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PODER
Tema: Relações de poder
Pesquisador: Francis Vogner dos Reis
Sinopse
Depois das ditaduras latino-americanas o poder que antes estava concentrado nas mãos
do Estado se fragmentou, dando origens a poderes paralelos que influenciam
profundamente a vida e o cotidiano dos indivíduos e comunidades das sociedades
atuais. O programa discute algumas variações de poder no crime organizado, no
mercado - que dita a economia e restringe oportunidades de trabalho - , e no caso de
Cuba, que ainda vive sob um regime fechado, a burocracia, que representa um pequeno
poder dentro da grande máquina estatal. Tropa de Elite 2, de José Padilha e Notícias de
uma Guerra Particular, de João Moreira Salles e Kátia Lund, tratam do crime
organizado; Trabalhar Cansa, de Marco Dutra e Juliana Rojas, volta o olhar para a vida
urbana contemporânea e as pequenas relações de poderes mediadas pelo trabalho. Por
fim, o cubano Guantanamera, de Thomas Gutierrez Alea, conta a história de um
caminhoneiro às voltas com a burocracia estatal do seu país.
Apresentação dos filmes e das questões
Tropa de elite 2 - o inimigo agora é outro (Brasil, 2010), de José Padilha
Tropa de elite 2 - o inimigo agora é outro é caso raro de filme brasileiro que consegue se
comunicar com um grande público por meio de um assunto de atualidade flagrante. O
filme fez um público com mais de 11 milhões de pagantes, distribuído pelo próprio
diretor, o filme foi um marco cultura: uma soma de retorno de mercado, repercussão na
mídia e diálogo direto com uma realidade brasileira contemporânea.
Tropa de elite 2 parece uma resposta aos críticos, no sentido de que, se no filme
anterior, o capitão Nascimento e o soldado Mathias (André Ramiro) via o mal social nos
traficantes do morro e das consumidores de drogas na Zona Sul do Rio de Janeiro, na
sequência aponta-se para cima, ou seja: para os políticos e os milicianos e suas relações
de liderança com o crime organizado.
Aqui, Nascimento, e Mathias, agora comandante, ao cometerem uma imprudência em
uma rebelião na cadeia, colocando em risco a vida de um ativista dos Direitos Humanos
feito refém, são tirados de suas funções. Nascimento se transforma em um burocrata da
secretaria de segurança pública, Mathias é rebaixado e passa a atuar na corporação
comum da polícia militar carioca. Ambos, nessa mudança e fora do BOPE, passam a ver
as estreitas ligações (omissões, desmandos e responsabilidades) do poder e sua
liderança no crime organizado. Ao enfrentar a corrupção vinda do topo da pirâmide
social, eles colocam em riscos suas carreiras e Mathias acaba sendo assassinado por
milicianos.
O filme faz uma acusação direta ao apontar em Brasília o controle do crime organizado,
apelando, inclusive, para luta física do protagonista com o político. Algo interessante a
notar é que o vilão do filme, o deputado Fraga, é uma figura que concentra todos os
poderes: a imprensa, a política, o crime organizado. Faz currais eleitorais, financia
milicianos e tem uma influência sobre o governador que tenta a reeleição. Como no
primeiro filme, Tropa de elite 2 faz uma estudo do tecido do poder, das relações de
força entre as partes da sociedade brasileira contemporânea. Mostra o poder oficial, o
poder extra-oficial, o poder paralelo. Ou seja: o poder deslocado de seus lugares
supostamente tradicionais fazendo valer a força e o dinheiro mais do que os órgãos
públciso responsáveis, pois estes, também estão submetidos a esse poder “deslocado”.
Notícias de uma guerra particular (Brasil, 1999), de João Moreira Salles e Kátia
Lund
Notícias de uma guerra particular é o documentário mais conhecido de João Moreira
Salles (que dirigiu este com Kátia Lund) que, entre 1993 e 1996, entrevistou os vários
lados da guerra urbana no Rio de Janeiro que envolve, sobretudo, policiais e traficantes
(ao menos na parte mais visível desta guerra). O filme, encomendado pela televisão
francesa, colhe depoimentos de policias militares, civis, algumas personalidades que
conhecem a realidade relatada de perto (como escritor Paulo Lins e “Gordo”, fundador
do Comando Vermelho) e de traficantes, mostras as implicações da violência na vida de
cada um, o medo, a tensão e as leituras particulares que cada personagem faz deste
estado das coisas. Rodrigo Pimentel, então capitão do BOPE (hoje comentarista de
segurança na TV Globo) foi a inspiração para o capitão Nascimento em Tropa de elite, e
gerentes do tráfico no morro Dona Marta. Outras entrevistas no documentário são
2 crianças anônimas que começaram a trabalhar para o tráfico. As imagens são fortes e o
filme não faz proselitismo para nenhum dos lados envolvidos.
Em alguma medida o filme se assemelha à Tropa de elite, no sentido que busca entender
o jogo de forças nesse tecido social, a desatenção do Estado, o estresse da profissão do
profissional de segurança pública, o abandono das comunidades carentes e o crime
como solução perversa para algumas crianças dos morros cariocas. É um filme
denúncia, mas que transmite, sobretudo, uma melancolia e falta de perspectivas de
melhoras ausentes em outros libelos de perplexidade com a situação da guerra urbana
que se vê nas grandes metrópoles. Como o documentário se passa no fim dos anos 90, é
importante notar que as milícias ainda não atuavam, não da maneira como fazem hoje,
já que amealharam o poder paralelo depois da diminuição de força dos traficantes nos
morros coma operação de limpeza que o governo carioca vem fazendo há dois anos.
Trabalhar cansa (Brasil, 2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra
Trabalhar cansa, primeiro longa-metragem de Marco Dutra e Juliana Rojas, mostra uma
família em que o marido procura um novo emprego, depois de ser demitido de uma
grande corporação e a esposa compra um mercadinho em uma rua soturna. A premissa é
simples, mas a realização é inusitada. A esposa, dona do mercadinho, descobre fica às
voltas com um cheiro ruim e um caldo preto que escorre no mercado e não sabe de onde
vem e encontra um esqueleto de monstro dentro da parede. Ou seja: há um elemento
fantástico no filme que cria uma atmosfera tensa e dá outra dimensão aos problemas
suscitados pelo filme.
Colocar Trabalhar Cansa em um programa que aborda “Poder deslocado”, pode parecer
estranho já que o filme, à primeira vista, parece mais um filme que lida com conflitos
entre as classes por meio das relações de trabalho. Sim, aqui há poderes visíveis: o da
nova dona do mercadinho sobre seus empregados, da patroa sobre a empregada
doméstica, da mãe da patroa sobre a casa da filha (e sobre também, sua empregada) e o
poder do marido como chefe de família que, ao ficar desempregado, o perde
gradualmente.
A opção dos diretores pelos elementos “fantásticos” e fantasmagóricos, representa esse
mal estar contemporâneo em que todos parecem títeres de poderes que não sabemos
como localizar com precisão. A família protagonista está sujeita aos humores do
3 mercado, tanto na abertura de um novo negócio, quanto na busca do marido por uma
colocação profissional em um mercado para o qual ele parece antiquado. Todos estão
submetidos ao poder, seja facilmente identificado como no cotidiano doméstico e seja
aquele mais subterrâneo, capaz de criar mal estar, não de ser compreendido.
