CAMINHADAS - Observatório de Favelas

Transcrição

CAMINHADAS - Observatório de Favelas
UFSCar Universidade Federal
de São Carlos
Caminhadas de universitários de origem popular
UFSCar
UFSCar
Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.
O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.
Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
Organização da Coleção:
Monique Batista Carvalho
Francisco Marcelo da Silva
Dalcio Marinho Gonçalves
Aline Pacheco Santana
Programação Visual:
Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ
Coordenação:
Claudio Bastos
Anna Paula Felix Iannini
Thiago Maioli Azevedo
C183
Caminhadas de universitários de origem popular : UFSCAR / organizado por Ana Inês Souza,
Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.
104 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)
Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e
as Comunidades Populares.
Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
ISBN: 978-85-89669-35-1
1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração
universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.
Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.
Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.
V. Universidade Federal de São Carlos. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII.
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
CDD: 378.81
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares
Organizadores
Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
UFSCar
Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ
2009
Rio de Janeiro - 2008
Coleção
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministério da Educação
Fernando Haddad
Ministro
Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade – SECAD
André Luiz de Figueiredo Lázaro
Autores
Aline Priscila Boni
Amanda Roberta Corrado
Amanda Rosinalia Rodrigues
Anderson Thadeu Nunes
Augusto Cesar Pedro
Secretário
Carlos Messias Ferreira de Jesus
Armênio Bello Schmidt
Carlos Ney Martins
Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI
Cleide Helena Santos Cardoso
Leonor Franco de Araújo
Coordenação Geral de Diversidade – CGD
Daiane Lanceni
Edgar Heliodoro Vendradelli Dias
Juliana Aparecida Ribeiro
Programa Conexões de Saberes:
diálogos entre a universidade e
as comunidades populares
Jorge Luiz Barbosa
Jailson de Souza e Silva
Coordenação Geral
Sergio Donizetti Zorzo
Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFSCar
Marina Silveira Palhares
Coordenação do Projeto Caminhadas
André Luiz Faisting
Coordenação Administrativa
Carlos Augusto de Sousa Martins Filho
Coordenação de Araras
Lidiane Maria Maciel
Lilian Cruz
Mariana Gonçalves Luccas
Michel Luiz de Moura
Milton Dias de Freitas Jr.
Mylena Mylândia Araújo Gomes
Nelson Ponce Júnior
Priscila Andrade Corrêa
Rafael Vieira
Roberta Alexandra Silva de Oliveira
Paulo Rogério de Oliveira
Sérgio Ricardo do Nascimento Neto
Sinvaldo Martins de Souza
Symone Mattos Cremonini
Tiago Yamazaki Andrade
Oswaldo Baptista Duarte Filho
Reitor
Maria Stella Coutinho de Alcântara Gil
Vice-Reitora
Maria Luísa Guillaumon. Emmel
Pró-Reitora de Extensão
Prefácio
A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.
A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela
melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma
intensa e sistemática esses objetivos.
Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta
contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um
lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,
por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas.
Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na
cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de
Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,
inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos
o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,
UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os
estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,
UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,
UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.
Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,
ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como
pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em
comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de
1
A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao
menos 35 bolsistas.
práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem
popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,
ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.
Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do
Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19
publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes
e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses
livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que
contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das
camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os
cursos com menor prestígio social.
Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais
justa e uma humanidade cada dia mais plena.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Ministério da Educação
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro
Sumário
Apresentação
Maria Luísa Guillaumon Emmel
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Introdução
Caminhadas
Marina Silveira Palhares
Ana Elisa Marino
Lara de Paula
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Os melhores momentos da minha vida...
Aline Priscila Boni
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Reflexões do início de uma caminhada
Amanda Roberta Corrado
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História de minha vida
Amanda Rosinalia Rodrigues
Realizando sonhos
Anderson Thadeu Nunes
Um pouco de luta
Augusto Cesar Pedro
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A história de minha vida
Daiane Lanceni
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Memorial
Lidiane Maria Maciel
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A vida dá voltas !
Edgar Heliodoro Vendradelli Dias
Minha história
Juliana Aparecida Ribeiro
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Uma caminhada marcada por desafios e conquistas
Cleide Helena Santos Cardoso
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Alçando vôos mais altos
Carlos Messias Ferreira de Jesus
História de vida
Carlos Ney Martins
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36
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Caminhadas
Lilian Cruz
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A história de uma vida
Mariana Gonçalves Luccas
Minha trajetória de vida
Michel Luiz de Moura
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Memorial
Milton Dias de Freitas Jr.
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Eu
Priscila Andrade Corrêa
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Memorial
Sérgio Ricardo do Nascimento Neto
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Apenas mais um brasileiro
Paulo Rogério de Oliveira
Memorial
Tiago Yamazaki Andrade
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Minha história
Roberta Alexandra Silva de Oliveira
Uma senhora história
Symone Mattos Cremonini
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Driblando adversidades
Sinvaldo Martins de Souza
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Caminhadas: trajetória de vida, como releitura da realidade
Rafael Vieira
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Pão-de-açúcar
Mylena Mylândia Araújo Gomes
Caminhadas
Nelson Ponce Júnior
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Apresentação
Em 2006 a Universidade Federal de São Carlos iniciou sua participação no Programa
Conexões de Saberes, promovido pela SECAD - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC. A proposta parecia muito interessante, uma vez que vinha
ao encontro de um dos objetivos que a UFSCar tem buscado alcançar através de vários
programas e projetos de extensão: o da inclusão de alunos provenientes de classes populares à universidade. Como propõe a própria SECAD, “os jovens de origem popular trazem
para a vida universitária esperanças e experiências que precisam ser valorizadas e incorporadas ao saber crítico que a Universidade promove e a própria Universidade tem muito a
aprender com a crescente participação de estudantes oriundos de comunidades populares
na vida acadêmica”.
Ao final deste primeiro período de interações, o Conexões possibilitou concretizar
algumas aspirações, entre elas a criação de um curso pré-vestibular na periferia da cidade de
São Carlos, onde a população não teria possibilidade de usufruir desta formação não fosse
esta iniciativa. Outra satisfação é ver a evolução alcançada pelos alunos com sua participação no Programa Conexões de Saberes. Estamos certos da riqueza que foi e vem sendo esta
experiência para todos os que dela participaram: alunos, professores, colaboradores. Apoiados pelo Ministério, pelos professores e colaboradores que a eles se dedicaram, os alunos
tiveram condições de aprender mais sobre si mesmos e sobre a comunidade que os cerca,
apoderando-se do saber construído coletivamente e criando capacidades de disseminá-lo
em suas comunidades de origem.
Este livro traz uma pequena amostra deste trajeto. As histórias de vida que aqui vemos
são o resultado de um intenso trabalho que envolveu conscientização pessoal, trabalho de
grupo, reflexões coletivas, auto-conhecimento, além de um duro trabalho de desenvolvimento de técnicas de redação. Transformar sentimentos em palavras e palavras em textos
certamente não foi tarefa fácil. Em compensação, adquirir o poder de dividir o resultado de
todo este esforço é sem dúvida, louvável.
Agradecemos todo o apoio do MEC, através da SECAD e também dos coordenadores,
professores, técnicos e alunos que tomaram para si a responsabilidade de acompanhar e
seguir com esses jovens em busca de sua cidadania.
MARIA LUÍSA GUILLAUMON EMMEL
Pró-reitora de Extensão
UFSCar
Universidade Federal de São Carlos
9
Introdução
Caminhadas
O desenvolvimento da atividade Caminhadas: Trajetória do estudante de origem
popular até a Universidade teve início em maio de 2006 e prolongou-se até dezembro do
mesmo ano, sendo que alguns alunos terminaram a revisão do texto no início de fevereiro
de 2007. Desenvolveu-se um trabalho específico com os alunos, que possibilitou a coesão
do grupo, o sentimento de pertença, a desinibição em alguns alunos, uma maior solidariedade e disposição para o trabalho coletivo. Para a execução deste trabalho desenvolveu-se
uma metodologia que será aqui relatada.
OBJETIVOS
• Levar o aluno a refletir sobre sua história de vida, reconhecendo fatores que influenciaram seu desempenho até o ingresso na UFSCar, ou até o semestre em curso;
• Levar o aluno a conhecer a interface entre sua história pessoal e a história do Brasil;
• Levar o aluno a refletir sobre semelhanças e diferenças entre sua história e a do grupo
de alunos que cursam a disciplina com ele;
• Como objetivos atitudinais, buscou-se promover o espírito de solidariedade, cooperação, desenvolver a capacidade de ouvir o grupo e sintetizar o pensamento coletivo, elaborar relatórios de discussão, desenvolver habilidade de coordenação de grupo.
METODOLOGIA
Foi proposta uma disciplina “ACIEPE1 Caminhadas” para que os alunos da UFSCar
pudessem realizar estas atividades com pontuação na carga horária de seus cursos e contagem de créditos curriculares. A ProEX2 aprovou a disciplina, bem como concedeu recursos
de R$ 900,00 reais e uma bolsa de monitoria para esta atividade. Foram planejados encontros com o grupo de alunos, com atividades específicas em cada encontro e com tarefas a
serem realizadas em outros horários. Os encontros ocorreram aos sábados ou domingos, em
horários compatíveis para todo o grupo, tendo em vista que os alunos eram oriundos de
1
ACIEPE A Atividade Curricular de Integração Ensino, Pesquisa e Extensão (ACIEPE) é uma experiência
educativa, cultural e científica que, articulando o Ensino, a Pesquisa e a Extensão e envolvendo professores,
técnicos e alunos da UFSCar, procura viabilizar e estimular o seu relacionamento com diferentes segmentos
da sociedade. Maiores informações http://www.ufscar.br/aciepe.
2
ProEX-A Pró-Reitoria de Extensão - ProEx - é o setor responsável pela gestão das atividades de extensão realizadas pela UFSCar. Para saber mais: http://www.proex.ufscar.br.
Universidade Federal de São Carlos
11
diversos cursos, turnos e dois “campi”. Matricularam-se na disciplina outros alunos que
não eram bolsistas do Conexões, que realizaram as atividades com os demais alunos, alunos
estes que não tiveram seus textos finais inseridos no livro. Houve necessidade de ampliação
do número de encontros, por solicitação dos alunos, para o encerramento.
Relacionamos abaixo as atividades desenvolvidas. Nas atividades coletivas era solicitado que os grupos ou sub-grupos escolhessem um relator e um coordenador das discussões,
objetivando treinar as habilidades de escuta, de coordenação, representação e liderança.
1. HISTÓRIA DE VIDA; primeira abordagem: Após assistirem ao vídeo sobre o Programa Conexões de Saberes3 foi solicitado aos alunos que fizessem uma redação com
o tema Trajetória de vida até ao ingresso na UFSCar;
2. FALANDO DE SI PARA O GRUPO: Atividade de apresentação dos alunos para o
grupo em duplas, organização da atividade: o aluno conversa com um colega e o
apresenta posteriormente para o grupo;
3. TAREFA: O olhar do outro pousa sobre mim - Pesquisa com amigos e parentes - como
sou visto, elaboração de um relato escrito sobre estas entrevistas;
4. PARTILHA: Apresentação do relato anterior ao grupo, em sub-grupos de 5 a 6
alunos, levantamento de pontos em comum, elaboração de síntese e posterior apresentação ao grupo completo;
5. TAREFA: Pesquisa de fotos – fatos que marcaram o Brasil e o Mundo e influência
ram as vidas de cada aluno; recolher fotos ou figuras significativas da própria vida
e fazer uma redação em linguagem jornalística;
6. LINHA DO TEMPO: Traçar marcos do tempo pessoal, do tempo- Brasil e do tempoMundo e do tempo- universidade, discutindo em sub-grupos estes temas e preparando para a apresentação no grupo completo;
7. TAREFA: Re-escrita da redação a partir das partilhas realizadas nos grupos e da
síntese apresentada no grupo completo, complementando com pesquisas se necessário;
8. ÁLBUM DE FOTOS/FIGURAS: Produção dos painéis por sub-grupos, utilizando
fotos e figuras trazidas pelos alunos e os dados das pesquisas e redações elaboradas
até o momento; apresentação no grupo completo e discussão coletiva;
9. ALMOÇO DE LEMBRANÇAS: Confecção dos alimentos- motivadores de lembranças, busca de receitas, produção do almoço, apresentação para o grupo e discussão coletiva;
10. TAREFA: jogos e brincadeiras: Pesquisa e produção de relatório sobre brinquedos
e brincadeiras de suas infâncias e adolescências;
11. JOGOS E BRINCADEIRAS: Apresentação de jogos e brincadeiras em sub-grupos,
brincar junto, rodízio nos sub-grupos, experimentação das brincadeiras com diferentes regras; apresentação e partilha de relatórios no grupo completo;
12. TAREFA: Re-escrita do texto pessoal Caminhadas, história de vida;
13. PARTILHA: em duplas, leitura do texto de um colega, em voz alta. O autor deve
ouvir o seu texto. Apresentação de sugestões para melhorar a compreensão ou
estilo de redação;
3
Vídeo produzido pela Secretaria Nacional do Programa Conexões de Saberes em 2005.
12
Caminhadas de universitários de origem popular
14. TAREFA: Re-escrita do texto de história de vida;
15. PARTILHA: em pequenos grupos dos textos, leitura do texto de um colega, sugestões para melhorar a compreensão ou estilo de redação;
16. TAREFA: Revisão;
17. ALMOÇO de apresentação dos textos. O grupo se reúne para produção de um almoço comemorativo, com comidas típicas e significativas para cada um. Leitura
individual para o grupo do texto completo. Não é obrigatória a leitura de todos os
textos;
18. PORTUGUÊS: a língua e suas artimanhas. Leitura do texto junto a Professora Lara
de Paula. Discussão das dificuldades linguísticas e de estilo, revisão. Esta tarefa
estava prevista para cerca de 30 minutos a uma hora, individualmente, com cada
aluno. Prolongou-se até fevereiro/2007 e alguns alunos demandaram mais de um
horário para a revisão e finalização do texto.
RESULTADOS
Os bolsistas exercitaram sua capacidade de ouvir, e neste ouvir puderam sentir-se
valorizados pelo outro e terem a sensação de fortalecimento pessoal, com aumento da autoestima. A atividade de ouvir o que o outro tinha a dizer dele fez com que se sentissem vistos
e valorizados por pessoas a quem estão afetivamente ligados; a possibilidade de partilha
com o grupo de alunos e de elaboração de relatório desta partilha possibilitou reforçar a
capacidade de prestar atenção ao outro e de exercer uma fala representativa do coletivo. A
sistemática de, a cada encontro, revezarem-se os grupos, revezarem-se os coordenadores e
relatores deu oportunidade a todos de exercitarem papéis diferenciados dentro do grupo.
Observou-se que o grupo tornou-se mais falante, mais propositivo do que no início dos
encontros, com uma maior auto-confiança. Estas habilidades eram relatadas por alguns
alunos como conquistas que se expandiam para outras atuações na Universidade, enquanto
outros explicitavam que conseguiam falar ali, num ambiente em que se sentiam mais protegidos, mas não em suas salas de aula.
Vinte e seis textos, com as histórias de vida dos bolsistas e de um voluntário do
projeto Conexões de Saberes estão apresentados no livro. Nestes textos pode-se observar a
presença de pessoas que os alunos reconhecem como importantes nesta Caminhada, sendo
marcante a presença da família, notadamente da mãe, a presença de apoios intergeracionais,
como avós e avôs, amigos e professores. O esforço pessoal é também um elemento de
destaque, bem como se pode observar a influência de fatores externos, como emprego/
desemprego, planos econômicos, mudanças de sistemas na educação.
A avaliação dos alunos, realizada em dezembro de 2006, ressalta a importância das
atividades do Caminhadas no fortalecimento do grupo, tendo sido citado inclusive a
permanência na UFSCar graças ao encontro de pessoas que puderam ouvir e valorizar a sua
trajetória de vida.
Coordenação: Profa. Dra. Marina Silveira Palhares
Bolista Aciepe: Ana Elisa Marino
Revisão dos textos: Alunos, coordenadora e Profa. Lara de Paula.
Universidade Federal de São Carlos
13
Os melhores momentos da minha vida...
Aline Priscila Boni*
No dia dois de agosto de 1986, na Casa de Saúde e Maternidade São Carlos-SP, mais
precisamente no quarto 204, nasce Aline, a terceira filha do casal Lourdes e Julio, irmã da
Patrícia e da Marta Fernanda, ou Fer, que é como a maioria a chama. Seus pais moravam em
Novo Horizonte e vieram para São Carlos logo após se casarem. Sempre lutaram, mesmo nas
maiores dificuldades, para conseguir sustentar as três filhas e oferecer o melhor possível.
Eu, Aline, escrevo com muita felicidade que moro numa casa construída por meus pais com
janelas, portas e cerâmicas doadas por pessoas para as quais meu pai trabalhava de pedreiro,
profissão que exerce há trinta anos, e que tem como alicerce a coragem, a humildade e a
honestidade, as quais fazem parte da minha personalidade. Minha mãe trabalhou de doméstica uma época para ajudar na renda da família, porém atualmente cuida da própria casa e da
preparação de maravilhosas refeições.
Acredito que, comparando com as atividades das crianças de hoje, aproveitei bem a
minha infância. Lembro-me de quando chegava da escola, almoçava, ajudava minha mãe,
fazia as tarefas e, rapidamente, saía para brincar na rua com vários colegas. As brincadeiras de
que me lembro são simples, mas tiveram muita importância para mim, para o que eu faço hoje,
e para o que quero ser. Na minha infância, brinquei de pega-pega, esconde-esconde, pula-sela,
gato-mia, queimada, pique-bandeira, jogos com bola e muitos outros que me ajudaram a
desenvolver contato com várias pessoas. Os materiais que usávamos ou as improvisações que
fazíamos para poder brincar e jogar, geralmente na rua, fizeram com que aprendêssemos a
enfrentar a realidade e transformar objetos simples em grandes equipamentos de jogo, ou seja,
fizeram com que valorizássemos o que tínhamos ao nosso redor. Para demarcar nossos gols,
pegávamos pedaços de tijolos, garrafas plásticas ou chinelos; para montar uma rede de vôlei,
usávamos linhas, cordas, barbantes e amarrávamos de um poste ou portão a outro, utilizávamos as lixeiras das casas como cestas de basquete, entre muitas outras façanhas.
Porém, a vida não é feita só de brincadeira, embora brincar seja fundamental. Tinha
que cumprir com meus deveres escolares para poder sair com os amigos, por isso sempre me
esforcei para tirar boas notas, não só para garantir minhas horas de lazer, mas também
porque sabia que o estudo era necessário. Hoje, estou cursando Educação Física e estou
tendo a oportunidade de colocar em prática as experiências que tive na infância e ensiná-las
para outras crianças e até para adultos e idosos.
Mas para chegar até aqui, minha trajetória escolar foi muito decisiva. Fiz o pré-primário, durante um ano, numa EMEI1 próxima de casa, Monsenhor Alcindo Siqueira, de onde
* Graduanda em Educação Física pela UFSCar.
1
Escola Municipal de Educação Infantil.
14
Caminhadas de universitários de origem popular
me recordo da tia Sueli. Em 1992, entro na 1ª série na Escola Estadual Marilene Terezinha
Longhin e conheço a professora Glamis, com quem ainda tenho contato. Nessa escola,
estudei até a 4ª série, participei das Festas do Sorvete e também das Festas Juninas. Aliás,
tenho como lembrança de uma dessas festas uma foto em que estou de mãos dadas com o
Anderson, que hoje é meu namorado. Nosso reencontro foi em julho de 2005, numa Festa
“Julina” na Igreja Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento. Sua mãe, Cleide, seu pai,
Antonio, e seu irmão, Cleber, são pessoas das quais gosto muito, além do cachorro Valente,
que também faz parte da família.
Da 5ª à 8ª série, estudei na Escola Estadual Professor José Juliano Neto, onde comecei
a treinar vôlei com a professora Mazé e a participar dos Jogos Interclasses e dos Jogos da
Primavera2. Nesse período, eu e meus vizinhos saíamos todas as noites para a rua, desta vez
não para brincar, mas para ficar conversando, passeando em volta dos quarteirões ou cantando, já que havia um amigo nosso, o Vitor, que levava seu violão e ficava até tarde da
noite com a gente, tocando as músicas que pedíamos. Alguns meninos e meninas iam para
festas, danceterias ou barzinhos, enquanto eu raramente os acompanhava, primeiramente
por ser uma pessoa caseira e, depois, porque tinha compromissos com a Igreja que aos
poucos me distanciavam da rotina dos meus colegas, como com o grupo de coroinhas, de
jovens e da Fraternidade Eucarística, que era coordenada pela Irmã Dora, uma grande companheira que mesmo viajando para outros estados mantém-se em contato comigo.
Nessa época, eu também ia passear no sítio São José da vovó Elidia e do vovô Armínio,
na cidade em que meus pais nasceram. Os momentos em que lá passei não saem da minha
memória, como as conversas na varanda com a família após o almoço, quase sempre aos
domingos, os passeios de charrete com meu avô e seu cavalo Tarzan, quando íamos entregar
o leite produzido pelas vacas do seu sítio na Cooperativa de Laticínios da cidade, as partidas
de futebol com meus primos... também me lembro do balanço onde eu brincava, das vezes em
que moía café a pedido da minha avó e das “bolachinhas de nata”, que eu ia sempre procurar
numa lata em cima do armário da cozinha. Hoje minha avó não mora mais nesse sítio e
também não tão freqüentemente prepara essas “bolachinhas”, mas minha mãe assume esse
papel e as faz sempre que pode – elas fazem parte das minhas lembranças favoritas.
Quando eu estava na 7ª série, Rose, que era professora de vôlei, me chamou para
participar de seus treinos, que iam começar a acontecer aos domingos na quadra da EMEI
onde estudei. Aceitei o convite e acompanhei seu trabalho durante três anos, o time recebeu
o nome de “Semi-Voleibol Integração”, confeccionamos camisetas e realizamos alguns
jogos. Saí desta equipe pouco depois que ela me levou para fazer um teste na equipe de São
Carlos, cujos treinos ocorriam no Ginásio do Bairro Santa Felícia, longe da minha casa.
Consegui entrar no time e representar a cidade durante quatro anos. Mesmo com as viagens,
por causa dos campeonatos, continuava estudando, agora no ensino médio e na Escola
Técnica Estadual Paulino Botelho, que promovia várias atividades, viagens e passeios
culturais. Por meio dessa escola conheci a vida das pessoas que trabalham no lixão, visitei
o Rio Monjolinho, a Fazenda Santa Maria e muito outros lugares.
2
Jogos da Primavera são Olimpíadas Escolares, promovidas em conjunto pelo Governo do Estado por
meio da Secretaria de Estado da Educação (SEED) e pela Prefeitura Municipal de São Carlos, envolvendo
toda a rede de escolas que se inscrevem, sejam elas públicas, estaduais ou municipais, ou particulares.
Universidade Federal de São Carlos
15
Quando terminei o 3°ano, em 2003, não prestei vestibular, nem mesmo sabia como se
realizava; o que eu realmente tinha certeza era do que eu gostaria de ser profissionalmente:
professora de educação física. Como já mencionei, o esporte foi fundamental para realizar
meus sonhos, pois um dos patrocinadores do time que eu representava, o Colégio Objetivo,
fornecia bolsas de estudos para algumas atletas, e eu fui uma das privilegiadas, conseguindo uma bolsa para fazer o curso pré-vestibular, graças à ajuda do técnico Zé Sérgio e também do meu pai, que sempre me apoiou e me ajudou quando precisei. Abracei a oportunidade alegremente, por vários motivos: não teria dinheiro suficiente para pagar um cursinho
privado e porque queria cursar uma faculdade pública, visto que, se não conseguisse a
bolsa, teria que trabalhar e pagar uma faculdade privada, o que não era nem o meu sonho,
nem o dos meus pais.
Não foi nada fácil conciliar estudos, agora mais centralizados num objetivo, o vestibular, com esporte. Meus horários livres eram restritos. Estudava de manhã, de segunda a
sábado, treinava na parte da tarde e da noite, para nos finais de semana participar dos jogos
do campeonato da Associação Pró Voleibol. Minha prima Rosana, e a Camila, que conheci
no cursinho, ajudaram muito emprestando livros e outros materiais. Infelizmente não consegui passar no vestibular, contudo não desisti e pedi outra bolsa. Agora, a situação financeira estava mais difícil para o time, mas após semanas do início das aulas comecei a
freqüentar o cursinho no período da tarde, cujas últimas aulas coincidiam com o início dos
treinos. Conheci o Erlon e a Carol, amigos que na hora em que mais precisei, nas horas do
meu cansaço, não me deixaram desistir. Nesse segundo ano de estudo, tive que acrescentar
a musculação à minha rotina para melhorar meu condicionamento físico. Então, três vezes
por semana acordava cedo, ia para a academia, ia para a escola e seguia para os treinos. E
assim foi até as férias.
Depois, por decisão do técnico, a academia foi retirada e preenchi o horário com aulas
extras do cursinho. Com um pouco mais de segurança, prestei três vestibulares, UFSCar3,
UNESP4 e USP5, e com grande satisfação e felicidade, consegui ingressar na Universidade
Federal de São Carlos... no tão sonhado curso de Educação Física. Fiquei na lista de espera,
mas não perdi a esperança. Quando vi meu nome na lista, não acreditei! Eu havia conseguido! Fiz a matrícula e saí do prédio, pintada de tinta até as orelhas. Ao chegar em casa, recebi
um abraço da minha mãe que estava na expectativa desde que meu pai tinha me levado até
a Universidade. Foi um dia de muita felicidade para todos.
Por continuar na minha cidade, estou aproveitando bastante. Estou trabalhando como
voluntária num Projeto de Extensão de condicionamento físico para servidores da Universidade, o qual está sendo muito gratificante para mim, por aprender conteúdos sobre a
profissão que quero exercer e estar me relacionando com várias pessoas. E finalmente, estou
no Programa Conexões de Saberes, participando de vários eventos, reuniões e atividades
desenvolvidas com a comunidade, com grupos de estudos e, principalmente, relacionadas
3
Universidade Federal de São Carlos, pública, fundada em 1968, com campus em São Carlos, Araras e
Sorocaba [informações do site: http://www2.ufscar.br, em 26 dez 2006].
4
Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, pública, criada em 1976, presente em 23
cidades do Estado de São Paulo [informações do site: http://www.unesp.br, em 26 dez 2006].
5
Universidade de São Paulo, pública, criada em 1934, presente em 6 cidades do Estado de São Paulo
[informações do site: http://www2.usp.br/portugues/index.usp, em 26 dez 2006].
16
Caminhadas de universitários de origem popular
com a trajetória da minha vida, através do Caminhadas, que estão contribuindo para meu
crescimento pessoal. Estou tendo a oportunidade de me conhecer melhor, de relembrar a
história da minha vida e valorizá-la. Sei que minha atuação no programa e em tudo que ele
envolve é importante para mim e, principalmente para os outros. Temos de fazer o melhor
que pudermos, pois essa é a nossa sagrada responsabilidade humana.
Universidade Federal de São Carlos
17
Reflexões do início de uma caminhada
Amanda Roberta Corrado*
...Bom mesmo é ir á luta com determinação,
abraçar a vida e viver com paixão,
perder com classe e vencer com ousadia!
Porque o mundo pertence a quem se atreve
e a vida é muito para ser insignificante.
Charles Chaplin
O processo educativo não se restringe ao âmbito da instituição escolar, considera
Freire, mas acredita–se que possa desenvolver-se nas mais diferentes práticas sociais. Nessa
perspectiva, a base dos meus saberes enquanto educanda foi povoado pelas experiências,
práticas e vivências passadas por meus avós e também por meus pais. Durante nossas reuniões cotidianas, festas e diálogos. Alguns saberes foram tão marcantes que despertaram
diferentes predileções passando a ser de grande valia na escolha da minha profissão, pois
com eles compreendia a verdadeira essência da Agronomia. A força, coragem, justiça e
poder de renovação diante das dificuldades, também foram ensinamentos essenciais para
conseguir ultrapassar as barreiras da educação no país.
A história de cada pessoa não é reservada e solitária, caminha sempre com os acontecimentos do mundo; com a crise da década de 80, nossas vidas sofreram grandes mudanças
e passamos a morar em Rincão, cidadezinha localizada no interior do estado de São Paulo.
Essas transformações foram seguidas de um período de muitas dificuldades e de muitas
renúncias, contudo de repleto aprendizado de superação, renovação e de onde conseguimos tirar o melhor diante daquilo que a vida nos oferecia.
Nesse cenário, meus pais, mesmo sendo pessoas com idéias diferentes e vindos de famílias
com pouca tradição de estudo, sempre estiveram unidos e de comum acordo na minha permanência e de minha irmã Elis na escola, sempre prezaram a nossa educação para que pudéssemos construir uma história diferente e mesmo quando em alguns momentos a lógica dos fatos
levasse a pausa dos estudos e início do trabalho para complementar o orçamento familiar.
A pintura passou a fazer parte da minha vida primeiramente para trabalhar meu lado
artístico, pois minha mãe sempre procurou incentivar atividades que proporcionassem diferentes sensações para que pudéssemos descobrir aquilo que realmente viéssemos a gostar. E
com toda a vontade e insistência de uma mãe, convenceu a professora a me aceitar como
aluna, embora as aulas fossem destinadas apenas para adultos e eu só tinha 8 anos. Depois
* Graduanda em Agronomia pela UFSCar.
18
Caminhadas de universitários de origem popular
de alguns anos, a pintura passa a ter importância como única fonte de nossa renda, sendo o
artesanato feito por toda minha família sustentava nossas despesas e pequenos sonhos.
Meu ensino médio foi cursado no Colégio Técnico Agropecuário José Bonifácio
UNESP/Jaboticabal, e a minha vivência como estudante nas dependências do Colégio
Técnico Agropecuário-CTA transformou minha concepção de mundo. A valorização da
minha origem nessa nova construção do mundo foi bastante importante, pois redescobri
que, quando você passa por situações de dificuldades começa a lutar por ideais diferentes,
a batalhar por coisas que nem todo mundo está interessado em modificar e, principalmente,
não sentir vergonha das suas diferenças, passando a fazer delas uma arma na batalha para a
melhoria dessas desigualdades e mazelas.
A convivência no Colégio Técnico Agropecuário-CTA valeu também por todas as amizades verdadeiras construídas, demonstrando que nem só os laços de sangue unem as pessoas,
deixando as recordações das conversas em frente ao prédio central após o período letivo de
cada ano, as noites de pizzas e a luta por mudanças do grêmio estudantil. A família de cada
amigo que me acolheu como uma filha, assim como os meus pais acolhiam meus amigos, são
jóias raras que carregarei por toda a vida e aos quais não poderia deixar esquecido.
Com o término do ensino médio iniciei meus trabalhos junto ao Departamento de
Produção Vegetal da UNESP Jaboticabal, o qual me deu condições para freqüentar um
cursinho pré-vestibular. Esse período foi de muita correria, estresse devido ao vestibular e
à diferença de ensino, entretanto, com o incentivo de todas as pessoas nunca pensei em
desistir e caminhei passo a passo até minha entrada na universidade.
A construção da minha história até a universidade, como a de outros estudantes,
não é única, pois é o reflexo da desigualdade e das mudanças que precisamos transpor para
a construção de um país justo. A caminhada diferentemente do que muitas vezes acreditei,
não acaba com nosso ingresso na universidade... ledo engano. Nossa caminhada é longa,
não pode ter chegada, nem ponto final enquanto existam ainda tantos outros jovens fora
dos muros da universidade, enquanto tivermos um sistema de ensino superior baseado na
meritocrácia, fazendo-se também necessário um repensar do papel da universidade e assim
como Freire, reivindicar que esta esteja a serviço dos interesses populares e que busque a
compreensão da leitura de mundo e chamar a atenção para a rica relação que pode estabelecer-se entre o conhecimento científico e o saber popular.
Universidade Federal de São Carlos
19
História de minha vida
Amanda Rosinalia Rodrigues*
Nasci no dia 12 de maio de 1986, em uma cidade muito pequena do interior de São
Paulo, Itajobi. Meus pais sempre moraram na zona rural deste município, em uma humilde
propriedade de meus avós, onde toda a família, eles e seus filhos moravam e trabalhavam.
Alguns, depois de casados, se mudaram dali, mas meus pais e mais três irmãos continuaram ali
junto deles. Todos trabalham com o cultivo e a colheita de frutas, de onde retiram seu sustento.
Minha infância pode ser considerada normal, simples, pois não tinha ótimas condições financeiras. Quando não estava na escola, que era muito próxima de minha casa, estava
brincando pelos quintais de minha casa, com primas e vizinhas da mesma faixa etária que a
minha. Eu não era uma criança que ficava muito tempo brincando sozinha dentro de casa,
até porque não tinha muitos brinquedos para isso, nem passava horas assistindo televisão,
preferia sempre brincadeiras com outras crianças e ao ar livre, brincava muito de “escolinha”,
esconde-esconde, mas adorava mesmo era brincar na terra.
Na escola, sempre procurei ser uma boa aluna, pois sabia que tudo o que estava
aprendendo seria muito importante para mim, no futuro, na profissão que escolhesse. Desse
período de minha vida guardo ótimas recordações de amigas maravilhosas que fiz, éramos
primas e nos conhecíamos desde crianças, eram elas a Thaisa e Elisangela; tinha também a
Janaina, a Marilda que conheci na escola. Nós aprontávamos muito juntas, brigávamos
também, mas não nos separávamos, em quase todas as comemorações da escola, estávamos
nós lá, apresentando alguma coreografia, era muito engraçado. E no Ensino Médio nos
separamos, mas encontrei outras que também me marcaram muito, como esquecer a Valquíria,
a Andressa e a Angélica, companheiras de muitas aventuras e trapalhadas, curtimos muito
nesses três anos, passamos por vários momentos ruins através dos quais descobrimos o valor
de uma amizade verdadeira, uma ajudava a outra a superar a perda do namorado, a briga
com os pais, a má sorte e os desentendimentos que às vezes ocorriam até entre nós mesmas,
mas que logo eram superados, confiávamos segredos que nunca poderiam ser contados a
ninguém, tenho-os comigo até hoje e sinto muita falta dessa época, principalmente pelo
fato de termos nos distanciado muito; é triste não as ter mais por perto ou mesmo distante
não ter mais contato com elas, sinto muita falta dessas “loucas”. Dessa época também é
impossível esquecer as festas de formaturas (8ª série e 3º colegial), foram dias inesquecíveis,
marcados por muita ansiedade, nervosismo e felicidade.
