guru da classe política.
Como consequência, o casal, chegado a uma badalação, tornou-se habitué
dos palácios e dos eventos políticos. É óbvio que os negócios da First Team
cresceram ainda mais. E isso não passou desapercebido no exterior: a maior
empresa de comunicação mundial, a australiana Intelligence Profit, fez uma
oferta de compra de parte acionária da empresa brasileira.
Cacau viajou à Austrália para as negociações certa de que, com a parceria, ganharia escala em negócios internacionais. Novamente, Dennis a sur-
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preendeu: sugeriu a venda total da empresa. Emburrado diante da negativa
de Cacau, tão logo sua esposa embarcara para a Austrália, Dennis viajou de
inopino para uma estada de dez dias nos Estados Unidos. Dois dias após seu
retorno, foi sequestrado.
NEGOCIAÇÃO E PAGAMENTO DE RESGATE
Eram 21h15. Cacau tinha recém chegado em casa, pois toda sexta-feira
costumava reunir suas principais assistentes no Rio para fazerem um balanço dos resultados da semana. Os filhos estavam na casa de praia com a
avó e suas empregadas, além do motorista, para passarem o fim de semana.
Sábado cedo, iria encontrar-se com eles.
Já estava desnuda e encaminhava-se para a banheira de hidromassagem quando seu celular soou: era Dennis.
“Cacau, Cacau! ...Levaram o Dennis!”, o número do celular era o de
Dennis, mas a voz, chorosa e gritada, era a de Cristina.
“Como? Levaram o Dennis?!”, grita de volta Cacau.
“Sequestraram o Dennis, Cacau!”
vosa.
“Fala calma, me explica o que aconteceu!”, grita Cacau, também ner-
“Estávamos indo para o jantar, e o nosso táxi foi cercado por uns caras
armados, que levaram o Dennis numa moto!”
“Numa moto?! O Dennis?!”
“Eram dois caras. Colocaram o Dennis entre eles e levaram a chave do
táxi. Eu estou aqui com o taxista. Já liguei para o Paulo, marido da Mirta, ele
trabalha no DEIC. Ele já está vindo para cá e disse que vai me acompanhar
até uma delegacia que tem aqui perto, para registrarmos a ocorrência.”
“Quanto tempo faz isso?”
“Uns dez minutos.”
“Desliga, que eu vou ligar para o Secretário de Segurança Pública, que
é nosso amigo, para pedir ajuda e orientação.”
Cacau estava sozinha em casa. Vestiu-se e desceu para seu escritório
no andar térreo, de onde iniciou as ligações. Primeiro, para o Secretário de
Segurança, que lhe deu as primeiras orientações e colocou-se à disposição
para contatar o Secretário de Segurança de São Paulo; depois, para a mãe, e
finalmente para Marlene, a quem pediu que se dirigisse ao apartamento de
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Dennis, avisasse a empregada que ela estaria indo no próximo voo.
Todos os três narram que Cacau teve muita fibra num momento como
aquele, que soube manter a calma... Ao telefone, falou com bastante frieza e
determinação. Com Cristina, somente voltou a falar no dia seguinte (sábado), às 16h, no apartamento de Dennis.
Eram 23h50 aproximadamente quando o telefone soou, desta vez o
fixo: era Dennis, que com a voz visivelmente alterada lhe suplicou:
“CACAU, FAZ O QUE TE MANDAREM! NÃO AVISA A POLÍCIA!
VÃO VOLTAR A TE LIGAR LOGO...” – e a ligação caiu.
De acordo com Cacau, a partir desse momento é que lhe caiu a ficha:
seu marido fora sequestrado. Apesar de tensa, não se permitiu nem choro,
nem desespero. Dennis precisava dela. Arrumou uma pequena maleta para
viajar, e por telefone providenciou a passagem.
Sábado, às 7h30 da manhã, já estava no apartamento de São Paulo.
Assim que chegou, Cacau recebeu Paulo, o policial que acompanhou
Cristina para registrar a ocorrência, o qual justificou ter se dirigido àquela
seccional por lá trabalhar um amigo seu. Portanto, a ocorrência inicial não
foi efetuada na delegacia da área onde aconteceu o evento.
Às 10h, compareceu ao apartamento um delegado da Polícia Civil de
São Paulo lotado no DAS (Divisão Antissequestro), acompanhado de dois
agentes e um escrivão.
Tomaram nota de todas informações sobre Cacau, Dennis, a empresa e funcionários, e solicitaram autorização para deixar um dos agentes de
prontidão no apartamento. Foi explicado que, a partir daquele momento, os
telefones fixos e móveis do apartamento e de Cacau seriam interceptados,
esperando qualquer comunicação dos sequestradores.
Após o delegado retirar-se juntamente com um agente e o escrivão,
o agente que permaneceu solicitou que todos os presentes no apartamento
fossem para a sala para algumas recomendações.
O agente apresentou-se como Pedro Carvalho. Segundo o próprio, trabalhava há 15 anos no DAS. Deu os números de seu celular e de sua residência, para o caso de alguma necessidade, e anotou os telefones dos presentes:
Cacau, Marlene, Cristina e Rose, a doméstica que dormia no apartamento
durante a semana.
Domingo os telefones estiveram mudos, salvo o celular de Cacau, que
recebeu telefonemas da mãe, da irmã e do cunhado, agora coronel do Exército, lotado em Brasília.
Segunda-feira, às 7h30, Cacau e Marlene chegaram aos escritórios da
Avenida Paulista e já encontraram todos os funcionários, reunidos e cientes.
Cristina tinha se encarregado de avisá-los, e buscou fazer uma corrente de
comunicação a fim de que todos soubessem do ocorrido. O clima era de consternação. Algumas jornalistas choravam. Alguém, maldoso, sussurrou: “as
viúvas do Dennis”.
Todos procuravam acercar-se a Cacau, uns para consolá-la, dando
sugestões e colocando-se à disposição para o que desse e viesse.
Todos reunidos no auditório, Cacau foi peremptória: “Agradeço a
preocupação de todos, bem como as manifestações de solidariedade e amizade, mas agora, mais do que nunca, já que momentaneamente não temos
o Dennis conosco, temos que trabalhar com afinco. Com atenção redobrada.
A empresa está preparando um comunicado aos clientes e parceiros, para
evitar notícias desencontradas que possam prejudicar o trabalho da polícia,
porém não quero declarações à imprensa, seja qual for o veículo. Como todos
nós temos nossas ligações com os colegas que trabalham na mídia, a cautela
deverá ser redobrada, e somente a Marlene, na minha ausência, fala em meu
nome e no da empresa. Obrigada a todos.”
Assim, aos trancos e barrancos, a rotina foi se restabelecendo.
Somente na quarta-feira, às nove da noite, aconteceu o segundo telefonema dos sequestradores. Estavam no apartamento Cacau, Marlene, Rose
e Pedro Carvalho, o policial. Conforme o combinado, Cacau atendeu o telefone após ele soar quatro vezes.
“Cacau, presta atenção se tu quer voltá a vê teu marido vivo: sem polícia e sem imprensa. Nós queremos seiscentos mil dólares. Vai preparando o
dinheiro, que nós voltamos a te ligá.”
“Meu Deus, eu não tenho esse dinheiro! Quem está falando? Deixa eu
falar com meu marido...”
“Não enrola, vai preparando o dinheiro se tu quer voltá a vê ele vivo!”
“Como é que ele está? Está bem? Ele tem que tomar remédio para a
pressão, cuidem bem dele! Eu vou fazer o possível para arrumar o dinheiro,
mas não tenho a quantia que vocês estão pedindo...”
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Desligaram.
Pedro fez uma ligação de seu celular e foi para a sacada falar, provavelmente com seus colegas. Minutos depois, retornou à sala e comunicou que
a conversa tinha sido gravada e que os sequestradores tinham usado algum
mecanismo para distorção da voz. Elogiou a calma de Cacau e salientou que
procurasse prolongar mais a conversa na próxima ligação, negociando valores, pedindo provas de vida de Dennis e sempre, sempre pedindo um tempo para responder qualquer coisa que pudesse prejudicar a negociação.
Dez dias sem qualquer contato com os sequestradores. A polícia totalmente no escuro, inventando pistas para administrar os faniquitos de Cacau.
Aliás, junto à família e na empresa, Cacau continuava a demonstrar uma
calma socrática. Somente quando falava com os policiais ou com o Secretário
de Segurança Pública de São Paulo ela perdia as estribeiras.
Nesse ínterim, orientada pela polícia, Cacau recorreu aos préstimos
de seu advogado para servir como negociador nos futuros contatos com os
sequestradores. Para tanto, o DAS tomou algumas providências de cunho
técnico, proteção velada ao advogado e grampo em seus telefones. Um número foi disponibilizado para ser fornecido às negociações.
De repente, 11 dias após o último contato, nova ligação. Cacau estava
sozinha com Rose. Pedro Carvalho tinha saído para receber novas instruções
de seu chefe do DAS.
Após o quarto timbre...
“Porra nenhuma, ou tu fala com nós, ou não vai vê mais o teu marido!
Vamo acabá logo com esse assunto: vê quanto tu levanta até amanhã, que eu
volto a ligá hoje à noite para combiná a troca do teu marido pelo dinheiro.”
“Espera, não desliga! Vamos conversar, fica calmo. Eu estou vendendo uns relógios que tenho e pedi vinte mil emprestados para minha mãe, e
o resto da família está juntando o que pode. Acho que vamos conseguir uns
cem mil reais.”
“Vai à merda! E os dólares que tu trouxe da Austrália?!”
Desligou. Cacau, pasma, ficou olhando para o telefone...
Quando Marlene chegou, comentou com ela sobre o telefonema,
alertando--a para não tocar no assunto Austrália com Pedro Carvalho.
Quando este chegou, foi-lhe relatado o telefonema, e Cacau salientou
que o tal de Tiago negou-se a falar com o Dr. Thomaz. Pedro instruiu sobre a
necessidade de solicitar prova de vida de Dennis e detalhar minuciosamente
as instruções para a entrega do resgate.
Nove da noite.
“Cacau, o dinheiro tá pronto?”
“Espera! Pergunta para meu marido: como é o nome de um primo
meu que trabalha para nós?”
Ligação cortada.
“Alô, é Cacau.”
“Cacau, daqui em diante meu nome é Tiago. Somente fala comigo.
Prepare o pagamento, que teu marido não está muito bem, e nós queremos
acabá logo com isso.”
“O que é que tem meu marido? Vocês deram a medicação para ele?
Deixa eu falar com ele!”
“Cala a boca e escuta! Já arrumou o dinheiro?”
Cacau lembrou-se da orientação de Pedro Carvalho:
“Olha, esse dinheiro todo eu não tenho. Eu vou levantar tudo o que
posso, mas vou dar um número de telefone, do Dr. Thomaz, que a partir de
agora vai tratar com vocês. Eu estou muito estressada e estou sem condições
de tratar do assunto agora. O número é...”
Nove e vinte.
“Cacau, é o Tiago. O nome do primo é Henrique. Agora chega de conversa fiada e vamo combiná a entrega do dinheiro. Queremos duzentos mil
dólares. Se faltá um centavo, esquece teu marido. A entrega vai ser amanhã
às 10h no Largo do Arouche. O teu primo, o Henrique, vai com teu carro
preto, a Mercedes, e dá um jeito de encostá perto do ponto de táxi. Ele vem
sozinho. O dinheiro tem que sê colocado numa mochila no banco de trás,
os vidros do carro têm que ficá abaixados. Se aparecê polícia no pedaço, o
Dennis morre, e depois nós pegamos os teus filhos. Se tudo fô feito como o
combinado, amanhã mesmo nós solta o Dennis.”
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“Espera!”
...Telefone mudo.
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Cacau olha para Pedro, que estava escutando na extensão, e sorridente comenta que finalmente as coisas tinham chegado a um bom término.
Disse que tinha que sair, mas que não demoraria.
Por volta da meia-noite, voltou e encontrou Marlene e Pedro comendo
uma pizza preparada por Rose.
Cacau estava estranha: a alegria que demonstrara ao sair foi substituída por uma ar de preocupação. Disse que estava cansada e pediu licença
para retirar-se.
Pedro lhe pediu mais alguns minutos, salientando que tinha informado o DAS, e que as providências estavam sendo tomadas para assegurar que
tudo correria bem.
Cacau imediatamente alertou para a ameaça dos meliantes sobre a
presença de policiais no local, e enfatizou:
“Não quero pôr a vida de meus filhos em risco! Vocês tiveram um mês
para conseguirem pistas e libertarem meu marido – se agora não puderem
ajudar, não atrapalhem!”
Pedro, impassível, perguntou o que significava a referência dos bandidos a dinheiro que teria vindo da Austrália. Cacau fulminou Marlene com o
olhar; esta, nervosa:
“Cacau, não toquei no assunto! Ele ficou sabendo pela escuta do DAS.”
Para surpresa de ambas, Pedro Carvalho sem cerimônia perguntou
até quanto Cacau disporia de dinheiro para salvar a vida de Dennis. Sem
esperar resposta, perguntou se possuíam contas no exterior, onde, e valores.
Cacau olhou fixamente para Pedro e, raivosa, respondeu:
“Vai à merda, não é da tua conta! Vou informar seu chefe sobre esta
conversa.”
Foi dormir.
Largo do Arouche, nove e vinte da manhã.
Henrique circulou a pracinha quatro vezes até achar uma vaga. Nervoso, abriu os vidros, conferiu a mochila no banco de trás. Evitou olhar tanto
para os veículos que estavam estacionados, bem como para os que circulavam. Sequer olhava os pedestres. Afinal, não queria problemas.
Suas mãos suadas apertavam o volante. Queria que estivessem bem
visíveis. Colocou uma música e silenciosamente rezava para que tudo corresse bem. Ficou imóvel, não sabe por quanto tempo, até que de repente sentiu
uma lufada de ar atrás de si. Olhou pelo espelho lateral e viu a mochila ser
apanhada por um motoqueiro. Não conseguiu ver a moto em detalhes, somente que o motoqueiro usava um macacão impermeável e capacete com
visor escuro.
Respirou fundo, apanhou o celular e ligou para Cacau.
“Feito. Levaram. Tô indo praí.”
No apartamento, reinava uma balbúrdia. Marlene, a pedido de Cacau,
organizara as boas-vindas para Dennis. Bufê, bebidas, música, funcionários
e amigos lotavam o ambiente. Em meio aos convidados, dois delegados do
DAS, Pedro e outro agente.
As horas foram passando, a animação arrefecendo, e lá pelas cinco
horas da tarde alguns convidados começaram a ir embora. Um dos delegados aproximou-se de Marlene e comentou que era normal os sequestradores
demorarem a soltar os reféns, para dar tempo de empreenderem a fuga com
segurança.
Antes dos últimos convidados irem embora, Cacau solicitou uma reunião para o dia seguinte bem cedo com o delegado chefe do DAS.
Na manhã seguinte, nas dependências do DAS, Cacau recebeu um relato sucinto das ações desenvolvidas pela equipe responsável pelo caso de
Dennis. O DAS possuía onze equipes, cada qual com dois delegados e sete
agentes; na sede trabalhavam ainda 8 escrivães, quatro papiloscopistas, seis
técnicos em eletrônica/comunicações, quatro assistentes administrativos e
quatro psicólogos.
Quando Dennis fora sequestrado, havia onze casos de sequestro em
andamento somente no estado de São Paulo. As equipes, de acordo com o
delegado chefe, tinham um percentual de 95% de êxito, com recuperação das
vítimas e apreensão dos criminosos.
No caso específico de Dennis, centenas de denúncias anônimas teriam
sido checadas. A interceptação telefônica não serviu de grande valia, pois
dois telefonemas foram dados através de um celular de Dennis, com chamadas realizadas por uma ERB (estação remota de telefonia celular) localizada
no bairro Capão Redondo; os demais, de orelhões de Granja Viana II, em
Cotia. Como foram ligações rápidas, ficou prejudicado o rastreamento das
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mesmas.
ABIN (Agência Brasileira de Inteligência).
No Largo do Arouche, havia duas equipes com veículos de campana,
mais uma moto. No entanto, apesar da vigilância constante, o abalroamento
de um caminhão de coleta de lixo com um ônibus nas proximidades do ponto
de táxi (perto donde Henrique estava estacionado) deve ter tirado a atenção
dos agentes da operação, pois não detectaram o motoqueiro que levou a mochila.
Seu cunhado, mesmo solidário, disse-lhe que pouco poderia fazer para
ajudá-la, já que tinha poucos contatos com a polícia paulista, e que o órgão
onde trabalhava não se imiscuía em questões pessoais, crimes comuns, ou
mesmo em atividades investigatórias dentro do território nacional. No entanto, pediu-lhe que aguardasse vinte e quatro horas, para que ele pudesse
conversar com seu chefe, general Átila, diretor geral da ABIN.
Cacau saiu inconformada com as explicações dos policiais, mas resolveu aguardar o retorno de Dennis, agora com mais ansiedade.
Cacau aproveitou o dia para matar as saudades de sua irmã e de seus
sobrinhos, visitar sua filial em Brasília e aguardar o contato de seu cunhado
com seu chefe. No dia seguinte, seu cunhado ligou dizendo que lhe relataria
o resultado de suas tratativas num almoço em sua casa.
Passaram dias, semanas...
Vinte e cinco dias após, surpresa: um novo telefonema!
“Cacau, última chance! Se quiser teu marido de volta, prepara dois
milhões de dólares.”
“Cadê o meu marido?! Eu cumpri a minha parte, e vocês não! Quero
falar com o Dennis, sem falar com ele não tem mais conversa. Como é que
ele está?”
“Olha, Cacau, deixa de conversa fiada! O Dennis não está bem, tá passando mal. Se nós negociá, chamamos um médico pra atendê ele e soltamos.
Mas antes, o dinheiro!”
“O que é que ele tem? Vocês não deram os remédios dele? Ele tá comendo fruta? Ele precisa comer fruta por causa da saúde dele!”
Após o almoço, Guedes relatou-lhe o seguinte: o general Átila, em que
pese considerar a possibilidade de ajudar, levando em conta o aspecto humanitário, declarou-se incapaz de maior envolvimento do órgão que dirigia.
Contudo, tinha uma sugestão a fazer. Havia um consultor em segurança, especialista em sequestros, que poderia ajudar a desvendar o mistério do sequestro de Dennis. Chamava-se Gottardo Barcelos e residia em Montevidéu,
Uruguai, levando uma vida bastante reservada. Conhecia o tema Sequestro
sob três aspectos: como investigador, como sequestrado, e como sequestrador. No seu entendimento, era o homem certo para o problema.
O general fornecera os meios para comunicarem-se com Gottardo
Barcelos, e prontificou-se a contatá-lo a fim de interceder pelo assunto de
Cacau, recomendando-a com a observação de que tratava-se de gente ligada
à Agência.
“Chega de enrolação, Cacau! Se tu pensa que com aquela mixaria tu ia
soltá teu marido, tá enganada! Nós sabemos que vocês têm dinheiro mocosado, da grana da venda da empresa.”
“Se eu não falar com o Dennis, não tem mais conversa!”
Dessa vez, quem desligou foi ela.
Dia seguinte, compareceu ao DAS e comunicou ao chefe da equipe do
caso Dennis: a partir daquela data, iria cuidar do assunto à sua maneira. Não
queria mais policiais em sua casa e não iria mais dar satisfações de seus atos.
Após dois dias, foi a Brasília falar com seu cunhado. O coronel, casado
com Graziela, tinha voltado a trabalhar na área de inteligência. Antigamente,
havia trabalhado no SNI, agora estava dirigindo a Escola de Inteligência da
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GOTTARDO BARCELOS
Gottardo Barcelos passava desapercebido com facilidade onde vivia.
Seu tipo físico era bastante comum no Uruguai: um metro e oitenta, cento
e vinte quilos. Seus cabelos eram grisalhos e cortados à maneira militar, bigode e cavanhaque aparados. Olhos castanhos esverdeados. Tinha cinquenta
e oito anos.
Há três anos morava à calle Ellauri y Pereira, na rambla de Pocitos,
bairro classe média de Montevidéu e reduto da colônia judia no país. Seu
apartamento, de somente um quarto, tinha uma pequena sacada de frente
para a praia, banhada pelo Rio da Prata.
Nos três anos que morava naquele endereço, nunca trocara uma
palavra com os vizinhos. Entrava e saía silenciosamente com seu cão, um
pastor-alemão chamado Arafat, para longos passeios pela rambla ou pelo
Parque Rodó, próximo dali. Vez ou outra cumprimentava Pereira, o porteiro,
e lhe dava eventuais gorjetas quando o mesmo o ajudava a subir com as compras. Às vezes, comunicava-lhe que iria viajar e pedia que guardasse eventuais correspondências até seu regresso.
Algumas vezes fazia viagens rápidas, de três, quatro dias; outras, demorava até dois meses.
No cadastro da imobiliária que lhe locara o apartamento, constava
como ocupação: maestro jubilado. Nacionalidade: brasileño. Estado civil:
divorciado. O aluguel era pago adiantado e anualmente. In cash.
Era homem de pequenas rotinas: os passeios diários com Arafat, as
compras na mercearia da esquina, almoços no Calamar 3, restaurante de
frutos do mar situado na Av. Brasil, e parrillas no Mercado del Puerto, na
Ciudad Vieja, em frente ao porto de Montevidéu.
Raramente recebia visitas. E, quando elas aconteciam, eram de estrangeiros. Algumas vezes chegavam em carro da embaixada brasileira no
país.
Um tipo comum, como tantos jubilados que frequentavam as praças
de Montevidéu, capital de um país de aposentados. Gottardo, apesar de apaixonado por el Paisito, vez ou outra o comparava a um cemitérios de elefantes, aonde se volta ou se vai para morrer.
Pereira, o porteiro fofoqueiro e simpático do prédio de Gottardo, ao
ser indagado sobre o estrangeiro, filosofava: “Es un tipo bueno, tranquilo,
pero es cierto que tiene sus secretos.”
Era uma segunda-feira à tarde, quando Gottardo recebeu um telefonema de seu amigo Kereky, funcionário da embaixada brasileira, comunicando-lhe que no dia seguinte chegaria ao país um coronel brasileiro, vindo de
Brasília, que gostaria de falar-lhe.
Gottardo, apesar de cansado, pois chegara no dia anterior de uma viagem a Moscou com escala na Tunísia, disse que estava tudo bem e que receberia o visitante, acompanhado de Kereky, em seu apartamento. Bastava
combinarem o horário.
No dia seguinte, já instalados na sala do apartamento de Gottardo e
tomando um café servido por dona Delícia, a mucama, o coronel Guedes explicou a razão de sua visita.
Gottardo, atento, tomou algumas notas e, ao findar o encontro, que
não demorou mais de meia hora, solicitou um prazo de vinte e quatro horas
para avaliar se aceitaria a incumbência de tratar do caso de Dennis.
Kereky, ao apresentar Gottardo ao coronel Guedes, apontou-o como
um especialista em prevenção de riscos e gerenciamento de crises. Aduziu
que Gottardo, apesar de morar somente há três anos em Montevidéu, era
amigo da embaixada há mais de trinta anos.
No dia seguinte, Gottardo ligou para o Victoria Plaza Hotel, onde estava hospedado Guedes, e compareceu a um encontro num café na Av. 18
de julho, próximo à Plaza Independencia. Ali, concordou encontrar-se com
Cacau em São Paulo para tratarem do assunto.
Três dias depois, desembarcava em Congonhas, onde foi recebido pelo
motorista de Cacau e Marlene, e conduzido ao apartamento de Dennis.
Às vezes era visto com seu cão, sentado em bancos na rambla ou nas
praças lendo El País, o diário local, ou um livro, ou com um notebook conectado à internet móvel. Não era visto fumando, nem aderira ao costume local
do uso do mate.
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CAROLINA PARA OS ÍNTIMOS …
Rose, para finalmente concluir que estava certa que não.
Chegando ao apartamento foram recepcionados por Rose, que serviu
suco, biscoitos e café. Disse que a Senhora já viria. Marlene justificou que
Cacau tinha ido dormir tarde, mas que certamente logo viria recebê-los. Gottardo aceitou café, mas evitou as sucessivas tentativas de Marlene entabular
uma conversa trivial sobre: viagem boa? Clima? Gosta de São Paulo? Enfim,
tudo que se fala quando não se tem melhor para fazer. Não era o estilo de
Gottardo. Gostava do ditado mineiro de que “quem fala demais, acaba dando
bom-dia a cavalo”.
A espera levou meia hora, Marlene pouco à vontade e Gottardo, impaciente, já estava prestes a levantar-se e ir embora. Finalmente surgiu Cacau,
descendo a escada em caracol que dava acesso à cobertura.
Dizem que a primeira impressão é a que fica. Não para Gottardo.
Àquela quadra da vida, já se tornara um conhecedor da alma humana e da
coreografia que os indivíduos executam nas diversas circunstâncias. Era
conhecedor das distintas máscaras que usamos quando interpretamos os diversos papéis que nos reserva a existência.
Agora, Cacau, como no antigo teatro grego, vestia a seguinte persona:
misto de presumida viúva com guerreira que luta por resgatar seu homem.
Vestia um singelo e cinzento abrigo de malha para ginástica, tênis
branco. Cabelos amarrados num coque, cara lavada sem nenhum resquício
de maquiagem. Olheiras profundas emolduradas num rosto pálido.
“Bom dia, Gottardo. Obrigada por ter vindo. Espero que tenha feito
boa viagem. Já se serviu?”
“Bom dia. Obrigado, já me servi e estou à sua disposição para conversarmos, dona Cacau.”
“Cacau é para o marketing; para os clientes e para a mídia, para o Dennis, você e os amigos íntimos, é Carolina.”
Gottardo percebeu um sorriso dissimulado de Marlene, e imediatamente perguntou:
“Foi feita varredura neste apartamento recentemente?”
Antes que a conversa enveredasse por rumo indesejado, Gottardo
sacou: “Infelizmente, teremos de tratar de nosso assunto em ambiente seguro.”
Cacau, “Carolina para os íntimos”, prontamente disse: “Sei para onde
vamos!”. Chamou o motorista, ordenou-lhe que apanhasse a bagagem de
Gottardo e a pusesse no porta-malas do carro. Ato contínuo, solicitou a Rose
duas mudas de roupa e agasalhos.
Já no carro, Cacau manda o motorista rumar ao aeroporto do Campo de Marte. Pelo celular, acionou seu piloto e comandou que preparasse o
avião para “o Destino 4”.
Chegando ao aeroporto já na pista, embarcaram num pequeno Sêneca, esclarecendo Cacau que rumariam para sua fazenda em São José do Rio
Preto, local seguro e confortável, onde poderiam falar à vontade.
Durante o voo, a metamorfose, como somente mulher sabe encarnar:
de lagarta a borboleta, num átimo passado na toalete do avião. Cabelos soltos e escovados, batom, blush, sombra e rímel valorizando os olhos negros,
agora cintilantes. Carolina para os íntimos, coquete, iniciou uma conversa
sobre o Uruguai, país de seus pais, salientando que o conheceu quando era
adolescente, e nunca mais voltou. Indagou de Gottardo as razões dele residir
naquele país, e recebeu polidas mas definitivas evasivas.
Ao iniciarem os procedimentos de aterrissagem na pista da fazenda,
Gottardo teve a oportunidade de mensurar a importância e o valor da propriedade. Definitivamente cinematográfica. Já em terra, ele, acostumado
tanto ao luxo e ao fausto quanto à miséria e à pobreza, conhecidas em suas
inúmeras viagens, rendeu--se ao extremo bom gosto da localização da Casa
Grande, num outeiro rodeado por ciprestes e uma lagoa. Pastagens artificiais, cortadas pelas alvas cercas dos potreiros, estábulos amplos e modernos.
Quadras de tênis, esportes de salão, campo de futebol, área para a prática de hóquei; piscinas, vestiários, edícula, galpão de lazer, churrasqueiras.
Residências para os empregados. Canil, galinheiros, viveiro de aves ornamentais. Saunas... Enfim, um lugar paradisíaco.
Foram recebidos por Jaime, o capataz, um negro forte e simpático,
que lhes deu as boas-vindas e apresentou o pessoal doméstico que mantinha
a casa e servia os donos e eventuais convidados.
Demonstrando surpresa com a pergunta, Cacau indaga Marlene e
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Cacau pediu a uma das moças que acompanhasse Gottardo para que
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ele se instalasse num dos quartos de hóspede, sugerindo que repousasse até
a hora do almoço; depois, então, falariam.
CLÁUDIO MOYANO
Almoço de fazenda, farto e variado. Após as sobremesas típicas da
região, um café forte, produzido ali mesmo na fazenda. A seguir, dirigiram-se
para a beira da piscina, sentando-se a uma mesa de ferro sobre um deque rodeado de folhagens e flores.
Cláudio Moyano, sobrinho de Hugo Moyano, líder sindical da CGT
(central sindical argentina peronista), e filho de um médico cardiologista e
de uma professora de linguística. Tem uma irmã economista.
Carolina mandou trazer sua pasta, tirando dela dois blocos e duas canetas, entregando um conjunto para Gottardo, e perguntou como ele gostaria
de iniciar. Este respondeu que primeiro gostaria de escutar toda a história,
para fazer as devidas anotações, e então formularia as perguntas necessárias;
tendo uma visão do cenário, poderia sugerir iniciativas e propor eventual
trabalho e orçamento.
A conversa durou cinco horas, somente interrompida por café, biscoitos e sucos, servidos por uma das moças.
Já noite, encerraram a conversa, tendo Gottardo se inteirado da totalidade do caso e feito a proposta de remuneração e meios para o trabalho.
Proposta aceita, partiram para medidas concretas, tais como contatar um
assistente de Gottardo, Cláudio Moyano, agendar o retorno para a capital
paulista no outro dia bem cedo e, através de Marlene, providenciar passagens
e hospedagem para Gottardo e Cláudio.
No dia seguinte saíram bem cedo, e assim que chegaram Carolina
mandou o motorista levar Gottardo para o aeroporto de Guarulhos. Seu destino era Montevidéu, onde encontraria Cláudio, que viria de Buenos Aires.
Retornariam a São Paulo dentro de cinco dias.
Com quarenta e nove anos, um metro e noventa e cinco de altura, cabelo e barba grisalhos, calvície acentuada nas entradas. Quando usa barba é
considerado o sósia perfeito de Osama Bin Laden. Em Israel, há alguns anos
atrás, chegou a ser detido por sua incrível semelhança com o procurado terrorista da Al Qaeda.
Aos vinte e dois anos ingressou na Universidade da Polícia Federal
argentina, onde cursou criminologia. Posteriormente, fez também o Curso
de Oficiais da mesma polícia. Aos trinta, foi recrutado pelo SIDE (Servicio de
Inteligencia de Estado), o serviço secreto argentino. Saiu aos quarenta anos,
e desde então tem trabalhado como consultor em segurança privada, desempenhando atividades de inteligência em inúmeros países. Esteve no Iraque e
em Kosovo, sobre os quais não fala nunca.
É considerado um dos melhores negociadores de sequestro da América Latina, e por várias vezes trabalhou em parceria com Gottardo Barcelos,
de quem se considera irmão.
Foi casado quatro vezes. Uma delas com uma milionária mexicana, de
quem era o responsável pela segurança pessoal e de suas diversas empresas
pelo mundo afora. Por causa do filme de Kevin Costner, volta e meia é sacaneado pelos amigos com a alcunha de El Guardaespaldas, nome do filme
que narra a história de um guarda-costas que se apaixona por quem deveria
proteger.
Cláudio é homem de operações. Exímio atirador, fez curso de sniper
na Rússia. Em Israel especializou-se em gerenciamento de crises.
Apesar de ter trabalhado inúmeras vezes no Brasil, não possui vínculos com elementos das polícias ou órgãos de inteligência brasileiros. Por este
motivo aliado à sua competência, fora convidado por Gottardo para auxiliá-lo no caso de Dennis.
Gottardo chamou-o a Montevidéu para colocá-lo a par das nuances
do caso e, ao mesmo tempo, evitarem o monitoramento precoce da polícia
paulista. Assim, passaram dois dias juntos no Uruguai antes de irem para
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São Paulo.
EM BATALHA NÃO SE LIMPA FUZIL
Antes de viajarem ao Brasil contataram Coco, um engenheiro de comunicações da Marinha argentina que volta e meia prestava serviços à dupla, para implementar medidas eletrônicas defensivas e ofensivas. Coco já
fora chefe do Departamento de Guerra Eletrônica da Armada Argentina e,
nesta condição durante a guerra das Malvinas, o grande herói, interceptando
e anulando as comunicações dos ingleses. Foi o último oficial argentino a ser
liberado da condição de prisioneiro levado para a Inglaterra. Ao seu retorno,
foi condecorado como Herói Nacional.
Não era a primeira vez que iniciavam um trabalho em Montevidéu.
Mesmo que o alvo fosse do outro lado do mundo, começavam o planejamento, a adoção das primeiras medidas, enfim, a esquentar os motores, na
capital uruguaia.
Se Gottardo estava certo em suas desconfianças, o trabalho de Coco
seria importantíssimo.
Apesar de alguns serviços secretos europeus terem suas bases operacionais na América do Sul sediadas em Montevidéu, ainda assim, a baixa
criminalidade, o menor índice de corrupção policial, pouca incidência do tráfico de drogas e a boa índole do povo uruguaio contribuíam para tornar essa
cidade a mais segura e tranquila das capitais sul-americanas. Além do quê,
ambos, Gottardo e Cláudio, tinham vínculos sentimentais com a pequena
Montevidéu, construídos num passado distante. Cada um tinha seus próprios
motivos para estar ali: Gottardo residindo, e Cláudio com visitas frequentes.
Gottardo fora buscar Cláudio no Aeroporto de Carrasco, oriundo do
Aeroparque de Buenos Aires, o aeroporto bonaerense para voos locais e para
o vizinho Uruguai. Ao tomarem a rambla Costanera, que margeava o Rio de
La Plata, passando pelos bairros nobres de Montevidéu, Carrasco, Malvín,
Buceo, e finalmente Pocitos, seu destino, já começaram a trocar informações
sobre o caso. Continuaram no apartamento de Gottardo e, ao findar o primeiro dia, já tinham repassado todas as informações dadas pelo Cel. Guedes,
Cacau e Marlene.
Prepararam uma pauta para as medidas a serem tomadas imediatamente:
Chamar Coco a Montevidéu para listarem equipamentos necessários e
serviços a serem efetivados em São Paulo:
Quatro aparelhos celulares criptografados;
Scanner para interceptação de telefones celulares;
Equipamentos detectores de escutas ambientais, telefônicas, e interceptadores de transmissão de som e imagem clandestinos;
Grampos telefônicos e ambientais;
Equipamentos para vigilância diuturna.
Contatar amigos da inteligência brasileira, solicitando dados sobre
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Dennis, Cacau e os negócios da First Team;
Agendar reuniões com: policiais do DAS, o advogado da empresa, o
motorista do táxi, Cristina (funcionária da empresa que estava com Dennis
no momento do sequestro), Marlene e Rose (a doméstica de Dennis);
itos, em direção ao centro ou à Ciudad Vieja para jantarem. Antigamente,
jantavam no centenário El Águila, anexo ao Teatro Solis, na Plaza Independencia. Com a sua desativação em 1998, passaram a frequentar o El Palenque
ou o Rodós, ambos no Mercado del Puerto.
Levantar dados sobre os negócios de Cacau na Austrália em sua última
viagem;
Nessas caminhadas noturnas pelas ruas arborizadas com plátanos,
costumavam levar Arafat, deixando-o à porta dos restaurantes ou, em lugares onde eram mais conhecidos, sob a mesa.
Contatar elementos ligados ao crime organizado, objetivando informações diferenciadas;
Nesta noite, Cláudio, que conhecia muito bem seu amigo brasileiro,
notou que algo o incomodava. Gottardo estava absorto e lacônico.
Estipular cobertura para atuação interna de Gottardo na empresa;
“¿Qué te pasa, hombre? ¿Es por el trabajo, o son cosas tuyas?”
Providenciar agenda de entrevistas com funcionários;
Tomar iniciativas logísticas, como hospedagem, passagens, locação de
veículos, contratação de terceiros, comunicações, etc;
Cronograma de desembolso da remuneração e verbas para despesas
operacionais;
Solicitar acesso imediato ao apartamento de Dennis e às dependências
dos escritórios da empresa, bem como a veículos, para vistoria de segurança;
“Nada. Só estou cansado dessas putarias. Estou velho demais para
ficar escutando histórias desses escrotos, capazes de qualquer merda pelo
dinheiro.”
“¿Hablas de la mujer, esa Cacao?”
“Também, mas a coisa toda me cansa! Empresário bandido, bandido
empresário, policial bandido, político bandido... Desculpa, político bandido
é pleonasmo, não existe político que não seja bandido! Reclamas da Argentina... Saca só o Grande Paraguai que se transformou o Brasil!”
Solicitar todas as agendas físicas, eletrônicas, e celulares de Dennis;
Cláudio, sorrindo:
Senhas utilizadas por Dennis;
“¡Por eso estamos acá en Uruguay! ¿Y Cacao, que te pareció? Fuera de
linda, por supuesto. Miré sus fotos en la Internet.”
Listagem de clientes, especificando o objeto contratual e valores;
Elaboração de Contrato Mútuo com Cláusula de Confidencialidade
entre as partes (Cacau e Gottardo/Cláudio).
“Realmente, é bonita, mas estou certo de que, como diz um índio velho da fronteira de Bagé, ‘esconde gordura debaixo do casco’. Deixa eu te contar: Marlene, sua assessora e encarregada da parte financeira da empresa, é
evangélica. Ela me disse que Cacau recentemente se converteu, me esqueci
de perguntar se antes ou depois do sequestro. Pois bem, quando estávamos
na fazenda, onde fica o haras criadouro de manga-larga, quando fomos telefonar para ti, ela levou-me ao seu quarto, que segundo ela era mais reservado, impedindo que os empregados escutassem qualquer coisa. Após termos
conversado e tu confirmares tua ida, ela, que estava sentada sobre a cama, e
eu sentado numa poltrona junto à mesinha de cabeceira onde estava o telefone, segurou minhas mãos, olhou-me com aqueles olhos negros e disse:
‘Gottardo, me deixa orar por ti e pelo Dennis.’
Após o detalhamento de medidas a se tomar, saíram, como era de costume quando Cláudio estava em Montevidéu, a caminhar pelas ruas de Poc-
“E começou: ‘Senhor, aqui estamos reunidos em Teu nome, para implorar que estejas abençoando o Gottardo, dando-lhe força, coragem e sabe-
Listagem de funcionários, com as devidas fichas funcionais, contratos
de trabalho, antecedentes, currículos, etc;
Dados específicos sobre ex-funcionários, colaboradores, parceiros e
sócios;
Ficha médica e odontológica de Dennis;
Histórico medicamentoso de Dennis;
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doria para poder executar seu trabalho em segurança. Senhor, que o Dennis
esteja com saúde e que em breve possa estar no meio de nós. Que o Gottardo
seja o instrumento da libertação do Dennis. Nós Te pedimos em nome do
Teu Filho, o Senhor Jesus, para Honra e Gloria Tua.’”
“¡Magnífico, por lo menos es una creyente!”
“Sei não... Quando ela estava orando e ambos de olhos fechados, me
ocorreu um pensamento: espero que o Deus dela seja o mesmo que o meu.”
scoberto, dentro e fora da empresa – por sugestão de Cacau, para todos os
efeitos, ele fora encaminhado pelos novos sócios australianos para tentar suprir a falta momentânea de Dennis.
Cláudio e Coco se hospedariam separados de Gottardo e não frequentariam a empresa em horário comercial, ou enquanto houvesse alguém em
suas dependências. A polícia paulista tampouco deveria tomar ciência de sua
existência.
Jantaram, e na volta resolveram tomar um táxi, pois já era tarde e no
dia seguinte partiriam para São Paulo. Já no apartamento, Gottardo manifestou alguns pontos que lhe intrigaram.
Quando o coronel Guedes estivera em seu apartamento e fora indagado sobre o que tinha acontecido com Dennis após o pagamento do resgate,
e já três meses sem que tenha aparecido, manifestou-se assim: “Meu cunhado era um escroto. Um sociopata deslumbrado pelo dinheiro a ponto de
tornar-se obcecado e doentio. Transava com tudo quanto é funcionária, e o
pior, ainda tinha a imagem de veado. Minha cunhada não merecia aquele
filho da puta. Estou aqui a pedido de minha mulher, e também por gostar
muito da Cacau. Na verdade, o que nós precisamos é demonstrar que Cacau
fez tudo o que podia para recuperar o Dennis. Afinal, existem os filhos, que
ainda são adolescentes e crianças, e não merecem conhecer a verdade sobre
o pai.” Olhando-o firmemente nos olhos, arrematou: “Sei que o senhor é um
profissional experiente, e portanto vou lhe ser franco: para mim está morto.
Acredito mesmo que, da maneira que vivia, pedia um desfecho deste”.
Num momento que esteve (Gottardo) a sós com Marlene, ela confidenciou que Dennis, há seis meses atrás, tinha lhe dito que pretendia separar-se de Cacau. Inúmeras vezes ele pedira a Cacau que se mudasse com as
crianças para São Paulo, e ela sempre tinha uma desculpa diferente.
Ainda na fazenda, em certo momento, Cacau pediu que Gottardo fizesse tudo para recuperar seu marido. No entanto, ela queria ser poupada de
“fofocas de casos de seu marido com funcionárias ou clientes”. Não lhe interessavam detalhes. Quando Dennis voltasse, ela se acertaria com ele.
Ao ser questionada sobre as negociações com a multinacional australiana e a inusitada e intempestiva viagem de Dennis aos Estados Unidos, Cacau desconversou. A descrição do pagamento do resgate e a atuação policial
não convenceram Gottardo.
Finalmente, ficou estabelecido que Gottardo faria seu trabalho a de-
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Dia seguinte, São Paulo.
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EM CAMPO
No dia seguinte, a agenda de Gottardo foi diferente: dedicou seu dia a
contatos e providências operacionais.
Gottardo hospedou-se no Hotel Della Volpe, antigamente um bom
destino. Após o assassinato do governador do Acre, em 1992, a qualidade
dos serviços e a frequência diminuíram bastante, mas era cômodo e situava-se na rua Frei Caneca, a duas quadras da First Team, na Paulista. Cláudio
e Coco hospedaram-se no Ibis de Congonhas.
Bem cedo, encontrou-se com Cláudio e, depois de relato minucioso
sobre o dia anterior, repassou uma fotografia de Carla, a gerente financeira,
com dados pessoais básicos: placa de carro, números de telefone, endereços
residencial e da faculdade onde fazia mestrado. Cláudio já sabia o que fazer.
Em seguida, visitou acompanhado de Cláudio o apartamento que fora
alugado para Coco. Os equipamentos já estavam instalados e, perguntado
sobre o estado dos mesmos, Coco não se furtou de fazer piadinha sobre os
brasileiros que trabalham neste mister, que gostam de usar o chavão: “Positivo e Operante!”.
Coco também, além de conhecer seu trabalho, já sabia as tarefas das
quais tinha que se incumbir.
Gottardo almoçou com um antigo colega, com quem ao longo dos
anos, além de cultivar um relacionamento profissional, solidificou uma boa
amizade. De Montevidéu, tinha lhe solicitado certas sondagens; agora teria
as respostas que necessitava. Doutor Milano, era seu codinome na comunidade de inteligência, além de extremamente competente, era uma reserva
moral e ética dos órgãos de segurança e inteligência brasileiros. Em razão
disso, mantinha contatos e amizades em todas as áreas – daí a demanda de
Gottardo, no sentido de auscultar as áreas específicas e tomar temperatura e
pressão de seus integrantes, para criar as necessárias pontes para o gerenciamento da crise.
e aí é com você e seu cliente. Não vou emitir juízo, ou opinar. Como profissional, você sabe avaliar melhor do que eu onde o calo aperta. Sabemos que,
em determinadas circunstâncias, mesmo sem nos prostituirmos, somos
obrigados a fazer concessões a essa raça. Meu amigo deixou bem claro que
da segunda maneira os obstáculos inexistem e é prioridade máxima.
“Sobre o caso específico do Dennis, disse-me que tinha escutado alguma coisa, mas não tinha maiores detalhes e que, como era de praxe, não iria
assuntar trabalhos de outras equipes.”
Gottardo agradeceu o favor e pediu que, se houvesse possibilidade sem
comprometê-lo, intermediasse um encontro com Pedro Carvalho, o agente operacional do DAS no caso do Dennis. Milano disse que poderia contar
com ele para essa finalidade, e que aguardasse uma comunicação para verem
como fariam.
No período da tarde, foi até as instalações da ABIN, antiga SNI, onde
seria recebido pelo chefe da Agência local, a pedido do general Átila. Fora
alertado pelo general, no entanto, que o assunto não era da alçada da Agência, tendo em vista o caráter humanitário, o pessoal de São Paulo, mas poderiam eventualmente dar-lhe uma ajuda informal.
Foi recebido com simpatia e boa vontade. Relatou o que já sabia sobre
o assunto e recebeu a promessa de ser chamado dentro de quarenta e oito
horas para saber o que foi apurado. Nessa oportunidade, o chefe da Agência,
que estava acompanhado por um assessor, comentou em tom casual que empresas do tipo da First Team têm sido usadas mundialmente como cobertura
de atividades de espionagem...
Ao fim da tarde, Gottardo recebeu uma chamada de Milano, confirmando um encontro com Pedro Carvalho para aquela mesma noite. O local
marcado foi a Pizzaria Speranza, no bairro do Bixiga.
Milano, que era extremamente objetivo, não deixou por menos:
“Conversei com um amigo do setor específico de sequestros. Gente das
antigas. Me colocou o seguinte, confidencialmente: eles têm duas maneiras
de cuidar do assunto institucionalmente. Seguindo o book, com as limitações
normais de pessoal, meios e verbas, e acúmulo de serviço; e comercialmente,
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
Às 20h, pontualmente, Gottardo chegou ao restaurante. Pedro Carvalho, cinco minutos depois. Após as apresentações, Gottardo enfatizou seu
papel como representante dos parceiros internacionais da First Team, aduzindo que seu trabalho visava minimizar a ausência de Dennis na empresa,
visando à continuidade dos negócios.
economizar dinheiro. Completou que houve momentos quando chegou a duvidar do interesse de Cacau em ter o marido de volta.
Pediram uma pizza e vinho e, a pedido de Gottardo, Pedro fez um relato sucinto do trabalho policial no sequestro, porém ficou bem claro que
estava desconfiado e ocultava detalhes. Apenas algumas críticas à conduta
de Cacau, que, no dizer do agente, além de impertinente, falava demais, atrapalhando o trabalho policial. Por isso justificava terem repassado tão poucos detalhes sobre as iniciativas operacionais, bem como pistas que estavam
seguindo.