Guantanamera (Cuba, 1995), de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Pablo Tabío
Tomás Gutiérrez Alea é um dos cineastas mais importantes do cinema cubano e fez
parte nos anos 60 da renovação do cinema latino-americano. Realizou em 1966 e 1968
seus
filmes
mais
famosos:
A
morte
de
um
burocrata
e
Memórias
do
subdesenvolvimento, respectivamente. Memórias do subdesenvolvimento é muito
comparado a Terra em Transe, do Glauber Rocha, em razão de partir do ponto de vista
de um intelectual burguês em crise frente a uma nova realidade social e política. Teve
uma carreira regular nos anos 70 e 80, mas voltou a chamar a atenção internacional nos
anos 90, com Morango e chocolate (1994) e Guantanamera (1995), amos co-dirigidos
por Juan Carlos Tabío. Ambos os filmes tratavam das contradições e problemas do
regime cubano, em Amor e chocolate, com relação ao tratamento que o regime dava aos
homossexuais, em Guantanamera, a pesada burocracia.
No filme de 1995, Yoyita retorna a Guantánamo para visitar sua sobrinha Gina e se
encontra com Cândido, um ex-namorado. A morte repentina de Yoyita coloca Candido
em uma viagem à Havana com Gina e seu marido Adolfo, um oficial do Estado
responsável para transportar o corpo de Yoyita. Ele obedece a uma nova política estatal
criada para economizar dinheiro na transferência funerária, porque a ilha passa por uma
grave crise de combustível. Durante essa viagem, muitas situações cômicas e
adversidades frustram o êxito da empreitada.
Geralmente o filme é classificado como uma “comédia sobre a burocracia cubana”, e
realmente este é o mote do filme. O modo como o poder intransigente se expressa e
exerce força por meio da burocracia estatal. O que torna tudo mais difícil é a falta de
opções fora da máquina pública que concentra as responsabilidades pelo serviço aos
cidadãos. Como contornar, então, as vicissitudes da dificuldade imposta pela
burocracia? É daí quem vem o humor de Guantanamera. Humor amargo e crítico.
4 Material anexo:
Tropa de elite 2 - o inimigo agora é outro (Brasil, 2010), de José Padilha
Ao sair da sessão de "Tropa de Elite 2" não pude evitar de pensar em alguns filmes.
O caminho escolhido pelos autores, desta vez, me pareceu próximo ao dos grandes
filmes político-policiais italianos, como Elio Petri e Damiano Damiani, sobretudo,
fizeram.
No policial italiano, quanto mais um crime é investigado, mais se sobe na hierarquia,
mais se adensa o mistério: topa-se, no fim da linha, com a Máfia.
No novo "Tropa", o agora tenente-coronel Nascimento é elevado à categoria de
subsecretário da Segurança Pública.
De certa forma, é encostado num gabinete.
Só que estamos falando, ainda, do velho Nascimento. De maneira que ele, dali,
consegue mexer seus pauzinhos para controlar o tráfico.
O problema é que aí já não se trata mais com os renegados de Canudos, da Revolta da
Vacina, com os pretinhos, pardos e mulatinhos que o Bope costumava arrebentar sem
dó.
Não se trata mais dessa imensa população que o Brasil culto não entende, não quer
entender e tem raiva de quem entende.
(Daí Euclydes da Cunha ser, a rigor, tão pouco lido e uma das frases mais
desinteressantes do livro inteiro ter se tornado lugar-comum).
Agora são os que ou passaram daquela faixa para outra, tornando-se policiais, ou
mesmo os beneficiários da corrupção endêmica no país.
Ou seja, isso que o coronel chama de "o sistema".
A polícia, corrupta, transforma-se nas Milícias e garante "a paz" nas favelas ao mesmo
tempo em que pratica a extorsão livremente.
A mídia (representada por um programa de TV tipo Datena) adora isso e fatura em
cima. O governador, que quer se reeleger, acha ótimo.
E assim vamos.
Mas Nascimento se mantém intacto e puro.
A pureza contra a política?
Bem, aí entra o outro filme que me veio à cabeça: "Arquitetura da Destruição".
5 Esse magnífico ensaio sustenta que Hitler não aspirava senão a criar um mundo de
beleza, livre de impurezas como retardados mentais, ciganos e, claro, judeus.
Acho que isso pode ser um paradigma: o caminho do excesso, no caso, não leva à
sabedoria, como dizia William Blake.
Leva ao desatino.
Então, penso, todo esse excessivo combate à instituição política que vemos em "Tropa"
leva a quê?
Terror em Paulínia
Não sei dizer, com franqueza, se o que me assusta é o filme ou uma parte da população
brasileira.
Essa parte que, na sessão em Paulínia, aplaudia em cena aberta no momento de um
brutal espancamento.
Talvez o filme esteja certo e nossa política seja mesmo uma porcaria.
Mas eu me pergunto se vivemos num país de imaculada pureza dominado por um
núcleo de desviantes corruptos ou coisa parecida.
O Congresso Nacional, por onde o filme passeia a horas tantas, não seria então
representativo do que é o Brasil, do que somos nós?
Somos todos bons e os políticos são ruins? É isso, então? A idéia é consoladora, é
verdade, mas é uma pena que não seja muito realista.
O filme sustenta, talvez com razão, que levará muitos anos para solucionarmos
problemas como a corrupção, porque não é corrupção de uma pessoa, mas de um "o
sistema".
O que é "o sistema"?
A idéia de impunidade está vinculada a ele, claro.
O cara que tem a arma na mão pode fazer o que quiser.
Ele é o começo e o fim das coisas.
Na verdade, não existe nenhuma diferença ontológica entre o Bope e os tiras corruptos
das Milícias.
São duas faces da mesmíssima moeda. Ambos dispõem de um poder absoluto.
(Os políticos ficam, quase naturalmente, por trás de ambos, se equilibrando: o negócio
deles são os votos.)
6 O fato de o Bope representar "o bem", "a pureza", não altera nada. Nunca se ouviu dizer
que Stalin era desonesto (e tal seria: se dissesse alguma coisa, era eliminado no ato),
mas fez o que fez e a coisa deu no que deu.
Nascimento é direito? Puro e duro? E daí? E se, com as armas e a corporação que tem
na mão, ele não for direito?
Quem diz que o Bope é essa ilha de perfeição e pureza que o filme sustenta ser?
Isso não será apenas uma outra ficção?
Pela "Tropa"
Isso pode parecer que estou contra o filme, o que não é bem verdade.
Filmes como ele me parecem necessários por vários motivos, inclusive por olhar coisas
que o filme brasileiro não costuma olhar, por um ângulo que costuma evitar.
Com isso, e com a ambiguidade que caracteriza, de maneiras diferentes, os dois filmes,
algumas questões podem ser colocadas.
A primeira, mais urgente, é a da herança da tortura, ou seja do desmando do aparelho
repressivo durante a ditadura.
O Brasil paga caro por isso em matéria moral.
Todo mundo fica em cima do cara que rouba umas galinhas, como se fosse o fim do
mundo. Tudo bem. Não é certo.
Mas a carnificina que houve por aqui, a tortura, tudo isso é como se não tivesse existido.
Enquanto o Brasil não acertar contas com essa história (a Argentina fez, até o Chile fez)
acho difícil derrotar "o sistema".
Enquanto não acertar as contas com Canudos, não compreenderá a si mesmo e os seus.
Fundamentalismo
Só para terminar: o culto ao Bope e ao capitão Nascimento pode servir muito bem para
catarse.
Mas não resolve nossos problemas.
Acho que foi o Simão, que vê tudo antes, quem falou que já estamos numa república em
que os dirigentes são civis, mas obedecem aos religiosos.
Então,vamos parar de falar mal do Irã, de Israel.
A gente está igual.
7 Essa história em torno de aborto é vergonhosa. Até Portugal, que é aquela coisa
atrasada, já aceita. Até a Itália, com o Papa plantado lá dentro.
Só o Brasil... Bem, a catolicidade não se incomoda com a carnificina anual de mulheres
(pobres, naturalmente) que fazem aborto e morrem ou sofrem problemas seríssimos.