Outro fato que muito me marcou foi a perda de minha avó materna em 1997; ela era
muito querida, era minha madrinha de batismo e adorava passar os finais de semana na sua
casa, mas mais triste do que não a ter mais aqui é o fato de ter perdido totalmente o contato
* Graduanda em Educação Física pela UFSCar.
20
Caminhadas de universitários de origem popular
com o meu avô, seu marido, que casou novamente e se desligou por completo de sua
família; é muito triste para mim, hoje, encontrá-lo na rua e saber que ele não me conhece,
não sabe que é a sua neta que tanto o adorava é aquela desconhecida que cruza na sua frente.
Alguns dias atrás, fiquei sabendo que ele estava muito doente, imóvel em uma cama, mas a
distância, a falta de tempo e até de vontade me impossibilitaram de fazer alguma coisa. Um
pouco mais recente, acredito que em 2001, perdi meu avô paterno, uma figura também
muito importante em minha vida; ele já estava doente, mas não era muito grave, foi um
susto muito grande para todos; a família sofreu muito e sofre até hoje a sua falta, mas
imagino que tenha sido o melhor, pois não queríamos vê-lo sofrendo mais.
Um momento também muito importante foi o meu aniversário de 15 anos, meus pais não
tinham boas condições financeiras para realizar a festa dos meus sonhos, mas não deixaram
esse dia passar em branco; minha mãe organizou com o maior carinho do mundo a festa, que
foi realizada na minha casa mesmo, todos os detalhes (enfeite de mesa, lembranças, roupas,
comidas), teve até valsa com meu pai. Foi tudo muito lindo, meus amigos me prestigiando; o
mais legal foi que no auge da festa, na hora das homenagens, minha mãe me deu de presente
uma jóia que tinha sido da minha avó, sua mãe, algo muito precioso com um valor sentimental
imensurável, que guardo comigo, e se no futuro tiver uma filha, será dela também.
Recebi uma educação, não exageradamente, mas um pouco rígida, que muitas vezes
questionei e à qual resisti, mas tenho comigo todos esses valores que meus pais me passaram, e agradeço muito por isso. Como toda adolescente, fui revoltada, queria sair com
minhas amigas e meus pais não deixavam, comecei a namorar cedo, algumas vezes até me
arrependo, mas tudo isso serviu para eu aprender muitas coisas sobre a vida.
Eu era, e vejo que ainda sou, uma pessoa sonhadora, e o meu maior sonho sempre foi
poder ter uma vida melhor, mais confortável, com melhores condições de saúde, de moradia, de alimentação etc. Quando criança, não sabia ao certo como conseguir isto, mas
quando fui amadurecendo, e as responsabilidades começaram a recair sobre mim, percebi
que somente através do trabalho poderia conseguir realizar esse sonho. Não sabia ainda o
que queria fazer, onde trabalhar; muitas alternativas me passaram, mas nenhuma me prendeu completamente a atenção. Assim, continuei estudando, e em um momento do terceiro
ano do Ensino Médio, notei que era chegada a hora de decidir, pois aquele seria o meu
último ano na escola, e então surgiu a dúvida: o que fazer depois? Vou continuar estudando? Vou prestar vestibular? Para que área? Com o que quero trabalhar? Eram muitas perguntas e poucas repostas. Será que eu vou conseguir?
Foi uma fase complicada, como tantas outras que surgiram após. Quando manifestei
essa situação para meus familiares e amigos, recebi a aprovação e o apoio de todos e isso
foi de fundamental importância para minhas decisões.
Às vésperas do vestibular, a maior dúvida ainda permanecia: que curso prestar?
Escolhi Educação Física por ser com o que mais me identifiquei dentre os outros, mas
ainda não tinha muita certeza do que queria realmente. Ao concluir o Ensino Médio no
ano de 2003, prestei vestibular em duas universidades públicas, UNESP e UFSCar, ambas
para Educação Física. Terminadas as provas, eu já sabia que as minhas chances eram
pequenas porque não havia me preparado totalmente para aquilo, e ainda pesava o fato de
ter estudado sempre em escola pública, e não tinha me dedicado ao máximo aos estudos
como poderia ter feito nos últimos anos. E como o esperado, não fui aprovada em nenhuma universidade.
Universidade Federal de São Carlos
21
Decidi desistir, pois acreditava não ser capaz, apesar de todas as pessoas a minha volta
não concordarem; na realidade não sabia muito bem o que queria e estava com muito medo
de tentar e falhar novamente. Foi quando meu irmão resolveu me ajudar. Como já trabalhava, tinha um emprego e salário estável, era responsável pelo seu próprio sustento, não
dependia mais dos nossos pais e se ofereceu para pagar um ano de cursinho para mim. Meu
irmão é seis anos mais velho que eu, é uma pessoa muito importante em minha vida e
sempre me ajudou em tudo, devo muito a ele por isso; é um irmão diferente, especial,
importante, não sei explicar, ele é diferente. É interessante ressaltar aqui que, quando éramos crianças, brigávamos muito, mas muito mesmo, e hoje nos damos muito bem. Amo
muito esse cara, que é um herói para mim, a pessoa em que me inspiro e penso antes de tudo
o que vou fazer. Hesitei em aceitar, com medo de não conseguir e seu esforço ser em vão,
mas ao fim aceitei e fiz um ano de cursinho pré-vestibular. Dediquei-me ao máximo, estudava uma média de cinco horas por dia, fora as horas de aula que eram no período noturno.
Mas também de extrema importância para o meu sucesso foi a presença do meu irmão e do
meu atual namorado, pessoas que sempre estiveram ali ao meu lado me apoiando, me
ajudando em todos os momentos mais difíceis, devo muito a esses dois, os “homens da
minha vida”, nunca vou cansar de agradecê-los.
Neste um ano de cursinho, 2004, eu amadureci muito, percebi que o meu futuro, meu
sucesso, e a possível realização de meus sonhos estavam em minhas mãos, e que se eu
lutasse e me dedicasse muito poderia conseguir. Conheci várias pessoas que estavam na
mesma situação que eu, outras até piores, mas que mesmo assim nem pensavam em desistir.
Uma, em especial, foi muito importante neste um ano, uma amiga que eu já conhecia, mas
de quem me aproximei muito nessa época, a Keli. Eu morava com meus pais na zona rural,
como já disse, e fazia cursinho no período noturno, em uma cidade próxima dali, Catanduva,
a mais ou menos uma meia hora de distância. A prefeitura de Itajobi disponibilizava um
ônibus para levar-nos, pois muitas pessoas também faziam faculdades particulares nessa
mesma cidade. Como chegávamos tarde da noite, não tinha mais como eu ir para minha
casa, meu pai até queria ir me buscar todo dia, mas foi quando essa amiga ofereceu sua casa
para eu ficar todas as noites, e assim foi, pois achei desnecessário fazer meu pai acordar no
meio da noite para ir me buscar. Ficamos muito próximas nesse período, e até hoje nos
falamos, com menos freqüência, mas acredito que a amizade continue a mesma. A sua
família me tratava como parte dela, me sentia muito bem naquela casa e sinto muitas saudades de todos de lá.
Foi um ano muito importante em minha vida. Hoje acredito que se ele não tivesse
existido talvez minha adaptação tivesse sido diferente, mais difícil. Ao final deste ano
prestei o vestibular novamente, agora melhor preparada, escolhi três universidades; UEL1,
UNESP/campus Bauru e UFSCar, novamente todas para Educação Física. Passadas as provas, eu acreditava que pelo menos na UEL iria conseguir a aprovação, estava com uma
sensação de dever cumprido, e a certeza de que tinha feito a minha parte. Mas mesmo assim
1
Universidade Estadual de Londrina/PR, pública, criada em 1970. Em 1987, foi implantado o ensino gratuito na Instituição e, em 1991, transformou-se em Autarquia Estadual. A partir do vestibular de 2005, a
UEL adotou o sistema de cotas para alunos negros e para oriundos de escolas públicas [informações do
site http://www.uel.br/uel/portal, em 26 dez 2006].
22
Caminhadas de universitários de origem popular
estava um pouco desanimada com os resultados, pois achei as outras duas provas difíceis, e
quando saiu o primeiro, aqui da UFSCar, nem procurei saber, foi o meu namorado quem foi
ver e me deu a notícia por telefone. Tamanha foi a minha felicidade: estava na lista de
espera! E depois, o segundo foi meu irmão quem viu e também me passou, por telefone, a
notícia de que havia passado, e por fim, saiu o resultado do terceiro, também fui aprovada;
fiquei muito feliz por conseguir a aprovação nos três vestibulares. Escolhi a UFSCar, por
vários motivos: proximidade de minha casa, tinha amigos que já estavam estudando aqui,
maior disponibilidade de assistência estudantil, características do curso etc.
Passada essa fase, veio outra tão complicada quanto: “sair de casa”, era muito difícil
deixar meus pais e ir para um lugar estranho onde não conhecia ninguém praticamente,
aprender a viver sozinha, sem depender mais de ninguém, foi muito difícil porque até então
eu nunca havia saído de casa. Lembro do momento da despedida, meus pais na porta de casa
chorando e eu indo embora, depois meu irmão na rodoviária chorando, acenando, e o
ônibus saindo. Ainda hoje não acredito como consegui pegar aquele ônibus e vir embora
sozinha, sem conhecer ninguém; hoje tenho orgulho de mim mesma. Foi muito difícil me
acostumar sem minha mãe fazendo quase tudo para mim, meu pai para conversar e meu
irmão para me ajudar, e meu namorado também. Para matar um pouco das saudades, eu
falava com eles todos os dias, com algum deles pelo menos, e sempre que podia ia para casa
nos finais de semana. Foram muitos os momentos em que me vi sozinha e chorei e tive
vontade de voltar, mas a vontade de vencer era maior e me convencia a ficar; eles também
sofreram, eu sei, mas foram fortes e sempre que podiam vinham aqui me visitar. Aprendi
muito, novamente, amadureci mais ainda, me tornei uma pessoa independente e segura ao
tomar minhas decisões. Minha vida mudou completamente, hoje convivo com pessoas
muito diferentes de mim, que eu nunca imaginava nem conhecer. Há uma coisa que a gente
aprende vivendo em um alojamento estudantil, que todas as pessoas são diferentes umas
das outras e para se conviver bem é preciso aceitar e acima de tudo respeitar essas diferenças.
Durante o meu primeiro ano, contei com a assistência que a universidade oferece:
moradia no alojamento, alimentação no Restaurante Universitário e ainda uma ajuda de
custo por meio da chamada Bolsa Atividade, através da qual eu trabalhava na Unidade de
Assistência a Criança (UAC) e recebia o valor de 110 reais por mês. Com isso, meus pais
pouco ou quase nada precisavam me ajudar financeiramente.
A vida universitária é muito diferente, pelo menos da vida que eu tinha lá na casa
dos meus pais, minha liberdade aumentou substancialmente, mas aumentou também a
responsabilidade e nos primeiros tombos aprendi a controlar e a saber aproveitar essa
nova liberdade. Eu aprendi a conviver com pessoas completamente diferentes de mim,
adquiri uma disciplina para estudar que às vezes eu não acredito, é engraçado ver como
que o dia parece ser muito pequeno para tanta coisa que temos que fazer, é normal agora
eu ficar até a madrugada estudando, pois durante o dia não dá tempo. Ainda preciso
aprender a lidar com a pressão e o estresse que existem nas vésperas das provas e trabalhos
mais importantes, isso me desgasta muito, mas é tudo recompensado ao final do semestre
quando o reconhecimento do meu esforço vem na forma de aprovação. Há muitas coisas
boas também, na universidade, não poderia de forma alguma deixar de citar as pessoas
maravilhosas que conheci aqui e com quem tenho prazer de conviver, amigas como a
Cindia, a Juliana e a Neila que sempre me ajudam a superar as dificuldades, e eu nunca
esquecerei principalmente muitos momentos “intrínsecos” que vivemos. Há o pessoal lá
Universidade Federal de São Carlos
23
do alojamento em que moro, que passou a ser minha casa aqui, onde aprendi a conviver e
passamos muitos bons momentos juntos.
Agora, no segundo ano, conheci e tive a oportunidade de participar do Programa
Conexões de Saberes que, além de ajuda financeira através da bolsa que recebemos, nos
oferece um meio para nos aproximar daquelas pessoas mais desfavorecidas financeiramente, e que por esse motivo não tiveram acesso ou nem sabem da existência de universidades
públicas. A galera do Conexões (os bolsistas) se tornou também como uma família, pois
passamos por muitas coisas parecidas e estamos quase a todo momento juntos
Tudo com o que estou tendo contato aqui na UFSCar está colaborando muito para o
meu crescimento profissional, e este Programa Conexões de Saberes além disso, está me
proporcionando um crescimento pessoal, pois estou fazendo algo prático para aquelas
pessoas que, diferentemente do que aconteceu comigo, não tiveram uma oportunidade de
estudar, de escolher uma profissão, estamos tentando dar essa oportunidade a essas pessoas,
e isso faz-me sentir útil e me encoraja na luta para conseguir uma vida melhor, não só para
mim, mas para minha família também, que é o que eu tenho de mais importante. Foram eles
que me deram a vida e tudo o que tenho e sou até hoje, por isso quero retribuir tudo isso,
fazendo com que a vida deles seja confortável e sossegada, da maneira como eles merecem
por terem trabalhado a vida toda.
Quero também poder ajudar todas as outras pessoas que precisam, pois pretendo me
formar não só para ter um diploma, mas para compartilhar, com outros, tudo o que aprendi
e estudei, buscando assim melhores condições de vida e de saúde.
24
Caminhadas de universitários de origem popular
Realizando sonhos
Anderson Thadeu Nunes*
A culpada de eu existir é minha mãe. Reclamem com ela, o verdadeiro amor da minha
vida. Minha mãe namorava um homem que, com o passar do tempo, aprendi que não era meu
pai, já que pai é quem educa, quem cria, e não quem apenas fecunda. Este namoro terminou
após ele saber da minha futura existência. Pediu para que minha mãe me abortasse, mas ela
não quis. Por isso digo que é minha heroína, o verdadeiro amor da minha vida.
Enquanto crescia, minha mãe trabalhava e não tive luxos, mas não posso dizer que
algo faltou. Não lembro exatamente com que idade, mas logo eu tive que ficar numa creche.
Chamava-se Creche Escola Estância Feliz. Passados três anos e oito meses do meu nascimento, minha mãe deu à luz o meu irmão, filho de outro pai que, infelizmente ou não, só
Deus é quem sabe, faleceu quando meu irmão tinha apenas dois anos de idade. Assim,
minha mãe passou a ser pai e mãe de duas crianças.
Quando eu estava em idade escolar, minha mãe procurou a melhor escola pública
que conhecia. Sempre fez assim. Como não podia pagar para que estudássemos em escolas particulares, fazia questão que estivéssemos nas melhores públicas, mesmo que estas
fossem distantes de nossa casa como sempre aconteceu. Então, da primeira à quarta série,
estudei na Escola Estadual Francisco Feliciano Ferreira da Silva, vulgo Verdinho. Depois, no ano de 1996, ocorreu uma mudança nas divisões de alunos, de acordo com as
séries, e eu passei a estudar na Escola Estadual Coronel Carlos Porto a partir da quinta
série e lá permaneci até terminar o terceiro colegial. Durante todos esses anos, minha mãe
não cobrava que eu trabalhasse, ela esperava que eu o faria para ajudá-la quando terminasse o Ensino Médio. Entretanto, surpreendi minha mãe, negativamente, pois tomara
gosto pelos estudos e queria prestar vestibular.
No momento em que comecei a estudar, ou seja, nos primeiros anos escolares, uma
pessoa influenciou decisivamente minha vida. Seu nome é Alziete, uma antiga amiga da
minha mãe. Acostumei-me a chamá-la de “Vó”, já que via sua neta, que tinha aproximadamente a mesma idade que a minha, referia-se a ela assim, como não poderia ser diferente. Quando eu voltava da escola ia direto para a casa da “Vó”. Almoçava, assistia TV,
estudava, tomava café. Acredito ter sido por causa dela que adquiri o gosto e o interesse
pelo estudo. Todos os dias durante o ano em que estudava a segunda série, ela me perguntava as tabuadas. Aprendi todas neste ano, do dois ao dez, e nunca mais esqueci. Na quarta
série, foi a vez de aprender conjugação verbal. Até hoje me lembro da gramática marrom
com a qual eu gastava horas estudando os verbos que minha “vó” mandava.
* Graduando em Engenharia de Materiais pela UFSCar.
Universidade Federal de São Carlos
25
Quando estava na sétima série, comecei a treinar voleibol no SESI1 da minha cidade,
Jacareí-SP. Tudo começou quando, numa aula de educação física, o hoje meu amigo, que
chamo de irmão, convidou-me para treinar no SESI, pois ele achava que eu jogava bem. Ele
acabara de mudar para aquela escola. Vim a saber, quando comecei efetivamente a treinar
lá, que o técnico de voleibol também dava aulas na escola “Carlos Porto”, em que eu
estudava. Esse professor foi outra pessoa que exerceu uma influência considerável na minha vida. Seu nome é Francisco, mas todos o chamamos de Chico. Com seu jeito de ser e de
pensar e com suas atitudes, influenciou o meu caráter muito fortemente e agradeço muito a
ele por isso. Foi a figura masculina que tive por referência na minha adolescência. Sua
integridade e senso de justiça sempre me serviram de exemplo.
De início, e por muito tempo, minha mãe não gostava da idéia de eu treinar voleibol.
Ela sempre foi superprotetora e tentava nos manter em casa, mas sempre fui muito independente. Infelizmente, para ela, por muito tempo isso foi ruim. Ela detesta ser contrariada. Sou
o filho errado para a mãe certa. Eu sempre fiz o que queria, podia ela fazer ou reclamar o que
quisesse. Graças a Deus eu sou ajuizado. Modesto também...
Durante os dois primeiros anos em que treinei, eu raramente entrava nos jogos. Isso
levou a um fato que me marcou muito. Eu sou uma pessoa bastante tolerante, mas acho que
amigos de verdade se apóiam nas horas difíceis e riem juntos nas outras. Um garoto que era
meu amigo desde a sexta série juntou-se a outro amigo nosso e começaram a dizer: “Erva,
erva, erva,... reserva dos reservas...”. Isso me irritou profundamente. Ou melhor, me magoou.
Resultado: deixei de considerá-los como meus amigos e me aproximei dos que hoje verdadeiramente os são. No outro ano, em 2000, passei a ser titular absoluto. Não era o melhor do
time. Nunca almejei isso, mas, enfim, era titular. E assim está sendo desde então em todos os
times em que jogo. É claro que nem sempre estou nos meus melhores dias e às vezes fico “no
banco”. Assim é o esporte!
Até terminar o ensino médio, jogava vôlei de segunda a segunda. Era só no que
pensava. Via jogos, sozinho ou com meus amigos. Ficava algumas madrugadas assistindo
televisão à espera de grandes jogos, assistia gravações antigas... enfim, vivia voleibol,
respirava voleibol. Chegava em minha casa sempre exausto devido aos bate-bolas. Porém,
hoje lembro desses dias com muita saudade. Ainda bem que aproveitei com intensidade.
Foi o tempo em que me encontrei como ser humano. Foi quando aprendi que não só vitórias
como também as derrotas ensinam. Foi o período mais importante da minha vida. Foi o
melhor! Conheci meus extremos, meus medos, Deus e o respeito por mim.
Na metade de 2002, ano em que terminei o Ensino Médio, um professor substituto nos
falou sobre os vestibulares para ingressar nas universidades públicas, até então desconhecidas por mim. Sempre quis ser formado em um curso superior. Primeiro, queria ser biólogo,
depois, arquiteto, advogado, professor de matemática, estatístico e, finalmente, engenheiro. Mas que tipo de engenheiro? Isso foi difícil decidir até conhecer um pouco sobre a
Engenharia de Materiais.
Não sei se por acaso, mas após ter-me inscrito no vestibular da UNESP e no da USP,
meu amigo me trouxe fichas de inscrições de um curso pré-vestibular popular. Este foi meu
1
Serviço Social da Indústria, instituição de direito privado fundada em 1946 pelo Conselho Nacional da Indústria,
presente em 1.885 municípios no Brasil [informações do site: http://www.sesi.org.br, em 26 dez 2006].
26
Caminhadas de universitários de origem popular
primeiro contato com o Curso Alberto Santos Dumont (CASD2). Fizemos nossas inscrições
e as provas. Porém, só eu passei, infelizmente. Fiquei neste cursinho dois anos. Paralelamente, não consegui convencer minha mãe da importância que era ter um curso superior.
Para ela, até eu entrar na UFSCar no curso de Engenharia de Materiais em 2006, curso
superior era coisa de “gente rica”. Demorou muito para que ela me apoiasse, mas eu fui
teimoso. Mesmo assim, tinha que começar a trabalhar.
No início de março de 2003, surgira a oportunidade de prestar um concurso para
Soldado PM (Polícia Militar) Temporário. Eu passei em todas as provas e assinei um contrato. Recebia dois salários mínimos sem quaisquer descontos e mais um tíquete de alimentação no valor de oitenta reais, mais ou menos. Eu sempre odiei formalidades militares. Rezei
para ser dispensado do exército e acabei virando um militar. Vale explicar que minhas
funções eram exclusivamente administrativas. Não saía às ruas para prender pessoas nem
multar ninguém. Nos dois anos que fiz CASD, trabalhei na PM.
Passado esse tempo, eu já havia ficado “macaco velho” de vestibular. Não agüentava
mais! Minha mãe me pressionava. As pessoas perguntavam e eu tinha que explicar a elas as
dificuldades de passar no vestibular. Precisava tomar uma decisão. Tinha três opções: tentar
mais uma vez conciliar estudo e trabalho; deixar o cursinho, continuar trabalhando e estudar em casa; ou, e foi essa a decisão tomada, deixar o trabalho e continuar a fazer cursinho
enquanto minhas economias resistissem.
O destino me ajudou. Na verdade, Deus me ajudou. Não acredito em destino. Antes do
final do segundo ano de cursinho, os professores, que eram alunos do ITA3, passaram uma
lista para os alunos interessados em participar de uma turma cujo enfoque das aulas eram as
matérias que compunham o vestibular do ITA. Os escolhidos não foram os melhores alunos
de exatas. Eu não era um desses! No meu caso, escolheram-me por eu ser um aluno dedicado. Os professores perceberam, ainda bem! E assim, no início de fevereiro, eu recebi uma
ligação. Perguntaram-me se eu queria ser integrante da turma-ITA do curso pré-vestibular
COC4, com 100% de bolsa e ainda com um excelente material didático. Eu aceitei. Muitos
dos professores nessa nova turma eu já conhecia, afinal, essa turma-ITA começou com um
convênio entre o CASD e o COC. Agora, sem trabalhar e estudando somente, eu tinha tudo
para passar no vestibular.
Entretanto, eu prometera a mim mesmo que não pediria ajuda de ninguém para me
manter estudando. Meu dinheiro acabou e eu tive que procurar um trabalho para continuar
tendo meios de pagar minhas passagens e lanchar. Mas não podia ser como nos dois anos
anteriores. Então, o que fazer? Como aos finais de semana eu não tinha aulas e, geralmente,
2
O CASD Vestibulares (Curso Alberto Santos Dumont) é uma iniciativa dos alunos do Instituto Tecnológico
de Aeronáutica (ITA) que, em parceria com a Prefeitura Municipal de São José dos Campos e outros
parceiros, tem o objetivo de oferecer uma oportunidade de preparação para os exames vestibulares àqueles
que não tem condições financeiras de freqüentar um curso pré-vestibular convencional. Para fazer parte do
CASD, o aluno precisa ser aprovado no processo de seleção, que constitui de uma prova e uma Entrevista
de Renda. Foi fundado na década de 70 e, após alguns períodos de encerramento de atividades, foi reaberto
em 1997. Atende, em 2006, 450 alunos [informações do site http://www.casdvest.org.br, em 26 dez 2006].
3
Instituto Tecnológico de Aeronáutica, órgão de ensino superior do Comando da Aeronáutica, vinculado
ao Ministério da Defesa, criado em 1950, com os cursos de Engenharia Aeronáutica, Eletrônica, MecânicaAstronáutica, Infra-Estrutura Aeronáutica e de Computação [informações do site http://www.ita.br, em 26
dez 2006].
4
Curso pré-vestibular do Sistema COC de Ensino [informações do site http://www.coc.com.br, em 26 dez 2006].
Universidade Federal de São Carlos
27
estudava pouco, procurei um trabalho que me ocupasse apenas nesses dias. Comecei a
trabalhar numa pizzaria que um amigo tinha indicado. Ganhei a simpatia dos donos e dos
companheiros de trabalho. Às vezes, eu tinha que participar de simulados ou mesmo vestibulares nos finais de semana, mas nunca me incomodaram com reclamações. Aquele local
não era um “mar de rosas”, porém não há como negar que foi importante ali ter trabalhado
para hoje estar onde desejei.
Fiz seis vestibulares para o ano de 2006. Do IME5, do ITA, da USP, da UNESP de Rio
Claro, da UFSCar e da UNIFEI6. Passei nos três últimos, mas demorou um pouco para que me
chamassem na UFSCar, que tinha o curso que eu realmente queria fazer e onde eu ainda
tinha esperança de ser aprovado. Fui chamado praticamente na quarta lista. Minha mãe, que
até há pouco tempo insistia que eu desistisse de tudo isso, estava muito orgulhosa de dizer
a todos que seu filho havia passado no vestibular. Como foram emocionantes e carinhosos
todos os momentos que passamos juntos quando ficou evidente que eu estava de partida.
Algo que eu sempre desejei e cobrei, o carinho da minha mãe, agora jorrava fácil. Não que
minha mãe não fosse carinhosa, mas eram tão raros esses momentos que às vezes parecia que
ela tinha prazer em brigar conosco, meu irmão e eu. Mesmo quando fazíamos tudo certo, ela
sempre achava algo para criticar. Tudo passou!
Fui para a UNESP, pois era mais perto da UFSCar. Fiquei duas semanas na cidade de
Rio Claro. Antes de ir, sabia que duas amigas já estavam estudando naquela universidade.
Nessas duas semanas na UNESP fiz muitos amigos, fui a muitas festas e me diverti muito.
Quando vi meu nome na lista da UFSCar, chorei. Liguei para minha mãe quando esperava
pelo ônibus que me levaria para a rodoviária de Rio Claro onde pegaria outro ônibus para
São Carlos. Depois de deixar família, amigos queridos e verdadeiros, meus confortos e
rotina, agora eu ia de uma universidade a outra. Finalmente cheguei à UFSCar; estou fazendo o curso que eu quero; moro num lugar bom, com pessoas honestas; minha família e meus
amigos estão bem.
Hoje tenho a mãe que sempre sonhei, romantizei, idealizei. Minha mãe era perfeita.
Agora ela é divina. Nem tenho palavras para dizer sobre o que ela representa para mim.
Sempre corri atrás de meus sonhos e hoje vejo o quanto acertei nas minhas escolhas. Estou
feliz, claro que eventualmente me chateio, mas só tenho a agradecer a Deus por todas as
bênçãos que Ele dá a mim, seja na forma de amor materno, amor fraterno ou da minha força
de vontade.
5
Instituto Militar de Engenharia, estabelecimento de ensino do Departamento de Ciência e Tecnologia
(DCT) responsável, no âmbito do Exército Brasileiro, pelo ensino superior de Engenharia e pela pesquisa
básica fundado em 1959. O IME ministra cursos de graduação, pós-graduação e extensão universitária
para militares e civis [informações do site http://www.ime.eb.br, em 26 dez 2006].
6
Universidade Federal de Itajubá/MG, fundada em 1913 [informações do site http://www.unifei.edu.br/, em
26 dez 2006].
28
Caminhadas de universitários de origem popular
Um pouco de luta
Augusto Cesar Pedro*
Contar sobre mim: tarefa ao mesmo tempo tão diferente e difícil como gostosa e excitante. Por ser um trabalho envolvendo vários sentimentos bons, que quase sempre me pego
relembrando, e ruins, que não consigo esquecer, ou acho que também não quero esquecer,
a autobiografia envolve um labor indescritível. Talvez seja esse labor, ajudado pela minha
timidez, que faz dessa tarefa algo inexplicavelmente excitante. Então, vamos a ela.
Minha história começa no dia dez de março de 1986, às oito horas da manhã, quando
cheguei ao mundo. Nessa época, meu pai era metalúrgico e minha mãe era dona de casa.
Morávamos em uma casa cedida por minha avó, que ficava perto de duas escolas públicas.
E foi em uma delas que, com seis anos de idade, comecei a cursar o ensino fundamental.
Estudei quase o ensino fundamental inteiro nesta escola. Entretanto havia um grande
problema, que também está presente na grande maioria das escolas públicas: a violência.
Brigas eram espetáculos constantes durante os intervalos e também dentro da própria sala de
aula. E quem acabava sendo prejudicado era o pessoal que queria verdadeiramente estudar.
Dessa época tenho, porém, boas lembranças. Fiz amigos com os quais ainda mantenho
contato, como André e Lucas, com quem passei vários momentos interessantes e diferentes,
principalmente o Lucas. Como quando, incitado pelos outros meninos, quis brigar com ele.
Quando dei o primeiro chute nele e a resposta que tive foi um sorriso, percebi que nada que
eu fizesse o faria brigar comigo. Nesse dia, senti que tinha encontrado um grande amigo. Ou
quando nós três fazíamos cartas de amor para as meninas da escola e mandávamos no nome
dele. Pena que a maioria das cartas não dava resultado.
Nessa escola, tive também professores que marcaram positivamente minha vida escolar como a que ensinava português, Marlene, e também Adriana, que foi minha professora
quando estava na quarta série e, espero, como futuro professor, ser tão sensível e carinhoso
como ela era e tem sido para os seus alunos.
Foi, porém, nessa época que a relação entre minha mãe e meu pai começou a ficar ruim.
As discussões deixaram de ser raras para se tornar cotidianas. E como, de discussões dos
pais, é difícil se manter longe, meus irmãos e eu defendíamos sempre minha mãe. Meu pai,
estranhamente, compreendia-nos. Porém, a situação estava se tornando insustentável.
Essas brigas, aliadas com outros fatores, como o meu falso amadurecimento, fizeram
com que eu me afastasse do meu pai. Comecei a me distanciar dele. Todo aquele amor
esperado de se ter pelo pai, eu achava que não tinha mais pelo meu. Os nossos desentendimentos ganharam uma freqüência terrível e passamos a dialogar cada vez menos.
* Graduando em Letras pela UFSCar.
Universidade Federal de São Carlos
29
Porém, quando estava no segundo ano do colegial, aconteceram fatos que marcaram a
minha vida profundamente e me fizeram mudar drasticamente de conduta. Quando acabei o
ensino fundamental, resolvi prestar uma prova para tentar entrar na Escola Técnica Estadual Profa. Anna de Oliveira Ferraz, conhecida como “Industrial” e considerada uma escola
melhor que as outras do ensino público. Felizmente, consegui passar e então cursei meu
ensino médio nessa escola. E essa escola, principalmente os amigos que fiz, trouxeram
grandes transformações para minha vida
Foi no ano de 2002, quando estava no segundo colegial, que meu pai foi internado no
hospital, pois estava com a saúde debilitada devido à bebida e a o cigarro. Quando fui
visitá-lo, num domingo, o mesmo dia em que fiz crisma, e o vi numa cama de hospital, senti
uma dor tão forte e descobri que todas as palavras e sentimentos que achava que tinha com
relação ao meu pai eram mentira. Percebi então que apesar das coisas erradas que fazia e sua
atitude em relação à minha mãe, eu nuca tinha perdido o amor por ele. Percebi tudo isso,
porém, não consegui dizer a ele. Somente segurava a sua mão e chorava percebendo os
tempos perdidos em discussões que não tinham a menor importância.
Quando meu irmão e eu saímos do quarto, eu queria falar para meu pai o quanto o
amava e o quanto me arrependia pelas nossas brigas. Porém não consegui fazer isso, não
tive a coragem, naquele dia, de assumir que sempre estivera errado. Mas, ao voltar para casa,
ficava sonhando com a próxima visita, no próximo domingo, na qual falaria do meu imenso
amor por ele.
Contudo, essa visita nunca chegou. Dois dias depois, meu pai faleceu. Isso foi um
momento horrível. Eu estava fazendo um curso e minha mãe ligou na escola falando que eu
tinha que ir embora, sem dizer o que era, por medo de algum acidente, pois eu estava de
bicicleta. Na hora eu senti que era algo com meu pai. Quando cheguei em casa, recebi a
notícia. Não acreditava... sei lá, vi minha mãe ligar chorando para uma colega da família
avisando do ocorrido, mas mesmo assim sabia que podia ser mentira ou que tinha como
voltar. Não conseguia pensar em nada.
Cheguei ao velório e foi nesse momento que percebi que o que estava acontecendo
era real. Vi aquelas pessoas me abraçando, o meu vizinho que também tinha perdido seu pai
no ano anterior me consolando, dizendo que sabia o que eu estava sentindo. Chorei. Queria
falar pro meu pai do meu amor, mas não podia, nunca mais iria conversar com ele. Isso doeu
e ainda dói muito em mim.
Esse fato mudou totalmente minha vida. Passei a não discutir mais de bobeira, a não
guardar mais mágoas das pessoas. E aprendi a assumir meus erros e pedir desculpas.
No ano seguinte, recebi um convite de uma amiga do colegial, a Cilene, que fazia
parte de um grupo da igreja, para fazer um retiro espiritual. Aceitei o convite. Foi uma das
melhores coisas que fiz, pois me ajudou a me conhecer de fato. Percebi que estava cercado
de boas pessoas e não tinha descoberto ainda. Aprendi a viver de verdade e a valorizar a
vida e quem a gente gosta.
E foi nessa época também que, graças aos amigos que fiz, como Lucas, Vacão, Zé,
Douglas, Danilo, Thiago, Milen, Joaquim, Bruno, que comecei a preocupar-me com quem
seria no futuro. Uma das medidas para tentar responder essa questão foi começar a fazer um
curso profissionalizante na área de metal-mecânica quando estava no segundo ano. Porém,
percebi que isso não era “minha praia”, mas não abandonei o curso de dois anos de duração
devido a vários motivos, entre os quais, as amizades, como Douglas e Raphael (com quem
30
Caminhadas de universitários de origem popular
aprendi meus primeiros passos de samba) e os professores que tive no curso, entre eles, o
instrutor Ivan, ótimo conselheiro, e um dos professores mais legais que tive.