“Pois bem, conto contigo para fazer chegar nosso oferecimento até
teu chefe. Mas antes de terminarmos nosso encontro, pelo qual agradeço
tua gentileza em ter comparecido, gostaria de esclarecer algo. Longe de mim
querer interferir no trabalho policial, porém esta postura minha não me exime de avaliar o que está sendo feito, já que sinto-me capacitado para tal.
Discordo quando dizes que Cacau seria a eventual responsável pelo fracasso
das negociações. Em todo momento, segundo seu relato e de testemunhas,
ela seguiu fielmente as instruções dadas pelo DAS. Pechinchar, não para
baixar o resgate, mas para estender as negociações, já que teoricamente o
tempo trabalha contra os sequestradores.
Na sequência, como que repetindo instruções de seu chefe, salientou
que, como Cacau contratara profissionais privados, ou aceitara a intromissão
de seus sócios estrangeiros, o DAS, que tinha muito o que fazer, abandonaria
o caso. No seu entendimento, o fato de ter sido pago o resgate sem devolução
do refém e diversas vezes terem sido ignoradas as instruções dos policiais
deixava claro que a família não confiava no trabalho policial. Disse ainda que
as sucessivas iniciativas de pressão sobre o Secretário de Segurança Pública
e sobre o Governador não tinham sido bem recebidas pela cúpula policial.
A recente matéria publicada num jornal do Rio de Janeiro, escrita por
um jornalista funcionário de Cacau, sobre a “indústria do sequestro em São
Paulo” fora a gota d’água, revoltando a corporação.
Gottardo pediu a Pedro, bem como a seus superiores, que levassem em
conta o estado emocional de Cacau, e que eles dois tinham a oportunidade de
contribuir para mudar o clima e o caso chegar a bom término. Para ilustrar o
que dizia, salientou que quando argumentou com Cacau as dificuldades reais
do DAS em termos operacionais (tanto pela magnitude do tema sequestro
em São Paulo quanto pela insuficiência de meios), Cacau dissera-lhe que estava ciente dos fatos, mas que a busca pelo marido era prioritária para ela,
autorizando Gottardo a oferecer os meios que se fizessem necessários, como
veículos, equipamentos e verbas para informantes. Gottardo enfatizou bem
a questão de verba para informantes, buscando deixar uma brecha para negociação.
Infelizmente, Pedro, entre desconfiado e pouco à vontade, disse que
não era pela falta de meios, tampouco por falta de boa vontade dos policiais,
que Dennis ainda não teria sido resgatado. E, com ar arrogante, falou que se
alguma coisa desse errado era responsabilidade de Cacau, que sempre que
negociava com os bandidos tentava fazer jogo duro, ao que parece tentando
Gottardo sabia que, quando se queimam as caravelas, o jeito é seguir
em frente. Se o moço gostava de jogo duro, iria tê-lo!
“Acontece que pechinchar não é oferecer dois ou três relógios mais
quarenta mil reais para quem estava inicialmente pedindo dois milhões de
dólares e deixava por seiscentos mil dólares. Segundo, a prova de vida que
Cacau solicitou e que foi aceita por ela também foi aceita pela polícia, que permitiu o pagamento do resgate e em nenhum momento questionou se o nome
do primo (Henrique) poderia ter sido dado por Dennis antes de morrer ou
por um cúmplice dentro da empresa. Terceiro, é inaceitável que três equipes
de vigilância, numa área pequena como a praça do Largo do Arouche, possam ter perdido a atuação de quem veio apanhar o resgate, ou nem mesmo
segui-lo. E por último gostaria que me satisfizesse uma curiosidade: por que
perguntaste a Cacau de quanto ela disporia para o resgate, se possuía contas
no exterior, onde, e quantias?”
Gottardo, não contente, antes de ter qualquer resposta – o que não era
iminente, pelo semblante atarantado de Pedro – complementou:
“Outra coisa que me incomoda são as constantes referências à possibilidade do Dennis já estar morto, ao mesmo tempo que encorajam-se novas
tentativas de contatos com os sequestradores e novas negociações. Pedro,
tenho observado muita coisa estranha nesse caso e acredito que ele terá um
desfecho imprevisível, não somente para o Dennis, para a Cacau e para os
filhos, mas também para muitos dos envolvidos nessa trama. Não podemos
nos esquecer do imponderável, do agir de Deus!...”
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Pedro, que perdera toda sua pose, limitou-se a dizer:
“Não posso falar pelo DAS, mas certamente a Cacau interpretou mal
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as minhas palavras. Estava somente querendo ajudá-la a melhor negociar...”
PAULICEIA DESVAIRADA
Três dias depois, Cacau, perturbada, comunicou a Gottardo que Pedro
Carvalho tivera um AVC. Estava internado em estado grave.
Gottardo não se abalou: ele sempre levava em conta o imponderável...
A reunião que Gottardo teria com Cacau foi cancelada e passou para o
dia seguinte bem cedo. Assim, encontrou-se com Cláudio e Coco para jantar,
e como ironia Gottardo levou-os para comer uma boa carne argentina na
Vento Haragano. Ao saírem da churrascaria, sob chuva forte, presenciaram
um tiroteio entre policiais e bandidos.
Bons tempos quando São Paulo era conhecida como “terra da garoa”.
No outro dia, cedo, após o desjejum, Gottardo caminhou o pequeno
percurso até os escritórios e se fez anunciar. Cacau já estava o esperando.
Foi conduzido por uma jovem até uma sala de reunião, onde Cacau
estava acompanhada de mais duas funcionárias.
Cacau estava linda. Elegantemente vestida e com o semblante radiante. Levantou-se, e dirigindo-se até Gottardo cumprimentou-o com um olá
acompanhado de um beijo na face. Parecia que era sua amiga íntima e de
longa data.
Ato contínuo, apresentou as moças: Bianca, a secretária de Dennis,
uma morena esbelta, um metro e setenta aproximadamente, cabelos negros
e longos, rosto e corpo perfeitos. Aparentava vinte anos. E Carla, gerente administrativa, baixinha, corpo bem esculpido, cabelos loiros, com o nariz que
lembrava o da cantora Cher e dona do par de olhos verdes mais luminosos
que Gottardo já vira. Ambas simpáticas e efusivas, cumprimentaram-no e
colocaram-se à disposição para mostrar as dependências da empresa e apresentar o corpo de funcionários.
Gottardo solicitou alguns minutos a sós com Cacau, a fim de repassar
a pauta elaborada em Montevidéu para que determinadas providências fossem tomadas.
Em seguida, Carla acompanhou-o para mostrar as instalações. Modernas e funcionais, compostas de baias dispostas de forma circular, surpreenderam Gottardo pela transparência operacional. Dezenas de funcionários,
na sua quase totalidade mulheres, com estações de serviço individuais, atendiam contas personalizadas e individualizadas. Cada cliente possuía dentro
da First Team o operador exclusivo de sua conta ligado online ao controller
do contratante. Fora do alinhamento das baias, que se repetiam por quatro
andares do prédio, ficavam as salas de gestão, suporte e reuniões.
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Após o giro pela empresa, Gottardo foi levado à sala de Bianca, contígua à de Dennis – a qual, por decisão de Cacau, seria ocupada por Gottardo
pelo tempo que fosse necessário. Cacau havia comunicado aos funcionários
que viria uma pessoa representando os parceiros internacionais para ajudar
a tocar a empresa, enquanto Dennis não voltasse. E, ainda de acordo com o
combinado, a melhor maneira de ajudar a empresa era acelerando o retorno
de seu diretor. Assim, seria necessário conversar com todos, na busca de alguma informação ou sugestão com o fito de ajudar o trabalho policial. Afinal,
para surpresa do próprio Gottardo, a polícia não visitara a empresa e sequer
entrevistara os colaboradores.
Para começar, antes de ser apresentado aos demais, Gottardo sugeriu
que iniciassem as entrevistas pela própria Bianca – pois, de acordo com Cacau, era funcionária de estreita confiança de Dennis e dela. Resolveu fazer
as entrevistas na sala que lhe estava destinada. Bianca chamou uma garota
que ocupava uma baia defronte a sua sala, apresentando-a como Helga, salientando que Helga era quem a substituía sempre que se fazia necessário.
BIANCA
Gottardo procurou dar um ar de informalidade à conversa, deixando
Bianca à vontade.
“Bianca, de acordo com a Cacau, você era a pessoa mais próxima do
Dennis na empresa e, como quase todas as secretárias, sua amiga e confidente. Por isso, vou necessitar que sejas minha guia dentro da First Team.
Quero te adiantar que tudo o que conversarmos fica entre nós, e aquilo que
eu achar importante para ser utilizado, somente o farei com tua permissão.
Meu trabalho não é policial, nem pretendo me meter nas investigações da
polícia. Ainda assim, é importante recuperarmos o máximo de dados e informações sobre o Dennis, para que possamos tanto ajudar a polícia, quanto
possibilitarmos o caminhar da empresa sem maiores prejuízos. Tudo bem?”
“Tudo bem. O que o senhor gostaria de saber?”
“Vamos dividir nossa conversa em três partes. Primeiro, quero te conhecer. Depois, quero que me descrevas o Dennis, e finalmente uma rápida
radiografia da empresa e seus funcionários.”
Com um sorriso brejeiro, mas sem coqueteria, tranquila, iniciou:
“Bom, tenho 21 anos, estou no sexto semestre de direito. Moro com
meus pais. Tenho uma irmã mais velha, de 26 anos, casada e linda. Curso
inglês e frequento academia de ginástica três vezes por semana. Tenho um
namorado, com quem namoro já um ano. Gosto do meu trabalho, e sempre
tive bom relacionamento com o Dennis, a Cacau e as meninas. Pretendo ficar
na empresa até me formar, pois então quero advogar. Gosto de sair, mas não
sou baladeira. Bebo raramente e só socialmente, não fumo nem uso drogas.
Tem alguma coisa mais que o senhor gostaria de saber?”
“Na tua opinião, que característica de tua personalidade mais te agrada e qual a que mais te desagrada?”
“Me considero uma pessoa tranquila, o que acho positivo. E confio demais nas pessoas, o que acho péssimo, pois muitas vezes me coloca em frias
ou me faz sofrer.”
ga?”
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“Já confiaste em alguém na empresa que te desiludiu? Alguma cole-
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“Acredito que ele está morto.”
“Não, as meninas não.”
“O que achas que aconteceu?”
Seu olhar, até então sereno, inquieto vagava pelo teto e pela superfície
da mesa onde ambos estavam.
Gottardo preferiu não insistir, e prosseguiu:
“Gostarias de falar um pouco mais sobre ti?”
“Se me ocorrer mais alguma coisa que ache importante, lhe direi, e se
o senhor desejar perguntar mais alguma coisa, eu respondo.”
“Vamos ao Dennis. Podes me descrevê-lo?”
“Bom, acredito que descrição física o senhor já tenha, a Cacau e a Marlene já devem ter feito. Então, vou procurar descrever seu jeito de ser, seu
comportamento e atitudes. Acredito que, como disse a própria Cacau, não
estou traindo a confiança de quem quer que seja, e sim procurando ajudar o
próprio Dennis, a Cacau e a empresa.”
“Ah! Antes de entrarmos no assunto Dennis, uma pergunta, ou melhor, duas: o que achas da Cacau, e como é teu relacionamento com ela?”
“Me dou bem com Cacau, bem; ela se dá bem com todo mundo. Sabe
comandar sem impor, nesse aspecto ela é mais habilidosa do que o Dennis. Inclusive, depois que o Dennis foi sequestrado, o clima ficou melhor na
empresa. Ela conduz as situações com mais calma e com habilidade, talvez
porque haja mais empatia entre ela e a mulherada. Além disso, apesar de ter
mais idade do que a maioria das funcionárias, é invejada por todas, no bom
sentido, pela sua beleza e elegância. Ela é charmosa, carismática. Inclusive,
nestes dois anos que estou na empresa, noto que cada vez mais os clientes
preferem tratar seus assuntos com a Cacau. Está certo que o big boss ainda é
o Dennis, ou era. Mas, hoje, a Cacau é a cara da empresa.”
Aproveitando o gancho, Gottardo sapecou:
“O que achas que aconteceu com o Dennis?”
Ela, sem pestanejar:
“Acho que está morto. Já passou tanto tempo que pagaram o resgate,
e nem sinal do Dennis, nem comunicação dos sequestradores...”
“Usando tua sensibilidade e percepção feminina, tu acreditas realmente que ele está morto? Ou são reflexões sobre esse tempo?”
“Acho que alguma coisa deu errado. A saúde dele não estava boa. Ele
pode ter se sentido mal e, sem assistência médica, ter morrido. Ou outro
pensamento, que às vezes me ocorre, é que, com o gênio do Dennis, estourado, brabo, ele pode ter reagido ou provocado certa situação que fez com que
ele fosse morto.”
Feita uma pausa para um cafezinho, reiniciaram após Bianca ter ido
até sua sala ver como Helga estava se saindo.
“Vamos falar do Dennis. Como ele é, ou era? Como homem, como
profissional?”
“Como homem, acredito que quem pode melhor descrevê-lo é sua
mulher e filhos, que conviviam com ele. Já como profissional, posso falar
somente o que me chegava como secretária.”
“Me desculpa, mas não serias a primeira ou a última secretária a saber
mais coisas sobre o chefe do que a família. Afinal, passam grande parte do
dia juntos e, no caso específico do Dennis, tranquilamente passavas muito
mais tempo com ele do que a família. Haja vista que somente de quinze em
quinze dias ele ia para o Rio, para passar três a quatro dias.”
“Tudo bem, mas pra mim era difícil saber sobre o homem Dennis. Ele
sempre estava interpretando o personagem do dono de empresa, do marqueteiro. Mesmo quando fazia suas molecagens, dava a impressão que elas
eram pensadas e estudadas para compor o tipo que ele gostava de acreditar
que era. Às vezes, porém, ele deixava escapar momentos de informalidade, e
revelava ser diferente daquele que gostava de mostrar aos demais.”
“Tipo...?”
“Quando alguém fazia seu trabalho de maneira diferente de suas
instruções. Quando uma das meninas, no seu entender, estava vestida de
maneira inadequada, ele chamava de brega, acusava de serem compradoras compulsivas das Casas Marisa. Às vezes, exagerava e mostrava o terno
Armani, ou as camisas e gravatas italianas que estava usando, os sapatos de
cromo alemão... Volta e meia, dava um esporro na dona Matilde, da copa,
porque o lanche não era o que pedira, o suco não estava gelado o suficiente,
ou o café estava fraco. No entanto, volta e meia, quando viajava para o exterior, trazia lembranças para ela.”
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JOÃO CARLOS BERKA
“Como era o relacionamento de Dennis com os clientes?”
“Ultimamente, esse relacionamento era feito pela Cacau. O Dennis
evitava falar com clientes.”
“Havia amigos que o visitavam ou telefonavam com frequência?”
“Alguns que lhe telefonavam. Telefonemas e visitas mais assíduas, somente do Gert Pieske, que já foi seu sócio e hoje é concorrente nosso.”
amiga na empresa, e com quem tinha muito em comum por terem a mesma
idade e terem ingressado na First Team na mesma época.
“Bianca, finalmente: tiveste um relacionamento íntimo com Dennis?”
dade:
Como se já esperasse a pergunta, com segurança e aparente sinceri“Sim. Saímos umas três vezes assim que entrei na empresa.”
“Eram amigos?”
“Onde foram?”
“Bastante.”
“No apartamento dele...”
“Eles ainda têm negócios juntos?”
“Por que terminou?”
Ela parou para pensar uns segundos, e:
“Não acredito. Acho que era só amizade mesmo. Aliás, uma vez perguntei isso para a Marlene, que é a mais antiga daqui e amiga do casal, e ela
me disse que o Gert tinha uma certa dependência do Dennis. Que, quando
eram sócios, o Gert era o comercial, o que tinha habilidade de levantar contratos, e o Dennis o criativo, o que bolava o mote das campanhas.”
Gottardo fez uma série de perguntas sobre o pessoal da empresa, e a
todas as perguntas Bianca respondia tranquilamente e com segurança. Operacionalidade da empresa, clientes, cases. Enfim, uma secretária jovem e
muito bem informada. Expert. Treinada.
Pelos relatos de Cacau, Marlene e Bianca, já dava para sacar o caráter
manipulador de Dennis. Ao que tudo indicava, tratava-se de um conhecedor
e hábil manipulador da alma feminina. Certamente, Dennis tinha sua parcela na educação da moça. Ali tinha o dedo de Dennis... ou algo mais...
“Bianca, só para terminarmos: as namoradas de Dennis dentro da empresa?”
“Bom, de acordo com o combinado de que esta conversa vai ficar entre
o senhor e eu, e até por uma determinação da Cacau de que eu deveria ser a
mais transparente possível, e fornecer todos os dados que me pedissem, vou
lhe passar o que sei, e não as fofocas.”
Listou oito garotas atuais, mais três que já tinham saído da empresa.
Dentre as atuais, a principal é Helga, cujo relacionamento era de seu conhecimento através de confidências de Dennis e da própria Helga – sua melhor
“Não rolou. Além disso, o comportamento do Dennis de não respeitar
os outros, não se importando se prejudica ou não, acabou com meu namoro
da época, já que o Dennis não respeitava meu relacionamento e ligava à hora
que queria – o que fez meu namorado desconfiar, primeiro, e depois ter certeza. Tive sorte de ele não contar para os meus pais.”
“Alguém ficou sabendo?”
“Minha irmã e a Helga.”
“A Helga? Como?”
“O Dennis contou para ela, dizendo que nosso caso foi sem importância, que foi somente uma aventura de sexo.”
“E a Helga?”
“Tranquila. Continua minha amiga, mas é dependente do Dennis. O
Dennis, eu digo para ela, é a concessão que ela faz para o seu lado negro.”
“E a Cacau sabe de ti e do Dennis, ou da Helga?”
“De mim, não acredito. Da Helga tenho certeza que desconfia, tanto
pelas bandeiras que o Dennis dava, como pelo fuxico da empresa.”
Gottardo agradeceu, despediu-se de Bianca, e ficou alguns minutos
ruminando o que ouvira. Com seus botões, pensou: “o tempora, o mores!”
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A MORTE DO ASPONE
Recentemente, o Brasil, mesmo anestesiado pelas notícias de violência e criminalidade crescentes, foi surpreendido pelo drama que envolvia um
jogador de futebol e uma “maria chuteira” – como são conhecidas as moças
que cirandam nos estádios, vestuários, hotéis e boates, em busca de romance
com os atletas. A meta, obviamente, é o gol, um filho para garantir pensões
que possibilitem um tipo de vida inalcançável para quem não gosta de fazer
força, estudar ou trabalhar. Uma nova faceta da prostituição. No caso em
pauta, tratava-se do goleiro do time mais popular do país, o Flamengo, Bruno, e sua “namorada”, Eliza Samudio. A trama envolvia um triângulo composto pelo casal e pelo primo de Bruno, Macarrão. Bruno e Macarrão foram
criados juntos, e assim que o primeiro brilhou nos gramados, buscou o primo,
resgatando-o da pobreza absoluta para uma posição de assessor para coisas
pessoais, o famoso aspone. Macarrão desenvolveu uma fidelidade canina.
Um misto de amor e gratidão que o levou a cometer desatinos pelo primo. O
menor deles é a tatuagem com declaração de amor a Bruno, nas costas, e o
último, o sumiço de Eliza.
Pois bem, nosso personagem também foi criado parte da infância e
da adolescência junto a um primo e, em que pese a diferença de idade entre
ambos, cinco anos, e um ter uma condição privilegiada e o outro somente
usufruir da condição de classe média de interior, desenvolveram uma amizade duradoura e (sob o ponto de vista do mais moço) admiração e dedicação
cegas.
O mais velho, desde jovem foi preparado para o poder. Pertencente a
uma dinastia política e nascido em berço de ouro, levava uma vida pródiga
de facilidades. Saindo da adolescência, teve a primeira frustação em sua existência: a separação de seus pais.
Apesar de manter um bom relacionamento com os progenitores, somando as crises da adolescência com as influências de jovens mais escolados
e a separação dos pais, fez um voo sem escalas, do cuba libre dos tempos da
Jovem Guarda para a cocaína e os sintéticos. Maconha, só socialmente.
Os tempos passaram, e a vida, apesar de boa para o mais velho, Fernando, foi madrasta para o mais novo, Clemente. Apesar de tudo, sempre
juntos.
Fernando, boa-pinta, inteligente e carismático, apesar de adicto às
drogas, somente com a força inercial do nome e do dinheiro da família in-
gressou na política, elegendo-se deputado estadual, deputado federal, governador e depois senador. Casou-se, teve dois filhos, e divorciou-se aos trinta
anos. Em seu estado, para a patota mais íntima, era o Menino do Rio. Surfista, frequentador dos points descolados da Cidade Maravilhosa, amigo de
jogadores de futebol, artistas de televisão, músicos sertanejos e traficantes.
Voluntarioso e mimado, gostava de ostentar o brinquedinho da moda
– no caso, as mulheres que estavam em evidência, fossem artistas, cantoras
ou misses. Jogava para a torcida. Grande garanhão...
Com o tempo, os primeiros fuxicos, as primeiras fofocas. De início,
lançadas à conta da maledicência e da inveja aos bem-sucedidos e aos exitosos. Depois, as primeiras inconfidências das acompanhantes e, finalmente, a
notícia de gravações e vídeos: ele gostava de meninas e meninos...
De repente, todos se deram conta que o Menino do Rio tornara-se
homem, político influente; primeiro a mídia amordaçada, depois a opinião
pública em geral – todos lenientes com os deslizes do moço. Drogado e homossexual, eram problemas íntimos. Importava que era um bom político,
maneiroso, habilidoso, carismático – mineiro.
Mineiro, não porque fosse do estado de Minas Gerais, mas porque
encarnava, no dizer dos antigos, a figura do lendário político mineiro: sem
extremismos, hábil em compor, expert nas lides partidárias e competente
em manipular as massas. Bom de vídeo, impressionava quando era entrevistado. Competente na fala e esmerado no vestir, em meio a tantos políticos
vetustos ele se destacava e era a alegria da mulherada e do pessoal alegre no
Congresso.
E sempre um passinho atrás, tipo papagaio de pirata, o fiel primo, assessor, chefe de gabinete, sempre aspone: arrumando garotas, garotos, fornecendo o pó, encarregando-se de atender as overdoses, escondendo cadáveres, transportando maletas de dinheiro, limpando a sujeira...
Não se sabe se mandou tatuar, à semelhança de Macarrão, o nome ou
alguma declaração de afeto ao primo famoso, nas costas ou em lugares mais
íntimos. O certo é que a dupla recebeu o apelido de Batman e Robin nas baladas do Rio de Janeiro e em Florianópolis, a linda ilha-capital do Sul.
À medida que galgava as posições políticas, exercia uma força centrípeta, atraindo grupos empresariais nacionais e estrangeiros. Com o tempo,
discretamente associou-se a grupos, que tiveram benesses governamentais
em razão de seu lobby e favorecimento em obras públicas.
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
Executivos e empresários de construtoras, companhias aéreas, mineradoras, bancos e agribusiness passaram a compartilhar o fenômeno com
artistas, músicos, garotas e garotos de programa, traficantes... Tudo de maneira democrática, republicana.
Rico e influente, tornou-se a escolha natural de muitos à candidatura
à Presidência da República. Na França, recebeu a Comenda de Honra da
República Francesa e, em reunião do seletivo Clube Bildeberger (grupo de
iluminados formado pelas casas reais da Europa e banqueiros internacionais
que pretendem o comando de um Governo Mundial), foi apresentado pelo
banqueiro brasileiro Marcio Peralta como o futuro Presidente do Brasil.
ado para anotar as necessidades de Fernando, suas ordens, seus pedidos,
lembretes... porém, com o passar do tempo, o solitário e doentio Clemente
passou a usá-lo para registrar sonoramente todas as atividades de seu ídolo.
Todas falas coloquiais, os discursos, as reuniões, os eventos sigilosos, as orgias – enfim, tudo. Não o fazia por mal. Em seu estado psicótico, sua atitude
significava devoção, compromisso, amizade, fidelidade. Afinal, acreditava
viver não junto a um homem comum, mas a um mito!
É aí que anos de gravações, milhares de fitas, foram transformados
em CDs. Tornaram-se o espólio de Clemente. Ignorado por muitos, mas do
conhecimento de alguém...
Após anos de governos militares sucedidos por governos civis que
foram verdadeiros desastres de corrupção e descalabro; depois de terem passado pela experiência de salvador da pátria, messiânico e psicopata; depois
da opção de um governo pretensamente socialista, a esperança surgia nos
horizontes políticos brasileiros: era Fernando, o Pinóquio engendrado na
marcenaria do concubinato do capital nacional com o capital internacional.
Era o favorito nas pesquisas, e seu único concorrente era candidato da
situação. Havia uma grande vontade de parcela significativa da população,
ansiosa por mudanças estruturais. Tudo indicava que, apesar de seus detratores, Fernando realizaria o sonho de sua família: a Presidência – para a qual
se preparara, para a qual estava predestinado.
No entanto, existe o imponderável. Nem sempre a vontade dos homens
está em consonância com os desígnios de Deus...
Primeiro, o marqueteiro de Fernando era Dennis Steinner!
Segundo, o primo aspone, useiro e vezeiro em acordar próximo ao
meio- -dia, de ressaca seja de drogas, seja de álcool, sempre melequento,
com olhos inflamados, cabelos em desalinho, roupas amarrotadas... Certa
manhã, em plena campanha eleitoral, ao levantar-se confundiu a porta da
sacada com a do banheiro e, tropeçando na esteira de ginástica, precipitou-se
sobre a mureta, estatelando-se dezoito andares abaixo.
O trauma foi grande. Fernando, em plena campanha, ficou dois dias
completamente fora do ar. Afinal, Clemente fora seu companheiro e confidente nos últimos trinta anos. O que Fernando não sabia é que Clemente
tinha, além das conhecidas, uma outra compulsão, seu segredo!
Há mais de vinte anos, Clemente, em viagem à Argentina, comprou
no free shop de Ezeiza um pequeno e bonito gravador. Inicialmente, era us-
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Novamente o imponderável a modificar a História.
EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
CRISTINA
Intrigado, Gottardo, perguntou-lhe o porquê.
No dia seguinte, Gottardo decidiu seguir com as entrevistas na empresa. Solicitou a Bianca que providenciasse a vinda de Cristina. Bianca perguntou-lhe se não queria falar com Helga, já que ela estava com pouco serviço e
não necessitaria substituí-la naquele dia. Gottardo agradeceu, mas insistiu
na presença de Cristina.
Meia hora depois, Cristina encontrava-se diante de Gottardo.
Cristina, mesmo ostentando o padrão da First Team, tinha algo que
saltava aos olhos e a diferenciava das demais. Era algo difícil de ser definido.
Bonita, charmosa, segura de si, elegante no vestir e na conduta, projetava a
imagem de uma moderna executiva. No entanto, Gottardo se permitiu um
pensamento que o remetia a outra expressão usada pelo índio velho da fronteira de Bagé: parecia ser “sapo de outro poço”!
Depois dos cumprimentos iniciais, Gottardo foi logo ao ponto:
Tranquila, respondeu que, estando pouco tempo em São Paulo, quase
não conhecia ninguém, e que como Hugo era o controller da conta que ela
conduzia, e bem relacionado com as autoridades do governo estadual, resolveu pedir sua ajuda e orientação.
“Qual foi a reação dele?”
“‘Puta que pariu! Mas o Dennis parece que pedia isso, com o exibicionismo dele...’, e pediu que eu ligasse de manhã bem cedo para ver os primeiros passos.”
“Como é que reagiu o motorista de táxi?”
“Estava muito nervoso, e dizia para o sequestrador ‘Calma, cara,
calma, cara!’”
“Como é que vocês saíram dali? Saíram juntos?”
“Eu saí com Paulo, um policial marido de uma amiga, quem chamei para me ajudar e com quem fui até uma delegacia para registrar o BO.
O taxista... parece que aguardou um colega, que fora em sua casa buscar
uma chave reserva do carro... a que ele estava usando os caras levaram.”
“O que achas que aconteceu com o Dennis?”
“Acho que está morto.”
“Que arma o cara estava empunhando?”
“Por quê?”
“Não conheço bem armas, mas me pareceu um revólver.”
“O tempo que já passou depois do pagamento do resgate. O fato dos
sequestradores não terem ligado mais... Eu sinto que ele está morto.”
“Tu e o taxista fizeram o retrato falado na polícia?”
“Como era teu relacionamento com o Dennis?”
“Bom, apesar de me levar melhor com a Cacau. É mais fácil trabalhar
com ela.”
“Ele, eu não sei. Eu fui convidada para fazer, porém não pude ajudar
muito, pois quem estava atrás do motorista era o Dennis; eu pude ver pouca
coisa além do nervosismo provocado pelos gritos do cara e pela arma apontada para o Dennis.”
“Teu marido trabalha em quê?”
“Ele não mandou tu saíres também do carro?”
“Meu marido também é jornalista, e é produtor do programa SBT Esportes.”
Solicitada a fazer um relato do sequestro, Cristina repetiu o que Gottardo já sabia, porém com uma novidade: o primeiro telefonema que dera
após o sequestro de Dennis não fora para Cacau, nem para polícia – fora para
Hugo Leal, executivo da ESE.
“Não, ele me ignorou completamente. Só queria o Dennis. Somente
dirigiu--se ao taxista, assim que chegou, batendo com a arma no vidro e
mandando que lhe entregasse as chaves do carro. Inclusive, deixou a pasta e
o celular do Dennis sobre o banco do carro.”
“Mas não foi com o celular do Dennis que eles começaram a se comunicar com a Cacau?”
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
“O Dennis era bicha?”
“Era outro, que ele levava no bolso do blazer, com número do Rio.”
“Qual foi a resposta que o Hugo Leal te deu no dia seguinte?”
“Ele me disse que já colocara a Cacau em contato com o Secretário de
Segurança Pública. Quando conversei com a Cacau, ela me confirmou isso,
e me disse que ele também teria oferecido ajuda no pagamento de eventual
resgate, fazendo um adiantamento do contrato da ESE.”
Apesar de Cristina se mostrar muito senhora de si, preparada para
todas perguntas, Gottardo resolveu arriscar:
“Já saíste com o Hugo Leal?”
“Profissionalmente, várias vezes. Aliás, a cada duas semanas, almoço
ou janto com ele. Na realidade, é determinação do Dennis. Criar um clima
intimista com o cliente. Mesmo a Cacau, o Dennis sempre sugere que ela se
produza com esmero, que procure agradar os clientes.”
“Ele usava a Cacau para manipular os clientes? Ele tinha ciúmes dela?”
“Não acredito. Eles são um casal moderno. Cada um cuida de si.”
“Mas ele mantinha alguns relacionamentos extraconjugais, não?”
“O Dennis era um cara vivido, que já viu, fez e provou de tudo. Mas ele
também gosta de garotas.”
“Drogas?”
“Me parece que no passado foi viciado. Hoje, segundo a Cacau, bebe
e é dependente de medicamentos. Antidepressivos e estimulantes, soníferos
e barbitúricos. Ultimamente, também estava tomando medicamentos para
hipertensão. No passado, era um voraz consumidor de Prozac. Atualmente,
segundo ele mesmo, não dorme sem doses cavalares de Diazepam.”
Gottardo se deu por satisfeito e agradeceu a colaboração de Cristina.
Ela colocou-se à disposição para quaisquer informações que ele viesse a precisar, dizendo:
bar...”
“Gostaria de poder ajudar mais. Não vejo a hora dessa situação aca-
Quando saiu, pareceu a Gottardo que saíra aliviada. Como se tivesse
sido poupada, como se temesse alguma outra pergunta... Qual seria? O que
deixara escapar?
“É o comentário.”
“Já existiu algum relacionamento entre vocês, independente do profissional?”
“O senhor está me perguntando se eu transava com ele?”
“Sim.”
“Não. Apesar do jeito dele, informal, e de suas brincadeiras, comigo
sempre foi profissional.”
“E com Hugo Leal?”
“Não, apesar de que ele sempre dava suas cantadas. Uma vez, inclusive, perguntou-me a mesma coisa: se eu tinha um caso com o Dennis.”
“Qual era a opinião de Hugo sobre o Dennis?”
“Achava que o Dennis era bicha, e que a Cacau merecia coisa melhor.”
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JOÃO CARLOS BERKA
MARLENE
ra ambiental e telemática nos escritórios e no apartamento de Dennis, vistoria física no apartamento. Solicitou ainda todos os celulares de Dennis, bem
como suas agendas, mesmo as mais antigas.
Ao término da conversa com Cristina, Bianca novamente indagou se
ele não queria falar com Helga. Gottardo declinou o oferecimento e solicitou
a presença de Marlene, a gerente administrativa. Enquanto aguardava,
pois Marlene trabalhava no último andar do prédio, aproveitou para solicitar
suco e café. Queria conhecer dona Matilde, a copeira.
Pediu que disponibilizasse Rose, a funcionaria doméstica de Dennis,
para acompanhar a vistoria no apartamento, e também para uma rápida entrevista. Solicitou por último as fichas médicas e odontológicas de Dennis.
Ficou tecendo conjeturas sobre o comportamento de Cristina. Estava
certo de que a moça mentira, e mais de uma vez. Aliás, não podia esquecer
com quem estava lidando. O universo de sua atual investigação era sui generis: todas jovens, jornalistas ou especialistas em marketing – gente acostumada às técnicas de entrevistas. E Cristina era especializada em media
training.
Após essa preliminar, desculpou-se dizendo que aparecera um compromisso de última hora, que lamentava tê-la feito deslocar-se até ali, porém
gostaria de convidá-la para jantar ainda naquela noite, se ela estivesse livre.
Como tinha imaginado, sua proposta foi bem recebida.
Mal acabara seu café, quando Bianca fez entrar Marlene.
Marlene, seguramente, era não somente a funcionária com mais idade,
como a mais antiga da empresa. Começara com Cacau e Dennis, era prata da
casa, ajudara a construir a First Team. Desde a época em que era casada, já
frequentava com seu marido a casa de Dennis e Cacau. Era de total confiança do casal, e confidente de ambos. Há cinco anos viúva, estava na casa
dos quarenta, ostentava rosto bonito, simpático, e um corpo bem torneado.
Tinha somente um filho, que estudava medicina.
Num ambiente notadamente feminino, dirigido por uma figura temperamental como Dennis, Marlene tratava com rara habilidade a mulherada.
Sabia administrar os egos e a competição feminina e, num meio tão rarefeito
moral e eticamente, não deixava se contaminar.
Era evangélica praticante. Dava testemunho de sua condição de cristã,
cumprindo o mandamento de “odiar o pecado e amar o pecador”. Não julgava, não imitava, porém compreendia os meandros da alma humana. Assim,
acabou tornando-se confidente e conselheira não somente de Cacau e Dennis, como de diversas colegas de trabalho. Era do Bem.
Como já haviam sido apresentados em outra oportunidade, no apartamento de Dennis, foi de maneira simpática que saudou Gottardo. Por ter
sentido no encontro anterior que Marlene lhe dispensara um tratamento especial, Gottardo optou por conduzir a conversa de modo informal.
Iniciou solicitando o agendamento das seguintes atividades: varredu-
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Marcaram o encontro no hotel de Gottardo às 20h.
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JOÃO CARLOS BERKA
JANTANDO COM MARLENE
vez, contou que há cinco anos atrás seu marido, ao presenciar a tentativa de
sequestro de uma criança, tentou impedir e foi morto pelos criminosos.
Na hora combinada, Gottardo já se encontrava no hall do hotel quando Marlene chegou para buscá-lo. Ela estava muito elegante, com um vestido
que realçava suas belas formas. Sorridente e olhos luzindo, era visível o prazer que demonstrava com a presença de Gottardo. Este, ao encaminhar-se
para o carro de Marlene, tendo-a à sua frente, não pôde deixar de admirar o
ondular de suas ancas e a perfeição de suas panturrilhas. Sem dúvida, uma
bela mulher.
Gottardo, que pagava para vestir-se informalmente, fizera uma concessão e vestira calça social e blazer. Adepto da filosofia de que há momentos
quando devemos nos despir das máscaras que usamos no cotidiano ao exercermos nossos papéis, enquanto aguardava Marlene decidiu que aquela noite seria uma pausa em seu absorvente trabalho. No seu entender, poderia lidar com sua convidada de maneira tranquila, sem subterfúgios, sem jogo de
cena. Acreditava que deveria se permitir um contato humano sem maiores
pretensões, sem objetivos profissionais. Isto não significava que estava com
segundas ou terceiras intenções. Gottardo não estava à caça, simplesmente
sentia falta de convívio humano puro e simples. Sentia falta de gente. Se, no
entanto, surgisse na conversação fatos novos e significativos, ele não mudaria o rumo da prosa. Afinal, há muito tempo que não era possível, no seu
caso, distinguir o homem do profissional.
Rumaram para o bairro do Jardins, pois tinham reserva no Figueira
Rubaiyat, um dos destinos gastronômicos de Gottardo na capital paulista.
Gottardo, que era velho amigo dos donos, sempre que estava em Buenos Aires ia ao Cabaña Las Lilas, em Puerto Madero, que tinha sido adquirido pelo
mesmos – o que constituiu-se numa novidade, pelo fato de serem brasileiros
oferecendo a melhor parrilla em terras portenhas.
Enquanto degustavam o famoso couvert da casa, fizeram o pedido:
Caixa de Ferro (seleção de frutos do mar grelhados composta de lagosta, lulas, polvo, lagostins, camarões, vieiras, mexilhões e peixe) acompanhada de
um chileno, Chardonnay Single Quebrada Seca, safra de 2008.
Enquanto a comida não vinha, começaram a falar amenidades. Desde
o início, ficou claro para Marlene que teria um bom ouvinte, porém alguém
que não estava disposto a falar de si. Comida, bebida, viagens, a loucura do
trânsito de São Paulo, a criminalidade... enfim, tudo menos ele.
Marlene, simpática, respeitou tal postura e, indagada sobre sua viu-
A partir daí, Marlene, mesmo sem ser provocada, passou a falar de
si de maneira espontânea, com singeleza. Gottardo soube de sua infância e
adolescência no interior de São Paulo, a faculdade cursada de administração
e marketing, o casamento, o filho, o relacionamento com Dennis e Cacau. A
conversão. O trabalho na empresa.
Veio o pedido, e Marlene elogiou a escolha de Gottardo. Já na segunda
garrafa de vinho, mais descontraídos, era visível a empatia entre ambos. Pela
primeira vez em muito tempo, Gottardo, acostumado a econômicos e formais sorrisos, soltou gargalhadas francas e gostosas. Sentia-se bem. O mesmo acontecia com Marlene, com uma pequena diferença: se Gottardo ainda
se policiava, Marlene se manifestava com liberdade e espontaneidade.
De repente, Marlene surpreendeu Gottardo:
“Queria aproveitar a oportunidade, Gottardo, para te contar algo que
julgo importante tanto para o trabalho que você está realizando, como para
nós da empresa.”
“O que é?”
“O Dennis ultimamente andava muito nervoso. Todo mundo achava
que era estresse, por causa das frequentes discussões com a Cacau.”
“Sabes qual o motivo dessas discussões?”
“Sei, era por causa da negociação da Cacau com os australianos. A
Cacau queria vender 30% da empresa em troca da abertura para o mercado
internacional, e o Dennis queria vender toda a empresa. Sempre quando argumentava comigo sobre isso, citava o exemplo das ‘ponto com’, cujos donos
criavam e, assim que passavam a prosperar, as vendiam, ficavam milionários
e iam curtir a vida ou iniciar novos desafios. Ele queria saltar fora, dizia que
estava farto do meio, e que Cacau estava doente, obcecada por dinheiro e
poder.”
“Era somente essa a fonte de preocupação dele?”
“Não. Ele ultimamente vivia com medo. Assustado. Ausente. Dava a
impressão que estava vivendo uma grande ameaça. Pode ser que já estivesse
sabendo de algo. Em diversas oportunidades, me chamava para conversarmos e ficava calado ou divagando, como se tivesse medo de abordar algum
assunto.”
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
“Nunca perguntaste o que estava havendo?”
“Mais de uma vez. Ele dizia que não era nada. Um dia, me falou que
não manifestasse minhas preocupações sobre ele para a Cacau, salientando
que o relacionamento deles tinha chegado ao fim, e que pretendia separar-se
em breve. Uma semana após, num desabafo, a Cacau me disse que estava
difícil aturar o Dennis, que cada vez mais estava saindo de órbita. Desinteressado pelo trabalho e, o que era pior, já não fazia questão de esconder seus
casos com garotas da empresa. Pisei na bola e comentei com ela achar que
estava acontecendo algo mais grave, que Dennis deixava transparecer que
andava com medo de algo. A Cacau me olhou com um misto de surpresa e
contrariedade, e disse que eu estava vendo coisas... mas algo me disse que ela
ou tinha a ver com os medos do marido, ou conhecia as razões desse medo.”
“Achas que a causa do medo de Dennis poderia ser algo relacionado
com Cacau?”
“Não sei, já os conheço há tanto tempo e me considero amiga de ambos, mas às vezes os dois agem de maneira estranha, a tal ponto que tenho a
impressão de que não os conheço bem... como se ambos tivessem dupla personalidade, que atrás de uma vida bem transparente houvesse algo oculto.”
“O Dennis tem desafetos?”
“Que eu saiba, não, mas tem uma pessoa que no passado foi muito ligada a ele – inclusive, de acordo com boatos dentro da empresa, já foi amante
dele, e hoje causa-lhe horror. Já pediu diversas vezes que Cacau a despedisse
e, ao contrário, ela a colocou como gerente geral em São Paulo: chama-se
Cristina. É uma pessoa polêmica, que alia uma imagem de extremamente
profissional e competente a uma fama de personalidade psicótica, mercurial
e sem escrúpulos.”
alguma coisa aconteceu, pois Dennis contratou a Carla para o lugar de Cristina, deixando esta última somente com a conta da Ambev. Três meses depois,
Cristina casou-se com um italiano com fama de ligações com a Cosa Nostra. Dennis e Cacau foram padrinhos do casamento. Meses depois, Cristina
engravida, tem um filho, e seu marido italiano desaparece num viagem de
negócios a Tóquio. Ninguém sabia qual o ramo de atividade dele. Ora Cristina dizia que era comércio exterior, ora dizia que era mineração. Assim que
teve o filho, desligou-se da empresa, e agora, depois do sequestro, Cacau
a recontratou, colocando-a como responsável pelo escritório de marketing
político de Brasília. O interessante é que Cristina é filha de um bispo de uma
igreja evangélica de Brasília que já tem mais de mil templos no Brasil e uns
duzentos no exterior, dono de canais de televisão e rádios. Recentemente
foi eleito senador. Depois, Gottardo, te conto algumas histórias do pai de
Cristina. Também acho que devo te relatar alguns acontecimentos relativos
a Cristina.”
Gottardo perguntou-lhe se desejava mais alguma coisa e, diante de
seu agradecimento, pediu a conta e foram em direção ao Hotel Della Volpe.
No caminho, Marlene disse sem meias palavras que gostaria que o próximo
jantar fosse em sua casa. Gottardo não se fez de rogado, e disse que certamente, considerava o convite uma honra. Poderia marcar, que iria.
Na despedida, em frente ao hotel, Marlene beijou a face de Gottardo com naturalidade e, desejando-lhe boa noite, agradeceu as horas que
passaram juntos.
Gottardo, ao chegar ao seu apartamento, deitou-se vestido na cama e,
absorto, lembrou-se de Montevidéu. Pensou em Marlene e suspirou: “Que
pena!...”
“Que idade tem, essa outra Cristina? É bonita?”
“Se não me engano, deve ter uns 28 anos. Não é bonita, mas também
não pode ser chamada de feia.”
“Cacau sabe dela e de Dennis?”
“Sim, porque, assim que ela entrou na empresa, Dennis, empolgado,
repassava progressivamente as diversas missões complicadas que surgiam,
e ela as resolvia com competência. Foi a responsável pela empresa conseguir
as maiores e mais cobiçadas contas do mercado. Quando Cacau começou a
dar sinais de inconformidade, surpreendentemente Dennis foi para a Alemanha, lá permanecendo três meses. Levou Cristina consigo. No retorno,
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SUMIÇO
Voltaram do almoço às 14h30, e nem sinal de Gottardo, tanto no escritório como no hotel.
Gottardo acordou no horário de sempre, seis da manhã, dirigiu-se
para a sala de ginástica do hotel, onde fez esteira e bicicleta por uma hora.
Voltou ao seu apartamento para uma rápida ducha, e encaminhou-se para o
restaurante onde Cláudio já o aguardava. Tomaram café juntos e combinaram ir para o escritório, a fim de reunirem-se com Marlene para agilizarem
as varreduras e vistorias.
Enquanto Cláudio já dirigia-se ao escritório, Gottardo voltou ao apartamento, abriu o cofre, retirou um envelope e desceu para o hall do hotel. O
manobrista o cumprimentou e viu-o atravessar a rua.
Cláudio, quando chegou aos escritórios, cujas dependências ainda não
conhecia, foi recepcionado por Bianca, que encaminhou-o a uma das saletas
de reunião. Logo em seguida chegou Marlene, e Cláudio pôde notar que Gottardo fora fidedigno em descrevê-la.
Simpática, Marlene solicitou café para ambos. Cláudio se apresentou
e disse que Gottardo já viria para tratarem do assunto que o trouxera até ali.
Para adiantarem o tema, Cláudio solicitou que Marlene fizesse um croqui dos escritórios e do apartamento, sinalizando tomadas elétricas e pontos
de cabeagem estruturada. Marlene pôs-se a fazê-lo, por sugestão de Cláudio,
num quadro branco usado para apresentações. À medida que Marlene desenhava, Cláudio fotografava, permitindo que as diversas áreas fossem desenhadas em detalhe.
Marlene era detalhista, e entremeava as descrições dos desenhos com
uma conversa agradável. Cláudio, ao contrário do sisudo Gottardo, era falante
e, mesmo num portunhol, bem comunicativo. Assim, em meio a cafezinhos,
sucos e bolachas, o tempo passou, e concluíram sua tarefa básica. Cláudio já
tinha fotografado todos os desenhos das instalações a serem vistoriadas.
Eram onze horas. Então deram-se conta de que Gottardo não chegara.
Através de Bianca, souberam que Gottardo não estivera no escritório e sequer telefonara.
Cláudio telefonou para o hotel e solicitou a transferência da linha para
o apartamento de seu amigo. Foi informado que o hóspede não se encontrava. Cláudio, já acostumado a esses pequenos contratempos, tranquilizou
Marlene e convidou-a para almoçarem juntos.