A catolicidade (e acho que uma parte dos evangélicos também) se incomodam com os
fetos, com os "puros" (com aqueles que certos padres e bispos tentarão transar, dali a
uns anos, poderiam acrescentar).
Não acredito, francamente, que Dilma Rousseff deixou de ganhar no primeiro turno por
conta disso. Mas o fato de estar no debate, como está, beira o assombroso.
Para resumir: há muitas coisas que, querendo ou não, "Tropa 2" tem a nos dizer. Não sei
se o público quererá escutar.
Inácio Araújo
Blog do Inácio
Disponível em http://inacio-a.blog.uol.com.br/arch2010-10-03_2010-10-09.html
Tropa de Elite 2, de José Padilha (Brasil, 2010)
Um filme brasileiro
Dizer que a continuação de Tropa de Elite é um dos maiores fenômenos que o cinema
brasileiro já produziu em sua história não é um exagero. Basta recorrer aos números,
que serão saudados por toda a imprensa, especializada ou não, nas próximas semanas,
para se constatar isso - e ganha um doce quem encontrar uma reportagem que não
utilize a palavra "recorde" em algum lugar. Mas, sem querer desmerecer os resultados
do filme no mercado, a força desse novo episódio da cruzada do capitão Nascimento
contra o crime organizado ultrapassa e muito suas conquistas econômicas. O fenômeno
é, antes de tudo, cultural. Ora, de todos os fatores que contribuem para o sucesso do
filme de José Padilha - e eles são muitos -, há um que paira sobre os outros, tão acima
que quase passa sem ser notado. Em determinado momento da exibição, uma cartela
surge na tela com os dizeres: "dias de hoje", ou algo para esse efeito. E a partir daí,
acompanhamos o desenrolar da trama com a sensação de que estamos assistindo a uma
cobertura de eventos em tempo real, no calor dos acontecimentos.
Não é uma operação sutil - nada é sutil no universo de Tropa de Elite -, mas o efeito que
a entrada dessa cartela provoca na percepção do público, talvez de forma quase
subliminar, é marcante. É antes de tudo a realização de uma promessa, um pacto que o
8 candidato a blockbuster firma com o espectador no ato da venda do ingresso e que tão
raramente é cumprido - a era dos blockbusters é marcada por promessas falsas e pela
força do marketing, antes de tudo, e encontros felizes como o de Tropa 2 com o público
são raríssimos. No caso, o que se espera de Tropa de Elite 2 é uma narrativa que nos
faça mergulhar na realidade por trás das manchetes de jornal, com o poder de retórica e
sedução que só o cinema tem. Não as manchetes do ano passado, da década passada,
mas as manchetes dos "dias de hoje". E essa expectativa o filme cumpre com dignidade,
seguindo a fórmula do primeiro e ampliando seu escopo para encompassar o tema do
qual todos adoram falar mal no Brasil, especialmente em período eleitoral: a política. O
choque de atualidade que Tropa 2 propõe não pode ser menosprezado, assim como não
se deve minimizar os possíveis e prováveis efeitos sobre a produção nacional como um
todo nos anos vindouros. Até mesmo porque o cinema brasileiro, essa instituição, não
pode se dar ao luxo de aplicar seu histórico duplipensar todas as vezes que se depara
com um filme como esse, tratando-lhe como exceção e celebrando suas conquistas
como se elas pertencessem ao conjunto da produção. Há lições a se extrair das sessões
lotadas e dos aplausos que encerram todas elas, e não seria sensato ignorar tais lições especialmente a mais simples e essencial: filmar os "dias de hoje" é um excelente
negócio.
Mas é claro que tais lições nunca devem ser tomadas ao pé da letra, e é preciso
compreender que o fenômeno Tropa de Elite ultrapassa o sentido de urgência que
ilumina os dois filmes. Pois o elemento central, a conquista principal dos filmes é a
combinação feliz de talentos que gerou a figura do capitão (agora tenente-coronel e
subsecretário de inteligência) Beto Nascimento, um personagem maior até que os
próprios filmes. Imbuído de um senso de justiça inabalável e demonstrando nessa
continuação uma capacidade de adaptação invejável, Nascimento encarna o herói de
uma verdadeira legião de brasileiros indignados com a violência dos morros, a
corrupção das forças policiais e os desvios da classe política. Mas Nascimento é muito
mais que um mero depositário de moralidade (muitas vezes duvidosa): ele é também um
sujeito que carrega consigo alguns dos mais intrigantes paradoxos brasileiros dos "dias
de hoje" e sempre.
Ao contrário do primeiro filme, que ficava em cima do muro em relação aos métodos e
ideologias do protagonista e extraía dessa insegurança sua energia primal e seu discurso
confuso, a adesão ao ponto de vista de Nascimento é absoluta em Tropa de Elite 2. As
9 questões são totalmente internalizadas pelo herói, que trocou a farda por um terno, de
modo que o problema da segurança pública no Rio de Janeiro se revela um melodrama
burguês nesse momento delicado de Nascimento, com direito a triângulo amoroso,
disputas familiares e criança convalescendo em hospital. Até uma inesperada aliança
estratégica firmada com antigos opositores (a antiga contenda se revela uma mera
questão de método, mais que tudo), aliança esta que leva ao desmantelamento de uma
organização criminosa que estende seus tentáculos até o alto escalão do poder público,
surge como uma solução caseira para um problema doméstico.
A interpretação de Wagner Moura, quase sempre irrepreensível, por vezes denuncia o
peso dessa escolha ao recorrer a um estoque de expressões e sentimentos que
ocasionalmente atingem uma nota em falso - como, por exemplo, na cena em que
Nascimento encontra Matias (André Ramiro) na prisão. Mas esses pequenos deslizes
não tiram o brilho da criação do ator, que carrega boa parte do elenco nas costas e só é
ofuscado pela caracterização excepcional de Milhem Cortaz - que, como alívio cômico,
engole o comediante André Mattos, além de ficar com os melhores bordões da
continuação. E afinal, mais ou menos sensível, Moura faz crer, sempre que está em
cena, que a luta de Nascimento contra o "sistema" vai além da mais pura ingenuidade um traço que seria imperdoável para alguém em sua posição. No final do filme, é sua
voz em off que promete um acerto de contas como nunca antes houve na história desse
país - e, ouvindo o cara, não sou eu quem vai duvidar disso.
Como Nascimento é o termômetro dos dois filmes, seu caráter mais introspectivo em
Tropa de Elite 2 deixa muito clara a opção da sequência por uma narrativa que
privilegia o raciocínio em detrimento da força bruta. Mal comparando, Tropa 2 está para
o primeiro filme como O Cavaleiro das Trevas está para Batman Begins: nas sagas
desses dois heróis tumultuados, anecessidade de compreender o mundo à sua volta
prevalece sobre o desejo de agir por impulso ou condicionamento.É a partir do
entendimento de que não é um fuzil ou um maluco mascarado a mais que vão fazer a
diferença nesse universo de muitas dúvidas e poucas certezas que nossos heróis traçam
suas novas estratégias, reveem suas posições, qualificam suas agendas. E se para o
homem-morcego a perspectiva de viver na ilegalidade é o preço a se pagar para ser "o
herói que Gotham merece", o sobrevoo da câmera de Padilha sobre Brasília não deixa
dúvidas sobre o futuro da guerra de Nascimento - um futuro talvez ainda mais ingrato
que o do cavaleiro das trevas, pelo menos no que se refere a índices de popularidade.
