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PODER Tema: Relações de poder Pesquisador: Francis Vogner dos Reis Sinopse Depois das ditaduras latino-americanas o poder que antes estava concentrado nas mãos do Estado se fragmentou, dando origens a poderes paralelos que influenciam profundamente a vida e o cotidiano dos indivíduos e comunidades das sociedades atuais. O programa discute algumas variações de poder no crime organizado, no mercado - que dita a economia e restringe oportunidades de trabalho - , e no caso de Cuba, que ainda vive sob um regime fechado, a burocracia, que representa um pequeno poder dentro da grande máquina estatal. Tropa de Elite 2, de José Padilha e Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles e Kátia Lund, tratam do crime organizado; Trabalhar Cansa, de Marco Dutra e Juliana Rojas, volta o olhar para a vida urbana contemporânea e as pequenas relações de poderes mediadas pelo trabalho. Por fim, o cubano Guantanamera, de Thomas Gutierrez Alea, conta a história de um caminhoneiro às voltas com a burocracia estatal do seu país. Apresentação dos filmes e das questões Tropa de elite 2 - o inimigo agora é outro (Brasil, 2010), de José Padilha Tropa de elite 2 - o inimigo agora é outro é caso raro de filme brasileiro que consegue se comunicar com um grande público por meio de um assunto de atualidade flagrante. O filme fez um público com mais de 11 milhões de pagantes, distribuído pelo próprio diretor, o filme foi um marco cultura: uma soma de retorno de mercado, repercussão na mídia e diálogo direto com uma realidade brasileira contemporânea. Tropa de elite 2 parece uma resposta aos críticos, no sentido de que, se no filme anterior, o capitão Nascimento e o soldado Mathias (André Ramiro) via o mal social nos traficantes do morro e das consumidores de drogas na Zona Sul do Rio de Janeiro, na sequência aponta-se para cima, ou seja: para os políticos e os milicianos e suas relações de liderança com o crime organizado. Aqui, Nascimento, e Mathias, agora comandante, ao cometerem uma imprudência em uma rebelião na cadeia, colocando em risco a vida de um ativista dos Direitos Humanos feito refém, são tirados de suas funções. Nascimento se transforma em um burocrata da secretaria de segurança pública, Mathias é rebaixado e passa a atuar na corporação comum da polícia militar carioca. Ambos, nessa mudança e fora do BOPE, passam a ver as estreitas ligações (omissões, desmandos e responsabilidades) do poder e sua liderança no crime organizado. Ao enfrentar a corrupção vinda do topo da pirâmide social, eles colocam em riscos suas carreiras e Mathias acaba sendo assassinado por milicianos. O filme faz uma acusação direta ao apontar em Brasília o controle do crime organizado, apelando, inclusive, para luta física do protagonista com o político. Algo interessante a notar é que o vilão do filme, o deputado Fraga, é uma figura que concentra todos os poderes: a imprensa, a política, o crime organizado. Faz currais eleitorais, financia milicianos e tem uma influência sobre o governador que tenta a reeleição. Como no primeiro filme, Tropa de elite 2 faz uma estudo do tecido do poder, das relações de força entre as partes da sociedade brasileira contemporânea. Mostra o poder oficial, o poder extra-oficial, o poder paralelo. Ou seja: o poder deslocado de seus lugares supostamente tradicionais fazendo valer a força e o dinheiro mais do que os órgãos públciso responsáveis, pois estes, também estão submetidos a esse poder “deslocado”. Notícias de uma guerra particular (Brasil, 1999), de João Moreira Salles e Kátia Lund Notícias de uma guerra particular é o documentário mais conhecido de João Moreira Salles (que dirigiu este com Kátia Lund) que, entre 1993 e 1996, entrevistou os vários lados da guerra urbana no Rio de Janeiro que envolve, sobretudo, policiais e traficantes (ao menos na parte mais visível desta guerra). O filme, encomendado