Cláudio disse a Marlene que iria passar pelo Hotel Della Volpe, e se
tivesse notícias de Gottardo, avisaria. Disse-lhe que não se preocupasse. Iria
ao encontro dos especialistas que iriam realizar o trabalho técnico nas instalações do escritório e apartamento.
No hotel, consultou a recepção e os porteiros, então o manobrista
disse-lhe que tinha visto o hóspede atravessar a rua em frente o hotel, e depois o perdeu de vista.
Cláudio achou estranho, pois o hotel situava-se do mesmo lado da
rua que os escritórios, não havia necessidade de atravessar a via. “Pode ter
ido a alguma farmácia, ou ter ido comprar algo que necessitava”, conjeturou Cláudio. O raro é que seu amigo odiava atrasos em compromisso, deixar
as pessoas esperando, ou mesmo não comunicar algum impedimento para
não comparecer a um encontro. Ainda mais que mostrara-se empolgado com
Marlene – não seria descortês. Estranho.
Cláudio foi ao encontro de Coco, a quem contou sobre o atraso de Gottardo. Ele tranquilizou-o: “¡No te preocupes, esos brasileños son todos locos!”
Passaram toda a tarde imersos nos preparativos para o dia seguinte.
E, nessa oportunidade, Coco pôs Cláudio a par de seus trabalhos especiais.
Coco sabia que grande parte da polícia brasileira e dos órgãos de inteligência
operavam um sistema de escutas telefônicas chamado Guardião. No entanto,
a Polícia Civil de São Paulo operava um similar, chamado Sombra. Ambos
sistemas nacionais e fabricados no estado de Santa Catarina, no Sul do Brasil. Coco fizera uma descoberta interessante, porém Cláudio optou por saber
somente na presença de Gottardo.
Por volta das 18h, Cláudio telefonou para o Hotel Della Volpe e recebeu a informação de que o hóspede ainda não retornara. Ligou para sua
acompanhante para aquela noite, convidando-a para tomarem um chope.
Às 23h, já no apartamento de seu hotel com a garota, Cláudio liga novamente para Gottardo – nada no celular, nem no hotel.
Antes de dormir, um pensamento lhe ocorreu: Gottardo ficara impressionado com Marlene. Porém, como sabia muito bem, seu amigo não era de
paqueras ou casos fortuitos. Quem sabe se o viejo não sentira necessidade de
mulher e fora à luta? Não combinava com seu estilo, mas quem sabe... Afi-
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
nal, Gottardo era um profissional experiente e cuidadoso. Não atinava o que
poderia ter acontecido. Devia estar tudo bem...
No dia seguinte, bem cedo, nova ligação para o Della Volpe. Nada,
o hóspede ainda não retornara. Já haviam se passado vinte e quatro horas
desde que Cláudio vira Gottardo pela última vez. Então tomou uma decisão:
ligou para um amigo seu na capital paulista, Lin Yutang, um chinês ligado às
Tríades Chinesas que operavam no Brasil. Lin era um personagem polêmico: ao mesmo tempo que conduzia tráfico de brancas entre o Brasil e a Ásia,
era o parceiro invisível de Law Kin Chong, o capo do contrabando no eixo
Ciudad del Este, no Paraguai, e São Paulo. No submundo paulista, Lin era
tido como um homossexual enrustido e perigoso. Várias mortes lhe eram imputadas, principalmente de mão de obra escrava em confecções no subsolo
do bairro da Liberdade. No entanto, Lin também era bem relacionado com a
polícia paulista, principalmente com o pessoal do DEIC e do DAS.
Após marcar um encontro com Lin, Cláudio ligou para Cacau, cujo
número lhe tinha sido fornecido por Marlene. Para ambos, Cláudio manifestou uma certeza: Gottardo sumira! O que teria acontecido? Temia pelo
pior, afinal este caso tinha todos os ingredientes de uma salada criminosa:
traição, drogas, polícia, ligações internacionais, políticos corruptos...
Na tarde do segundo dia, policiais do DAS acompanhados por Cláudio
abriram o apartamento de Gottardo. Nenhum vestígio ou indício que pudesse elucidar ou dar pistas sobre o desaparecimento de Gottardo.
ENQUANTO ISSO…
Gottardo saiu do Hotel Della Volpe, atravessou a rua e tomou um táxi.
Pediu para o motorista que seguisse para o bairro da Liberdade. Na Liberdade, tomou o metrô, saltando quatro estações adiante. Novamente tomou
um táxi, e rumou para o Largo do Arouche. Lá chegando, saltou em frente
a um modesto hotelzinho, atravessou a pé a praça e dirigiu-se ao Esplanada
Hotel. Bem em frente, de acordo com Cacau e Pedro Carvalho, fora pago o
resgate.
Hospedou-se com o nome João Batista Soares, apresentando os devidos documentos. Pagou, em dinheiro, quatro diárias. Alojou-se e saiu.
Caminhou quatro quadras, entrou numa pequena loja, comprou duas calças
e quatro camisas, uma jaqueta, e saiu. Mais adiante, em outra loja, comprou
um celular e chip pré- -pago. Habilitou o celular e carregou com os créditos
necessários. Tudo em nome de João Batista Soares.
Entrou numa empadaria próxima a onde estava hospedado, comprou
várias empadas e refrigerante, e rumou para o hotel. Já no apartamento,
dedicou-se a fazer algumas chamadas de seu novo celular.
Duas horas depois, tomou uma ducha, trocou de roupa e saiu do hotel,
dirigindo-se ao lado oposto da praça, rumo ao ponto de táxi.
No dia seguinte, nem Cláudio nem a polícia tinham alguma resposta
para o mistério. Cláudio estava extremamente preocupado... A vistoria fora
cancelada, e foi comunicado a Cacau que a prioridade agora era saber o que
tinha acontecido com Gottardo.
Deu a direção ao taxista: Avenida Engenheiro Luiz Carlos Berrini, no
Brooklin Novo. No trajeto, abriu o celular, tirou a bateria e colocou-o dentro
de uma pasta que comprara de um camelô.
Cacau reagiu muito mal: “Só faltava essa, o especialista que é contratado para recuperar o meu marido some!”
das.
Em sua irritação, não quis conversar com Cláudio, chamando seu cunhado, o coronel Guedes, de Brasília, pedindo que lhe fizesse o favor de lidar
com “essa gente”.
Já no destino, deu o endereço exato: Centro Empresarial Nações Uni-
Prédio imponente, de luxo. Na portaria, solicitou os escritórios de
Marcelo Palma. Foi cadastrado, novamente como João Batista Soares. Em
seguida, foi encaminhado ao 18º andar.
Tomou o elevador exclusivo, que servia somente aos últimos andares,
e chegando deparou-se com uma luxuosa recepção atrás de portas de vidro
blindadas. Entre o elevador e as portas, dois indivíduos, como seguranças.
Tinham pinta de policiais da Polícia Militar. Observou que várias câmeras
monitoravam o acesso de entrada, e outras voltadas para as instalações internas.
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
Os seguranças, via rádio, comunicaram-se com a secretária, recebendo a informação de que o doutor Marcelo não se encontrava. Viajara, e somente voltaria na próxima semana.
Gottardo não deixou por menos: “Que porra é essa? Avisa pra esse escroto que quem está aqui é Gottardo. Quero falar com ele, e é agora.”
Um dos seguranças fez menção de partir para cima de Gottardo, sendo contido por seu companheiro, que indagou: “Seu nome, mesmo?”. Apanhou seu celular e, afastando-se em direção à porta do elevador, sussurrou
algumas palavras, e retornando disse: “O doutor Marcelo vai lhe receber”.
Imediatamente a porta de vidro foi aberta, e a secretária o conduziu a
uma saleta, oferendo-lhe café e água. Gottardo declinou a oferta e, escutando
a voz de Marcelo, disse que não estava disposto a esperar a boa vontade dele.
Ato contínuo, abriu a porta de onde vinha a voz e deparou-se com Marcelo numa luxuosa mesa, rodeado de monitores. Sentados, dois indivíduos de
meia-idade e terno, que o olharam surpresos com a invasão.
Marcelo Palma. Tinha raiva só de pensar. Escroto! Um desgraçado
superdotado que, na opinião de Gottardo, era um dos maiores especialistas
em operações financeiras. Enterrava seus talentos, trabalhando sempre para
o crime organizado, políticos corruptos e executivos sociopatas.
Marcelo Palma era sobrinho de um ex-Ministro da Fazenda do Brasil,
economista brilhante. Não negando a genética, formou-se na USP, fazendo
mestrado na Fundação Getúlio Vargas e doutorando-se em Oxford. Morou
seis anos em Londres, chegando a assumir uma diretoria da Shell para os
países da Ásia. Voltando ao Brasil, assessorou um Ministro do Planejamento,
foi diretor do Banco do Brasil, e depois um dos diretores da Agência Nacional do Petróleo. Então começaram suas ligações com o crime organizado.
Primeiro, o pessoal do misbranding, a adulteração de combustíveis; depois,
a área financeira e, por último, a previdenciária.
Sem esperar a resposta de Gottardo, que fechou ainda mais a fisionomia, pois odiava quando lhe chamavam de Barcelão, solicitou que os presentes voltassem outra hora, pois acontecera um imprevisto, e não poderia
continuar a atendê-los.
Nessa última fase, Marcelo fez um upgrade em seu desempenho criminoso, juntando-se a um escroque internacional. Pedro Lezaetta, chileno morando no Brasil há dez anos, apareceu nestas plagas com um sólido currículo,
principalmente na área econômico-financeira. Currículo nunca comprovado – o importante é que frequentava a FIESP (Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo), a FEBRABAN (Federação Brasileira de Bancos), era
comensal de banqueiros, políticos, empresários. Jato e helicóptero próprios,
comprou uma pequena ilha em Angra e um iate que já fora do milionário
Ciço Américo. Marcelo e Lezaetta operavam nas áreas de renúncia fiscal e
previdenciária. Fizeram horrores, porém tinham os parceiros certos, ministros, senadores, etc.
Assim que ficaram a sós, Gottardo foi logo ao assunto: “Sei que tens
contato com tudo quanto é policial bandido e com a rafuagem. Estás me devendo e vim te cobrar. Estou atrás do Dennis, o marqueteiro que foi sequestrado. Quero ele de volta e vivo. O que que tu sabes do assunto?”
Marcelo, sub-repticiamente, conseguiu associar-se a um irmão do
Ministro da Fazenda. Este irmão do ministro, de uma família de quatro, todos espertos, era a ovelha negra – não que fosse bandido ou incomodasse a
família, somente era bocó.
Aparentemente, Marcelo esperava coisa pior, pois pareceu a Gottardo
que relaxara. Já sentado, disse que faria o que estivesse ao seu alcance para
ajudar, que Gottardo lhe ligasse dentro de vinte quatro horas. Gottardo, que
não viera para visita social e sentia asco pela figura diante de si, encaminhou-se para a saída garantindo que no dia seguinte, à mesma hora, estaria
ligando. Já na porta, Marcelo olhou fixamente Gottardo, e disse:
Fazendeiro, vivia encalacrado com financiamentos rurais. Quando não
era queda de safra, era cotação baixa, subida de preço dos insumos. Enfim,
vivia sempre numa pior. Pois bem, Marcelo e depois Lezaetta, e sua sorte
mudou. Abrindo portas para a dupla de meliantes, conseguiu um novo patamar de negócios. Prosperou. Até que um dia a casa caiu.
“Acho que escutei alguma coisa sobre esse sequestro. Se não me engano, é o mesmo rolo da Schincariol. Vou consultar um advogado meu amigo,
que também é amigo dos caras da Schincariol.”
A Polícia Federal invadiu a base de operações da dupla, uma mansão
com heliporto, no condomínio Granja Vianna 4, em Cotia, e Lezaetta e Marcelo foram presos. Fraude previdenciária e crimes contra o sistema tributário,
sistema financeiro, e contra a União.
Gottardo desceu, apanhou um táxi e voltou para o Hotel Esplanada. Já
no seu apartamento, deitado na cama, pensou: “Schincariol? Que porra!...”
Marcelo permaneceu preso três meses, e Lezaetta foi condenado a 25
Marcelo levantou-se e, apesar de mostrar contrariedade, deu um sorriso amarelo e sapecou: “E aí, Barcelão? O que mandas?”
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
anos. Marcelo ficou aguardando em liberdade seu julgamento, e sumiu, até
aquele dia.
Gottardo sabia que, se Marcelo pudesse, o ajudaria. Sabia com quem
estava lidando, e que o que estava em jogo era mais que sua liberdade. Não
arriscaria enfrentar o esquema de Gottardo.
Dia seguinte, saiu bem cedo e apanhou um táxi, dando-lhe o endereço
do Brooklin Novo.
Marcelo não tinha grandes novidades. Disse que falara com seu amigo advogado ligado à família Schincariol, e ele se fechou em copas. Segundo
Marcelo, sabiam de algo, mas esse era um trabalho para Gottardo, não era
sua área.
Depois, contatou seus amigos da 4ª Cia do 12º Batalhão da Polícia Militar e do 6º Distrito da Polícia Civil, e soube algo interessante: uma central
clandestina de escuta telefônica, que opera na área onde Dennis fora sequestrado, captou umas ligações que narravam que, uma semana antes de Dennis
ser sequestrado, quando ele estava nos Estados Unidos, um indivíduo loiro,
com um metro e noventa aproximadamente, foi puxado para dentro de um
carro no trajeto entre o escritório e a residência de Dennis.
“Oi, carioca!”. Quando foi atender e ver quem o estava chamando, foi
atirado para dentro de uma van branca. Três indivíduos fortes o sujeitaram,
até que o motorista, virando-se para trás, diz alarmado: “Não é esse, porra!
Solta logo ele, e vamos embora.”
Portanto, como a viagem de Dennis não estava programada, viajando
ele de súbito, só se pode deduzir que ele já estava “encomendado”. Não fora
fortuito, ou coisa de última hora. Havia mais coisas do que a polícia ou Cacau
diziam.
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
No dia seguinte, Gottardo voltou para o Hotel Della Volpe. Encontrou
Cláudio e vários policiais em seu apartamento. Tudo indicava que ali estava
sendo coordenada uma busca por ele. Ao deparar-se com Cláudio, este perguntou: “O que aconteceu, cara? Estávamos preocupados contigo. Achava
que tinha te acontecido algo!”.
Gottardo, que não queria falar na frente dos policiais, disse que depois
falariam. O delegado que comandava a operação, de cara amarrada, perguntou: “O senhor está bem?”. Diante de sua afirmativa, aduziu que o mais importante é que não lhe tinha acontecido nada de grave; assim sendo, ele e seu
pessoal iriam embora. Estavam putos. Inclusive Cláudio.
Mais tarde, quando Gottardo lhe narrava o que acontecera, Cláudio
reclamou: “¡Pero me avisa, hombre!”
Gottardo disse-lhe que, se ele soubesse o que estava rolando, não teria
sido tão convincente com os policiais. E é isto que ele queria: saber os procedimentos do DAS diante de uma notícia de desaparecimento de pessoas.
Agora, já tinha uma noção, mas o que ficava evidenciado é que as coisas não
estavam batendo. Entre o dizer e o fazer policial havia um hiato. Ele descobriria o que estava faltando e por quê.
A DESCOBERTA DE COCO
No mesmo dia, Cacau mandou um recado, queria conversar com Gottardo e Cláudio antes de fazerem a vistoria. No dia seguinte, foram cedo para
o apartamento de Dennis, onde já se encontravam Cacau, Marlene e a empregada Rose.
Cacau estava irritada e não o escondeu. Perguntou por que Gottardo
desaparecera por dois dias, e por que não entrevistara ainda Helga. No seu
entender, a mesma deveria saber de algo, pois ultimamente conversava muito com Dennis.
Gottardo imediatamente observou que Marlene estava estranha, mal
o cumprimentou.
Respondendo aos questionamentos de Cacau, e tendo em vista o tom
de voz usado por ela, Gottardo foi ríspido:
“Quando a senhora me contratou, ficou explícito que as medidas a serem tomadas obedeceriam a critério exclusivamente meu, que eu não aceitaria
direcionamentos e influências sobre meu trabalho. Sei o que estou fazendo,
e na hora exata a senhora será colocada a par dos desdobramentos do caso.
Quero evitar vazamentos que impeçam as investigações, pois não estamos
lidando somente com criminosos, mas também com uma polícia cuja equipe
neste caso tem tido um comportamento dúbio, com colaboradores e amizades do Dennis que – apesar da hipocrisia e falsidade de suas exteriorizações
de solidariedade – não escondem que o mesmo não faz falta.
“Se a senhora não está satisfeita com meu trabalho, paremos por aqui.
Não vim fazer figuração, e tampouco me permito ser usado para justificar
o comportamento de quem quer que seja. Vim para resgatar seu marido ou
esclarecer o motivo de seu desaparecimento.”
Em seguida, sem dar tempo para a orgulhosa e belicosa Cacau se recuperar, perguntou se no dia seguinte, sábado, poderiam executar os trabalhos
no apartamento, e domingo nos escritórios. Cacau assentiu, e despediu-se
friamente. Marlene saiu antes deles, apressadamente.
Saindo dali, Cláudio e Gottardo rumaram para o apartamento de Coco.
Este declarou que estava pronto para o trabalho do dia seguinte e, a pedido
de Cláudio, contou o que tinha descoberto. Como possuía a backdoor tanto
do Guardião como do Sombra, os sistemas de interceptação telefônica das
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JOÃO CARLOS BERKA
ENGODO
polícias brasileiras, criou um link com seus equipamentos e detectou que:
A polícia continuava a monitorar vários telefones por conta do sequestro de Dennis;
“isca ou qualquer artifício usado para peixes ou aves”
“qualquer manobra ou artifício usado para iludir ou enganar
pessoas, logro, trapaça, burla”
Parte dos números monitorados estavam a descoberto sob o ponto de
vista legal, ou seja, monitoração sem ordem judicial;
Os telefones dos marginais já estavam sob escuta dez dias antes do
sequestro, deixando de ser monitorados seis dias após o desaparecimento de
Dennis;
A voz do primeiro telefonema para Cacau, quando foi usado instrumento para distorção do padrão vocálico, não era a mesma dos telefonemas
posteriores.
Um mistério dentro de outro. Caso enrolado. Os três ficaram por duas
horas trocando ideias, depois saíram para jantar. O assunto continuou, sem
avançar para nenhuma conclusão. Uma coisa era certa, aquele não foi um
sequestro comum, havia sinais de profissionais na ação criminosa. Não eram
bandidos comuns.
O que é marketing? O que é propaganda? O que é publicidade?
O que é media training?
Independente das diversas respostas a essas indagações, existe um
denominador comum: a adoção de técnicas de psicologia de massas visando
modificar, solidificar, alterar, diluir ou cristalizar imagens, conceitos, opiniões e pensamentos nas pessoas, individual ou coletivamente. A arte de bem
embalar. Às vezes, vale o dito popular: “dourar a pílula”.
Pois bem, esse era o negócio da First Team, nisso o pessoal da empresa era bom. Nisso Dennis e Cacau eram ótimos.
A visão remetia à imagem de uma unidade mobiliada num edifício
com apartamentos à venda. Um showroom. Mesmo antes de iniciarem os
trabalhos de vistoria/varredura, Gottardo, Cláudio e Coco tinham em mente
que já haviam passado três meses desde o sequestro. O apartamento já tinha
sido limpo e arrumado por Cacau e Rose, e talvez alguém mais. No entanto,
mesmo cônscio da importância da preservação de local de crime ou relacionado, Gottardo sabia por experiência própria que os locais falam – mesmo
quando alterados e investidos da condição de cenário montado.
O apartamento era amplo. Situava-se num prédio em zona residencial
nobre, com segurança bastante eficiente. Um apartamento por andar. O de
Dennis ocupava dois andares, pois era de cobertura. Finamente mobiliado,
tinha passado por uma reforma recente, feita por um arquiteto amigo de
Dennis. As reformas duraram dois meses. O imóvel estava avaliado em cinco
milhões de reais, fora mais um milhão gasto na reforma.
Como o elevador era exclusivo, o hall era diminuto frente à porta de
acesso à sala principal, onde Dennis recebia seus convidados – comportava,
em caso de coquetéis ou jantares servidos com bufê, cem pessoas, aproximadamente. No mesmo piso, situavam-se mais duas suítes, um ampla cozinha
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JOÃO CARLOS BERKA
(moderna, geminada a uma copa para refeições rápidas), um lavabo; dependência de empregada, completa e confortável, uma despensa para mantimentos e utensílios domésticos, e uma lavanderia.
No piso superior havia a suíte máster, um closet enorme, um escritório,
um estúdio para música e cinema, uma sauna úmida; no terraço, uma piscina frente a uma pequena edícula com churrasqueira, fogão, e forno à lenha.
Somente a suíte de Dennis ocupava uma área de 120 m2. Os dois andares
ultrapassavam 1000 m2.
Para acompanhar os trabalhos, Marlene e Rose foram designadas por
Cacau. Enquanto Coco tratava de dedicar-se à vistoria com scanners, rastreadores de bugs para escuta ambiental, e detecção de recepção e emissão
de radiofrequência, Gottardo e Cláudio vistoriavam minuciosamente armários, gavetas, estantes, mesas, escrivaninhas, móveis, etc... Em tudo acompanhados por Marlene e Rose, que forneciam chaves ou abriam móveis e, por
último, arrumavam o que tinha sido remexido e fotografado.
Perguntada se a polícia tinha feito uma vistoria no apartamento, Marlene disse que não, e que ela e Cacau não julgaram necessário, visto Dennis
ter sido agarrado na rua.
Na primeira hora, Coco encontrou no salão do andar de baixo e no escritório do andar de cima vestígios de que equipamentos foram instalados e
retirados apressadamente – haviam deixado digitais e indícios, mesmo que
corrompidos pelo tempo, em parafusos mal atarraxados, junções de fiação
mal feitas, etc.
Uma hora mais, utilizando uma câmera térmica de origem norueguesa, Coco detectou aparelhos wireless passivos, atrás do lambris do quarto e
da parede do estúdio de som. Inertes, sem emitir qualquer sinal de radiofrequência. De acordo com Coco, num diagnóstico preliminar, somente eram
acionados à distância e em situações especiais, utilizados para transmitir
imagens digitalizadas a um ponto de recepção e controle remoto. Eram aparelhos sofisticados e de última geração, somente detectáveis com as câmeras
térmicas. Óbvio que não era trabalho de algum detetive contratado eventualmente por Cacau para saber detalhes das estripulias de Dennis.
A vistoria que Cláudio e Gottardo executaram serviu para tomarem
conhecimento da imagem que alguém queria projetar de Dennis. Era visível
a composição de um mosaico primário de um excêntrico, doente e ermitão.
Dizem que, para conhecermos o conteúdo de alguém, devemos observar sua estante de livros. Claro que isso se aplicava muito bem antes da
época digital. No entanto, desde que o mundo é mundo, existem verdades
sempiternas, e há coisas que não são normais. Tem coisa que constitui-se
comportamento anormal. Lógico que, nos tempos do “politicamente correto”, poucos assim afirmariam.
Gottardo e Cláudio, entretanto, habituados a frequentarem os ambientes mais diversos e as culturas mais exóticas, nesta quadra da vida já podiam
dimensionar o que estava dentro da normalidade, e o que a extrapolava.
O closet, produto de uma mente doentia, seja ela Dennis ou Cacau e
suas colaboradoras, saltava aos olhos como retrato de uma alma enfermiça.
Dezenas de trajes de grifes famosas, muitos dentro da embalagem, centenas
de sapatos caros, uma dezena de botas de couro cru; centenas de camisetas
polo brancas ou pretas, das quais 52 pretas na embalagem, dezenas de gravatas, dezenas de camisas sociais caríssimas – enfim, roupa íntima, meias,
lenços, jaquetas, sobretudos, malhas para ginástica, coleção de 35 relógios
das marcas mais exclusivas, 46 pares de abotoaduras e alfinetes de gravatas... Num pequeno cofre, que foi aberto por Marlene, passaportes vencidos,
joias masculinas, e uma pequena agenda, datada de 1996.
No toucador da toalete da suíte de Dennis, dezenas de frascos de loção
pós--barba, perfumes, desodorantes, sabonetes, xampus, gel hidratante – a
maioria importados, e todos caríssimos.
Num dos criados-mudos, medicamentos e preservativos em profusão.
Gel lubrificante íntimo, cremes para diversas finalidades sexuais, objetos
variados para exotismo sexual, vibradores, bolinhas tailandesas, etc. Os medicamentos e preservativos todos em embalagens íntegras, ainda não usados. Muitos e de marcas variadas.
No estúdio de som, num dos móveis, o mesmo conteúdo do criado-mudo. Revistas pornô, todas com temática de sexo grupal ou gay. Filmes
policiais e de faroeste, poucos; pornôs, muitos.
Ainda no closet, atrás de travesseiros e cobertas para inverno, filmes
pornôs, uma filmadora e um tripé. Não foram encontradas filmagens caseiras, produzidas pelo próprio Dennis ou seus acompanhantes.
Num móvel junto às instalações sanitárias da piscina e edícula, cremes
de filtro solar, bronzeadores e medicamento para inflamação ginecológica.
Nenhum vestígio de drogas. Porém, em todas as dependências, exceto na cozinha, sauna e lavanderia, frascos e bonbonières repletas de balas,
bombons e chocolates.
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No bar do salão de recepção, várias garrafas de uísque e muita vodca,
a bebida preferida de Dennis. Uma coleção de outros destilados, e bastante
cervejas importadas, tchecas e alemãs. Junto ao bar, uma adega móvel com
mais de duzentos rótulos, em sua maioria italianos, franceses, sul-africanos,
chilenos e alemães.
Ao terminarem, combinaram que no dia seguinte, sábado, à tarde,
Cláudio conversaria com Rose.
ROSE
Sábado pela manhã, Gottardo e Cláudio resolveram ir a um shopping
para pôr o papo em dia e comprar coisas que necessitavam. Almoçariam no
próprio shopping, e à tarde Cláudio iria ao apartamento para conversar com
Rose. Gottardo voltaria ao seu hotel para escutar material produzido por
Coco.
Durante o almoço, Cláudio contou a Gottardo que Lin Yutang tinha
telefonado, dizendo que havia um pessoal que teria informações sobre o caso
de Dennis. Gottardo resolveu que segunda-feira à tarde poderia falar com
essas pessoas indicadas por Lin.
Ao se despedirem, combinaram que depois Cláudio iria ao hotel de
Gottardo para relatar a conversa com Rose. Gottardo, ao passar diante de
uma vitrine, viu algo que lhe interessou. Comprou-o e dirigiu-se ao hotel.
Ligou para Marlene, solicitando que disponibilizasse Helga para entrevista na segunda bem cedo. Tudo certo.
Marlene continuava fria.
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Cláudio foi recebido às quinze horas por Rose, que já o esperava com
suco e café. De imediato, comunicou que tinha recebido instruções de Cacau,
no sentido de falar tudo, procurar ajudar o mais possível, fornecendo o máximo de detalhes.
Inicialmente, Cláudio solicitou-lhe que falasse um pouco de si.
“Tenho 42 anos, um metro e sessenta, sou solteira e tenho um filho
de 13 anos. Trabalho para o Dennis há quatro anos. Atualmente, tenho um
namorado.”
“Há quanto tempo namora ele? E o que ele faz?”
“Eu vou te contar uma coisa: tem uma garota com quem o Dennis estava saindo, e ele quando bebia contava tudo para ela. Ela nos contou que o
Dennis lhe confidenciou que três vezes, quando estava bêbado, ele transou
contigo. Uma na sua cama e duas no tapete da sala. Que ele te fez beber muita vodca e te filmou de quatro, transando com ele.”
Rose, que estava bem à vontade, ficou sem graça, mas afirmou:
“Se é para eu falar tudo, então... é verdade. Só que depois eu pedi pra
ele desgravar o que nós tínhamos feito, e ele rindo me disse que somente
fingiu que estava gravando, que ele não iria fazer uma sacanagem dessas
comigo.”
“Namoro há dez meses. Trabalha numa loja de material elétrico.”
“A Cacau sabe disso?”
“Qual o nome dele? E qual o número de telefone?”
“Deus me livre! Ela me manda embora na hora. Não por ciúmes, que
ela não dá bola pra ele, mas porque eu faltei com a confiança que ela tinha
em mim... Inclusive, porque era eu quem dizia para ela sobre as gurias que
vinham aqui.”
“Osvaldo. O número do celular dele é 971116935.”
“Você dorme no emprego?”
“Às vezes, quando tem jantar ou festa, ou quando o Dennis me pedia.”
“O Dennis costumava viajar muito?”
dias.”
“Raramente. Quase que só para ver os filhos no Rio, a cada quinze
“Ele trazia homem para o apartamento? Você acredita que Dennis era
homossexual?”
“Que eu tenha visto, somente amigos, funcionários da empresa, clientes. Nunca achei que ele fosse veado.”
“Ele ficava bêbado com frequência? Se drogava?”
“Quando ele viaja, o apartamento fica vazio ou com você?”
“Ele bebia suas vodcas. Tomava os remédios para poder dormir, mas
nunca vi ele com drogas.”
“Quando ele viaja, eu fico dormindo aqui.”
“O teu namorado costuma dormir aqui?”
nis.”
“Só dormiu duas vezes. Uma quando ele foi para a Itália, e outra antes
de ser sequestrado, quando ele foi para os Estados Unidos.”
“O Dennis soube que o Osvaldo dormiu aqui?”
“Não. Ele me disse que, se soubesse que eu trazia homem para dormir
aqui, ele me despedia.”
“Já transou com o Dennis?”
“Não, ele me respeitava muito. Nunca houve nada que eu pudesse reclamar.”
“Sei que é chato, mas gostaria que tu me falasse das transas do DenRose foi detalhista:
“Havia uma garota fixa, que é funcionária da empresa, uma magrinha
alta, a Helga, que há dois anos vinha para o apartamento umas três vezes
por semana. Essa, ele não escondia. Ela entrava a hora que queria, às vezes
dormia, e às vezes mandavam vir um táxi para ela ir embora. Havia uma outra que veio algumas vezes, mas depois parou. Parece que é a secretária dele,
o nome é Bianca. Houve também uma jornalista da Globo, uma que fazia o
jornal da manhã. Não me lembro do nome dela.”
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“A Marlene já dormiu aqui?”
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“Só quando a Cacau estava.”
“Massagista?”
“Você acredita que a Marlene já teve algum caso com o Dennis?”
“É, da academia que o Dennis frequenta.”
Rose deu um risinho. “Só se a Cacau pedisse.”
“E os caras que fizeram a reforma? Você chegou a conhecê-los?”
“Gostaria que tu me falasse de coisas que achou estranhas.”
“Bem, tem duas coisas que me estranharam: tinha uma garota que eu
nunca vi, porque o Dennis me trancava no quarto até ela ir embora, e às vezes ela só ia perto do meio-dia, atrasando todo o meu serviço. Eu sabia quando ela vinha, porque na véspera ele me pedia que comprasse frutas e queijos
finos numa loja aqui perto.
“Outra coisa: eu já estou acostumada com camisinhas no banheiro,
tubinho de creme para lubrificação, lençóis sujos... mas houve duas vezes em
que eu tive que jogar a roupa de cama fora, não dava para lavar. Joguei no
lixo.”
“Quando eles tavam trabalhando final de semana, e o Dennis ia para
o Rio, ele pedia que eu ficasse no apartamento. Teve um deles que deu em
cima de mim!”
“Conseguiu?”, perguntou Cláudio, sorrindo.
“Infelizmente, sim.”
“Por que infelizmente?”
dio.”
“Contou para o Dennis?”
“Sangue?”
“Sangue, esperma, creme, fezes – uma sujeira só. Dava a impressão
que tinha mais que duas pessoas na cama.”
“Contei, ele ficou puto, e pediu ao encarregado da obra e ao arquiteto
que demitissem ele...”
“Demitiram?”
“Como era a saúde do Dennis?”
“Ferrada. Sofria do coração. Por duas vezes, o médico teve que atendêlo em casa. E era viciado em remédios, tomava de tudo: para dormir, para
trabalhar, para comer e beber... Acho que até para transar...”
“O arquiteto não queria. Acho que tinha algum rolo com esse cara, que
era bem mala. Não sei se era droga ou veadagem.”
“O arquiteto era veado?”
“Como era o relacionamento com a Cacau?”
“Veado e drogado. Cheirava, inclusive na frente do Dennis.”
“Bom. Se davam bem, conversavam muito – mas dormiam separados.
Eu até estranhava, porque a Cacau é uma mulher bonita, enxuta. Mais pareciam sócios, e não marido e mulher.”
Continuaram conversando mais algum tempo sobre a alimentação de
Dennis, as exigências com sua roupa, a proibição de atender o telefone (no
apartamento, somente ele atendia), sobre seu jeito de tratá-la, etc.
“E os filhos? Vinham para São Paulo?”
Cláudio se dera por satisfeito, agradeceu e foi embora.
“Só nas férias. O Dennis era apaixonado por eles. Ligava duas, três
vezes por semana.”
“Quem frequenta o apartamento, além da Helga e da Marlene?”
“A Carla vem muito aqui. O massagista vem uma vez por semana.”
“Porque um dia eu peguei ele mexendo nas coisas do Dennis, no estú-
À noite, já em seu hotel, Cláudio, que tinha fornecido o número de um
celular seu para Rose, recebeu uma chamada dela, dizendo que lembrou-se
de mais um fato: Dennis raramente convidava alguém para almoçar no apartamento em dia de semana. No entanto, há uns seis meses atrás, uma moça
que já fora funcionária da empresa almoçou no apartamento em todos os
dias de uma semana. E ela, Rose, percebeu que não havia clima de romance,
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“Não sei. Tenho minhas dúvidas. Às vezes, fico em dúvida se pagaram
o resgate, fico em dúvida se ele foi mesmo sequestrado. Tem horas que penso
que ele está morto... outras, que sumiu...”
eram negócios. O nome da moça era Maria Helena.
HELGA
“Como ‘sumiu’?”
Na véspera, era para Gottardo e Cláudio terem se encontrado à noite,
mas o cansaço de uma semana complicada fez que desistissem da ideia.
Segunda-feira, às oito horas, Gottardo já se encontrava nos escritórios
da First Team. Bianca, Helga e dona Matilde, da copa, também estavam lá.
Aceitou um cafezinho e imediatamente chamou Helga para conversarem.
Helga era bonita. Um rosto bem esculpido num corpo bem torneado.
Porém, mais da metade das funcionárias da empresa eram mais atraentes
ou mais bonitas do que ela. Loira bronzeada, cabelos médios, olhos castanho-claros, um metro e setenta e cinco de altura, corpo malhado. Cursava o
último semestre de educação física. Nada excepcional, mas algo fez que Dennis se apaixonasse – e isso era visível, o que gerava ciumeira na mulherada,
especialmente em Cacau.
De acordo com Bianca, Helga estava sofrendo um isolamento geral:
raramente alguém dirigia a palavra a ela, e Cacau teria dito que iria demiti-la
em breve.
Gottardo contava com esse clima adverso para transformá-la em aliada. Por isso, de caso pensado, deu para Helga, de maneira que as demais
funcionárias (principalmente Bianca, que estava na sala ao lado) a vissem
através das divisórias de vidro, uma ursinha que ele comprara na véspera,
no shopping, e que por coincidência tinha o nome HELGA bordado no peito.
Helga recebeu a lembrança com um misto de perplexidade, desconfiança e contentamento. Pequenos gestos... Gottardo gostava de atalhos.
“Já sabes o que estou fazendo na empresa. Conversei com quase todas, faltam somente umas dez, entre elas, tu. Preciso da tua ajuda. Sinto
que todos aqui, mesmo solidários com a Cacau e saudosos do Dennis, estão
anestesiados pelo tempo que tudo sara, que faz esquecer. No entanto, tenho
a impressão de que quem mais pode me ajudar, e eventualmente ao Dennis,
és tu. Por razões que ambos conhecemos.
“O que que tu achas que aconteceu, que ainda não devolveram ele,
mesmo depois do pagamento do resgate?”
“Vou contar um coisa que tem me atormentado: o Dennis estava cada
vez mais insatisfeito com a vida que levava, e cada vez mais grudado em
mim. Um dia, mais ou menos dois meses antes do sequestro, ele me perguntou se queria ‘vazar’ com ele, sem deixar pista, e irmos morar em outro país e
começarmos vida nova. Disse que, se eu topasse, se casaria comigo.”
“E tu?”
“A ideia me assustou, e pedi um tempo para pensar. Afinal, tinha só 21
anos, estou fazendo faculdade. E tinha os meus pais. Sou filha única, e uma
coisa dessas iria deixá-los arrasados. Agora sou noiva, e eles nem imaginam
qualquer coisa entre eu e o Dennis.”
“És noiva? Teu noivo sabe? Aceita?”
“Meu noivo é um cara bom e gosta bastante de mim. Nem imagina,
inclusive. Espera eu me formar para nos casarmos.”
“O que ele faz?”
sado.”
“Ele é tenente do Exército. Terminou a Academia Militar no ano pas“Qual é o teu sentimento em relação a ele?”
“Eu gosto dele. Inclusive, sempre pensei em casar com ele. Eu esperava que esse rolo com o Dennis passasse, e ele não ficasse sabendo. Que isso
ficasse no meu passado. Mas, agora, tenho pensado que dificilmente ele não
ficará sabendo. Uma hora dessas a polícia acaba me interrogando, saindo na
imprensa, e eu estou ferrada. Ele não merece isso, é um cara correto, criado
com todo carinho pelos pais, e tenho certeza que me ama. Tenho vergonha e
arrependimento do que fiz para ele. Fui sacana. Mas, como dizia a Bianca, o
meu lado negro casou com o lado negro do Dennis.”
“Será que teu lado negro se equivalia à negritude do Dennis? Promiscuidade, drogas, vida loca?”
“Não sei. Droga não é o meu barato. Bebida e cigarro também não.
Acho que entrei nessa porque o Dennis era um cara envolvente. E comigo,
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em especial, muito atencioso, carinhoso. Nem era somente sexo, porque não
era isso que me mantinha ligada a ele. Era o cara experiente, vivido, conhecedor das coisas e das pessoas, o jeito de conduzir a mulherada da empresa,
as ‘sacações’ que tinha para as campanhas... Sei lá, não era nenhum Adônis,
mas tinha seu charme. Meio mafiosão. Sem limites. Acho que a Branca tem
razão: o lado negro dele é que atraiu.”
“Como era o relacionamento do Jarbas com a Cacau?”
“Normal... Mas, como eu estava contando: o Jarbas, assim que o Dennis foi sequestrado, passaram-se três dias e ele pediu demissão. No mês seguinte, a Petrobras fez um acordo com a Cacau, que passou a conta para o
Jarbas. Ele nunca mais apareceu na empresa, nem sequer telefonou.”
“Mas, antes do Jarbas aparecer na conversa...”
“Como começou?”
“Eu já estava trabalhando na empresa três meses, ele passava pela
minha baia e somente cumprimentava. Um dia, fui até sua sala entregar um
material que a Carla deixou para ele, pois estava viajando. Ao sair, ele me
chamou de volta e disse que sexta tinha uma feira em Salvador, e que a empresa tinha um estande, no qual duas garotas da filial do Rio iriam trabalhar,
e ele precisava que eu o acompanhasse. Ficaríamos sexta, sábado e domingo.
Não me perguntou se queria, se podia. Por último, disse que a Bianca iria
comigo até uma loja para comprar roupas para o evento. Comuniquei aos
meus pais e ao meu noivo que teria que trabalhar em Salvador, mas não contei que viajaria com o Dennis.
“Na sexta, já na feira, após as 21h me convidou para jantar, deixando no estande as duas funcionárias do Rio. Fomos a um restaurante caro,
comemos frutos do mar e bebemos vinho. Bastante. Depois, nos dirigimos
para o hotel onde estávamos hospedados, indo cada um para sua habitação.
Quinze minutos após, toca o telefone: era o Dennis, mandando que eu fosse
para o apartamento dele. Fui, e ali começou. Já faz dois anos.”
“Pois é, o clima na empresa está horrível para mim. Ninguém, exceto a
Bianca, fala comigo. A Cacau me olha enviesado, e sei que disse para a Marlene que a primeira que ela vai demitir sou eu. Não sei o que vou fazer com o
meu noivo, e tenho pavor que os meus pais saibam e sofram.”
Nisso toca o celular de Gottardo. Era Cláudio:
“Preciso falar contigo. Vamos para o hotel e almoçamos lá mesmo?”
“Tudo bem. Daqui a meia hora estarei lá.”
Desliga.
“Helga, necessito sair, mas gostaria de continuar essa conversa esta
noite. Podes faltar à aula? Gostaria de te convidar para jantar, para podermos falar à vontade, sem nos sentirmos vigiados pelo pessoal aí fora atrás
dos vidros. O que achas?”
“Tudo bem. Vou lhe dar meu telefone, para podermos marcar.”
“Helga, como é que estás te sentindo?”
“Péssima. Atordoada. Na realidade, não sei o que fazer. Tenho vontade de pedir minha demissão, mas considero que este não é o momento. Não
quero fazer o que o Jarbas fez.”
“Quem é o Jarbas, e o que ele fez?”
“Na empresa trabalham poucos homens, e o Jarbas era o único que
tinha um relacionamento mais estreito com o Dennis. Viajavam juntos, participavam de feiras nos Estados Unidos e Europa, pode-se afirmar que eram
amigos. Almoçavam ou jantavam com frequência juntos, e a conta mais importante da empresa, a da Petrobras, era conduzida pelo Jarbas. Existe um
bar e restaurante gay da moda em São Paulo, que pertence a uma rede, ao
qual o Dennis ia somente com a Cacau ou com o Jarbas, ou com os dois juntos.”
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CARLA
1.
Ela confirma a importância de Helga para Dennis;
2. Parece que a dependência que Dennis teve no passado, em relação
a Cacau, transferiu-se para a Helga;
Cláudio já estava esperando Gottardo quando este chegou ao hotel.
Gottardo estava incomodado. De mau humor.
“Tem vagabundo me seguindo. Não dá para saber se são policiais ou
quadrilheiros. A pinta é de fuleiros, que não sabem fazer direito seu trabalho.
Me dá a vontade de pegar um cara desses de jeito, levar e ensinar. Tenho o
palpite que este trabalho não termina sem que tenhamos que ensinar boas
maneiras e juízo a alguém. Uma lição para não subestimarem o pessoal da
melhor idade.”
3. O caso com a Milena, amiga da Cacau e jornalista da Rede Globo,
parece que foi por vingança, já que houve um zum-zum-zum que a Cacau
estava tendo um caso com um cara da área de petróleo;
4. Na opinião dela (Carla), Dennis era bissexual. Diz que, inclusive,
aparentemente estava envolvido com um garçom de um bar gay que ele costumava ir às vezes com a Cacau. Uma vez ele levou a Carla junto com ele;
quando estavam saindo, o garçom também estava saindo, de moto. Dennis
fez o seguinte comentário para Carla:
“Calma, viejo, o que não podemos é deixá-los descobrir Coco e seu
ninho. Aí, teríamos problemas.”
“Viu a maneira sensual que ele monta naquela moto?”
“Bem, vamos ao que interessa: acabo de falar com Helga. Tenho certeza de que estamos chegando à nossa mais importante fonte de informação.
Afinal, nos dois últimos anos ela foi sua confidente, seu esteio. Hoje à noite
vou jantar com ela e gostaria de gravar. Amanhã cedo fazemos o balanço, e à
tarde os relatórios de Coco.”
“Bom, de minha parte acredito que acertamos em escolher como alvo
externo a Carla. Tenho saído com ela, já conheci sua família e já marcamos
uma viagem a Buenos Aires quando tudo isto acabar. É uma boa menina,
carente, e parece que foi muito fiel ao Dennis. Ele era um cara esperto, soube
escolher e manipular direitinho a pessoa que queria para administrar os escritórios, ser os seus olhos e ouvidos. Embora ela negue, tenho certeza que
transou com ela, mas só na medida certa para gerar cumplicidade – sem
maiores envolvimentos, para ter liberdade de ação. Afinal, galinhar era sua
prioridade.”
“O filho da puta era hábil. Nem árabe consegue manejar seu harém
com tanta habilidade. Uma era confidente da outra, outra cafetinava a próxima, a bola da vez.”
“Buceta da vez, hombre!...”
5. Este mesmo garçom sempre era chamado para servir nas festas
no apartamento de Dennis;
6. Um dia, Dennis foi ao bar e não encontrou o garçom. Ele estava
com um funcionário chamado Jarbas. Soube que fazia quatro dias que Igor,
o garçom, não vinha trabalhar. Dennis saiu nervoso do bar e pagou um táxi
para levar o Jarbas a seu destino, enquanto ele voltava para o apartamento.
No dia seguinte, Carla estava com ele em sua sala na empresa, e alguém ligou
no seu celular. A polícia achara o corpo de Igor, desovado em Suzano. Dennis
ficou fora do ar, sentiu-se mal, teve que tomar um medicamento para baixar
a pressão junto com um chá que a dona Matilde lhe trouxe, e foi para casa.
No próximo dia, não foi trabalhar;
7.
De acordo com a Carla, ele pretendia separar-se da Cacau. Quando tomava umas vodcas e a investia da condição de confidente, dizia que
tinha casado com outra mulher: casara-se com uma deusa, e hoje vivia com
um bruxa. Disse, certa tarde no escritório quando chamou Carla para bater
papo, que às vezes tinha a impressão de que um dia a Cacau acordaria com
pernas peludas e cascudas, com asas e antenas – um gigantesco inseto, uma
barata como a da Metamorfose, de Kafka;
8. Nem todos os seus negócios ou contatos eram do conhecimento
de Cacau;
“É, mas como estavas contando...”
“Ela tem me contado muita coisa. Algumas tenho gravadas, mas o
mais importante são alguns pontos”. E relatou:
9. Carla sabia por alto que Dennis voltara a ter negócios com seu
antigo sócio, Gert;
10. Havia um cara que ligava periodicamente para Dennis, e este so-
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JOÃO CARLOS BERKA
mente o retornava num telefone que possuía dentro de um armário de ferro
na toalete de sua sala. Era um pequeno telefone que ele periodicamente mudava de chip, sempre de outros estados.
Um dia, Carla foi chamada por Dennis e solicitada que pegasse seu
carro e fosse até Guarulhos, apanhar um amigo de Dennis que estava chegando do exterior. Era para levá-lo a um sítio nas redondezas de Embu. Foi
orientada a não deixar ninguém saber dessa incumbência, principalmente
Cacau. Chegando ao aeroporto, foi aguardar no desembarque internacional o passageiro, que viria num voo da Alitalia. Trinta minutos depois, um
indivíduo olhando para a plaquinha que ela envergava, com os dizeres “Rio
Maravilha”, dirigiu-se a ela: “Carla?”
Confirmando, observou que seu interlocutor tinha aproximadamente
45 anos, era loiro de olhos azuis, um metro e oitenta e cinco, e tinha pinta de
cheirador.