10 É admirável o modo corajoso e arriscado com que a transição do primeiro para o
segundo Tropa de Elite implica o abandono de fórmulas que mal tiveram a chance de se
cristalizar. Com Nosso Lar, por exemplo, o cinema brasileiro de gênero (o espírita, no
caso) pareceu saltar vinte anos em dois - levando em conta que a última empreitada no
gênero, Bezerra de Menezes, foi um fenômeno muito mais localizado (e excetuando
Chico Xavier, que é um produto de grife). Com Tropa 2, a situação se repete: é como se
toda uma janela de oportunidades de ficções policiais se fechasse para abrir espaço a um
novo conceito. Não que o elemento de exploitation, central para o sucesso do primeiro
filme, não esteja presente: temos um formidável massacre em Bangu 1, magnificamente
filmado; caveirões entrando na favela e caveirinhas de microondas; tortura com saco
plástico. Mas o principal fator de entretenimento da continuação é a descrição
detalhada, ainda que excessivamente caricatural e esquemática, dos processos de
formação de grupos que disputam o poder e da guerra pela sua manutenção.
Ainda assim, a impressão que se tem é que os realizadores de Tropa 2 tinham plena
consciência de que não jogavam para perder - e vale voltar rapidamente aos números,
que definitivamente hão de comprovar. Ao acionar um esquema de distribuição
independente inédito para um filme desse porte, e ao arriscar um programa de
lançamento comercial mais radical que o de muitos blockbusters norte-americanos,
Tropa 2 parece fazer do risco e da audácia elementos centrais de uma estratégia a se
perseguir. Mas ao jogar "pra galera", combinando denúncia requentada, exploração
crassa da violência urbana e faro fino para o que comove e diverte as massas, o filme
reverte sua posição, revelando um calculismo de mercado que impede um voo artístico
pleno e satisfatório. Não que isso incomode a maioria, muito pelo contrário. Fato é que,
em meio a essas contradições (e há muitas e muitas outras que o filme incorpora e traz à
tona), Tropa 2 promove um espetáculo como nenhum outro, notável em sua perspicácia
e capacidade de realização. É um filme que nasce incontornável e sobre o qual o cinema
brasileiro há de se debruçar por muito tempo. E se, no fim, um herói mascarado se
revelou o herói que Gotham merece e não o que ela deseja, com Tropa 2 a questão é
mais simples: ele é o filme que o Brasil quer neste momento. Se o merece ou não, é
outra história.
Fernando Veríssimo
Outubro de 2010
Revista Cinética
11 Disponívem em http://www.revistacinetica.com.br/tropa2.htm
Tropa de Elite 2 põe os políticos na roda
PAULÍNIA
Gostei. E o público de Paulínia, este primeiro público de convidados, também gostou.
Aplaudiu bem no final. Filme forte, bem feito, com cenas de impacto. Gostei, mas em
termos. Sinto falta da mesma coisa que sentia em relação ao Tropa de Elite 1: um pouco
de sutileza, mais senso de nuance, respeito pela complexidade das coisas. Padinha gosta
de simplificar, o que é ok. Só que perde em profundidade. Mas o filme impressiona em
vários momentos. Aqui em Paulínia foi aplaudido durante a projeção algumas vezes.
Em especial numa hora em que o agora coronel Nascimento cobre de porrada um
desafeto e o ameaça de morte. Uma moça ao meu lado, muito bonita e bem vestida,
aplaudia freneticamente. As pessoas gostam desse tipo de coisa.
A novidade, em relação ao filme anterior, é que este apresenta a conexão do crime
organizado com os estratos mais altos da sociedade – com o poder político. Dessa
forma, ao chegar à Secretaria de Segurança do Rio, Nascimento (Wagner Moura)
descobre que lá reside o centro do “sistema”, como ele chama. Quer dizer, Padilha quer
ampliar seu espectro de diagnóstico. Se em Ônibus 174 ele se colocava no ponto de
vista do marginal, e em Tropa de Elite 2 no ponto de vista da polícia, agora busca a
motivação política – quer dizer, da busca pelo poder – como a fonte maior do tráfico,
dos crimes, do dinheiro que circula; em suma, do Estado.
Numa época de descrédito com a política, não poderia faltar o sobrevoo da câmera
sobre Brasília para sugerir que a cabeça da serpente está sempre um andar acima do que
se supõe. Aliás, Padilha não sugere nada. Diz explicitamente, à sua maneira. Ao vê-lo,
talvez o público não ganhe muito em compreensão, mas desafoga mágoas e frustrações.
Dentro desses limites, o filme funciona. Mix de drama policial, thriller político e filme
de máfia, deve fazer sucesso.
Luiz Zanin Oricchio
O Estado de S. Paulo (blog)
Disponível em http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/primeira-impressao-sobre-tropade-elite-2/
12 Trabalhar Cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra
"Trabalhar Cansa" combina realidade e sobrenatural
"Trabalhar Cansa," que marca a estreia na direção de longas dos premiados curtametragistas Juliana Rojas e Marco Dutra ("Um Ramo"), transita entre o horror e o
drama social. Há ainda o horror que advém das diferenças sociais e do mercado de
trabalho no Brasil, mas isso passa longe do sobrenatural, já que é o drama real da classe
média.
O filme estreia em São Paulo, Rio de Janeiro, Campinas e Porto Alegre. Concorrente na
seção "Un Certain Regard" no último Festival de Cannes e premiado no Festival de
Paulínia deste ano (prêmio especial do júri e melhor som), "Trabalhar Cansa" participa
da mostra competitiva do Festival de Brasília, que acaba na próxima segunda-feira.
Em sua obra, os diretores sempre lidaram com o sobrenatural, às vezes de forma
explícita, às vezes apenas em um flerte. Por isso, não é de se estranhar quando esses
elementos surgem em "Trabalhar Cansa" (título inspirado numa obra do italiano Cesare
Pavese). Mas nem sempre há um trânsito orgânico entre eles e o realismo na trama,
também assinada pelos diretores.
No filme, Otávio (Marat Descartes, de "Os Inquilinos") perde seu emprego na mesma
época em que sua mulher, Helena (Helena Albergaria), abre um mercado de periferia.
Chega à casa da família Paula (Naloana Lima), empregada e babá que vai cuidar da
filha pequena, Vanessa (Marina Flores).
Aos poucos, os papéis de Otávio e Helena se invertem. Ela se torna a chefe do lar, traz o
dinheiro e sustenta a casa, trabalhando fora o dia todo, enquanto ele procura emprego e
tenta pequenos bicos, como telemarketing. As relações trabalhistas também ficam
tensas, tanto entre Helena e um funcionário de seu mercado, quanto entre o casal e a
empregada.
O toque sobrenatural começa com um cachorro na porta do mercado e uma umidade
inexplicável na parede do estabelecimento. Os elementos se intensificam e, mesmo que
nunca totalmente explicados, servem como uma metáfora para as deturpadas relações
familiares, sociais e trabalhistas dos personagens.
A simbologia acaba bastante carregada no filme e o foco recai sobre elementos de
estranhamento, deixando narrativa e personagens em segundo plano. Há muitas vezes a
necessidade de apenas estranhar, pelo simples estranhamento. Nem sempre isso causa
13 uma reflexão ou perplexidade, algo que faria muito sentido por conta dos temas do
filme.
A atriz Helena Albergaria, que participou de outros curtas da dupla, cria uma
protagonista um tanto fria, distante, uma dona-de-casa que começa a se entusiasmar
pelo capitalismo e quer se transformar numa mulher de negócios. Por outro lado, Marat
Descartes é capaz de trazer à tona toda a humanidade e conflitos de seu personagem - de
longe, o mais estruturado e complexo do longa.
Alysson Oliveira
UOL e Cineweb
Disponível
em
http://cinema.uol.com.br/ultnot/reuters/2011/09/29/estreia-trabalhar-
cansa-combina-realidade-e-sobrenatural.jhtm
Trabalhar Cansa, de Marco Dutra e Juliana Rojas (Brasil, 2011) – Un Certain Regard
No entanto, o cinema (como dizíamos ontem) pode tudo, e assim como simplesmente o
movimento pode construir por si mesmo um grande filme, a paralisia também pode ser
extremamente cinematográfica – como nos lembram estes dois filmes exibidos na seção
Un Certain Regard. Ambos nos relembram como também é forte e potente a capacidade
do cinema, ao misturar formatos e gêneros estabelecidos, e dar a eles novos sentidos,
recriando aqui, com motivos bem distintos, a idéia de um horror do cotidiano.