pela televisão francesa, colhe depoimentos de policias militares, civis, algumas personalidades que conhecem a realidade relatada de perto (como escritor Paulo Lins e “Gordo”, fundador do Comando Vermelho) e de traficantes, mostras as implicações da violência na vida de cada um, o medo, a tensão e as leituras particulares que cada personagem faz deste estado das coisas. Rodrigo Pimentel, então capitão do BOPE (hoje comentarista de segurança na TV Globo) foi a inspiração para o capitão Nascimento em Tropa de elite, e gerentes do tráfico no morro Dona Marta. Outras entrevistas no documentário são 2 crianças anônimas que começaram a trabalhar para o tráfico. As imagens são fortes e o filme não faz proselitismo para nenhum dos lados envolvidos. Em alguma medida o filme se assemelha à Tropa de elite, no sentido que busca entender o jogo de forças nesse tecido social, a desatenção do Estado, o estresse da profissão do profissional de segurança pública, o abandono das comunidades carentes e o crime como solução perversa para algumas crianças dos morros cariocas. É um filme denúncia, mas que transmite, sobretudo, uma melancolia e falta de perspectivas de melhoras ausentes em outros libelos de perplexidade com a situação da guerra urbana que se vê nas grandes metrópoles. Como o documentário se passa no fim dos anos 90, é importante notar que as milícias ainda não atuavam, não da maneira como fazem hoje, já que amealharam o poder paralelo depois da diminuição de força dos traficantes nos morros coma operação de limpeza que o governo carioca vem fazendo há dois anos. Trabalhar cansa (Brasil, 2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra Trabalhar cansa, primeiro longa-metragem de Marco Dutra e Juliana Rojas, mostra uma família em que o marido procura um novo emprego, depois de ser demitido de uma grande corporação e a esposa compra um mercadinho em uma rua soturna. A premissa é simples, mas a realização é inusitada. A esposa, dona do mercadinho, descobre fica às voltas com um cheiro ruim e um caldo preto que escorre no mercado e não sabe de onde vem e encontra um esqueleto de monstro dentro da parede. Ou seja: há um elemento fantástico no filme que cria uma atmosfera tensa e dá outra dimensão aos problemas suscitados pelo filme. Colocar Trabalhar Cansa em um programa que aborda “Poder deslocado”, pode parecer estranho já que o filme, à primeira vista, parece mais um filme que lida com conflitos entre as classes por meio das relações de trabalho. Sim, aqui há poderes visíveis: o da nova dona do mercadinho sobre seus empregados, da patroa sobre a empregada doméstica, da mãe da patroa sobre a casa da filha (e sobre também, sua empregada) e o poder do marido como chefe de família que, ao ficar desempregado, o perde gradualmente. A opção dos diretores pelos elementos “fantásticos” e fantasmagóricos, representa esse mal estar contemporâneo em que todos parecem títeres de poderes que não sabemos como localizar com precisão. A família protagonista está sujeita aos humores do 3 mercado, tanto na abertura de um novo negócio, quanto na busca do marido por uma colocação profissional em um mercado para o qual ele parece antiquado. Todos estão submetidos ao poder, seja facilmente identificado como no cotidiano doméstico e seja aquele mais subterrâneo, capaz de criar mal estar, não de ser compreendido. Guantanamera (Cuba, 1995), de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Pablo Tabío Tomás Gutiérrez Alea é um dos cineastas mais importantes do cinema cubano e fez parte nos anos 60 da renovação do cinema latino-americano. Realizou em 1966 e 1968 seus filmes mais famosos: A morte de um burocrata e Memórias do subdesenvolvimento, respectivamente. Memórias do subdesenvolvimento é muito comparado a Terra em Transe, do Glauber Rocha, em razão de partir do ponto de vista de um intelectual burguês em crise frente a uma nova realidade social e política. Teve uma