A caminho de Embu, o visitante ligou para Dennis e, bem formal, disse
que aguardava “aquela pessoa esta noite no sítio”, que tudo tinha dado certo
e que precisavam conversar. No dia seguinte e no subsequente, Dennis não
veio ao escritório. Ao telefonar para Rose, no apartamento, Carla soube que
havia dois dias que ele pegara uma sacola e saíra dizendo que voltaria no dia
seguinte. Passado um dia, ele ligou dizendo que iria demorar um pouco mais.
No terceiro dia, apareceu no escritório e não fez nenhum comentário.
11. Carla diz que às vezes tem a impressão de que existe outro Dennis.
Tem a impressão que ele tem vida dupla, somente não sabe se do ponto de
vista pessoal ou profissional, ou ambos;
12. Dennis, de uns dois meses para cá, vivia nervoso e ríspido, e nos
últimos dias parecia que estava com medo de algo. Mais de uma vez pediu
para Carla levá-lo em seu carro para o apartamento;
13. Ele tinha pavor da Cristina, a primeira, que no seu dizer era “um
demônio”. Várias vezes ela presenciou discussões de Dennis com Cacau
porque ele queria que a despedisse, e ela alegava que no momento não poderia fazê-lo. Chegou a confidenciar a Carla que só em lembrar que no passado tinha transado com Cristina, isso lhe dava calafrios. Dizia que tinha a
impressão de ter transado com o próprio Satanás. Nesses momentos, ficava
totalmente irracional e alterado. Uma coisa interessante que Carla diz ter
observado é que Cristina tratava Dennis com naturalidade, mas com velada
ameaça. Como se tivesse o rabo de Dennis preso... Já com Cacau, transparecia sutil cumplicidade...
14. Que Dennis, um dia, ao discutir com Cacau em seu gabinete e ignorando que Carla estava no banheiro, aos gritos disse:
“TIRA ESSA PORRA DAQUI, ELA AINDA VAI NOS FUDER! UMA
PUTA LIGADA AO PCC, AGORA AINDA PEGA ESSE CONTRATO DE MERDA COM ESSES BANDIDOS DOS COMBUSTÍVEIS... TU ESTÁ FICANDO
LOUCA, CACAU, O DINHEIRO TÁ TE DEIXANDO LOUCA! ACABA COM
ISSO, DEMITE ESSA FILHA DA PUTA!”
Carla ficou quieta mais um tempo e esperou Cacau sair, o que fez sem
dizer uma palavra e batendo a porta. Dennis, surpreso ao vê-la ali, disse com
voz rouca e os olhos vermelhos: “Carlinha, por favor, esquece o que você ouviu. Não conta para ninguém, nem deixa a Cacau saber que estava aí!”.
Agora Gottardo perguntava a Cláudio a esse respeito:
“Sobre as negociações de venda da empresa, ela não falou nada?”
“Falou... Se me permite, falemos disso hoje à noite, pois temos antes
que falar dos caras que vamos encontrar agora em seguida.”
“Tudo bem. São aqueles caras amigos do Lin? Olha, Cláudio, sempre
precisamos ter contato com um monte de escrotos para fazermos nosso trabalho, no entanto tu sabes a minha opinião sobre esse tal de Lin. Não gosto
dele e acho uma temeridade a gente lidar com ele. O cara não presta, e tenho
a sensação que vai nos trazer dor de cabeça.”
“Não se incomode, deixa o Lin comigo, é responsabilidade minha. Se
ele aprontar alguma conosco, sou o primeiro a enfiar-lhe uma bala na cabeça.
Mas vamos ver o que esses caras têm de concreto, pois apesar de tudo ainda
continuamos no escuro – ainda mais por não podermos contar com a polícia.”
“Bom, como ficou combinado?”
“Às 15h, aguardamos na calçada do posto de gasolina da esquina. Um
deles vai passar num Honda Civic cinza, e parar. Eu já conheci o cara. Então,
se for ele mesmo, entramos e seguimos ao encontro do segundo. O negócio é
o seguinte: o Lin disse que os caras podem entregar o Dennis!”
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“E tu acreditaste?”
“Vamos ver, não temos nada a perder!...”
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FRENTE A FRENTE COM OS SEQUESTRADORES?
Foram para a praça de alimentação e dirigiram-se a uma lanchonete.
Gottardo achava interessante o fato do indivíduo não se incomodar com a
profusão de câmeras no local.
Às 15h estavam no local combinado, e em seguida surgiu o Honda.
Cláudio entrou primeiro, ao lado do motorista, e Gottardo atrás. Mal
se cumprimentaram e, premidos pelo trânsito, arrancaram, parando cem
metros adiante, no estacionamento de uma farmácia. O motorista aparentava 40 anos, era claro, com olhos castanhos e cabelos encaracolados, magro.
Tinha na fisionomia os tiques de policial ou militar. Ao parar o carro, voltouse para seus passageiros, pediu a identidade de ambos e fez menção de passar um scanner para detecção de equipamentos de uso individual. Gottardo
deu seu cartão de consultor, e o mesmo fez Cláudio. Gottardo solicitou que o
motorista se identificasse, e este disse não ter nome, nem identidade, manifestando a intenção de passar seus passageiros pelo detector, ao mesmo tempo que solicitava seus celulares.
Gottardo e Cláudio pediram café e água, e o sujeito pediu dose dupla
de uísque. Imediatamente foi ao ponto:
“Temos condições tecnológicas para localizar o cativeiro. Localizado,
podemos repassar a direção para os senhores, e vocês se encarregam do resgate do sequestrado, ou o resgatamos nós mesmos.”
“Quanto?”
“Para nós, nada. Somente queremos o crédito do êxito, para vendermos nossos serviços especializados. Mas, para isso, temos que afastar a
equipe do DAS. Eles topam, mas fazem duas exigências: cem mil dólares e o
afastamento do senhor Gottardo da operação.”
“Prazo?”
Gottardo, irritado, disse que não estava disposto a participar de joguinhos “capa e espada”, que já identificara-se como um profissional autônomo, exigindo a seu interlocutor que se identificasse.
Cláudio procurou contemporizar, dizendo a Gottardo que estava tudo
bem e que deveriam levar as coisas um pouco mais adiante, para ver como
ficavam. Na sua opinião, não era hora de seguir a cartilha.
Entregaram seus celulares, os quais foram abertos e, após retiradas as
baterias, passados pelo scanner.
O motorista então seguiu em direção ao shopping mais próximo. No
caminho, quando um semáforo fechou à sua frente, o motorista repentinamente apanha os celulares que estavam sobre o painel do carro e os entrega,
esticando a mão para um motoqueiro, que seguiu em frente.
disse:
Furibundo, Gottardo colocou a mão sobre o ombro do motorista e
“Tu és bem folgado, cara! Para essa porra desse carro.”
“Fique tranquilo, quando nossa conversa acabar, nós devolvemos.”
Após entrarem na garagem subterrânea do shopping e estacionarem,
nova revista corporal com o scanner. Desta vez Gottardo não se incomodou,
queria ver no que daria aquilo tudo.
“Tão logo o DAS se afaste, imediatamente operamos.”
“Bem, nos deem até amanhã à noite, e retornaremos.”
“Necessitamos de uma resposta ainda hoje à noite. Ah! Uma pergunta:
se a vítima já estiver morta, há interesse em recuperar o corpo?”
“Tenho instruções precisas de minha cliente: se porventura foi pago
resgate após o Dennis estar morto, ela quer ir embora do Brasil, pois não
quer criar seus filhos numa terra sem lei. Me disse que, com o dinheiro de um
novo resgate, eu o usasse para não deixar nenhum dos envolvidos – sejam
bandidos, sejam policiais, negociadores, intermediários, etc – vivos.”
Antes de saírem, Gottardo disse que somente voltariam a conversar
se da próxima vez comparecesse junto com ele (o proponente) alguém que
pudesse se identificar e fosse conhecido de gente da área em Brasília. O indivíduo topou e disse que na noite seguinte viria junto um chefe dele, militar
com passagem na área de inteligência.
Ao saírem, a figura deixou a conta para Gottardo pagar. Gottardo, que
não estava nos seus melhores dias, disse que as doses (àquela altura já eram
três duplas) seriam pagas por quem consumiu. E, num grunhido: “Quero os
nossos celulares de volta imediatamente!”
50
No percurso de volta para o hotel, na mesma esquina o motoqueiro se
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AMANTE E CONFIDENTE
aproximou e entregou os celulares para o motorista.
No hotel, Gottardo manifestou sua insatisfação com o episódio, mas
aceitou os argumentos de Cláudio de que deveriam explorar todas as possibilidades. Combinaram que na noite seguinte se encontrariam com a misteriosa dupla. Dali a poucas horas, Gottardo iria jantar com Helga.
Cláudio, à guisa de despedida, disse que por momentos teve a impressão que estiveram com um dos sequestradores...
Gottardo demonstrou incredulidade e desdém:
“Pra mim são picaretas querendo dar um golpe. Tenho a sensação que
irão se dar mal, muito mal!”
Conforme o combinado por telefone, Helga veio até o hotel de Gottardo, e dali rumaram de táxi para a Jardineira Grill, na Avenida dos Bandeirantes. Segundo os experts, a melhor churrascaria de São Paulo e catalogada
como uma das melhores do Brasil. Bufê variadíssimo, carta de vinhos premiados, carnes nobres e serviço impecável.
Helga pediu uma caipirosca com vodca Absolut. Gottardo, em que pesem suas inúmeras viagens à Rússia e ao Leste Europeu, não conseguir adaptar seu paladar a vodca. Sua concessão mais aproximada era o Steinhäger,
uma aguardente alemã composta de trigo e sementes de zimbro. Assim, pediu uma dose e um chope artesanal de Blumenau, Santa Catarina.
Para aquecer os motores, Gottardo sentiu necessidade de provocá-la,
e lembrou-a da preocupação com seu noivo.
Assim que começou a tratar do tema, aconteceu um episódio na mesa
ao lado que interrompeu a conversa entre ambos. Uma família, composta de
um casal, duas crianças e uma senhora, nitidamente a avó, estava comemorando o aniversário da mãe das crianças. Em dado momento, alguém bateu
na garrafa de vinho, derramando-a sobre a mesa e sobre a aniversariante. Os
garçons rodearam a mesa e demoravam a sair ou trocar a toalha. Só depois de
algum tempo é que Gottardo e Helga perceberam que um caco de vidro tinha
atingido a perna da senhora, seccionando uma veia e provocando grande
hemorragia. As pessoas em volta comentavam a necessidade de chamarem
o pronto-socorro, mas ninguém tomava a iniciativa de um paliativo, de uma
medida de primeiro socorro. Então Gottardo pediu licença e, observando
ser sangue venoso (por não esguichar e ser mais escuro), em vez de fazer
um garrote abaixo do ferimento, como antigamente, somente aplicou um
tampão improvisado sobre o ferimento. Levou algum tempo para aparecer
o pronto-socorro, e finalmente a paz voltou a reinar no ambiente. Gottardo
aproveitou o incidente para filosofar sobre os imponderáveis da vida.
Voltando à conversa, Gottardo contou que um amigo seu com relações
no DAS confidenciou-lhe que a polícia tinha o noivo dela, Helga, como um
dos suspeitos do caso de Dennis. Continuou, dizendo que a ajudaria, desde
que ela tomasse a atitude correta: contar para seu noivo, antes de ele sabêlo por intermédio de terceiros ou pela imprensa. Um fato daquela natureza
poderia destruir a vida de seu noivo, atrapalhando sua carreira e comprometendo seu futuro, completou. Antes de mais nada, era necessário que lhe
respondesse:
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JOÃO CARLOS BERKA
“Não te ocorre a possibilidade de teu noivo ter sabido e ter algo com o
sumiço do Dennis?
“Impossível. Conheço ele o suficiente para saber que nunca se voltaria
contra o Dennis, sempre me responsabilizaria. Ele sempre disse que Don
Juans existem em toda parte, cabe à mulher que se julga séria administrar os
relacionamentos, não dando brechas, não criando oportunidades. Além do
mais, seu perfil não é de homem violento, ou agressivo. Inclusive, surpreendeu a família quando decidiu ser militar.”
“Qual seria a reação dele, caso tu confessasse?”
“Pior que não sei... Mas concordo que chegou a hora da verdade, inclusive para terminar com esse relacionamento. Mesmo com Dennis presente,
eu já tinha decidido terminar, somente não sabia como.”
“Acredito, Helga, que somente isso irá contribuir para mudar o teu
ânimo, ao decidires fazer a coisa certa depois de tantos erros. A partir daí,
estarás mais forte, mais calejada para enfrentar o que está por vir. Seguramente, irás recuperar tua autoestima.”
Foram servidos e, após satisfeitos, continuaram a conversa.
“Disseste que tinhas dúvidas sobre o sequestro do Dennis, inclusive
que ele tinha te convidado a fugir com ele...”
ras:
Helga pediu mais um chope e continuou suas confidências/conjetu-
sa. Falei para ele que estava louco, que aquilo era arriscado, esse tipo de infidelidade funcional e empresarial podia terminar muito mal... Lembro de ter
lhe dito que por muito menos se matava, sequestrava, etc. Dennis disse que
estava brincando, mas seu semblante dizia o contrário. Fiquei preocupada e
manifestei minha inconformidade, lembrando que ele mesmo criticava Cacau por apego ao dinheiro e sede de poder. O que pretendia fazer o colocaria
no mesmo nível daquela que ele tanto criticava.”
“Já que tiveste um relacionamento íntimo com ele durante bastante
tempo, qual a tua opinião sobre os hábitos sexuais do Dennis? Antes de me
responder o que te perguntei agora, me responda o seguinte: vocês usavam
preservativo?”
usar.”
“Somente no início usamos, depois de uns dois meses paramos de
“Não tinhas receio?”
“Às vezes, ainda mais conhecendo o Dennis, que não era lá muito santo. Aliás, respondendo a pergunta anterior, tenho certeza que o Dennis era
bissexual. Ele mesmo me contou que tivera um caso com um assessor de um
senador. Nunca deixei ele saber que eu sabia de quem se tratava: era o primo
do senador de quem o Dennis era o marqueteiro na campanha à Presidência, aquele que morreu num acidente no edifício onde morava. Na época, e
isso faz seis meses somente, portanto três antes do sequestro, o Dennis sofreu um choque com a notícia. Ficou assustado. O mesmo aconteceu quando
mataram um garçom do O Piaf, na Alameda Franca. Um tal de Igor, que
tinha tido um caso com o Dennis.
“Ah! Tem uma coisa que ia te contar hoje pela manhã e que acho esquisita. Há um ano atrás, aproximadamente, Dennis, num momento ‘relax’,
quando costumava viajar, dar asas à imaginação, contou-me que um de seus
projetos era escrever um livro com a finalidade de transformá-lo em roteiro
de filme... sobre o próprio sequestro. Disse que iria bolar o próprio sequestro
de tal maneira que a polícia ficaria totalmente no escuro, e que isso se transformaria no livro de sua vida.
“Esses dois fatos abalaram ele de maneira impressionante. No caso
do primo do senador, o Dennis saiu de órbita por alguns dias, de tal maneira
que nem queria saber de sexo quando eu estava no apartamento com ele, e
chegou a cheirar na minha frente. Acho que era mais do que um romance
ou transa. Acredito que devia haver também alguma ligação entre ambos,
provavelmente de negócios. Mas nunca me disse, nem nunca cheguei a saber.”
“Outra coisa: Dennis me confidenciou que o Gert lhe propôs fazerem
negócios juntos, como no passado. Somente que, desta vez, sua sociedade
ficaria oculta, usando laranjas. Tendo em vista que o Dennis administra a
conta da Petrobras, e o Gert a da ESE, a ideia era montarem uma pequena
empresa para negociarem informações estratégicas, ainda mais agora com
a dimensão que ganhou o assunto do pré-sal. Ambos iriam trair seus contratantes e negociariam informações privilegiadas, as quais acessam em
razão de seus contratos de consultoria de marketing e assessoria de impren-
“Como foi o comportamento do Gert em relação ao desaparecimento
do Dennis?”
“Estranho. Nunca ligou. Não apareceu mais no escritório. Um dia, a
Cacau ligou para ele umas dez vezes, e ele não atendeu. Sei disso porque a Bianca fez as ligações. Agora me lembro: uma semana depois do sequestro, ele
ligou para a Bianca pedindo os telefones da Ângela, responsável pela conta da
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JOÃO CARLOS BERKA
Já estava tarde, e eram os últimos clientes. Tomaram um táxi, e Helga
insistiu em deixar Gottardo primeiro, no hotel, e depois dirigir-se para casa.
PERNOD RICARD, e de uma tal de Maria Helena, uma antiga funcionária.”
“O que tu sabes sobre a Cristina, a que já foi gerente geral?”
“O Dennis tinha uma bronca terrível com ela, mas também tinha medo.
Ele me contou que teve um caso com ela, antes dela se casar. Me disse que ela era
uma mulher perigosa, uma doente mental. Com ligações com o crime organizado.
Aconteceu alguma coisa entre eles e deve ter sido grave, porque ele transou
com metade das funcionárias e tinha bom relacionamento com todas. Com
ela era diferente, era ódio puro.”
“E a Carla?”
“Ele também me contou que transaram, mas que surgiu uma grande
amizade entre eles, e ela gozava de toda a confiança dele. Ela sabia coisas que
a Cacau ignorava.”
Três dias depois, comunicou a Gottardo que contara para o noivo, e
que este por muito pouco não a agrediu. Chorou, e o melhor adjetivo que lhe
dispensou foi puta.
Helga devolvera-lhe a aliança, e ele a pegou e arremessou longe. Por
último, comentou que, apesar de estar sofrendo, de tê-la amado muito, dava
graças a Deus por isso ter acontecido, porque não queria que sua futura prole
tivesse sangue ruim...
Gottardo lhe disse: “No futuro, vais ver que foi melhor assim. Todos
nós erramos, mas em determinados momentos da vida só nos resta agir com
dignidade. Fizeste o que te cabia. O tempo vai curar todas as feridas.”
“E a Cacau?”
“Bem, não tenho escrúpulos de falar dela, porque não era esposa do
Dennis, era sócia. Ambiciosa e má. Ela engana com aquele sorriso e aquele
jeito de Barbie. Aquela mulher é ardilosa e fria. Caso o Dennis tenha sido
sequestrado, acho que ela deve ser uma das suspeitas, mesmo com toda encenação de missa do padre Marcelo, ida ao João de Abadiânia, etc.”
“Que história é essa de missa do padre Marcelo?”
“Você sabe que ela virou crente depois do sequestro. Pois bem, no
início, frequentava cultos evangélicos com a Marlene. Um dia, porém, com
uma diplomata amiga sua, foi à missa do padre Marcelo, que é muito concorrida, e depois da missa foi falar com o padre. Pediu orações pelo Dennis
e, segundo ela, o padre Marcelo disse que o Dennis estava vivo, mas que ia
demorar um pouco a voltar. Dias depois, ela foi para Abadiânia, no Goiás,
visitar um médium chamado de João de Abadiânia, que realiza cirurgias espíritas, para consultar uma médium que trabalha no mesmo local, e saber do
Dennis. Acendendo uma vela pra Deus, outra pro Diabo.”
“O Dennis estava com alguma enfermidade grave?”
“Interessante. Uns tempos atrás ele viajou para Buenos Aires e internou-se numa clínica para checkup. Me pediu para não contar a ninguém.
Nunca me disse o resultado, nem apresentou sinais de preocupação com a
saúde – mas me disse que, se nós fôssemos embora, ele queria colocar alguns
bens e contas de banco em meu nome. Alegava a nossa diferença de idade e
dizia que gostaria de me deixar tranquila, caso lhe acontecesse algo.”
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JOÃO CARLOS BERKA
A VIAGEM DE CACAU
No dia seguinte ao encontro com Helga, Gottardo recebeu um telefonema do general Átila, da ABIN. O general indagou se Gottardo fora bem
atendido na agência de São Paulo, como as coisas estavam caminhando, e
finalmente fez um oferecimento: havia uma moça que tinha trabalhado na
Agência e que agora estava buscando trabalho eventual. De acordo com o
general, era uma experiente agente de campo, sempre trabalhou encoberta
e tinha facilidade de infiltração em diversos setores. Disse ainda o general
que afiançava completamente a pessoa em pauta e que, caso Gottardo tivesse
interesse, ele providenciaria para que ela, que morava em Brasília, fosse ao
encontro de Gottardo em São Paulo. Aduziu que era praticamente desconhecida do pessoal da Agência, da Polícia Federal, e de outros órgãos. Sempre
trabalhou isolada, ligada somente à direção. Seu codinome, quando na ativa,
era “Viúva Negra”.
Gottardo, mesmo levando em conta que o general estava querendo
era monitorar seu trabalho por dentro, demonstrou interesse e agradeceu,
solicitando o encontro com a pessoa recomendada.
No mesmo dia marcou um encontro com Cacau, e, para sua surpresa,
foi Marlene quem lhe atendeu, dizendo que Cacau andava muito estressada,
por isso viajara a Portugal pelo período de uma semana. No entanto, antes
de viajar, pedira a Marlene que entrasse em contato com Gottardo para que
o avisasse de sua viagem, bem como da disponibilidade de seiscentos mil
dólares que ficariam sob a guarda de Marlene para qualquer eventual pagamento de resgate. De acordo com Marlene, Cacau ainda nutria esperanças
que os picaretas que surgiram para intermediar a negociação voltassem a
contatar, e houvesse algo de concreto em sua fala.
Gottardo agradeceu, mas salientou que era contrário a qualquer negociação que não fosse precedida por prova de vida de Dennis, e que tampouco
acreditava na seriedade da dupla citada por Cacau.
Gottardo já estava agendando uma reunião com Cláudio e Coco, quando recebeu um telefonema em seu celular. Era uma voz feminina, que não
se identificou e disse que queria ajudar. Para provar sua intenção, soltou um
petardo:
“O senhor não me conhece, mas eu o conheço muito bem. Talvez eu
seja a única pessoa, fora seu amigo Cláudio, que sabe o verdadeiro motivo de
o senhor morar em Montevidéu. Não estou citando isso como ameaça, mas
para mostrar que o conheço e que realmente estou disposta a lhe ajudar. E,
para provar o que digo, acho interessante o senhor viajar ainda hoje para o
Rio de Janeiro. Ao contrário do que lhe disseram, Cacau está em Angra e,
depois de amanhã, à noite irá a um encontro que deveria ser do seu conhecimento. Esse encontro será revelador e mudará o rumo de suas investigações.
Se me escutar, se confiar em mim, quando você estiver no Rio eu ficarei sabendo, farei uma chamada e darei os detalhes para encontrar, ou melhor,
flagrar a Cacau. Garanto que o senhor ficará extremamente surpreso.”
Gottardo, apesar de seu proverbial raciocínio rápido, ficou mudo. Recompondo-se, agradeceu e pediu que quem estava ligando fizesse a gentileza
de ligar novamente dentro de duas horas, para ele confirmar se poderia ir ao
Rio.
Pediu que Cláudio viesse imediatamente para seu hotel e, assim que
ele chegou, narrou-lhe o telefonema do general e da misteriosa colaboradora. Cláudio, mais receptivo aos desafios do ignorado, mais afoito, sugeriu
como sempre que aceitassem ambos oferecimentos, salientando achar que
ambos tinham a mesma fonte: o general Átila.
Duas horas depois, o general já tinha confirmado que, naquele mesmo
dia à tardinha, a moça estaria em São Paulo. Recebendo novo telefonema da
outra pessoa, Gottardo confirmou que iria no dia seguinte à tarde para o Rio.
Por volta das 19h, Cláudio foi a Congonhas buscar Ely, a recomendada
de Brasília, para jantarem com Gottardo.
Ao chegarem no Della Volpe, Gottardo se surpreendeu com a aparência da moça: corpo de modelo, tez alva, cabelos e olhos negros, vestida elegantemente, sóbria. Era linda.
“Viúva Negra?”
Ela sorriu.
“Prazer em conhecê-lo, senhor Gottardo. O general lhe estima muito e recomendou-me que fizesse o máximo possível para ajudá-lo. Quanto
ao meu ex- -codinome, pode ter certeza que não foi ideia minha. Pode me
chamar de Ely.”
Gottardo inquiriu como ela foi trabalhar na Agência, e por quanto
tempo, quando saíra, por que, etc...
Ely não se fez de rogada e contou que era formada em odontologia, e
seu marido, capitão do Exército, morrera em missão no Nordeste a serviço
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
do CIE, o Centro de Inteligência do Exército. Fora uma morte misteriosa,
assassinado dormindo em seu apartamento no hotel onde estava hospedado;
a porta não fora arrombada, e os hóspedes mais próximos não escutaram
qualquer ruído. Levara dois tiros à queima-roupa, na cabeça. A polícia de
Alagoas, bem como o CIE, não encontrou os responsáveis ou suspeitos. Então Ely abandonou seu consultório e, com a ajuda de um general amigo da
família, começou a investigar por conta própria.
Dez meses após, o caso foi resolvido. A tenacidade e a habilidade de
Ely fizeram que o general que lhe ajudara sugerisse a ela trabalhar na ABIN.
Imediatamente, foi apresentada à Agência e aceita, iniciando um período
de treinamento. Em seguida, por determinação da direção, foi afastada dos
controles e do efetivo, e passou a executar um voo solo – até sua saída, seis
meses atrás, quando manifestou sua insatisfação com a política da Agência.
Trabalhou lá nove anos.
Em seguida, Gottardo passou algumas informações sobre o caso e
questionou se ela poderia acompanhar Cláudio ao Rio de Janeiro, para executarem algumas tarefas de campo, auxiliados à distância por Coco. Convite
aceito e condições de trabalho estipuladas, no dia seguinte a dupla rumou
para o Rio. Somente Cláudio sabia que Gottardo também iria em outro voo.
os.
Cláudio e Ely se hospedaram e iniciaram os levantamentos necessári-
Gottardo, tão logo chegou no Aeroporto Santos Dumont, no centro da
cidade, recebeu um telefonema de sua “amiga”.
“Seja bem-vindo. Vou procurar sintetizar, para não sermos detectados: amanhã à noite, às 20h, Cacau estará acompanhada de uma pessoa que
já foi diretor da ANP (Agência Nacional do Petróleo) e que hoje é um dos
principais executivos da ESE no Brasil. Eles têm um caso há mais de três
anos. Eles sairão do escritório da ESE, perto da Torre Sul, e irão à Urca, Rua
das Camélias, 325. Fica ao lado do supermercado Girassol. Você terá uma
bela surpresa, que irá mudar o rumo do seu trabalho. Dentro de dois dias, te
ligo e vou te dar um número para que possa me contatar. Até logo.”
Gottardo passou os dados para Cláudio e deu mais dois telefonemas,
um para Coco, que estava monitorando e tentando localizar a outra ponta da
chamada que Gottardo acabara de receber, e outro para um amigo da polícia
carioca. Marcou um encontro, e duas horas depois já tinham se encontrado
e trocado ideias sobre o tema.
Gottardo mais uma vez passou os dados para Cláudio, para que fizes-
sem as deliberações preliminares e preparassem o cenário para registrar a
ida de Cacau ao local.
O amigo carioca de Gottardo tinha alguns fiapos de informações sobre
o badalado casal. O nome do diretor da ESE era Rodrigo César Veneu. Filho
de um almirante, fora casado com a filha de um banqueiro italiano. Divorciado há cinco anos, há três mantinha um caso com Cacau. Era um sujeito
polêmico: ao mesmo tempo que exibia exuberância e competência para os
negócios, tinha ligações com elementos ligados ao jogo do bicho carioca e
com mafiosos italianos sediados em Miami, nos Estados Unidos. Recentemente, o executivo tinha sido acusado de ter ligações com as quadrilhas que
adulteravam combustíveis. Em sua passagem pela ANP, deixara um rastro
de advocacia administrativa responsável por autorizações e permissões ilegais para distribuidoras, e com certa frequência era citado como um dos operadores das rodadas licitatórias dos blocos petrolíferos viciados da Agência.
Também era citado como um dos intermediários da troca de ativos entre a
Repsol na Argentina e a Petrobras.
Na Agência, foi um dos agentes do governo brasileiro no projeto do gasoduto Brasil/Bolívia. Ao que tudo indica, seu emprego na ESE está ligado às
facilidades que gerou para a empresa espanhola em solo brasileiro. Quanto a
Dennis, era visto como um elemento refém do vício, e cujo espaço na sociedade carioca era cada vez menor; ao passo que Cacau, desde o tempo de sua
passagem pela Rede Globo, cada vez mais integrava o elenco de descolados e
badalados da high society carioca. Bonita e glamourosa, era uma exceção no
mundo dos negócios, pois, além dos atributos femininos, era vista como uma
executiva competente e bem-sucedida.
Sobre o local a que iriam naquela noite, o policial carioca disse que
estranhava a ida do casal ao lugar, pois se tratava de um dos endereços mais
macabros do underground da cidade: o terreiro de Mãe Zina de Angola. Lugar de kimbanda, magia negra e vodu, o ambiente era restrito e bem isolado.
Havia boatos de que Mãe Zina, em sua passagem pelo Haiti, Angola e por
último no estado do Maranhão, estivera envolvida com sacrifícios humanos.
Às 19h, Cláudio e Ely já estavam a postos, em vigilância, com sistemas
de filmagem instalados.
Às 20h30, Gottardo e Mazo, o policial carioca, chegaram, estacionaram num estacionamento coberto a 100 metros do terreiro e dirigiram-se
para lá, sem buscar localizar a dupla que estava de campana. A área era cercada por um tapume alto, e internamente circundada por um muro pré-moldado de dois metros de altura. Na entrada, havia dois seguranças que exigiam
identificação e consultavam a lista de convidados. Como ambos não con-
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
stavam na lista, foram impedidos de entrar. Então Mazo recorreu ao clássico
“carteiraço”. Não adiantou – pelo contrário, piorou a situação. Negaram o
acesso, mesmo quando Mazo apresentou uma ordem judicial (fria) de busca
de menor. Como último recurso, Gottardo sugeriu que permitissem acesso
somente à área entre o tapume e o muro pré-moldado, com a finalidade
de verem se o menor que buscavam encontrava-se no recinto. Finalmente os
seguranças concordaram, e eles puderam espiar por cima do muro o pátio,
onde se desenvolviam os trabalhos. Trepados em dois pequenos caixotes, a
dupla pôde assistir a uma cena impressionante.
De onde estavam, Gottardo e Mazo, trepados nos pequenos caixotes
de madeira, podiam acompanhar tudo nos mínimos detalhes, pois estavam a
uns trinta metros da cena central.
O terreiro ocupava uma área de aproximadamente mil metros quadrados. Ao fundo, uma meia-água aberta onde encontrava-se o congá, uma espécie de altar onde ficavam estatuetas, imagens e objetos cúlticos. Um pouco
mais à frente, a céu aberto, a casinha dos exus; à direita de toda a extensão
do terreno, até o portão de acesso, outra meia-água, onde ficavam fileiras de
cadeiras brancas de PVC para os espectadores.
Então, inexplicavelmente, a mulher lentamente virou sua cabeça até a
direção dos dois espectadores clandestinos e fitou-os firmemente. Era Cacau!
Próximos ao centro do terreiro, os tocadores de atabaque, maracas e
pandeiro. Junto deles, uma mãe de santo que, pela postura, parecia conduzir os trabalhos, acolitada por diversos elementos paramentados de branco,
com colares e turbantes. Era Mãe Zina. Todos pareciam estar em êxtase, incorporados. Rodeavam uma mulher que estava de costas para Gottardo e
Mazo, vestida com uma túnica azul que lhe chegava aos pés. Estava descalça
e com os cabelos desalinhados.
Ao som dos atabaques, a cantoria seguia num dialeto ininteligível para
os não iniciados. Até que, em determinado momento, a mulher de azul ajoelhou-se e bebeu de uma garrafa que lhe foi entregue por Mãe Zina. Em seguida, fumou um enorme charuto enquanto dois médiuns impunham-lhe as
mãos na cabeça e ao longo dos ombros e espáduas. O ritual durou uns dez
minutos, até que os instrumentos e os cantos pararam.
Fez-se um silêncio sepulcral. Mazo reconheceu, sentado entre os espectadores, Rodrigo César Veneu, o acompanhante de Cacau. Estava de branco como todos os demais e parecia estar tomado de grande emoção. Mazo
apontou-o para Gottardo, que teve a impressão de que ele estava bêbado ou
drogado.
De repente, escuta-se um balido. Vindo dos fundos, um acólito dos
médiuns trazia um pequeno cabrito. Recomeçaram as cantorias seguidos
pelos instrumentos. Os atabaques batiam mais forte, e o canto atingiu um
ritmo frenético, insano.
Mais uns balidos, e dois assistentes seguram o pequeno cabrito preto
acima da cabeça da mulher ajoelhada, enquanto Mãe Zina, com um punhal, degolava o animal. O sangue jorrou sobre a cabeça e ombros da mulher ajoelhada. Esta, levantando a cabeça, bebia o sangue lentamente. A cena
durou poucos segundos. Em seguida cessaram os cantos e sons, e a mulher,
levantando-se, foi envolta pela fumaça do charuto que a médium soprava
sobre ela.
Gottardo sentiu-se tomado por uma sensação forte de opressão no
peito e ânsias de vomitar. Cacau, com os cabelos e rosto tomados de sangue,
com os olhos negros esbugalhados, parecia um personagem de filme de terror, parecia um zumbi.
Mazo segurou o braço de seu amigo e o conduziu para fora do terreiro.
Na portaria, disseram aos seguranças não terem visto quem vieram procurar.
Saíram dali em direção ao estacionamento, onde já eram esperados
por Ely e Cláudio. Saíram do bairro e, dirigindo-se à Praia do Flamengo,
numa das ruas de acesso à avenida do Aterro, entraram num boteco e sôfregos pediram cachaça e cerveja.
“Gravaram tudo?”
“Tranquilo.”
“Amanhã estudamos o material e vamos escolher com rapidez o alvo
de aproximação.”
“Que merda!”, exclamou Gottardo.
“Eu te falei que era boca braba!”, retrucou Mazo.
“Aquela filha da puta. Portugal, estresse... E a Marlene não deve ser
diferente, duvido que não soubesse dessa porra. Crente de merda...”
Cláudio, como muitos argentinos, acha interessantes e exóticos os rituais afro-brasileiros; no entanto, o que presenciou lhe pareceu forte demais.
Mesmo para ele, acostumado à sangria de Kosovo, a cena fora escrota.
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JOÃO CARLOS BERKA
O ANJINHO
Cacau não será a primeira nem a última pessoa a sofrer um processo
de metamorfose. O simples ato de viver implica em constante transformação.
Assim como ocorre a substituição celular no indivíduo, a alma também sofre as vicissitudes da vida. Viver é perigoso. Ninguém passa incólume pelas
estradas da vida. O sofrimento dá têmpera, capacita, valoriza o ser humano.
Somos, antes de tudo, o Propósito de Deus. Individual e único. Mas também somos o somatório de nossa carga genética com a vida em determinado
espaço-tempo (meio-ambiente, geografia, etnia, cultura e sociedade). Tudo
encimado pela característica individual que nos assemelha ao Criador e nos
diferencia de nossos iguais.
Sofremos mutações progressivas, quase imperceptíveis, e outras
abruptas. Algumas mudam o eixo central da personalidade do indivíduo,
muitas vezes comprometendo seu desempenho, seu agir e sua felicidade.
Mesmo para os defensores de que felicidade é um somatório de itens existenciais e que alegria é antes de tudo uma atitude consciente do ser humano,
fatos ocorrem que – como o rompimento de uma barragem hidroelétrica –
levam o indivíduo de arrastão, com o predomínio das emoções sobre a razão.
Com ele também foi assim. Foi aos poucos, mas também uma explosão
repentina, tipo arrasa quarteirão.
No entorno de Brasília, o processo de favelização urbana, o inchaço
populacional promovido por demagogos e pilantras que por sucessivos
mandatos governaram a Capital Federal com levas constantes de migrantes
famélicos, gerou uma matriz pernóstica de enfermidades do corpo e da alma.
Crimes bárbaros, desde a época dos candangos, acompanharam o crescimento daquela que era para ser a urbe planejada por excelência, a cidade do futuro. Mais do que um projeto arquitetônico, Brasília consagrou-se como uma
tentativa de inaugurar novos processos de convivência humana. No entanto,
a cobiça e a exploração fundiária aliadas ao pior coronelismo brasileiro, onde
caipiras pretendiam administrar o público como coisa sua, gerou uma cidade
enfermiça.
Nos palácios, a ação nefasta como a praga da saúva, dos lobistas e politiqueiros; na periferia, gangues, tóxico em abundância, estupros, homicídios.
Nos bairros nobres e nos points da moda, filhinhos de papai imitando progenitores, ignorando as normas de convívio social, julgando-se acima do
Bem e do Mal.
Nas cidades-satélites, gangues juvenis roubando, matando e barbarizando. E a polícia mais bem paga do país gerando candidatos à atividade
política, turbinados com o dinheiro do jogo do bicho, da prostituição e do
jogo clandestino. Brasília é a nossa Sodoma. Síntese do que temos de pior no
Brasil.
Pode parecer exagero para quem conhece o Rio de Janeiro, São Paulo,
Salvador e Recife, mas a pura verdade é que a Capital Federal tem, além das
incidências criminais das demais cidades brasileiras, a atuação cancerosa do
crime organizado, travestido de lobby e da decomposição da política partidária.
Houve um crime que, na década de 1970, aturdiu Brasília: Ana Lídia.
Tinha nove anos. Era uma doce menina loira, seus pais trabalhavam
na administração pública, em cargos modestos. A duras penas, conseguiam
manter a filha numa escola particular da Asa Norte. Ana Lídia tinha um
irmão, Henrique. Este vivia os ensaios daquelas que mais tarde se tornariam as gangues juvenis de Brasília. Viciado, era amigo de Duque, vapozeiro, o
que no linguajar policial da época identificava o passador, pequeno distribuidor de drogas.
Duque e Henrique forneciam maconha e bolinhas para alguns filhinhos de papai, insetos daninhos que aprontavam e gozavam da impunidade
daqueles que perguntam: “Sabe de quem que eu sou filho?”. Pois bem, certa
feita, Henrique (como todo drogado, era irresponsável) não entregou a droga para a tchurma, que adiantara o dinheiro. Sofrendo pressão, bolou com
Duque a maneira de levantar uma grana para pagar os seus credores: iriam
simular o sequestro de sua irmãzinha, e pediriam resgate aos pais. Mesmo
não tendo condições de pagá-lo, tinham, por seus bons relacionamentos e
amizades na repartição, condições de arrecadar uma vaquinha para libertar
a filha.
Dias depois, Duque apanhou Ana Lídia no colégio e, no caminho de
casa, entregou-a para a turma que iria mantê-la até o pagamento do resgate.
Era uma quarta-feira, sete horas da noite. Gottardo assistia ao noticiário local na televisão. De repente, é dada a notícia do sequestro. A mãe,
chorosa, pedia que devolvessem sua filha. Policiais militares com cães vistoriavam as adjacências da escola da menina. Enfim, o de sempre.
No dia seguinte, ao comparecer ao trabalho na Academia Nacional de
Polícia, onde lecionava Investigação Criminal, foi convocado ao gabinete do
diretor. Como no ano anterior fizera um curso na Brigada Criminal da Polícia
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JOÃO CARLOS BERKA
de Munique, Alemanha, foi consultado se aceitaria colaborar com a Polícia
Civil do DF no caso do sequestro da menina. O argumento do diretor da
Academia foi que ele era o único especialista em técnicas de interrogatório;
melhor dizendo, entrevistas de crianças. Havia a necessidade de entrevistar
várias coleguinhas da menina desaparecida que estavam com ela no momento da saída do colégio. Prontamente aceitou, foi providenciado um substituto
para suas aulas e feitas as devidas apresentações à Policia Civil.
Um colega vestiu-se de padre e foi até uma sala, para onde foi conduzido o detento. Horas depois, fruto de muita conversa sobre confissão e perdão
divino, uma surpresa: o detido declarou que queria reconciliar-se com Deus
e que contaria para ele, o padre, tudo o que fizera em sua vida errada. Sabia
o que o aguardava, mas acreditava naquilo que o padre lhe dissera no início:
com a justiça do mundo, ele teria que acertar as contas, mas o importante era
o perdão divino.
Antes mesmo de começar seu trabalho junto às crianças, a televisão
informou a descoberta de Ana Lídia: fora encontrada em meio ao cerrado,
nos fundos da Universidade de Brasília, morta. Levada para o Instituto Médico-Legal, foi feito o reconhecimento pelo irmão Henrique, e posteriormente
pelos pais.
Confessou três estupros na Paraíba. Uma morte no Ceará. Violências
sexuais com menores na Bahia, e uma morte já em Brasília. Ana Lídia não!
Não fora ele. Se fosse, contava, uma a mais ou a menos não mudaria sua
sorte.
A cena era chocante. Mesmo policiais duros e empedernidos por longo
tempo de atividade mostravam-se estarrecidos com a crueldade dos sequestradores. Vários choravam.
Ana Lídia fora violentada, sodomizada, teve as pálpebras e os cabelos
cortados à faca. O exame necrológico revelou que fora morta por asfixia, estrangulamento, e submetida depois de morta às demais violências.
Tudo voltava à estaca zero. A polícia continuava às cegas.
Uma semana depois, o agente/professor da Academia, que tinha um
namorico com a filha do diretor geral da Polícia Federal, um general linha
dura, foi convidado pela garota para uma festa no Lago Sul, bairro da elite
de Brasília.
O especialista da Polícia Federal não teve êxito em suas entrevistas
com as crianças, colegas da vítima. Ninguém tinha visto nada significativo,
nem a saída propriamente dita de Ana Lídia. Nem quem a acompanhara.
No meio da festa, ele incomodado com a droga, que rolava solta, observou um garoto que chegara, em plena noite de verão, vestindo um casaco
de pele. Loiro, cabelos longos, destoava da patota tanto quanto o acompanhante da filha do general. Mauricinhos e patricinhas fumavam maconha com
desenvoltura. Na cozinha e nos quartos do andar superior, alguns cheiravam.
Dois dias depois, a Polícia Civil trouxe um suspeito para que ajudasse
no interrogatório. O indivíduo estava em péssimo estado. Havia sido torturado por três dias consecutivos e não confessara nada.
Indagada pelo agente quem seria o maluco de casaco de pele, a filha
do general, que já estava meio doidona, em vez de responder diretamente,
provocou:
O preso tinha como antecedente uma denúncia de quatro anos atrás:
tinha sido pego beijando na boca uma menina de quatro anos, filha de um
funcionário do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal. Na
época, o detido era auxiliar de limpeza, funcionário de uma terceirizada que
prestava serviços a diversos órgãos, inclusive para a Polícia Federal. Trabalhava agora na construção civil, numa obra vizinha ao colégio de Ana Lídia.
Ao revistarem seu alojamento, encontraram em seu armário várias roupas
íntimas de criança.
“Aí, seu policinha de merda, o que vocês fazem que não prendem os
caras que mataram a menina Ana Lídia?”
Inicialmente, recusou-se a receber o preso. Seu estado era tal, que temia que morresse em suas mãos. No entanto, influenciado por seus colegas,
aceitou o encargo, deixando claro que as coisas seriam feitas à sua maneira
dali para frente.
“Tá bom, não precisa ficar brabo. Aquele cara é o Henrique, o irmão
de Ana Lídia!”
Ele, aporrinhado:
“Em primeiro lugar, se a Polícia Federal é de merda, é porque teu pai
é o chefe dela; segundo, não trabalho em funções policiais, sou professor; e
esse caso é atribuição da Polícia Civil, e não da Federal.”
“Esse cara? Porra...”
“E todo mundo sabe que ele está envolvido na morte da irmã.”
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
Dias depois, ao término do expediente, dois colegas que estavam em
funções na Superintendência da Polícia Federal de Brasília (trabalhavam encobertos, um no tóxico, outro no DOPS) o convidaram para tomar um chope
no Amarelinho, bar badalado na época, bom de paquera. Chegando ao boteco, encontraram mais dois, que estavam lotados em Goiânia.
O agente da Academia sentiu que o encontro não fora fortuito. Logo
colocaram as cartas na mesa: Ana Lídia.
Sabiam de toda a história, sabiam que iria ser abafada e que ninguém
seria penalizado; de todos os filhinhos de papai, somente iria dar cadeia
para Henrique, o irmão da vítima, e para o traficante Duque. Nenhum deles
naquela mesa tinha mais de vinte e cinco anos. Segundo ano de atividade
policial. Cheios de gás e idealismo. Aquela porra não podia ficar assim.
do SNI. Viemos conversar diretamente com os senhores, num obséquio ao
DPF, com quem trabalhamos intimamente ligados e por sabermos que todos vocês são o ‘sangue novo’ do Departamento, recrutados e treinados com
carinho. Sabemos do idealismo que move a todos, mas queremos reiterar:
esse é um problema nosso, com implicações muito mais complexas do que
possam imaginar, o que não cabe aqui comentar. Sem qualquer intenção de
ameaça, devemos registrar que, se prosseguirem em seu intento, ou esta conversa vazar, vocês estarão sujeitos à Lei de Segurança Nacional, que prevê
punição para agentes do Estado em caso de inconfidência e violação do RSAS,
o Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos. Além de eventuais
ações penais por delitos que forem configurados.”
“Alguma dúvida ou pergunta?”, indagou o delegado federal.
Um dos agentes, um cearense gozador:
Um deles, mais experiente, pois já tinha sido policial civil em Santos,
São Paulo, sacou: vamos matá-los!
“Já conversei com o delegado Domingos, o nosso instrutor de tiro no
curso, e ele não somente concordou, como falou que muitos no DPF pensam
desta maneira. Inclusive, colocou-se à disposição para conseguir as armas,
apreendidas e descaracterizadas para usarmos.”
“Tô dentro.”
“Eu também.”
“Nós viemos de Goiânia para isso.”
Passaram as próximas duas horas tramando, com pequenos intervalos
para o chope e azarar a mulherada, que afinal ninguém era de ferro...
“Vale palavrão?...”
Um filho de ministro do Estado, dois filhos de senadores da República, um filho de um coronel da Aeronáutica – impunes. Henrique e Duque,
após muito tempo, cumpriram pena. Nenhum dos dois participou ou esteve
presente à sevícia à menina Ana Lídia. Assim começou o estágio probatório
daqueles que ingressaram nas fileiras dos órgãos de segurança do Estado
para tornarem-se agentes da Lei, para servir à sociedade. Ali começava a
contaminação do “sangue novo”. Em pouco tempo, muitos deles, espalhados
por todo território nacional, já não podiam ser distinguidos dos antigos, de
gente acostumada com os jeitinhos e negócios.