Trabalhar Cansa vai ser muito discutido, diga-se, a partir da chave do gênero. Afinal,
ainda é curiosamente raro no cinema brasileiro que cineastas se aventurem por este
terreno onde o sobrenatural e o inexplicável se somam ao banal e comum, e permitem
criar essa “realidade ampliada”, à qual o cinema serve tão bem. No entanto, o que o
filme tem de mais forte não passa por nada disso, necessariamente. A verdadeira força
do filme está na capacidade precisa de colocar na tela, como poucos filmes brasileiros
conseguiram até hoje, um estado incrivelmente tenso e duro das relações entre classes, e
das distintas pressões modernas exercidas pelo capitalismo em diferentes classes, e em
indivíduos que sentem a necessidade de desempenhar papeis específicos. Afinal, existe
ainda a lenda de que o Brasil é terra sem conflitos, e o que Marco Dutra e Juliana Rojas
expõem aqui de maneira tão dolorosamente dura (e doce, ao mesmo tempo) é o tamanho
dessa mentira – os conflitos existem e abundam, apenas estão todos sublimados e
naturalizados em gestos os menores (seja no mercado de trabalho, seja nas relações
domésticas, seja na dinâmica entre as gerações).
14 A inteligência do filme começa por um roteiro cuidadosamente trabalhado, que não se
contenta com criar uma trama de poucos ecos e personagens simples. A cada novo
personagem que entra em cena (depois do casal principal e sua filha pequena, vão se
somando os empregados do supermercado que ela abre, a nova doméstica que chega
para trabalhar na casa deles, a mãe da dona da casa, a irmã do marido, etc etc), soma-se
uma camada deste jogo de relacionamentos que atinge o raro feito de passar por todas as
chaves (social, étnica, doméstica, etc) sem com que nenhum deles se torne apenas um
“representante de algo”. Todos os atores emprestam vida interna a seus personagens,
sem com isso precisarem se tornar apenas indivíduos desvinculados do contexto
específico que é morar num grande centro urbano brasileiro em determinado momento
da história. Muito precisa ser dito e analisado sobre o filme ainda, pois ele é inundado
de cenas que pedem detalhamento, discussão, questionamento, impressões fortes – mas
não será em Cannes o momento para isso, com a “maratona crítica” pela qual passamos
(e com o filme ainda inacessível para a maior parte dos leitores). Por enquanto o que
basta anotar é como Trabalhar Cansa é objeto raro e impressionante (ainda mais como
um primeiro longa), e que sua capacidade de filmar um Brasil que se pretende diferente,
mas que ao mesmo tempo corre em falso, é algo a se reter.
Eduardo Valente
Revista Cinética
Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/cannes11dia4.htm
Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra
Potências do mal estar
A estréia em longa-metragem da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra é algo diferente no
panorama do cinema brasileiro atual. Enquanto a tendência é colocar a afetividade no
centro, em geral com certa doçura inocente ou uma afirmação positiva das relações,
como se o afeto fosse capaz de salvar as pessoas da tragédia do mundo, Trabalhar Cansa
é um filme político, no sentido mais puro que a palavra pode ter, algo que se desgastou
como uma grife de cinema nos últimos 40 anos. É um filme de pessoas no mundo:
pessoas em conflito, o homem como ser social, como um animal num mundo que lhe é
hostil e cuja existência harmônica lhe parece estranha. O mal-estar na civilização.
As relações são mediadas de modo muito fino por uma mistura dos sentimentos e dos
papéis sociais: a empregada que mora em casa, mas quer a carteira registrada; o marido
15 que perde o emprego enquanto a esposa vira dona de estabelecimento comercial; a mãe
que se acha patroa da empregada da filha por extensão; a funcionária que joga do lado
tanto dos colegas quanto da patroa. Todas as personagens têm essa “dupla função”:
jogam com seus sentimentos em relação ao outro, mas também com os interesses (às
vezes, os mais baixos possíveis). Essa pulsão que move as relações só se faz possível,
enquanto dramaturgia, pelo tom preciso do filme, que transita da observação seca à
doçura, do drama existencial ao cômico, da comédia à tragédia, sem deixar marcada as
fronteiras que separa um momento do outro. Sai daí uma fruição hawksiana, que se
move pelos momentos sem deixá-los ser apenas isso, mas sim partes orgânicas de um
todo pulsante.
O filme certamente será abordado pelo seu lado sobrenatural evidente, ainda mais que
este aspecto perpassa a obra da dupla desde seu primeiro curta-metragem. Contudo, se
antes esse elemento era uma metáfora de algum aspecto psicológico da personagem (e
isso é trazido para a frente em As Sombras), aqui o terror é antes de tudo uma
materialização do estado de mal-estar das personagens. Pois se o caminho era criar uma
imagem “psicológica” nos curtas, agora as imagens têm uma relação física. Aliá-lo ao
cinema de terror é reduzir sua potência e ignorar o que há de mais evidente em sua
misè-en-scene: pessoas no espaço. Pois, Trabalhar Cansa é um filme físico. A obra se
faz no nível do homem, tanto por negar uma metafísica no jogo das relações, quanto por
se preocupar em filmar os atores – e é sintomático que seja um filme com tão poucos
planos de passagem. É filme feito de carne e osso, louças, papel, tesoura, marreta, pano,
correntes e vassouras. E isso é o que há de efetivamente fantástico nele.
Raul Arthuso
Revista Cinética
Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/paulinia11dia6.htm
Notícias de uma guerra particular (1999), de João Moreira Salles e Kátia Lund
O trecho a seguir é retirado do artigo científico “Expressões fílmicas da violência
urbana contemporânea: Cidade de Deus, Notícias de uma guerra particular e Falcão,
meninos do tráfico”
“...O filme de João Moreira Salles e Kátia Lund captou, elaborou e expressou uma
situação em larga medida restrita aos morros cariocas e aos bairros de periferia das
16 grandes cidades brasileiras, que já viera à tona dois anos antes, em 1997, com a
publicação de Cidade de Deus, romance de Paulo Lins. O depoimento de Paulo Lins no
documentário contribui para a identificação do tráfico como elemento responsável pela
mudança de qualidade do crime na periferia. Tese defendida pelo filme na introdução,
narrada por uma vozover, que depois desaparece, mas que informa dados do tráfico. O
trajeto de um veículo policial em direção a uma central de incineração de drogas, na
periferia do Rio de Janeiro, a chegada ao local e a queima do pó – com destaque à
fornalha em chamas – é o motivo visual que ilustra a fala que denuncia o tráfico de
drogas como causa da situação de violência que o filme vai dissecar. A partir dessa
introdução, o filme contrapõe visões de moradores, pressionados no meio de campo do
conflito entre traficantes e policiais. A seqüência de entrevistas é apresentada em
capítulos com títulos temáticos, um dispositivo que Cidade de Deus também adota. O
uso de imagens de tiroteios captadas e exibidas por telejornais sensacionalistas permite
que se pense sobre as maneiras pelas quais a situação é veiculada. Mas o filme em si
não discute o problema.
Em Notícias, entrevistas editadas por tema e intercaladas com material de arquivo
realçam a complexidade envolvida no convívio de partes desiguais, mediadas pelo porte
disseminado de armas. A necessidade de preservar a identidade dos entrevistados
envolvidos com o"movimento" justifica a exibição de mascarados, no caso dos adultos,
ou de rostos com feições diluídas eletronicamente pelo efeito vaselina, no caso de
crianças. O som de música instrumental, em tom grave, realça a dramaticidade da
situação que evolui em direção ao cemitério, com enterros em montagem paralela de um
policial e de um jovem – negro.