Quando comecei meu terceiro ano, época de toda a pressão do vestibular, eu não consegui dedicar-me suficientemente aos estudos para prestar os exames, pois estudava pela manhã
na escola e à tarde no meu curso profissionalizante. Com isso, chegava do curso no final de
tarde, não tinha ânimo para estudar mais nada. É, eu era um pouco preguiçoso também.
Resultado foi que no final do ano prestei, mais como experiência, sem estar preparado e, como
era de se esperar, não passei. Ao invés de me desestimular, o fato de não ter passado transformou-se em um desafio, e incentivou-me a estudar para entrar em uma faculdade pública.
Então prestei uma prova para entrar num curso pré-vestibular popular. Passei e comecei a estudar no período da manhã. Lá, conheci um grande amigo, o Rafael, companheiro,
junto com o Paulo César, para as mais loucas e engraçadas situações. Também tive um
professor que me ajudou muito a entender física de um jeito legal. Ele buscava simplificar
ao máximo os cálculos, explicando-os de uma maneira descolada e engraçada.
Contudo, como acontece com grande parte das pessoas de classe economicamente
menos favorecida, tive que começar a trabalhar. O meu primeiro emprego foi de garçom. E
como saía do trabalho já de madrugada, cansado, aliando isto à já citada preguiça, não tive
pique para continuar os estudos e abandonei o cursinho, entretanto não “desencanei” de
entrar na universidade. No final do ano, prestei o vestibular já sabendo que não passaria,
pois novamente não tinha me dedicado o bastante.
E como diz o ditado “há males que vêm para o bem”: ainda nessa mesma época, além
de não ter passado no vestibular, ainda fui mandado embora do serviço. Como tenho costume de sempre tirar uma lição das coisas que acontecem comigo, com a demissão e a frustração do vestibular eu percebi que o que desejava realmente era entrar numa universidade e
resolvi me dedicar realmente para conseguir e, assim, não ter mais desculpas para não
passar no vestibular.
E foi o que fiz. Estudei em outro cursinho popular, esse feito pelos alunos da Unesp,
de Araraquara. Logo no primeiro dia, o professor contou sua trajetória até a universidade
e falou:– Se dedicando já é difícil a concorrência por uma vaga, imagina sem dedicação!
Isso, para variar, me incentivou ainda mais. Comecei a estudar fora do horário de aula, tirar
dúvidas com os professores, ir mais vezes à biblioteca. Estava com o firme propósito de
passar no vestibular.
Então, no final do ano, devido às isenções conseguidas, com a ajuda dos coordenadores do cursinho, e com o auxílio dos meus avós, prestei o vestibular em quatro universidades diferentes: para o curso de História, em três universidades, e Letras, na UFSCar. Fiquei
na lista de espera em três universidades, entre elas a UFSCar, mas sem muita esperança
nesta, pois fiquei muito longe dos primeiros colocados.
Quando veio o resultado, me surpreendi. Tinha passado nas três universidades. Então
veio o melhor momento, momento sonhado todos os dias: decidir em qual universidade
estudar. Eu e minha família decidimos que seria melhor matricular-me na UFSCar pelo fato
de ser uma boa universidade, ser perto da minha cidade e pela dificuldade que minha
família teria para me auxiliar nas despesas caso resolvesse cursar as minhas outras opções.
E essa escolha está sendo, felizmente, muito boa. Estou realmente gostando do curso,
a universidade oferece uma razoável sustentação ao aluno oriundo de camada popular,
como é o meu caso, e também, graças a ela, estou no Programa Conexões de Saberes, que
Universidade Federal de São Carlos
31
está me ajudando a observar com uma outra visão as dificuldades que os alunos de origem
popular têm para chegar à universidade e como essas dificuldades estão sendo tratadas.
E o melhor jeito de acabar minha história é fazer igual aos filmes quando acabam:
descrever as pessoas responsáveis pela minha história de vida e um pouco de suas atuações na
minha vida. E foi essa forma que encontrei para agradecê-los pela suas atuações brilhantes.
A personagem principal é, e não poderia deixar de ser, a minha mãe, Cecília de Oliveira Pedro, a batalhadora Cecília. Batalhadora, pois consegue muito mais do que sustentar
três filhos, sendo pai e mãe. Ela consegue fazer a gente ter esperança e alegria, não deixando
o desânimo chegar até seus filhos e todos que estão ao seu redor. Ela faz com que eu não
tenha medo de nada. Minha mãe é minha coragem. Amiga, é a pessoa com quem falo dos
meus sonhos e pesadelos, das minhas vitórias e as minhas derrotas. Sempre com a palavra
ideal a me falar, seja puxando a orelha, seja me confortando. É por sua causa que tenho
motivos pra sonhar e trabalhar em busca de uma vida melhor.
Aos meus irmãos, agradeço pelo grande apoio, demonstrado em vários momentos,
como por exemplo quando meu irmão me levava pro cursinho e me chamava a atenção
todas as vezes em que eu desanimava, e quando deixa muitas vezes de realizar seus desejos
em favor de ajudar minha mãe nas despesas de casa. Agradeço por tudo que fez e faz por
mim. Agradeço a ele por estar presente sempre que precisava, como quando arrumava confusões e brigas na escola. Agradeço à minha irmã pela amizade, por seu amadurecimento
verdadeiro. Pela sua sinceridade, por ter a paciência para ouvir meus problemas. Meus
irmãos chamam-se Natalia e Saymon.
Agradeço ao meu tio Ademilson, por ser um amigo, daqueles que é pra tudo o que vier.
Com meus avós, José e Dalva, aprendi a viver. Aprendi a não abaixar a cabeça, aprendi a ser
o que sou e ter orgulho disso. Agradeço aos meus avós que me ensinaram a sonhar, a ter a
certeza de ter visto o Papai Noel saindo pela janela do quarto onde meu irmão e eu estávamos dormindo, depois de ter deixado o presente, pela força que sempre deram a mim e meus
irmãos, seja auxiliando meus pais, seja nos educando. Meus avós foram meus pais, ajudando-nos sempre. Agradeço pelos vários momentos que ficaram na minha memória, como os
domingos, os natais e tudo mais.
Agradeço aos meus amigos. Por conseguir me agüentar, pela força que me deram
sempre que precisei. Pelas coisas boas que fiz com eles, pelos conselhos que já recebi e
ainda recebo que fazem a diferença no meu jeito de ser.
Agradeço ao meu pai. Agradeço a ele por todos os momentos. Pelos momentos tristes
que fizeram com que aprendesse que a vida é feita de detalhes e que é preciso fazer desses
momentos os melhores, pois nunca se sabe quando esses momentos acabarão.
Agradeço a Deus. Agradeço pela minha família, pelos meus amigos, pela minha esperança, pela minha fé. Agradeço pelas boas pessoas que Ele tem colocado na minha vida,
pessoas essas que, apesar do pouco tempo de convivência, já sinto que serão muito importantes na minha vida. Agradeço a Deus pela minha vida.
E essa foi um pouco da minha história.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Alçando vôos mais altos
Carlos Messias Ferreira de Jesus*
Uma coisa é saber o caminho, outra é
percorrer o caminho.
Personagem Morpheus no filme Matrix
Tive o privilégio de nascer no mês de novembro, primavera, às 6:20 da manhã. Enquanto o mundo abria os olhos para um novo dia, eu abria os olhos para um novo mundo,
numa estação do ano que é extremamente majestosa, porque nela a natureza se desperta,
enche-se de flores, animais e pássaros, anunciando o verão.
Mombucano
Minha família morava, na época, num pequeno sítio que pertencia aos meus tios e ao
meu pai, que teve de trocá-lo, na ocasião da partilha dos bens da família, por uma casa
simples em Mombuca-SP, período do qual, na verdade, não tenho muitas recordações. Esse
acanhado município dista 30 km ao sul de Piracicaba, no interior do estado de São Paulo, e
atualmente possui cerca de 4000 habitantes vivendo, quase em sua totalidade, em torno da
cultura da cana-de-açúcar, na qual é fortemente fundamentada sua economia.
Peraltices
Ao lado de meus irmãos, minha infância foi tão simples quanto divertida. Era muito
agradável brincarmos juntos e todos nos deliciávamos em observar os caminhões, tratores
e máquinas agrícolas que constantemente interrompiam a vida pacata da cidade, atribuindo-lhe certo ar de dinamismo e grandeza. Onde havia obras, lá estávamos nós, “xereteando”!
Num aspecto “terrorista” de nossa infância, acontecia que de vez em quando jogávamos
bombinha nos cachorros indefesos que se espalhavam pela cidade, os quais gostávamos de
ver assustados com os pequenos estrondos. Além disso, divertia-me com o futebol, ainda
que não jogasse muito bem, e me realizava ao brincar de caminhãozinho no quintal de terra
batida, no qual sempre inventava alguma coisa diferente, inspirado no que via no dia-a-dia:
usinas e toneladas de cana sendo levadas de um lado a outro.
Na escola
Quando minha mãe matriculou-me no pré-primário, não queria ir de jeito nenhum à
escola e tinha sérios intentos de incendiá-la e destruí-la, planos que, após os primeiros dias
* Graduando em Física pela UFSCar.
Universidade Federal de São Carlos
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de aula, para benefício de todos, foram cessando e dando lugar a um grande desejo de
aprender. No início, havia apenas um “tio” ou “tia”, sendo a quinta série a divisora de
águas: diversos professores se apresentam, deixando mais clara a separação entre as disciplinas. Passado o susto decorrente disso, típico entre crianças de apenas 11 anos, desenvolvi um intenso interesse em relação a Ciências, matéria que considero empolgante por ajudar
os alunos a perceberem melhor a realidade que os cerca. Uma segunda ocasião bem interessante na minha vida foi na oitava série, quando me integrei à Comissão de Formatura e
passei a ter várias preocupações novas, tais como realizar rifas, festas e outras atividades
para arrecadar dinheiro para a cerimônia de formatura. Esta época também marcou o início
da minha apreensão com o futuro - O que fazer? Onde trabalhar? Que profissão seguir?
Quase adulto
No Ensino Médio, era um aluno dedicado, preocupava-me em estudar e manter boas
notas, pois tinha consciência de que para passar no vestibular era necessário ter um bom
desempenho na prova. No início, não sabia bem qual curso escolheria, mas fui pesquisando
e amadurecendo minhas idéias. Simultaneamente ao Ensino Médio, meu primeiro emprego
foi como auxiliar de costura, depois do que trabalhei em uma oficina mecânica e numa
empresa onde eu era responsável por empacotar balas e chicletes. Alguns meses desempregado e novamente auxiliar de costura, até que o último emprego antes de ingressar na
universidade foi como Agente de Saúde da Prefeitura, quando trabalhava durante o dia e
fazia curso pré-vestibular à noite. Apesar de não ter tido muito tempo disponível para os
estudos, pude prestar vestibular e receber, depois de algumas semanas, a feliz notícia de que
havia sido aprovado.
Religião
Minha casa fica próxima da que, na época, era a única Igreja Católica da cidade. Após
fazer a Primeira Comunhão, fui Coroinha e, ao auxiliar nas missas, desenvolvi bastante
senso de organização e responsabilidade. Talvez tenha sido ali, também, que abandonei de
vez minha vocação “terrorista” citada anteriormente.
Gostos
Eu sou literalmente o que se pode chamar de onívoro, pois como de tudo, gosto de
legumes, frutas, pão de queijo, leite e carne. Trajo roupas que ofereçam discrição e simplicidade, com o objetivo de apenas mostrar-me de maneira apresentável e sóbria. Gosto ainda
de realizar caminhadas, de observar a natureza – a mata, os animais, as aves, o céu, as
estrelas, a Lua, o Sol – e de fazer leituras edificantes que me levem a refletir sobre a vida.
Todo este contato com estas belas paisagens tem me dado uma ótima percepção do mundo
e de Seu Criador, conduzindo-me, no ambiente em que vivo, a um equilíbrio pessoal,
intelectual e espiritual.
Hoje
Faço graduação em Física e aprecio o fato de a cada dia realizar novas descobertas e
adquirir mais conhecimentos nesse ramo da ciência. Sinto-me feliz por ser estudante e saber
que no futuro poderei tornar-me um profissional qualificado a contribuir para o desenvolvimento social. Nesse sentido, o Programa Conexões de Saberes tem sido muito importante
34
Caminhadas de universitários de origem popular
nos âmbitos pessoal e profissional, ao fornecer-me uma melhor capacidade de compreender
os principais problemas sociais do país relacionados à universidade pública.
A Universidade é um ambiente bem interessante, em que é possível fazer muitas
amizades e conhecer os pontos positivos e negativos das pessoas. Há, ainda, a oportunidade
de aprofundar e intensificar o convívio: no namoro. Foi aqui na UFSCar que conheci uma
menina muito especial, a Priscila, que tem sido minha companheira e ajudou-me, por exemplo, na elaboração deste texto, pelo que tenho muito que lhe agradecer.
Quando se olha para um caminho, pode-se até ter o mapa em mente, considerar difícil
ou fácil a trajetória a ser realizada – isto depende de percepções pessoais. Porém, existe algo
muito mais importante do que apenas conhecer o caminho, independente de seu grau de
dificuldade: trilhá-lo, dar o primeiro passo, o pontapé inicial. Para alçar vôos mais altos e
conquistar as estrelas, é preciso encontrar e compreender os meios corretos de atingir os
objetivos, construir melhores percepções das possibilidades e oportunidades, sem permitir
que circunstâncias ruins atrapalhem os planos e, deste modo, caminhar com coragem e
determinação.
É desta forma que caminho: buscando a Deus, vivendo um dia de cada vez, fazendo o
melhor que posso, enfrentando, com a ajuda d’Ele, as dificuldades. Nasci numa família
pobre (meus pais tinham uma Kombi 73 herdada do meu tio), passei a infância numa pequena localidade entre canaviais do interior paulista, tive que estudar e trabalhar para chegar
até a universidade, o que não foi fácil, mas, como se nota, não foi impossível.
Universidade Federal de São Carlos
35
História de vida
Carlos Ney Martins*
Eu sou Ney, nasci no ano de 1973, em uma pequena cidade da região sudoeste de
Minas Gerais e do Parque Nacional da Serra da Canastra, onde é a nascente do Rio São
Francisco.
Assim que comecei a descobrir o mundo a minha volta, percebi que morávamos em
uma pequena casa pouco acima de um rio (Rio São João) cercada por uma mata fechada, que
tinha árvores enormes (Jequitibás, Jatobás...). Ao redor da casa, tinha também vários pés de
mamão, laranjeiras, bananeiras, abacateiros e mangueiras.
De manhã, eu acordava e corria para um pequeno curral, onde meu pai tirava um
leitinho de umas quatro vacas, eu levava comigo uma caneca com farinha de milho e açúcar
e um pedaço de bolo de fubá. Quando acabava de tomar café, eu sumia no mato com o
Chumbinho (meu cachorrinho vira-lata); meu pai e minha mãe ficavam muito bravos quando eu demorava a aparecer, eles diziam para eu ficar longe do rio porque havia uma cobra
gigante lá, que devorava as crianças, além de uma onça e lagartos gigantes. Bom, eu sossegava alguns dias e depois sumia de novo. Era muito bom espantar os macacos, os pássaros,
os quais eram de vários tamanhos e cores, os tucanos eram os que mais me prendiam a
atenção. Não cheguei a ver nenhuma onça, muito menos lagartos gigantes, mas um dia
estávamos andando pela palhada (roça depois da colheita de milho), eu e o Chumbinho...
de repente ele ficou bravo e não parava de latir, foi quando eu vi uma cobra enorme, era uma
Sucuri: não pensei duas vezes e corri sem olhar pra trás.
Mudamos para a cidade e fui estudar no jardim de infância da Dona Nenê, que ficava
em sua própria casa, uma casa antiga e enorme. Eu estava um pouco atrasado em relação aos
meus coleguinhas. Nos primeiros dias, chorei, fiz “birra”, não quis ficar de jeito nenhum,
achava estranho eu lá no meio de tantas pessoas. Mas isso foi só nos primeiros dias, depois,
fazia “birra” pra não ir embora. Cheguei a dormir uma semana lá. Eu sempre assaltava o
forninho do fogão de lenha, sempre tinha pão, bolo e pão de queijo. A Dona Nenê sempre
me punha de castigo...
Depois, eu fui para a Escola Estadual Melo Viana onde cursei da 1ª à 4ª série. O que
mais me apavorava na escola era o barulho do motorzinho do dentista, que atendia os
alunos. Até que um dia, não teve como escapar, então fui levado pra sala do dentista pelos
professores, mas vi que tratar dos dentes não era tão cruel assim.
Na 5ª série, fui estudar na Escola Estadual São Gabriel onde concluí o ensino fundamental e o médio. Foi no colégio que conheci muitas pessoas, fiz muitos amigos e amigas
* Graduando em Química pela UFSCar.
36
Caminhadas de universitários de origem popular
que me que deram dicas sobre cursos pré-vestibulares e universidades, mas isso ainda era
um mundo muito distante pra mim, não me via em uma universidade, e, se eu estivesse lá,
iria estudar o quê? Bom... mesmo assim, continuei firme nos estudos e trabalhando na
agricultura até terminar o ensino médio.
Em 1994, já pensava em ir para outra cidade em busca de oportunidade de emprego,
uma vez que a agricultura familiar (de subsistência) não ia lá muito bem. Comecei a ir atrás
dos amigos e parentes que moravam em outras cidades. Fui para Franca, não consegui nada.
Fui para Ribeirão Preto-SP, nada. Tentei Passos-MG, Varginha-MG, Uberlândia-MG e nada!
Pensei em desanimar e ficar por lá mesmo. Mas só pensei! Fui para Campinas-SP, morar com
meus tios e primos e, após algumas semanas, consegui emprego em uma usina química em
Paulínia, que fica a 30 km de Campinas. Passados alguns meses, me mudei para lá. Trabalhei por alguns anos naquela usina e, depois, fui para outra indústria. Conquistei uma
estabilidade financeira e voltei a estudar: fiz concurso de bolsas no curso Objetivo de
Campinas e consegui um bom desconto na mensalidade por um ano. Prestei o vestibular da
UNICAMP1, mas não passei. Fiz a prova de seleção para o Curso Técnico em Química da
ETECAP2 e fui aprovado. Lá, estudei até 2004. Concluí o curso e logo após prestei vestibular na UNESP e UFSCar, e fui aprovado em ambas.
Hoje, estudo licenciatura em química, no período noturno, na UFSCar e participo do
Programa Conexões de Saberes, que tem possibilitado a minha permanência na universidade e a integração com a comunidade de origem popular, trazendo mais experiência de vida.
Além disso, a abertura de novos cursos noturnos favorece muitas pessoas que precisam
trabalhar durante o dia, possibilitando a eles o acesso à universidade pública.
1
Universidade Estadual de Campinas-SP. É uma autarquia, autônoma em política educacional, mas subordinada ao governo estadual no que se refere a subsídios para a sua operação. Assim, os recursos financeiros são
obtidos principalmente do Governo do Estado de São Paulo e de instituições nacionais e internacionais de
fomento. O local físico onde se situa a Universidade Estadual de Campinas foi ocupado, em outras épocas por
cafezais e canaviais. O seu campus tem o nome do seu fundador, Zeferino Vaz, que foi quem a sonhou e a viu
nascer, em 5 de outubro de 1966, data de sua instalação oficial. A Unicamp compõe-se de 20 unidades de
ensino e pesquisa que são divididos em 10 Institutos e 10 Faculdades. Nelas são ministrados cursos de nível
superior de graduação e pós-graduação. As instalações da Unicamp se estendem ainda às localidades de
Piracicaba, onde fica a Faculdade de Odontologia (FOP), Limeira, onde está o Centro Superior de educação
Tecnológica (Ceset), responsável por cursos tecnológicos de construção civil, tecnologia sanitária e tecnologia
em informática e Paulínia, onde fica o Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas
(Cpqba). A Unicamp também possui o Colégio Técnico de Limeira (Cotil) e Colégio Técnico de Campinas
(Cotuca). A pós-graduação da Unicamp oferece 63 cursos em diferentes á reas de concentração. [informações
do site http://www.unicamp.br, em 06 jan 2007]
2
Escola Técnica Estadual Conselheiro Antônio Prado, inaugurada em 1964, em Campinas-SP. Passou a
integrar o Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza em 1981 [informações do site
http://www.etecap.somee.com/www/default.asp, em 02 jan 2007]
Universidade Federal de São Carlos
37
Uma caminhada marcada por
desafios e conquistas
Cleide Helena Santos Cardoso*
Nasci em 1978, na cidade de Belém-PA, na região norte dos país, na qual as condições
de vida são influenciadas intensamente por uma desigualdade social, marcada geograficamente. Sou filha de uma família de seis irmãos, em cuja trajetória de conquista estiveram
sempre presentes o incentivo, a dedicação e a persistência de nossos pais.
Apesar desta característica social, éramos muito felizes. Hoje lembro com saudade de
cada uma das brincadeiras que os seis filhos fazíamos. Nossas brincadeiras eram as mais
simples, porem não menos fortes para nos unir. Brincávamos bastante na rua em frente de
casa. Nesta rua brincávamos junto com as outras crianças de cemitério (queimado), cair no
poço (pega-pega), adorávamos subir nas árvores para pegar frutas. Principalmente no colégio de freiras que, insistência nossa, tinham sempre as melhores frutinhas, como goiaba,
ameixa, fruta do conde (graviola) e o açaí.
Neste contexto familiar não é difícil de imaginar como dávamos trabalhos para a
mamãe. Parecia incrível que sempre um dos seis filhos estava de curativos. Por exemplo, até
os doze anos eu já tinha quebrado o queixo, braço, torcido o pé, além de sempre furar o pé
em algum prego que cruzava meu caminho.
Além disso, minha caminhada na vida sempre foi marcada pela convivência e
interdependência com minha família. E ao longo de minha trajetória várias personagens
familiares são de absoluta importância. Duas personagens- heróis mostraram-se essenciais e por que não dizer, vitais.
A primeira foi minha mãe: casada aos 15 anos, vinda de uma família sem histórico
nenhum de conquistas acadêmicas, isto é, abriu mão de seus sonhos pessoais, para ser a
dona de casa que sempre apoiou o acompanhamento escolar de cada filho. Apesar de
não ter tido tal escolaridade – seja por falta de oportunidade ou por falta de empenho
pessoal- soube desde cedo mostrar a importância dos estudos com mão incentivadora.
Para provar isto, depois do sexto filho ainda teve garra e determinação para terminar o
ensino fundamental.
A segunda personagem: meu papai mostrou não menos empenho e força. Este se
estabeleceu no mundo sempre vencendo as adversidades impostas pela vida. Nasceu na
cidade de Breves, à margem do rio Amazonas, no interior rústico do estado do Pará, viuse sem pai ao nascer - pois o mesmo não assumiu sua paternidade. E, aos cincos anos, sua
mãe veio a falecer. Em seguida foi criado até os quatorze anos por uma tia em Belém.
* Graduanda em Engenharia Agronômica pela UFSCar.
38
Caminhadas de universitários de origem popular
A história de conquista pessoal de meu pai coincide com os primeiros passos dados
por seus filhos. Nos meus cincos anos, era comum vê-lo, vindo do trabalho árduo de pedreiro, deslocar-se a uma escola pública de curso noturno (supletivo) em busca de seus sonhos.
No entanto, por razões econômicas, abriu mãos de um sonho de criança: cursar Engenharia Civil em uma universidade pública.
Mais uma vez, é importante ressaltar o contexto social, familiar e econômico - os
quais envolveram minha caminhada. Pois até hoje, sempre que o desânimo persiste em
manter-se – aqueles dois heróis acima citados são trazidos à minha memória.
Assim, sob este contexto geral, teve início, em 1983, a minha trajetória de vida acadêmica. Os primeiros passos do Ensino Fundamental em Belém foram em uma escola de
ensino privado, cuja mensalidade cobrada aos alunos era baixa. Este ensino era fortemente
marcado por um sistema religioso católico, no qual a maioria das professoras eram freiras.
Nesta escola foram longos 10 anos – e nela estudamos todos os seis filhos. Nesta
escola, o ensino mostrou-se bom para os padrões gerais em Belém. No entanto, talvez
pelo caráter acentuadamente religioso, não tenha criado uma base firme e consistente
para o ingresso no ensino médio. Para exemplificar tal contexto, ainda era comum a
existência da chamada “palmatória”, a fim de ensinar a “cruel” tabuada.
Já em 1993, ingressei no ensino médio em uma escola estadual, marcada pelo abandono e descaso físico. Não possuía, por exemplo, uma área conservada para a prática de
esporte. Outro fator viria influenciar negativamente a aprendizagem - eram as freqüentes
greves realizadas pelos professores da rede pública- em busca de suas reinvidicacões profissionais. E, ainda comum, era também a falta de professores em disciplinas essenciais.
Em 1997, passando estes três anos de Ensino Médio, ocorreu o primeiro dos muitos
momentos de decisão relacionados ao ensino. Este primeiro consistia nas persistentes e
freqüentes perguntas- o que faria agora? Como iria fazer para entrar em uma universidade
pública? Trabalhar ou estudar? A partir daí, logo percebi que minha caminhada estudantil
seria mais árdua e naquele momento, mais do que nunca, apareceria o peso do ensino
fundamental e médio deficiente.
Para contextualizar, relato o rumo estudantil tomado pelos outros irmãos. Neste tempo, os outros quatro filhos já tinham terminado o ensino médio e começado a trabalhar. Uns
adiando o sonho de cursar uma universidade, ou seja, “engavetando” o sonho de carreiras
idealizadas na infância.
Neste período, foram novamente essenciais para mim os conselhos de meus pais –
aqui chamados carinhosamente de personagens-heróis desta caminhada. Sob o incentivo
destes, ocorreu a possibilidade de trabalhar em Belém como vendedora e fazer um cursinho
comunitário noturno. Em um período de um ano (1998) intensamente corrido, consegui
entrar na Universidade Federal do Pará.
Inicialmente, ao ingressar em uma universidade pública, parecia que tudo seria um
“mar de rosas”, pois o bicho “vestibular” tinha sido domado. Pois não tardaram a aparecer
os primeiros entraves. E, novas perguntas surgiam: Como eu iria me manter na universidade, como iria ser minha permanência com qualidade mínima?
Passados dois anos na Universidade, novos entraves marcantes surgiriam: a falta intensa de renda, a minha mãe começou um longo período de enfermidade. E, os chamados
“bicos” (trabalhos ocasionais de meu pai) diminuíram intensamente. Sob esta situação, não
fui forte o bastante para manter-me na universidade.
Universidade Federal de São Carlos
39
No ano de 2000, abandonei a universidade e viajei com uns amigos para trabalhar
como vendedora em uma loja de informática – em um shopping no Rio de Janeiro. Com
esforço e disciplina, consegui juntar recursos. E, juntamente com os meus outros irmãos,
organizamos a vida e saúde de nossos pais.
Neste período, a casa em que moravam meus pais fora reformada. No inicio de 2004,
retornei a Belém para começar a planejar meus estudos .E, mais uma vez, a força e o incentivo de minha família foram fundamentais para mim.
Neste ano de 2004, cada um dos seis filhos estava tocando sua vida. Uns casados, com
suas famílias, outros solteiros. No entanto, a maioria tinha “largado” os estudos. Neste caso,
com duas exceções: o primogênito terminou aos 33 anos a faculdade de História e o terceiro, que viera para São Paulo, concluía a graduação em Engenharia Civil - realizando assim
o antigo sonho de meu pai.
Em março de 2004, viajei para São Paulo – morei com uns tios com o firme propósito
de trabalhar e estudar. Trabalhava o dia todo e estudava em cursinho pago a noite. Assim,
consegui entrar na Universidade Federal de São Carlos, fazendo atualmente o curso que
sempre quis – Engenharia Agronômica.
Atualmente, esta conquista está sendo possível graças aos auxílios financeiros fornecidos pela universidade como: alojamento, alimentação e auxílio financeiro. Assim, tenho
conseguido manter-me com dignidade e ainda ajudar meus queridos pais em Belém.
40
Caminhadas de universitários de origem popular
A história de minha vida
Daiane Lanceni*
Tudo teve início com a chegada de meus bisavós paternos e maternos da Itália, dando
assim um novo rumo à história dos Lanzenis, que mais tarde se tornaram Lanceni, por um
erro, não corrigido, no registro de meu avô.
Meus pais, por obra do acaso, se tornaram vizinhos, o que os aproximou. E o que
parecia um namoro de criança, pois eles tinham 16 e 18 anos, acabou sendo confirmado
perante a Igreja e o Estado, embora sem nenhum motivo que os forçasse. Mesmo sem casa,
se baseando somente na cultura antiga e com o empurrão de meus avós que também se
casaram cedo e sem planejamento.
Com economia, meu pai construiu, sozinho, sua casa, pois ele não deixou que sua
mulher trabalhasse. Mesmo com as dificuldades, depois de cinco anos o casal estava esperando o primeiro filho o qual recebeu o nome de Cristiano, desejo de meu pai.
Passados sete anos, minha mãe estava grávida novamente, mas, para surpresa de todos,
viriam ao mundo duas crianças, o Patrick e eu. Nascemos no dia 30 de setembro de 1985, às
17 horas, em São Carlos. Minha mãe conta que quando pequenos demos muito trabalho,
pois como éramos dois, quando um estava dormindo o outro acordava chorando, acordando
conseqüentemente o que dormia. Por conta do trabalho que demos, minha mãe chegava a se
atrapalhar, uma vez, ela até guardou minha sandália na geladeira. Quando pequenos, também aconteceu um fato triste que fez com que minha mãe, mesmo com muitos afazeres,
prestasse mais atenção em nós: ela descobriu que tinha um câncer no nariz, o que a deixou
com muito medo de não poder acompanhar nosso crescimento. Mas, com a graça de Deus e
com ajuda de ervas medicinais, em pouco tempo o câncer foi combatido.
Tive uma infância feliz. Embora não pudesse ter tudo o que queria, eu entendia, pois
sempre que pedíamos algo a meus pais e eles não podiam dar, minha mãe, mesmo tendo pouco
estudo e pouca informação, sempre nos dizia: “Filhos: não posso comprar o que vocês desejam, porque eu não estudei”. E assim, desde que éramos crianças, ela ia nos incentivando a
estudar para entrar na faculdade. Mas quando eu estava na primeira série, não gostava de
estudar, principalmente de fazer as terríveis lições de casa, me mostrava sempre arredia e quase
sempre chorava para efetuar meu dever. Minha mãe conta que ficava triste, pois não queria
que eu fosse uma pessoa sem estudo como ela era e sem uma boa condição financeira. Então
ela disse: “Filha, se você não quer estudar, eu vou ensinar a sua profissão...” e me levou ao
banheiro e pediu que eu o lavasse o vaso sanitário, então, em prantos, exclamei que queria
estudar e a partir daí nunca mais chorei para fazer minhas tarefas escolares.
* Graduanda em Engenharia Agronômica pela UFSCar.
Universidade Federal de São Carlos
41
O meu irmão mais velho foi o primeiro a dar esta satisfação para minha mãe. Com
sacrifício, ele fez curso pré-vestibular, entrou na Universidade Federal de São Carlos e hoje
é formado em Engenharia Química.
Cresci brincando com meus irmãos, por isso joguei até bola, brinquei também com
meus primos na chácara de minha avó. Brincávamos de “casa na árvore”, de “fazendinha”,
sendo que os animais eram feitos de batata, chuchu e laranja. Lá, brincávamos também de
pega-pega e esconde-esconde. Com isso, só brincava na rua quando minha mãe estava
vendo, pois ela alegava que era perigoso.
Adorava quando era dia de festa! Todos os meus tios, tias e primos junto com minha
família reuniam-se na chácara da minha avó. As festas eram sempre animadas e com vários
pratos, e o principal, vários doces, pois cada tia minha trazia um doce diferente, mas o meu
predileto era o brigadeirão. Outra comida que eu adoro é o pinhão; toda vez que é época
minha mãe compra, pois ela sabe que vai me agradar.
Tive uma infância normal, com a realidade da grande maioria da população, morei em
um bairro popular, onde os habitantes eram relativamente unidos. Meu pai teve vários
empregos e na maioria destes teve que passar períodos constantes fora de casa; com isso, a
nossa educação é de mérito de minha mãe, que com amor e carinho sempre nos ensinou
nossos direitos e deveres da melhor forma possível.
Como meu irmão mais velho; eu e o Patrick estudamos e fizemos cursinho, que foi
pago pelo meu pai e a ajuda do Cristiano, que fez questão de retribuir a meus pais o estudo
que lhe foi oferecido. Tive que fazer três desgastantes anos de cursinho, pois havia muita
coisa que não era vista na escola pública onde estudei. Algumas vezes, pensei em desistir,
mas o apoio e a força de minha mãe, meus irmãos e outras pessoas importantes fizeram com
que não desistisse.
Obtive o resultado do meu esforço só no ano de 2006, mas tudo valeu a pena, foi com
grande satisfação que vi o meu nome na lista de aprovados e, naquele dia, percebi o quão
minha família esperava por isto. Entrei na Universidade Federal de São Carlos no campus de
Araras no curso de Engenharia Agronômica. O meu irmão Patrick prestou ENEM1 no ano de
2005, e hoje está no segundo ano de faculdade particular com bolsa integral, pelo ProUni2.
1
Exame Nacional do Ensino Médio, instituído por Portaria Ministerial em 1998. A prova do ENEM visa
avaliar as competências e as habilidades desenvolvidas pelos examinandos ao longo do ensino fundamental e médio, consideradas imprescindíveis à vida acadêmica, ao mundo do trabalho e ao exercício da
cidadania. É realizada anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP. A
participação no ENEM é voluntária, circunscrita aos egressos do ensino médio, independentemente de
quando o concluíram, e aos concluintes da última série do ensino médio, podendo o interessado participar
dos exames quantas vezes considerar de sua conveniência. Os interessados em participar dos exames
pagam uma taxa de inscrição, cujo valor é fixado anualmente pelo INEP, destinada ao custeio dos serviços
pertinentes à elaboração e aplicação das provas, bem como ao processamento dos seus resultados [informações do site http://www.inep.gov.br/basica/enem/legislacao/legislacao.htm, em 02 jan 2007].