Uma semana depois, todos os cinco foram convocados para uma reunião na Superintendência do DF. Lá chegando, foram conduzidos a uma
sala nos fundos, perto da carceragem, onde os aguardavam o superintendente e dois desconhecidos.
“Senhores, quero lhes apresentar os coronéis Souza Pinto e De Lucca.
São oficiais de inteligência do SNI e gostariam de lhes falar”, apresentou o
superintendente.
Um deles, tomando a palavra, foi direto ao ponto:
“Ficamos sabendo dos seus planos. Compreendemos a posição de
vocês. No entanto, este passou a ser um caso de interesse na Agência Central
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
Dois meses após, começaram a pipocar desaparecimentos de crianças no entorno de Brasília e nos limites de Minas Gerais e Bahia com
o estado de Goiás. Dezenove casos. Antecedentes e semelhanças no sul
do Maranhão e no litoral do Paraná: em ambos estados, foram episódios
envolvendo rituais de magia negra ou serial killers estupradores.
Mais uma vez, o diretor da Academia convidou o professor de Investigação
Criminal a auxiliar as investigações da Polícia Civil. Este aceitou.
Foi apresentado a um agente da Civil que seria seu cicerone nos casos,
muitos deles já abandonados, tanto pela falta de indícios e pistas como pela
falta de meios. Certamente, a origem humilde dos desaparecidos também
contribuiu para a falta de interesse oficial. Ao fim, ficaram somente o agente
da Civil do DF e o agente da Federal.
Dentre todos os casos, um comoveu sobremaneira os investigadores:
uma menina de quatro anos que desaparecera no Gama, cidade-satélite de
Brasília. A mãe tinha somente dois filhos, um de dez anos e a menina de quatro. Havia seis meses que o marido caminhoneiro morrera num acidente na
Av. Dutra. Dois meses antes do sequestro da pequena Valdirene, seu irmão
esquecera de levar cartolina para trabalho em grupo no colégio. A professora, ignorando a determinação da diretoria, permitiu que Paulinho fosse até a
livraria próxima comprar o material. Ao voltar para o colégio, foi atropelado
por um táxi, morrendo instantaneamente.
Dos filhos e marido, duas fotos do pai e filho, e um pequeno monóculo de foto com que Valdirene brincava no quintal. Loirinha, cabelos cacheados, magrinha, mas com ar esperto. O monóculo fora fornecido pela mãe
aos agentes. Dali em diante, focaram mais neste caso, por sentirem o sofrimento da pobre mulher, bem como por possuírem alguns leves indícios,
inexistentes em outros casos.
O agente da Civil dedicou-se a seguir pistas envolvendo parentes,
médicos, motoristas de caminhão e taxistas, pastores, pais de santo, etc. O
federal se infiltrou nas casas de meretrício do Km 40, na divisa do DF com
Goiás. Com uma cobertura de evadido do presídio de São José dos Pinhais,
no Paraná, e com bom estoque de maconha, logo se enturmou. Bebia dia e
noite, e dormia (quando podia) no quarto da dona de uma das casas, que lhe
cobrava alojamento em espécie. Depois de uma semana, já estava bem entrosado e começou a fazer as primeiras pesquisas.
Soube que um taxista de Itumbiara, cidade na divisa sul de Goiás com
Minas Gerais, costumava passar por ali, sempre com meninas menores de
idade; que, na última vez, apareceu por volta das nove da noite acompanhado de uma menina maltrapilha, aparentando oito, no máximo dez anos, e so-
licitou um quarto para ambos; que, durante toda a noite, as mulheres da casa
e seus fregueses escutaram os gritos da menina e as pancadas que ela levava;
ninguém fez nada, exceto uma louca, que já fora secretária de um senador e
acabara ali viciada em drogas. Que a ex-secretária foi a única a bater na porta
e ameaçar chamar a polícia; que o taxista abriu a porta, colocou um revólver
em sua cara e a ameaçou; que a viciada buscou a dona do estabelecimento,
quem disse que não era para se intrometer; que, ao amanhecer, o taxista saiu
do quarto, levando a garota nos braços, que estava disforme de tantos hematomas no rosto; que havia sangue em todo o vestido; que saíram em seguida
rumo a Itumbiara. Que o nome do taxista era Bira, traficava drogas na sua
cidade e arrumava meninas para os bordéis de Goiânia e Anápolis.
Dois dias depois, já estavam em Itumbiara, onde foram recepcionados por um colega da Polícia Civil da cidade, amigo do agente de Brasília.
O agente local conhecia o tal de Bira e sabia como encontrá-lo. Estava claro para o agente que seria uma operação clandestina. Por isso, ao ficar sabendo dos pormenores do caso, disse que, em função de ser conhecido pelo
procurado, este não poderia permanecer vivo. No entanto, o agente federal
tinha outros planos, os quais expôs para tranquilizar os dois agentes da Civil,
do DF e de Goiás.
Bira tinha por hábito, nas noites que trabalhava no ponto, terminar o
expediente com uma passada numa zona que ficava junto à Hidrelétrica de
Itumbiara, no Rio Parnaíba. Ali tomava uns tragos e às vezes dormia com
uma das garotas, costumava sair antes do amanhecer. Por isso, resolveram
verificar se iria trabalhar à noite nos próximos dias, para executarem o plano. Por coincidência, no dia seguinte Bira já tinha combinado com seu parceiro no táxi que à noite seria seu plantão.
Na noite seguinte, já de madrugada, os três estavam de campana próximos à zona. Às 2h15 da madrugada, Bira saiu, pegou seu carro, um Corcel
GT, e dirigiu uns duzentos metros pela via que margeava o rio. Num lugar
menos iluminado, próximo a um balão, foi interceptado pelos agentes. O
agente da Civil do DF permaneceu no volante, enquanto o de Itumbiara dirigia-se para o lado do carona do veículo abordado. O agente federal apontou
para a cabeça de Bira com uma HK MP5, mandando-o sair com as mãos para
cima. Assim que saiu, foi algemado nas costas, revistado e colocado no outro
carro. Portava um 38, e no porta-malas uma escopeta calibre 12.
Bira, assustado, mas mantendo o ar arrogante, dirigiu-se ao agente
goiano:
“Te conheço, cara. Qual é que tá rolando? Não sou bandido. Tu sabe
que eu trabalho na praça.”
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
direne e perguntou:
“Cala a boca! Fica na tua, se não quer piorar as coisas!”
“Onde está essa aqui?”
Foram até a divisa entre os estados de Goiás e Minas Gerais, atravessaram a ponte sobre o Parnaíba e, dois km adiante, já em território
mineiro, entraram numa estradinha de terra que circundava a usina de álcool de Araporã. Rodaram até os fundos da área pertencente à usina, onde
ficavam as lagoas de decantação do vinhoto.
“Não conheço, nunca vi.”
“Joga logo”, disse o goiano, dando um chute nas costelas de Bira.
Lá chegando, o agente federal passou a submetralhadora para o agente do DF, e tirou as algemas de Bira.
“Espera, pelo amor de Deus. Deixa eu olhá direito. Não tô enxergando
quase nada, tem sangue nos meus olhos.”
Bira estava apavorado, certo que seria morto. Olhou para um lado e
para o outro, avaliando suas chances, mas teve seus pensamentos cortados
pela ordem do agente federal:
De fato, os olhos estavam entumecidos pelas porradas, também os supercílios rasgados, e o sangue impedia que ele visse qualquer coisa direito.
O agente do DF apanhou uma estopa no porta-malas e limpou o rosto do
vagabundo.
“Se ele tentar fugir, passa fogo!”
Então olhando melhor, disse:
“O que tu quer saber, cara?”, choramingou Bira.
“Essa guria eu não peguei, quem tava com ela era um caminhoneiro
de Sergipe.”
“Nada. Não quero saber nada...”
O primeiro soco destroçou o nariz de Bira. O sangue saía em profusão,
impedindo-o de respirar. Em seguida, com fúria animal, castigou severamente o rosto daquele filho da puta. Quando estava uma massa disforme, foi
contido pelo agente goiano:
“Chega, deixa que acabo com ele...”, apontando o revólver para a
cabeça de Bira.
“Não. Algema ele novamente. Vamos amarrar os pés. Traz a roda que
tiramos do estepe e amarra nos pés dele. Vamos jogá-lo na lagoa de vinhoto.”
Quando o miserável já estava empacotado, recuperou a consciência e
balbuciou:
“Pelo amor de Deus, não faz isso, eu tenho filhos pequenos...”
“Te importas com os teus filhos? E as filhas dos outros? As meninas
que pegas tu detonas, filho da puta!”
“Joga ele na merda, logo!”
“Espera, espera! Ele me contou que apanhou ela no Gama e que vendeu lá mesmo para um tal de Osni José da Silva, conhecido como Lúcifer.
Um cara que veio de Alagoas e tem um terreiro de kimbanda no Gama.”
“O que esse caminhoneiro fez com ela? Como era o nome ou apelido
dele? Qual era o caminhão dele, marca, cor, placa?”
“Não sei, cara. Nós somente tomamos uns tragos juntos num posto
perto de Santo Antônio do Descoberto. A conversa surgiu porque eu vi a
menina na boleia e puxei papo. Perguntei se não queria um dinheiro por ela,
e ele me disse que já estava vendida e que não valia muita coisa porque era
pequena demais para sacanagens.”
toda?”
“Onde está a menina que levaste para a casa da Coelha e arrebentaste
“Entreguei para uma dona que tem casa em Aparecida de Goiás.”
“Vamos jogar logo esse cara na merda!”
“Vamos acabá logo com isso.”
“Espera”, disse o agente federal.
Pegou numa pochete dentro do carro o monóculo com a foto de Val-
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“Não, tenho outros planos para ele.”
EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
Colocaram Bira no porta-malas. Já na estrada, rumo a Brasília, confidenciou que seu pessoal tinha arreglo com um juiz, e que Bira iria para o
presídio do Urso Branco, em Rondônia. Lá pagaria seus pecados. Iria implorar que o matassem...
Cinco dias depois, já no terreiro de Pai Osni, o agente federal participou de uma roda de mesa branca, onde cada um dos presentes tinha a oportunidade de saber, através da entidade incorporada no pai de santo, sobre
parentes mortos, sócios, namorados... O agente, que identificou-se como tio
de Valdirene, queria notícias da menina. Já tinha mostrado o monóculo para
Osni.
Quando estavam todos circundando a mesa de mãos dadas, a entidade, depois de ter trazido mensagens para todos os presentes, menos para
o caso de Valdirene, através de Osni fala o seguinte:
“Zifio fica tranquilo. O cavalo, mesmo pequeno, tinha contas pra
acertá. Agora tá bem. Vejo ela com olhos de luz e o ventre puro, branco. Agora tá em paz!”
O agente sentiu um calafrio. Sentiu-se tomado por terror puro, sentia
a maldade no ar. A vontade que tinha era esgoelar o pai de santo ali mesmo,
mas precisava saber mais, tinha uma mãe esperando. Havia a possibilidade
de a menina ainda estar viva e ser resgatada. Precisava ter calma.
Esperou os trabalhos terminarem e ficou de conversa com Osni na
estrada em frente ao terreiro. A uns cem metros, o jipe com o agente da Civil
do DF. Eram onze horas da noite, ninguém mais na rua. Fez o sinal combinado, o jipe chegou até eles. Ofereceu carona para Osni, ele agradeceu dizendo
morar perto e que iria caminhando.
Não havia outro jeito: sacou a pistola e mandou-o entrar no carro.
Osni calmamente falou:
“A justiça dos homens é forte, mas a de Deus pode mais...”
Foi levado para a delegacia do Gama. Os plantonistas, que já conheciam o agente, facilitaram o acesso a uma das salas da delegacia.
O agente federal foi curto e grosso:
“Vou perguntar uma vez só: onde está a menina?”
“Não sei. Não conheço.”
O agente sacou a pistola e atirou na coxa esquerda de Osni. O estrondo fez que os plantonistas e o policial civil corressem até a sala. Entraram de
arma em punho e agitados.
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
de cupim, disse:
“Que porra é essa, cara? Atirar aqui dentro?”
“Ali tá o Anjinho!”
Enquanto isso, Osni, mesmo contorcendo-se de dor, parecia calmo.
Um dos plantonistas disse que tinham que sair e que deveriam deixar
tudo limpo antes que o delegado do turno chegasse.
O agente concordou, pediu mais uns minutos para conversar com o
pai de santo. Tão logo saíram, apanhou um catálogo telefônico e atingiu a
lateral da cabeça de Osni, que caiu ao solo sem um “ai”.
“Ou tudo ou nada – ou me fodo, ou resolvo essa merda”, pensou o
agente federal.
“LÚCIFER, presta bem atenção, seu escroto. Vou atirar na tua outra
perna. Depois, vou perguntar só mais uma vez; se demorares pra responder,
vou atirar na tua cabeça.”
Sacou novamente a pistola e atirou na outra perna.
Ao amanhecer, a Criminalística desenterrou os restos mortais da
menina. Barriga recheada com farinha, ausência de órgãos internos, e duas
velas vazando os olhos. O Anjinho Valdirene fora vítima de um maníaco do
demo.
Após o recolhimento de provas, o agente federal encarregou-se de
conduzir Osni para um hospital do Plano Piloto e colocá-lo sob custódia da
Polícia Civil.
No entanto, Lúcifer não chegou ao seu destino.
O agente, interrogado, disse que fora interceptado no caminho e que
o preso fora resgatado por cinco homens armados. O cansaço e a emoção
impediram que notasse maiores detalhes do evento. Ficou por isso mesmo.
“Me leva até a menina agora!”
Os plantonistas, putos, comentaram com o outro agente:
da!”
Havia sinais de terra remexida junto ao cupinzeiro. Manobraram o
jipe de tal maneira que iluminasse bem o local, e cavaram a terra com ferramentas do veículo. Estava lá.
“Esse cara é doido. Dando tiro dentro de uma delegacia, de madruga-
O agente federal era Gottardo. Tinha à época vinte e seis anos. Quatro
anos depois, sairia da polícia.
“Claro, esses caras da Federal são folgados. O recinto não é deles.”
Osni, no chão e desesperado, gritava:
“Para, para, cara! Eu te mostro onde ela está!”
Nesse momento, surge o delegado com os plantonistas, e pergunta:
“Quem é o senhor? E quem é esse homem?”
E sem esperar resposta, deu ordem de prisão. O agente do DF pediu
para falar a sós com o delegado. Minutos depois, este mandou que todos os
estranhos saíssem da delegacia.
O agente federal e seu parceiro algemaram Osni, colocaram no jipe
e dirigiram até Santo Antônio do Descoberto. Lá, foram até uma cachoeira
apontada por Osni, que alternava entre momentos de lucidez e desmaios.
Ao chegarem à cachoeira, Osni, apontando para um gigantesco ninho
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
CONFRONTANDO CACAU
cau para Cristina (a funcionária de Brasília) no dia seguinte pela manhã.
Parte da gravação:
Gottardo achou que chegara a hora de colocar as coisas em pratos limpos. O que presenciara no Rio mexia com suas convicções mais profundas e
trazia à tona um passado que esforçava-se por esquecer.
A conduta dúbia de Cacau exigia esclarecimentos. Independente
do trabalho a realizar, tinha agora autoestima e respeito próprio que tornaram-se imperativos para sua conduta, seu viver. Sabia mais do que ninguém o quanto lhe custara para tornar-se o homem de hoje. O quanto deixara pelo caminho, quanto sofrimento para si e para os outros. Não seria a
arrogante Cacau que lhe impingiria um comportamento indigno, aceitando
por conveniências mentiras e embustes.
Todavia, antes necessitava falar com Coco e Cláudio, queria saber o
que haviam apurado. Também queria escutar Ely – além de trabalhar com
Cláudio, buscara seus contatos e utilizara de meios que seu passado profissional lhe proporcionara.
Resolveram dar uma pausa nos contatos com a família, funcionários e informantes. Gottardo providenciou hospedagem para os quatro: um
final de semana num modesto hotel fazenda em Santa Catarina, a 30 km
de Florianópolis. O Hotel Fazenda Santo Amaro da Imperatriz, situado no
município de mesmo nome, onde encontra-se uma das melhores estâncias
hidrominerais do país. À época do Império, era conhecida e frequentada pela
Família Real, principalmente pela Princesa Isabel e seu séquito. Ali, naquele
lugar bucólico e tranquilo, poderiam fazer um balanço das informações coletadas, bem como definir as próximas estratégias.
Chegaram na sexta-feira à tarde, alojaram-se e, após o lanche servido
às 15h ao redor das piscinas, foram ao chalé de Gottardo para iniciarem os
trabalhos.
Inicialmente, Cláudio e Ely fizeram um relato das investigações no Rio
de Janeiro. A visita e os trabalhos de Cacau com Mãe Zina estavam ligados ao
desejo da primeira em saber o paradeiro de Dennis e, surpreendentemente,
dos sequestradores... Foram pagos cinquenta mil reais pelos trabalhos, e o
resultado fora inexplicável: Dennis estaria vivo, porém muito longe; os sequestradores estavam mortos! De acordo com a informante, Cacau e seu
acompanhante saíram transtornados.
Coco, num breve relato, pôs os presentes a par de telefonemas de Ca-
“Cristina, é a Cacau. Ontem fui naquele local que o Rodrigo me levou.
A mãe de santo disse que o Dennis está vivo, graças a Deus! ...Mas que os
caras que pegaram ele estão mortos!”
“Impossível! ...Deixa que eu vou fazer uns contatos.”
“Estou quase ficando louca! Se ele está vivo e os sequestradores mortos, por que não apareceu? Presta atenção, você me disse para ficar tranquila, que cuidaria de tudo. Te paguei para não me incomodar!”
“Fica fria, Cacau. Você está dando muito importância à macumbeira.
Esse pessoal fala qualquer coisa, é malandro. Sentiu o seu interesse oculto e
tenta se aproveitar criando um vínculo. No fundo, é uma ameaça de chantagem velada.”
“Não. O Rodrigo conhece ela há muito tempo, e parece que é séria.”
“Deixa que vou manter os contatos e tirar isso a limpo. Fica fria, o
Dennis está morto...”
Em seguida, após ter desligado o telefone, Cristina saiu dirigindo-se
ao Setor Bancário Sul de Brasília, usou um orelhão.
“Não pudemos gravar, mas conseguimos o número para o qual ela ligou. Foi para um celular com prefixo 51, Porto Alegre, e a conexão se deu
através da ERB que está próxima ao Presídio Central de Porto Alegre. Nosso
contato na área levantou junto à inteligência penitenciária que o celular foi
atendido por Paulo Maluco, um traficante catarinense, membro do PCC com
passagens pelos presídios paulistas e cariocas”, disse Coco.
Na tarde do mesmo dia, Cristina fez uma ligação de seu apartamento
no Blue Tree, onde estava hospedada. A ligação fora para o major Cesário,
um dos capos do misbranding (adulteração de combustível) no estado de
São Paulo. Essa, Coco conseguir gravar:
“Oi, Cesário. Cristina. Precisamos conversar. Amanhã vou a São Paulo
e vou até seu escritório. Tem tempo?”
“Imagina, minha linda! Pra você sempre tenho tempo. Por que não
vem depois de amanhã, e vamos para minha fazenda? Estou com saudades
suas.”
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
“Não posso esperar. Deu rebu, e agora não é momento para sacanagem. Depois temos tempo para isso. A Cacau tá fora do ar, soube que o Dennis tá vivo...”
Gargalhando: “Cris, larga de mão essa Cacau. Essa mulher é pirada.
Pode ser que o Dennis tenha ressuscitado. Quem sabe levaram o cadáver
dele para um dos cultos do teu pai e ele ressuscitou? O teu pai é poderoso!”
“A coisa é séria, já conversei com o pessoal de Porto Alegre.”
“Porra, te falei para não ligar para lá. Quer me foder? Quer se arrombar? Já te falei que esse pessoal é monitorado, que eu tenho outros meios de
me comunicar com eles.”
“Tô indo amanhã praí. Fica calmo, depois te recompenso... Ah!, outra
coisa, não mete o meu pai na nossa conversa.”
“Fica fria, não quis te ofender. Te espero. Beijão.”
Os quatro foram interrompidos pelo sistema de som do hotel convidando os hóspedes a participarem da seresta junto às piscinas e churrasqueira,
após o jantar servido às 20h. Resolveram então fazer uma pausa para aproveitarem as banheiras de água termal, famosas pelos efeitos milagrosos para a
saúde. Depois jantaram e decidiram que participariam da seresta.
O descanso dos guerreiros... Para os argentinos, uma novidade. Para
os brasileiros, uma possibilidade.
Os chalés, construídos com troncos, banheiros e cozinhas com pedra,
circundavam o lago. Havia um pequeno ancoradouro, onde ficavam pedalinhos e caiaques. No meio do lago, uma pequena ilha, onde gansos e cisnes tinham seus ninhos. Ao redor de todo o lago, na pista que o rodeava, hortênsias,
rosas e violetas.
Por dentro, os chalés uniam rusticidade e conforto. Cama de casal
king size, tevê LED, frigobar, cozinha diminuta com micro-ondas, chapa,
armários embutidos. Na toalete, uma imensa banheira de mármore de Carrara. Uma enorme torneira de latão fornecia a água milagrosa das termas
da região. Vinha escaldante. Ao lado, junto à banheira incrustada no piso de
mármore da região, um toucador e pia, onde encontravam-se sais minerais,
sabonetes neutros, toalhas, toucas, etc.
Todos aproveitaram bem o tempo para relaxar e usufruir dos efeitos
benéficos da água mineral. Mais tarde, encontraram-se junto ao deque da
piscina central para saborearem um jantar típico de fazenda.
Por volta das 21h30 começou a seresta. Uma curiosidade: todos os
músicos e cantores eram funcionários do hotel. Garçom, cozinheira, arrumadeiras, encarregados do curral, atendentes da portaria – todos sem exceção
participavam da seresta. Souberam que residiam na própria fazenda, onde
viviam como uma grande família. O clima estava fabuloso. Uma noite tépida
de outono, céu estrelado, pequena brisa e músicas de hoje, ontem e antigamente. Gottardo e Cláudio partiram para o uísque, Ely e Coco para o vinho.
Trabalho – assunto proibido!
Ely, que somente tinha ido a Buenos Aires há muitos anos, em sua lua
de mel, conversava animadamente com os dois argentinos sobre seu país
e costumes. Gottardo, mais na sua, viajava ouvindo boleros e música sertaneja. Volta e meia olhava para Ely. Bonita, a chiquilina. Por duas ou três
vezes, teve a sensação que também era observado. Em dado momento, uma
das moças do hotel tirou Cláudio para dançar. Outra tirou Coco. Ficando somente os dois na mesa, Ely convidou Gottardo para dançar. Ele, embaraçado,
disse que era mal dançarino e se desculpou por isso. Ao que Cláudio voltou
da dança, Ely discretamente contou-lhe que pareceu ter pisado na bola.
Cláudio, maroto, disse sorridente: “Tranquiliza-te, el viejito está se
guardando para mais tarde...”
Gottardo, que ouvira, dirigiu-lhe um olhar fulminante que acabou
numa risada dos quatro. Por volta de meia-noite e meia, combinaram o café
da manhã às 9h e retiraram-se aos seus aposentos.
Às 6h10, Cláudio dirigiu-se para o ancoradouro, tomou um caiaque,
disposto a remar um pouco. Ao manobrar em direção à ilhazinha, viu Ely sair
do chalé de Gottardo... “Viejito hijo de puta...”, pensou Cláudio. No fundo,
feliz: seu amigo precisava e merecia.
Já no restaurante, no abundante café da manhã estilo colonial, Cláudio surpreendeu-se com as olheiras de Gottardo:
“¡Pero mi amigo, pareces un perro de San Humberto, un bloodhound!”
Novamente Gottardo amarrou a cara, e lhe disse para cuidar da própria
vida. Provocador, Cláudio não se deu por vencido:
“Por supuesto pasó la noche pensando en Cacao...”
Enquanto faziam o desejum, Cláudio estava com a corda toda, cantarolava olhando de esguelha para Ely: “Mulher nova, bonita e carinhosa //
Faz o homem gemer sem sentir dor!”... E, continuando a provocar, perguntou a Gottardo como era o nome dessa música que tinha sido cantada na ser-
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
esta. Gottardo, imediatamente: “Essa música não foi tocada ontem à noite!”
– afinal, todos gargalharam, contagiando o reservado brasileiro.
Conselho de Segurança Nacional por alguns anos durante o regime militar.
Lá fizera amizade com um militar que hoje chefiava a ABIN, o general Átila.
Ao terminarem a refeição, resolveram continuar os trabalhos num
caramanchão que ficava próximo às quadras de esporte. Foram cada qual
para seu chalé apanhar o material necessário.
Durante algumas crises que a Agência enfrentara, esse amigo de Dennis fora chamado a dar sua colaboração profissional, preparando o pessoal
para o gerenciamento de crise, notadamente no trato com a mídia e a política
de imagem institucional do órgão. O general viu a oportunidade de fazer uma
excelente permuta: em troca de ajuda pontual a alguém enrolado, engordava
seu dossiê sobre um político que poderia chegar a presidente.
Já no caramanchão, Cláudio e Ely fizeram um relato do apurado sobre
o arquiteto, sobre o aspone e outros assuntos.
O arquiteto, amigo de Dennis, vivia sem trabalho, e quase sempre chapado. Era muito ligado a um traficante recentemente preso pela Polícia Civil
do Paraná.
Foi observado por pessoas de seu convívio que, após o trabalho de
reforma no apartamento de Dennis, aliviara na droga e ostentava roupas
caras – aparentemente, ganhas de Dennis. Após o sequestro, começou a frequentar lugares caros e a gastar de maneira inusitada. Não foi investigado
pelo DAS.
Quanto ao aspone, Clemente, quando esteve no sítio de Embu deixou
com Dennis um volume contendo o material de gravações que coletara durante anos. Aparentemente, foi convencido por Dennis a deixar o material
sob sua guarda, pois seria perigoso mantê-lo no apartamento de Clemente.
O que Clemente não sabia é que Dennis já tinha negociado o material com a
equipe de campanha do candidato da situação. Tirara cópias do material e estava esperando para entregar, quando dois fatos assustaram o marqueteiro.
Dennis costumava participar de surubas com Igor e Clemente. Eventualmente, com um quarto elemento: o arquiteto. Quando Igor desapareceu,
e posteriormente seu corpo foi encontrado com várias perfurações de bala,
Dennis, assustado, contatou Gert, pedindo para paralisar as negociações.
Quando Clemente morreu, Dennis soube que sua morte não fora acidental e
que, seguramente, seria o próximo. Afinal, estava em jogo a presidência de
um país importante. E, por muito menos, centenas morriam diariamente no
Brasil.
Aparentemente, de alguma maneira Dennis fora ajudado. No entanto, por melhor que fosse o relacionamento de Ely com o general, ela não
tinha conhecimento de mais nada até o acontecimento do sequestro. Contudo, uma descoberta importante, talvez significativa: Dennis estava doente! E
não eram os seus achaques de usuário de drogas pesadas, nada tinha a ver
com coração ou enfermidades psicossomáticas. Também não era Aids.
Ainda não haviam conseguido acesso à ficha médica atualizada de
Dennis, pois fora examinado por um médico em Barcelona recomendado
por uma amiga, jornalista com quem trabalhara na revista Realidade. Atualmente, ela vivia exilada na Espanha, pois tivera um filho de um senador que
se tornou Presidente da República. Nem a jornalista, nem o médico deram
pistas do mal que afligia Dennis. Também souberam que Dennis havia consultado um médico argentino, porém também não tiveram êxito quanto ao
diagnóstico.
Gottardo passou a relatar suas investigações sobre a personagem misteriosa que meses atrás almoçara com Dennis em seu apartamento: Maria
Helena. Contou que, em seu apartamento no Della Volpe num final de semana frio e chuvoso, dedicara-se a estudar os celulares e as agendas de Dennis.
A agenda mais antiga datava de nove anos antes. A última ainda estava em uso, e era daquele ano. Com o auxílio de um software, cruzou dados
das agendas com as listas de telefonemas e os números constantes nos celulares. Um número repetia-se e um nome sobressaía: Maria Helena. Num certo período, houve mudança de número, mas a pessoa parecia ser a mesma.
Resolveu tirar o material das mãos de Gert e, juntando com os originais que estavam no sítio, tratou de guardá-los em um lugar que lhe parecia
seguro. Ao mesmo tempo, fez um seguro de vida, chamou um amigo e colocou-o a par do assunto, confiando-lhe provas que seriam divulgadas em caso
de seu desaparecimento.
Resolveu arriscar, telefonou para o número mais recente, cujas ligações
batiam com o período dos almoços na casa de Dennis. Ligou e, sendo atendido por uma voz feminina, pediu para falar com Maria Helena.
Seu amigo, ex-sócio de uma empresa de comunicação, assessorara o
“Meu nome é Gottardo, estou trabalhando para a Cacau. Gostaria de
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“Sou eu. Quem deseja?”
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falar contigo, pois estou recorrendo a todos, amigos, ex-funcionários e conhecidos, para tentar conseguir alguma informação que possa ajudar o Dennis.”
“Como o senhor chegou até mim?”
“Não gostaria de falar ao telefone. Poderíamos nos encontrar?”
“Um momento.”
Vozes ao fundo davam a impressão de que Maria Helena estava falando com alguém.
“Tudo bem, como faremos?”
“Por que não vens almoçar comigo no meu hotel? Estou hospedado no
Della Volpe, na Frei Caneca.”
“Que horas está bem para o senhor?”
“Pode ser 13h.”
“Tudo bem, estarei aí.”
13h em ponto, a recepção comunicou que um casal estava aguardando
no hall.
Gottardo teve uma surpresa: a visitante destoava das demais funcionárias da First Team. Baixinha, gordinha, óculos de lentes grossas, cabelos ruivos curtos, olhos verdes emoldurados por um rosto coberto de sardas.
Tinha um ar inteligente e transpirava sobriedade, parecia uma pessoa séria.
Seu acompanhante, apresentado como marido, não destoava em termos de
imagem, somente era uns dez centímetros mais alto, magro, com cabelos e
olhos castanhos. Ambos vestidos modestamente, e era óbvio que estavam
desconfortáveis. No entanto, no olhar de ambos, Gottardo sentiu seriedade
e determinação. Ar de quem não devia nada a ninguém. Após as apresentações, o marido manifestou-se:
sa conversa.”
“Se o senhor não se importa, iniciamos imediatamente nossa conversa, pois já temos compromisso para almoço. Quando a Maria Helena foi almoçar com o Dennis no seu apartamento, julgamos que ele queria convidá-la
para voltar à empresa, como já tinha feito outras vezes. No entanto, dessa vez
foi diferente. Quando ela chegou em casa e me contou o assunto tratado, eu
aconselhei a não aceitar. Quero dizer que, não pelo fato de estar na presença
dela, nem por ser minha mulher, mas a Maria Helena é uma profissional
séria, ética e responsável. Sabia que, independente de minha opinião, ela não
aceitaria. Mas deixo ela contar o que houve.”
“Fazia um ano, aproximadamente, que não via o Dennis, e por isso
fiquei surpresa com sua ligação. Também sabia que só raramente convidava
alguém para almoçar com ele em seu apartamento”, disse Maria Helena.
“Lá chegando, fui recebida pela Rose, a empregada, e conduzida ao
andar de cima. Dennis me esperava e perguntou se eu queria beber algo.
Agradeci e disse que estava curiosa para saber o motivo de minha convocação. Imediatamente, enquanto Rose arrumava a mesa, me disse que ele e
Gert estavam pensando em abrir uma nova empresa. Coisa pequena, para
atender clientes pontuais. Mas que, em razão dos contratos que ambos tinham, necessitavam colocar em nome de terceiros. Perguntei qual seria o foco
da empresa. Ele, inclinando-se, como quem faz confidência e baixando o tom
de voz:
‘Maria Helena, não preciso falar do quanto confio em você, nem como
foi bom trabalhar contigo. Por isso, vou falar francamente: eu atendo a
Petrobras, e o Gert a ESE. Necessitamos de uma pequena empresa para subcontratação. No entanto, ambas nossas contratantes devem ignorar nossos
vínculos. Sem muito esforço, podemos ganhar um bom dinheiro e ainda ampliar nossos contratos já existentes.’
“Senhor Gottardo, nós tomamos a iniciativa de confirmar com a Cacau
sobre sua pessoa. Para nós está claro que, se o senhor foi contratado para
esta finalidade, é lógico que é confiável e está habilitado para fazer o que está
fazendo. Por isso, aconselhei minha mulher a vir até aqui para conversarmos
e ajudarmos no que estiver ao nosso alcance.”
“Perguntei se os trabalhos seriam operacionais, de serviços de criação,
execução, gráficos, eletrônicos, etc. Ele disse que não, seriam para atividades de pesquisa interna, dimensionar problemas, lidar com informações
estratégicas das empresas. Que, possuindo as duas pontas, estaríamos em
situação privilegiada. Nossos produtos seriam informações privilegiadas e
estratégicas, as quais Gert se encarregaria de negociar no mercado. Salientou
que, tendo em vista o anúncio das descobertas do pré-sal, tanto a Petrobras
como a ESE teriam a oportunidade de fazer grandes negócios, e nós certamente também ganharíamos.
“Obrigado. Vamos para o restaurante? Almoçamos e adiantamos nos-
“Essa conversa durou três dias, e eu sempre argumentando com ele
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que seria algo extremamente arriscado, além de ilegal. Ele queria me tranquilizar, lembrando que era o encarregado da campanha presidencial daquele
quem as pesquisas indicavam como vencedor. Assim, teria as costas quentes.
Numa das conversas, insinuou que o senador seria seu sócio oculto”, concluiu Maria Helena.
“Assim que ela chegou em casa, me contou e fiquei surpreso. A Maria
Helena ainda comentou: ‘Sabia que o Dennis era doido e que gostava de dinheiro, mas ele me surpreendeu! Vai acabar se dando mal.’ Desta vez ele se
superou em porra-louquice...”, disse o marido.
“E qual foi sua resposta final para ele?”, perguntou Gottardo.
“Depois desses três almoços, falei que estava disposta a voltar a trabalhar com ele porque me encontrava desempregada e gostava da First. No
entanto, não podia aceitar o que ele me tinha proposto, porque não acreditava que desse certo. Preferi falar dessa maneira para não ofendê-lo, nem
causar constrangimento. Ainda perguntei se a Cacau estava a par daquela
iniciativa, e ele ficou brabo:
‘Deixa a Cacau fora desse assunto, e não fale sobre isso com ninguém!’
“Perguntou se eu tinha alguma sugestão para me substituir na empreitada. Num momento de bobeira comentei que, se havia alguém que talvez
desse conta do assunto e topasse, essa pessoa era a Ângela, da conta PERNOD RICARD.”
“Sabes se ele botou em prática seus planos?”
“Não sei. Somente observei que ele estava determinado em seguir em
frente. Se não fosse comigo, seria com outra pessoa.”
Ficaram mais uma hora conversando, e quando Gottardo perguntou
sobre seu feeling em relação ao acontecido com Dennis, Maria Helena foi
peremptória:
“Acredito que está morto! Ele perdeu o juízo. Ele e a Cacau, de uns
tempos para cá, competiam como dois insanos por dinheiro e sucesso.”
e Rio Grande do Sul. Após o almoço, seguiram para outro caramanchão à
beira do lago, próximo a onde saíam os cavalos e charretes para passeios dos
hóspedes, e refestelaram-se no redário existente no local. Cada qual ocupando sua rede, sestearam até as 15h, quando Coco chamou a todos.
Resolveram continuar ali mesmo as conversas, o local era reservado e
silencioso.
Gottardo disse que estava na hora de voltar a falar com Marlene, buscando informações sobre o pastor, pai de Cristina, e procurar saber se a mulher misteriosa que deu o telefonema não era coisa de Marlene. Encarregou
Ely de conversar com Jarbas, e Cláudio com Ângela, funcionários da First
Team que ainda não haviam sido entrevistados.
Em relação a Cacau, disse que tinha alguns questionamentos:
1.
Por que relutara tanto em pagar o primeiro resgate, e agora, mesmo sem comunicação dos sequestradores, deixara seiscentos mil dólares com
Marlene para eventual pagamento? Por que essa importância específica?
2. O que significava seu telefonema para o escritório de Brasília,
para Cristina?
3. Qual o papel do major Cesário?
4. Cacau mandara sequestrar Dennis?
5. O que significava a conversa inicial do coronel Guedes, no primeiro encontro em Montevidéu?
6. O que significava fazer o possível para demonstrar que “Cacau
fizera tudo ao seu alcance para resgatar Dennis”?
7. Qual a preocupação com o destino dos sequestradores?
8. Por que Cacau mantinha Cristina na empresa, contrariando a
vontade de Dennis?
9.
De repente, escutaram o sino chamando os hóspedes do hotel fazenda
para o almoço. Resolveram continuar às 15h.
Como sempre, o serviço da cozinha estava impecável. Servidas num
enorme fogão à lenha, comida campeira, feijoada; saladas variadas e uma
mesa de doces caseiros de dar inveja aos restaurantes típicos de Minas Gerais
Qual o papel da outra Cristina? E de Hugo Leal, da ESE?
10. Qual o humor do senador em relação ao sequestro de Dennis?
Após estes questionamentos, que seriam respondidos no decorrer das
próximas investigações, resolveram tomar algumas medidas práticas.
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Ely, que até o momento mais escutara que falara, acreditou que era
chegada a hora de aumentarem a temperatura e pressão sobre todos. Nada
de luvas de pelica. Porrada mesmo!
“Tenho uma sugestão: que acham de eu arrumar uma vidente que
indique para Cacau o local onde se encontra Dennis?”, perguntou com ar
venenoso.
“Acho boa a ideia”, disse Cláudio. “E também acho que os sequestradores devem voltar a comunicar-se. Precisamos testar Cacau e o DAS.”
“Ótimo, então mãos à obra”, disse Gottardo, e aproveitou para solicitar a Coco que tentasse utilizar gente sua para monitorar o encontro de Cristina com o major Cesário.
Conversaram um pouco mais, e depois dirigiram-se para uma cancha
de bocha, onde disputaram em duplas. Coco e Ely ganharam dos velhinhos.
No dia seguinte, Ely e Coco, aproveitando o domingo, foram até a vizinha Florianópolis, conhecida por sua beleza e pela abundância de restaurantes de frutos do mar. Gottardo e Cláudio ficaram, aproveitando para descansarem e pôr o papo em dia. Na hora do almoço, Cláudio, fitando fixamente
Gottardo:
“Não sei por quê, tenho a sensação que você sabe mais do que nos conta. Sinto que existe algo que te mantém calmo nessa zorra toda, está muito
paciente com Cacau. Tem alguma coisa para me contar?”
“Não. Somente estou ficando velho e cansado de tudo isso. Vamos em
frente para ver o que nos aguarda. Amanhã eu viajo só, via Curitiba, e vocês
três vão mais tarde, diretamente para Congonhas.”
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A VIDENTE E OS SEQUESTRADORES
“Nada. Não aporrinha.”
Na segunda-feira bem cedo, Gottardo ligou para Marlene, manifestando seu interesse em encontrá-la e também em falar com Cacau. Pediu que
fosse agendado. Combinaram falar às 14h no escritório, na sala de Dennis.
Em seguida, Gottardo ligou para Cláudio, solicitando-lhe que viesse
ao seu hotel, dizendo que almoçariam ali e em seguida iriam juntos aos escritórios para falarem com Marlene.
tardo.
Chegando, Cláudio dirigiu-se imediatamente ao apartamento de Got-
“Cláudio, hoje vamos fazer diferente, vamos conversar juntos com a
Marlene, e depois faremos o mesmo com a Cacau. Certo?”
“Certo.”
“Outra coisa, temos que ir com cautela com a Ely.”
Cláudio, sorrindo: “Não foi bom para você?”
“Brincadeiras à parte, é uma boa mulher. No entanto, está contaminada por aquela enfermidade incurável que atinge o pessoal da inteligência:
deformação profissional – de tanto interpretar distintos papéis, encarnar
variados personagens, perdem a própria identidade. Nós dois sabemos como
é destruidora essa merda de profissão. Se alguns têm sorte de chegar à velhice, tendo tempo para, distante dos eventos, analisá-los com isenção num
exercício de autocrítica, ainda têm chance de voltarem a ser quase normais.
As sequelas sempre ficam. Por isso, ojo! Não te esqueças que ela é cria do
general Átila. E que uma vez plugado, sempre plugado.”
“Tudo bem.”
“Gostaria que, daqui para frente, conduzas as entrevistas. Me deixa
como observador. Lembra-te de que, para a Marlene, não deves passar
qualquer indício de que eu tenha te falado de nossas conversas no restaurante. Com Cacau, procura ser o mais impessoal possível. Se por ventura for
necessário, me afasto para que faças um solo.”
Conversaram sobre outros assuntos, tais como a agenda de ambos
após terminarem aquele trabalho. Cláudio manifestou preocupação com o
amigo: “¿Qué te pasa, viejo? ¡No te veo bien! ¿Ely no te hizo bien?”
Mais sério, em português: “Não, meu amigo, te conheço há mais de
vinte anos, conheço tua vida profissional e pessoal; tu o mesmo em relação a
mim. Temos sido amigos e confidentes. Só não somos amantes porque não
somos um o tipo do outro.”
Gottardo, sorrindo: “Não crias jeito, né? Aliás, quem nos observasse
com cuidado diria que o brasileiro da dupla és tu. Mas vamos ao que interessa: não te esqueças de pedir para Marlene que a Cristina venha para conversar contigo. Abre o olho, é cobra criada!”
Almoçaram e foram para os escritórios, onde esperaram um pouco
por Marlene. Enquanto isso, Cláudio colocava os olhos gulosos sobre Bianca,
que nesse dia estava extremamente apetitosa, embalada num tubinho branco justo e curto, que realçava suas formas e valorizava sua cor de jambo.
Enquanto esperavam Marlene, Gottardo pediu a Bianca a chave do
armário de aço que havia no banheiro de Dennis. Toda vez que Gottardo usava o banheiro pensava em abrir o armário, mas sempre esquecia. Perguntou
a Bianca o que havia nele, foi-lhe respondido que eram mudas de roupas
para qualquer emergência.
sala.
Bianca entregou a chave e deixou os dois sozinhos, voltando para sua
Gottardo abriu a fechadura e...
“É puto! ...¡El tipo es puto, Gottardo!”, exclamou Cláudio. Risadas de
Gottardo.
Nunca a expressão “sair do armário” foi tão válida! Duas jaquetas de
couro caríssimas, verde-limão e branca. Calças de couro, bege e preta, botinas, cinturões. Camisetas sem manga de cores variadas.
“Freddie Mercury!”, sacaneou Cláudio.
“Devagar. Estas peças estão novas. Parecem não ter sido usadas. Pode
ser mais uma armação da nossa amiga.”
No fundo, junto a dois pares de mocassins, um celular pequeno e um
carregador. Uma caixa de madeira rústica, do tamanho de uma caixa de sapato, contendo dois pares de óculos e uma pequena máquina fotográfica. Preservativos e Viagra. No fundo, uma bandeja pequena de prata, com uma garrafa de aquavit e dois cálices. Cláudio fotografou tudo, fecharam o armário e
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voltaram para a sala.
Bem a tempo de verem Marlene chegando. Entrou agitada, nervosa.
Cumprimentou ambos.
“Gottardo, acabei de receber uma ligação da Cacau. Ela está vindo do
Rio pra cá e quer falar contigo. Estava fora de si, recebeu dois telefonemas:
um de uma vidente de Goiás, e outro dos sequestradores!”
“Como ela sabe que são os sequestradores?”
go.”
“O cara falou com a mesma voz distorcida e identificou-se como Tia-
Quem estava certa era meu filho, que dizia que eu era a única que acreditava
na conversão de Cacau. Levantei, com a ajuda de uma menina de minha confiança no Rio, qual era a programação de Cacau. Ela me contou da mãe de
santo. Aí tomei a iniciativa de pedir a Marcela, que trabalha comigo, que te
telefonasse, Gottardo. Não queria ser conivente com mentiras ou coisa pior.”
“E por que a menção de que sabia o motivo de Gottardo residir em
Montevidéu?”
“Pelo jeito reservado do Gottardo, e do que não disse no nosso jantar...
achei que essa conversa iria despertar sua curiosidade. Peço desculpas pela
armação, mas queria ajudar, espero que a informação tenha sido útil.”
Cláudio relatou-lhe sucintamente o acontecido no Rio de Janeiro, no
terreiro de Mãe Zina. Marlene demonstrou toda a sua contrariedade com
essas palavras:
“O que falaram?”
“Ela não disse, falou que quando chegar conta.”
“Um abismo chama outro abismo. Eu sabia que esses dois não iriam
acabar bem. Cansei de avisá-los. Mas era ‘coisa de crente’...”
“E essa vidente?”
“Ela não quis adiantar nada. Estava nervosa de uma maneira que me
surpreendeu. Trocava as palavras, falava alto... Enfim, vamos esperar, no
final da tarde ela estará aqui.”
“Já que estamos falando em crente, Marlene, me conta sobre o pastor,
o pai da Cristina.”
“Cláudio, não sei se o Gottardo te contou alguma coisa sobre o que já
falei a respeito desse assunto.”
Cláudio, conforme o combinado, começou:
“Marlene, nós recebemos um telefonema de uma mulher nos alertando que Cacau, ao contrário do que você disse para nós, não estava em Portugal. Estava no Rio. Sabe alguma coisa disso?”
“Olha, me perdoem. Não menti para vocês quando disse que ela iria
para Portugal. Foi ela que me contou e pediu que repassasse para vocês, além
de ter me entregado os dólares para colocar no cofre. O que aconteceu foi que
naquela tarde ela embarcaria para o Rio e depois para Lisboa, e encontrei no
gabinete dela um pacote grande. Como achei que ela tinha esquecido, abri
para ver o que continha e eventualmente ligar para ela, sempre fui autorizada a proceder dessa forma. A minha surpresa foi grande ao me deparar com
um alguidar de barro e dois maços de velas pretas e vermelhas. Sei o que isso
significa e fiquei braba por estar sendo enganada.”
“O que você quer dizer com isso?”
“Eu a levei, a seu pedido, na minha igreja. Apresentei ao meu pastor.
Inúmeras vezes reuni grupos de oração no meu apartamento, ela comparecia
e orávamos pelo resgate do Dennis. Mas sei o que significam essas coisas.
“Não, não tivemos oportunidade de falar sobre isso. Somente estava
na minha agenda como um assunto a ser esclarecido.”
Então Marlene passou a contar sobre o referido pastor, hoje senador
da República.