Diversos realizadores e sujeitos que aparecem nos filmes posteriores se dedicam a
confirmar ou contestar versões de Notícias. O tema é candente e o cinema se estabelece
como veículo privilegiado para dar visibilidade a uma chaga até então oculta. O cinema
se beneficia de uma liberalidade para exibir uma brutalidade que a TV não suporta.
Filmes sucessivos podem ser entendidos como proposições de novas formas de contar
uma história trágica e ameaçadora. Com esses filmes, o cinema recupera a capacidade
de gerar polêmica. Uma vez visível, o universo da favela provoca diferentes padrões de
visualidade. Em 2002, em Cidade de Deus, Ônibus 174, O invasor, Uma onda no
ar, a formafílmica se torna motivo de debate.”
Ester Hamburguer
17 Revista de Antropologia (USP)
Disponível em http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012008000200006
O trecho a seguir é retirado do artigo “Aspectos do documentário brasileiro
contemporâneo”.
“...Notícias de uma guerra particular, deJoão Salles e Kátia Lund, é fruto de um
dos poucos experimentos de co-produção bem-sucedidos entre um canal por assinatura
(GNT/Globosat) e uma produtora independente (a carioca Videofilmes) – parceria que
gerou séries importantes, como Futebol (1998), de João Salles e Arthur Fontes, e 6
histórias brasileiras (2000), de João Salles e Marcos Sá Corrêa, entre outros diretores.
Realizado entre 1997 e 1998, Notícias de uma guerra particular aborda os impasses
desse confronto entre policiais e traficantes nos morros e periferias do Rio de Janeiro, e
os efeitos do conflito na vida cotidiana da população pobre, moradora dessas regiões
conflagradas. Embora tenha o morro Santa Marta como locação privilegiada,
particularizando em alguns momentos a abordagem, o filme pretende realizar um
diagnóstico da escalada de violência no Rio relacionada ao tráfico de drogas – que só
fez piorar desde então.
Trata-se de um filme realizado sem roteiro, na “urgência” e no “improviso”,
segundo o próprio diretor, fruto de “um desejo de ser testemunha” (SALLES, 2006,
157-8) – e por isso é um filme que difere de uma certa “estética da observação”, mais
frequente no cinema de Salles. Crucial para a inclusão das questões envolvendo tráfico
de drogas, contrabando de armas, violência e pobreza na pauta audiovisual nacional,
Notícias concentra e deixa nítidas tensões da violência carioca presentes em alguns
filmes de ficção dos anos 90. É como se o documentário estabelecesse um pano de
fundo, destrinchasse os mecanismos da violência e se apresentasse como síntese de uma
situação com a qual todo filme realizado nas periferias e morros do Rio teria, dali para
frente, que se confrontar – ainda que na forma de evitação e recusa.”
Consuelo Lins e Cláudia Mesquita
Laboratório “Cultura Viva”
Disponível em http://labculturaviva.org/node/992
18 O trecho a seguir foi retirado da tese “Documentário brasileiro contemporâneo e
violência urbana”
Notícias de uma guerra particular inicia o percurso aqui proposto e, de certa
maneira, o resume, pois acreditamos que neste filme a relação com o contexto histórico
tenha sido mais determinante. Ou seja, consideramos que circunstâncias sociais, e
políticas, sobretudo, influenciaram sobremaneira a forma como o filme se estruturou.
Dirigido por João Moreira Salles e Kátia Lund, com a colaboração de Walter Salles,
Notícias buscou estabelecer uma percepção sobre a criminalidade e a violência carioca a
partir de depoimentos dos principais sujeitos envolvidos: policiais, traficantes e
moradores de favelas. O filme é resultado de pesquisas e filmagens feitas entre 1997 e
1998 no Morro Santa Marta, bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. A determinação de
um contexto particular, vivenciado no estado do Rio de Janeiro à época, fez de Notícias
de uma guerra particular “um filme de Documentário brasileiro contemporâneo e
violência urbana urgência”. O momento era de expansão do tráfico de drogas, que criou
uma verdadeira guerra civil nos morros por disputa de controle, conforme colocado logo
na abertura do filme, na solução narrativa convencional da voz em off que resume o
argumento dos diretores. A socióloga Julita Lemgruber explica esse contexto,
ressaltando o mercado lucrativo do tráfico de drogas. Para Lemgruber, o crescimento da
criminalidade violenta nas favelas e nos bairros periféricos das regiões metropolitanas
do país nos últimos vinte anos, determinado pela instalação do tráfico de drogas, levou
aos
conflitos entre facções rivais que disputam o controle de um mercado
altamente lucrativo. Também ao longo dos anos, cresceram a violência e a
corrupção policiais, umbilicalmente ligadas ao tráfico de drogas. É nesses
territórios pobres e carentes de serviços públicos que se registram os mais altos
índices de violência letal e, evidentemente, os números revelam que são os
jovens negros e pobres as maiores vítimas (LEMGRUBER, 2004).
Politicamente, o ano de 1997 no estado do Rio de Janeiro foi marcado por um
momento crítico do governo do PSDB de Marcelo Alencar (1994-1998), que adotou
19 uma política de enfrentamento ao narcotráfico, comandada pelo chefe da Secretaria de
Segurança Pública, General Nilton Cerqueira, que acreditava numa solução bélica para
a guerra de traficantes nos morros cariocas. As operações de confronto resultaram na
prisão e morte das principais lideranças do tráfico, e na morte de vários policiais em
ação.
Paradoxalmente, do outro lado, o chefe geral da Polícia Civil, Hélio Luz – que
exerceu o cargo de 1995 a 1997 –, pretendia mostrar como a polícia estava agindo e
como esta só fazia política de controle, de repressão. Em seu depoimento ao filme,
Hélio Luz diz que “a polícia foi criada para ser corrupta e violenta, para fazer a
segurança da elite que se protege recrutando moradores de periferia” (NOTÍCIAS DE
UMA GUERRA PARTICULAR, 2005). Ele enfatiza o caráter político da polícia,
dizendo que “se a cidade é injusta, garantimos a sociedade injusta. O excluído fica sob
controle.” O tráfico é, segundo ele, é apenas um “espaço de exclusão”. E aponta a
violência da miséria: “Para o miserável é emprego, não opção, trocar R$112,00 por mês
por R$300,00 por semana. A miséria é violenta” (Ibid.).
Segundo Alba Zaluar, para refletir sobre a violência urbana no Brasil de hoje é
preciso entender o que representam dois negócios-chave, o tráfico de drogas e o
contrabando de armas, negócios extremamente lucrativos ao funcionamento de um
mercado livre de qualquer limite institucional ou moral, exatamente porque tratam com
mercadorias ilegais, atividades econômicas que tendem a ser muito lucrativas para
personagens estrategicamente posicionados que atravessam fronteiras e nações. Tal
característica é o que pode explicar, para a antropóloga, as próprias conseqüências do
aumento da violência. (ZALUAR, 2002). Outras personagens do filme, moradores de
favelas, como Paulo Lins – em sua primeira aparição para a televisão, antes da
publicação do livro Cidade de Deus –, o casal Janete e Adão Xalebaradã, e o líder
comunitário Itamar Silva, também se referem ao contexto de expansão do tráfico,
especialmente da cocaína, e das armas nas favelas. Eles enfatizam as mudanças
provocadas na ação dos policiais e na vida das próprias comunidades, num discurso
muito próximo ao cientificamente elaborado pelas pesquisas antropológicas e
sociológicas de Alba Zaluar, Julita Lemgruber e outros. Para Janete, a entrada das armas
no morro fez com que a polícia entrasse no lugar com mais cautela, porque passou a ter
medo das reações.