2
Programa Universidade para Todos, do Governo Federal. Institucionalizado por lei em 2005, tem como
finalidade a concessão de bolsas de estudos integrais e parciais a estudantes de baixa renda, em cursos de
graduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de educação superior, oferecendo, em contrapartida, isenção de alguns tributos àquelas que aderirem ao Programa. Em 2007, são
oferecidas 108.642 bolsas, divididas pelos estados do país, houve 517.748 inscritos. Segundo informações do site oficial, o ProUni, nos próximos quatro anos, deverá oferecer 400 mil novas bolsas de estudos,
e faz parte das metas do Plano Nacional de Educação, que prevê a presença, até 2010, de pelo menos 30%
da população na faixa etária de 18 a 24 anos na educação superior, hoje restrita a 10,4% [informações do
site http://prouni-inscricao.mec.gov.br/prouni, em 02 jan 2007].
42
Caminhadas de universitários de origem popular
O ingresso na faculdade trouxe várias mudanças na minha vida sendo que a maior delas
foi a experiência de morar fora de casa, pois tive que aprender a conviver com pessoas diferentes na faculdade e principalmente dentro do apartamento onde moro, junto com mais duas
amigas, a Flavia e a Vanessa. Mas, apesar das diferenças, tive sorte de encontrar amigas como
estas e outras como a Larissa e a Thais, no meu curso, que me ajudaram na adaptação .
Por fim, só tenho que agradecer pelas oportunidades que tive e as pessoas que me
incentivaram, e sei também que não é sempre que alguém de origem popular consegue
alcançar um desejo como este, mas uma coisa é certa, quando se tem vontade e alguém para
incentivar, o sucesso é inevitável.
Universidade Federal de São Carlos
43
A vida dá voltas !
Edgar Heliodoro Vendradelli Dias*
Minha vida é como a de milhares de pessoas, é lógico que com alguns detalhes bem
particulares, mas é uma vida simples regada de algo que muitos procuram e que eu acredito
que encontrei: felicidade.
Nasci em São Paulo, no dia 8 de abril de 1982. Desde aquela época, as coisas não eram
fáceis. Não é fácil ser primogênito, meus pais não possuíam condições de se manter bem, e
eu não fui o filho mais planejado do mundo, nem tudo sai do jeito que a gente quer. Mesmo
assim, meus pais se esforçaram demais, procurando fazer com que a vida tivesse sua boa
continuidade. Trabalhavam muito e as contas, essas sempre estavam nos sufocando, pois
morávamos numa cidade de alto custo de vida, mas era ali que o emprego estava, não havia
outro jeito. Meus pais sempre foram muito honrados e apesar da dificuldade, nunca apelaram pra outras formas de se manterem, isso me deixa muito orgulhoso.
Quando completei três anos de vida, eles tomaram uma decisão: mudar-se para a
cidade de Tatuí, interior de São Paulo. Era a primeira vez que eles iam morar fora da capital
paulista. Fomos morar no sítio dos padrinhos de minha mãe, mas essa ligação não significava nada, pois éramos tratados como empregados e não foram poucas as vezes que passamos
por humilhações. Mas superamos. Mesmo eu sendo pequeno naquela época, essa é uma fase
que não sai de minha cabeça – traumas são assim mesmo. Moramos lá uns dois anos, foi
quando meu pai melhorou de serviço e assim fomos morar na zona urbana, não era nem de
perto o lugar ideal, mas, enfim éramos uma família e tínhamos um teto só nosso.
Quando eu tinha quatro anos, meus pais colocaram a máquina pra funcionar de novo,
era minha irmã que nascia! A vida, naquele momento, pelo menos financeiramente, melhorava, meu pai entrava em uma empresa que seria uma parte muito importante em sua vida.
Os anos iam passando e eu crescendo, começava a fase de ir à escola, uma das melhores
fases de minha vida. Comecei a estudar, era um ótimo aluno: gostava demais de estudar e
era considerado o melhor aluno de minha classe, um orgulho para meus pais, que desde essa
época já “apostavam suas fichas” em mim. Mais uma vez a máquina do amor estava em
funcionamento, nasce meu irmão, a família se completava, estava fechado o quinteto.
Passam-se os anos e assim vai embora a infância e a vida já estava bem melhor, meu
pai havia se firmado em sua empresa e estava começando a ser bem realizado.
Em 1994, ano em que o Brasil se tornava tetra-campeão do mundo, meu pai é transferido de cidade e a família resolve o acompanhar. Fomos morar na Praia Grande, litoral de
* Graduando em Matemática pela UFSCar.
44
Caminhadas de universitários de origem popular
São Paulo; começava uma nova fase em minha vida, pois eram vários anos na mesma cidade
e muitos amigos feitos que ficavam pra trás. Realmente essa fase não foi nada fácil, pois
minha adaptação foi complicada demais, a cidade era muito diferente do que eu já havia
conhecido e as pessoas também. Não vou negar que essa fase é uma das que eu mais guardo
rancor, pois sofri demais, com todo o preconceito que rolava por eu ser do interior, mas sabia
que tinha que agüentar: meu pai dependia desse emprego e não seria eu quem iria prejudicálo. Com tanta força de vontade de minha parte, as coisas começaram a melhorar, as amizades
começaram a acontecer e tudo foi melhorando... fiz vários amigos, meus irmãos também
começaram a se animar com o lugar, tudo melhorava, até meu rendimento escolar, que não
estava tão bom, voltou a ficar ótimo, voltei a ser o melhor aluno de minha turma.
Essa fase se torna a primeira vez na qual mostro meu poder de lutar nos momentos
mais complicados, supero os problemas e consigo ganhar meu espaço, essa sim uma fase
boa pra se guardar.
Em 1997, meu pai novamente é transferido, voltamos a Tatuí. Ali conhecia muita
gente, me sentia em casa, era a grande volta. Mas não foi bem assim. Três anos longe dessa
cidade fizeram com que muitos de meus amigos se desligassem de mim, e a volta torna-se
complicada, foi estranho, os contatos não eram mais os mesmos e todos em casa percebemos
isso, mas quem mais se complicou com isso fui eu, pois sentia muita dificuldade em me
adaptar. Entrei num início de depressão, agravada por uma síndrome, a síndrome do Pânico,
sentia medo de morrer a todo instante e isso me deixou num estado muito ruim, meus pais
tiveram que me ajudar muito e foi graças a essa força que superei essa síndrome, mais uma
vez superava um grave problema, começava a me sentir um vencedor, foi muito bom, pois
via que as dificuldades existiam, mas me sentia forte pra superar todas elas.
Nessa fase, comecei a relaxar um pouco nos estudos, estava no alto da adolescência e
não conseguia conter minhas vontades, queria sair e curtir a vida e não consegui conciliar
isso tudo com os estudos, foi uma das fases que mais aprontei na escola, era muito arteiro,
vivia sendo suspenso e tomando advertências. Lógico que minha mãe não descobria nada,
se bem que lendo esse capítulo, com certeza ela vai tomar conhecimento...
Chega 1999 e com ele o fim meu Ensino Médio, fase que vou guardar pra sempre na
memória, pois foi a mais linda de minha vida, curti todos os momentos e não posso me
queixar de nada, pelo menos do lado pessoal. Mas no familiar, as coisas já não iam bem. Me
tornei o tipo de adolescente com idéia própria e muitas vezes as mesmas não batiam com as
do meu pai, me tornando uma espécie de rebelde em casa, me sentia um pouco deslocado,
pois não curtia fazer o que minha família gostava de fazer, incomodando a ambos os lados.
Essa divergência ficou bem clara, quando, no final de 1999, veio a noticia, como em outras
vezes, fui obrigado a me mudar pra Bebedouro-SP, uma cidade de que não gostava desde a
primeira vez que a vi e onde não queria morar de forma alguma, mas minha família não
pensou assim e não foi aceita minha vontade, tive que mudar e mais uma vez abandonar
todos os meus amigos e ainda por cima, não havia sido aprovado na UNESP de Bauru e
adiava um sonho de entrar numa universidade pública.
Começa o ano 2000, e eu, mais uma vez, tinha que começar do zero, entrava na fase
adulta e aí veio a pressão de cursar uma faculdade. Como a Unesp havia dado errado, tive
que entrar numa universidade particular, não quis tentar cursinho. Entrei no curso de matemática, senti que estava no curso certo, mas não na universidade certa, não via bons prognósticos para aquele curso e vi que estaria apenas jogando dinheiro fora, não estava valen-
Universidade Federal de São Carlos
45
do a pena. Também começava a trabalhar, o que me complicava ainda mais, pois meus
horários não ajudavam. Decisão tomada, tranquei o curso e também causei mais um atrito
com minha família, meu pai detestou saber disso e brigou demais comigo, não entendia que
estava apenas procurando algo melhor, queria entrar em um curso pré-vestibular e realizar
o sonho da universidade pública. Mas ele achava que eu deveria me formar em qualquer
lugar, não entendia a diferença.
No final deste mesmo ano, ocorre algo que vai mudar e muito nossa vida, meu pai é
demitido da empresa, após muitos anos de dedicação, isso o deixa muito mal, mas por outro
lado, volta a nos unir. Tentei fazer jus à minha idade e segurei a barra, ajudei meu pai, dei força
a ele, isso o fez erguer a cabeça e correr atrás de uma vida diferente. Fica decidido então que
minha família irá abrir um comércio; sendo assim, escolhemos o ramo, abrimos uma mercearia, muito modesta, mas que prometia se tornar grande, tínhamos muita vontade.
Iniciamos a nossa empreitada, no início tudo é muito complicado, faltava um bom
capital de giro, mas tentávamos levar assim mesmo, eu continuava a trabalhar no mesmo
local, fazia jornada dupla, era puxado, mas estava com uma idade na qual a gente tem muita
vontade, parece que nada cansa, e fui levando, mas as dificuldades nos levaram novamente
a brigar, a relação com meu pai não estava boa, e ele não entendia que apenas estava ali pra
ajudar a manter a casa, mas o orgulho dele não deixava que ele visse dessa forma, isso
dificultou muito, não consegui voltar a estudar e adiava ainda mais meu sonho. Pelo menos
nessa fase, mudei um pouco na vida pessoal, comecei a namorar, era a primeira namorada
séria mesmo, e foi bem legal, pelo menos até começarem as crises, durou seis meses, mas
minha falta de tempo, em virtude do trabalho e o ciúmes da parte dela, fizeram tudo afundar.
O tempo foi passando e as coisas melhoravam devagar, nosso comércio estava crescendo e já era estudada uma ampliação, e assim foi, começamos a pensar em transformar
aquele espaço em uma panificadora, mas para isso era necessário maquinário e alguém
especializado. Quanto às máquinas, fiz um empréstimo e conseguimos comprar, mas ninguém em casa sabia trabalhar com panificação, foi assim que me tornei padeiro e confeiteiro
e através de um curso oferecido pela prefeitura de minha cidade, comecei a exercer esse
cargo, vários foram os quilos de farinha que perdi na tentativa de acertar, mas não desisti, e
assim uma hora a gente alcança, consegui êxito, começava uma nova fase e super inusitada.
Por uma obra do destino, meus pais adoeceram nesta mesma época, deixando o trabalho por um tempo e eu ficava numa situação complicada, pois tinha que levar o comércio
sozinho. E assim foi, mesmo tendo que pagar uma parcela muito grande do maquinário,
consegui controlar as contas, mas fiquei várias noites trabalhando e dormindo no chão, pois
não conseguia ir pra casa, não dava tempo. Isso me fez valorizar demais a liberdade, pois a
padaria tornava-se uma prisão de porta aberta, ali ficava o dia inteiro, não tinha mais vida
social, mas era o sustento de minha família que estava em jogo. Aos poucos, meus pais
foram se recuperando e eu voltava a descansar um pouco; mesmo assim, havia muito trabalho, cuidava de toda produção, não tinha nenhum dia de folga, mas me sentia realizado,
pois era reconhecido na minha cidade por meu trabalho.
No começo de 2003, recebi uma proposta de ir morar nos EUA, ia morar com uma
amiga e tentar a vida trabalhando na construção civil por lá, era a oportunidade que poderia
mudar a vida de minha família, mas isso nunca foi meu sonho, gostava demais de meu país
e queria fazer minha vida aqui, mesmo assim topei, comecei a correr atrás de toda a documentação, e acertei a viagem, tinha apenas mais um mês de Brasil.
46
Caminhadas de universitários de origem popular
Como uma obra do destino, conheci Adriana, uma garota da minha cidade, por quem
me apaixonei, foi muito novo esse sentimento, algo que nunca havia sentido, isso me
motivou a continuar a vida aqui no Brasil e assim desisti de tudo, algo que causaria um
imenso transtorno em casa, pois meus pais viam essa chance como sendo a chance de minha
vida. Mas eu não via dessa forma, preferia ser reconhecido aqui no meu país do que ser mais
um ninguém na multidão e sofrer todo aquele preconceito.
Os meses seguintes foram estranhos, pois com minha família eu estava em pé de
guerra, mas com minha namorada, eu estava no paraíso, nos dávamos muito bem e o namoro
fluía muito bem, ela começou a trabalhar comigo na padaria, pois a antiga funcionária
havia saído e como meus irmãos não ajudavam, resolvi colocar lá uma pessoa de minha
confiança, mesmo contra a vontade de meu pai.
A minha situação não era boa, meu pai fazia de tudo pra atrapalhar meu namoro, ele
não gostava de Adriana, sem mesmo conhece-la. Ficou insuportável a situação, até que
tomamos uma decisão, íamos nos casar, pra que pudéssemos ter nossa vida em paz, e assim
foi, ficamos noivos e começamos a guardar dinheiro e a fazer nossa vida a dois, fui morar
sozinho e no final de 2003 já não suportando mais a relação com meu pai na padaria, resolvi
comprar a parte dele no comércio e fui tocar minha vida sozinho. Não foi fácil, pois pagava
mensalmente a meu pai, ele por sua vez, estava trabalhando em outro lugar, mesmo assim
não abria mão de suas parcelas e assim foi, com muita batalha, vencemos, conseguimos
pagar as contas e nos firmamos de vez.
Estava tudo muito bom, mas sempre surge imprevistos, nessa caminhada, perdi um
grande amigo, vítima de um aneurisma cerebral, uma pessoa que admirava demais, foi
muito duro, perdia uma pessoa e sentia uma dor que nunca havia sentido.
Logo depois, meu pai resolveu voltar à padaria, nós tínhamos um acordo que ele
descumpria... era um acordo verbal, ele não entendeu assim e voltou, retirando o comando
de minhas mãos e me fazendo voltar ao zero novamente. Para piorar, brigas com a Adriana,
fizeram com que terminássemos nosso noivado e assim me manter em Bebedouro ficava
sem sentido pra mim. Chegava a hora de mudar de verdade e desta vez para meu benefício,
fui morar na Praia Grande-SP com um grande amigo de infância, era Helon, considerado um
irmão, ele e seu pai me ajudaram, me deram uma força com moradia e um emprego no
escritório de advocacia deles, começava tudo de novo.
Desta vez, tudo era diferente, tinha mudado. Sem minha família, eu estava em busca de
um velho sonho, queria muito passar na universidade pública, e assim foi. Passei a ser
autodidata, trabalhava durante o dia e estudava em casa à noite e assim foram passando os
meses e eu tendo dificuldades, pois estava havia quatro anos sem estudar, o que não diminuía meu ânimo, tinha um sonho e fui batalhar para realizar.
Estava tudo indo bem, até descobrir que minha mãe estava com problemas em Bebedouro, não tive escolha, era a saúde dela em jogo, abandonei tudo e voltei, e sabia que tinha
que voltar a trabalhar, mas isso não ia ocorrer com meu pai, não havia clima, por isso, peguei
umas aulas em um colégio, dava aulas de xadrez e isso me ajudava a pagar um curso prévestibular do tipo semi-extensivo.
Não foi fácil, pois meus pais estavam em processo de separação e como meu relacionamento com meu pai não estava bom, ele fazia de tudo pra descontar isso na pessoa mais
importante de minha vida: minha mãe. Isso acabou me fazendo sofrer muito e não vou negar
que pensei novamente em abandonar o sonho de universidade pública, mas minha mãe foi
Universidade Federal de São Carlos
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firme mais uma vez, me ajudou muito, me deu toda a força e foi testemunha de todo o meu
sofrimento e batalha: eram horas de estudo e trabalho, e ela sempre me motivava a estudar
mais. Graças a ela foi possível alcançar tudo o que alcancei, não tenho palavras pra descrever tamanha força, até mesmo pelas lágrimas já tomarem conta de mim, e só tenho a agradecer a essa mulher batalhadora e incentivadora. Obrigado mesmo mãe, te amo.
Após seis meses de estudo, passei no vestibular da UNESP de Bauru e na UFSCar, era
um sonho que se realizava, e devia tudo isso à minha mãe, que me ensinou, e continua a me
ensinar, a batalhar pelo que quero e tenho certeza que é por isso que em apenas dois anos na
universidade eu já tenha conquistado tantas coisas boas.
Acho que agora vocês podem entender porque sou um cara tão feliz, como citei no
início.
O que gostaria de deixar claro nesse capítulo é que não considero minha história
triste, mas sim, deixar bem claro que qualquer que seja o sonho, batalhe que você pode
conseguir e nunca desista na primeira derrota, você nunca irá se arrepender de batalhar, mas
com certeza vai se arrepender de ter desistido.
Quero dedicar esse capítulo a todos os meus amigos, mas são todos os muito amigos
mesmo. Especialmente à professora Marina, pelos conselhos e cuidados médicos, à minha
mãe a quem tanto amo e que tanto me ajudou e em especial pra Dani (Lindinha) com quem
estou construindo uma história muito legal, que eu espero que dure muito!!!!!!!
48
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha história
Juliana Aparecida Ribeiro*
O dia 5 de novembro de 1985, foi marcado por muita festa, ao menos para José Gonçalves
Ribeiro e Genilda Batista Ribeiro; eu nascia em São Carlos, cidade do interior de São Paulo.
Pouco tempo depois, eu já estaria enfrentando minha primeira aventura: é que em menos de
um ano, meu pai decidiu que o melhor para a família seria voltar para Pernambuco, de onde
tinham vindo havia cerca de cinco anos.
O governo Sarney se deparou com um Brasil pós-ditadura, que ascendia economicamente, mas sofria com inflações. Foi implantada uma nova moeda, que fez com que o dinheiro
nos bancos rendesse com juros consideráveis. Meu pai, então, decidiu ir embora para
Pernambuco, pois lá o custo de vida era menor. Por motivos climáticos, eu não me adaptei à
nova região e fomos obrigados a voltar para São Carlos, de onde não saí desde então.
Ao voltarmos, a economia do Brasil estava em crise, e nós não tínhamos muito dinheiro para recomeçar, e dentro de nossa família fizemos cortes de gastos. Minha mãe até fala
que para que a construção da casa do meu avô, lugar que prevalece na minha memória como
lugar da minha infância, foi preciso comer muita batata, pois meu pai comprava um grande
saco de batata e nós passávamos o mês comendo esse mesmo alimento como mistura.
Quanto ao meu avô, seu Manoel Gonçalves, me contava suas travessuras de menino,
o orgulho que sentia de seu falecido pai, que fez papel de pai e mãe porque esta os havia
abandonado. Tudo bem que, com o passar do tempo, essas histórias foram mudando, e hoje,
aos seus 92 anos, ele nos dá muita alegria com seus comentários e às vezes nos deixa
preocupados e um pouco tristes com a fragilidade da sua memória. Sempre foi um homem
muito trabalhador; lembro que chegava todos os dias no caminhão dos bóias-frias com sua
marmitinha e ia ver como minha avó que, desde que eu me recordo, não tinha muita saúde,
havia passado o dia. Meu avô teve que se aposentar para ajudar minha mãe a cuidar da
minha avó, Dona Djanira, pessoa que eu respeitava, mas com cujas atitudes eu não concordava, por exemplo como fazia minha mãe sofrer, desfazendo das comidas, do serviço da
casa; mas minha mãe disse que quando minha avó “tinha saúde” ela era uma pessoa muito
boa e que possivelmente tenha ficado daquele jeito por se ver sobre uma cadeira de rodas
após seis derrames. Ela se via sem possibilidade de cuidar da casa e trabalhar como sempre
gostou. Em novembro de 1995, onze anos depois de seu primeiro derrame, três destes na
cadeira de rodas e na cama, faleceu. Lembro-me perfeitamente que na semana de meu
aniversário ela já estava na UTI1 .
* Graduanda em Pedagogia pela UFSCar.
1
UTI - Unidade de Tratamento Intensivo
Universidade Federal de São Carlos
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Minha infância foi um período marcado por muitas brincadeiras criativas, brigas com
outras crianças, principalmente a Cida e o Jesus, pais que, embora não me dessem ovos de
chocolate na páscoa, ou fizessem promessas de presentes de Natal por um bom comportamento durante o ano, se esforçaram para viver em um lugar diferente para o bem dos seus
filhos e me ensinaram a dar muito valor a tudo que eles conseguiam conquistar por mim e
meus irmãos. Eles nos diziam para estudar e superá-los. Meus irmãos – Gilson, José e
Gildete – apesar de me acharem a “chatinha” por ser a caçula, sempre cuidaram e ainda
cuidam muito de mim.
Ingressei na vida escolar aos 5 anos e não parei de estudar desde então, sempre em
escolas públicas que, apesar do grande discurso sobre a crise do ensino brasileiro,
possuíam excelentes professores. No Ensino Fundamental, estudei na Escola Municipal de Ensino Básico Carmine Botta, inaugurada um ano antes do meu ingresso, e que
talvez por este e outros motivos políticos teve grande investimento e me permitiu oito
anos de educação de qualidade. Lá, fiz amizades que permanecem até hoje; entre elas,
não há como não destacar a Aline Patrícia, que era a CDF da sala, sempre me ajudava na
hora de estudar, passava cola pra sala inteira só pra não ver ninguém de recuperação e
mesmo assim, quando isso ocorria, dava um jeito de ajudar qualquer um da sala a
recuperar a nota. Hoje, é minha “irmãzinha” e me mostra sempre o lado bom de tudo,
batalha e estuda muito e, apesar de morarmos no mesmo bairro, o tempo tem sido nosso
inimigo e há algum tempo já não nos falamos. Mas ela é a prova de que os amigos
verdadeiros são como o sol, mesmo não aparecendo todos os dias, nós nunca esquecemos que eles existem.
Fiz o primeiro ano do Ensino Médio na Escola Estadual Profa. Maria Ramos, que não
é muito bem vista na cidade, porque as pessoas, sem conhecer a realidade dessa escola,
responsabilizam seus alunos por todos os problemas que aquele setor da cidade possa
apresentar. No entanto, posso dizer que vi naquela escola jovens que estão cansados de ser
“pisados” e decidiram começar a lutar por seus direitos e vontades. Mesmo tendo aprendido
muito naquela escola, no segundo ano do Ensino Médio, decidi ingressar no Magistério no
CEFAM2 Deputado Miguel Petrilli, onde estudei e conclui o curso em três anos. No último
ano de magistério, em 2004, minha vida era bem agitada, estudava pela manhã, fazia estágio à tarde e freqüentava o curso pré-vestibular à noite.
Dentro desse tempo, conheci uma pessoa muito especial, um grande amigo que me
mostrou que o lado bom de estar vivo é dividir a vida com alguém. Mesmo que hoje ele não
esteja tão presente em minha vida e nossos contatos estejam pouco “antenados”, minhas
atitudes têm muito do que minha vivência com ele me ensinou e muito do que ele significou pra mim. Ele é o Flávio Roberto Redondo Junior.
Acabei percebendo que, se havia “caído” no Magistério por conta de uma bolsa que
recebíamos, no valor de um salário mínimo, não foi por acaso que continuei. Vi muitas
pessoas desistirem, e poderia ter feito o mesmo, mas os estágios e projetos que realizamos
em bairros populares fizeram com que eu visse o verdadeiro valor de ser educador, ou de
poder trabalhar em prol de crianças, e me davam a satisfação que a bolsa sozinha não me
daria, foi isso que me levou a prestar vestibular para área da educação.
1
Centros Específicos de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério.
50
Caminhadas de universitários de origem popular
Além da experiência que adquiri no Magistério, ganhei também três amigos que se
tornaram parte da minha vida de um modo muito intenso, gostoso e saudável: Erlon (Ócrinho),
Osvaldo (ou Juninho) e Kathelyn (mais conhecida por Ketão). Esses três me fizeram rir em
três anos o que eu não ri durante dezessete anos. Nossa amizade é verdadeira, sempre
falamos o que pensamos um do outro, criticamos e elogiamos sempre pensando em ajudar,
temos nossa intimidade, mas sabemos nos respeitar. Marcamos um encontro com a turma
que se formou em 2004 para o dia 1º de maio de 2010, acho que só nós três lembraremos.
Infelizmente não é possível falar em um espaço tão curto sobre todas as histórias que
passamos juntos.
Em 2004, prestei vestibular, mas, por fazer cursinho popular e por ter tido poucas
matérias exatas e biológicas no Magistério, que visava uma outra formação, acreditava que
não passaria naquele ano, mas que valeria a pena prestar os vestibulares para os quais eu
conseguisse isenção, o que ocorreu na UFSCar, por ser aluna do cursinho desta universidade, onde prestei Letras; na Unicamp, onde também prestei Letras e na Unesp, onde prestei
Pedagogia.
O terceiro dia do vestibular da Unesp foi o mesmo da minha formatura do Magistério.
Peguei carona no ônibus de um cursinho de São Carlos e, naquele dia, quase não conseguimos sair de Araraquara: chovia bastante e, por ser o dia da escrita da redação, a maioria das
pessoas ficaram até o último momento na sala de prova. Havia engarrafamento por causa da
chuva e até o ônibus passar nas escolas para pegar os alunos, saímos de Araraquara-SP com
mais de 40 minutos de atraso.
Ao chegar em São Carlos, já eram 19:30, e eu precisava estar no teatro onde se realizou
a colação também às 19:30, pois às 20 h estava marcado para começar a cerimônia. Cheguei
em casa às 20 h, tomei banho e me arrumei chorando, arranquei literalmente meus cabelos
de tanto nervoso, minha mãe, ao ver a cena, só conseguia ficar triste com a minha atitude,
xinguei alguns meninos que estavam na rua e caçoaram ao me verem entrando no carro de
beca. Sem maquiagem e chorando muito, cheguei na formatura atrasada, mas deu tudo certo
e percebi que “quando não há remédio, remediado está” realmente, então, não adianta se
preocupar, no meu caso, algo que eu fazia muito, me torturar tanto com algo que de certa
forma não é minha culpa.
Quando saíram os resultados da UFSCar e da UNICAMP, nas quais não passei, já
estava prestando provas para obtenção de desconto em cursinhos que eu julgava mais fortes
para o próximo ano. No mesmo dia em que ia fechar matrícula em um cursinho, vi meu nome
na lista de espera da UNESP – Araraquara. Como não tinha computador, vi a divulgação na
Biblioteca Municipal, e me lembro de ter saído dando risada como uma louca, descendo a
Avenida São Carlos para dar a notícia pra minha irmã, que então trabalhava numa loja no
centro da cidade.
Na UNESP, estudei durante o ano de 2005 e, por motivos de gastos com transporte, no
início de 2006 eu me transferi para a UFSCar, que sempre foi meu “sonho de consumo”, até
eu conhecer a UNESP, onde deixei muitos amigos. Cheguei a me arrepender num primeiro
momento da minha transferência.
Aqui, eu posso dizer que só me encontrei de verdade quando passei a fazer parte do
Programa Conexões de Saberes, e em oportunidades que tive, já disse isso a alguns dos
membros desse grupo. Tive nesse programa e sobretudo na atividade Caminhadas, a oportunidade de rever minha história, e a tentativa de tentar aceitar a visão do outro sobre essa
Universidade Federal de São Carlos
51
minha história. E percebi que sobretudo meus familiares dão a mim características e força de
vontade que eu mesma não percebia possuir. Ao mesmo tempo, eles sabem que essa minha
fraqueza de só ver o meu lado fraco me torna algumas vezes uma pessoa pouco otimista que
acaba agindo de modo pouco racional. Percebi que coisas que muitas vezes parecem bobas,
como brincadeiras e tipos de comida, guardam muito do que nós somos, da forma como nos
socializamos e valoramos as coisas.
Tenho na minha família, sobretudo em meus pais, a coragem de que preciso para
enfrentar problemas, mesmo que sejam complicados, para continuar e tentar mostrar que
eles estão errados quando dizem que eu devo estudar para superá-los, pois, se o estudo me
der algo tão bom quanto almejam, talvez, no máximo, eu fique parecida com eles.
52
Caminhadas de universitários de origem popular
Memorial
Lidiane Maria Maciel*
Na chuvosa madrugada de 28 de fevereiro de 1985 que anunciava as águas de março
que fechariam o verão daquele ano, nasce, no Sítio de São Pedro, na cidade de São João do
Ivaí/PR, um bebê um tanto quanto calmo e sereno, o que não significa também que não seria
briguento quando adquirisse alguns anos de idade. E que, ano após ano, brigaria não só
com o irmão; pois aquela recém formada família já tivera sido abençoada com um outro
bebê havia exatamente um ano e meio antes; mas brigaria com várias circunstâncias da
vida. E esse bebê que teve uma infância atribulada; pois o pai, como vários outros pais, era
adepto a uma “branquinha”; cresceu, e hoje, com 21 anos, pode relembrar e considerar que
tem uma verdadeira história de vida. Esta pessoa que aqui escreve sou eu, que atendo pelo
nome de Lidiane Maria Maciel. Sim, Maria, como tantas outras, nome o qual para minha
querida mãe denota perseverança e fé.
Vim ao mundo. E o que isso implica? Penso que talvez meramente mais uma no meio da
multidão, mas marcada pela insatisfação do que observava ao redor, a qual fez com que não
me conformasse com o lugar que socialmente talvez me fosse determinado. E que Lugar é
este? Para as classes menos abastadas de onde venho, é reservado o lugar das escassas oportunidades, principalmente aquelas relacionadas com o mercado de trabalho. Observo que, hoje,
a maioria das pessoas se identifica pela função que exerce neste tortuoso mercado.
O exercício de uma profissão acaba formando boa parte da identidade do indivíduo e,
para as classes menos abastadas, restam as profissões de menor status social que, “volta e
meia”, são desrespeitas pelos que se encontram em posições ditas melhores caracterizando,
assim, a permanência e não ruptura da situação histórica da desigualdade em nossa sociedade. Geralmente, as profissões são marcadas pelo estigma da educação formal, por isso, vê-se
a importância das instituições de ensino na sociedade em que vivemos.
Quase sempre passar por estas instituições exige um mínimo de poder aquisitivo,
passar pelas melhores exige um poder ainda maior e, ao considerar que vivemos em uma
sociedade desigual, somente alguns conseguem ter êxito no que se refere ao ensino formal.
Talvez eu, por ser um erro no percurso, possa considerar que tive algum êxito. Sucesso o
qual fora cercado por contradições. Minha primeira escola foi o recentemente privatizado
Cemitério Jardim da Paz de uma região periférica de São Carlos-SP. Em uma daquelas salas
de velório adaptadas, aprendi a gostar do português, da ciência, da educação artística.
Mas, aprendi também a odiar a matemática, afinal, naquele lugar existia uma professora que não se contentava meramente com a violência simbólica que exercia sobre nós e às
vezes partia para a violência física. Recordo-me de ter levado vários tapas na cabeça por
não saber somar os feijões que minha mãe carinhosamente colocava no meu estojo; aquela
“amável” professora só sabia nos subtrair ou, como nós, crianças, dizíamos, “diminuir”.
* Graduanda em Ciências Sociais pela UFSCar.
Universidade Federal de São Carlos
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Quando dizem que a escola é uma instituição falida, insisto em não concordar, pois, mesmo
com todas as desilusões que tive no ensino formal, ainda acredito na sua importância.
Minha família, logo que nasci, mudou-se para a “Terra das oportunidades”, ou para a
querida “Paulicéia desvairada” de Mário de Andrade, ou simplesmente “São Paulo - terra da
garoa” que, dadas as mudanças climáticas contemporâneas, talvez não fosse mais chamada
assim. A vida no campo era muito difícil. No tocante ao ensino, minha mãe sempre diz que não
queria jamais que os filhos dela andassem 8 km para chegar à escola como ela um dia fez; para
minha família, então, São Paulo, no ano de 1986, era realmente a terra das oportunidades.
O Sítio São Pedro, no Paraná, ficou reservado somente para as férias. E que férias eram
aquelas! O doce de banana de minha querida avó paterna! As magnólias da varanda da casa,
o orvalho da manhã, e, sobretudo, o barulho do rio, combinado com a máquina de costurar
da minha avó materna, formavam uma verdadeira sinfonia matinal. Realmente, em alguns
aspectos, aquilo era o paraíso no meu olhar de criança.
Logo no primeiro semestre em São Paulo, meu pai conseguiu um emprego em uma
transnacional como auxiliar de produção. Sim! Isso era possível em 1986, coisa que passados vinte anos é inconcebível, já que meu pai tinha apenas a 4ª série do Ensino Fundamental e fora boa parte de sua vida trabalhador rural e não recebeu nenhuma “ajudinha”. Então,
logo já estávamos alocados em uma casa alugada e a vida ia passando dia após dia, mês
após mês, e ano após ano e assim as crianças foram crescendo e a família não quis crescer
mais, seríamos uma verdadeira família nuclear.1.
Mas, como dito no parágrafo anterior, a casa era alugada e não era muito engraçada;
ao contrário da cantiga de infância, esta daí tinha teto. E, sendo a casa alugada, esse teto não
era nosso, o que impulsionou meu pai a fazer um acordo na firma na qual trabalhava e vir
para São Carlos. Afinal, a notícia que circulava por lá era que aqui estavam doando terrenos
ou, por conta do loteamento ser novo, o terreno era bem barato e caberia no bolso até
daquele pai de família que não queria passar a vida inteira pagando aluguel. E foi assim que
viemos parar aqui, na “Cidade do Clima”. Compramos o terreno e construímos a casa.
Foram anos difíceis, mas, mesmo com todos os problemas, conseguimos!
Minha mãe, dona de uma grande visão de mundo, conseguido se realizar o sonho da
casa própria, se empenhou incansavelmente na educação dos filhos. Fez de todo custo para
que pegássemos gosto pelas “letras”. Foi ela, por exemplo, que ensinou a mim e a meu
irmão a escrever. Nunca tivemos muitos livros em casa, pois é muito caro tê-los nesse país.
Mas sempre dávamos um “jeitinho”, talvez seja para isso que existem bibliotecas...