Sua igreja está entre as cinco que mais crescem no Brasil. Enquanto a Universal e a Renascer em Cristo já sofreram investigações no Brasil
e no exterior, esta tem passado incólume. Seu fundador era um doutor em
ciências da computação que há 20 anos largou a profissão e fundou uma
nova denominação em Brasília. Bom pregador, cantor, carismático e, acima
de tudo, excelente administrador, logo formou um pequeno império. Canais
de televisão, rádios, editora, gravadora, além de investimentos em hotelaria, agribusiness, enfim, o homem é um máquina de fazer dinheiro. Logo foi
cortejado pelos caciques da política local, de olho nos votos de seu rebanho.
Foi eleito deputado e depois senador. Autoproclamou-se bispo, título com
que também brindou sua esposa. O casal é polêmico. Bonitos, charmosos,
com uma pregação moderna, atraíram a juventude e uma elite que precisava
de uma válvula de escape para suas vidas sem Deus. A religião sob medida:
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teologia da prosperidade, rudimentos de neopentecostalismo, muito show e
glamour. Tornou-se o modismo de uma sociedade em decomposição. Uma
vez por semana, afagos na consciência torturada. Depois, quando as coisas
já estavam melhor azeitadas, quando os laços de relacionamentos estavam
mais sólidos, quando as velhas raposas da política e do empresariado diziam que o bispo era “ouro em pó”, houve um upgrade operacional: lavagem
de dinheiro, sonegação fiscal, crimes financeiros e tributários, formação de
quadrilha. Tanto as grandes fortunas de Brasília quanto Law, o contrabandista, utilizavam a lavanderia do bispo.
“Cristina é filha, me perdoem, desse merda! O fruto não cai longe da
árvore...”
Tanto Gottardo quanto Cláudio ficaram surpresos com a eloquência
de Marlene. Ou externava fielmente suas convicções éticas e religiosas, ou
era excelente atriz.
“E Cristina?”, perguntou Cláudio.
“Cláudio, já conversou com ela? Não? Então conversa, e depois conversamos. Não quero te influenciar, mas se a Cacau é a autora intelectual do
sequestro, já não duvido de nada, a executora foi a Cristina!”
“...Então, agora acreditas que tudo pode ser coisa de Cacau?”, manifestou-se enfim Gottardo.
“Já não sei de mais nada. Me custa aceitar que durante anos fui amiga e confidente de ambos e não os conhecia realmente. Me dói e ao mesmo
tempo me dá medo. Já me custa vir para a empresa, a sensação que tenho é
bíblica, como se tivessem caído escamas de meus olhos.”
O papo é interrompido por Bianca anunciando a chegada de Cacau e
pedindo que todos se dirigissem à sala de reuniões da diretoria.
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SINUCA DE BICO
vivo e que demoraria um pouco para voltar?”
“E o que disse a Mãe Zina?”, arrebatou Cláudio.
Ao chegarem à sala de reuniões, encontraram Cacau diante de um
rápido lanche. Cumprimentou-os formalmente e, pedindo água e café para
todos, disse para Bianca que não queria interrupções, que ficasse com seu
celular e atendesse as ligações.
Gottardo observou que Cacau evitava fitá-lo. Melhor, facilitaria seus
planos.
“O Cláudio se encarregará de registrar as informações hoje”, falou
Gottardo e, para demonstrar que era fato consumado, passou a remexer em
sua pasta.
“Dona Carolina, de acordo com a Marlene, a senhora tem fatos que
quer nos relatar”, iniciou Cláudio.
“É, vamos direto ao assunto: recebi uma ligação de Goiânia, de uma
senhora que identificou-se como Nazaré, dizendo-se vidente e apresentando
como referência a Delegacia Antissequestro de Goiás – com quem, segundo
ela, tem colaborado.
Cacau, perdendo a pose e a classe:
“Porra, vocês estão me seguindo? Afinal, estou pagando vocês para
resgatarem o meu marido ou para me investigarem, me seguirem?!”
“A senhora não foi seguida. Foi acompanhada para sua segurança, não
queremos dois sequestrados em vez de um. Se a senhora seguisse o comportamento padrão que discutimos no início de nossos trabalhos, não teríamos
a necessidade de fazer proteção velada e à distância. Mas, não querendo ser
impertinente, o que disse Mãe Zina?”
“Disse que o Dennis estava vivo, mas num lugar distante. E que os sequestradores estavam mortos”, respondeu Cacau, visivelmente nervosa.
“Novamente, o que a senhora acha disso?”
“Não sei mais o que achar, tenho a impressão que a coisa fugiu do controle... E, ainda por cima, um novo telefonema dos sequestradores...”
“Fugiu do controle de quem?”
“Disse ela que Dennis está vivo, escondido no sul de Minas Gerais. Que
gostaria que alguém da família fosse até Goiânia para falar com ela, para que
ela revelasse o local exato do cativeiro. Perguntei como estava o Dennis, e
ela falou que ele não estava bem de saúde, estava deprimido e, o pior, que os
sequestradores estavam inquietos com a demora de nova negociação. Pediu
que telefonássemos logo para sua casa, confirmando a ida de um familiar.
Perguntei se ela não poderia vir a São Paulo, que eu mandaria passagens e
reembolsaria despesas eventuais. Falei ainda que daria uma recompensa por
sua ajuda. Ela agradeceu, mas disse que preferia que alguém fosse a Goiânia.
Cacau deu uma rápida olhada para Gottardo e Marlene, e fitou Cláudio com bronca:
“Meia hora depois, liguei para o número que me foi dado, atendendo
um tal de André, que em voz alta chamou a Nazaré. Eu disse que somente
ligara para confirmar se tinha anotado o número certo”, resumiu Cacau.
“Esse telefonema foi meia hora antes do de Goiânia. Foi idêntico ao último telefonemas deles, aquele que vocês têm o CD, depois do pagamento do
resgate. A mesma voz e o mesmo nome. O tal de Tiago me chama de Cacau
com uma intimidade, como se me conhecesse. Mas não dá para reconhecer,
porque continuam usando aquele aparelho.”
“O que a senhora acha disso?”
“Não sei. Nosso, da polícia, de todos. Não tenho certeza de mais nada.
Vou acabar louca. Isso tudo tem que acabar logo. Se o Dennis estiver vivo,
que negociem e me entreguem. Não vou continuar essa busca por muito mais
tempo, é sofrimento para meus filhos e desgaste para mim.”
“E como foi o telefonema dos sequestradores?”
“Vocês é que têm que me dizer. Vocês é que são os especialistas.”
“Conseguiu gravar?”
“Mas a senhora, volto a insistir, o que achou?”
“Pode ser verdade... O padre Marcelo não tinha dito que ele estava
“Não. Faz dias que desliguei o aparelho que foi instalado, e não gosto
de gravar no celular.”
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“O que disseram?”
“Que não iam esperar mais, o Dennis estava muito doente. Que, se eu
aceitasse os termos deles, chamariam um médico. Que eu tinha que confirmar se aceitava em vinte e quatro horas, e teria cinco dias para entregar o
resgate em local e maneira a serem combinados. Queriam dois milhões de
dólares. Disse que queria falar com o Dennis e eles... COLOCARAM O DENNIS NA LINHA! FALEI COM ELE!”
“¡La puta madre! ¡Por fin!”
Cacau, por incrível que pareça, não estava radiante. Olhos esbugalhados, pálida, visivelmente tensa. Marlene soltou um “Glória a Deus!”, e Cláudio era todo sorrisos.
Gottardo frio. Semblante impenetrável... E pela primeira vez se manifestou:
“Vais dar mais importância a uma vidente, perdendo tempo precioso,
do que à prova de vida que tanto pedíamos? Era ou não era o Dennis?!”, exigiu Gottardo.
Cacau, num murmúrio: “Era, era...”
“Então ainda temos até hoje à noite para decidirmos o que fazer. Sugiro que aguardemos o telefonema dos vagabundos no teu apartamento, Cacau, e logo decidimos. Que achas?”
“Tudo bem, nos encontramos lá às 18h. Vocês acham que devemos
avisar a polícia?”
“Em que ela te vai ajudar? Agora é a hora de fazermos as coisas à nossa
maneira.”
“Tens certeza de que era o Dennis?”
“Tenho. Perguntei como ele estava, ele me respondeu que não estava
nada bem. Que eu obedecesse às ordens dos sequestradores, deixando a polícia de fora. O engraçado, Gottardo, é que o tom da voz dele não batia com o
que dizia... Dava a impressão de que estava tranquilo e relaxado.”
“É normal após um longo cativeiro, os reféns tendem a acomodar-se
à nova situação, o desconforto passa a ser rotineiro. E aí reside o perigo: a
famosa síndrome de Estocolmo – a empatia entre sequestrado e sequestradores gerada no convívio forçado. Devemos lembrar que os carcereiros ficam
sujeitos ao mesmo desconforto do refém.”
“E agora, o que a senhora decide?”, interrompeu Cláudio.
Cacau, olhando em volta como quem busca socorro de mais alguém:
“...Estou sem saber o que fazer!”
Marlene, numa postura inusitada: “Cacau, agora chegou a hora de
mostrar que as coisas eram para valer! Paga o resgate e deixa eles cuidarem
de trazer o Dennis de volta.”
“Que fazemos com a vidente?”
“Acho que deveríamos mandar alguém, talvez o Henrique, que levou
o primeiro resgate.”
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JOÃO CARLOS BERKA
MONITORAMENTO
o combinado no hotel fazenda. Coco ainda mostrou dois telefonemas de Cacau, para Hugo Leal e para Rodrigo Veneu.
Ao saírem da empresa, Cláudio e Gottardo tomaram um táxi, depois o
metrô, tomaram ainda outro táxi, e finalmente chegaram ao ninho de Coco,
que já os esperava junto a Ely.
Sem delongas, Coco passou a relatar seu monitoramento. A conversa
com os sequestradores fora gravada. Gottardo pediu a mídia e solicitou que
deletasse a gravação do sistema. Em seguida, foram escutadas as ligações de
Cacau para Cristina após a última ligação dos sequestradores; de Cristina
para major Cesário e, finalmente, deste para um tal Panzer.
Ely fez um sucinto relato sobre o tema da vidente, dizendo que tudo
estava preparado para a eventualidade de Cacau topar o convite a Goiânia.
Em seguida, deu a ficha do tal de Panzer: tratava-se de um ex-federal desaparecido há anos e com vários mandados de prisão, procurado por assalto,
contrabando, narcotráfico, formação de quadrilha. Seus antigos colegas evitavam sua prisão, e ele vivia na clandestinidade há muito tempo. Quando
policial, trabalhara no DOPS em São Paulo, onde conseguiu a alcunha de
Fichinha – sempre levava consigo, no carro, um pequeno arquivo com centenas de fichas sobre os elementos mais procurados. Era tido como competente e sério.
Essas conversações revelavam duas coisas: formavam uma bela
quadrilha de meliantes e eram descuidados com o que falavam ao telefone.
Partiam da presunção de, como a monitoração da polícia acabara, não haver mais nenhuma ameaça ao sigilo de suas comunicações. O conteúdo, no
entanto, fora surpreendente: queriam a qualquer custo assegurar-se, não da
prova de vida do Dennis, mas da identidade dos sequestradores! E Cristina
se encarregaria do assunto.
Às 15h40, Cláudio reuniu-se com Cristina na mesma sala da reunião
anterior. Foi direto ao assunto:
“Cristina, por que o Dennis estava tão brabo com você ultimamente?”
“Olha, não sei se você sabe, mas o Dennis era um cara mercurial. Instável, como todo bipolar. Além disso, a abstinência de drogas pesadas nem
sempre era compensada pelos substitutivos que adotara... Ele estava paranoico, via inimigos por todos os lados. Não somente eu, mas também a Cacau,
a Marlene, e todos os que foram chegados a ele tornaram-se os inimigos da
vez. Nossos atritos eram pelo fato de que eu tinha que administrar a empresa e prestar contas a Cacau; ele, que não queria mais nada com o trabalho,
sentia-se excluído, traído.”
Após o DOPS de São Paulo, foi colocado à disposição do Itamaraty,
sendo lotado no staff de Segurança da embaixada brasileira em Montevidéu. Lá, certo dia, chamou Cerrone, um porteiro uruguaio que trabalhava há
anos na embaixada. Entregando-lhe umas chaves, disse que havia um carro
estacionado na calle Cerrito. O carro era para ele, os documentos estavam
no porta-luvas. Foi a última vez que compareceu à embaixada. Sua próxima aparição foi seis meses depois, na ponte internacional de Foz do Iguaçu,
quando, durante um rápido apagão, trinta carretas de café foram contrabandeadas para o Brasil. A operação fora comandada por Fichinha. A Polícia
Federal perdera um competente policial, e o crime organizado ganhara um
temível aliado.
“Interessante. É que eu soube que, no início, você e a Cacau não se
davam bem... e hoje parecem irmãs siamesas.”
As gravações e os levantamentos de Ely davam conta de que o alvo era
Gottardo. Cláudio, com o semblante carregado:
“Acho que existem coisas mais importantes para falarmos, se queremos o Dennis de volta.”
“Gottardo, deixa que cuido disso!”
Gottardo assentiu e sugeriu que telefonassem para Marlene, para
Cláudio entrevistar Cristina naquela tarde. Era necessário que mantivessem
“Ironias à parte, a Cacau sempre admirou meu trabalho e me respeitou
profissionalmente. Acontece que antes eu era mais ligada ao Dennis, e às
vezes gerava um pouco de ciúmes.”
“Você foi amante do Dennis?”
“Nunca.”
“E os três meses que vocês moraram juntos na Alemanha?”
“E o seu relacionamento com o major Cesário? Dennis não queria o
contrato, mas foi assinado por você e pela Cacau após o desaparecimento.”
75
“O Dennis era gozado, fazia umas merdas enormes, entrava em jogos
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hol: matava os touros na arena e emocionava-se ao ver o gado desossado nos
açougues!”
perigosos... e numa titica como essa, ele invocou!”
“E o seu relacionamento com o major?”
Em seguida, trataram de detalhes e eventual pagamento de resgate.
“Profissional. Assessorei ele na CPI dos Combustíveis.”
“Não é o que fala o Paulinho, filho dele. Diz que você passa o final de
semana com o pai na fazenda de vez em quando, e que a Mercedes que você
tem foi presente dele.”
“Isso é problema pessoal meu. Posso te assegurar que, apesar da imagem do major, ele não teve, nem teria por que ter a ver com o desaparecimento do Dennis.”
“Na tua opinião, o que aconteceu com o Dennis?”
“Simples. Conduta de risco, exibicionista, atraiu vagabundos. Metido a valente, pode ter reagido, ou ter passado mal por problemas de saúde.
Enfim, depois do pagamento do resgate, e continuar desaparecido, só uma
leitura é possível: está morto!”
“Cristina, por que uma moça filha de um pastor, agora senador, criada e educada de maneira privilegiada, aceita ser funcionária do Dennis e da
Cacau? Quando poderia estar administrando os bens da família, ou mesmo
assessorando o pai, tanto na igreja como na política!”
“Opção minha. Mais alguma pergunta?”
“Sim a última: seu antecessor na filial de Brasília, o Jarbas, era o elo
de ligação entre o senador Fernando e o Dennis. Quando o Jarbas saiu, você
continuou com o contato?”
“Não. Depois da morte do Clemente, o assessor do senador, e da desistência dele à candidatura, ele rompeu o contrato com a First Team.”
Encerraram por ali a conversa. Cláudio ainda tinha inúmeras perguntas a fazer, no entanto não eram mais necessárias, pois já tinha tomado sua
decisão. Essa mulher era demoníaca. Cabia a ele proteger seu amigo.
Mais tarde, quando contou sobre o encontro e a impressão que Cristina lhe causara, Gottardo quis saber mais. Cláudio confidenciou que chegou a
sentir mal- -estar com a presença de Cristina, que emanava maldade. Uma
perfeita e acabada psicopata. Gottardo aproveitou a deixa para sacanear:
“Estás com a sensibilidade do El Cordobés, o famoso toureiro espan-
76
EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
PAGANDO O SEGUNDO RESGATE
ela está? Pensei que estivesse muito mais ansiosa por este encontro do que
nós.”
Às 18h, Cláudio, Gottardo e Marlene já estavam no apartamento de
Dennis, conforme combinado. Rose os atendeu dizendo que Cacau se atrasaria um pouco, pedia desculpas e ordenou que fosse servido um lanche
aos presentes.
Meia hora depois, Cacau ainda não tinha chegado, Gottardo recebe
uma ligação de Coco: “Estamos com sorte, sua amiga reuniu-se com Capanga
1 e Capanga 2, no escritório do primeiro aqui em São Paulo! Estamos registrando, mas adianto o que acho importante para sua conversa daqui a pouco:
combinaram rachar o valor total entre os três – mas somente depois da resposta de Cristina, que estará hoje à noite com seu tio na fazenda.”
Gottardo agradeceu. Procurou então Marlene.
“Marlene, não estás estranhando o comportamento da Cacau? Não
era para ela estar contente? Afinal, foi ela quem falou com o Dennis.”
“Não sei, acho que nem ela acreditava mais que o Dennis aparecesse.
Me pergunto por que tanta demora.”
“É normal. Às vezes, os sequestradores sentem-se acuados pela polícia ou negociadores e submergem até que as coisas pareçam estar seguras”,
interveio Cláudio.
“Acho que a Cacau não deveria pagar o resgate”, sentenciou Gottardo.
Cláudio e Marlene não acreditaram no que tinham acabado de escutar.
Cláudio não se conteve:
“¿Por qué, hombre?”
“Por enquanto, somente Cacau falou com os sequestradores nessa
nova fase de negociação. Somente ela falou com o Dennis. Às vezes a gente
ouve o que quer. O emocional alterado prega peças à razão.”
“Pera aí, Gottardo, concordo que a Cacau está alterada, estressada. É
uma pessoal de difícil trato, mas não é louca de rasgar dinheiro!”, disse Marlene.
Marlene ligou para o celular de Cacau e comunicou aos demais que ela
já estava a caminho, em poucos minutos estaria ali. De fato, cinco minutos
depois Cacau estava entrando no apartamento. Aparentemente, estava mais
calma.
Mal ela sentou, Gottardo expôs suas ideias:
“Na realidade, temos que esperar até o telefonema dos caras, mas de
toda maneira temos que nos preparar para um plano B, C... Se for decidido
pelo pagamento imediato, já tenho o detalhamento da operacionalidade. No
entanto, Cacau, gostaria que me ouvisses com ouvido de ouvir: acho que não
deves pagar nenhum resgate agora. Não se trata de economizar, de regatear.
Trata-se de endurecer o jogo, passando a iniciativa do ataque para nós. Deixar os vagabundos correrem atrás do prejuízo.”
“Mas, Gottardo...”, iniciou Cacau.
“Pediria que não me interrompessem, pois pretendo esclarecer a totalidade de meu plano. Vejamos: a experiência nos revela que os sequestradores já tiveram gastos, já contraíram dívidas. Na expectativa de ganho fácil
e imediato, devem ter tomado iniciativas que comprometeram suas finanças.
Assumiram compromissos com terceiros, e a cada dia gastam mais. Por outro lado, à medida que o tempo passa, aumentam nossas chances e diminuem
as deles. Por exemplo, a saúde do Dennis. Se ele morre no cativeiro ou fica
impossibilitado de fornecer nova prova de vida, eles ficam sem condições de
colocar a mão na grana.
“Esse não foi um trabalho de duas ou três pessoas. Considerando o
tempo de cativeiro, já estamos no quinto mês, no mínimo dez pessoas já
foram utilizadas ou sabem do assunto. Por isso, sugiro adotarmos uma atitude proativa, fazermos diferente: aproveitamos toda a rede de relacionamentos da First Team, incluindo os relacionamentos pessoais e profissionais
dos funcionários e clientes, e divulgamos uma recompensa de um milhão de
reais para qualquer informação que nos leve à libertação do Dennis, na primeira semana; na segunda semana, mais um milhão. Podemos elevar até o
valor total do pedido de resgate. O que acham?”
Os três ficaram em silêncio por alguns segundo, avaliando. O primeiro
a se manifestar foi Cláudio:
“Quando ela chegar, vou expor meu ponto de vista. Aliás, onde é que
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“E se estivermos perdendo a primeira oportunidade real de resgatar o
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Dennis?”
“Tem lógica o plano do Gottardo, já confiei nesses escrotos e eles me
traíram. De qualquer forma, devemos esperar o novo telefonema e vermos o
resultado de minha conversa com a... com o Dr. Tomáz”, disse Cacau.
Por volta das 21h, soou o telefone fixo do apartamento. Cacau atendeu, colocando no viva-voz.
“Oi, Cacau, vamos terminar logo com isso. Três dias para preparar
a grana. Mudança de planos. Uma pessoa, amanhã, vai entregar para tua
funcionária Marlene o número de uma conta, o nome do banco e o destino.
Pra te ajudar, pra não perder tempo, o Dennis disse pra tirar da conta do
caranguejo-rei, que tu sabe o que significa. ESSA É A ÚLTIMA PROVA DE
QUE O DENNIS ESTÁ CONOSCO E ESTÁ BEM.”
“PERAÍ, EU QUERO FALAR COM MEU MARIDO!”
“PORRA NENHUMA. Inclusive, pra demonstrar nossa boa vontade,
já chamamos um médico e ele foi medicado, já está melhor. Se quiser ele
vivo, logo, de volta pra casa, faz o que te mandamos.”
“Eu sei o que o Dennis quis dizer, mas é impossível eu providenciar
isso num tempo tão curto!”
“PROBLEMA TEU. Se dentro de três dias o dinheiro não estiver na
conta, ESQUECE O DENNIS!”
E desligaram. Não disseram como entrariam em contato com a Marlene, que ao ouvir a voz dos sequestradores ficou extremamente nervosa.
Cacau, no entanto, fria, fria...
escrotos, acho que a atitude certa é oferecer e divulgar amplamente uma recompensa, de tal maneira que até a mãe de um deles os traia.”
Tomaram mais um café e se despediram de Cacau e Rose. No hall, junto ao elevador, Cacau disse: “Gottardo, preciso falar uma coisa mais contigo”.
Cláudio falou que esperaria embaixo do prédio, e Marlene desceu com ele.
Ao ficarem a sós, Cacau pediu que Gottardo se sentasse. Imediatamente perguntou:
“Gottardo, o que tens contra mim?”
“Nada, Cacau. É normal que, num trabalho estressante como esse,
ambos estejamos tensos, às vezes falamos o que não devemos, agimos de
maneira precipitada... De qualquer maneira, se algum momento te ofendi,
peço-te desculpas...”
“Não se trata disso, sinto que eu te desagrado profundamente como
mulher, me evita como se eu te causasse repulsa. Não esconda tua rejeição.”
Gottardo, levantando-se: “Não é nada disso, Cacau. Apenas acho que
tenho me relacionado contigo de uma maneira estritamente profissional, o
que acredito ser o que esperavas de mim. O problema, se me permites, é que
estás acostumada à bajulação e ao assédio masculino, e te incomoda alguém
te tratar diferente. Para ser sincero, te acho uma mulher linda – isso pode
servir para todos, mas para mim és apenas uma cliente, a quem devo satisfações profissionais e comportamento ético.”
Cacau, como se estivesse embriagada ou drogada, olhando despudoramente para a braguilha de Gottardo: “É uma pena!”...
“Cacau, tens ainda que consultar alguém? Tens algum problema de
levantar o dinheiro? O que eles quiseram dizer com caranguejo-rei?”
“É uma conta que tenho em Belize. O Dennis usou essa referência
porque comemos king crab em nosso último cruzeiro pelo Caribe, um caranguejo enorme que só dá no Alasca e em Belize.”
“Bom, se o caminho for esse, anota aí: Drorit Hanemann, 00 21 592
81114245. Quando precisares ligar, te fornecemos um telefone seguro. É uma
operadora internacional, de minha total confiança, que resolverá o problema
de transferência de divisas. Tem escritórios em Montevidéu, Buenos Aires,
Nova York, Genebra e Panamá. Provavelmente cobrará uma taxa compatível
com tuas expectativas. Mais do que nunca, agora depois de escutar esses
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Gottardo despediu-se e, já no elevador, pensou com seus botões:
“Eta, mulher perigosa!”
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QUEM SEMEIA…
“Mataram Cristina!”
“Qual delas?”
“Aguillera!”
Jornal Bom Dia Brasil, Rede Globo, 7h55:
“A polícia da de São Paulo recebeu às 3h uma denúncia anônima da
morte de uma mulher na região de Campinas. O corpo foi encontrado dentro de um veículo Mercedes-Benz próximo ao acesso de um haras da região.
O haras e fazenda pertencem ao major Cesário, conhecido empresário do
ramo de combustíveis. A vítima, Cristina Aguillera, 30 anos, era filha do bispo Nestor Aguillera, senador da república. Cristina era diretora da empresa
First Team na sucursal de Brasília, onde era encarregada de contas governamentais e marketing político. Segundo a polícia, a vítima era frequentadora assídua do haras. Ainda segundo as autoridades, trata-se nitidamente
de uma execução. Cristina foi atingida na cabeça por duas balas de grosso
calibre, à queima-roupa, e o mais tétrico: teve sua língua cortada.”
“Que merda! Como?”
“Encontraram o corpo com duas balas na cabeça, e ainda por cima
arrancaram a língua dela! A polícia diz que foi execução. Não levaram nada,
e o carro que ela estava era aquele Mercedes azul-marinho.”
“Cacau já sabe?”
“Por isso que a Marlene te chamou... Mas vamos subir, que se me veem
aqui com você, vai me complicar.”
Ao chegarem aos escritórios, Gottardo impressionou-se com a balbúrdia. Não devia ser só pela morte de Cristina, afinal não era benquista pela
quase que totalidade dos presentes. Devia ter acontecido algo mais.
Gottardo e Ely estavam tomando café da manhã juntos no restaurante
do hotel, quando ele recebeu um telefonema de Helga, em pânico:
“Gottardo, vem urgente para o escritório! Aconteceu uma desgraça!”
A reposta veio através de Marlene:
“Gottardo, por favor vem até aqui”, falou da porta da sala de reuniões.
Ao entrar, viu Cacau deitada no sofá, ao seu lado um indivíduo desconhecido e Bianca.
“O que aconteceu?”
“Espera, a Marlene quer falar com você!”
“O que houve?”
“Gottardo, pelo amor de Deus, vem logo para cá! Aconteceu uma coisa
terrível!”
“Tô indo, não demoro.”
Levantou-se e, dirigindo-se para a saída do hotel, disse a Ely que
aguardasse e revisasse com Coco todo o material coletado, para verem se
não deixaram escapar nada. Também disse que se comunicasse com Cláudio,
mandando-o aos escritórios.
“Doutor, está tudo bem agora?”, perguntou Marlene ao desconhecido.
“Sim, ela precisa descansar. Já mediquei, e dentro de pouco tempo
ela dormirá. Deixem ela dormir o tempo que for necessário. Qualquer coisa,
Marlene, me chama.”
Marlene pediu que Bianca saísse, e perguntou a Gottardo:
“Falamos aqui mesmo ou vamos para a sua sala?”
Ao chegar ao edifício, Helga já o esperava do lado de fora, na calçada.
“Gottardo, assistiu o jornal da Globo, hoje cedo?”
“Não.”
“Vamos deixar ela descansar.”
Gottardo ficou impressionado com o abatimento de Cacau. Pálida, cabelos em desalinho, olheiras profundas.
“O que houve, Marlene? O que foi isso com a Cristina? Tem a ver algu-
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JOÃO CARLOS BERKA
ma coisa com o sequestro do Dennis?”
“Não sei, Gottardo. Parece que esse pesadelo não vai acabar nunca.
Primeiro o Dennis, e agora a Cristina!”
Pegando a caixa, colocou o pacote dentro, pediu a Marlene um saco
plástico opaco. Em seguida, desceu e caminhou umas três quadras, ao voltar
já não trazia a sacola.
Subiu para falar com a Marlene, e a encontrou falando com Cláudio.
“Me conta.”
“Era oito e pouco, já estava quase saindo para o escritório, quando a
Cacau me ligou. Estava fora de si. Me perguntou se eu tinha assistido o jornal
da Globo. Disse que não, então ela me contou da morte da Cristina e pediu
que eu fosse imediatamente para o escritório. Já estávamos conversando na
sala dela, por volta das nove, quando a Bianca entrou com um pequeno pacote entregue por um motoboy. De acordo com Bianca, o garoto disse que o
remetente pediu uma resposta rápida. Pensamos que era a comunicação dos
sequestradores, e Cacau abriu a pequena caixa: um novo pacote, e dentro
deste uma embalagem plástica com zíper. Ao abrir, vimos apavoradas um
pequeno pedaço de carne ensanguentada. Junto tinha uma mensagem: ‘a
próxima será a tua, Cacau!’... Cacau desmaiou. E eu, por pouco, não.”
“Chamaram a polícia?”
“Não. Quando ela se recuperou, perguntei se queria que chamasse a
polícia, pois nós duas tínhamos certeza que era o pedaço de língua da Cristina. Ela, apavorada, disse que não, que te chamasse. Em seguida, chamei o
médico que é amigo dela... e o resto está aqui...”, apontando com repulsa o
pacote dentro do armário.
Gottardo, olhando atentamente, concordou que poderiam ser restos
humanos. Talvez um pedaço de língua. Não acreditava que tivessem deixado digitais. E se deixaram, tanto Marlene como Cacau comprometeram os
vestígios.
“Quem mais sabe disto?”
“Que coisa, hem?!”
“É... Espero que isso não interrompa as negociações com os caras”,
disse Gottardo.
“Marlene, quanto tempo tu achas que é necessário para armar a divulgação da recompensa?”
“Se for decidido, hoje à noite já sai nos noticiários de rádio e televisão,
e amanhã cedo nas mídias impressas.”
“Marlene, pega três das melhores redatoras tuas e manda virem para
cá, para combinarmos a elaboração das propostas de divulgação e os textos.
Assim, quando a Cacau estiver em forma e se decidir, já ganhamos tempo.”
cioso.
Assim que Marlene saiu, Gottardo e Cláudio trocaram um olhar silen-
Em seguida, Marlene retornou com as redatoras, e Gottardo explicou
o que desejava. Voltaram para suas baias e começaram a fazer o que lhes fora
solicitado.
Gottardo convidou Marlene para almoçar, mas ela recusou o convite
alegando precisar ficar perto de Cacau. Ao sair, Gottardo anunciou a Marlene
que iria almoçar com Helga, e que ela provavelmente chegaria atrasada para
o expediente da tarde. Marlene disse que estava tudo bem. Gottardo sugeriu
a Cláudio que fosse ao encontro da dupla que estava no ninho.
“Do desmaio, todo mundo. Todo mundo viu. O conteúdo do pacote,
só nos duas. Bianca ainda perguntou o que tinha nele, e eu disse que era
uma comunicação dos sequestradores, e para ela não falar pra ninguém.
Ela comentou que, pela reação de Cacau, a mensagem devia ser que o Dennis estava morto! Eu disse que não, que a Cacau tem sido submetida a uma
pressão enorme, e uma hora o organismo cede. Acho que ela acreditou... O
que fazemos, Gottardo?”
O almoço com Helga demorou até as 16h, quando retornaram aos escritórios. Cacau estava de pé e com Marlene. Ao avistar Gottardo, sinalizou
que viesse até sua sala.
“Me dá essa porcaria para eu jogar fora, antes que cause maior complicação. E vamos esperar que Cacau melhore para podermos analisar por
que ela não quis dar ciência à polícia.”
“Calma, Cacau! Continuo achando melhor anunciarmos uma recompensa gorda.”
to:
Ao entrar, Cacau, ainda pálida e nervosa, disse à guisa de cumprimen“Gottardo, vamos pagar logo essa MERDA DE RESGATE!”
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
“A Marlene já me contou, mas não quero arriscar a vida do meu marido. Esses caras são capazes de qualquer coisa...”
“Cacau, achas que a morte da Cristina tem a ver com o Dennis, ou é só
rolo daquela louca com o tal de major Cesário, que não é flor que se cheire?”
“Não sei, mas não quero arriscar. A merda é que temos um contrato de
consultoria com a empresa do major para assessorá-lo na CPI. Se a imprensa
somar dois e dois mais o sequestro do Dennis, aí sim vai dar rolo!”
“Vocês já foram comunicados pela polícia, oficialmente?”
“Que penses antes de agir. Que leves em conta meus conselhos, para
isto é que fui contratado, e não para fazer tuas vontades. Somente me responsabilizo por resultados frutos de trabalho, orientação, planejamento e
execução minha ou de minha equipe. Respeito a cultura do cliente, sua autodeterminação, seus interesses, mas não pactuo com erros que possam comprometer os resultados. Para mim, mais do que o lado comercial da coisa,
prevalecem o profissionalismo e a ética.”
Visivelmente irritado, Gottardo deixou a sala e, sem despedir-se de
ninguém, foi embora.
“Acabou de sair daqui um delegado e um agente da Homicídios.”
“E a família, já contataram?”
“Nós e a polícia, desde cedo, mas os pais dela estão na África no Sul,
onde foram inaugurar um novo templo, e ainda não foi possível o contato.”
“Que hipóteses estão sendo trabalhadas pela polícia?”
“Eles dizem que ainda é muito cedo para conjeturas, mas receberam
outra denúncia anônima. Disse que, por trás da morte de Cristina, estão o
major e um tal de Panzer, um ex-federal procurado no Brasil e pela Interpol.
“Gottardo, prepara tudo para pagarmos os caras. Vamos somente
aguardar a comunicação deles com a Marlene, e em seguida providenciamos.
Quero o meu marido de volta!”
“Cacau, uma pergunta tens que me responder sem rodeios: por que a
mensagem ‘a próxima será a tua, Cacau!’?”
“Não sei, nem vou esperar para saber. Liguei para um diretor do Safra
nosso amigo, e ele já está providenciando uns caras da Mossad para fazer a
minha segurança e das crianças.”
“Devias ter me consultado, não é por aí. Se quiserem te pegar e for
gente profissional, não serão um bando de picaretas que se dizem ‘os caras’
que irão impedir. Qualquer reservista israelense que conhece as técnicas do
krav maga vem pra América Latina dizendo-se da Mossad. Fica pra ti uma
lição que no futuro corroborará o que estou dizendo: quem é da Mossad não
diz, não admite.”
“O QUE VOCÊ QUER QUE EU FAÇA, GOTTARDO?!”, exclamou
histérica, quase chorando.
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
JARBAS
Ely, por sua experiência, foi designada para trabalhar Jarbas. Optou
por utilizar uma ex-colega sua, também afastada dos órgãos oficiais. Irina
sempre trabalhara em operações, teria uma bela ficha funcional se seu ramo
de atividade fosse outro. O órgão que integrava, que já tinha passado por um
desmonte no (des)governo Collor, de repente entrou numa fase esquisita.
Velhos adversários, agora no poder, enxergavam a atividade de inteligência como repressão. Tentando aparelhar esta área como fizeram com a
Polícia Federal, intentaram transformar uma na polícia do partido e a outra
em um simulacro de assessoramento para o planejamento estratégico. Não
deu certo: associação de funcionários da área de inteligência, símbolo, musiquinha, gente leiga... – virou uma zorra. A transição do serviço militarizado
para o regime democrático foi uma sacanagem, anos de trabalho jogados
fora. Estruturas construídas com zelo e competência foram desmontadas
numa política de arrasa quarteirão. Muitos saíram descontentes, outros
foram demitidos. Ficaram os dóceis e aqueles que julgavam que não sobreviveriam fora do ninho.
Pois bem, Irina, com várias passagens pelo exterior, com importantes
trabalhos dentro do território nacional, viu-se compelida a sair para não
encerrar sua vida profissional de maneira melancólica. Assim, volta e meia
aceitava trabalhos privados. Era bonita, charmosa e dona de um raciocínio
ímpar, excelente analista, além de sua esmerada formação operacional. Tendo aceito o trabalho que lhe repassou Ely, buscou, antes de mais nada, informações com ex-colegas. Depois, partiu para o corpo a corpo.
Determinado dia, Dennis estava trincado e contou para Jarbas que
estava trabalhando num paper chamado Gaiola das Loucas. Era um estudo
sobre a trinca política composta pelo senador Fernando, seu antecessor e
seu sucessor; baseado na realidade das gravações de Clemente, era um rol de
mutretas, falcatruas e negociatas com o erário público e grandes empresas,
notadamente construtoras, mineradoras e bancos. Tudo apimentado por
episódios recheados de sexo, drogas e rock-and-roll. Num ato de suprema
burrice, contou que tinha recebido de Clemente não somente as gravações
de sua lavra, como também dois vídeos, um deles cobiçado pelos inimigos do
senador. Era uma verdadeira bomba, que encerraria a carreira do senador:
mostrava-o num barco em Angra do Reis cheirando carreiras de cocaína e
sendo sodomizado por um elemento que lhe perguntava: “O que é melhor?”,
e o senador, chapadíssimo: “Os dois, os dois...” – era repulsivo. Somente a
posse desse vídeo já serviria como motivação para o sequestro de Dennis.
Ainda mais sendo Jarbas sabedor do fato...
Em plena campanha, Jarbas foi afastado da equipe de marketing do
candidato da situação após a morte de Clemente e o desaparecimento de
Dennis, que coincidiu com a desistência do senador à eleição. Voltou-se para
trabalhos nos estados, sem maior relevância. Irina apurou que vivia apavorado. Quando bebia, dizia ter sido usado e abandonado pelo senador, que lhe
encomendara dossiês sobre o adversário, inclusive com violações de sigilo
bancário, telefônico e tributário de seus oponentes.
Jarbas também pode ter sido um dos responsáveis pelo desaparecimento de Dennis...
O resultado foi um mosaico complexo, que possibilitava várias leituras,
mas a que interessava era o link com o caso de Dennis. O cara era um merda!
Desde pequeno, delator. Nos meios da mídia, era tido como um perfeito X9.
E se em função de sua má fama ele vivia isolado em seu meio, o contrário se
dava com o número de contratantes, que cada vez mais aumentava. Era uma
fonte de informações privilegiada: trabalhava para os dois ou mais lados.
Sem ética ou escrúpulos, atendia perfeitamente à necessidade de pústulas da
política ou do mundo empresarial que necessitam quem lhes faça o trabalho
sujo. Uma boca, uma caneta ou um teclado de aluguel – um mercenário.
Pois bem, do vasto dossiê que Irina conseguiu montar, o que interessa
é que Jarbas era de confiança de Dennis. É o que Dennis achava. O que Dennis não sabia é que Jarbas trabalhava para os dois lados nas eleições presidenciais. A serviço de Dennis e num voo solo.
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
ÂNGELA
bem definido, e tratou logo de expô-lo:
“Como está tocando a empresa que você montou com Dennis e Gert,
agora na ausência do Dennis?”
Com o auxílio de Marlene, Cláudio marcou um encontro com Ângela
fora da empresa. Convidou-a para jantar, e a impressão que teve foi que ela
aceitou como se fosse uma tarefa dada por Cacau. Era óbvio que aceitara o
convite contrariada, porém, como o clima estava péssimo na empresa, a sensação que Cláudio teve foi que ela também queria o desfecho daquele caso,
ainda que aparentemente não lhe dissesse respeito.
Ângela, ao contrário das outras garotas, não vinha da classe média,
sequer trabalhava por necessidade. Era filha de um dos maiores usineiros do
país. Seu pai tinha dezoito usinas, distribuídas entre os estados de Pernambuco, Goiás e São Paulo. Além disso, era dono de uma empresa de táxi-aéreo
e de um frigorífico em Mato Grosso do Sul.
Desde nova, Ângela, que só tinha um irmão, demonstrava interesse
em trabalhar fora das empresas do pai. Ao terminar a graduação em administração e marketing, rumou para a França, onde especializou-se em mídias
eletrônicas. Ao voltar, ingressou na First Team. Seu projeto era adquirir experiência, depois talvez aceitasse o dinheiro da família para abrir a própria
empresa.
Estava há dois anos na First. Cuidava das contas da PERNOD RICARD.
Discreta, não era muito dada a enturmar-se com os colegas de trabalho, que
pouco sabiam sobre sua vida pessoal. Vestia-se com esmero e era cliente VIP
da DASLU, o templo da moda paulista. Dirigia uma Ferrari esporte nova,
era frequentadora dos locais descolados de Rio e São Paulo. Era loira, alta,
esguia, porte de manequim. Olhos verdes e dona de uma boca sensual que
rivalizava com Angelina Jolie. Apesar de bem apetrechada, era reservada e
sisuda.
Com todo este quadro diante de sua mente, Cláudio, para evitar surpresas, perguntou se ela gostava e conhecia algo parecido com um pub inglês. Para sua sorte, não somente conhecia, como era assídua frequentadora
de um local com aquelas características, o Kevin’s Place.
Em meio às Irish strong beers entremeadas com petiscos típicos, a
conversa foi tocada lentamente. Cláudio sabia ter diante de si uma pessoa
escolada. Uma esperta filha de Eva: sabia tudo de dissimulação, de ocultamento, e como tergiversar sem ser ofensiva – mas Cláudio não estava disposto a ser conduzido. Não perdeu tempo em saber de relações íntimas com
Dennis, nem sequer o que achava do desaparecimento. Tinha um objetivo
E, sem dar tempo para que pensasse, sacou a segunda:
“Encontra com o Gert, ou comunica com ele à distância?”
Ficou óbvio o impacto que as perguntas causaram à moça. Ficou algum tempo rodopiando a bolacha do chope enquanto escolhia as palavras.
“...Bom, acho que não tenho outra saída a não ser procurar responder
suas perguntas. Tudo o que reportava para o Dennis, agora faço com o Gert.
Normalmente, ele passa no meu apartamento aos sábados à tarde, e raramente nos comunicamos por telefone.”
“Não está com medo por causa do desaparecimento do Dennis? Não
acha que possa ter relação com o que vocês três estão fazendo?”
“Medo, não. Não opero nenhuma atividade de infidelidade contratual, os dois é que se responsabilizam por negociar o produto do trabalho que
executo, não acredito que possa sobrar pra mim. Agora... me arrependo de
ter entrado nessa, não é minha praia. No início, não enxerguei ilicitude nem
risco. Agora, já não estou tão certa.”
“Existe uma terceira ponta, não existe?”
“Terceira ponta?”
“Além da Petrobras e da ESE, existe outro grupo que é o único beneficiário das transações, não tem?”
Gert.”
“Mas aí não é comigo. Era o Dennis quem se encarregava. Agora, o
“Sabe quem são?”
“Olha, tenho minhas desconfianças. Nunca me falaram nada, mas
acredito que tem alguma coisa com os russos.”
“Russos?!”, exclamou Cláudio, até deixando escapar seu sotaque.
“Sim, porque o Dennis levou para sua fazenda três russos que vieram
numa missão comercial há um ano atrás. Houve um evento no Blue Tree, em
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JOÃO CARLOS BERKA
Brasília, onde um grupo petrolífero russo assinou contratos com a Petrobras
e com a Vale do Rio Doce. Esse pessoal depois veio para a fazenda do Dennis,
em São José do Rio Preto.
CONEXÃO RUSSA
“Dias depois, o Dennis me pediu uma série de levantamentos. Quando
fui levar à sua sala, lá estava um estrangeiro falando muito mal em português. O Dennis me disse para deixar o material e que depois falaria comigo.
Ao sair, perguntei pra Bianca e ela disse que o sujeito trabalhava no consulado russo em São Paulo.”
Ao findar o governo de Boris Yeltsin, dez conhecidos oligarcas conduziam o processo de implantação de um capitalismo selvagem. Depois das
experiências açodadas da Glasnost e da Perestroika, implementadas por
Mikhail Gorbachev, a Rússia foi deixada no limbo, onde não mais existia o
capitalismo de Estado, nem tampouco as bases mínimas para o capitalismo;
as máfias, que já operavam o mercado negro, fizeram investidas bem-sucedidas no sentido de apropriarem-se do que era do Estado.
Cláudio deu-se por satisfeito e, depois das recomendações de praxe
sobre sigilo, convidou-a para irem embora.
De uma hora para outra, um indivíduo que comandava uma gangue
de tráfico de mulheres brancas passou a ser dono de empresa de energia, de
hotelaria, de empresa de petróleo, etc. Com um empreendedorismo incipiente, rudimento e base para o capitalismo, arrivistas tornaram-se os novos
senhores russos, os novos boiardos.
Enquanto Yeltsin dava-se ao luxo de viver de porre, espertalhões aparelharam o Kremlin, o que, com o desmantelamento dos órgãos de segurança
e inteligência, ensejou o desmoronamento da antiga União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas.
Reunindo mais de uma centena de etnias sob o tacão russo, a URSS
não sobreviveu ao renascimento dos movimentos nacionalistas, espontâneos
ou estimulados pelo Ocidente. Junto com eles, gente esperta que buscava
ganhar de qualquer maneira, gente criada no velho regime, mas totalmente
à vontade diante da premissa de que o capital não tem nacionalidade. Gente
que fez fortuna do dia para a noite. Gente como Roman Abramovitch, Oleg
Deripaska, Vladimir Potanin, Mikhail Prokhorov, Vladimir Lisin, Mikhail
Friedman, Vagit Aleksperov, Suleiman Kerimov, Alexei Mordashov e Boris
Berezoski.
Quando Vladimir Putin assumiu como primeiro-ministro, as coisas
começaram a mudar. Oriundo da antiga KGB, atual FSB, Putin fora agente de operações na Alemanha Oriental e depois assessor do prefeito de São
Petersburgo.
Como presidente, Putin deu inequívocos sinais de um redirecionamento do país. Em primeiro lugar, via a necessidade de revigorar o
nacionalismo russo. Mesmo não admitindo, a Rússia sempre teve, à semelhança dos Estados Unidos, anseios imperialistas. Diante da nova realidade,
rebaixada em seu status de superpotência, a alma russa sentia-se humilhada.
Com a derrocada do comunismo e o assédio do Ocidente, que invadia o país
com usos e costumes, num processo dissimulado de neocolonialismo – onde
McDonalds, Pizza Hut, rock e jazz, grifes europeias e norte-americanas, fast
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JOÃO CARLOS BERKA
food, carros asiáticos e modismos do “Ocidente decadente” contaminavam
os valores do povo russo –, Putin surgiu como o novo czar. Como o catalisador dos anseios nacionais.
A DECISÃO DE CACAU
Assim, era imperativo fazer uma campanha contra o inimigo externo,
que recuperasse os brios que foram levados numa surra no Afeganistão. Assim, a Chechênia. Internamente, o combate contra as máfias e a perseguição
aos seus expoentes. Alguns presos, outros fugitivos, outros expropriados de
suas fortunas.
Marlene ligou para Gottardo solicitando um encontro fora da empresa. Disse que era urgente e que, se fosse possível, levasse também Cláudio.
Sugeriu que o local fosse seu apartamento. Gottardo pediu a Cláudio que
chegasse meia hora depois dele, para que pudesse falar a sós com Marlene.
Porém, se Yeltsin tinha vários amigos, Putin tem um... dileto. Pouco
conhecido dentro do país e quase que ignorado fora. Seu nome: Arpiar Pelechian. Um oligarca armênio-russo.