20 Para ela, isso foi o lado bom do tráfico. O lado ruim, aponta, é a crueldade:
“matam, esquartejam e mostram a comunidade pra ninguém vacilar, senão vai para a
vala” (NOTÍCIAS, 2005). É Janete quem melhor define a nova geração de traficantes
dos morros, ao dizer que tem “espírito suicida”: são “guerreiros” que não usam drogas e
se preocupam com o corpo.
Paulo Lins também enfatiza a mudança ocorrida com a “democratização” da
cocaína: “a coisa ficou mais violenta” (NOTÍCIAS DE UMA GUERRA
PARTICULAR, 2005), diz. Para ele, isso gerou na favela uma necessidade de delimitar
territórios, de competição pelo lucro. “Quando saiu do espaço dos ricos para o espaço
dos pobres a coisa ficou mais violenta. As mortes começaram a aparecer na mídia, sair
do espaço da favela” (Ibid.).
O papel de Hélio Luz em Notícias de uma guerra particular é determinante, não
só por seu depoimento, que contribui para contextualizar as informações de outros
“personagens”, como por possibilitar à equipe de filmagem o acesso às informações. Se
não fosse exatamente pelo cargo de chefia ocupado por Luz, o filme não teria
conseguido apresentar muitas de suas imagens, como o depósito de armas e os
depoimentos dos meninos na instituição Padre Severino, por exemplo. Tanto é assim
que em Ônibus 174, algumas imagens de Notícias de uma guerra particular foram
utilizadas, pois o contexto era outro e os acessos tornaram-se muito mais difíceis, como
observa o próprio João Moreira Salles (Ibid.).
Ressaltamos ainda o “encontro inesperado” com Rodrigo Pimentel, e as
gravações feitas logo após o primeiro
contato, conforme explicou Moreira Salles
(Ibid.), que fazem surgir o depoimento que inclusive dá nome ao filme.
O documentarista analisa que isso foi ato de filmagem, portanto carregado da
intensidade da tomada, pois que o entrevistado revelou-se totalmente diante da câmera,
algo que parece inesperado até para o próprio, pela honestidade com que avalia sua ação
no BOPE diante da câmera. Saberemos depois que Pimentel também tem formação em
cinema, tendo atuado como co-produtor em Ônibus 174, no qual também tem ação
decisiva para explicar os acontecimentos.
Para Moreira Salles, Notícias de uma guerra particular assume um desencanto e
um ceticismo em relação à maneira como o problema da violência é enfrentado no
Brasil, mas não pode ser considerado pessimista.
21 Apenas mostra, através da metáfora do “beco sem saída”, que não há solução,
pelo menos se for mantida a mesma política em relação à segurança pública. Ele fala,
ainda, que a edição do filme acentuou “um certo impulso em direção à entropia”: o
filme começa mais organizado e caminha para a anarquia absoluta, o caos, terminando
na morte (Ibid.).
O filme Notícias de uma guerra particular mostra que a violência é fruto da
ausência de diálogo entre os envolvidos na guerra. “O próprio tom cético que finaliza o
documentário abre ainda mais esta possibilidade: onde há efetivamente uma guerra, os
beligerantes devem se sentar para discutir as diferenças e negociar, até – ou
fundamentalmente – as injustiças praticadas pelas partes.” (RIBEIRO, 2000, p. 240).
Segundo os diretores, o foco final na morte era uma certeza, a ponto de a
produção esperar notícias de um policial morto em ação para finalizar as filmagens. O
final do filme, além da morte de um policial e de um morador, dá ênfase ao crescimento
da violência: na tela inscrições mortuárias aparecem ocupando todo o espaço, numa
lápide que ao final está completamente tomada pelos nomes que não são mais legíveis,
restando somente a tela preta. João Moreira Salles informa que os nomes não foram
inventados, nem quando não havia mais nenhuma possibilidade de o espectador
identificá-los (NOTÍCIAS, 2005). Foram mortes reais, que a produção do filme
contabilizou e que mostram uma preocupação quanto aos próprios princípios do gênero
documentário.
Maria Beatriz Colucci, Doutora em Multimeios pela Unicamp
Disponível em http://www.intermidias.com/txt/ed9/docbrasileiro.pdf
Guantanamera (1995), de Tomás Gutierrez Alea e Juan Carlos Tabío
"Guantanamera", de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío
“Olofin fez a vida, mas esqueceu de fazer a morte.
As pessoas viviam milhares de anos e seguiam mandando
segundo suas velhas leis. Tanto clamaram os mais jovens
que Olofin chamou Ikú, o qual fez com que chovesse trinta
dias e trinta noites. Tudo foi ficando debaixo d’água.
Só as crianças e os jovens puderam subir nas árvores
22 e nas montanhas mais altas. Depois que estiou, os jovens
viram que a terra reaparecia mais bela e agradeceram a Ikú.”
Revi, com um sorriso na boca e uma dor no coração, “Guantanamera”, dos
cubanos Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío. Segunda parceria dos diretores, o
filme é uma comédia triste, se é que essas duas palavras podem ficar juntas.
É um filme engraçado, porque traz cenas impagáveis sobre o cotidiano
surrealista de Cuba, que lembra muito o “jeitinho” brasileiro, o qual, por sua vez, não
pode ser só analisado de forma negativa, na minha opinião: ele é também um jeito
criativo de sobreviver, apesar das circunstâncias políticas e econômicas adversas. Não é
à toa que meu pai chamava esse filme de “BR-101”, referência à viagem desde
Guantânamo até Havana, que é a coluna vertebral do filme, e à semelhança que tudo
guarda com a realidade brasileira.
O enredo aparente é que uma grave crise de combustível se abate sobre a ilha (o
filme é da década de 1990, depois da queda do muro de Berlim) e o transporte de
defuntos se torna um problema a mais no dia a dia da população.
Então, Adolfo, um funcionário graduado, tenta recuperar seu prestígio abalado,
formulando um complicado plano, com baldeação do defunto província a província, o
que termina por embaralhar de tal forma os mortos que eles são confundidos e, no final,
nos damos conta disso.
Esse personagem vive num mundo burocrático, violento, indiferente, ineficiente,
autorreferente, falso, disfuncional e em ruínas, o que, com duas metáforas, o roteiro
explicita – com a menininha, que anuncia mortes gerais, e com o mito de Olofin e Ikú, o
qual, no meio do filme, do nada, aparece falado, acompanhado de imagens de cemitério
e muita chuva.
Paralelo a esse, outro mundo é mostrado – o de Gina (esposa de Adolfo),
Mariano (ex-aluno de Gina) e Cândido (ex-namorado, já velho, da tia de Gina, Yoyita,
cujo corpo está sendo transportado) e todo o resto da população de Cuba, olhado com
muita complacência pelos diretores, até porque eles entendem, fica sugerido, o
relativismo moral e ético que é necessário para a sobrevivência.
Ariano Suassuna refere isso quando relata que compôs seus personagens pícaros
a partir deste ditado popular que corre no sertão: “A astúcia é a sobrevivência do
pobre”.
23 De fato, ao longo do caminho, tudo se vende e tudo se compra – alho, banana,
porco, galinha... – não com a moeda oficial, mas com outra, mais próxima do dólar, que
corre, invisível, porém real, no país. A contravenção corre solta e valida a vida.
Nesse mundo, ela, a vida, acontece, com seus dispositivos – o amor, a
infidelidade, a traição, os relacionamentos, o perdão, o abandono, a solidão, os
enganos... e... a morte, que poucos entendem como elemento desse conjunto.
A cena final sintetiza o enredo: em cima de um púlpito, Adolfo fala mentiras,
enquanto Mariano e Gina fogem de bicicleta. Aí cai uma chuva, todos correm e aparece
a menininha da morte, surda aos apelos por ajuda de Adolfo.