No entanto, jovens na faixa dos 16-20 anos procuram emprego. E foi assim comigo
também, mas não adiantou o curso de informática que meus pais pagaram com tanto sacrifício
para mim, afinal, o mercado exige a tal da experiência. Mas mais uma vez eu briguei, e dessa
vez foi contra o comodismo e a desilusão, que fazem muitas pessoas meramente entregarem
currículos e assistirem à novela da tarde, ou simplesmente desistirem de tudo. Percebi que me
inscrever no processo seletivo do cursinho UFSCar seria algo interessante. Fiz a prova e o
questionário socioeconômico e fui aprovada. Continuei mandando currículos e estudando.
1
Família nuclear: quando no domicílio reside somente um casal ligado por afinidades o qual detém um
casal de filhos solteiros.
54
Caminhadas de universitários de origem popular
Fiz dois anos de cursinho, e no meio do segundo ano, consegui o tão sonhado emprego, mas
comecei a perceber que não dava para conciliar direito as duas coisas, aí tive que fazer uma
difícil escolha, continuar o cursinho ou trabalhar? Eis a questão.
Escolhi o cursinho e as responsabilidades aumentaram, afinal, eu tinha deixado
meu tão sonhado primeiro emprego para tentar entrar no curso de Ciências Sociais na
UFSCar, e assim foi. No início do ano de 2005, tive bons resultados: passei no vestibular!
Mas não era na universidade na qual eu fazia planos de estudar. No entanto, ainda havia
uma luz no fim do túnel e essa luz era a lista de espera do vestibular da UFSCar. Mas não
quis esperar a tal lista de espera e como minha mãe me ensinou, não troquei o certo pelo
duvidoso e acabei indo para a Universidade Estadual de Londrina. Foi um mês difícil
naquela desconhecida cidade .
Um belo dia, 20 de março, descobri via internet que a lista rodou, rodou, e parou no
meu nome. Aquele foi um dos dias mais felizes da minha vida, mas como nem tudo é
perfeito, o destino quis que eu sofresse um pouquinho. Pois ao lado do meu nome estava o
aviso: Matrícula dia 20/03 até ás 17:00. Detalhe, eu estava a 500 km de distância da
UFSCar e uma nuvem pairou sobre o meu dia ensolarado. Contudo, graças à tecnologia de
comunicações e a amigos e familiares, reverti a situação e consegui fazer a tão sonhada
matrícula. E voltei para casa. É engraçado mas, na minha vida, quando sou posta em situações difíceis, ao mesmo tempo em que me desespero por não acreditar que aquilo esteja
acontecendo, paro e me pergunto: – O que ainda posso fazer para reverter tal situação?
Penso que seríamos mais felizes se conseguíssemos, às vezes, acreditar que o impossível é
possível, quando se trata desse mundo maluco “de meu Deus”.
Hoje, sinto-me muito realizada por estar em um curso que me faz feliz, mas ainda
preocupada quanto ao meu futuro, afinal, uma das coisas que aprendi ao longo desses anos
foi que vivemos incansavelmente atrás de algo; acho que nunca desistimos de correr atrás
do pote de ouro que dizem que existe no final do arco-íris. Passar no vestibular não me
isentou de problemas, como às vezes achava; criaram-se novos que estão aí esperando que
eu, com minha audácia, resolva.
Acabo com um fragmento muito significativo para mim. Ele às vezes toma-me e fazme pensar o significado da vida e o que move o indivíduo a realizar ações nesse mundo
hostil. Acredito que tudo começa com uma idéia fixa como a que provocou a morte da
figura singular de Brás Cubas em Machado de Assis.
Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara,
pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro.
Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais
arrojadas cabriolas de volatim que é possível crer. Eu deixei-me
estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os
braços e pernas, até tomar a forma de um X:
decifra-me ou devoro-te.2
E é assim, ou pelo menos até agora, esta sendo.
2
ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas (1992, p. 37). Editora: Edições de Ouro. Rio de
Janeiro.
Universidade Federal de São Carlos
55
Caminhadas
Lilian Cruz*
Nasci na cidade de São Salvador-BA, no dia 18 de setembro de 1982. Meus pais chamamse Rute de Jesus Cruz e Reginaldo Tavares dos Santos. Tenho 6 irmãos, dois são do casamento
do meu pai com minha mãe e os outros quatro são dos casamentos posteriores do meu pai.
Vivi em Salvador durante 20 anos de minha vida.
Fui criada em dois bairros da periferia de Salvador, Uruguai (que fica na cidade Baixa)
e São Caetano (que fica na cidade Alta).
Aos 6 anos de minha existência, meus pais se separaram. E eu fui morar com meu pai
e minha avó, que foi quem me criou, no bairro Uruguai. Meu pai se casou de novo e minha
mãe terminou o segundo grau e começou a trabalhar em hospitais como auxiliar de limpeza.
Nesse período, dos sete aos doze anos eu fiquei doente, e por conta da doença e por ter
tomado muitos remédios sendo ainda muito criança, tive mancha melânica em todo o corpo.
Os médicos dizem que não tem cura porque afetou a minha derme. Foi um período muito triste
e difícil, porque, além da doença, fui separada da minha mãe, e também do meu pai, já que ele
casou de novo e foi viver a vida dele com outra família. Mas apesar de todas as dificuldades
emocionais e físicas, eu pude estudar, porque fazia parte do sonho da minha mãe e do meu pai
que seus filhos se formassem e tivessem uma vida melhor do que a que eles tiveram.
Aos doze anos, eu voltei a morar com a minha mãe no bairro São Caetano, na casa dos
meus avós maternos. Lá morávamos os meus tios, meus primos, meus irmãos e minha mãe.
Chegamos à superlotação de 17 pessoas numa única casa.
Nesse período, eu fiz o ginásio e o segundo grau. O ginásio, eu fiz num colégio
particular chamado Império do Saber, minha mãe trabalhava num hospital que garantia
bolsa de estudos integral para todos os filhos. Finalizado o meu ginásio, eu ingressei num
colégio público chamado Anísio Teixeira, que fica no Barbalho, distante de casa. Foi a
primeira vez que tive que pegar condução para ir à escola. Bom, eu odiei o colégio, entrei
e saí sem aprender nada.
Simultâneo ao meu primeiro ano de segundo grau, eu fiz um curso técnico de Panificação Industrial no SENAI, e um curso preparatório para prestar os exames do CEFET-Ba,
escola pública federal, na qual ingressei em 1999. Por conta disso, tive que repetir o primeiro ano do segundo grau. No mesmo ano, eu comecei a trabalhar numa delicatèssen como
aprendiz de padeiro, via SENAI. Em 2000, minha mãe me fez largar o trabalho, porque
estava atrapalhando os meus estudos no CEFET-BA, que era muito puxado. Foi um dilema,
meu pai e minha vó paterna queriam que eu continuasse no trabalho para que eu pudesse
* Graduanda em Química pela UFSCar.
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Caminhadas de universitários de origem popular
ajudar nas despesas de casa (já que ele auxiliava financeiramente a mim e às famílias dos
casamentos posteriores) e minha mãe queria que estudasse para ingressar numa universidade depois. O veredicto final de minha mãe foi que eu sairia do trabalho e que se meu pai e
minha vó paterna necessitavam de ajuda em casa que me tomassem de volta, porque com
ela eu iria estudar e entrar numa universidade.
Com muitas dificuldades financeiras, eu terminei o segundo grau sem repetir nenhum
ano no CEFET-Ba. Mas não passei no vestibular no mesmo ano de conclusão do meu
Ensino Médio. No ano de 2002, eu propus à minha mãe que permitisse que eu ficasse mais
um ano sem trabalhar para que eu pudesse me preparar para o vestibular da UNICAMP, que
garantiria que eu tivesse um excelente curso superior, arcaria com minhas despesas através
de bolsa trabalho e me isentaria dos transtornos que a UFBa me causaria por possuir cursos
integrais e campi espalhados por toda a cidade, não me dando tempo para trabalhar. Fiquei
mais um ano estudando. Prestei provas para um curso pré vestibular comunitário, passei,
mas só estudei nele dois meses, porque o cursinho havia mudado de localização e por conta
disso eu teria que pagar 4 conduções: duas pra ir e duas para voltar, e meus pais não tinham
como arcar com estas despesas. Em frente disso, eu praticamente me internei na Biblioteca
Central de Salvador, estudava todos os dias, 16h por dia, para garantir que eu não reprovaria
no vestibular da UNICAMP.
No final de 2002, prestei vestibular para UFBa, UNEB e UNICAMP, sendo aprovada
em todas. Em 2003, me mudei para Campinas, “com a cara, a coragem” e um desejo enorme
de alcançar todos os meus objetivos.
Ingressei no Curso de Matemática Aplicada, mas para o meu descontentamento, eu
não me identifiquei com o curso, com o Instituto de Matemática, Estatística e Computação
Científica - IMECC, com os professores, passei a ter ojeriza à Matemática, uma grande pena,
porque sempre foi o orgulho do meu pai o meu desempenho em Matemática.
Diante disso, eu teria um grande desafio pela frente: me adaptar a viver longe de casa,
a não voltar nas férias para casa, a sentir dolorosas saudades, a descobrir em qual curso eu
gostaria de me formar e a me habituar a viver com estranhos.
Para minha sorte, a UNICAMP tinha uma estrutura que permitia que os estudantes
pudessem fazer disciplinas em outros cursos. Foi o que eu fiz, peguei disciplina em todas as
áreas com as quais eu me identificava, até que eu me descobri na Química, pois ela reunia o
prazer e a minha estabilidade financeira, já que possui um mercado de trabalho amplo, ao
contrário de outras áreas de meu interesse, como Ciências Sociais e Artes Cênicas.
Nesse meio tempo, eu trabalhei em dois projetos sociais na UNICAMP, um chamava-se Projeto Beija-Flor, tendo por objetivo discussões sócio-ambientais e como público-alvo adolescentes de comunidades populares. Neste projeto, eu aprendi muito sobre a
sociedade, o ambiente, adolescentes e a interação sociedade-ambiente. O outro projeto
chamava-se Projeto Educacional Cio da Terra, tendo por objetivo a formação educacional e cidadã de assentados rurais e como público-alvo assentados do Assentamento em
Sumaré (cidade da região de Campinas). Neste projeto, eu dava aulas de Química e aprendi o quanto é difícil e valoroso o trabalho em grupo, ainda mais quando o projeto propõe
a auto-gestão e uma nova forma de educação, valorizando o saber rural e o saber formal,
colocando-os em pé de igualdade.
Concomitante a todas as atividades de que fazia parte, eu comecei a estudar para
prestar vestibular, tentei remanejamento interno, mas não fui feliz porque eu tinha reprova-
Universidade Federal de São Carlos
57
ções. Prestei UNICAMP no ano de 2005 e, em 2006, UNESP, USP, UNICAMP e UFSCar,
sendo aprovada apenas em 2006 na UFSCar, no curso de Química-Bacharelado.
Felizmente, está tudo dando certo, embora eu esteja muito atarefada e sem muito
tempo para descansar. Estou curtindo muito o meu novo curso, os professores, a casa onde
estou morando, minhas atividades, enfim, estou muito feliz.
58
Caminhadas de universitários de origem popular
A história de uma vida
Mariana Gonçalves Luccas*
No dia 18 de maio de 1987, na cidade paulista Vargem Grande do Sul, eu nasci. Do
lado dessa cidade fica localizada a cidade de São João da Boa Vista, cidade natal de meus
pais. As duas cidades vivem basicamente da agricultura, sendo São João da Boa Vista a
mais desenvolvida entre as duas. Vargem Grande do Sul é uma grande produtora de batata
assim como sua região.
Meus pais, Sebastiana e Rubens, são primos por parte paterna e se mudaram para
Vargem Grande do Sul quando se casaram. Tiveram dois filhos: eu e meu irmão, que é mais
velho que eu e se chama Rubens, como o meu pai.
Em Vargem Grande do Sul, meu pai trabalhou em vários lugares e chegou a ser sócio
de uma pequena sorveteria que precisou ser fechada. Com essa instabilidade e sem opção de
serviços na cidade, meus pais resolveram se mudar para São Carlos (também no estado de
São Paulo), onde a irmã da minha mãe morava. Quando meus pais moravam em Vargem
Grande do Sul, e mesmo depois que mudaram para aqui, eles passaram por necessidades.
Minha mãe várias vezes já me contou sobre a época em que ela amamentava meu
irmão e comia apenas arroz com molho de tomate. E de quando ainda os meus pais não
tinham filhos e ela repartia um ovo com a Ula, uma cachorra que os dois tinham. Depois de
alguns anos que meu irmão nasceu, minha mãe teve que dar a Ula. Um dos motivos é que ela
não gostava do meu irmão; minha mãe e meu pai ficaram muito tristes por terem que se
afastar dela.
Eles mudaram de cidade para meu pai tentar arrumar um emprego. Essa minha tia que
morava em São Carlos nos alugou uma pequena casa e meu pai conseguiu um emprego na
Marmoraria da minha tia e do marido dela. Trabalhou lá até conseguir um emprego em uma
fábrica de compressores onde trabalha até hoje. Meu pai também sempre fez “bicos” consertando geladeiras em uma pequena oficina que meu tio também nos alugou, pois este é um
trabalho que realizava desde pequeno.
Depois de alguns anos que nos mudamos para São Carlos, minha mãe começou a fazer
bolos e salgados por encomenda. Ela aprendeu a fazê-los quando, aos nove anos de idade,
foi trabalhar com uma boleira em São João da Boa Vista. Depois, trabalhou em várias casas
de família. Ela sempre menciona o nome das pessoas para quem ela trabalhou e como essas
gostavam dela. E não é para menos, tenho uma mãe muito gentil, inteligente, bonita e com
tantas outras qualidades que eu teria que fazer um livro só para ela.
* Graduanda em Biblioteconomia e Ciência da Informação pela UFSCar.
Universidade Federal de São Carlos
59
Essa casa que minha tia nos alugou ficava no mesmo terreno que a dela. Então eu, meu
irmão e meus primos Andréa, Cristina e Luciano fomos criados juntos. Também morava ali
minha avó materna, muito especial para mim. Hoje minha Avó está muito doente, ela tem
Mal de Parkinson e para tudo ela necessita ajuda. E isso a incomoda bastante, pois trabalhou muito desde criança na colheita com seus pais. É uma pessoa que não merecia sofrer o
que ela tem sofrido e espero que Deus a abençoe, de onde Ele estiver.
Na minha infância, brinquei muito com meu irmão e com meu primo. Brincávamos de
Gato-mia, jogávamos futebol, video-game e ficávamos horas no balanço brincando ou
conversando. Era um bom tempo aquele, quando não tínhamos que nos preocupar com
nada. Lembro-me bem dos meus aniversários em que eu pedia para minha mãe fazer uma
torta doce chamada torta paulista. Minha tia Georgina sempre falava que a torta paulista
que ela fazia era melhor que a da minha mãe. Porém eu sempre gostei da torta da minha mãe,
porque ela faz com coco, e a tia Georgina, com amendoim. Meu primo faz aniversário um
dia antes do meu. Então sempre era feito um bolo e acho que é por isso que eu pedia a torta
paulista e não bolo.
Morar perto da família da minha tia foi fundamental para decidir que um dia gostaria
de entrar em uma universidade. Isso porque a família do meu tio era uma família que sempre
motivou e valorizou a educação. Ao longo do tempo, fui vendo minhas primas e logo
depois meu primo entrando em uma universidade pública, trazendo mais vontade e determinação para eu também ingressar no ensino superior. A única diferença é que eu não tinha
recursos para estudar em uma escola particular e estar mais bem preparada para o vestibular
como eles tiveram. Acabei estudando sempre em escolas públicas e nunca fui preparada
para o vestibular nelas, já que, como sabemos, o ensino fundamental e médio públicos no
Brasil é muito defasado.
Minha trajetória escolar começa aos quatro anos de idade, quando entrei em um
“parquinho” de uma escola pública de São Carlos, que ficava perto da minha casa, a EMEI1
Julien Fauvel. Minha mãe levava meu irmão e eu todos os dias a pé para a escola. Aos sete
anos, entrei na escola do SESI2, onde consegui estudar graças ao emprego do meu pai na
fábrica onde trabalha. Cursei aí o ensino fundamental inteiro com esforço sem repetir nenhuma série. Considero que tive um primeiro grau tranqüilo já que não precisei trabalhar e
estudar ao mesmo tempo. Meus pais conseguiram isso com muito empenho, meu pai fazendo várias horas-extras e minha mãe fazendo bolos e salgados ajudando na renda familiar.
No final de 2001, quando eu estava na oitava série, meu pai conseguiu financiar, com seu
FGTS e com economias do meu irmão e da minha mãe, uma casa própria. Felizmente,
achamos uma casa barata cujos donos aceitavam financiamento. Nesse mesmo ano, nos
mudamos e, ao longo do tempo, estamos fazendo pequenas reformas na casa.
Fiz todos os anos do ensino médio em uma instituição pública, consegui vaga em uma
escola pública tradicional localizada no centro de São Carlos, a escola EE Dr. Álvaro Guião.
Durante os três anos do colegial, não tive grandes dificuldades, porém não tive professores de
algumas disciplinas em alguns períodos do ano letivo, por causa da desorganização do sistema educacional, como acontece em vários lugares do Brasil, não sendo diferente no interior
do estado de São Paulo, embora este seja considerado um estado tão desenvolvido. No meu
1
2
EMEI - Escola Municipal de Educação Infantil
SESI - Serviço Social da Indústria
60
Caminhadas de universitários de origem popular
segundo ano, tive uma alegria grande com meu irmão quando ele passou em um concurso do
Departamento de Água e Esgoto de São Carlos, onde trabalhou por um tempo. Logo depois,
ele foi aprovado em outro concurso da prefeitura municipal de São Carlos, onde trabalha até
hoje. Minha família e eu ficamos super contentes e ele também.
No meu colegial, de alguns professores recebíamos apoio para estudarmos para o
vestibular. Outros não mencionavam e pareciam até ter medo de falar sobre o assunto. Acho
isso muito triste. Acredito que várias pessoas são desmotivadas por esses professores. Quando estava no terceiro ano, alguns professores ofereceram monitorias fora do período das
aulas para realizarmos exercícios de vestibular e tirarmos dúvidas. Eu participava de todas
as atividades desse caráter, para aproveitar o máximo possível para prestar o vestibular no
fim do ano. Nesse último ano, também fiz o curso pré-vestibular comunitário no Revolução,
que me ajudou bastante. Nesse cursinho, tive ótimos professores, todos estudantes da USP
e da UFSCar.
No final do ano, pensei várias vezes para escolher o meu curso de graduação. Pesquisei
sobre todos os oferecidos nas duas universidades públicas de São Carlos e escolhi
Biblioteconomia e Ciência da Informação na UFSCar. Apesar de conseguir a isenção para o
vestibular, infelizmente, nesse ano não consegui passar. No ano seguinte, fiz novamente
um cursinho pré-vestibular, consegui uma bolsa em um curso pago de São Carlos e meu pai
e meu irmão pagaram o resto da mensalidade. Nesse ano, não consegui isenção do vestibular da UFSCar, meus pais não tinham condições de pagar a taxa de inscrição e quase não
prestei vestibular. Consegui fazer minha inscrição graças ao meu irmão que a pagou com
uma economia que ele tinha. E então resolvi novamente prestar Biblioteconomia e Ciência
da Informação, conseguindo passar no vestibular.
Meu irmão prestou vestibular três vezes, porém não conseguiu realizar o sonho de
entrar em uma universidade. Acho que depois que entrei, ele se motivou mais ainda. Agora
ele não tem só o modelo dos meus primos mas o meu também, vendo assim que mesmo
estudando em escolas públicas como ele, consegui o acesso à universidade pública, mostrando que tudo é possível, só temos que nos esforçar. Tenho certeza de que ele irá passar e
torço para que isso ocorra.
Estar estudando na UFSCar me abriu novos olhares para o nosso cotidiano e, participando do Programa Conexões de Saberes, esse olhar tem modificado a cada dia que passa.
Através do Conexões, vejo que outros tiveram a mesma realidade e enfrentaram as mesmas
dificuldades que eu. O Projeto de Extensão3 do qual participamos também me faz ver que
muitos outros têm o mesmo sonho e que não devem desistir do sonho de ingressar em uma
universidade pública jamais, pois isso é possível.
1
Na Universidade Federal de São Carlos, campus São Carlos, a atividade vinculada à comunidade do
Programa Conexões de Saberes se dá através da participação dos bolsistas no Curso Pré-Vestibular da
UFSCar/Núcleo de Extensão UFSCar-Escola, em bairro periférico e de baixo poder econômico da cidade,
região conhecida como Cidade Aracy.
Universidade Federal de São Carlos
61
Minha trajetória de vida
Michel Luiz de Moura*
Meu nome é Michel Luiz de Moura, sou filho de Isolda Alves da Silva e de Marcos de
Moura, tenho dois irmãos: Rodnei Moura, de 17 anos, e Marcos F. de Moura, de 15 anos.
Nasci em São Carlos, interior de São Paulo, no dia 3 de março de 1985, filho de pais jovens;
quando nasci, minha mãe tinha apenas 16 anos e meu pai, 20 anos, com isso, muitos problemas foram surgindo, como falta de casa própria e falta de estrutura familiar.
Vivi parte da minha primeira infância com meus pais na cidade e parte na zona rural de
São Carlos, onde meus pais cuidavam de granjas (criação de aves), cursei a pré-escola no
subdistrito de Água Vermelha.
No final de 1990, minha família se mudou para cidade, onde passamos a morar na casa
da minha querida avó paterna dona Joana (Vó Branca). No ano seguinte, comecei a estudar
na primeira série do ensino fundamental; neste mesmo período, a convivência entre meus
pais passou a ficar cada vez mais difícil; aliás, desde muito pequeno recordo que nunca foi
pacífica. Neste mesmo ano, minha mãe se separou do meu pai e fui morar na casa da minha
avó materna, dona Maria (Vó Preta), juntamente com minha mãe e meus irmãos.
Nos anos seguintes, estudei de manhã e ajudava minha avó a olhar meus irmãos menores
que já iniciavam a pré-escola, nos finais de semana ficávamos com o meu pai. Com treze anos,
arrumei meu primeiro emprego como empacotador num supermercado próximo de casa; minha primeira experiência profissional foi frustrante, ainda me lembro de que estudava até as
12h e às 13h iniciava o expediente, que ultrapassava as 21h de segunda a segunda.
Com um ordenado muito baixo, minha mãe e eu resolvemos que não compensava o
esforço e a falta de tempo para os estudos e depois de quatro meses abandonei o emprego.
Logo após, iniciei o que aqui em São Carlos é chamado de “patrulheiro”, um curso de
capacitação profissional que visa formar adolescentes para o primeiro emprego, mas nunca
trabalhei como patrulheiro, pois, concluindo o ensino fundamental, prestei o vestibulinho
do SENAI1 para mecânica de usinagem. Já no primeiro ano do ensino médio, cursava o
técnico de manhã e ensino médio no noturno, neste mesmo ano minha avó materna faleceu
devido a um câncer. Em 2001, mudamos para nossa casa, uma casa financiada pela Caixa
Econômica Federal. Neste mesmo ano, como me destaquei nas atividades no SENAI, fui
convidado a estagiar numa importante empresa da cidade. Com isso preenchi o dia todo,
comecei a sair de manhã e voltar por volta das 23:20; era uma rotina quase desumana, que
durou dois anos.
* Graduando em Ciência da Computação pela UFSCar.
1
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial.
62
Caminhadas de universitários de origem popular
Ao concluir o SENAI, em 2002, fui efetivado na empresa onde estagiei e já participava
efetivamente na vida econômica da família. Sempre pensei em prestar vestibular e fazer um
curso superior, talvez por morar em uma cidade que possui dois campi universitários, e no
final do ensino médio prestei meu primeiro vestibular na Unesp e na UFSCar. Foi uma
tragédia; já convencido de que com meu preparo eu não chegaria a lugar nenhum, comecei
a procurar um cursinho.
Como não podia pagar muito, ou melhor, quase nada, procurei alternativas. Foi quando encontrei o cursinho da UFSCar e também o cursinho Comunitário Casa Aberta, onde
acabei ficando devido à facilidade de acesso.
Em 2003, continuei com a mesma rotina, trabalhando o dia todo e fazendo cursinho;
as dificuldades eram imensas e o cansaço também. Mas, infelizmente no fim do ano, veio o
temido vestibular, e mais uma vez, nada, mas desta vez “bateu na trave”. Resolvi cursar
mais um ano, mas já estava muito desanimado, faltava às aulas, dormia nelas muitas vezes
e como conseqüência não passei novamente. Na verdade, fui aprovado no curso de Estatística da Unesp em Presidente Prudente, mas, ao ir matricular-me, percebi que, pela distância
da cidade, eu teria muitos gastos e, afinal, esse não era o curso que eu realmente queria fazer.
Ainda em 2004 foi inaugurado o ProUni2; sem muito entusiasmo me inscrevi, fui bem nas
provas do ENEM3, fui selecionado na minha primeira opção, Ciência da Computação, que
era um curso reconhecido pelo MEC.
Em 2005, iniciei minha graduação numa instituição privada, mas no fundo não me
sentia bem em ter me esforçado tanto, de ter feito cursinho, e estar agora numa instituição
privada enquanto tinha sonhado com uma pública. Neste ano, me arrependi de não ter
abandonado o emprego e ter me dedicado exclusivamente ao cursinho como alguns amigos
fizeram e obtiveram sucesso, mas no fundo eu sabia que minha família também precisava
que eu trabalhasse.
Mas, enfim durante este ano, dei tudo de mim, tirava as melhores notas, estudava
muito, fui criticado muitas vezes no trabalho pelos atrasos ocasionais, virava as noites
estudando. E, no final do ano, resolvi tentar mais uma vez. Li ocasionalmente no site da
UFSCar que o processo de transferência estava aberto, pesquisei e vi que como meu curso
era similar e reconhecido pelo MEC, eu poderia concorrer. Mesmo que em desvantagem,
por ser oriundo de uma instituição privada, resolvi arriscar, mas tudo era apenas uma “brincadeira”, uma cartada que eu dei, pensando: “Não tenho nada a perder, só vou avaliar como
estou em relação aos outros candidatos”.
Para minha surpresa, fui selecionado. Sinceramente, não sabia se isto era bom ou ruim,
neste momento fui tomado pelo medo e pela insegurança, primeiro, como eu iria abandonar
meu emprego e me dedicar exclusivamente aos estudos? E em segundo lugar, eu seria capaz
de dar continuidade ao curso? Comecei a me questionar e me inferiorizar por ter ingressado
por transferência.
Nesta decisão, minha mãe foi fundamental, me apoiou e me incentivou a ir à busca do
meu sonho, dizendo que não faria sentido eu desperdiçar esta oportunidade e que mesmo
enfrentando algumas dificuldades a mais, nossa família estaria unida e se ajudando finan-
2
3
ProUni - Programa Universidade para todos
ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio
Universidade Federal de São Carlos
63
ceiramente. Com isso, fiz minha matrícula e agora minha responsabilidade tinha aumentado; minha mãe confiou em mim e eu não poderia decepcioná-la.
Em 2006, iniciei minha graduação em Ciência da Computação na UFSCar, e tomei um
choque; tenho muitas dificuldades nas matérias, dificuldades de base em português, matemática etc. Muitas vezes pensei em desistir, pensei que esta realidade não era para mim,
pensei muitas vezes se não deveria ter ficado onde eu estava mesmo, trabalhando e estudando.
Paralelamente, entrei no Programa Conexões de Saberes. Quando fiz inscrição, imaginei que fosse apenas um projeto qualquer para o qual eu deveria dispor algumas horas de
dedicação, mas não; além da segurança financeira, o Programa e suas atividades, especialmente o Caminhadas, vêm me ensinando a enxergar minha trajetória de vida de outra
forma, me ensinou a valorizar cada passo que eu dei até agora mesmo que muitas vezes
tivesse achado que este passo tinha sido em vão ou que não merecia nenhum mérito por
isso. Juntamente com as oficinas, com a professora Marina, tenho resgatado minha história,
minhas lutas, minhas vitórias e também reconhecido minhas derrotas e, com isso, estou
agregando valores e conhecimentos que vão além da graduação e que não servirão apenas
para escrever um livro, mas sim para resgatar uma história, para alimentar o ego, aumentar a
autoconfiança, e com isso estarão me ajudando não apenas a resgatar minha história mas
sim, ajudando a construí-la.
64
Caminhadas de universitários de origem popular
Memorial
Milton Dias de Freitas Jr*
Olá! Muito prazer, meu nome é Milton Dias de Freitas Junior, mais conhecido como
Djaú – apelido que remete à minha cidade de origem: Jaú, localizada no interior de São
Paulo. Sou aluno do curso de Engenharia de Computação na Universidade Federal de São
Carlos, tenho vinte anos e algumas histórias para contar. O meu cotidiano atual se resume
à Universidade, pois nela: moro, estudo e trabalho. O Programa Conexões de Saberes,
além de ser um instrumento de permanência qualificada na Universidade, é um meio que
proporciona uma janela de troca de conhecimentos existenciais e culturais e ainda uma
expansão no círculo de amizades. A Universidade oferece outros serviços mínimos para
minha manutenção acadêmica: alojamento estudantil e alimentação, mas, para completar
a renda, trabalho de garçom nos finais de semana.
A hegemonia da classe média e média alta dentro da Universidade pública é fato.
Contudo, a existência de pessoas como eu favorece uma paridade na educação brasileira.
Apesar dessa heterogeneidade desproporcional em relação à situação sócio-econômica
dos estudantes, particularmente tenho uma relação social muito boa com todos dentro
desse ambiente.
Agora, analisando o período que antecedeu o meu ingresso no ensino superior, não
poderia deixar de relatar sobre uma pessoa que foi essencial na motivação para minha
continuidade nos estudos: Alberto Pereira – alguém muito especial que me incentivou
incessantemente a leitura e a curiosidade pela vida. Tive também o apoio de um curso
pré-vestibular comunitário, organizado pelo projeto OPTE1, da ONG Práxis, em Jaú, que
foi necessário para reparar anos de ensino médio e fundamental precários na escola pública. Na primeira vez que prestei vestibular tinha acabado de sair do colegial e ao obter os
resultados fiquei arrasado. Só então percebi o quão fraca havia sido a minha formação até
então. Com o apoio familiar, persisti e comecei a ultrapassar barreiras estudando por
conta própria e no cursinho.
*
Graduando em Engenharia da Computação pela UFSCar.
Oportunidade para Todos Estudarem. O projeto OPTE, implantado em parceria com o Instituto Camargo
Correia, consiste em oferecer aos alunos oriundos da rede pública de ensino oportunidade para freqüentarem
cursinho pré-vestibular gratuito a fim de que possam aprimorar seus estudos visando o ingresso em curso
universitário. Oferece anualmente 60 vagas aos candidatos que lograremêxito em prova de seleção promovida
pela própria ONG, e que possuam renda per capita de até dois salários mínimos. Os organizadores afirmam
esperar contribuir para a diminuição das desigualdades sociais que dificultam o ingresso dos alunos menos
favorecidos nas universidades. [informações do site http://www.praxis.org.br/opte.html, em 06 jan 2007]
1
Universidade Federal de São Carlos
65
No ano seguinte (2004), consegui a tão sonhada aprovação. Havia prestado vestibular
para UNICAMP e FATEC2 e optei pela UNICAMP onde fiquei por um ano. Porém, estava
desgostoso com o curso que tinha escolhido e decidi prestar o processo de transferência
interinstitucional e novamente o vestibular. Para uma feliz surpresa, fui aprovado no vestibular da USP e UNICAMP e também no processo de transferência interinstitucional da
UFSCar, onde escolhi vir estudar.
Durante a época do meu ensino médio, tinha uma relação muito fraca como os
estudos, não era incentivado pelo sistema educacional público a aprender, mas apenas
assistir às aulas e conseguir um diploma de concluinte para fazer volume nas estatísticas
de políticas-educacionais. Nesse tempo, meu horário era muito denso, pois tinha iniciado
minha vida assalariada aos 13 anos, trabalhava em um mercado e era estagiário numa
escola de informática – onde conheci algumas pessoas muito queridas até hoje: o Sr.
Francisco Rosa e José Rosa.
Era muito presente o contato com ideais Cristãos e isso ajudou a fortalecer meus
princípios e crenças. A minha relação familiar sempre foi muito sólida e nessa fase comecei
a entender e reconhecer a vencedora que minha mãe (Dona Sonia) havia se tornado, conseguindo criar e educar minha irmã (Paula) e eu com louvor, apesar de todas as dificuldades.
Até os dias de hoje, sou considerado o “rapaz engraçadinho”, mas foi na minha infância que vivi o auge da minha carreira circense: era o gordinho bobo da turma e o terror das
professoras. Lembro-me também de acordar cedinho aos domingos para ir à Igreja. Desde
que eu era muito pequeno, minha mãe me conduzia por esse caminho, no qual aprendi
ensinamentos muito preciosos e valiosos de amor e adquiri uma filosofia de vida. Decorrente disso, o meu grupo de amigos concentrava-se entre a Igreja e a escola dos quais tenho
inúmeras boas lembranças... tinha até um grupo de amigos da igreja chamado M.D.R. (Manos da Rocha)... os amigos em geral são tantos que, por receio de me esquecer de alguém,
não descreverei nenhum deles.
Dentre todas essas lembranças, em absoluto, a que mais marcou a minha vida até hoje foi
assistir a morte de meu pai. Eu tinha oito anos de idade e, como era de se esperar, ele era uma
pessoa que tinha um papel extremamente relevante na minha vida, despertando em mim um
amor, respeito e admiração inexplicáveis: o meu exemplo de vida. Esse fato foi um marco que
trouxe uma responsabilidade familiar muito grande e precoce na minha vida, que explica
porque eu me preocupo e amo tanto minha família: Dona Sonia, Paula, meus primos José
Carlos e Luciana, meus tios Carlos e Terzinha (in memoriam) e meu avô José (in memoriam).
E, por fim esse sou eu, nascido numa linda manhã, 13 de novembro de 1985, com 3
quilos e 800 gramas e muitas fraldas por trocar...
2
Faculdade de Tecnologia de São Paulo, fundada em 1973, tem cursos nas áreas de Construção Civil,
Mecânica, Humanas, Informática e Tecnologia de Precisão [informações do site http://www.fatecsp.br, em
02 jan 2007].
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Caminhadas de universitários de origem popular
Pão-de-açúcar
Mylena Mylândia Araújo Gomes*
Rosas dos ventos me levem
Aos jardins à beira-mar
Rosas do tempo me cubram
Se eu nunca mais regressar.