A comunidade armênia dentro da Rússia soma dois milhões e meio
de habitantes. A diáspora armênia colocou quase o mesmo tanto nos paísessatélites da Rússia. Putin, ao privilegiar Arpiar Pelechian, estava fazendo
uma aliança estratégica: fazia parceria com um astuto homem de negócios
e, ao mesmo tempo, o usava para linkar seu projeto de recuperação da Mãe
Rússia à diáspora armênia, influenciando o governo deste importante país
para seus projetos geopolíticos.
Arpiar foi eleito Presidente do Congresso Mundial Armênio, Presidente da Associação Russa de Produtores de Diamantes; é dono de petrolífera,
empresa de energia, construtora, frigoríficos, hotelaria e comunicações. Era
um dos três empresários que integravam a comitiva russa que esteve no hotel Blue Tree, em Brasília. Pelechian fez contratos com a Petrobras e a Vale
do Rio Doce. Seus dois companheiros, juntamente com um funcionário do
consulado russo em São Paulo, foram os hóspedes de Dennis em sua fazenda... Certamente, informações privilegiadas da ANP (Agência Nacional do Petróleo), da Petrobras, sobre pré-sal e rodadas licitatórias de blocos
petrolíferos a serem explorados interessariam a Arpiar Pelechian.
Faltava confirmar se os hóspedes vieram em seu nome ou por iniciativa própria, em flagrante infidelidade societária. O Kremlin deveria ter interesse em apurar. Mais uma complicação para a elucidação do desaparecimento de Dennis Steinner.
Chegando lá, Gottardo foi direto ao assunto:
“O que houve Marlene, que tens me evitado?”
“Somente fiquei chateada pelo seu desaparecimento, mas depois entendi tuas razões. Agora estou tentando evitar me incomodar com a Cacau.
Já tomei a decisão de sair da empresa no final do ano, e não quero precipitar
as coisas.”
“A Cacau te falou algo a respeito de nos encontrarmos?”
“Falou que esperava que eu não acabasse na tua cama como a Carla
acabou na do Cláudio!”
“Que história é essa de Carla com Cláudio?”
“A Cacau ficou sabendo que os dois estavam saindo... ‘Abre o olho, que
esses caras não têm escrúpulos. São mercenários. Não se envolve, que não
vale a pena!’, me preveniu...”
“Ah, Dona Cacau, toma jeito!”
Chegou Cláudio. Gottardo não deixou por menos:
“A Cacau preveniu Marlene a meu respeito, dizendo-lhe que não imitasse a Carla...”
“Deixa a Cacau. Ela já está suficientemente enrolada”, disse Marlene,
obviamente não querendo continuar com o assunto. Então falou sobre o que
a fizera chamá-los.
“Olha o que recebi hoje cedo”, mostrando um papel que teria vindo
dentro de um envelope. Era a comunicação dos sequestradores:
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JOÃO CARLOS BERKA
Banco Espírito Santo
conteúdo?”, perguntou Gottardo.
Agência 346, Macau
“Não, e a Cacau pediu que eu falasse para vocês não contarem para
ninguém. Inclusive, ela não quer que a polícia saiba desse detalhe. Ah, ia me
esquecendo! Souberam da prisão do major Cesário?”
Conta especial: bzxdd256.jkl/00
“Foi preso?”
“Já falaste para a Cacau?”
“Ele e um tal de Panzer, suspeitos da morte de Cristina!”
“Vou me encontrar com ela em seguida. Quero avisar vocês que a Cacau está disposta a duas coisas: pagar o resgate imediatamente e chamar
o Guedes para terminar o contrato com vocês. Ela me pediu que agilizasse
o telefone criptografado e a comunicação com aquela pessoa para fazer a
transferência. Hoje, após o almoço, ela gostaria de falar com ambos. Pela
manhã as coisas estão tumultuadas, os pais de Cristina chegaram da África
do Sul, e eles irão juntos à delegacia prestar esclarecimentos para o pessoal
da Homicídios.”
“Marlene, o que tu achas sobre o pagamento desse segundo resgate?”
“Acho que você tem razão. Não é o momento de pagar, é de pagar pra
ver. Não acredito que o Dennis esteja vivo, acho que a Cacau também não.
Por isso não entendo... ela, que custou tanto a pagar o primeiro, ter pressa
para pagar o segundo.”
“E se ela não estiver pagando o resgate do Dennis? Estiver pagando
para alguém ficar de bico calado? E se a morte da Cristina foi um recado?”
“Cacau sabe?”
“Ela que me contou, mas não acredita na culpa do major. Acredita que
é armação de alguém. Está mais preocupada ainda.”
Nesse momento, Gottardo recebeu um telefonema do coronel Guedes,
que acabara de chegar a São Paulo e estava indo para o escritório de Cacau,
onde gostaria de encontrá-lo. Ato imediato, rumaram para o escritório.
No caminho, em frente a uma farmácia onde Marlene fez uma parada,
Cláudio perguntou a Gottardo:
“Foi prudente falar sobre Cacau com Marlene?”
“Espero que Marlene seja fiel à chefe e conte nossas desconfianças.
Não quero aliviar a pressão até que ela faça o que queremos.”
“Gottardo, quer me deixar louca? Se eu tiver a mínima desconfiança
disso, saio hoje mesmo da empresa e vou embora de São Paulo com meu filho!”, disse Marlene, com os olhos esbugalhados.
Aguardaram a chegada de Cacau, quase simultânea com a de Guedes.
Antes da reunião conjunta, Guedes pediu para dar uma palavrinha em particular com Gottardo.
“É, e serás certamente acusada, Marlene, de cumplicidade com a Cacau! Afinal, eras e continuas sendo a pessoa de confiança dela: amiga, confidente e procuradora. Vai ser difícil convencer o pessoal da polícia de que não
sabias de nada...”
“Gottardo, quero agradecer por tudo o que tem feito para ajudar a
Cacau. No entanto, ela acha que foi feito o suficiente. Assim, gostaria que o
senhor me relate a quantas andam as investigações, para que eu possa ajudálo junto a Cacau.”
“Quando estivermos com a Cacau, nos ajuda a convencê-la a anunciarmos a recompensa, em vez de pagar resgate para quem já está morto!”, disse
Cláudio.
“Obrigado pela confiança, coronel. Levando em conta que estamos
numa fase complicada, e que o seu tempo é precioso como o nosso, vamos
apresentar a todos, de uma só vez, o que se configura como um relato oral.
Quero falar com a Cacau junto, ela contratou, está pagando, e não faz parte
de meu modus operandi dar fragmentos de informações.”
“Vocês contaram para alguém sobre o pacote que receberam, sobre o
O coronel, visivelmente contrariado, desculpou-se e rumou ao gabi-
“Meu Deus, Gottardo o que eu faço? Me ajuda!”
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JOÃO CARLOS BERKA
nete de Cacau, onde ela, Marlene e Cláudio aguardavam.
Gottardo cumprimentou Cacau e perguntou:
“Já decidiste, Cacau?”
“Já. Vou pagar. É a vida do meu marido que está em jogo. Respeito sua
opinião, mas a decisão é minha. Então, poderíamos providenciar o que tem
que ser feito?”
“Antes, gostaria de te comunicar que, em função desta tua decisão e
também devido à conclusão que chegamos, damos por encerrados nossos
trabalhos a partir de agora. Não posso concordar com tua decisão, por um
simples motivo: não se paga resgate por refém morto! ...E o Dennis está morto!”
“Como morto, se eu falei com ele?”
“Falaste ou achas que falaste com alguém com a voz parecida com a do
Dennis; de qualquer maneira, essa discussão não vai levar a lugar nenhum.
Por isso, gostaria de relatar o que apuramos e, se necessário for, te entregamos um relatório por escrito, cuja cópia podes encaminhar para o DAS e a
Homicídios. Será decisão tua. Nosso trabalho foi realizado de acordo com
o estabelecido inicialmente, as informações te pertencem. Somente adotaremos outra postura em caso de alguma atitude ou fato novo comprometer
minha segurança ou de meu pessoal.”
Cacau, Marlene e Guedes estavam atônitos. Não esperavam aquela
atitude de Gottardo. Já Cláudio, este conhecia o viejito!
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JOÃO CARLOS BERKA
O QUE ACONTECEU COM DENNIS?
morto, e por Jarbas, que trabalhava para a situação e para o senador Fernando. Imediatamente após a morte suspeita de Clemente, Dennis começou a
receber ameaças. Helga sabia disso, bem como Carla;
Gottardo iniciou a exposição dos resultados obtidos:
1.
Dennis não fora sequestrado com a finalidade de extorsão. Fora
uma execução travestida de sequestro, como a morte de Schincariol não fora
um assalto, mas uma execução;
2. Dennis provavelmente fora morto na mesma madrugada em que
foi levado. Talvez até após ter falado com Cacau;
3. Dennis tinha o chamado “comportamento de risco”: levava uma
vida dupla, alternando a postura de empresário e pai de família com a de boêmio de vida desregrada, usuário de drogas, frequentador do underground
GLS; era exibicionista em usos e costumes com patrimônio, grifes caras e
joias; envolvia-se com garotos de programa e mulheres casadas ou comprometidas – num ambiente repleto de mulheres, muitas delas tiveram ou tinham relacionamento íntimo com ele.
“Mas tudo isso não foi o responsável por seu sumiço de acordo com
nosso entendimento. Tudo o que estou afirmando aqui pode ser comprovado
pelas provas obtidas por depoimentos gravados e documentos. O que selou
sua sorte, realmente, acreditamos que seja uma destas causas”, disse Gottardo, novamente enumerando:
A First Team, contrariando a vontade de Dennis, assinou um contrato de consultoria com um expoente do crime organizado, o major Cesário,
notório manipulador de combustível adulterado e vinculado ao PCC. Cesário
tinha um caso com Cristina; a morte nas proximidades da fazenda e haras
do major tinha ele e um ex-federal chamado Panzer como suspeitos. Cesário
demonstrara seu inconformismo com a consultoria da First Team, visto que
acreditava estar sendo traído: a Petrobras era a maior cliente da empresa de
Dennis e, juntamente com o Ministério Público e a Polícia Federal, buscava
acabar com os negócios criminosos do major e colocá-lo na cadeia;
O pai de Cristina, com notórias ligações com o crime organizado, não
suportava o Dennis, quem acusava de ter corrompido a filha. Dennis tinha
pavor de Cristina e, apesar de seus insistentes pedidos que a demitissem,
Cacau, que sabia do caso que ambos tiveram, inexplicavelmente a mantinha
na empresa – não só a tornou sua principal colaboradora, como também a
colocou numa posição estratégica, gerenciando a sucursal de Brasília.
peu:
O coronel Guedes, cujas feições não escondiam as emoções, interrom-
“Estou certo, senhor Gottardo, de que todos estes fatos são passíveis
de comprovação?”
Dennis estava fazendo um jogo extremamente perigoso. Juntamente com
Gert Pieske e sua funcionária, Ângela, montaram uma pequena estrutura para
agenciar informações privilegiadas de seus clientes e ofertarem ao mercado;
“Certamente, e o correto seria repassarmos tudo o que investigamos
para a polícia. No entanto, quem decide é a Cacau.”
“Temos provas cabais e testemunhos de que Gert traía a ESE, e Dennis
a Petrobras. Dennis estava envolvido com gente ligada a uma das máfias russas. Escuta, Cacau, apesar de tua incredulidade e quereres safar a barra do
Dennis, o fato pode ser facilmente comprovado pela polícia com o material
que temos.” Continuou:
“Tá me dizendo, Gottardo, que o meu marido era um escroto?”
Dennis mantinha um romance há muitos anos com Clemente, primo e
assessor do senador Fernando, ex-candidato à Presidência e cliente de Dennis. Clemente possuía grande acervo de gravações em áudio e vídeo sobre
as estripulias do senador. Esse material foi entregue a Dennis, e ele e Gert o
ofereceram ao adversário da situação. Acontece que os embalos de Dennis
com Clemente também eram frequentados por Igor, o garçom que foi achado
Cacau, que estava pálida e cujo olhar revelava puro ódio, rosnou:
“Estou relatando o que apuramos. Não procuro tecer juízo de valor,
mas já que perguntaste: sim, era um escroto! E este é o adjetivo mais suave
que pode ser empregado para defini-lo. Colheu o que plantou. Agora, se me
perguntas o que fazer com essas informações...”
“Gottardo, ENFIA NO CU!”
“Calma, gente! Calma!”, pediu Marlene, conciliadora. Gottardo agradeceu a intervenção de Marlene, e completou:
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“Acho que não se pode passar recibo, isto é, deixar quem quer que seja
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saber que somos sabedores de tudo. Por dois motivos inquestionáveis: primeiro, para tua segurança e de teu filhos, afinal – se estivermos certos, e sei
que estamos–, quem já mandou matar voltará a fazê-lo caso se sinta ameaçado. Segundo, tua empresa não resistiria a um escândalo dessa proporção.
Imagem é o produto, matéria-prima de vocês, e também o capital.”
“Então qual é a sugestão?”, perguntou o coronel Guedes.
“Partimos do pressuposto que o sequestro é obra de criminosos comuns, e aí temos uma escolha: ou anunciamos uma recompensa, que somente seria paga se chegássemos a Dennis vivo, ou pagamos um resgate
ilógico e perigoso. Se por um acaso a polícia souber mais do que conta, vai
questionar por qual motivo foi pago um resgate nessas condições. Queres um
exemplo do que te espera, Cacau? Quando voltaste de tua viagem à Austrália,
onde negociaste a parceria internacional, tiveste um probleminha para resolver: um fiscal do trabalho, com uma multa de quatro milhões nas mãos,
sugerindo um acordo. Quando o Dennis disse que não pagava suborno, ele
ameaçou (e teu Financeiro sabe) revelar evasão de divisas, sonegação fiscal
e previdenciária. Tiveste que pagar duzentos e cinquenta mil reais para que
ele esquecesse o negócio. Imagina o que farão se inteirarem-se do que não
queremos que saibam...”
Após alguns instantes de silêncio, Cacau suspirou.
GASPADIN BARCELOS
Em 1990, em Buenos Aires, Gottardo participara de uma reunião com
técnicos e especialistas em transporte e logística. Ele e um amigo argentino,
o engenheiro Ernesto Menendez, compareceram na condição de consultores
em segurança. A reunião deu-se no Ministério dos Transportes, com a participação de outros órgãos governamentais e entidades empresariais. O desafio:
garantir a segurança da frota rodoviária que trafegava no sul da Argentina e
do Chile, agora integrados por uma rodovia recém-inaugurada na Tierra del
Fuego. Caminhões, cargas e motoristas sumiam nas inóspitas regiões chilenas e argentinas. Atravessando grandes extensões desérticas, com trânsito
quase impossível nos meses de inverno, o problema era agravado pela falta
de segurança.
Na Argentina, àquela época, o monitoramento via satélite somente alcançava quem vinha da capital rumo ao sul, à cidade de Bahía Blanca. Até ali
chegava o limite do satélite de baixa altitude, cujo raio de ação incluía parte
da Argentina, do Uruguai e do Brasil. Durante o meeting de Buenos Aires,
várias soluções foram aventadas. Terminou sem uma resposta precisa, pois a
região tinha peculiaridades que impediam a adoção de determinadas tecnologias.
“...Tá certo, mas não posso arriscar com quem está me ameaçando,
Ao voltar para o Brasil, Gottardo comentou o assunto com um amiolha o que fizeram com a Cristina! Nem tampouco deixo de levar em conta go brasileiro, físico nuclear formado em Moscou. Esse cara, que tinha amque mesmo um cara experiente como você pode errar. O Dennis pode estar plos relacionamentos nos meios técnicos e científicos russos, disse que tinha
vivo e não vou arriscar, vou pagar!”
conhecimento de que a rede de satélites russa GLONASS, composta por 54
satélites militares de baixa altitude, cobria não somente a Patagônia, mas
Imediatamente, Gottardo pediu que Cláudio ajudasse no pagamento
também toda a Antártida.
do resgate, bem como efetuasse a devida prestação de contas apresentando
relatórios, documentos, gravações, fotos e filmagens – enfim, tudo que conDois anos depois, Gottardo rumou a Moscou na companhia do físitratualmente pertencia ao contratante; Cláudio também se encarregaria do co brasileiro. Salgueiro era um entusiasta defensor da aproximação Brasil
recebimento dos valores acertados. Em seguida, despediu-se e colocou-se à e Rússia, pois, como profundo conhecedor das peculiaridades de ambos os
disposição para qualquer eventualidade, dizendo que retornaria ao Uruguai países, entendia que as economias eram complementares: assim como a Rúscedo no dia seguinte.
sia tinha necessidade de uma série de commodities, de alimentos, o Brasil
necessitava fazer um upgrade tecnológico para se tornar um país desenvolvido. Salgueiro também enfatizava que a tecnologia europeia era cara para a
realidade brasileira, e a norte-americana estava sempre sob salvaguardas de
repasse tecnológico. Normalmente, chegava- -nos sucata tecnológica.
Todavia, após o desmonte da União Soviética, os meios científicos e
tecnológicos russos ficaram sem a tutela econômica do Estado, havendo o
esvaziamento de seus quadros e a deterioração de maquinário, laboratórios,
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
etc. Assim, foram criados os chamados NPOs, instituições de Pesquisa e Pro- a uma das épocas e uniformes dos soldados vencidos sistematicamente pedução. Era a fase de mutação do planejamento central para um capitalismo los russos. Os padres ortodoxos, barbudos, paramentados ricamente, o canto
similar ao gregoriano, tudo envolto pela névoa e pela garoa fina que molhava
incipiente.
a Praça Vermelha – davam-lhe a impressão de estar sonhando. Foi tomado
Uma instituição em especial interessava a Gottardo e Salgueiro: Geo por grande emoção e convidou Alissa a entrarem no GUM, o grande shopSpectrum Group. Formatada a partir de especialistas oriundos das Forças ping erguido no século XIX e hoje um templo de grifes internacionais famoEspaciais Russas, do Ministério do Interior, do Ministério do Comércio Ex- sas, para tomarem algo para esquentar.
terior, do FSB (KGB), reunia o que havia de melhor nos quadros de geoproAs ruas cobertas de neve, os gritos estridentes de um tipo de gralha
cessamento, comunicações, eletrônica, informática, segurança, geologia,
meio-ambiente e logística. Além dos técnicos russos, europeus, canadenses e que resiste aos invernos russos, as lindas russas com elegantes casacos de
pele, a magia do Kremlin, com suas torres e muralhas vermelhas, os jardins e
sul-africanos também compunham o staff executivo.
a Praça das Catedrais, enfim, um dos lugares mais bonitos do mundo.
Havia dois produtos que eram do conhecimento de Gottardo e susFoi chamado à realidade pela chegada daquele que esperavam para
citavam o seu interesse: TrackMaster versões I e II. Eram hardware e software usados para monitoração e comunicação via satélite com aplicativos começar a reunião. O recém-chegado, aparentando quarenta e poucos anos,
para logística, transporte rodoviário, ferroviário, marítimo e aéreo; controle loiro, estatura mediana, olhos azuis, fora apresentado como Vyacheslav Kaambiental, prospecção geológica; comunicação com laboratórios remotos, minski, um especialista do Ministério do Interior. Gottardo, que já sabia de
quem se tratava, sentiu que era atentamente analisado por ele. Utilizava-se
segurança e inteligência.
do tradutor e falava fluentemente o inglês, mas, numa pegadinha de GottarFizeram diversas reuniões, Gottardo, Salgueiro e a direção da empre- do, traiu-se. Gottardo falava desenhando mapas, rotas e pontos sensíveis do
sa e seus técnicos. Apesar de Salgueiro falar russo fluentemente, Gottardo sul da Argentina. Em determinado momento, antes de desenhar algo, mas faachou por bem convidar para as reuniões o adido de ciência e tecnologia da lando em português, explicou os desdobramentos do que tinha sido descrito,
embaixada brasileira em Moscou, Leonardo Aragão. Também levaram um e ficou patente que Kaminski entendia sua língua. Sorrindo, perguntou-lhe,
tradutor da embaixada, apesar de também Aragão ser fluente em russo.
e teve como resposta envergonhada que falava um pouquinho, mas que, em
função dos outros presentes, russos, preferia utilizar o intérprete.
Numa das reuniões, quando todos já estavam acomodados em volta de
uma gigantesca e luxuosa mesa, foi-lhes comunicado que aguardavam uma
Daquele momento em diante, era visível a contrariedade do “especialpessoa de outra entidade que também participaria das conversações. Ao ser ista do Ministério do Interior” com o visitante. O contido russo não resistiu
inquirido por Gottardo sobre a identidade do novo participante, o tradutor e perguntou se a visita de Gottardo era em caráter oficial ou privada. Ao renitidamente desconversou. No entanto, Aragão, que entendera as conversas sponder-lhe que – de acordo com seu pedido de visto e as reuniões empreparalelas, sussurrou-lhe ao ouvido: “FSB!”.
sariais agendadas – estava claro o caráter privado, Kaminski disse estranhar
a presença de pessoas da embaixada brasileira. O adido Leonardo Aragão
Enquanto aguardavam, Salgueiro conversava com o adido brasileiro, tomou a iniciativa de esclarecer ser este um procedimento usual da represene os russos entre si. Gottardo saboreou aquele momento. Nunca havia imag- tação diplomática de seu país. Kaminski, aparentemente não satisfeito, disse
inado ou desejado conhecer a Rússia. Era de uma época acostumada a ver a que estranhava que um profissional de um país tão distante, com realidade
Praça Vermelha pela televisão, nos desfiles de 1º de Maio, quando a União So- tão distinta, estivesse em Moscou em busca soluções de segurança. Gottardo
viética desfilava seu poderio militar e os batalhões de jovens e trabalhadores explicou que, na realidade, o motivo principal era a falta de repostas tecdo Partido. Agora estava ali.
nológicas às necessidades argentinas e chilenas. Falou de Mercosul e outras
coisas.
Dois dias antes, acompanhado da jovem tradutora russa, filha do cônsul em São Paulo, assistira em plena Praça Vermelha a uma procissão pasEntão, para sua surpresa, Kaminski dirigiu-se em russo aos seus colesar diante do Mausoléu de Lenin até a Catedral de São Basílio, cujos domos gas e, rindo, disse que os brasileiros não eram ingênuos no trato com a segucoloridos são conhecidos pelo mundo inteiro. Parecem de brinquedo. Alissa, rança. O restante escapou aos tradutores, mas uma expressão foi captada por
a linda russa, explicou que cada domo, com seu formato e colorido, remetia Salgueiro e Aragão: esquadrão da morte!
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JOÃO CARLOS BERKA
“Seria presunção minha querer ensinar os senhores a cuidarem de um
Kaminski perguntou sorrindo a Gottardo como funcionavam os esquadrões da morte no Brasil. Gottardo esclareceu que aqueles foram episódi- problema interno do seu país. No entanto, se eu fosse russo e tivesse as crecos e pontuais, que hoje em dia não existiam mais. Aborrecido pela falta de denciais para solucionar o que estamos tratando, faria o seguinte: sequestraria os capos, castraria e colocaria em liberdade!”
tato do russo, provocou: “nada parecido com as máfias russas!”.
Salgueiro, de olhos arregalados: “Não posso traduzir isto!”
Kaminski inclinou-se sobre a mesa. “Oh! Senhor Gottardo, conhece as
máfias russas?”, perguntou em tom irônico, olhos firmes.
Aragão não se fez de rogado, e traduziu. Atenção redobrada dos inter“Não. Somente sei que oito delas disputam espaço em Moscou e arre- locutores russos. Kaminski era todo ouvidos.
dores, e presenciei uma execução no banheiro de um restaurante em meu
“Explique, por favor.”
hotel.”
“Onde o senhor está hospedado?”
“No Belgrad. Em frente ao Ministério do Comércio Exterior, no final
da Rua Arbat.”
“O senhor viu o quê?”
“Me explico. As máfias são organizações semelhantes em todo o mundo. Na Sicília, em Tóquio ou em Moscou, uma das características básicas é
sua verticalidade, um regime de clã similar ao de um patriarcado. Machista e
violento.” Continuou: “Nenhum capo ordena aos seus soldados aquilo que
não é capaz de fazer sozinho. Para chegar à posição de mando, esta foi conquistada com violência, coragem e destemor. Após serem libertados, não conseguem esconder por muito tempo a condição de eunuco. Como danos colaterais, o puteiro se desfaz lentamente; os subordinados, afoitos, tramam para
substituí-los. Devemos levar em conta que o psiquismo de um homem nessa
situação fica destroçado, torna-se incapaz de decidir com clareza e sabedoria.
Quer sangue. Atitudes impensadas são tomadas, e a cautela vai embora. Aí,
o trabalho fica mais fácil. Com a anulação das principais lideranças, o combate fica mais fácil. Não sei se na prática funcionaria, mas é o que eu faria se
tivesse a responsabilidade de encontrar soluções para o problema. Esse é um
problema para os russos resolverem, como os italianos começaram a Operação Mãos Limpas.”
“No Belgrad existem quatro restaurantes: um russo, um alemão, um
georgiano e um cipriota. Um final de tarde desses, eu estava tomando uma
cerveja no restaurante alemão e presenciei uma discussão entre três indivíduos. Um senhor de uns sessenta anos, aparentemente russo, e dois elementos mais novos, com casacos de couro negro, falando um idioma que
não identifiquei. O mais velho chorava. Em determinado momento, saíram.
Logo em seguida, pedi ao garçom que me indicasse o sanitário. Lá chegando, deparei-me com uma cena complicada: o idoso de joelhos, chorando e
implorando não sei o quê, e um dos elementos com uma pistola munida de
silenciador apontando para sua cabeça. Ao me verem, o mais novo fez sinal
que eu saísse. Saí, nas minhas costas escutei um ruído surdo. Em seguida, os
Kaminski levantou-se abrindo um largo sorriso, circundou a mesa e
dois elementos passaram por mim sem se preocupar com minha presença. abraçou Gottardo, exclamando:
Voltei ao banheiro e encontrei o velho no chão, com a cabeça explodida na
“Gaspadin Barcelos, colega!”
parte frontal e muito sangue ao redor. Voltei ao restaurante e comuniquei ao
garçom. ‘Chechenos....’, ele balbuciou.”
Os brutos se entendiam...
“E o que o senhor fez?”
Ali começou um relacionamento que progressivamente foi se trans“Fui para o meu quarto fazer o que me mandava o bom senso: cuidar formando em amizade. Gottardo voltou diversas vezes a Moscou, e em todas
foi ciceroneado por Kaminski. Aos poucos, ficou sabendo sobre seu amigo
de minha vida!”
russo: era coronel do FSB encarregado do projeto de segurança bancária no
Já mais simpático, Kaminski, perguntou: “E o que um especialista país. Foi chefe das Spetsnaz, Forças Especiais (comandos) ligadas ao GRU,
brasileiro sugeriria para o combate às máfias na Rússia?”
o Serviço de Inteligência Militar, e ao FSB, o Serviço Federal de Segurança,
antiga KGB. Atualmente, também era encarregado de uma unidade especial
Gottardo, pedindo a Salgueiro que traduzisse, procurou falar lentam- de combate ao crime organizado.
ente para ser bem entendido:
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Kaminski certo dia convidou Gottardo a passar um final de semana
com ele e sua família numa dacha que possuíam nos arredores de Moscou.
Quem conhece os russos sabe que esse é um indicativo de confiança e amizade. Gottardo aceitou e teve uma das experiências mais inusitadas de sua
vida: fazer sauna e em seguida tomar banho num rio congelado. Lógico que
acompanhado por inúmeras e generosas doses de vodca.
COMO TUDO COMEÇOU
Sábado, 5 de junho de 2005.
Hotel Almirante Cartagena Estelar.
Gottardo volta e meia ajudava Kaminski, e por ele também era ajudado. Sua influência no Kremlin, nas Forças Armadas e nos serviços de segurança e inteligência já tinha sido de grande valia para Gottardo. Dentro de
suas limitações, o brasileiro tinha ajudado e continuava a ajudar o russo.
Sentado na varanda com vista para o Mar das Caraíbas, em Cartagena das Índias, Colômbia, Gottardo usufruía de um merecido descanso após
Agora Gottardo necessitava da ajuda de Kaminski. O que o brasileiro outro trabalho complexo e desgastante. Sorvendo vagarosamente seu uísque,
apreciava o esplendoroso pôr do sol do Caribe, ou dava um tempo e passeava
não sabia é que o russo também tinha necessidades surpreendentes...
a pé pela parte velha da cidade com calçamento da época da colônia espanhola. Depois, pretendia ir a um restaurante típico, com apresentação de show
com músicas e danças típicas. Depois, bem, depois o céu é o limite...
Soa o telefone, e a recepção pede autorização para transferir uma
chamada do Brasil. Não acredita. Ninguém poderia saber onde se encontrava, pois decidira de última hora, ainda em Bogotá, tomar o rumo deste
pequeno paraíso.
“Gottardo, é o Átila. Podemos falar?”
“Oi, general. Tudo bem.”
“Quando encerras tuas merecidas férias?”
“Dentro de uma semana. O que manda?”
“Preciso falar pessoalmente. Se puder fazer uma escala na sua volta, as
despesas estão cobertas. Preciso de um favor.”
“Assim que estiver saindo daqui lhe aviso. Faço uma escala em Guarulhos e dou um pulo em Brasília.”
“Não é necessário. Me avisa o dia que chega, irei ao seu encontro em
São Paulo. É assunto particular, por isso prefiro que falemos lá. Abraços, boas
férias e bom retorno.”
Gottardo conhecia o general há muitos anos. Eram amigos. O general era da Cavalaria, não tinha nenhuma passagem pela área de inteligência.
Seu último comando na tropa fora o regimento dos Dragões da Independência. Antes, passagens como adido em Londres, missões militares na Itália e
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na França. Era filho e neto de generais. Avesso à política, era conhecido na
caserna como um aficionado por cavalos. Sabia tudo a respeito e já havia representado o Brasil em Jogos Militares Internacionais e nas Olimpíadas. Um
homem correto e um bom brasileiro. Então, como sempre, o imponderável: o
chefe da ABIN morreu num acidente de helicóptero. Para harmonizar as três
correntes que disputavam a direção da Agência, por inspiração do comandante-geral do Exército, o Presidente nomeou o general Átila.
Ao chegar em Guarulhos uma semana depois, Gottardo encontrou o
general à sua espera. Saíram para jantar e Átila narrou-lhe os fatos relacionados com o pedido de ajuda que lhe faria.
Inicialmente, Dennis fez um relato do principal motivo que lhe fizera
pedir ajuda: no seu entendimento, estava correndo risco de vida e não sabia
como evitar que algo danoso lhe acontecesse. Falou brevemente de sua vida
pessoal e profissional, em seguida contou sua relação com Cacau, do início
até o presente. Depois falou dos filhos, e por último contou a trama que descobrira. Seus participantes e objetivos.
Foi alertado por uma garota da empresa que Cacau estava se encontrando com Cristina, a filha do senador. Cacau sabia a opinião que Dennis
tinha a respeito de Cristina e, ainda assim, não somente estava privilegiando-a na empresa, tinha também algum projeto sigiloso com ela. Usavam
celulares diferentes para se comunicarem e, ao que tudo indicava, Hugo Leal
também estava envolvido. Em função disso, e sabendo que Cacau fazia reuniões na edícula de seu apartamento quando ele saía em viagens mais demoradas, Dennis contratou uma profissional de São Paulo especialista em
grampos. Foram colocados aparelhos em seu escritório, no apartamento, e
junto à churrasqueira e piscina.
Tratava-se do seguinte: um amigo e colaborador pedira-lhe ajuda para
um empresário, seu ex-sócio tinha entrado numa enrascada de espionagem
política e empresarial. Aparentemente, o cara era um malandrão. No entanto, era sabedor de fatos que interessavam muito ao general. Assim, valendo-se da velha amizade, gostaria que Gottardo escutasse o cara e verificasse
a possibilidade de ajudá-lo. Grana não seria o problema, nem motivação do
Certa feita, num sábado, avisou que iria para a fazenda com amigos
cliente, pois o elemento estava marcado para morrer! O empresário era Dennis Steinner, um dos sócios da maior empresa de comunicação do país, a e que permaneceria até a próxima quinta-feira. Realmente viajou. Ao volFirst Team, a qual tinha vários contratos com o governo federal, empresas tar, solicitou a presença do pessoal que tinha montado as escutas ambientais
estatais, governos estaduais, multinacionais, etc. Numa leitura rápida dos para verificação, e teve a maior surpresa de sua vida.
fatos relatados por seu amigo, parecia haver digitais do crime organizado e
Estavam reunidos, Cacau, Cristina e Hugo Leal. Entre outras coisas,
escândalos políticos variados. Coisa para um Gottardo.
Dennis ficou sabendo que Cacau mantinha um romance com Rodrigo César
Gottardo agradeceu a bajulação, e assumiu o compromisso de intei- Veneu, diretor da ESE. Ficou claro que Veneu também participava das maquinações contra Dennis, e queriam afastá-lo dos negócios de uma vez por torar-se dos fatos e buscar ajudar.
das, não importava o que se fizesse necessário. Ao que parece, os dois homens
Uma semana depois, Dennis Steinner estava em Montevidéu. Seguin- queriam uma solução paliativa, enquanto Cristina defendia uma solução dedo as instruções de Gottardo, tomara um avião para Buenos Aires e de lá o finitiva. Cacau não revelava exatamente o que sentia, mas era visível que a
Buquebus, barco que saía de Puerto Madeiro, chegando ao porto de Monte- proposta de Cristina não lhe incomodava. Em determinado momento das
vidéu três horas depois.
gravações, Hugo questionou sobre os filhos de Dennis e foi contestado por
Cacau, que se expressou de maneira clara, para não deixar dúvidas: “Os filGottardo já tinha recebido uma súmula do general contendo fotogra- hos são pequenos, depois esquecem. Para eles será melhor crescerem longe
fias e o básico de Dennis, assim foi fácil reconhecê-lo na aduana. Imediata- do pai, antes que entendam o pai que têm ou sigam seu mau exemplo!”, dizia
mente, Gottardo levou-o para um hotel onde já tinha feito reserva com outro Cacau na gravação.
nome. Depois rumaram para o apartamento de Gottardo.
Dennis conta que confidenciou tudo sobre o assunto ao Clemente, que
Dennis agradeceu ter sido recebido, e Gottardo achou por bem alertá- o aconselhou a não tomar nenhuma medida insensata. Dennis confessa que,
lo para uma conversa franca e sem subterfúgios. Confiança era essencial. De- num primeiro instante, sentiu-se compelido a tomar a dianteira, a encomenpois de saber os fatos, faria um diagnóstico da situação e proporia adoção de dar todos os quatro. No entanto, como desgraça pouca é besteira, aconteceu
medidas. Se aceitas, começariam imediatamente; se não, parariam por ali, e a morte de Igor, seguida pela de Clemente. Ele começou a desconfiar de que o
para todos os efeitos ele não estivera ali, e tampouco lhe deveria algo.
maior perigo que corria não vinha do quarteto, e sim de algo que deixara para
trás... algo que não avaliara corretamente.
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“Gottardo, não vim tomar seu tempo ou me enganar. Depois do diagnóstico fui obrigado a fazer uma reflexão. Pela primeira vez em muitos anos,
fiquei de cara limpa. Estou disposto a fazer o que for necessário para ter uma
pequena chance. Não se trata de falsa humildade, nem estou me travestindo
de ovelha: acontece que me dei conta que hoje sou um lobo desdentado. A
última merda que eu ia fazer era destruir a vida de uma garota boa, a Helga.
Mas me dei conta que não posso continuar a viver como tenho vivido até enFinalmente, conversou com uma pessoa muito amiga, cujo nome não tão.”
revelaria, e esta lhe disse algo que ecoou dentro dele: se por opção pessoal,
“O que foi que tu achas que deixaste para trás, e por que julgas que a
limitação própria, circunstâncias ou destino não vivemos com dignidade, temos o dever de ao menos nos despedir da vida com dignidade! A memória maior ameaça não vem do que chamas de quarteto?”
mais recente, os últimos exemplos são os que permanecerão na lembrança
Dennis então contou detalhadamente os rolos com o senador, bem
dos que ficam. Entre eles, os filhos – devemos isso para nossos filhos. Se quer
como
as
maracutaias conjuntas com Gert. Tomando uma bolsa grande que
desembarcar da vida, faça isso com dignidade!
carregava consigo, entregou-a para Gottardo, dizendo:
“Por isso, estou aqui, senhor Gottardo.”
“Como sei que aceitarei tuas propostas de trabalho, que estou disposto
a fazer o que me mandar e a pagar o valor estipulado, entendo que temos um
“Uma espécie de eutanásia?”
negócio. Gostaria de te entregar o material que me foi entregue pelo Clem“Não, de jeito nenhum. Quero viver com dignidade os anos que me ente. Aí estão materiais produzidos por ele e outros conseguidos de um cororestam. Mesmo que longe dos meus filhos... ainda que eu tenha que deixar nel que, mudando de lado, tirou-os da PM. Sei que ficará em boas mãos, e sei
a Cacau e aquela corja impunes, quero preservar meus filhos. Os filhos que também que os usará quando for necessário e o momento chegar. Hoje, com
nunca dei importância...”
outra cabeça, quero me redimir das merdas que fiz por dinheiro. Tem gente
no Brasil, e é a grande maioria, que merece um país melhor e gente melhor
“Pensou em procurar a polícia, com as gravações?”
para o governo. Não podemos ter outro Salvador da Pátria, outro embuste.
Conto contigo e teus amigos para desmascarar a nova fraude que estão tra“Preciso lhe contar mais. Fiz muita merda, e agora estou de mãos ata- mando contra o povo brasileiro, esse puto do senador Fernando.”
das...”
“Vamos fazer o seguinte: volta para teu hotel e descansa, à noite passo
“Como é que o senhor se vê neste imbróglio?”
para irmos jantar. Até lá vou craniar o que faremos.”
Certamente, se fosse somente isso, Dennis não teria procurado seu
amigo, o amigo do general Átila. Aconteceu um fato novo, que mudou todo o
quadro. Dois diagnósticos distintos, um em Barcelona e outro em Buenos Aires, confirmavam que Dennis estava com princípio de Alzheimer. Contou que
inicialmente pensou em suicídio. Depois, em deixar que o quarteto concretizasse seu plano, mas que de alguma maneira respondessem pelos seus atos.
“Antes, como vítima. Depois da conversa com minha amiga, me dei
conta que sou o grande responsável por tudo que está me acontecendo. Pensei que tinha sido o Pigmaleão de Cacau; ao contrário, fui eu quem soltou
seus demoninhos. Fui eu que a iniciei na ambição, no prazer sem limites, a
transformei na caricatura de ser humano que ela e eu somos.... Iguais a tantos que nos rodeiam.”
“Quanto o senhor está disposto a pagar para uma solução, uma saída?”
“O senhor é que me diz. Acredito que tenho o suficiente, tanto no Brasil, como no exterior, para pagar os seus honorários.”
“Não estava falando disso, falava de investimento pessoal: quanto está
disposto em cortar a própria carne para ter os anos de dignidade?”
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NÃO DESEJE O MAL DE SEU INIMIGO, PLANEJE-O!
Paz”
Assim, ligou para Salgueiro e em seguida para Kaminski. Na próxima
semana estariam em Moscou. Precisava de ajuda.
Preparou um paper com linhas gerais do plano. Custos, operacional“Tudo tem o seu tempo determinado (...) tempo de Guerra e tempo de idade, contatos, e time. Lista de documentos a serem providenciados, medidas a serem tomadas. Dennis tinha que desaparecer... para sempre. Por isso
Eclesiastes 3:1-8
Gottardo fora procurado pelo general. Afinal, quem sabe achar também sabe
esconder!
Barcelos era um dos bons em fazer alguém desaparecer sem deixar
Gottardo, após a saída de Dennis, ficou algum tempo imerso em seus
pensamentos, depois abriu a bolsa que lhe fora entregue. Passou algum tem- pistas. Nunca usou seus conhecimentos para dar fuga a criminosos, mas volta e meia era solicitado para pôr em prática suas habilidades em preservar
po olhando parte de seu conteúdo. Sentiu ódio. Bando de filhos da puta!
testemunhas ameaçadas ou beneficiários de delação premiada. Teve a ideia
Sempre teve desprezo pela classe política; também sabia que muito quando participou do caso de Tommaso Buscetta, e posteriormente de um
empresário supera com folga a engenhosidade má de muito capo mafioso. chefe na União Corsa que fora preso no Brasil. A partir dali, utilizando sua
Sabia o poder deformador do dinheiro e o que significava o canto da sereia do rede de amigos mundo afora, apelidada por eles mesmos de Clube dos Lobpoder. Sempre em contato com essas duas áreas, não se iludia sobre o barro isomens e tendo como integrantes gente da área de segurança e inteligência
de que esses homens eram feitos.
de diversos países, passou operar a nível internacional, oferecendo trabalho
seguro e de qualidade.
Multimilionário invejado por império empresarial que construíra
em uma geração, um psicopata que afastava concorrentes e desafetos com
Naquela noite, apanhou Dennis para jantarem. Dennis manifestou o
mortes encomendadas, assemelhava-se a um governador que instalava o desejo de matar as saudades da excelente carne uruguaia. Gottardo levou-o
crime organizado no palácio e roubava descaradamente, negando depoimen- a uma pequena parrilla de um amigo seu, basco, membro do ETA, que vivia
tos, gravações e filmagens. Numa flagrante atitude deseducadora às novas fugitivo no Uruguai. Acompanhados de um Catamayor Tannat e achuras,
gerações, a despeito da impunidade que gozavam, reclamavam do aumento os dois brasileiros revezaram- -se nos pratos: chotos, chinchulines, riñones,
da criminalidade do povo, da arraia-miúda. Esse era o quadro do Brasil de mollejas, morcillas saladas y dulces, longanizas, chorizos, e depois as delíhoje. Dennis era fruto de tudo isso. Gente como Cacau e asseclas e Dennis cias do campo uruguaio: entrecôte, assado de tira, lomo, bife de chorizo...
existiam porque havia terreno fértil.
Comeram como dizia Leon, o velho basco: “¡Comieron como reyes!”
Não se olvidando de que Dennis era um homem de marketing, e que
Saboreando um postre de dulce de leche, Gottardo passou o paper para
anos a fio desenvolveu as técnicas para vender-se e vender suas ideias, GotDennis,
que o leu com atenção. Em seguida, com aparência de quem ficou
tardo achou que devia refletir sobre algo que falou em seu apartamento:
satisfeito com a janta e a proposta de Gottardo, disse que estava de acordo
“Gottardo, não roubei, não estuprei, nem matei ninguém. Concordo com tudo. Que Gottardo poderia providenciar a parte dele, que ele providenque não fui muito leal aos meus contratantes, mas nada que eles mesmos não ciaria a sua. Em seguida, Gottardo levou Dennis ao seu hotel, despedindo-se:
façam no seu cotidiano!”
“Espero vê-lo em breve. Tenho certeza que tudo vai dar certo. Boa viaBom, se ia ajudar, então sem maiores questionamentos. Afinal, o ob- gem amanhã.”
jetivo maior seria impedir a consecução de um projeto político adverso aos
interesses do Brasil. Não competia a ele, Gottardo, julgar. Somente faria o
que estivesse ao seu alcance para impedir o maquiavelismo daquelas elites.
Ele não era a palmatória do mundo, mas podia dar as suas porradinhas.
Primeiro a guerra, depois, talvez, a paz...
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MOSCOU
nobres, as filhas que estavam preparando-se para o casamento e aquelas
que tinham algum problema de saúde ou cuja aparência impediria casá-las.
Poderia se afirmar que este mosteiro teve fator preponderante na formação
da Mãe Rússia. Quando a KGB assumiu a administração do local, o regime
Gottardo e Salgueiro decidiram que somente o primeiro iria a Moscou. pretendia marcar a questão ideológica.
Gottardo passou a Salgueiro algumas incumbências; de que se tratava, não
Gottardo tinha por hábito valer-se do conhecimento dos locais, seja
importava. Salgueiro já aprendera com seu amigo que a informação só é acesqual
fosse
o país, para usufruir dos usos e costumes. Assim como foi a escolsada por quem dela necessita ou está credenciado para tal.
ha do local, o cardápio. Kaminski disse que o local tinha especialidades que
Oito dias depois, Gottardo aterrissa no aeroporto Sheremetyevo, um o tornaram famoso. Ao contrário da totalidade dos restaurantes russos, serdos quatro internacionais que servem à capital russa. Saindo de Montevidéu, via uma vodca polonesa que, na opinião dos experts, era a melhor do munfizera uma escala em Paris e dali seguira num voo da Aeroflot. Sempre que do: Zubrowka, a vodca que, além de três vezes destilada, continha dentro da
podia preferia essa companhia russa, pelo espaço entre as poltronas e pelo garrafa uma folha de um tipo de capim que era a alimentação preferida dos
bisões. Era considerada afrodisíaca.
excelente serviço de bordo.
Ao chegar, foi dispensado dos demais controles e sua bagagem liberada assim que apresentou seu passaporte. Como sempre – promessa de
Kaminski no primeiro encontro entre ambos, quando Gottardo reclamou da
maneira que fora tratado no aeroporto, tendo ficado retido por três horas
sem explicação e tendo sua bagagem revistada minuciosamente. Kaminski
tinha prestígio: nunca mais submeteram Gottardo aos cinco controles que
existem para os passageiros que chegam.
Como entrada, o restaurante servia, além de diversas receitas de couve
salgada, uma sequência de blinis, pequenos discos de trigo e trigo-sarraceno
com ovos e fermento, o que dá aparência e textura aproximadas de uma tapioca gorda. Em cima, vale tudo, mas o tradicional é com iogurte e caviar.
O prato hors concours era esturjão à siberiana. Gottardo, criado à beira- -mar, sabia tudo de peixes. Teve que ajoelhar-se diante da receita russa:
o melhor peixe que comera!
Um carro blindado e uma escolta com quatro agentes de segurança
Seguindo o hábito russo de continuar com vodca, passaram a falar de
o aguardavam. O único lugar do mundo que Gottardo sentia-se autoridade,
negócios.
Gottardo narrou os detalhes que faltavam ao relatório que já envidizia brincando para Kaminski.
ara por meio seguro a Kaminski. Em seguida, objetivaram os próximos pasFoi levado ao Hotel Izmailovo, um conjunto moderno de quatro tor- sos.
res, todas voltadas à hotelaria, anexas a um shopping e um centro de recGottardo falou que, quando Dennis lhe contou sobre seu problema de
reação. Gottardo não gostava do endereço. Ali um brasileiro se suicidara,
pelo menos foi a comunicação da polícia russa. Era um diretor da empresa de saúde, lembrou-se de algo que poderia ser útil: quando estava na Angola,
fogões Dako. Na época, a embaixada pedira a ajuda de Gottardo, porém ele contratado pelo governo angolano para auditar a segurança da Mina de Capouco pôde fazer. Havia suspeitas de um incidente com uma das máfias que toca, relacionou-se com russos da empresa Alrosa, uma das maiores mineradominava o local e a grande feira de artesanato ao lado, com o mesmo nome: doras de diamantes do mundo. Alrosa era responsável por vinte por cento da
produção mundial e noventa e sete por cento da produção russa.