Quando meu amigo Samarone chegou de Cuba, me disse que o desperdício geral
de nossa sociedade foi o que mais doeu nele, depois de testemunhar a penúria de lá...
É essa a parte triste do filme – a frustração; “a vida que podia ter sido e que não
foi”; a pobreza; a adesão obrigatória à pirataria e ao relativismo moral; a realidade
esquizofrênica com que a população tem de lidar; as fugas; as famílias partidas; as
delações; a violação de direitos; os desvios de vocação e de profissões... tudo
potencializa as dificuldades inomináveis de tão grandes da vida em si...
A Fariñas, que, com seu protesto pacífico e heroico, conseguiu, de outra forma,
chamar a atenção da comunidade internacional sobre a violação de direitos humanos em
Cuba. E ao povo cubano, com que, desde sempre, me identifico.
Flávia Suassuna
Trança
Disponível
em
http://fsuassuna.blogspot.com.br/2010/07/guantanamera-de-tomas-g-
alea-e-juan.html
Guantanamera
Anotação em 1996: Uma delícia, tão bom, competente e bem feito quanto o anterior da
dupla de diretores cubanos, Morango e Chocolate. (Alea morreu em abril deste ano,
1996.) É igualmente crítico dos erros do regime cubano, mas com uma crítica feita com
amor e simpatia. A rigor, é ainda mais crítico que o anterior, é mais contudente no
ataque à rigidez do regime, à incapacidade do regime de se adaptar, abrir brechas na
estrutura imutável desde 1960.
Mas é de fato uma crítica sem ranço, sem reacionarismo, sem nem um pouquinho de
baba na gravata. É tudo bem humorado, pra cima, gostoso, com um grande
24 encantamento pelo povo cubano – mostrado como exatamente igual ao brasileiro:
maroto, esperto, capaz de se virar, curtindo fazer pequenos trambiques, apaixonado
pelos prazeres da vida, do sexo à bebida, comida, cigarro.
É tudo bom – a música, a fotografia, os atores. O roteiro é delicioso.
Simples, com um fiapinho de história e muitos casinhos dentro dela, praticamente
esquetes. Um road movie, na melhor tradição – e Alea e Tabío aproveitam para mostrar
paisagens lindíssimas da ilha, assim como as mazelas da pobreza trazida pelo embargo
americano e ampliada com o fim do subsídio que era dado pelo império soviético: o
casario lindo apodrecendo, a falta de infra-estrutura, a falta de comida.
Usa muito bem pitadinhas de realismo fantástico: a menininha que aparece para o
músico idoso, lembrança que ele tem da infância da cantora que saiu aos 17 anos de
Guantánamo e conquistou o mundo, mas nunca saiu da memória dele. Usa flashbacks
em preto e branco brilhantes, curtinhos, quando a ex-professora encontra o ex-aluno, os
dois atraídos um pelo outro mas incapazes de concretizar o amor por ela ser casada.
A história: Yoyita, a cantora nascida em Guantánamo, que saiu de sua cidade aos 17
anos, volta agora, 50 anos depois, para ser homenageada; é recebida pela sobrinha, a exprofessora, Gina, e revê o namorado da adolescência, um músico da orquestra local,
Cândido (acho). Quando se encontram e conversam sobre o passado, fazendo planos de
nunca mais se separarem, ela morre.
Em ação paralela, vemos o marido da sobrinha, uma pessoa que já teve postos
importantes na estrutura do regime, e hoje é o encarregado do serviço funerário de
Guantánamo. Ele está em Havana, junto com seus pares das várias cidades do país,
discutindo exatamente como e onde enterrar os mortos – se em suas cidades natais, se
no lugar que a família escolher, se nas cidades onde acontecessem as mortes. E vence
justamente a posição defendida por ele, a de que a responsabilidade deve ser distribuída
por todas as cidades, e as pessoas devem ser enterradas onde viveram os últimos anos
da vida. O corpo de Yoyita, portanto, deve atravessar o país, do extremo Leste,
Guantánamo, ao extremo Oeste, Havana.
Durante a viagem, Gina se encontra diversas vezes com o ex-aluno, hoje um
caminhoneiro safado e mulherengo. Há todos os tipos de peripécias e, quase no fim, a
inevitável troca de caixões.
O encarregado do serviço funerário é a encarnação da burocracia rígida do regime
cubano. A crítica é ferina, virulenta.
25 Há um diálogo especialmente delicioso. O caminhoneiro conta para o companheiro que,
na faculdade, estudava uma matéria chamada Comunismo Científico. Ultimamente, a
matéria tinha passado a se chamar Socialismo Científico. E o companheiro brinca que
no futuro ela será substituída por Capitalismo Científico.
Sérgio Vaz
50 anos de filme
Disponível em: http://50anosdefilmes.com.br/1996/guantanamera/
Uma Cuba menos marxista
Guantanamera mostra como o capitalismo desponta na Cuba socialista
Lançado em 1995, Guantanamera é um filme singular de Tomás Gutiérrez Alea e Juan
Carlos Tabío que mostram uma Cuba ambivalente, arcaica e jovial, onde o socialismo
perde espaço para o capitalismo do trabalho informal. A obra, uma fusão de comédia,
crítica social e road movie, apresenta Tia Yoyita (Conchita Brando), uma mulher já
idosa que está em Guantánamo, sua cidade natal, para rever parentes e amigos.
Durante a visita, Yoyita morre, mas não pode ser enterrada em Guantánamo. Uma nova
lei determina que cada cubano deve ser sepultado na cidade onde viveu os últimos anos.
Então surge um problema logístico, o de transportar a falecida até o outro lado da ilha.
O caricato funcionário público Adolfo (Carlos Cruz), autor do projeto e marido de
Georgina (Mirta Ibarra) – sobrinha da falecida, é designado para o trabalho.
Durante o percurso, surge uma série de contratempos que destacam os muitos
problemas da revolucionária Cuba. São inesquecíveis as cenas das paradas do cortejo
fúnebre; os viajantes sendo abordados por ambulantes vendendo bananas. A maioria
rejeita o peso, a moeda oficial, e exige o pagamento em dólares. Os principais
personagens, de ideologia marxista-leninista, tentam confrontar o capitalismo que
desponta de modo informal em Cuba.
Há muitos momentos de ironia que ressaltam um cotidiano paradoxal. Em
Guantanamera, as críticas surgem sutis, bem humoradas e até belas. Outro exemplo
emblemático é a cena do caminhoneiro Mariano (Jorge Perugorría), apaixonado por
Georgina, que se recorda de quando estudava comunismo científico, disciplina
transformada em socialismo científico. “No futuro, será capitalismo científico”,
debocha o personagem Ramón (Pedro Fernández). Os muitos questionamentos políticos
26 feitos por Alea e Tabío permitem ao espectador levantar dúvidas sobre o meio em que
vive.
Através da obra, o público pode até despertar para a necessidade de propor
algum tipo de mudança. Considerado o menos superficial de todos os filmes de Tomás
Gutiérrez, Guantanamera é contundente como uma crítica que se conjetura em
autocrítica. Os autores deixam implícito que se Cuba se desvanece em vários aspectos,
como o cadáver dentro do caixão rumo a Havana, é porque cada cubano tem parcela de
culpa. É possível até fazer uma interpretação mais íntima da morte de Yoyita, já que
Alea estava se tratando de um câncer quando decidiu rodar o filme.
Curiosidade
Embora guantanamera seja um gentílico para as mulheres nascidas em Guantánamo,
no sudeste cubano, no filme também é uma referência a canção folclórica de José Martí
e Joseíto Fernández.
David Arioch
Jornalismo cultural
Disponível em:
https://davidarioch.wordpress.com/tag/juan-carlos-tabio/
27 

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