Paulo Bonfim1
Nasci em São Luís no Maranhão em uma manhã ensolarada; minha mãe era estudante
de 16 anos e cursava a sexta série do ensino fundamental; já meu pai era um encanador da
indústria petroquímica, tinha 23 anos e estudou até a quarta série.
Nós fomos morar nos fundos da casa da minha tia Heloísa, pois minha mãe não sabia
como cuidar de um bebê e minha tia ajudava, e também porque não tínhamos muito dinheiro e lá não precisávamos pagar nada. Moramos lá até o meu aniversário de dois anos; depois
disso, meu pai quis voltar para sua cidade, Fronteiras, no Piauí.
Então, fomos para o Piauí morar na casa da minha avó paterna e, nesse tempo, minha
mãe já estava grávida de novo. Apesar da minha mãe ter tido certos problemas com a família
do meu pai, quando meu irmão Mychel nasceu (fala-se Michel, e não “Maiquel”! Ele não
gosta...), fomos morar em uma casa que a minha avó tinha.
Por causa de seu trabalho, meu pai viajava para vários estados, e minha mãe cuidava
de nós e da casa.
Ainda nessa casa, minha mãe perdeu seu terceiro filho; ele nasceu com hidrocefalia e
morreu. Minha mãe ficou doente também e quase morreu, mas ela sobreviveu e por algumas
complicações não pôde mais ter filhos. Talvez, pelo costume daquela região, se não fosse
este incidente, nossa família seria bem maior.
Depois de alguns anos, compramos nossa casa própria e a vida ia correndo de um jeito
lento e sem novidades naquela cidade pequena; meu pai aparecia de vez em quando e às
vezes não conseguíamos reconhecê-lo. Entretanto, este fato era comum naquela cidade e,
além disso, as relações familiares não eram tão íntimas, de modo que não sofríamos tanto
com as despedidas.
Tinha meu tempo absorvido pelos estudos e pelo auxílio que dava à minha mãe no
cuidado da casa e do meu irmão. Gostava muito de brincar e assistir TV, sempre brincava na
*
1
Graduanda em Enfermagem pela UFSCar.
BOMFIM, Paulo. Poema sem título. In: Poemas Escolhidos, p. 42, Círculo do livro S.A, São Paulo-SP, 1973.
Universidade Federal de São Carlos
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rua de pega-pega, esconde-esconde, pular corda, “amarelinha” e muitas outras também. Gostava muito de subir em árvores e brincar de casinha, mas gostava mais era de brincar sozinha.
Minha mãe me colocou na creche de minha tia quando eu tinha dois anos e meio, e lá
fui me desenvolvendo mais rapidamente que as outras crianças, o que talvez as tenha
levado a acreditar que eu poderia ter sucesso nos estudos, o que não era tão comum por lá
naquela época. No ensino fundamental, a escola era para mim um lugar chato ao qual eu só ia
por obrigação. Eu não tinha muitos amigos lá, mas minha mãe exigia que eu tivesse um bom
desempenho, apesar de não poder me ajudar, já que ela mesma não havia estudado muito.
Lembro-me das férias no sítio da minha vó, levantar antes do sol nascer e dormir às 7h
da noite, nadar no rio, levar as vacas com meu pai na roça, ver meu vô tirar o leite (era esse
meu vô que me chamava carinhosamente de Pão-de-açúcar, porque eu comia muito doce...),
bagunça com todos os primos, pois era nas férias escolares que todos ficávamos juntos.
Um dia, ao subir no muro da vizinha, quebrei o braço e precisei fazer uma cirurgia que
foi mal sucedida. Tive que fazer tratamento durante anos e por isso escolhi minha profissão,
queria trabalhar na área da saúde, vestir branco, ser útil para os outros e isso influenciou em
toda minha vida.
Nas minhas férias escolares da 8ª série, meu pai estava trabalhando em Paulínia, São
Paulo, e em Cosmópolis, que ficava ao lado. Acabamos vindo passar as férias com ele. Por
alguns motivos, acabamos ficando e morando com ele em Cosmópolis. Eu e meu irmão
começamos a estudar em uma escola pública da cidade e meu pai se esforçava para nos
sustentar, já que o custo de vida aqui era mais caro do que no Piauí.
Meu pai sempre teve o sonho de ter os filhos formados para eles não terem que passar
pelo que ele passou. Quando eu estava terminando o colegial, aos 16 anos, meu pai fez um
enorme esforço e começou a pagar um curso pré-vestibular noturno para mim; fazia a escola
de dia e o cursinho à noite. No final do ano, infelizmente não consegui passar no vestibular.
Meu pai não desistiu e novamente pagou mais um ano de cursinho para mim, já que em
Cosmópolis não existem cursinhos populares, somente os pagos.
As matérias eram difíceis e o meu conhecimento era reduzido, tive muitas dificuldades em acompanhar os professores, mas, mesmo assim, continuei lutando. Infelizmente,
naquele ano também não deu certo.
Fiquei muito frustrada e cansada, meu pai também dava sinais de cansaço e minha
mãe, vendo os apertos que passávamos para pagar o cursinho, ficava irritada e acabava me
pondo mais para baixo ainda. Diante de todos esses problemas, sempre ia chorar na casa da
minha amiga, Ellen, que sabe mais do que eu o quanto sofri nessa época com incompreensão
dos familiares.
No ano seguinte, resolvi dar um tempo e comecei a trabalhar em uma loja de flores.
Trabalhei meio ano e guardei o dinheiro para pagar um cursinho de meio ano, mas meu pai,
sempre insistente, apesar de tudo e principalmente da falta de confiança entre todos, pagou
esse curso para mim, e finalmente, nesse ano, consegui passar em enfermagem na Universidade Federal de São Carlos.
68
Caminhadas de universitários de origem popular
Caminhadas
Nelson Ponce Júnior*
Falar de tudo que vivi nesses 22 anos não é uma tarefa fácil. Existem momentos que
não gosto de lembrar e outros que tenho orgulho em lembrar.
Relato minha história na esperança de que algum dia as experiências que passei
possam de certa forma ajudar outros jovens a não desistirem de seus sonhos!
Meu nome é Nelson Ponce Júnior, nasci no dia 6 de abril de 1984 na cidade de
Americana, interior de São Paulo. Assim que nasci, eu e meus pais fomos morar na casa que
eles haviam acabado de construir no Jardim Santa Rosa, um bairro recém inaugurado na
cidade de Santa Bárbara D’Oeste. Meu pai trabalhava como mestre de produção em uma
empresa têxtil, ele tinha um bom salário, afinal, construiu nossa atual casa em pouco tempo
e se livrou do aluguel. Era uma casa pequena, mas grande o bastante para abrigar nós
quatro: eu, minha mãe Odete, meu pai Nelson e minha irmã Michele.
Quando eu já havia completado um ano de idade, minha família recebeu a notícia de
que receberia em breve um novo morador na casa, ou melhor, uma moradora, minha irmã,
Daniela, que nasceria dentro de alguns meses. Com o passar dos anos, o quarto em que eu e
minhas irmãs dormíamos já estava bem apertado e a casa teve que ser ampliada.
As fotografias que tenho do meu início de infância me ajudam a lembrar de como
foram bons aqueles tempos. Eram freqüentes as festinhas de aniversário, os presentes de
Natal, os passeios com a família...
Quando eu tinha cinco anos de idade, minha mãe me matriculou em uma escola
infantil. Lembro o quanto eu e meus primos, Fábio e Thiago, que também estudavam lá,
brincávamos. As Festas Juninas que a escola fazia eram sempre muito divertidas.
As viagens que fazia, naquela época, até o sítio dos meus padrinhos, que ficava na
cidade de Marcondésia, também eram muito divertidas. Gostava de andar de trator com meu
pai e também de pescar. Tenho muitas lembranças do balanço que ficava no pé de manga,
das minhas idas até o curral para ver meu padrinho tirar leite das vacas. Hoje, eles não
possuem mais o sítio, venderam e se mudaram para a cidade de Olímpia. Até hoje, sempre
que posso, vou visitá-los.
Em 1989, meu pai pediu demissão da empresa em que trabalhava havia dezenove
anos. Ele dizia que não agüentava mais o trabalho na madrugada e o barulho daquela
fábrica, dizia que aquilo estava acabando com a sua saúde; e realmente estava. Tentou
trabalhar como autônomo na venda de veículos em um estacionamento de carros em
Americana, mas com o passar do tempo, isto não deu muito certo. Perdeu muito dinheiro
*
Graduando em Engenharia de Materiais pela UFSCar.
Universidade Federal de São Carlos
69
e a alternativa foi mudar de atividade. Resolveu continuar como vendedor autônomo,
mas agora iria vender brinquedos por todo interior de São Paulo. Foram várias as viagens
que fiz com meu pai para a cidade de São Paulo, pois era lá que ele comprava os brinquedos. Era muito bom entrar naquelas lojas “recheadas” de brinquedos; sempre acabava
ganhando algum.
Passados dois anos, eu iniciei o ensino fundamental em uma escola estadual que fica
próxima de casa e, após algum tempo, meu pai adoeceu. Em poucos dias, estava em uma
mesa de cirurgia na rede pública de saúde. Todas as noites, minha mãe e minha irmã mais
nova rezavam para que meu pai melhorasse, mas sua situação não era nada boa. A primeira
cirurgia de nada adiantou e logo teve que fazer outra para desviar seu intestino, pois havia
uma grande infecção em parte do mesmo. Eu sempre ia ao hospital, mas nunca entrava, acho
que no fundo eu não estava preparado para vê-lo naquela situação. As poucas vezes que o
vi foi pela janela do quarto. Após um longo tempo, meu pai voltou para casa, mas ainda
teria que fazer uma nova cirurgia para religar o intestino. Mas isso não o impediu de voltar
a trabalhar com as vendas. Depois de alguns meses, fez a cirurgia de religamento. Sua
recuperação foi bastante longa, mas estava curado. Sempre quando ele lembra dessa época,
fala que trabalhou de fiscal de obras, pois viu o prédio que ficava na frente do hospital ser
construído quase que inteiro. Depois de todo este tempo, voltou a trabalhar e as coisas
voltaram ao normal.
A vida no ensino fundamental foi muito boa, ir para a escola nunca foi um problema
para mim, gostava de aprender e também de me divertir com os amigos. Chegava da escola,
comia alguma coisa e corria para a rua, na maioria das vezes, nem o uniforme da escola
tirava. Minha mãe não gostava muito disso!
Minha inocência de criança não me deixava perceber quanto a situação financeira da
minha família havia se deteriorado. Com o passar dos anos, o dinheiro do meu pai foi se
tornando cada vez mais escasso para o sustendo da família, mas a esperança de que as coisas
iriam melhorar sempre se manteve viva. Minha irmã, Michele, havia terminado o colegial e
arrumado um emprego em uma loja de máquinas e ferramentas em Americana; minha mãe
continuava com os afazeres do lar e meu pai com a venda de brinquedos.
Aos 15 anos de idade, consegui passar no processo de seleção da escola SENAI1 de
Americana no curso profissionalizante em mecânica de usinagem, e logo de início, arrumei
um trabalho como aprendiz. Considerava meu primeiro salário bom e ele ajudava muito
minha família. O curso era integral por isso tive que iniciar meu ensino médio no período
noturno na mesma escola em que havia feito o ensino fundamental. O ensino médio à noite
era péssimo, e meus pais não tinham a mínima condição de pagar um ensino particular. Para
dizer a verdade, o dinheiro que meu pai ganhava não era mais suficiente nem para pagar as
contas da família, e isto obrigou minha mãe a procurar um emprego. Minha irmã mais velha
conseguiu uma vaga de faxineira para minha mãe na empresa em que trabalhava. O dinheiro
que minha mãe ganhava era fundamental para o sustento da família.
Foi também nessa época que meu avô, Regustiano Ponce, faleceu. Era uma boa pessoa, sempre perguntava sobre o meu trabalho como aprendiz e sobre o meu curso no SENAI.
1
SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
70
Caminhadas de universitários de origem popular
Sempre que eu ia à sua casa, estava fazendo alguma coisa na sua horta, que hoje, infelizmente está abandonada. Tenho muitas saudades do meu avô!
Apesar de tudo, os problemas financeiros familiares da época não afetaram o meu
aprendizado na escola SENAI. Acho que de certa forma acabaram me incentivando a não
desperdiçar as oportunidades que apareciam. Minha dedicação resultou, ao final do curso,
em um prêmio como melhor aluno do curso de mecânica de usinagem.
Tinha esperanças em continuar na empresa em que trabalhava após o término do
contrato, mas mesmo com a premiação, não consegui. A empresa já havia me comunicado
que eu não seria efetivado por falta de vagas, e antes que terminasse o contrato, consegui
um novo trabalho. Não era em uma grande empresa como a primeira, mas seria o meu
primeiro emprego exercendo realmente a função que aprendi.
Naquela época, meu pai havia novamente mudado de atividade. Iria tentar vender
confecções em geral, mas seus ganhos já não sustentavam a família havia algum tempo, e
conseguir um emprego seria quase impossível, pois já fazia algum tempo que não trabalhava com registro em carteira e sua escolaridade, ensino fundamental completo, nunca o
ajudou na busca de um trabalho formal.
Com quatro meses no meu novo emprego, tive uma ótima notícia: a escola SENAI,
na qual havia estudado, estava me convidando para participar de uma competição de
formação profissional, as Olimpíadas do Conhecimento, na modalidade Fresagem CNC2.
Após algumas negociações da escola com a empresa, fui liberado para treinar durante
dois meses às sextas-feiras e aos sábados. O tempo era curto, mas sabia que não poderia
deixar escapar aquela oportunidade. Graças a Deus, consegui alcançar meu objetivo e fui
campeão estadual na competição.
Surgiu então a oportunidade de representar o estado de São Paulo na competição
nacional. A empresa na qual eu trabalhava não pôde mais me liberar para os treinos, pois
possuía poucos funcionários no meu setor e a preparação para a competição nacional exigiria tempo integral de dedicação. Consultando minha mãe, tomei a decisão de sair da empresa e continuar me dedicando aos torneios, mesmo que depois da competição corresse o risco
de ficar desempregado. Após cinco meses de treinamentos e muitas viagens para São Paulo,
em reuniões de preparação psicológica com toda a equipe, estava pronto para representar o
estado em 8 de agosto de 2002, na competição nacional na cidade de Porto Alegre, Rio
Grande do Sul. A viagem de ida foi um pouco tensa; nunca havia entrado em avião antes, e
quando me soltei, já estava em Porto Alegre.
Mais uma vez sabia que aquela oportunidade seria única e, após três dias de competições, tive a notícia de que havia ganhado o primeiro lugar. Esta vitória me abriu uma porta
ainda maior: a oportunidade de representar o Brasil na competição mundial de profissões
que seria realizada na Suíça no ano seguinte. Mesmo com a vitória na competição nacional,
tive que passar por vários simulados e atingir as pontuações exigidas para representar o país
no mundial. Não foi fácil, mas havia me dedicado muito nos treinamentos. Era comum ficar
mais de treze horas na escola treinando.
2
Fresagem CNC (Comando Numérico Computadorizado) é um tipo de atividade cujo profissional é
responsável por preparar, regular e operar máquinas CNC para fresar (cortar) peças de materiais metálicos, plásticos e compósitos, com uso de ferramentas rotativas.
Universidade Federal de São Carlos
71
No dia 14 de junho de 2003, às 22h, embarquei no vôo para a Suíça que faria uma
escala em Frankfurt – Alemanha, antes de chegar à cidade de Zurique. Após descermos no
aeroporto, pegamos um ônibus para a cidade de Saint Gallen, onde seria realizada a
competição. A cidade era muito bonita, e é quase impossível descrever tudo aquilo que vi
em palavras. Parecia não haver desigualdade social; muito diferente da realidade do
nosso país.
Os dias de competição foram muito tensos. Não consegui ter o desempenho das
outras competições, pois não conhecia muito bem o equipamento suíço. Mesmo sabendo
que não conseguiria estar entre os primeiros colocados, fiz o melhor que pude para obter
pontos durante a competição e, ao final, havia obtido a 13ª colocação e ficado à frente de
países como a Inglaterra, França e Bélgica. Tudo isso para mim foi uma grande vitória,
pois sei que dei o melhor de mim e não desisti de lutar mesmo sabendo que não ficaria entre
os primeiros colocados.
Depois de um mês da minha volta ao Brasil, consegui um emprego. Ainda não era uma
empresa grande como havia imaginado, mas sabia que as oportunidades com o tempo
apareceriam, e, apesar de meu pai continuar com dificuldades em sustentar a família, a
situação tinha se estabilizado. Minha irmã mais nova também havia arrumado um emprego.
Mas a situação de aparente estabilidade logo se quebrou. Meu pai havia feito muitas
dívidas. Talvez a vergonha por ter que abandonar mais uma vez o trabalho fez com que ele
continuasse trabalhando, mesmo que seus ganhos não ultrapassassem seus gastos, e a dívida
só foi percebida pela família quando já estava enorme e ele não conseguiu mais escondê-la.
Em meio a todos estes problemas, a oportunidade que tanto esperava realmente havia
aparecido. Eu havia passado na seleção de uma empresa multinacional na cidade de
Piracicaba, e, como estava trabalhando havia apenas quatro meses em uma empresa pequena, não pensei duas vezes em deixá-la. O novo trabalho era ótimo, tinha um bom salário e o
ônibus fretado pela empresa passava a duas ruas de casa. Com o tempo, sabia que poderia
crescer dentro da empresa.
Em 12 de junho de 2004, Dia dos Namorados, conheci minha atual namorada, a Aline,
em uma festa na cidade de São Pedro. Mesmo ela morando longe da minha cidade, cerca de
70 km, decidimos namorar. Muitos diziam que devido à distância, este namoro não iria
durar muito, mas estamos juntos até hoje e muito felizes.
As dívidas de meu pai era cada vez mais problemática, constantemente recebíamos
cobranças. Minha mãe havia decidido vender a nossa casa, na qual havíamos morado minha vida toda, e com parte do dinheiro pagaria as dívidas. Com o tempo, tirou esta idéia da
cabeça e como na época eu tinha um bom salário, resolvi pagar as dívidas parceladamente.
Foi mais de um ano pagando parcelas, mas, ao final, estava tudo pago.
O meu salário do primeiro ano de trabalho foi usado praticamente neste pagamento,
e, assim que acabaram as dívidas, decidi estudar. Pensava em fazer uma faculdade particular, pois meu salário me dava esta condição. Antes, porém, decidi prestar o vestibular da
FATEC-SP3, no campus de Americana. Não era tão concorrido, mas era muito mais do que
as escolas particulares da região. Para minha alegria, fiquei na lista de espera e logo fui
chamado. Aquilo me fez sonhar mais alto, acreditava que, se realmente me preparasse,
3
Faculdade de Tecnologia de São Paulo.
72
Caminhadas de universitários de origem popular
poderia passar em uma universidade ainda melhor. Decidi não fazer o curso de tecnólogo
em informática
No final daquele ano, escolhi me matricular no cursinho do Colégio Objetivo de
Americana, pois acreditava ser um dos melhores da cidade. Matriculei-me no extensivo no
período da manhã, pois nos períodos da tarde e da noite trabalhava.
Em fevereiro de 2005, minha irmã mais nova e dois amigos, sendo um deles o Marcelo, um dos meus melhores amigos, voltavam de uma festa em São Pedro quando perderam a
direção do veículo, caíram em um pequeno barranco e colidiram de frente com uma árvore.
O Marcelo, que para mim era como se fosse um irmão, faleceu na hora e minha irmã ficou
gravemente ferida. Por sorte o meu outro amigo que estava dirigindo não sofreu praticamente nada e pôde pedir ajuda. Recebi a notícia na manhã seguinte, quando estava na casa
da minha namorada. Ouvir que o Marcelo havia morrido e que minha irmã estava em coma
foi sem dúvida a pior coisa que aconteceu na minha vida. Mesmo com tudo isso, tentava
não me mostrar muito abatido na frente da minha mãe, sabia o quanto ela iria precisar da
minha ajuda, pois, além da situação ruim da minha irmã, perder o Marcelo foi como perder
um filho para ela.
Mas se por um lado perdi um irmão, Deus havia me dado uma nova irmã; foi muito
bonito ver sua recuperação. Em poucos meses, mesmo com a fratura na bacia, já estava
andando, e nunca perdia seu senso de humor.
Depois de todos estes acontecimentos, achava que não teria mais forças para conseguir estudar aquele ano, mas mesmo assim resolvi tentar. Acho que ter falado com a mãe de
meu amigo Marcelo me ajudou a prosseguir nos estudos. Ela sempre falava que ele iria
iniciar a faculdade aquele ano. Por que eu, estando vivo, deveria desistir ?!!!
Os primeiros seis meses foram muito difíceis, não sabia quase nada e tinha dificuldades em acompanhar algumas matérias. Muitas vezes, chegava a dormir apenas quatro horas
por noite. Dormir em aula se tornou uma coisa absolutamente normal, mas graças a uma
mudança nos horários da empresa, consegui trabalhar em um horário um pouco melhor; isso
ajudou muito no meu desempenho em aula.
Foi um ano de grande aprendizado e boas amizades, tanto no cursinho, quanto na
empresa. No final do ano, fiz os vestibulares das melhores universidades do estado em
diferentes cursos, Engenharia Mecânica na UNICAMP e Unesp, Engenharia de Materiais na
UFSCar e Química na USP, estava muito indeciso e não sabia bem o que queria fazer. Ao
final desta estressante jornada, estava na lista de espera da USP e da UFSCar. Depois de
alguns meses, fui até o campus de São Carlos da UFSCar para manifestar interesse pela vaga,
e no mesmo dia, para a minha surpresa e alegria, já estava matriculado no curso de Engenharia de Materiais. Mas ainda havia um problema: estava trabalhando e teria que deixar a
empresa para a qual tanto lutei para entrar.
Não foi uma decisão fácil, mesmo sabendo que para o meu futuro certamente o curso
de graduação seria a melhor escolha. Vejo aquelas pessoas com quem trabalhei como sendo
uma segunda família, nunca esquecerei do apoio que tive nas decisões que tomei. Tenho
muitas saudades de todos.
O processo de desligamento da empresa foi um pouco complicado, não queria pedir
demissão, pois não receberia o dinheiro do Fundo de Garantia, dinheiro este que seria
fundamental para a minha permanência na universidade. Expliquei minha situação financeira a meu supervisor, e o mesmo enviou um e-mail para a gerência da empresa explicando
Universidade Federal de São Carlos
73
os fatos. O gerente respondeu que a política da empresa não permite que funcionários com
o desempenho bom sejam demitidos, exceto no caso de haver cortes por queda nas vendas,
o que não era o caso. Como nunca fui de desistir tão fácil dos meus objetivos, resolvi subir
até a sala do mesmo e explicar os fatos pessoalmente. Eu disse a ele que mesmo se a empresa
não me demitisse eu “pediria a conta”, pois estava decidido a estudar. Ele compreendeu e
disse que, se tivesse um filho na mesma situação que eu, o apoiaria a fazer o que eu estava
fazendo, e assim, fui demitido. Ele ainda me disse que as portas da empresa estariam abertas
para quando quisesse voltar.
A alegria de estar realizando mais um sonho faz com que a tristeza de estar longe das
pessoas de quem gosto quase que desapareça. E, até que eu tenha forças, continuarei lutando por um futuro melhor para mim e para as pessoas que amo!
74
Caminhadas de universitários de origem popular
Eu
Priscila Andrade Corrêa*
Dizem que a felicidade é um momento
Eeia ei....a
Se encontra em um sorriso em um desejo
Eeia ei......a
É estar em uma festa
É viver o que nos resta
É dizer pro mundo inteiro que acer...ta
É o amor
Dizem que a felicidade é uma rosa
Eeia ei......a
Que é linda porque é tímida e dengosa
Eeia ei......a
É sambar com um bolero
É viver tudo que eu quero
É dizer pro mundo inteiro que te a...mo... te
quero!
Art Popular
Pensar sobre mim e sobre a minha história nem sempre é algo legal. Lembrar de fatos
que causam riso, dor, alegria, saudades e perguntas. Perguntas que deixei de fazer por não
achar respostas tais como: Por que minha mãe ficou casada por 15 anos? Por que eu vi tudo
o que vivemos de uma forma tão diferente dos outros? A minha braveza é genética ou uma
auto-defesa?
Eu nasci dia 28 de dezembro de 1979, sou a quarta filha dos meus pais. Lembro que
morava na casa dos meus avós paternos e um dia, de madrugada, eu mudei para a casa da
esquina e que, muito ou pouco tempo depois, meu segundo irmão nasceu. Eu não lembro da
minha mãe grávida então acho que o que marcou foi ela ter sumido por um tempo e depois
voltado com ele em uma manta azul clara.
Aos seis anos eu fui para a pré-escola. Eu já reconhecia os números de 1 a 5, o nome da
minha irmã mais velha e da minha mãe, estava tão ansiosa pelo primeiro dia de aula que
assim que minha mãe entrou, de manhã, na sala onde dormíamos para chamar meus irmãos
para a aula, eu acordei. Lembro da escola grande de muro branco e portão cinza e da tia
Zênite que me ensinou as letras e os números no pré, e da tia Lúcia, que me ensinou a ler e
*
Graduanda em Pedagogia pela UFSCar.
Universidade Federal de São Carlos
75
a escrever, na primeira série. Eu estudava à tarde e ia para a Escola Estadual Prof. Paulo
Mendes Silva, toda feliz, pois em Jundiaí, onde nasci e morava, estudar o pré em uma escola
de estado era como um privilégio: considerava-se que as escolas da prefeitura eram para os
filhos das pessoas pobres que moravam na periferia e trabalhavam fora. A questão que eu
não sabia é que eu era tão pobre quanto todas as crianças da periferia de Jundiaí, só que
minha mãe ficava em casa.
O meu pai trabalhava como off-set; não sei bem explicar como era essa função ou se
durante o trabalho ele fazia alguma outra coisa. Sei que ele era responsável por finalizar a
impressão do Jornal de Jundiaí e depois do Jornal da Cidade, ele arrumava as máquinas
quando apresentavam problemas e era responsável por fazer tudo caber em uma determinada página. Ele começou a trabalhar em um jornal em Caieiras e era responsável pelas
mesmas coisas que já fazia em Jundiaí, além de produzir a página da coluna social.
Em Jundiaí, brincávamos só eu e meus irmãos no quintal de casa. Nos feriados e nas
férias, os meus primos iam para lá. Meu primo César, de Rincão-SP, por ser o mais velho, era
sempre o líder de nossas travessuras. Um dia nós fomos passear, ele pôs muita pimenta no
pastel e minha tia não deixou ninguém dar refrigerante para ele. Em outra ocasião, ele foi
assustar minha irmã imitando o clip de terror do Michael Jackson e ela quebrou o dente, nunca
ele apanhou tanto! Mas depois, pra variar, a gente riu. Dos primos de Rincão, eu me lembro
desde que me entendo por gente, mas dos de São Carlos, não. Uma tarde, eu estava dormindo
na casa da minha avó paterna, na cama da minha tia, que era também minha madrinha (um
bom lugar no mundo). Quando acordei, conheci os meus parentes de São Carlos: avó materna,
tia e primos. Tinha cerca de cinco anos e não lembro de tê-los visto antes.
Então, em 1988, nós mudamos para Caieiras e tudo na minha vida mudou também.
Deixa desaguar tempestade, inundar a cidade porque arde um sol
dentro de nós.
Queixas, sabe bem que não temos,
e seremos serenos
[...]
Deixa a chuva cair
que bom tempo há de vir
Quando o amor decidir
Mudar o visual trazendo a paz no sol
Que importa se o tempo lá fora vai mal
Que importa
Se há tantas lamas nas ruas (...).
Almir Guineto / Zeca Pagodinho
Eu estava na metade da 2ª série e a matéria que as professoras davam estava em pontos
diferentes, então eu iniciei uma dificuldade com a matemática que vem até hoje. Parei de
conversar em sala de aula por me sentir deslocada de um grupo que se conhecia desde o
jardim da infância e talvez porque inconscientemente não queria partilhar da minha situação
com ninguém. Ao chegar a Caieiras-SP, eu percebi que minha família não era tão normal
como eu sempre pensei: vi que não era certo o meu pai beber tanto, trair e bater na minha
mãe. Eu me fechei de tal forma que até hoje tenho dificuldade de fazer amigos.
76
Caminhadas de universitários de origem popular
Em Caieiras, as coisas eram bem diferentes de Jundiaí: eu ia para a escola com as
minhas irmãs, pois a minha mãe começou a trabalhar. Nossa casa ficava no pé de um morro
e a vizinha de cima convenceu meu pai a deixar a gente brincar na rua à noite. Meu pai não
gostava muito que nós brincássemos com os meninos da rua, então eles tinham que ir em
casa pedir permissão a ele, que às vezes não deixava.
Nós brincávamos de queima, esconde-esconde, imitar cantores com mímica, pegávamos argila na bica que passava no pé do morro e fazíamos nossos brinquedos. Era
divertido, em especial porque incluía mais gente além dos meus irmãos e nossas brincadeiras para poucas pessoas. O que deixamos de fazer e eu senti falta foi brincar de teatro:
eu e minhas irmãs encenávamos os clássicos da Disney para minha mãe, tia e avó assistirem. O meu irmão mais velho sempre cortava o “palco” trocando as letras das músicas da
Xuxa e nós brigávamos.
Lá, eu desenvolvi alguns amores: a música. Meu pai puxava uma escola de samba em
Jundiaí e em casa tinha uma caixa, um bumbo, um reco-reco e um violão. Ele tocava violão
e a gente cantava. Quando ele não estava “bão” todos os vizinhos sabiam: ele ligava o rádio
bem alto às 22 horas e tocava “Joga pedra na Geni” e Zeca Pagodinho com “se eu quiser
fumar, eu fumo, se eu quiser beber, eu bebo”.
Outro amor foi a leitura. Por meu pai trabalhar em um jornal, nós o recebíamos de graça e
líamos e, na terceira série, a escola abriu uma biblioteca que eu freqüentava sempre. Meu
primeiro livro foi O cachorrinho Samba na fazenda. Falando em jornal, quando ocorreu o
impeachment do Collor, eu estava passando uma temporada em São Carlos e não li e nem vi
nada, pois a minha avó não deixava ver TV. O Muro de Berlim caiu e eu não vi e nem li também.
Outra coisa boa era pescar. A minha mãe não gostava porque meu pai dizia que ia
jogar a gente no rio e nós fazíamos muita sujeira, mas quando ele não estava muito bêbado,
pescar era algo bem legal, a gente conversava, cantava, contava histórias. Depois da pesca
nós limpávamos o peixe e a minha mãe fritava.
No nosso quintal, tinha uma horta com couve, chuchu, almeirão e alface. Nós criávamos
galinha, pomba, codorna e marreco. Quando o dinheiro acabou, nós soltamos as aves menores,
os marrecos morreram e comemos as galinhas e seus ovos. Hoje, meu quintal não tem terra, tenho
orquídeas que ganhei e falo com elas...o povo diz que eu sou louca, mas eu sou é feliz!
Brasil
Mostra tua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim.
Cazuza / Nilo Romero / George Israel.
O dinheiro acabou porque, além da inflação da época do Sarney e do Plano Collor, o
meu pai deixou o emprego: como era o chefe da seção, ele demitiu um homem que havia
cometido um erro. Um dia, ao sair do jornal, ele estava no bar ao lado e o cidadão apareceu
com uma arma querendo atirar nele, pois “Onde já se viu um preto mandar um branco
Universidade Federal de São Carlos
77
embora?!” O sujeito conseguiu voltar ao jornal, mesmo estando duplamente errado, e meu
pai pediu demissão.
Em fevereiro de 1990, minha mãe falou que nós NÃO íamos estudar naquele ano.
Como assim?!! Nós tínhamos que mudar de casa, mas não tínhamos para onde ir, pois
ninguém queria ser fiador do meu pai. Todas as vezes que mudamos de casa foi pelo mesmo
motivo: despejo. Ele falava que pagar aluguel, luz, água e comprar material e uniforme
escolar era bobeira... voltamos a morar na casa dos pais dele, em Jundiaí, que na época
tinham três filhos solteiros. Porém, na Páscoa, a irmã casada dele, de Rincão, iria para
Jundiaí visitar minha avó. Como meu pai não queria que ela soubesse que tínhamos voltado para lá, fomos para a casa de um amigo dele chamado Henrique em Franco da Rocha.
Meu pai já tinha um emprego em uma ótima empresa em Jaguaré-SP e passava a semana na
casa desse amigo e ia de sexta feira para casa da minha avó. Ficamos na casa do Henrique
cerca de um mês, até ele começar a namorar e voltamos de novo para a casa da minha avó.
Em uma bela noite, já era tarde e meu pai tinha recebido o salário. “Alto”, teve a
brilhante idéia de ficar na cozinha com minha irmã mais velha e minha mãe, se exibindo
com o dinheiro. Meu tio passou e apagou a luz. Eu gelei. Meu pai era agressivo e se ofendia
facilmente. Imaginei os dois se pegando e meu avô passando mal. Agradeci a Deus por meu
pai já ter vendido as duas armas que teve. Graças a Deus, eles não brigaram assim e nós
levantamos “pra ir embora daquela casa de traidores”. Fomos a pé para a estação de trem
(cerca de uma hora de caminhada) e dormimos lá.
Basta pensar em sentir / para sentir em pensar
Meu coração faz sorrir / meu coração faz chorar
Depois parar de andar / depois de ficar e ir
Hei de ser quem vai chegar / para ser quem quer partir
Viver é não conseguir.
Fernando Pessoa
No dia seguinte, voltamos para a casa da minha avó, pegamos nossas coisas e documentos e viemos passar um tempo em São Carlos. Minha mãe nos deixou na casa da minha
avó materna, que eu tinha visto cerca de quatro vezes em toda vida.
Minha mãe trabalhava durante o dia em Jundiaí, e meu pai, em Jaguaré. Ao fim do dia,
eles se encontravam na Estação da Luz, em São Paulo, e eles alugavam o quarto mais barato
e seguro que podiam encontrar para dormir. Nós não tínhamos como falar com ela, que
vinha às vezes em um fim de tarde, lavava a roupa deles e voltava no dia seguinte. Minha tia
e minha avó ficavam bravas se eu chorava, mas é que eu queria minha mãe. Sei que é por isso
que hoje eu só choro se realmente perco o controle sobre mim.