carreira regular nos anos 70 e 80, mas voltou a chamar a atenção internacional nos anos 90, com Morango e chocolate (1994) e Guantanamera (1995), amos co-dirigidos por Juan Carlos Tabío. Ambos os filmes tratavam das contradições e problemas do regime cubano, em Amor e chocolate, com relação ao tratamento que o regime dava aos homossexuais, em Guantanamera, a pesada burocracia. No filme de 1995, Yoyita retorna a Guantánamo para visitar sua sobrinha Gina e se encontra com Cândido, um ex-namorado. A morte repentina de Yoyita coloca Candido em uma viagem à Havana com Gina e seu marido Adolfo, um oficial do Estado responsável para transportar o corpo de Yoyita. Ele obedece a uma nova política estatal criada para economizar dinheiro na transferência funerária, porque a ilha passa por uma grave crise de combustível. Durante essa viagem, muitas situações cômicas e adversidades frustram o êxito da empreitada. Geralmente o filme é classificado como uma “comédia sobre a burocracia cubana”, e realmente este é o mote do filme. O modo como o poder intransigente se expressa e exerce força por meio da burocracia estatal. O que torna tudo mais difícil é a falta de opções fora da máquina pública que concentra as responsabilidades pelo serviço aos cidadãos. Como contornar, então, as vicissitudes da dificuldade imposta pela burocracia? É daí quem vem o humor de Guantanamera. Humor amargo e crítico. 4 Material anexo: Tropa de elite 2 - o inimigo agora é outro (Brasil, 2010), de José Padilha Ao sair da sessão de "Tropa de Elite 2" não pude evitar de pensar em alguns filmes. O caminho escolhido pelos autores, desta vez, me pareceu próximo ao dos grandes filmes político-policiais italianos, como Elio Petri e Damiano Damiani, sobretudo, fizeram. No policial italiano, quanto mais um crime é investigado, mais se sobe na hierarquia, mais se adensa o mistério: topa-se, no fim da linha, com a Máfia. No novo "Tropa", o agora tenente-coronel Nascimento é elevado à categoria de subsecretário da Segurança Pública. De certa forma, é encostado num gabinete. Só que estamos falando, ainda, do velho Nascimento. De maneira que ele, dali, consegue mexer seus pauzinhos para controlar o tráfico. O problema é que aí já não se trata mais com os renegados de Canudos, da Revolta da Vacina, com os pretinhos, pardos e mulatinhos que o Bope costumava arrebentar sem dó. Não se trata mais dessa imensa população que o Brasil culto não entende, não quer entender e tem raiva de quem entende. (Daí Euclydes da Cunha ser, a rigor, tão pouco lido e uma das frases mais desinteressantes do livro inteiro ter se tornado lugar-comum). Agora são os que ou passaram daquela faixa para outra, tornando-se policiais, ou mesmo os beneficiários da corrupção endêmica no país. Ou seja, isso que o coronel chama de "o sistema". A polícia, corrupta, transforma-se nas Milícias e garante "a paz" nas favelas ao mesmo tempo em que pratica a extorsão livremente. A mídia (representada por um programa de TV tipo Datena) adora isso e fatura em cima. O governador, que quer se reeleger, acha ótimo. E assim vamos. Mas Nascimento se mantém intacto e puro. A pureza contra a política? Bem, aí entra o outro filme que me veio à cabeça: "Arquitetura da Destruição". 5 Esse magnífico ensaio sustenta que Hitler não aspirava senão a criar um mundo de beleza, livre de impurezas como retardados mentais, ciganos e, claro, judeus. Acho que isso pode ser um paradigma: o caminho do excesso, no caso, não leva à sabedoria, como dizia William Blake. Leva ao desatino. Então, penso, todo esse excessivo combate à instituição política que vemos em "Tropa" leva a quê? Terror em Paulínia Não sei dizer, com franqueza, se o que me assusta é o filme ou uma parte da população brasileira. Essa parte que, na sessão em Paulínia, aplaudia em cena aberta no momento de um brutal espancamento. Talvez o filme esteja certo e nossa política seja mesmo uma porcaria. Mas eu