Izmailovo.
Kaminski o aguardava no hotel. Saíram para jantar num local exclusivo: Danilovskiy, Velikiy Danilvskiy Ulitsa. O restaurante ficava no interior
de um antigo mosteiro, e nos fundos uma área reservada ao FSB, onde ficava o museu de armas e equipamentos operacionais do órgão de espionagem
russo.
Catoca era considerada a segunda maior mina de diamantes do mundo
em termos de produção. Produzia diamantes quase de maneira industrial.
Catoca era uma sociedade com participação acionária da Endiama, a empresa estatal angolana, a Alrosa, russa, a Odebrecht, brasileira, e a Daumonth,
israelense.
Ao visitar o hospital/ambulatório de Catoca, Gottardo soube que a
Kaminski contou a Gottardo que o local onde estavam teve um paOdebrecht
era a responsável por uma exitosa campanha em todo país, de
pel importante para a nobreza russa. Neste mosteiro ficavam as viúvas dos
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prevenção à Aids. Conversando com um dos diretores russos da mina, soube
que a Alrosa tinha como um dos investimentos sociais a manutenção de um
centro de pesquisas sobre Alzheimer. Apesar de ser cientificamente aceito
o fato de que não existe prevenção efetiva a esse terrível mal, fora feita uma
descoberta que a Alrosa queria melhor dimensionar: apesar do frio aumentar a incidência e os efeitos da doença, havia lugares onde a mesma, apesar
de temperaturas glaciais, era praticamente inexistente. Algumas regiões da
Sibéria, principalmente a região da cidade de Yakutsk, capital da Iacútia. Cidade com aproximadamente 300.000 habitantes, às margens do rio Lena.
A Alrosa tem sua sede na cidade, sendo a principal mineradora. Ali mantém o centro de pesquisas de Alzheimer. A temperatura no inverno chega
a cinquenta graus negativos, e a média anual é de vinte graus negativos. É
considerada a cidade mais fria do mundo e também grande consumidora de
peixes, principalmente os mais ricos em ômega 3.
Dia seguinte, resolveu dar uma caminhada pela rua Arbat. Estavam no
fim do inverno, mas fazia dezessete graus negativos. Mesmo com a neve caindo, Gottardo gostava de observar o burburinho no calçadão da centenária Arbat. Antigo caminho, na época dos tzares, entre o Kremlin e São Petersburgo.
Artistas pintando na rua. Sósias de Lenin e Hitler tirando fotografias com
turistas. Um menino tocando acordeão. Mulheres lindas desfilando em elegantes casacos de pele e charmosos chapéus ou gorros. Barracas rodeadas de
turistas comprando matrioskas. Soldados fardados, bêbados, com garrafas
de bebidas à mão. O Museu Puskhin, os restaurantes típicos... Tudo o encantava e remetia a reminiscências...
Caminhou até as muralhas do Kremlin. Observando a estátua equestre
do general Júkov, herói russo da Primeira e Segunda guerras mundiais, Gottardo lembrou-se das inúmeras estátuas nas praças uruguaias. O mundo era
pequeno. Os homens se repetem.
Kaminski disse que conhecia a região e que, se Dennis aceitasse o plaVoltando para o hotel, dentro do táxi, pensou em Dennis. Não era sanno que desenvolveriam em conjunto, aquele podia ser um bom destino tanto
–
pelo
contrário, era um pobre diabo, vítima de suas paixões... E quem
to para Dennis desaparecer quanto para aumentar as chances de sobrevida.
Disse que não haveria problemas, o Serviço providenciaria uma nova identi- podia atirar a primeira pedra?...
dade para que a Alrosa aceitasse Dennis em seu programa médico, bem como
No dia seguinte, encerrou sua visita a Moscou com mais um encontro
utilizasse os conhecimentos técnicos do publicitário e marqueteiro brasileiro.
com Kaminski, e depois dirigiu-se ao aeroporto para voltar a Montevidéu via
Passaram em seguida ao mais importante: como tirar Dennis do país Frankfurt.
sem deixar rastro, e quando. Gottardo era da opinião que monitorassem os
inimigos de Dennis e, quando pusessem em andamento algum plano visando
anular Dennis, agiriam assumindo a paternidade de qualquer evento. Assim,
dariam mais segurança à operação de fuga. Kaminski concordou salientando
que, como iriam operar no limite de segurança, teriam que não somente usar
de todos os meios tecnológicos a seu dispor, mas também disponibilizar uma
robusta equipe de operações. Contudo, a ideia lhe agradava, pois possibilitaria fazer uma avaliação extra de sua capacidade de operar em condições excepcionais, seja pela distância, seja pelo idioma, ou costumes locais. Gostava
da ideia, e Gottardo podia contar como negócio fechado.
Então Gottardo perguntou que favor Kaminski queria dele. Imediatamente foi-lhe dito e Gottardo caiu na gargalhada, incrédulo. Não acreditava
que lhe estavam pedindo o que Kaminski acabara de falar! No entanto, disse:
“Mesmo não dependendo só de mim, pode contar com isso. Em breve
terás notícias, mas já podes ir planejando...”
Falaram por mais meia hora sobre detalhes da operação. Depois Kaminski ofereceu-se para levar Gottardo até seu hotel, este aceitou.
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DIA DA CAÇA OU DO CAÇADOR?
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Assim que foi carregado na moto entre dois caras, Dennis sabia que
tinha um papel a cumprir. Procurou lembrar-se de tudo. Gottardo dissera-lhe
que era vital agir conforme o combinado.
Dobraram a primeira à direita, seguiram três quadras à frente e finalO difícil foi convencer Dennis. Para surpresa de Gottardo, todo o plano, principalmente sumir nas estepes geladas da Sibéria, o empolgou. Ficar mente dobraram à esquerda. Andaram uns cinquenta metros e pararam atrás
aguardando a iniciativa do inimigo é que não o deixava confortável, temia de uma van com letreiros de turismo e vidros com película. Foi colocado na
que algo desse errado. Mesmo Gottardo assegurando que contava com os traseira do veículo, algemado e encapuzado.
melhores profissionais do mundo e com tecnologia de ponta, ele preferia
O veículo rodou por uns quinze minutos, de repente o telefone de um
simplesmente desaparecer.
dos elementos soou. Dennis somente escutou o que o indivíduo de dentro do
Era compreensível: além do medo de ter sua vida na mão de estranhos, carro falava:
invisíveis, e aplastado pela notícia de sua enfermidade, desejava começar
“Tudo bem, tudo bem, já estamos indo. Estamos perto.”
qualquer tipo de tratamento quão antes possível. Gottardo já contava com
essa reação, por isso também já tinha a argumentação na ponta língua: é isso
Cerca de meia hora depois, o veículo parou. Os elementos saltaram, e
ou nada! Dennis não teve escolha, foi obrigado a confiar e manter a postura
um deles ajudou Dennis a descer. Dennis estava com o coração na boca. Faque lhe aconselharam.
lando em boca, nunca a sentira tão seca. O estômago contraído, ele era medo
Nesse ínterim, Kaminski já acionara seu aparato. Tanto Dennis quan- puro. E se as coisas dessem errado? Um pensamento o reconfortou: o filho da
to seus inimigos eram monitorados em tempo integral. Vigilância humana e puta do Gottardo a fim de tranquilizá-lo lhe disse que, caso as coisas dessem
eletrônica constante. Tendo em vista os interesses em jogo, Kaminski conse- errado, ele levasse em conta que era melhor morrer com um tiro na cabeça
guiu do Kremlin autorização para contar com os recursos do Departamento do que se decompondo lentamente de Alzheimer. Na hora, para demonstrar
de Proteção das Comunicações e Informações, era ligado à Presidência da que não tinha medo, concordou; agora não tinha certeza.
Rússia e um equivalente à NSA americana e ao sistema Echelon, formado por
Foi levado para dentro de um local que fedia. Ao entrar, subiu dois
EUA, França, Alemanha, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
pequenos degraus e foi levado para um aposento, e depois para outro, onde o
As informações das equipes de vigilância HUMINT secundadas pelo deixaram no chão. Reunindo forças, falou esbaforido:
arsenal SEGINT (vigilância humana e telemática, respectivamente) davam
“Cara, me tira o capuz, estou sufocando. Eu tenho asma!”
conta de que, enquanto Cacau e seu grupo tramavam o iminente sequestro
de Dennis, o senador movia-se no sentido de uma eliminação definitiva do
Ouviu uma voz dizer:
risco. Queria Dennis morto, e o mais rápido possível. O vazamento desses
preparativos chegou até os ouvidos de Cacau, e foi o que fez que ela ultimasse
“Tira, tira...”
os preparativos do sequestro. Sorte de Dennis.
“Tu quer que ele veja a gente?”
Steinner estava com os nervos em frangalhos, mas sabia que ficaria
só se tomasse alguma atitude intempestiva. Então, só restava esperar. De
“Não vai contá pra ninguém...”
repente, aconteceu.
Imediatamente lhe retiraram o capuz, e pôde ver três elementos no
Estava com Cristina indo para um jantar com o senador. As coisas recinto. Não reconheceu ninguém. Quando pensava em memorizar as fisionforam tão rápidas, que não teve tempo para raciocinar, somente lembrou-se omias, um deles disse:
das palavras de Gottardo:
“Pega, liga pra tua mulher! Avisa que vamos ligar em seguida, pra não
“Fique calmo. As coisas estarão sob controle, mas não deixe de interp- chamá a polícia!”
retar um certo nervosismo, para não gerar desconfianças.”
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Dennis notou que haviam lhe entregado seu telefone e fez a ligação e os levou a um avião militar russo, que em seguida decolou. A operação de
para o fixo de sua residência em São Paulo, torcendo para que Cacau já es- transbordo não durara mais de dez minutos.
tivesse em casa.
Uma hora depois, reforçada e saborosa refeição foi servida por uma
“CACAU, FAZ O QUE TE MANDAREM! NÃO AVISA A POLÍCIA! VÃO moça bastante bonita envergando trajes militares. E então todos dormiram
VOLTAR A TE LIGAR LOGO” – nisso, um estrondo seguido de um clarão profundamente.
fortíssimo. O som ensurdecedor e a luz cegante deixaram os elementos sem
Aterrissaram, mas Dennis não reconheceu o local. Ficou sabendo pelo
reação. Dennis, lembrando-se das instruções inúmeras vezes repetidas, jointérprete que estavam na Ilha do Sal, um aeroporto construído pelos russos
gou-se ao solo. Escutou ruídos surdos, repetidos... E depois o silêncio.
no Arquipélago de Cabo Verde, na costa da África.
Abriu os olhos e não conseguia ver nada, parecia que estava cego.
Quando todos saltaram, estava raiando o dia. Dirigiram-se ao pequeno
Escutou vozes roucas, noutro idioma. Subitamente, alguém o tocou e edifício onde funcionavam administração, estação de passageiros e restaurante. Pequenos aviões estacionados. Gente de diversas origens, coloridas
lhe disse num sotaque carregado:
vestimentas. Grande maioria de negros, e quase a totalidade falava portu“Tudo bom! Já acabou! Agora o senhor estar entre amigos!”
guês, pois o Arquipélago fora uma colônia portuguesa até bem pouco tempo.
Lancharam e em seguida rumaram para o avião, já abastecido. Próxima paraAto contínuo, sentiu que lhe tiravam as algemas, e aos poucos começou da, Moscou!
a ver formas ainda não bem definidas. Mais alguns segundos e, ainda sentado
no chão, pôde vê-los: eram dois, mas parecia que havia mais lá fora. Estavam
Dennis era todo adrenalina. Somente um pensamento tirava o prazer
vestindo roupas comuns, nas mãos pistolas munidas de silenciadores, e ao da aventura: não veria mais os seus filhos...
redor da cabeça e da testa, óculos especiais semelhantes aos de visão noturna.
Era melhor. Se ficasse e conseguisse escapar da morte encomendada,
Traziam também, ao que parecia, equipamentos de comunicação individual.
Ao solo, jaziam dois dos sequestradores, com as cabeças explodidas. Sangue não escaparia dos efeitos devastadores da doença. Queria que seus filhos o
por toda parte... Fora da casa, que agora via ser de madeira e ao lado de um lembrassem como era. Se tinha que morrer aos poucos, que fosse longe deles.
campinho de futebol, mais dois corpos e mais três elementos do resgate. Foi Que fossem felizes!
colocado numa Grand Caravan, da Chrysler, azul ou preta, que saiu do local
Quando se deu conta, estava chorando. As lágrimas escorriam copiosaescoltada por uma Pathfinder prata.
mente pelo rosto. Ainda bem que estava sozinho no fundo do avião. Há quanViajaram por duas horas, primeiro tomando rotas diversas. Dennis to tempo ele não chorava como agora? Fechou os olhos e viu os rostinhos de
teve certeza que seus salvadores eram estrangeiros, provavelmente russos, cada um de seus filhos numa sequência infinda. Pequenos, crescendo...
mas os motoristas eram paulistas. Tinham grande conhecimento do trânsito
Lembrou-se de cada fase da vida de cada um deles... Muito lhe escapalocal.
ra. Estava sempre ocupado ou atordoando-se num copo efêmero e fugaz, na
Chegaram a uma fazenda onde os esperava um Pilatus P-6, piloto e droga maldita ou no sexo sem amor. Melhor assim: que se lembrassem dele
copiloto já aguardavam. Juntamente com Dennis subiram a bordo quatro el- enquanto o mito não se desfizesse. Melhor sobre si, o olhar de criança… adorementos. Após a decolagem, o copiloto abriu um cooler, tirando uma garrafa meceu. E sonhou. Sonhou que tudo fora diferente, que era outro homem, que
era o homem que sonhara ser quando menino... Antes de perder-se, de viver
de vodca, pequenos copos, e dizendo num português impecável:
uma vida que não era para ser sua!
“Saúde e felicidade da parte do senhor Gottardo e do senhor KaminsAcordou horas depois, quando foi servida nova refeição. Mais uma
ki!”
hora de voo e chegavam a Moscou. Era vinte e oito de novembro de 2005.
Brindaram todos, inclusive o piloto. Horas mais tarde, chegavam em Nove horas da manhã, horário local. Do alto, a brancura das primeiras neves
Assunção, no Paraguai. Parecia estar tudo sincronizado. O avião que lhes e árvores desfolhadas. Depois, o aeroporto e o encontro com Kaminski, que
trouxera até ali taxiou até o fim da pista, em seguida uma van apanhou todos
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viera pessoalmente buscá-lo. Dennis estava diante do homem que, dali em semana depois partilhava um amplo e confortável apartamento com um endiante, seria responsável por sua segurança. Talvez, também quem lhe daria genheiro angolano que seria seu cicerone. Dias depois, começou os exames
no centro médico de pesquisas de Alzheimer.
a oportunidade de mais alguns anos de vida. Sentiu respeito.
A empresa lhe solicitara que fizesse estudos sobre assuntos em sua
Foi levado para uma dacha próxima ao grande anel viário de Moscou.
Era uma instalação segura do FSB. Ali passou vários dias, em múltiplas área ligados à imagem institucional da Alrosa, deixando que escolhesse entre
trabalhar na empresa ou no apartamento. Dennis optou por trabalhar na emprovidências e treinamentos.
presa. Também começou a ter aulas de russo com seu colega de apartamento.
Certo dia, manifestou o interesse de conhecer Moscou. Para sua sur- A vida continuava... Dennis estava tendo a chance de viver os melhores anos
presa, Kaminski concordou, porém adiantando que necessitava tomar deter- com DIGNIDADE.
minadas providências para tal. Dias depois, especialistas em caracterização
fizeram um excelente trabalho em Dennis. Ficou irreconhecível. Então, com
um grupo de discretos agentes de segurança, pôde visitar a capital russa. Ficou extasiado com os museus, as igrejas, o Kremlin e, como não poderia deixar de ser, senão não seria Dennis, com as russas...
Sua preparação para morar em Yakutsk finalmente começara. A primeira medida, cujo objetivo não entendeu bem, foi a implantação de um chip
para localização em áreas internas. Havia instalações da Alrosa onde o sinal
de satélite ficava prejudicado, assim usavam um sistema israelense para localização em interiores, chamado Spider Alert.
Os russos tinham feito uma opção estratégica diferente em termos de
TI. Ao contrário do Ocidente, que buscava a massificação, investiam pesadamente em biotecnologia, nanotecnologia e bioinformática. Assim, outro
de seus recursos que foi aplicado a Dennis: a inoculação de um marcador
de radioisótopos em seu sangue. Em qualquer parte do mundo, os olhos dos
satélites russos acompanhavam seus passos. Dennis, já mais relaxado e excitado com a aventura que vivia, recuperou sua veia galhofeira e perguntou se o
produto também não poderia substituir o Viagra...
Depois submeteu-se a uma pequena cirurgia plástica. A questão financeira também fora providenciada. Dennis, após pagar os serviços de Gottardo, ainda ficou com doze milhões de dólares, mais do que suficiente para
viver dali em frente. A transferência que Cacau fizera para pagar os supostos
sequestradores fora executada por Drorit Hanemann com eficiência: o dinheiro desapareceu depois da segunda etapa. Custearia o que Kaminski pedira
a Gottardo em troca da ajuda com Dennis.
kutsk.
Dois meses depois, em pleno inverno siberiano, Dennis chegava a Ya-
Ficou deslumbrado com a paisagem e apavorado com o frio: quarenta e cinco graus negativos. Foi alojado no hotel de trânsito da Alrosa, e uma
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REPOUSO OU PURGATÓRIO DO GUERREIRO?
irônico... Afinal, quase todos os dias via alguma garota nova subir ao apartamento de Gottardo. Poucas voltavam mais vezes. Havia somente duas que
pareciam ser casos estáveis do brasileiro: uma advogada de Porto Alegre, que
vinha a cada quinze dias passar os finais de semana em Montevidéu, e uma
Quando Vera Fischer foi eleita Miss Brasil em junho de 1969, Gottardo garota muito nova, filha do embaixador italiano.
estava no Chuí, a cidade mais meridional do Brasil, fronteira com Uruguai.
Gottardo levava sua vida. Seu treinamento constante rendeu-lhe uma
Estava a caminho de Montevidéu, ia na qualidade de guia turístico. O Presihabilidade
ímpar no uso de armas de fogo e um físico invejável, que lhe grandente do Uruguai era Pacheco Areco, ex-pugilista.
jeara um apelido colocado por uma vizinha e sua mãe: Maguila. Na época,
No dia 27 de junho de 1973, o presidente eleito com apoio militar, Juan passava na televisão uruguaia o desenho de Maguila, o Gorila. Achavam as
María Bordaberry Arocena, deu um golpe de Estado e estabeleceu o Estado vizinhas que os músculos de Gottardo imitavam o personagem. Nunca soube
de Sítio. O Movimento Tupamaro, guerrilha urbana marxista-nacionalista, se era elogio ou ironia.
iniciava uma nova fase após os sequestros do embaixador britânico Geoffrey
Na faculdade, Gottardo, apesar de ser o único brasileiro, passava desJackson e do cônsul brasileiro em Montevidéu, Aloysio Dias Gomide. A execução de um terceiro sequestrado, o agente norte-americano Dan Mitrione, percebido. Os jovens que ali estudavam levavam a coisa a sério, não havia
dava indicativos de endurecimento do regime e aumento de violência por paqueras, nem patotas. Sentia admiração pela formação dos cursos preparatórios para o ensino superior. Era visível que o ensino uruguaio era melparte dos Tupamaros.
hor que o brasileiro. Em sua turma, na maioria garotas, era difícil distinguir
Em outubro daquele mesmo ano, Gottardo foi mandado para o Uru- quem era mais aplicado.
guai em missão específica e do conhecimento único e exclusivo a uma pessoa
Havia duas peculiaridades em sua turma: uma era Josefina, filha do
em Brasília. Na chancelaria, foi lotado na administração. Como queria ocupar seu tempo e já tinha cursado direito no Brasil, matriculou-se no curso Presidente da República, que vinha em seu carro blindado e com guarda-cosde psicologia da Universidade Católica do Uruguai. A Universidade Nacional tas que permaneciam no corredor em frente à porta da sala durante as aulas;
e um padre, novo e loquaz, que dirigia movimentos sociais. Com o tempo, e
fora fechada pelo governo.
muitas caipirinhas e feijoadas com as garotas no apartamento de Gottardo,
Às vezes, antes do início das aulas, ou na falta
Gottardo dividia seu tempo entre o trabalho na embaixada, a facul- soube que era Tupamaro.
dade, a academia de artes marciais, e a mulherada... Aos sábados à tarde, de algum professor, Gottardo e o padre eram convidados pelas garotas para
jogarem vôlei na quadra de esportes da faculdade. Um dia, após um desses
frequentava o Polígono de Tiro do Exército uruguaio.
jogos, Gottardo foi à lanchonete da faculdade tomar um café. Fazia um frio
Seu relacionamento com o pessoal da embaixada, brasileiros e uru- absurdo. Quando estava sendo servido, viu uma garota pagando no caixa. Era
guaios, não passava dos limites da cordialidade. Não frequentava a casa de linda!
ninguém, nem convidava para seu apartamento. Somente as alegres chiquiliMorena pálida, cabelos negros ondulados, olhos negros amendoados,
nas... Gottardo era um predador, compulsivo. Sua vida era tocada a adrenaalta
e
esguia.
Provavelmente um metro e setenta e cinco. De botas com salto,
lina e testosterona. Gostava, na vida dupla que levava, dos riscos e do inusitparecia mais alta. Vestia um casaco longo de pele de nútria com golas e punado.
hos de lã. E a boca... ah, a boca da garota, certamente era a mais atraente que
Parte significativa de sua vida era dedicada às mulheres. Não curtia Gottardo já vira: lábios bem delineados, carnudos e aparentemente sem maprostitutas, gostava de namorar, à antiga... O flerte precedendo o ataque mais quiagem, luziam. Gottardo ficou vidrado, mas quando ela o olhou, não soube
frontal. Se não explícitas, as intenções eram traduzidas em olhares e manu- por quê, ele desviou o olhar...
seios que não deixavam dúvidas, sempre demonstradas de maneira clara e
Não tinha nada de tímido. Era afoito e persistente quando tratava-se
insofismável: cama! Assim, sem rodeios. Volta e meia julgava-se apaixonado.
do nobre esporte da caça. Não se intimidava com aparência ou conduta. No
Até a próxima conquista, a novidade da hora.
entanto, pela primeira vez, teve um sentimento inusitado: “Muita areia para
O porteiro de seu prédio sempre o cumprimentava com um sorriso o meu caminhãozinho!”
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Daquele dia em diante, procurava fazer seu lanche no horário que que foi apresentado ela desaparece. “Decerto a assustei”, pensou gozando a
achava que iria encontrá-la. Às vezes acertava, outras não. Quando a via, o sua má sorte.
mesmo de sempre, um fugaz olhar e nada.
Na outra semana, a viu. Estava no corredor falando com uma colega
Gottardo não gostava de mulheres difíceis. Era um cínico. Acreditava sua de sala, Josefina, a filha do presidente Bordaberry. Ao chegar à sala, perpiamente que todas eram iguais, então não valia a pena dedicar mais tempo guntou para Guillermo sobre sua amiga e comentou que a vira com Josefina.
para uma do que outras. Gostava de mulher fácil, comportadinha em públi“São amigas. Não sabe quem é Letízia?”
co e uma puta na cama... Por isso se dava tão bem com Sônia, a advogada
gaúcha. Sexo sem subterfúgios. Ela vinha a Montevidéu para foder. Às vezes,
“Não. Foste tu que me apresentaste e não disseste nada, fiquei indapassavam três dias sem sair do apartamento, e quase que a totalidade do
tempo na cama. Frequentemente, quando ela ia embora, Gottardo passava gando por aí.”
um tempo de resguardo, todo esfolado... Não havia papo cabeça, nem con“Ela é filha do Blum, José Amenaga Blum, ministro de Ganadería y
fidências, nem planos para futuro, nem reminiscências do passado. Só sexo
Agricultura.
Bordaberry e ele são os dois maiores estancieiros do Uruguai.”
animal, como Gottardo gostava.
Gottardo, sem saber o que dizer: “...Linda, e rica!”
Mentiria se negasse que acreditava estar se apaixonando, vez ou outra.
Aí tirava a prova dos nove: pegava a próxima, e sabia – se tivesse vontade de
Guillermo sorriu.
bisar com uma ex, tudo bem, mas acontece que isso nunca se deu. Ele gostava
de novidade sem envolvimentos. Por isso, ficou nas platônicas olhadelas para
Dois dias depois, voltaram a se encontrar na lanchonete, e ela convia garota da faculdade. Pressentia encrenca!
dou-o a sentar em sua mesa. Em seguida, depois da conversa fiada de praxe,
perguntou-lhe o que fazia no Uruguai. Gottardo lhe disse que trabalhava na
Nunca perguntou sobre ela para ninguém. Nunca quis saber. Até que, embaixada brasileira.
um dia, Guillermo, o padre, convidou-o para uma cerveja. Teriam duas aulas livres e poderiam bater um papo. Quando estavam conversando, ela apa“Que bueno, ¡mi papá es amigo del señor embajador Sette Câmara!”
receu e, para sua surpresa, dirigiu-se à sua mesa sorrindo para Guillermo.
Cumprimentaram-se, e Guillermo apresentou Gottardo:
Ao ser perguntado onde morava, teve uma surpresa: Letízia morava a
duas quadras de seu apartamento em Pocitos. Morava com a irmã, duas em“Letízia, minha amiga. E Gottardo, meu colega de sala brasileiro.”
pregadas e um motorista. Aos finais de semana, iam para uma das estâncias.
Papo sobre Brasil, sobre Uruguai, e despediram-se.
Ela, sorridente, estendeu a mão:
Na noite seguinte, estava chovendo muito e ventava forte. Gottardo
“¿Brasileño? ¡Me encanta el Brasil!”
aguardava um táxi em frente à faculdade quando parou uma Mercedes branAí a conversa de sempre: Senta! Conheces o Brasil? Onde estiveste? ca: era Letízia, que lhe oferecia carona.
Quando? Gostaste? E assim por diante. Gottardo observou que ela, além de
Dali em diante as coisas tomaram seu rumo. Letízia o convidava para
tudo o que já notara à distância, tinha as mãos lindas, longas, delicadas, al- o cinema, teatro, praia. Aos sábados, às vezes iam ao Carrasco Polo Club
vas, bem tratadas, mãos de pianista...
cavalgar os cavalos de propriedade da família. Visitas às estâncias, onde ficou
sabendo que Letízia realizava intenso e significativo trabalho social com as
“Que merda, estou ficando bobo!”, pensou com seus botões.
esposas e filhos dos peões. Conheceu a família de Letízia, seus pais e irmã.
Letízia organizava pequenas reuniões com os amigos, no seu apartamento ou
Após algum tempo despediram-se.
no de Gottardo.
No dia seguinte, não a viu. No outro também não. Depois, veio o final
Certa feita, fez um fondue em seu apartamento e convidou oito casais,
de semana e, para surpresa sua, a garota não saía de seu pensamento. Na outra semana tampouco a viu. Sacanagem – a encontrava todos os dias, e agora todos pertencentes à elite uruguaia. Faltava pouco para o novo casal apare-
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cer nas colunas sociais. E Gottardo sabia o que isso significaria... No entanto, trabalho de Gottardo. O embaixador ainda comentou que conhecia Letízia,
que era uma excelente garota, um dos melhores partidos do Uruguai, e que
tinha sorte: a família, apesar de tudo, não era dada a badalações.
era o xodó do pai. Falou num tom de voz que implicitamente implorava a
Uma tarde, enquanto esperava que Letízia se aprontasse para saírem, Gottardo que não fizesse nenhuma cagada.
na sala de seu apartamento, Graziela, a irmã, com seu jeito moleque lhe enGottardo, à esta altura do campeonato, já estava apaixonado por Letítregou uma revista, mostrando-lhe a capa e perguntando:
zia e tinha certeza que era correspondido. No entanto, tinha um complica“¡Mira si reconoces!”
dor: Gottardo não sabia namorar sem sexo; Letízia, que em determinados
momentos dizia brincando nunca ter imaginado que se casaria com um braGottardo viu um linda mulher, com corpo escultural, de maiô, com sileiro, colocava como fato consumado o sexo somente depois do casamento.
uma faixa: Reina de las playas – Uruguay. Abaixo: Letízia Amenaga Blum, Certa feita, indagada se era virgem, ruborizada questionou como Gottardo
em Punta del Este.
podia fazer uma pergunta daquelas. Mais vermelha ainda, tentou dizer que,
se não fosse, já teria transado com ele.
A reportagem interna noticiava que a rainha das praias do Uruguai
tinha recentemente debutado num baile em Mônaco. Havia mais uma foto,
A outra complicação é que mentira, para Letízia, era pecado capital.
dançado com o pai a primeira valsa. O evento fora prestigiado pela presença Acreditava que a base de um relacionamento era a confiança, a sinceridade
do Príncipe Albert, de Mônaco.
e a transparência. Gottardo, quando escutava ou pensava sobre o assunto,
perguntava- -se como resolveria o impasse entre executar sua missão e conGottardo estava pasmo. Não lhe era crível que a Letízia que conhecia tinuar com a garota.
fosse a mesma mulher. Ainda estava com cara de bobo quando ela entrou na
sala dizendo que estava pronta para saírem. Ao ver Gottardo com a revista
Existe um dito campeiro que vale tanto no Rio Grande do Sul quannas mãos, ficou pálida e gritou para a irmã que a mataria. Gottardo não en- to no Uruguai: cachorro comedor de ovelha, só matando! Gottardo, mesmo
tendeu sua reação. Mais tarde, jantando num restaurante, disse que achou-a apaixonado pela primeira vez na vida, não deixara de abater suas ovelhas,
linda, produzida, que parecia mais adulta nas fotos. Letízia, visivelmente de- suas lebres...
sconfortável, disse-lhe que tinha dezessete anos à época, e que não gostava
nem das fotos, nem das lembranças. Que hoje, mais madura, tinha vergonha
Continuava com Lilian, a italianinha; com Sônia, a brasileira, e tantas
daquela futilidade. Gottardo não entendeu muito bem, mas deixou para lá.
quanto aparecessem. Claro que agora de maneira mais recatada, sem se expor muito. Justificava-se dizendo para si mesmo que era homem e, como não
Dias depois, o embaixador mandou um recado que gostaria de falar tinha intimidades com Letízia, necessitava daquilo...
com ele. Gottardo achou que seria algo relacionado com uma descoberta sua:
a UAL (Unión Artiguista de Liberación), movimento subversivo que disputaUma noite foi despedir-se, pois na manhã seguinte ele iria ao Brasil
va com os Tupamaros a primazia no combate ao governo, estava planejando passar a Semana Santa com seus pais. O pai dela, que estava no apartamento,
uma série de atentados no Uruguai. A descoberta de Gottardo causara in- pediu para falarem a sós. Gottardo ficou intrigado, porém aceitou o convite
credulidade junto aos serviços de inteligência brasileiro e uruguaio. Gottardo de descerem, caminharem um pouco pela rambla de Pocitos e irem tomar
estava certo: uma semana depois começaram as bombas.
um café.
Ao conversar com o embaixador, a quem não estava subordinado, pois
estava ligado diretamente a Brasília, Gottardo teve uma grande surpresa. O
embaixador disse-lhe que era amigo do ministro Blum e que este lhe contara
que sua filha, Letízia, estava namorando um funcionário da embaixada. Perguntara-lhe sobre Gottardo, e o que pudera responder é que o conhecia há
pouco tempo, que era formado em direito no Brasil e que tinha bom conceito
em Brasília. O embaixador confidenciou que ficou numa posição extremamente incômoda: era amigo do ministro, mas não podia abrir o jogo sobre o
O pai de Letízia foi direto ao assunto: sabia quem era Gottardo! Não
se desculpava pelo fato de ter mandado que o investigassem, pois achava-se
no direito de fazê-lo, o que estava em jogo era a felicidade de uma filha muito
amada. Não quis entrar no mérito das atividades ou da vida íntima, da qual
também era conhecedor – o que importava para ele era o caráter de Gottardo, e o resumo das informações o dizia que estava diante de um homem sério
e responsável; também tivera excelentes referências da família de Gottardo.
Assim, fazia votos que o namoro de ambos desse certo, somente pedia – e aí
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Então, pela primeira vez, começou um papo no elevador que continuolhou fixa e firmemente para Gottardo – que fizesse sua filha feliz, que não a
fizesse sofrer. Ao voltarem ao apartamento, o pai de Letízia, aparentemente ou até as portas de ambos. “Só mais esta, só mais esta vez...”, pensou. Convidou-a para irem comer mariscos num restaurante próximo, o Calamar 3. De
relaxado e alegre, convidou-os todos para uma pizza. Alívio!
início ela agradeceu, mas disse que estava cansada e que preferia se recolher;
Bem cedo no dia seguinte, o motorista de Letízia levou Gottardo para diante da insistência de Gottardo, finalmente concordou. Duas horas depois,
o aeroporto de Carrasco. Pegou um avião para Porto Alegre, lá Sônia o espe- estavam no restaurante. Os mariscos à provençal estavam magníficos e o
rava. Passaram o fim de semana juntos, mas algo mudara. Ele já não sentia a vinho melhor ainda. Terminaram e voltaram para os apartamentos. Quando
empolgação de antes. Foi para Curitiba.
ela fez menção de entrar no dela, Gottardo convidou-a para entrar no seu
e tomarem um último drink. Sentiu que ela não estava com vontade, mas
Já na casa de sua família, numa sessão de confidências, velho hábito topou, amaciada pelo vinho tomado no restaurante.
cultivado entre ele e seu pai, Gottardo contou-lhe sobre Letízia. Seu pai, que
o conhecia do avesso, disse que ficava contente em vê-lo apaixonado, que esGottardo viveu uma experiência inusitada: a garota tinha um corpo estava na hora de acabar com a boemia. Gottardo respondeu que realmente es- cultural, era linda, no entanto tinha sido a pior transa de sua vida. E verdade
tava gostando muito de Letízia, era a mulher com quem sempre sonhara, mas seja dita, por culpa dele. Seu desempenho fora abaixo da crítica, e o pior, a
que via um impedimento: sua própria condição social e econômica. Não sa- merda, é que ela morava ao lado. Não teve coragem de sugerir um segundo
bia qual seria a reação de Letízia quando soubesse sua verdadeira atividade. tempo, ou uma nova chance...
Nunca deixara que ela visse armas ou equipamentos. Quando era indagado
22h, cedo pelos padrões uruguaios. Letízia fala para Graziela que vai
pelos amigos dela sobre seu porte físico, brincava que tinha ganho no Brasil
fazer uma surpresa para Gottardo. Iria levar as flores que encomendara a
o “prêmio de robustez infantil da Nestlé”, e desconversava.
seu apartamento e deixar o presente que lhe comprara. Assim, na manhã seSeu velho pai lhe disse que não cabiam aqueles complexos de inferi- guinte quando ele chegasse, teria a surpresa. Como tinha uma cópia da chave
oridade, conhecia seu filho, não era um caça-dotes; já estava cursando sua do apartamento de Gottardo (que lhe dera uma para que a sua mucama vissegunda faculdade e se quisesse faria carreira em Brasília ou na iniciativa toriasse e verificasse as necessidades, visto a empregada de Gottardo ser uma
privada. Concordava com o pai de Letízia no seguinte: deveria ter responsab- senhora idosa), pegou as flores e o volume com o presente e foi.
ilidade e não fazer a garota sofrer. Lembrou ao filho que nem todas eram desGottardo estava saindo do banheiro, e a chilena estava nua de bruços,
tinadas ao casamento, e que ele estava com “a boca torta pelo uso do cachimbo”, habituado a garotas que iam para a cama sem nenhum compromisso e dormitando, quando a porta de entrada abriu e Letízia entrou. De onde escom qualquer um. Por isso, orientou que não desperdiçasse a oportunidade e tava, tinha uma visão completa do quarto. Ao ver Gottardo envolto numa
tivesse um comportamento merecedor da garota. Aquela noite no leito, Got- toalha e uma garota nua sobre a cama, deu meia-volta e sequer esperou pelo
tardo ficou meditando sobre as palavras do pai. Sabia que tinha razão. Mas elevador, descendo desesperada pelas escadas. Largou o que fora levar no
chão, na porta.
era difícil. Vício é vício.
A garota acordou com o barulho, perguntou o que era e, percebendo
Dias depois, voltou para Montevidéu. Era para chegar sábado às nove
da manhã, mas mudou de voo e antecipou seu retorno para o dia anterior. o estado de Gottardo, vestiu-se e sem uma palavra dirigiu-se para seu aparChegou às 18h da sexta-feira. Pensava em fazer uma surpresa para Letízia. O tamento, passando por cima das flores e do pacote. Não precisava perguntar
mais nada.
interessante é que ela estava pensando o mesmo...
Desastre completo. Gottardo não sabia o que fazer. Resolveu tomar
Ao chegar ao apartamento, foi tomar o elevador e encontrou com sua
vizinha de porta, uma linda e gostosa chilena. A garota vivia só, em um ano um porre... Eram duas da madrugada quando tocou o interfone: era Graziela.
que Gottardo vivia ali somente trocaram rudimentos de cumprimentos. Era Abriu, e ela, espantada:
quieta e aparentemente não recebia homens. Por duas vezes, somente, viu
“Onde está a Letízia?”, e sem esperar resposta: “Você não ia chegar
chegar um casal e pelo sotaque também pareciam chilenos, e mais nada. Inamanhã?” – nisso viu o pacote e as flores sobre a mesa da sala.
dagado, o porteiro dissera-lhe que ela trabalhava numa trading.
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Uma semana depois, Gottardo voltava a Brasília num avião do CAN
Gottardo não teve outra saída a não ser contar a verdade. Graziela dirigiu- -lhe um olhar de desprezo e disse que a irmã não merecia um tratamen- (Correio Aéreo Nacional, da Aeronáutica). Não era o mesmo homem, estava
to daqueles. Virou-se e foi embora, estava com o motorista. Gottardo ainda destroçado. Somente seu velho pai entendeu o que lhe acontecera. Não tinha
ofereceu-se para ir junto, para procurar Letízia. Graziela disse que dispensa- palavras para consolá-lo.
va sua generosidade, e zangada se foi.
Gottardo nunca se perdoou. Isso consumiu muito de sua vida. Anos
Letízia saíra do edifício de Gottardo aos prantos. Não quis voltar para mais tarde, ao conversar com uma psicóloga sua amiga e lhe relatar esses facasa naquele estado, dirigiu pela rambla até o estacionamento do Parador tos, ela lhe perguntou: se o Criador, o Deus Perfeito, o perdoou, por que ele,
Kibon, no final de Pocitos. Parou o carro e, chorando, saltou e caminhou até que era homem, não se perdoava? Queria ter mais majestade do que o Rei?
um banco de frente para o rio.
“Porque não sou Deus, porque sou homem. Por isso, não consigo me
Eram 8h30 da manhã quando a polícia bateu à porta do apartamento perdoar...”, respondeu Gottardo.
de Letízia e Graziela. Letízia fora achada atrás dos depósitos do Parador, estuprada e morta degolada!
Às 9h, Gottardo já sabia. Ficou em estado de choque. Sequer conseguia
chorar. Teve que envolver sua vizinha, para evitar qualquer suspeita sobre si.
O motorista, que viera o informar, disse que os pais de Letízia estavam chegando. A polícia apareceu intimando Gottardo para depoimentos minutos
depois.
Após sair da comisaría, dirigiu-se à embaixada disposto a contar para
o embaixador. Este já sabia e não falou nada, seu olhar traduzia tudo... Gottardo, mesmo sabendo que era sua obrigação ir até a residência de Letízia,
não tinha coragem de enfrentar a dor dos pais e da irmã. E ele fora o causador,
ele e seu maldito vício. Pobre Letízia, envolver-se com um escroto como ele...
Largou a faculdade e solicitou sua remoção para Brasília. Porém, pediu que lhe concedessem dois meses, pois tinha providências a tomar antes
de deixar o Uruguai.
Segundo a polícia, Letízia fora pega por um psicopata chamado pela
mídia de el Sátiro del ascensor (o Tarado do elevador). Tinha por hábito
atacar mulheres sós nos elevadores ou escadas de emergência. No caso de
Letízia, dupla fatalidade: ele devia estar indo para casa quando viu a garota
sozinha, sentada num banco a olhar o rio. Ao se aproximar, deve ter visto que
ela soluçava, e a atacou.
Cinquenta e dois dias depois, o indivíduo fora encontrado. Morto, barbaramente torturado, com os testículos na boca e segurando uma fita. Ao
examinar a gravação, a polícia deparou-se com a confissão completa dos
crimes do facínora, gritos horrendos e ruídos estranhos. Alguém conseguira
a confissão mediante pesada tortura, alguém que sabia fazer seu serviço e que
tinha suas motivações... alguém que estava com muito ódio...
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PUNTA DEL ESTE
“É sério, é teu!”
Cláudio, percebendo que o amigo estava falando sério, e como também tinha noção que Gottardo manipulara para que Cacau pensasse que ele
Após deixar São Paulo depois da reunião final com Cacau, Guedes e queria somente a promessa de recompensa, viu que era verdade, mas não
Marlene, após ter encarregado Cláudio das prestações de contas, Gottardo entendeu, aturdido.
combinou com este último de encontrarem-se dali a quatro dias no “ponto 4”.
“A troco de quê, esse dinheiro para mim?”, e sorrindo: “¿Qué quieres
Necessitava de dois dias para pôr suas coisas de Montevidéu em or- que haga por ti, mi amor?”
dem, depois rumaria para o lugar marcado.
Gottardo viu que era a hora e, também sorrindo, revelou:
Era um sábado de manhã, e por volta das 10h Gottardo chegava a Pun“Dennis está vivo e bem, obrigado!”
ta del Este. Foi direto para o Hotel L’Auberge, local tradicional, de arquitetura belga, e um dos poucos com grande conforto que aceitavam animais jun“¡Puta que parió!... Puta que los pariu!”
tos aos hóspedes. Ficava na Playa Brava, uma área extremamente reservada.
Gottardo levara Arafat. Seu companheiro passara dois meses confinado num
Gottardo gargalhou com gosto. Satisfeito, antegozava o que estava por
canil do Exército uruguaio e agora merecia um relax, assim como seu dono. vir.
À tardinha, Cláudio chegou. Tinha reservas para o final de semana.
Até a hora da janta, contou em detalhes de Cartagena das Índias até
Gottardo preferiu que a primeira conversa se desse junto à piscina. Cautela e Yakutsk. Ao findar, Cláudio estava aturdido. Fingindo-se aborrecido, segurou
canja de galinha...
o braço de Gottardo: “Pero, ¿por qué no me dijiste, hombre?!”
Cláudio estava contente, tudo dera certo. Mostrou a Gottardo a
Gottardo, sorridente, somente levantou a mão livre e apontou para
prestação de contas e trouxe o in cash, o valor repassado por Cacau após cima os dedos indicador e o médio. Cláudio então perguntou: “que tenho que
serviços de pessoal e despesas extras.
fazer?”
Cacau também realizara a transferência. Drorit confirmara com CláuGottardo sugeriu que fossem para seus apartamentos, depois que jantdio que fizera como as instruções prévias de Gottardo, sem rastros... Dois assem poderiam voltar para o mesmo lugar onde estavam, e continuar a conmilhões de dólares!
versa. Horas depois, Gottardo retomou contando sobre seu amigo Kaminski,
e sua nova incumbência: o contraterrorismo. E como o russo o ajudou em
Agora vinha a parte mais difícil, ou mais fácil, dependendo do estado
troca de um pequeno favor. Quando Gottardo contou o que lhe fora pedido,
de espírito de Cláudio. Gottardo conhecia o amigo o suficiente para poder
Cláudio gargalhou. “Pensava que somente os brasileiros eram loucos. Agora
adotar a estratégia certa. Se tinha que pedir o que lhe pediria, precisava prisei que os russos são piores!”, mas concordou.
meiro amaciar o gringo...
Antes de começarem a comemorar mais uma missão exitosa de ambos,
Apanhou a sacola que continha os trezentos mil reais prometidos a
perguntou para Gottardo sobre Cacau. Ele o respondeu pensativo:
Cláudio e lhe entregou. Ao mesmo tempo, passou-lhe um pequeno papel com
o nome de um banco, código e número de conta. Outro pequeno papel: senha.
“A vingança pertence ao Senhor! Ela seguramente prestará contas de
seus atos. Dennis já está expiando seus erros... Todos nós começamos a pagar
“E isso, o que é?”
nossos pecados ainda nesta vida...”
“É o numero da conta que foi aberta para ti, os dois milhões de dólares
“E o senador?”
já estão disponíveis.”
“O material que o general e eu temos é suficiente para acabar com
Cláudio, sorridente: “En serio, ¿qué es eso?”
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EXECUTIVOS, POLÍTICOS & BANDIDOS
JOÃO CARLOS BERKA
qualquer veleidade daquele veado querer ser Presidente da República!”
“Qual o interesse do Átila nisso tudo?”
“Informação. Agora ele deixou de comer na mão das máfias que operam dentro dos órgãos de segurança e inteligência; com o tempo, vai montar a própria equipe. Se lhe falta experiência na área, sobram-lhe correção e
compromisso com o país. Por outro lado, Kaminski monitora mais de perto
o amigo de Putin, pelo menos, para que esse Arpiar não crie problemas para
o Kremlin.”
Finalmente, fizeram um brinde, o brinde antigo, o brinde dos vetustos
Lobisomens:
“Às nossas melhores qualidades!”
Dois meses depois, as agências internacionais de notícias divulgavam
que o terrorista procurado pelos americanos, Bin Laden, líder da Al Qaeda,
aparecera na Chechênia e no Tadjiquistão. Fotos do terrorista mais procurado do mundo foram divulgadas. A TV Al Jazeera publicou ampla reportagem
sobre o assunto. Os americanos, aturdidos, não acreditavam que todo seu
aparato de inteligência não pudera localizar o iemenita, e agora essa... Os
russos agora tratariam de terrorismo em novos patamares, sem ingerências
internacionais. Ponto para Kaminski!
Gottardo, olhando as imagens na televisão, sorriu:
“Ah, Cláudio, ficas fofo com esse turbante e essa barba!”, e deu uma
sonora gargalhada, acordando Arafat, que dormia a seus pés.
FIM
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