Acho que ficamos lá cerca de seis meses. Naquele ano, teve uma greve de professores
então a companhia dos meus primos fez o tempo passar mais rápido. Meu pai conseguiu
alugar uma casa em Botazar Fidelis, um subdistrito de Franco da Rocha, e perto do Natal,
nós voltamos a morar juntos. Era um lugar muito pobre e nossa casa era uma das poucas de
tijolos por ali. Tinha no quintal um pé de figo e vários de banana.
Em 1991, eu voltei para a escola, fazendo a quarta série, e passei a odiar as férias, sou
muito mais um feriado prolongado. Um de nós sempre faltava à aula para ajudar minha mãe
78
Caminhadas de universitários de origem popular
a vender panos de prato de porta em porta em Jundiaí. Em alguma época do ano, o meu pai
parou de trabalhar por já estar completamente alcoólatra e essa era nossa única fonte de
renda e mudamos para um barraco rosa do lado da casa em que estávamos. Ele falava que, se
minha mãe tivesse vontade de trabalhar, nós ficaríamos ricos. Um absurdo.
Mesmo com toda a situação, ou dentro dela, em dezembro de 1991 minha mãe estava
grávida de 4 meses. Na primeira semana de dezembro, meu pai teve uma briga horrível com
minhas irmãs mais velhas e as mandou embora de casa. Foi com certeza o pior dia da minha
vida. Minha mãe percebeu que ou nós vínhamos embora ou meu pai iria matar todos nós,
então, em 17 de dezembro de 1991, nós fugimos de casa literalmente com a roupa do corpo,
pois já tínhamos encontrado as minhas irmãs.
Minha mãe foi à Delegacia da Mulher explicar o ocorrido, pois disseram que meu pai
podia alegar que ela nos roubou e conseguir a nossa guarda, mas ninguém fez nada por nós.
Nós vendemos nossos panos de prato, pedimos dinheiro aos conhecidos da minha mãe e,
depois de rodar a cidade de Jundiaí toda com medo de parar em um só lugar, fomos para a
estação esperar o trem que nos traria para São Carlos e saía exatamente às 00:01! Nenhum
minuto a mais ou a menos. Quando chegamos aqui, faltavam 10 dias pra eu completar 12
anos e saímos de casa no dia do aniversário do meu irmão mais velho. Presente.
Às vezes sinto o vento passar
E só de ouvir o vento passar
Vale a pena ter nascido.
Fernando Pessoa
No sétimo parto normal da minha mãe, apesar da correria da gravidez e dos 41 anos de
idade dela, o Jander nasceu saudável em uma tarde morna de abril. Quando ele tinha três
meses, eu deixei o meu primeiro emprego de babá para cuidar dele, pois a minha mãe
começou a trabalhar. Eu não sabia, mas isso me prendeu para sempre aos meus irmãos, eu
não podia ir à aula de educação física e nem fazer trabalhos e pesquisas fora da sala de aula.
Aos 13 anos, pelo convite de uma importante amiga, a Mirna, comecei a freqüentar a
Primeira Igreja Batista em São Carlos. Aos 14 anos, comecei a trabalhar o dia todo de babá
e a estudar à noite; os primeiros meses foram os piores por eu estar cansada demais e sem
ritmo pra tal correria. Aos 15 anos, eu me formei na oitava série e me batizei na mesma Igreja,
que freqüento até hoje. Foi sem dúvida uma das melhores coisas que eu já fiz na vida. Nela
encontrei pessoas de todos os níveis sociais, de analfabeto a doutor, de faxineiro a fazendeiro e isto ajudou muito na formação de meu caráter.
Ao acabar o ensino fundamental, fui fazer o médio em uma escola um pouco longe de
casa por não gostar da que tinha perto de casa; ao terminar, já tinha ouvido falar da FUVEST6,
mas não sabia direito o que era, então, comentaram que a Igreja Evangélica Projeto Raízes
perto de casa estava oferecendo um curso pré-vestibular comunitário e eu me matriculei.
Não levei o ano a sério mais decidi estudar e entrar na universidade pública.
O meu Deus é um Deus de milagre,
Não há limites para o seu poder agir
Realiza o impossível, para Ele nada é tão difícil
Universidade Federal de São Carlos
79
O maior milagre já operou em mim,
E o maior milagre quer operar em ti.
Ana Paula Valadão
Nos dois anos seguintes, fiz cursinho particular. Eu trabalhava fazendo faxinas e com
esse dinheiro pagava as mensalidades com desconto. Não passei, então fui estudar administração em uma escola técnica estadual em um curso que durou um ano e meio, e, ao terminar,
decidi tentar de novo o vestibular, pela última vez, fazendo o cursinho popular da UFSCar.
Eu ia com uma amiga até o centro pegar ônibus para casa e na época em que nós vimos o
cartaz de inscrição para o cursinho no ônibus eu não tinha como pagar. Ela se dispôs a usar
o próprio horário de almoço para, emprestando-me o dinheiro, fazer a inscrição. Quando eu
passei no vestibular, liguei para contar e ela chorou feliz por mim. A Lu também é negra e
paga uma universidade particular, ela e o marido sabem o quanto é difícil e o quanto vale
uma universidade pública.
Durante o ano passado eu mais orei do que estudei, tínhamos aulas também nos fins de
semana, conheci o Podrão, um cachorro bonito e fedido que mora na universidade e “assiste” às aulas. Estudei história mais que as outras matérias para passar em Ciências Sociais na
Unesp de Araraquara, que era minha primeira opção, e mesmo assim fiquei mal colocada e
arrasada. Também prestei Pedagogia na UFSCar mas quando me perguntavam do vestibular
daqui, eu dizia que só passaria por milagre. No dia que o resultado da Federal saiu, eu tinha
mais medo que esperança e fui direto ver:
Classificação Geral: 80
Situação: Consta na lista de espera
Eu comecei a chorar e a moça do meu lado na Biblioteca Municipal pensou que eu
passava mal, eu só chorava e dizia: EU PASSEI NA FEDERAL! Fui de lá pra casa da minha
irmã mais velha chorando e agradecendo a Deus. Mesmo que eu não conseguisse entrar
servia pra recuperar a auto-estima depois da reprovação na Unesp.
Minha irmã mais velha casou, a segunda tem um filho de 10 anos, a mais nova é uma
missionária. O meu irmão mais velho fez SENAI e trabalha com iluminação pública na
Prefeitura; o segundo acabou de perder o emprego, parece ser o que mais sofreu com tudo o
que houve e também ser o mais frustrado com as injustiças sofridas por um jovem negro no
Brasil; o mais novo está iludido com a idéia de ser jogador de futebol (ou não, ele realmente
é bom), mas não é fácil ele entender que mesmo tentando isso ele precisa ter uma outra
opção, pois nem todo garoto “bom de bola” vai pra Liga dos Campeões.
E a minha mãe fica no meio de tudo isso, tentando ou conseguindo ser feliz, trabalha
demais pro meu gosto e pra idade que tem. Do meu pai, eu só tenho notícias quando ele
passa na casa da minha avó em Jundiaí, e por medo dele ela não deixa a gente ir lá. É triste
porque meu avô morreu há nove anos e eu ainda não vi o túmulo, minha tia casou, teve uma
filha e eu ainda não conheço nenhum dos dois.
Eu não sei como vão ser esses quatro anos aqui, mas o que eu sei é que não posso
esquecer de onde eu vim e o que Deus fez por mim, sei que não seria quem sou se não fosse
a graça d’Ele na minha vida, apesar de tudo o que já vi e vivi.
6
Fundação Universitária para o Vestibular, que na época era responsável pela elaboração da prova da
Universidade de São Paulo – USP e Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.
80
Caminhadas de universitários de origem popular
Que eu possa sempre Te louvar, que eu possa sempre Te agradar
Ó Senhor, não deixe que eu volte atrás,
Que eu possa Te amar
Que eu não tenha outro Deus além de Ti, que eu possa sempre
cantar o Teu louvor
Sempre e pra sempre me mantendo em Seus caminhos
Que eu nunca perca a direção,
Vem, Senhor, e guia meu caminhos a cada dia,
Que eu possa cantar o Teu louvor.
Cristina Mel
Não posso deixar de agradecer a Deus por algumas pessoas especiais que Ele colocou
na minha vida e que são, de alguma forma, responsáveis pelo que sou: Tia Lucy e Pastor
Jarbas, Tia Mi e Carlão, Myriam e Mirna, Débora e Lucélio, Irmão Edson, exemplo de
homem e de servo de Deus
Durante a realização do nosso Seminário Local, percebi que precisava explicar por
que a minha vida não é contada de maneira superficial. É porque há tanta lama na rua, e eu
me importo. Escrevi tanto pensando em incentivar a seguir em frente quem, como eu, ouve
o tempo todo que não vai ser nada na vida e que terá irmãos tão beberrões e imprestáveis
quanto o pai. Trabalhei dos doze aos vinte e seis anos como doméstica em uma cidade
extremamente preconceituosa, e faço parte de um pequeno grupo de pessoas que o Conexões quer fazer maior: um grupo de pessoas que confiam, lutam e vencem. Que Deus me e
nos ajude nisso.
Universidade Federal de São Carlos
81
Caminhadas: trajetória de vida,
como releitura da realidade
Rafael Vieira *
Meu nome é Rafael Vieira, tenho 20 anos, nasci no dia 27 de junho de 1986 em Matão,
cidade do interior do Estado de São Paulo. Sou filho de Marlene Coimbra de Oliveira e Luís
Vieira. Tenho mais dois irmãos: Rodrigo, de 24 anos, e Bruno, de 7 anos. Felizmente,
costumo dizer que tenho uma outra família, uma família de coração, meus outros pais:
Maria de Lurdes e Benito e meus outros irmãos: Paulo, Carla, Carlos e Mara.
Digo que tenho duas famílias porque na época éramos vizinhos, e quando eu era
pequeno, Carla, a filha caçula de Lurdes e Benito, cuidava de mim praticamente o dia todo,
e dessa forma, cresci e acabei virando membro da família deles, sou sempre bem vindo em
suas casas e tenho todo respeito e admiração por cada um de lá. Agradeço enormemente a
eles por terem contribuído para minha formação, educação, cultura e me servirem quase
sempre como exemplo.
Na minha infância, pude compartilhar grandes momentos com os outros meninos da
rua, tínhamos quase todos a mesma idade, e isso contribuiu para que toda a noite fosse
fundamental brincar; a imaginação fluía e brincadeiras eram feitas sem grandes complicações. Nossas mães geralmente ficavam sentadas nas calçadas nos observando, típica vida
noturna do interior.
Estudei sempre em escolas públicas, e mesmo sabendo que o ensino básico em rede
estadual está comprometido e deficiente, consegui, para minha felicidade, encontrar professores
excelentes e com motivação, eu fazia o possível para ser sempre o melhor aluno da turma.
Logo no segundo colegial, comecei a trabalhar em uma metalúrgica, trabalho árduo e
pesado; sabia que ali não era o melhor trabalho do mundo, precisava ter algum dinheiro
para poder ajudar com os gastos de casa, e ali seria para mim a melhor maneira de fazer isso,
e assim conclui meu ensino médio no período noturno. Mesmo não tendo uma idéia bastante concreta sobre o vestibular, resolvi que me empenharia na preparação para prestá-lo. No
final do terceiro colegial, eu prestei pela primeira vez um vestibular, o da Unesp, acabei me
candidatando ao curso de Ciências Econômicas só por achar o nome bonito, obviamente eu
não passei. Hoje, eu acredito que se por um acaso eu tivesse entrado nesse curso, eu teria
desistido logo no primeiro semestre. Achei o vestibular a coisa mais difícil do mundo,
praticamente tudo aquilo que caiu na prova eu jamais tinha visto na minha vida, principalmente os conteúdos de química, física e matemática.
Como eu acabei praticamente zerando na prova de química, decidi participar da seleção para um curso técnico em Química em uma escola municipal em Matão, e assim, depois
*
Graduando em Química pela UFSCar.
82
Caminhadas de universitários de origem popular
de um tempo só estudando química, eu voltaria e prestaria vestibular novamente. Mas a
vida nos prega uma peça! Acabei me apaixonando pela matéria que eu mais odiava! Fiz um
ano inteiro de curso técnico, consegui estágio em um laboratório de análises especiais em
uma empresa de sucos e ali descobri o que eu realmente queria ser: químico. Não terminei
o curso técnico até hoje. Isso aconteceu porque uma amiga de colegial praticamente me
obrigou a prestar uma prova seletiva de um curso pré-vestibular popular em Araraquara-SP,
no CUCA1. Para minha surpresa, eu acabei passando nessa prova, fui classificado e tranquei
minha matrícula no curso técnico para poder iniciar o cursinho preparatório para os longos
e difíceis vestibulares que eu prestaria.
O ano de 2005 foi o ano em que cresci muito como pessoa. Levantava todo dia às 5:30
da manhã, pois trabalhava ainda na mesma metalúrgica, e voltava às 17:30. Quando chegava, apenas tinha tempo de tomar banho e pegar o ônibus para Araraquara, pois viajava todo
dia pro cursinho, já que Matão fica a 30 quilômetros de Araraquara.
Ali conheci pessoas grandiosas, cuja amizade guardo e mantenho até hoje, muitos
eram meus próprios professores, estudantes da própria UNESP dos mais variados cursos de
graduação, e também meus outros amigos e amigas que faziam o cursinho foram os grandes
responsáveis por eu ter continuado a estudar; havia dias que eu chegava do trabalho e não
tinha condições de ir assistir as aulas, precisava dormir para poder estar bem e sem sono nos
outros dias da semana, no tempo livre que tinha – horário de almoço e em especial os finais
de semana – me empenhava em estudar e resolver exercícios o dia todo, deixando de lado
algumas coisas de que eu realmente gostava, como sair para conversar com amigos, cinema,
vôlei, descontrair e sair daquela rotina tão desgastante da semana e que eu na realidade
odiava, trabalhava em um local que não me dava satisfação alguma, ia por necessidade e
não por vontade.
No cursinho, fui, na realidade, obrigado a fazer novamente o ensino médio em um ano.
Para mim não foi um cursinho para rever matérias e sim para aprendê-las. Como eu trabalhava, pude reservar certa quantidade de dinheiro para os vestibulares e tive oportunidade de
me candidatar a vários deles nas universidades mais concorridas do país, como USP,
UNICAMP, UNESP, UFLA2 e UFSCar.
1
Curso Unificado do Campus de Araraquara. O projeto CUCA é um curso preparatório pré-vestibular, sem
fins lucrativos, oferecido no Campus da Unesp de Araraquara com vagas para alunos egressos do ensino
médio de carência sócio-econômica comprovada. Concebido em 1993 com a projeção social de melhorar
a qualidade de vida do cidadão oferecendo-lhe as condições de formação superior para competir com o
mercado de trabalho qualificado. Os objetivos do projeto CUCA são: complementar os conhecimentos
gerais e específicos, em nível do ensino médio, visando-se preparar os alunos para ingresso no ensino
superior, preferencialmente em Universidades Públicas; proporcionar aos alunos da Unesp, a oportunidade
de promover e desenvolver a Extensão Universitária através da prática de ensino no exercício de cidadania;
favorecer o aprimoramento profissional em docência dos alunos da Unesp; conscientizar os graduandos
sobre a Mentalidade Solidária e Voluntária para a cidadania, despertar o espírito de cooperatividade e
associativismo social e compartilhar experiências; estimular a educação superior para o desenvolvimento
social nas camadas menos favorecidas e contribuir para o desenvolvimento econômico com recursos
qualificados de educação superior. [informações do site http://www.iq.unesp.br/cuca/quemsomos.php em
05 jan 2007].
2
Universidade Federal de Lavras/MG. Fundada em 1908, sob o lema do Instituto Gammon: “Dedicado a
glória de Deus e ao Progresso Humano”, a Escola Agrícola de Lavras, depois Escola Superior de Agricultura
de Lavras (ESAL) e, hoje, Universidade Federal de Lavras (UFLA). Oferece 10 cursos de graduação, 49
cursos de especialização a distância e 12 de mestrado e doutorado. [informações do site http://www.ufla.br/
em 05 jan 2007].
Universidade Federal de São Carlos
83
Felizmente, fui bem na maioria deles, mesmo não alcançando as notas de corte, eu me
senti feliz por ter um desempenho razoável, somente na UFLA e UFSCar é que consegui
realmente passar, na realidade indo para a lista de espera, pela qual fui chamado logo na
seqüência.
Eu me lembro do dia em que assinei a minha matrícula na UFSCar; foi um dia de
enorme felicidade. Pena que eu só pude comemorar essa tal euforia e felicidade com meus
amigos do cursinho, porque em casa, meus pais não esboçaram reação alguma, ou melhor, a
única reação que tiveram foi de susto ao me ver todo sujo de tinta e com a cabeça raspada e
também quando eu disse que eu estava indo morar em São Carlos. Mas enfim, não fiquei
triste por não receber os parabéns de meus pais, eles tinham uma visão muito simplista do
que era uma universidade, e muito menos sabiam o que era Química. Hoje em dia, a visão
deles mudou, acredito que eles estejam orgulhosos de mim; meu irmão mais velho parece
ter visto em mim alguma motivação e ele diz que está pensando em começar uma faculdade,
mesmo que particular.
E assim, em 2006, matriculado no curso de Química da UFSCar e morando em São
Carlos, vivo uma outra vida, uma vida universitária, participo de um projeto de extensão, o
Programa Conexões de Saberes, que é o motivo principal por eu estar escrevendo o Caminhadas. Sei que tenho muito que aprender, estou ainda no meu primeiro ano de graduação,
tenho mais quatro anos pela frente, e, com certeza, no futuro terei mais histórias pra contar...
Sei que a partir do momento que o empenho, a garra e a força de vontade são lideradas
por uma palavra mágica chamada perseverança, conseguimos transpor barreiras e criar uma
força (inexplicável) capaz de romper aquilo que tememos tanto e ver o produto dessa nossa
longa jornada. Olhar para trás e ver o resultado da difícil caminhada até a universidade
depois de tanta luta é realmente algo que fica praticamente impossível descrever usando
apenas palavras. Consegui concretizar um grande sonho, ou pelo menos boa parte dele; os
nossos sonhos tornam-se reais se nos empenharmos a buscá-los, não importa o quão longe
aparentam estar, é possível obtê-los se subirmos degrau por degrau.
84
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha história
Roberta Alexandra Silva de Oliveira*
Meu “corpo” nasceu em 1981, digo isso pois acho que eu senti que nasci em 1996,
quando tinha 16 anos, já que foi com essa idade que descobri a felicidade, porque até então
fazia tudo que os “outros” queriam.
Tive uma infância, se é que tive, muito perturbada; fui criada em um colégio interno,
convivia com muitas crianças que estavam nas mesmas condições que eu, só com uma
diferença: nem nos fins de semana eu via a minha mãe ou sequer algum parente ia me visitar.
A minha mãe só ía me buscar nos feriados, pelo que me lembro.
Se eu ficar contando muitos detalhes, talvez o leitor fique cansado da mesma forma
como eu fico quando estou lendo um livro que fica enrolado para terminar, então, vou
contar como foi minha fase na escola e alguns fatos que marcaram a minha vida.
Lembro-me de um fato muito importante: eu tinha mais ou menos 7 anos quando
minha mãe me tirou do colégio. Já tinha me acostumado e com o tempo senti muita falta,
pois lá estudava e tinha muitos amigos. Bem, naquele momento fiquei muito feliz, porém
não era para ela cuidar de mim, mas para eu cuidar do meu irmão que havia nascido. Foi
nesse momento que descobri que tinha um irmão.
Como tive que cuidar do meu irmão, só comecei a estudar aos 8 anos, graças aos
vizinhos que falavam para a minha mãe que eu precisava. Então, entrei na Escola Estadual
Aprígio de Oliveira.
Dos 8 anos aos 16, tive tempos difíceis. Vivíamos mudando de casa, pois, em 1990,
ocorreu a “crise econômica no governo Collor” e o pouco que tínhamos, a poupança que
minha mãe tinha guardado para comprar um lote, foi confiscada.
Comecei a trabalhar cedo; isso foi uma das coisas boas que me aconteceu, pois comecei a conhecer pessoas que davam bons conselhos.
Em 1997, recebi a notícia que considero umas das mais importantes: tinha passado no
vestibulinho para a Escola Técnica Estadual Presidente Vargas, do Centro Paula Souza.
Para mim, esse resultado foi uma expectativa de mudança de vida: “Até que enfim vou ter
uma profissão que me ajudará a crescer”. Por isso digo que nasci em 1996: (aproximadamente em dezembro): foi quando prestei o vestibulinho.
Em 2000, passados quatro anos, me formei técnica em edificações, porém sem serviço
fixo. “Doce ilusão! Pensei que ia conseguir progredir financeiramente e no entanto continuava na mesma”. Trabalhava de desenhista de dia e a noite de babá.
*
Graduando em Matemática pela UFSCar.
Universidade Federal de São Carlos
85
Grandes pessoas que conheci me influenciaram a fazer um cursinho e prestar vestibular
em universidade pública, pois jamais havia pensado em fazer faculdade, já que nunca teria
condições de pagar uma faculdade privada e me achava incapaz de passar em uma pública.
Fiz três anos de curso pré-vestibular no Cursinho da Poli1, sendo que no primeiro ano
pagava as mensalidades com meu salário e, no segundo e terceiro, consegui uma bolsa
integral, pois trabalhava lá. Passei em matemática na Unesp, campus de Presidente Prudente. Foi um dos momentos mais felizes da minha vida.
Porém, estudei somente dois anos. Neste período, morei em uma república de estudantes e meu irmão enviava dinheiro para me ajudar. Tínhamos combinado que eu me formaria
primeiro, com sua ajuda, e, depois de formada, eu o ajudaria a estudar também. No entanto,
ele decidiu entrar na universidade em 2005. Como a Unesp não oferecia auxílio suficiente
para alunos, eu não teria mais como me manter lá. Houve um período de greve dos professores e alunos; no retorno, reprovei em três disciplinas. Graças a Deus, sempre tive pessoas que
iluminavam meus caminhos, pois, sempre que estava chegando no “fundo do poço”, me
ajudavam. Muitas vezes pensei até em me matar, pois eram tantas as dificuldades e cobranças que pensava que seria melhor morrer.
Não posso esquecer de dizer que as amizades que fiz em Prudente são até hoje muito
especiais para mim, pois são amizades para toda vida.
Até que, quando ia largar tudo, uma amiga me falou que a UFSCar ia abrir vagas
remanescentes para transferência e daria para eu tentar. Interessei-me, pois a UFSCar é mais
próxima da minha casa e oferece auxílio para os estudantes de origem popular.
Em 2006, começo a estudar na UFSCar... daqui pra frente, não sei como as coisas irão ser,
a única coisa que sei é que Deus me deu e está me dando a oportunidade de lutar e correr atrás
dos meus objetivos, por isso, espero terminar o curso e prosseguir meus estudos e ajudar as
pessoas que estão passando pelas mesmas dificuldades que passei e mostrar que é possível
alcançar seu objetivos quando se luta e se faz o possível e o impossível para conseguir.
1
Escola Politécnica da USP. O Cursinho da Poli-USP, do Grêmio Politécnico, é um curso pré-universitário
popular com sede na Cidade Universitária – Capital. O Cursinho da Poli nasceu em 1987 por iniciativa do
então diretor da Escola Politécnica, Prof. Décio Leal de Zagótis, e do Grêmio Politécnico com o intuito de
ser um cursinho diferenciado, gratuito, voltado para a inclusão social, formação crítica dos estudantes e
democratização do acesso à universidade pública. Desde 2005, o Grêmio Politécnico e o Movimento pelo
Resgate do Cursinho da Poli vêm travando uma batalha jurídica para retomarem o Cursinho da Poli, que,
segundo informado no site, fora expropriado do Grêmio Politécnico por um grupo de ex-diretores da
entidade. Estes, ao invés de darem continuidade ao caráter social do Cursinho da Poli, teriam o transformado
num projeto lucrativo, mais preocupado com as demandas do mercado do que com a inclusão social. Em
2007, o cursinho da Poli abriu inscrições para o preenchimento de 100 vagas. Não há cobrança mensalidade
dos alunos. [informações do site http://gremio.poli.usp.br, em 05 jan 2007].
86
Caminhadas de universitários de origem popular
Apenas mais um brasileiro
Paulo Rogério de Oliveira*
Vou contar a história de Severino. Talvez porque a história de Severino seja bonita. Talvez porque a história seja semelhante e ao mesmo tempo diferente da de muitos
de nós.
Severino nasceu em 1980 e, como a maioria dos brasileiros, nasceu em berço pobre.
Era filho de pai aposentado por ter perdido as pernas após ser atropelado por um trem. O pai
não desanimou e virou alfaiate para sustentar a família. A mãe era doméstica e batalhadora,
assim como o pai. Severino era o penúltimo de nove filhos. A cama era dividida com outro
irmão. Aliás, cada cama era dividida por dois irmãos.
Na escola, morria de vergonha de dizer que não tinha dinheiro para material escolar,
de dizer que não tomava leite, que não comia carne. Contudo, sonhar era característica
marcante da família.
O pai tinha feito até a quarta série do fundamental, porém a vida lhe ensinou muitas
coisas. Entre elas que deveria fazer de tudo para que seus filhos estudassem.
Com esta visão do pai, o irmão mais velho se destacou na escola e a mudança de
destino parecia próxima. Após se dedicar aos estudos, entrou na UNICAMP, universidade
pública de renome.
Severino não tinha nem idéia do que era universidade. Só sabia que era bom, mas, para
que servia, não.
Como toda criança, Severino fazia da vida uma brincadeira. Brincava de futebol,
bolinhas-de-gude, pega-pega.
O irmão de Severino se formou na universidade e junto com outro irmão, que tinha ido
para a “cidade grande” havia pouco tempo, levou a família para a cidade de Campinas
propiciando uma nova vida para todos.
Este irmão, pelo qual Severino tem grande admiração, apoiou a todos que queriam
estudar, trabalhar, enfim, fazer mudar sua realidade.
Com a ajuda desse irmão, nosso personagem estudou. Terminou o colegial e ao mesmo tempo fez curso técnico. Passou a trabalhar, a crescer...
Problemas na estrutura familiar, drogas na família, amigos que seguiram caminhos
considerados errados. Tudo isso contribuiu para a formação do homem Severino.
Como uma novela, a história de Severino sempre tem uma emoção nova. Aos 18 anos,
ele leva o pai para ao hospital. O pai tinha febre. Mal sabiam Severino e seu pai que aquilo
era o resultado de um princípio de pneumonia, que, contando com a fragilidade que a idade
*
Graduando em Terapia Ocupacional pela UFSCar.
Universidade Federal de São Carlos
87
conferia ao pai, foi implacável. Aos dezoito anos, pela primeira vez sentiu a perda de
alguém de quem gostava. Alguém próximo e querido.
A vida continua. Trabalhando como técnico em telecomunicações, descobriu que
queria fazer o curso de Terapia Ocupacional. Era o ano de 2000. Novamente o destino
parece jogar contra. Desistiu da idéia de fazer curso pré-vestibular e prestar o vestibular por
um tempo, pois agora era a mãe que estava doente.
Alterações de comportamento, feridas no corpo, inchaço. Passou-se um ano e não se
descobria o que causava este transtorno. A irmã do meio, que era a acompanhante fiel da
mãe, precisou brigar com os médicos para que estes parassem simplesmente de dar remédios
para dor e sim, buscassem o motivo da mãe estar com dor. Finalmente, após quase um ano de
idas e vindas e de brigar no hospital, saiu o diagnóstico: Hepatite C. O estágio da doença era
avançado e o fígado da mãe de Severino estava em mau estado. Começou agora um luta
contra um mal que não dependia só da família de nosso personagem. Era necessário um
transplante de fígado e a tentativa, agora, era de manter a saúde da mãe de Severino estável
até que aparecesse um doador.
A família de Severino decidiu aproveitar a companhia da mãe. Após fazer valer a pena
todos os momentos que passaram juntos. Após quase um ano de guerra contra a doença e de
espera por doador de fígado. Após várias noites vendo sua mãe chorar. Após quase um ano
de medos e incertezas a mãe também se foi. Era setembro de 2002, mesmo mês em que o pai
morreu, três anos antes.
A família perde seu segundo pilar fundamental e agora todos esperam quem vai ser o
primeiro a sair de casa. Não tinha mais os dois pilares que reúnem a família e a mantêm
unida sob o mesmo teto.
Tentando se adaptar à nova realidade, todos procuram agora uma nova motivação
para continuar tocando suas vidas.
Um dos irmãos de Severino passa a incentivá-lo a fazer curso pré-vestibular e, enfim,
tentar o curso de Terapia Ocupacional. Com o apoio dos irmãos, mesmo dormindo em meio às
aulas no cursinho, Severino vai em frente e presta o vestibular para entrar na universidade.
O que você, que está lendo esta história agora, imagina que aconteceu? Severino
estudou em escola pública, tem uma história de vida nada fácil, trabalhava e estudava...
Quais chances ele teria? Ele teria alguma chance?
Provavelmente você pense que deu tudo errado, que ele não teria chances. Como
disse, a desesperança não fazia parte da vida da família de Severino.
Hoje, Severino, no terceiro ano de Terapia Ocupacional, em uma universidade pública e gratuita, de renome, escreve esta história. O objetivo não é fazer o leitor sentir dó e sim
mostrar que as coisas são possíveis se quisermos.
Podemos ficar lamentando nossa vida ou usar nossa história em nosso favor. Depende
da gente. Por mais difícil que pareça é possível. O Severino que aqui escreve é prova disso...
88
Caminhadas de universitários de origem popular
Memorial
Sérgio Ricardo do Nascimento Neto*
Aquela pernambucana veio ainda recém-nascida, já que com a morte da mãe durante
o parto e a falta de recursos do pai para criá-la, fora entregue a uma amiga da família que
viria para São Paulo. Sua infância foi extremamente sofrida, trabalhando desde os cinco
anos de idade, foi privada da oportunidade de estudar e por muitas vezes vitimada pelo
preconceito e violência física daquela que a adotou.
Aquele pernambucano veio de uma família tipicamente nordestina na década de 1960,
com índice de natalidade elevado e pobreza. Como um dos irmãos mais velhos, teve que
trabalhar desde pequeno para ajudar no sustento dos demais. Como outras milhares de
famílias flageladas pela pobreza, a sua veio buscar uma vida mais digna no Sudeste, quando
ele tinha dezoito anos.
O encontro deles não demorou a acontecer; e daquela amizade brotou um relacionamento. A vinda daquelas famílias para São Paulo, mesmo objetivando uma vida com condições mais dignas, não teve os resultados esperados.
O casamento já começou com sérios problemas financeiros e uma casa muito humilde,
reflexo da crise social da época e do baixo índice de escolaridade. Algum tempo depois, em
1983, nascia o ser que vos fala.
Com mais uma pessoa em casa, de certo a situação econômica não melhorou a curto
prazo. Quando, ele pedreiro e ela doméstica, já não conseguiam mais arcar com o aluguel e
com as contas do mês, surgiu a “Vó Teresa”. Ela ofereceu sua casa de praia para que fôssemos caseiros em longínquos 1988. Essa senhora fora a avó que me havia faltado até então.
Carinho, segurança, afeto e comidinhas gostosas foram coisas que não imaginava que uma
avó seria capaz de nos dar. Foi ela também quem conscientizou minha mãe sobre a importância da educação para o futuro do seu mais novo neto.
Essa pessoa maravilhosa não demorou muito a nos deixar, falecendo em 1991. Certamente, um dos momentos mais tristes da minha vida. Porém, sua lição foi seguida religiosamente, e por mais difíceis que fossem as situações financeira e social da família, minha mãe
nunca me privou do direito de estudar, além de não permitir que eu trabalhasse.
Com o passar do tempo, os problemas de alcoolismo do meu pai foram se agravando.
Não foi nada fácil ver aquele habilidoso mestre de obras caindo em desgraça por causa do
álcool, e sua saída de casa acabou encerrando um ciclo na minha vida, quando forçadamente
teria que amadurecer.
*
Graduando em Engenharia Civil pela UFSCar.
Universidade Federal de São Carlos
89
A superação desse trauma levou um bom tempo, e aos 15 anos de idade eu já me via
com obrigações de um chefe de família; gerir rendimentos e contas, manutenção de casa,
planejar um futuro melhor e sustentar psicologicamente aquela mãe maravilhosa eram meus
deveres. Para um garoto nessa idade, não é nada fácil ver os amigos se divertindo e muitas
vezes não acompanhá-los. Até então não havia nada mais importante que o futebol no
“campinho”, as brincadeiras de “esconder”, que por infinitas vezes invadiram as madrugadas, os campeonatos de videogame e o “bets” (você sabe o que é isso?). Aos poucos, as
responsabilidades foram chegando e fui virando um mero expectador da melhor época de
nossas vidas. Dói saber que aquele campinho já deu lugar a um prédio, que já não é mais
seguro brincar à noite e que a maioria dos nossos “sucessores no paraíso” já não sabe o que
é “bets”...
O sonho de fazer faculdade, que estava adormecido pelas dificuldades, foi reavivado
pelo professor Ênio, que lecionava História, um grande amigo do Ensino Médio. Este
grande sujeito mudou a mentalidade dos alunos daquela escola, mostrando-nos que a má
qualidade do ensino público não era desculpa para que não lutássemos por uma vaga numa
universidade de qualidade. E assim foi, vários dos seus alunos formandos de 2001 conseguiram ingressar em boas faculdades. Mais do que essa conscientização relativa ao vestibular, o Ênio trouxe cultura à escola... visitas a museus, exposições e feiras culturais eram
eventos que não constavam no calendário acadêmico, e com os quais começávamos a
descobrir um novo mundo... mais do que um mestre, foi, e é, um grande amigo que certamente estará na minha formatura!
Escolhido o destino (a paixão pela engenharia), faltava agora o caminho a percorrer.
E para um aluno da escola pública paulista esse não seria nada curto e tranqüilo. A Escola
Estadual Benedito Calixto foi minha segunda casa do Ensino Fundamental ao Médio.
Fomos a última turma que cumpriu todos os ciclos lá, e acabamos sendo vítimas e testemunhas oculares da decadência daquela que fora a melhor escola da cidade por quarenta anos.
O fim do Ensino Médio e o início da odisséia rumo à universidade coincidiram com o
nascimento da pequena Vitória, em 2002. Com isso, o dinheiro que estava reservado para o
curso pré-vestibular fora gasto com a saúde da minha irmã. Naquele ano, estudei por conta
própria, com livros retirados da escola, na ilusão de que aquilo seria suficiente para passar
no vestibular. Triste engano... reprovação no vestibular da UFSCar, único cuja inscrição
tive recursos para pagar, e o que mais desejava.