me pergunto se vivemos num país de imaculada pureza dominado por um núcleo de desviantes corruptos ou coisa parecida. O Congresso Nacional, por onde o filme passeia a horas tantas, não seria então representativo do que é o Brasil, do que somos nós? Somos todos bons e os políticos são ruins? É isso, então? A idéia é consoladora, é verdade, mas é uma pena que não seja muito realista. O filme sustenta, talvez com razão, que levará muitos anos para solucionarmos problemas como a corrupção, porque não é corrupção de uma pessoa, mas de um "o sistema". O que é "o sistema"? A idéia de impunidade está vinculada a ele, claro. O cara que tem a arma na mão pode fazer o que quiser. Ele é o começo e o fim das coisas. Na verdade, não existe nenhuma diferença ontológica entre o Bope e os tiras corruptos das Milícias. São duas faces da mesmíssima moeda. Ambos dispõem de um poder absoluto. (Os políticos ficam, quase naturalmente, por trás de ambos, se equilibrando: o negócio deles são os votos.) 6 O fato de o Bope representar "o bem", "a pureza", não altera nada. Nunca se ouviu dizer que Stalin era desonesto (e tal seria: se dissesse alguma coisa, era eliminado no ato), mas fez o que fez e a coisa deu no que deu. Nascimento é direito? Puro e duro? E daí? E se, com as armas e a corporação que tem na mão, ele não for direito? Quem diz que o Bope é essa ilha de perfeição e pureza que o filme sustenta ser? Isso não será apenas uma outra ficção? Pela "Tropa" Isso pode parecer que estou contra o filme, o que não é bem verdade. Filmes como ele me parecem necessários por vários motivos, inclusive por olhar coisas que o filme brasileiro não costuma olhar, por um ângulo que costuma evitar. Com isso, e com a ambiguidade que caracteriza, de maneiras diferentes, os dois filmes, algumas questões podem ser colocadas. A primeira, mais urgente, é a da herança da tortura, ou seja do desmando do aparelho repressivo durante a ditadura. O Brasil paga caro por isso em matéria moral. Todo mundo fica em cima do cara que rouba umas galinhas, como se fosse o fim do mundo. Tudo bem. Não é certo. Mas a carnificina que houve por aqui, a tortura, tudo isso é como se não tivesse existido. Enquanto o Brasil não acertar contas com essa história (a Argentina fez, até o Chile fez) acho difícil derrotar "o sistema". Enquanto não acertar as contas com Canudos, não compreenderá a si mesmo e os seus. Fundamentalismo Só para terminar: o culto ao Bope e ao capitão Nascimento pode servir muito bem para catarse. Mas não resolve nossos problemas. Acho que foi o Simão, que vê tudo antes, quem falou que já estamos numa república em que os dirigentes são civis, mas obedecem aos religiosos. Então,vamos parar de falar mal do Irã, de Israel. A gente está igual. 7 Essa história em torno de aborto é vergonhosa. Até Portugal, que é aquela coisa atrasada, já aceita. Até a Itália, com o Papa plantado lá dentro. Só o Brasil... Bem, a catolicidade não se incomoda com a carnificina anual de mulheres (pobres, naturalmente) que fazem aborto e morrem ou sofrem problemas seríssimos. A catolicidade (e acho que uma parte dos evangélicos também) se incomodam com os fetos, com os "puros" (com aqueles que certos padres e bispos tentarão transar, dali a uns anos, poderiam acrescentar). Não acredito, francamente, que Dilma Rousseff deixou de ganhar no primeiro turno por conta disso. Mas o fato de estar no debate, como está, beira o assombroso. Para resumir: há muitas coisas que, querendo ou não, "Tropa 2" tem a nos dizer. Não sei se o público quererá escutar. Inácio Araújo Blog do Inácio Disponível em http://inacio-a.blog.uol.com.br/arch2010-10-03_2010-10-09.html Tropa de Elite 2, de José Padilha (Brasil, 2010) Um filme brasileiro Dizer que a continuação de Tropa de Elite é um dos maiores fenômenos que o cinema brasileiro já produziu em sua história não é um exagero. Basta recorrer aos números, que serão saudados por toda a imprensa, especializada