Reconhecendo o meu esforço, em 2003 os filhos de “Vovó Teresa” financiaram um
cursinho particular. Não os decepcionei e fui aprovado na UNIFEI e UFRGS1, em Engenharia Elétrica. Mas o grande sonho era a UFSCar, e mais uma vez não conseguira. Conforma-
1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul/RS. A história da UFRGS começa com a fundação da Escola de
Farmácia e Química, em 1895 e, em seguida, da Escola de Engenharia. Assim iniciava, também, a educação
superior no Rio Grande do Sul. Ainda no século XIX, foram fundadas a Faculdade de Medicina de Porto
Alegre e a Faculdade de Direito em 1900. Mas somente em 28 de novembro de 1934, foi criada a Universidade
de Porto Alegre. O terceiro grande momento de transformação dessa Universidade foi em 1947, quando
passou a ser denominada Universidade do Rio Grande do Sul, a URGS, incorporando as Faculdades de Direito
e de Odontologia de Pelotas e a Faculdade de Farmácia de Santa Maria. Posteriormente, essas unidades foram
desincorporadas da URGS, com a criação, da Universidade de Pelotas e da Universidade Federal de Santa
Maria. Em dezembro de 1950, a Universidade foi federalizada, passando à esfera administrativa da União.
[informações do site http://www.ufrgs.br, em 06 jan 2007]
90
Caminhadas de universitários de origem popular
do, fui para Itajubá. Por bem ou por mal, não me contentei com um sonho pela metade e a
decepção pelo fracasso em São Carlos me causou depressão, e, no fim do primeiro semestre
de 2004, voltei para casa sem uma decisão sobre o que faria da vida a partir de então.
Minha mãe, como sempre, não me deixou desistir... e mais uma vez de volta ao cursinho, só que agora com recursos próprios e mensalidade subsidiada pelo proprietário em
troca de aulas de reforço aos demais alunos. Não havia tempo a perder, afinal já era junho de
2004, portanto, chegava a estudar 18 horas por dia. Eu e mais três amigos da época do
colégio formávamos um grupo de estudos diariamente. A ajuda e o companheirismo destes
foram tão importantes quanto as aulas do cursinho. E a nossa vitória só seria completa se
todos alcançassem seus objetivos, e de fato foi o que aconteceu. Enfim, consegui passar no
vestibular da UFSCar e nas outras três públicas do Estado... junto com a alegria veio um
sentimento de dever cumprido, afinal foram inúmeras as dificuldades e coisas de que tive
que abrir mão para poder alcançar esse sonho... certamente poucas são as pessoas que
cruzam aquela portaria todos os dias e sentem o que sinto...
Os três anos que separam o fim do Ensino Médio do ingresso na UFSCar não representam um hiato na minha vida. Pelo contrário, com uma família estabilizada, pude pela primeira vez pensar em mim, na minha evolução pessoal, concretizei certos valores e ganhei
uma irmã. Esta é a pessoa mais importante da minha vida, que vi nascer e por quem o
coração fica apertado quando diz: “– Di, estou com saudades...” ...nossos encontros sempre
são regados com salada de morango, uma outra paixão desses dois irmãos.
Ah, a “Tia Lúcia”... um outro anjo na minha vida... há pessoas que vêm ao mundo para
cuidar de outras... e com certeza essa pessoa tão especial veio proteger minha família.
Tenho orgulho em dizer que ela representa para minha irmã o que “Vovó Teresa” fora para
mim. Ela é uma das pessoas “culpadas” por hoje eu estar aqui, não só financeiramente, mas
também afetivamente, pois esteve ao nosso lado nos momentos mais difíceis.
O caminho foi árduo até aqui, e certamente será mais ainda a cada dia... cansaço,
saudade, escassez de recursos são tão pequenos frente ao que aquela Maria passou na vida,
que se não fosse por desejo, eu teria que continuar por gratidão a ela nessa peleja.
E por que Engenharia Civil? Por culpa do Sérgio pai... sim, desde garoto o acompanhava em seus trabalhos e via extasiado o que aquele homem, sem nenhum diploma, era
capaz de fazer.
Uma das melhores sensações deste período da vida são as “visitas” àquela casa de
“Vovó Teresa”, onde minha família ainda mora... imagino que ela esteja feliz, afinal a semente
que plantou já está dando frutos. Voltar para casa também traz tristezas ao ver que aqueles
velhos amigos pararam no tempo e alguns, infelizmente, foram parados pelo mesmo...
Este sonho não acaba aqui e, de fato, talvez nunca acabe... no mínimo, ainda preciso
pendurar meu Diploma na sala da casa que eu vou construir para a Dona Maria e fazer por
alguém o que “Vovó Teresa” fez por mim...
Universidade Federal de São Carlos
91
Driblando adversidades
Sinvaldo Martins de Souza*
Três meses se passaram desde o início das atividades no Conexões de Saberes. Tão
pouco tempo nessa caminhada e bastantes frutos já colhidos, outros ainda por colher. Responsabilidade, respeito, liderança e reconhecimento são alguns desses frutos.
Dentro deste programa de dimensões nacionais, no nosso Conexões existem duas
vertentes que guiam os trabalhos, uma mais formal: reuniões para decisões administrativas,
por exemplo, aquelas em que debatemos o que foi feito; como, quando e onde serão os
próximos trabalhos, etc.. A outra, menos formal, mas de igual importância e valor para o
bom desenvolvimento do programa como um todo, se intitula: Caminhadas, A história da
vida como releitura da realidade, ou simplesmente “Caminhadas”.
Dia de “Caminhadas” é dia de alegrias, de risos, de histórias e reflexões; não que os
outros não sejam, mas no “Caminhadas” é diferente, o clima, a energia que circula é outra.
Já entrevistamos, pesquisamos, confeccionamos cartazes e brincamos, isso! Brincadeira de
criança mesmo! Pular corda, “amarelinha”, “queimada”, pique-bandeira e outras mais.
Agora a tarefa é: Contar um pouco da nossa trajetória de vida, utilizando para tanto
fotografias como recurso principal.
É 1985, este é o ano, momento importante da história brasileira. Neste ano começam
a surgir os primeiros resultados do Movimento Diretas Já. O povo está eufórico, o Brasil está
prestes a sair de um dos episódios mais escuros da sua história. Enquanto isso, no interior
mineiro, na região do Vale do Jequitinhonha, numa cidadezinha inexistente nos mapas da
época nasciam os dois últimos integrantes da prole de um casal de lavradores, Cecílio e
Valdina, que agora passaria a somar nove pessoas no total.
Nasci numa cidade, mas durante sete anos o meu lar foi na zona rural. Foram tempos
difíceis, porém muito felizes. Fazenda Santa Rosa, esse era o nome do lugar onde eu morava.
Distante de tudo e de todos, um lugar encantador com seus córregos de água cristalina e
boqueirões de densa mata, um lugar de muitas estórias e mistérios, habitada por gente
simples e encantadora. Hoje, infelizmente a fazenda está desmembrada e cercada de arames
por todos os lados, mas aquela é a Santa Rosa que guardo no fundo de minha memória, os
parentes todos reunidos e felizes por fazerem parte daquele lugar, as brincadeiras, enfim,
momentos de plena felicidade e contentamento.
Por época de minha estréia neste mundo, minha mãe apresentava cerca de quarenta e
dois anos e o meu pai já havia presenciado aproximadamente cinco décadas de intensos
verões. Não sei se foi por causa da idade avançada de meus genitores ou algo do gênero, eu
e o Silvano, meu irmão gêmeo, tínhamos uma saúde um tanto debilitada. Devido à falta de
*
Graduando em Matemática pela UFSCar.
92
Caminhadas de universitários de origem popular
médicos e um sistema de saúde ineficaz, inúmeras vezes meus pais tiveram de sair conosco
às pressas para a cidade em busca de tratamento e medicamentos. Como diz a minha mãe,
graças a Deus, muitas promessas, e mingau de puba (uma espécie de polvilho, de mandioca,
mais grosso e com mais fibras), escapamos.
Como havia de ser, a vida continuou. Meus pais e irmãos trabalhavam na roça; eu, meu
irmão e alguns amigos aproveitávamos a fase de infância; brincar de fazer bichinhos de
barro e tomar banho no córrego era a melhor parte. Enquanto os outros trabalhavam, alguém
ficava em casa para cuidar da comida, geralmente minha avó Maurícia ou “Mãezinha”,
como carinhosamente a chamávamos, e minhas irmãs mais novas. Naquele tempo, mistura
e arroz eram coisas pouco presentes em casa, no entanto isso não deixava a comida menos
gostosa, pois na roça sempre se dá um jeitinho; outra coisa é que, quando se está com
vontade de comer mesmo, uma simples farofa de feijão e um cortado de mamão verde é o
melhor prato do mundo. Neuza e Idalice, apesar de muito novas, já eram responsáveis por
preparar o almoço para aqueles que viriam comer e levar a comida para o restante que estava
trabalhando. O momento do almoço era sempre bom, na hora de machucar o feijão (depois
de cozido, bate-se com um pilão pequeno, no caldeirão, quebrando os grãos), eu e Silvano
ficávamos por perto, espiando, esperando o bolinho (de feijão machucado) que elas sempre
nos davam.
Como em toda família, na minha havia uma pessoa responsável por zelar por todos.
Minha avó era a matriarca, já de idade avançada era a responsável por nos cuidar, na verdade era uma coisa mútua, ela dava carinho, atenção e alguns sermões também; ela cuidava da
gente e nós dela. Grande chefe foi essa vó, por longos anos ela substituiu meu avô, que,
segundo ela contava, quando minha mãe ainda era criança saiu de casa e não se sabe o
porquê, nunca mais voltou. Mesmo assim ela permaneceu forte, criou sozinha minha mãe e
com a pequena aposentadoria que recebia ajudou a criar e educar nove netos.
Com o passar do tempo, meus irmãos cresceram, e mesmo com pouca ou nenhuma
instrução saíram para o mundo, em busca de trabalho; a casa ia ficando cada vez mais vazia,
a última a sair tinha apenas quinze anos. Como era bom ver a casa cheia, como eram boas as
brincadeiras, as brigas e as histórias de meter medo que eles contavam para ficarmos quietos
ou irmos dormir.
Irmos à cidade era coisa rara, incontáveis vezes chorei por causa disso. Sexta-feira era
o dia em que se começavam os preparos para ir à feira: procurar os animais de carga e
prendê-los durante o dia e de noite arrumar a carga de goma, milho, feijão ou farinha de
mandioca feita durante a semana, para, no sábado de madrugada, antes do sol aparecer,
partir rumo à cidade para vender as coisas e trazer óleo, açúcar, arroz, sal e, caso sobrasse
algum dinheiro, chinelo ou camisa.
Sábado à tarde era sempre um momento de grande expectativa, será que teria algum
brinquedo ou presente? Quais as novidades da cidade? Se algum de nós (crianças) fosse, era
obrigação contar para os outros os mínimos detalhes da viagem. Se após o retorno notássemos algum embrulho diferente, a curiosidade e a expectativa aumentavam mais ainda.
Quando havia alguma coisa, era uma alegria tremenda, caso contrário, ficávamos emburrados, fazíamos pirraça e íamos dormir mais cedo. No outro dia, já havíamos esquecido tudo
e retornávamos à arte de brincar.
O tempo estava passando, a cada dia as preocupações aumentavam, não as minhas,
mesmo porque isso ainda não era da minha alçada; mas era dos meus pais, especialmente da
minha mãe.
Universidade Federal de São Carlos
93
Em 1992, completaríamos em junho sete anos. Era chegada a hora de ir para a escola,
contudo esse não era o único problema que atormentava os adultos. Naquela época, não
existia nenhuma instituição de ensino onde morávamos. Talvez por sermos os últimos,
minha mãe se preocupava mais e tinha consciência de que, diferentemente dos outros,
teríamos de estudar. Uma grande ruptura estava por acontecer, precisaríamos ir para a cidade, enquanto as questões iam e voltavam: Onde morar? Como conseguir o sustento, o
dinheiro do material escolar?
Então, inevitavelmente, mais uma vez a família foi dividida, eu, meu irmão, e nossa
mãe fomos para a zona urbana, enquanto meu pai e minha avó ficaram no campo. A princípio íamos e voltávamos todos os dias. Conforme nos acostumávamos, essa jornada se tornava menos freqüente. Mãe começou a trabalhar, na meia (divisão da colheita, metade para o
proprietário da terra, metade para o trabalhador), numa fazenda em torno da cidade. Nesse
meio tempo, meus irmãos se juntaram e compraram uma casinha para ela e meu pai, o qual
ia sempre aos finais de semana levar algumas coisas para vender na feira.
Meu primeiro dia de aula foi um misto de vergonha, ansiedade e medo, sempre dava
aquele friozinho na barriga, coisas típicas que precedem qualquer experiência nova. Uma fronha de travesseiro amarelo-mostarda funcionou como nossa primeira bolsa para levar o material,
eu segurava numa ponta, meu irmão na outra e lá íamos para a escola. Morríamos de vergonha.
Tudo era diferente, havia muito barulho, a professora falava alto, não via a hora de ir
pra casa. Nessa fase, conheci aqueles que viriam a ser os meus melhores amigos, amigos de
infância. Com eles, aprendi a jogar futebol, andar de bicicleta, bastão e tantas outras coisas.
Mas também tive minhas primeiras brigas fora de casa.
Cada série que se iniciava era um friozinho na barriga, o maior deles ocorreu quando
me disseram que na quinta série teríamos no mínimo cinco professores diferentes.
Muita coisa se transformou nesses cinco anos que se passaram, minha avó veio
morar conosco e um outro irmão voltara de São Paulo para morar conosco também. Mãezinha teve um derrame cerebral e ficou paralítica, e meu irmão que voltara de São Paulo
estava tendo problemas relacionados ao álcool. Para piorar, meus pais que bebiam um
pouco começaram a exagerar nas doses. Em alguns dias, a situação ficava insuportável,
minha vontade era a de ficar mais na rua e com os amigos que em casa. A falta de paciência
de minha mãe para com a minha avó e a de meu pai para com o meu irmão e a pouca
comida em casa tornavam o clima pesado, tudo isso me incomodava muito. Apesar de
tudo, em nenhum instante eles deixaram de cumprir as obrigações como pais de família.
Aos poucos, as coisas voltaram ao normal, reconheciam que essa situação não era nada
saudável para uma boa convivência familiar, minha mãe conseguiu reconhecer a sua
responsabilidade e novo desafio de cuidar da minha avó. Pai ainda não chegou a esse
nível, mas está tentando.
Passadas essas turbulências, as coisas corriam bem até que, em junho de 1998, numa
manhã após festas juninas, acordo com minha mãe chorando muito e várias pessoas em
casa, logo fiquei sabendo que Mãezinha amanhecera muito mal. Entre uma conversa e
outra, ouço meu pai dizendo que desta, provavelmente, ela não passaria. Na manhã do dia
seguinte, veio a notícia: ela havia falecido. Considero esta como uma das situações mais
tristes já vivenciadas em toda a minha história, um vazio inefável tomou conta de meu ser
e, mais tarde, da casa por inteiro. Um ano depois a dor continuava, hoje ainda existe uma
lacuna causada por esta imensa perda que o tempo tornou suportável.
94
Caminhadas de universitários de origem popular
Entre altos e baixos a vida continuou. Em 2001, iniciei o ensino médio, em questão de
três anos terminaria os estudos. Nesse intervalo de tempo, a preocupação de minha mãe já era
visível, ela previa e temia este momento, pois sabia que um lugar com poucas oportunidades
como era Fronteira dos Vales não nos seguraria por muito tempo. Eu também me preocupava
bastante, no último ano levava horas para dormir, pensando em que fazer após o término dos
estudos, ir ou não embora, deixar meus pais sozinhos. A parte emocional falava alto, mas
obedeci à razão, ela me dizia que, apesar de todas as variáveis, o melhor seria partir.
Acabados os estudos, surgiu uma oportunidade. Meu pai precisaria fazer alguns
tratamentos em São Paulo, eu logo me ofereci pra ser o seu acompanhante. Foi fácil
convencê-los, pois ele não sabe ler nem escrever. Ficou combinado assim; aliás, eu combinei comigo mesmo, se surgisse alguma coisa, ou seja, um emprego, eu ficaria, caso
contrário, não. Acabei quebrando este contrato.
Em 2004, chegamos a São Paulo. Um mês depois, pai estava voltando sem a minha
presença.
Instalei-me na casa de uma irmã e imediatamente comecei a procurar por emprego.
Saía pelo menos duas vezes por semana nessa busca, com uma pasta debaixo do braço e a
esperança de conseguir ao menos uma entrevista, o que dificilmente ocorria. Caminhava
o dia todo. No final da tarde, voltava para casa exaurido, o pouco dinheiro que eu conseguia no trabalho informal guardava para necessidades urgentes, por este motivo não
gastava com transporte.
Eu me sentia super desconfortável por depender de outros ainda que fosse de parentes.
Então tomei uma sábia decisão; voltar a estudar. Sem condições de pagar um curso prévestibular, comecei a estudar por conta própria com o pouco material que eu trouxe e outros
emprestados. Minha rotina era procurar trabalho durante o dia e à noite estudar. Meses se
passaram até eu conseguir me inscrever para participar de um curso pré-vestibular popular,
do MSU, Movimento dos Sem Universidade. No cursinho, as aulas funcionavam sábado o
dia todo e domingo de manhã.
Final de 2005 foi um período de atividade intensa, finalmente consegui emprego em
uma lanchonete. Estava feliz da vida, a remuneração era pouca, mas, com as latinhas de
refrigerante que eu levava e vendia, dava pra tirar um dinheirinho. Ia para o serviço, chegava meia-noite, estudava até as 3h da manhã, acordava às 8h, estudava até as 3h da tarde,
depois ia trabalhar novamente. Uma rotina inalterada de segunda a segunda.
Os vestibulares chegaram, como havia prometido pra mim mesmo, prestei somente
para as universidades onde consegui isenção da taxa, ainda que sem muita confiança. Dos
quatro vestibulares, consegui passar em um, justamente naquele que mais desejava, o vestibular da Universidade Federal de São Carlos.
Vi o resultado na Internet, num telecentro de São Paulo. Mesmo sendo uma sexta-feira
chuvosa, não hesitei, subi um escadão correndo e cantando. Cheguei em casa ofegante e
todo molhado. Dei a boa notícia, mas não acreditaram muito. Imediatamente, comecei a
arrumar as malas e a montar os planos, só assim a “ficha caiu”, a minha e deles, assim, todos
se convenceram do que eu disse. No dia da matrícula, vim “de mala e cuia”, dessa maneira
cheguei à Universidade e no Conexões.
Ano de 2006, há dois anos e meio estou longe de casa, mal posso esperar para voltar e
rever todo mundo. Mãe, Pai e os amigos, sentir como é bom estar novamente em minha
pequena, maravilhosa e aconchegante Fronteira dos Vales-MG.
Universidade Federal de São Carlos
95
Uma senhora história
Symone Mattos Cremonini*
Bom, vou contar a história de Symone, uma garota que desde pequena, sempre teve
que ser muito independente pela ausência dos pais. Eles nem eram casados e ela nasceu em
São Paulo, Capital, onde moravam na época. Depois de três anos, pela primeira vez, foi
madrinha de honra, mas foi de seus pais, que haviam resolvido se casar.
Seus pais sempre trabalhavam muito, e como não tinha quem tomasse conta dela,
ficava todas as tardes sozinha no apartamento com apenas 5 anos. Quando ela tinha 6
anos, sua mãe engravidou de seu irmão e logo houve a morte de seu avô. Seu pai,
inconformado, resolveu se mudar com a família para a cidade de Santa Cruz do Rio PardoSP, para a revolta de Symone, que nunca concordou, pois achava que ele deveria se
preocupar com o futuro de seus filhos, mas ele queria ficar mais perto da avó, que agora
estava sozinha.
Nada mudou para Symone, pois sua mãe teve que correr atrás do tempo perdido,
estudar, trabalhar, e seu pai, exercendo a função de militar e açougueiro, e ambos ficando
fora o dia todo. Como ainda tinha irmãozinho (Ricardo), era ela própria que cuidava da
casa, com apenas 7 anos. Mas sempre Symone e o irmão ficavam na casa de sua avó, que os
deixava livres para brincar o dia todo na rua, de pega-pega, esconde-esconde, vôlei etc.; e
como toda avó adora fazer todos os gostos dos netos, ela fazia muito bolo de chocolate,
brigadeiro, lasanha, nhoque para que eles não sentissem tanto a falta dos pais.
E assim foram crescendo, vendo cada dia mais seus pais se endividarem, cada vez mais
contas para pagar, menos comida dentro de casa e muito menos lazer. No dia primeiro de
janeiro de 1997, o pai de Symone enfartou, mesmo problema pelo qual havia perdido o avô.
Foi um ano inteiro de muita luta, correria pela sobrevivência de seu pai. Depois de quatro
pontes de safena e pai curado, devagar suas vidas foram retornando ao que era antes, mas
com cuidados especiais para com ele.
Symone sempre teve excelentes amigos que marcaram sua vida em Santa Cruz como
Paulinha, Viviane, Rosilene e Eder, que estão presentes até hoje em sua vida. Symone
estudou toda sua vida em escola pública, terminando o Ensino Médio e tendo a certeza de
que teria que trabalhar para pagar um curso pré-vestibular para si, pois seus pais deviam
para Bancos e para quase toda a cidade. Pois bem, ela trabalhou muito, foi explorada
ganhando um salário baixo, mas fazendo de tudo para pagar o cursinho, e sua mãe sempre
que podia a ajudava, enquanto seu pai nunca se importava e falava que Symone estava era
perdendo tempo e que nunca conseguiria. Com a negatividade do pai, ela se sentiu muito
*
Graduanda em Matemática pela UFSCar.
96
Caminhadas de universitários de origem popular
forte para mostrar que podia conseguir tudo o que ela queria, sem depender de ninguém a
não ser dela mesma. Passou na FAFIJA1 em 2002 em Jacarezinho-PR, e lá foi começar a se
envolver na matemática, ainda trabalhando para pagar as despesas de sua casa e ônibus que
a levava todos os dias para a faculdade.
Passados dois anos, seu pai começou a brigar demais dentro de casa, e era irritante sua
presença. Por ele ter se aposentado por invalidez, devido ao infarto, ele estorvava a todos
com sua intromissão, sempre querendo colocar todos para baixo e dizendo que seus filhos
jamais seriam melhores que ele. Até que um dia, Symone saiu com seu namorado e amigos,
e ela viu seu pai com outra mulher, com outra família, enquanto isso, sua mãe trabalhando
para ajudá-lo a pagar as infinitas dívidas feitas. Foi aí que entenderam o porquê nada dentro
da casa ia para frente, nunca conseguiram trocar o carro, nunca havia dinheiro, nunca havia
muita fartura de comida. Foi uma imensa revolta e desencanto que sentiam todos da família
de Symone pelo seu pai, enquanto que sua mãe quase entrou em depressão de tanto que
chorava se sentindo culpada por tudo que havia ocorrido.
Symone não agüentava mais, a faculdade fraca, o curso sendo oferecido somente
como licenciatura e ela querendo se formar no bacharelado também; era explorada demais
no trabalho, não sendo registrada em quatro anos de serviço; dentro de sua casa, tudo
acontecendo e ela aconselhando sua mãe, e a própria nunca a escutando, achando que era
culpada por todas as safadezas de seu marido. Symone não agüentava mais a falta de oportunidade e resolveu correr atrás de um futuro melhor, onde pudesse ser mais independente
e cuidar de verdade de sua vida.
Resolveu então correr atrás da transferência para a Universidade Federal de São Carlos
no mesmo curso que já fazia e pelo qual havia se apaixonado, que é Matemática, e aquela
era a única universidade dentro do Estado de São Paulo que oferecia a opção de bacharelado. Foi para São Carlos escondida de todos, pois em Santa Cruz todos eram contra, achando
que Symone estaria perdendo tempo. Ela, muito confiante, foi do mesmo jeito levar documentos para participar do processo de seleção que ocorreria somente em dois dias. O único
que apoiou foi seu amigo de infância, Eder, que sempre ajudou muito. Ele havia se mudado
para lá e já estava fazendo o curso de Engenharia da Computação. Ela, tentando fazer tudo
escondido, perdeu diversos ônibus, teve que ficar na rodoviária de Bauru a noite toda e
pegar ônibus para Santa Cruz só no outro dia. Houve algumas brigas, quase um fim de
namoro, mas logo os mal-entendidos foram esclarecidos, e tudo voltou ao normal, e agora
era esperar três meses para o grande sonho se realizar.
Até que um dia, na Internet, saiu o primeiro resultado e Symone não havia conseguido
entrar, havendo somente uma pessoa à sua frente na lista, mas ainda haveria segunda chamada. Mas ela, sem esperança nenhuma, começou a chorar e ficar muito deprimida, pois
todos seus sonhos, toda sua vida mudaria a partir do momento que mudasse de cidade e a
situação dentro de sua casa cada vez mais insustentável, seu pai jogando em sua cara tudo
o que ele havia dado, querendo que ela saísse de casa, querendo se livrar dela de qualquer
forma, sendo que era seu pai o que menos contribuía dentro da casa deles, e Symone cada
vez mais se endividando, pois se sentia na obrigação de ajudar sua mãe, que era quem mais
sofria com tudo.
1
Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho-PR.
Universidade Federal de São Carlos
97
Logo chegou o dia da segunda chamada e a “sem-esperança” olha na Internet e vê seu
nome classificado na lista, ela havia passado, agora iria mudar para São Carlos; tudo seria
como ela havia sonhado, programado; seriam novos problemas, mas que dependeriam dela
e de mais ninguém. E agora, não haveria mais ninguém jogando nada em sua cara, agora, ela
não iria mais morar em Santa Cruz, seria simplesmente uma visita.
Hoje, Symone mora no alojamento da UFSCar, é bolsista no restaurante universitário
e participa de um excelente programa chamado Conexões de Saberes, e, além de aprender
muito dando aulas em cursinho, fazendo projetos de extensão e ganhando uma bolsa por
seu trabalho, tornou-se totalmente independente, morando fora, tendo sua vida como sempre quis, cuidando de seus próprios problemas e da sua vida. E, tomando esse rumo, arrumou diversos amigos que sempre a ajudam muito: Edgar, Deizieli, Daniel (Véio) sempre
foram excelentes amigos, motivadores e lutadores, e ela pode sempre contar com eles para
tudo que precisa.
O pai de Symone fica muito orgulhoso de ver seus filhos bem, pois Ricardo (irmão de
Symone), hoje com 18 anos, faz o Curso de Farmácia em Curitiba no qual ele conseguiu
ingressar pelo ProUni e está sendo independente como ela. Não que o pai tivesse contribuído estimulando-os, dando força e apoio, mas com a revolta que ele colocou em seus filhos
para que fossem melhores que ele e dessem a vida que sua mãe sempre mereceu, melhor do
que a que ele dava a ela. A mãe de Symone ficou feliz com o rumo que seus filhos tomaram,
mas ao mesmo tempo se sente muito sozinha. Mesmo assim, ela continua sendo uma das
mais incentivadoras e sonhadoras, sempre querendo o melhor para seus filhos e sempre
ajudando muito.
Essa história mostra que tudo é possível quando se quer alguma coisa e que tudo
depende da gente; se não estamos felizes com algo, somente nós podemos mudar.
Eu, Symone, sou muito feliz por tudo o que ocorreu, dou muito valor à minha vida e
a tudo que conquistei e não vou desistir de lutar mesmo sabendo que haverá diversas
dificuldades ainda por vir. E essa, para mim, é uma senhora história...
98
Caminhadas de universitários de origem popular
Memorial
Tiago Yamazaki Andrade*
É muito melhor arriscar coisas grandiosas,
alcançar triunfos e glórias, mesmo expondo-se
a derrota, do que formar fila com os pobres de
espírito que nem gozam muito nem sofrem
muito, porque vivem nessa penumbra cinzenta
que não conhece vitória nem derrota.
Theodore Roosevelt1
Nasci em Jaboticabal, no dia 22 de março de 1984. Cresci junto aos meus pais, e avós
que, muitas vezes, fizeram o papel de pai e mãe, cuidando de mim e de meus três irmãos
enquanto meus pais trabalhavam.
Aos dois anos de idade comecei ir à escola, acompanhando meus irmãos mais velhos,
não queria ficar sozinho em casa. Naquela época não tinha maternal, então fiz o jardim e o
pré precocemente. Quando terminamos o “prézinho” meus irmãos tiveram que mudar de
escola, mas eu não pude, pois só tinha três anos. Depois não quis ir sozinho à escola, só com
cinco anos eu voltei a estudar, fazendo novamente o jardim e a pré-escola.
Durante minha infância tive vários amigos, brincava a tarde toda na rua com eles.
Várias brincadeiras que dificilmente se vê as crianças de hoje em dia brincando.
Não tive muitas regalias, mas meus pais sempre trabalharam para nos criar da melhor
forma possível, abdicando muitas vezes dos seus sonhos em prol dos nossos. Eu os admiro
eternamente.
O ensino fundamental fiz inteiramente no SESI2, conheci outros amigos, mas hoje só
mantenho contato com um, Breno, que já conhecia praticamente desde que nasci, pois
nossos pais são amigos de longos tempos.
Aos catorze anos comecei a trabalhar de cobrador de Tele-mensagens. Ia à escola de
manhã e trabalhava a tarde toda.
Em 1999 tive que mudar de escola para fazer o ensino médio. Foi o pior ano da minha
vida. Não conhecia ninguém da sala e eles não fizeram questão de me conhecer também.
Sentei na primeira carteira e quase não falava com ninguém, me julgaram como o CDF da
turma, até os mais “nerds” não me curtiam. A maioria já estudava junto desde a primeira
série, eu era um intruso na turma.
No segundo colegial as coisas mudaram, sentei no meio da sala e comecei a trocar
idéias com o pessoal, e eles viram que eu era uma pessoa simples, legal e amiga; foi nessa
*
Graduando em Ciências Biológicas pela UFSCar.
http://www.fraseseternas.com.br/frases.asp?Theodore-Roosevelt
2
SESI - Serviço Social da Indústria
1
Universidade Federal de São Carlos
99
época que fiz minhas grandes amizades que tenho até hoje. Fizemos a melhor viajem da
minha vida. Juntamos dinheiro durante o ano, vendemos rifa, e em outubro fomos pra
Piúma - ES, ficamos uma semana na praia, curtindo o máximo.
Hoje todos esses amigos estão estudando em cidades distantes. Em 2001 perdemos
um grande amigo, Vinicius, que morreu num acidente de carro, com apenas dezoito anos de
idade: foi chocante e marcou a vida de todos nós.
Quando estava no terceiro colegial comecei a fazer o cursinho comunitário da UNESP,
conheci meus grandes amigos, Vitor, Luiz, ambos atualmente em Londrina fazendo faculdade, também conheci grandes amigas como a Lú e Silvar, que me apoiaram em vários momentos da minha vida. Embora tenha pouco contato com meus amigos atualmente, tenho
um carinho imenso por eles.
Em 2002, consegui uma bolsa de estudo e fiz cursinho no Anglo, foi nessa época que
conheci minha atual namorada, Fernanda, que já estudava veterinária numa universidade
pública, o que fez aumentar ainda mais a vontade de entrar numa universidade.
No meio do ano de 2003 passei em Ciências Biológicas nas Universidades Federais de
Lavras e de Ouro Preto-MG.
Fui para Ouro Preto, onde fique por um ano e meio. Foram os melhores anos da minha
vida, aprendi muito na república estudantil. Morávamos em 17 na Republica Federal Unidos
Por Acaso (UPA). Aprendi obedecer regras, hierarquia, consertar-me e mais um monte de
coisas. Os trotes foram pesados, mas tinha toda uma tradição por traz disso. Tomei vários
ventos (roupas jogadas por toda a parte) na minha batalha por uma vaga na UPA, muitas
pingas, e além disso encontrei muitas vezes minha cama em cima da árvore ou sobre o ponto
de ônibus. Eram mais três que batalhavam vagas comigo, Maguila, K-tinga, Beiçola e eu
(Seborréia – esse era meu nome lá). Éramos uma família, cada um ajudava o outro. Embora
morássemos com muitos, dificilmente acontecia algum rolo. Também tinha nossa mãe de
Ouro Preto, a velha Dona Tereza, que trabalha na república há 20 anos, uma mãezonha mesmo.
Em 2005 transferi-me para a Universidade Federal de São Carlos. De inicio fui morar
numa república, foi uma droga, não me adaptei. Depois fui para o alojamento estudantil da
Federal, daí as coisas mudaram. Encontrei o Bloco 36, depois de um período conturbado, as
coisas foram ficando melhores e agente foi se dando super bem. Hoje somos como irmãos.
Principalmente meus irmãos do “quarto C”, Corvo e Mineiro, que considero demais. Nos
damos super bem.
Meu prato preferido é panqueca. Não sei o por quê, mas é uma paixão incondicional!
Lembro que desde criança ficava insistindo para minha mãe fazer essa maravilha quase
todos os dias, porém, ela só fazia de vez em quando pois nem todo mundo em casa era fã de
panqueca. Outra coisa que comia todos os dias era pastel. Meu café da manhã era “super
saudável” pastel com leite e café todos os dias, não era à toa que fui uma criança obesa. Até
que chegou uma época que minha mãe impediu o dono do bar, que era meu tio, de venderme pastel. Foi uma tristeza, mas foi bom para minha saúde. Com catorze anos eu mudei
meus hábitos alimentares e comecei a emagrecer, até chegar nesse “corpinho” que tenho
hoje. Aprendi muito sobre culinária com minha mãe, hoje faço vários pratos e gosto de
cozinhar, gosto tanto que se não tivesse fazendo biologia, que é minha paixão, faria
gastronomia.
Estou aprendendo muito com o Programa Conexões de Saberes, mudei várias concepções e pré-julgamentos que tinha por alguns assuntos. Espero que consigamos realizar os
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Caminhadas de universitários de origem popular
objetivos do programa que são aprimorar a formação dos estudantes como pesquisadores,
democratizar o acesso ao ensino superior e garantir a permanência dos universitários de
origem popular e implementar projetos junto a grupos socialmente vulneráveis.
Palavras sozinhas não mudam nada, atitudes podem mover montanhas.
Universidade Federal de São Carlos
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