ou não, nas próximas semanas, para se constatar isso - e ganha um doce quem encontrar uma reportagem que não utilize a palavra "recorde" em algum lugar. Mas, sem querer desmerecer os resultados do filme no mercado, a força desse novo episódio da cruzada do capitão Nascimento contra o crime organizado ultrapassa e muito suas conquistas econômicas. O fenômeno é, antes de tudo, cultural. Ora, de todos os fatores que contribuem para o sucesso do filme de José Padilha - e eles são muitos -, há um que paira sobre os outros, tão acima que quase passa sem ser notado. Em determinado momento da exibição, uma cartela surge na tela com os dizeres: "dias de hoje", ou algo para esse efeito. E a partir daí, acompanhamos o desenrolar da trama com a sensação de que estamos assistindo a uma cobertura de eventos em tempo real, no calor dos acontecimentos. Não é uma operação sutil - nada é sutil no universo de Tropa de Elite -, mas o efeito que a entrada dessa cartela provoca na percepção do público, talvez de forma quase subliminar, é marcante. É antes de tudo a realização de uma promessa, um pacto que o 8 candidato a blockbuster firma com o espectador no ato da venda do ingresso e que tão raramente é cumprido - a era dos blockbusters é marcada por promessas falsas e pela força do marketing, antes de tudo, e encontros felizes como o de Tropa 2 com o público são raríssimos. No caso, o que se espera de Tropa de Elite 2 é uma narrativa que nos faça mergulhar na realidade por trás das manchetes de jornal, com o poder de retórica e sedução que só o cinema tem. Não as manchetes do ano passado, da década passada, mas as manchetes dos "dias de hoje". E essa expectativa o filme cumpre com dignidade, seguindo a fórmula do primeiro e ampliando seu escopo para encompassar o tema do qual todos adoram falar mal no Brasil, especialmente em período eleitoral: a política. O choque de atualidade que Tropa 2 propõe não pode ser menosprezado, assim como não se deve minimizar os possíveis e prováveis efeitos sobre a produção nacional como um todo nos anos vindouros. Até mesmo porque o cinema brasileiro, essa instituição, não pode se dar ao luxo de aplicar seu histórico duplipensar todas as vezes que se depara com um filme como esse, tratando-lhe como exceção e celebrando suas conquistas como se elas pertencessem ao conjunto da produção. Há lições a se extrair das sessões lotadas e dos aplausos que encerram todas elas, e não seria sensato ignorar tais lições especialmente a mais simples e essencial: filmar os "dias de hoje" é um excelente negócio. Mas é claro que tais lições nunca devem ser tomadas ao pé da letra, e é preciso compreender que o fenômeno Tropa de Elite ultrapassa o sentido de urgência que ilumina os dois filmes. Pois o elemento central, a conquista principal dos filmes é a combinação feliz de talentos que gerou a figura do capitão (agora tenente-coronel e subsecretário de inteligência) Beto Nascimento, um personagem maior até que os próprios filmes. Imbuído de um senso de justiça inabalável e demonstrando nessa continuação uma capacidade de adaptação invejável, Nascimento encarna o herói de uma verdadeira legião de brasileiros indignados com a violência dos morros, a corrupção das forças policiais e os desvios da classe política. Mas Nascimento é muito mais que um mero depositário de moralidade (muitas vezes duvidosa): ele é também um sujeito que carrega consigo alguns dos mais intrigantes paradoxos brasileiros dos "dias de hoje" e sempre. Ao contrário do primeiro filme, que ficava em cima do muro em relação aos métodos e ideologias do protagonista e extraía dessa insegurança sua energia primal e seu discurso confuso, a adesão ao ponto de vista de Nascimento é absoluta em Tropa de Elite 2. As 9 questões são totalmente internalizadas pelo herói, que trocou a farda por um terno, de modo que o problema da segurança pública no Rio de Janeiro se revela um melodrama burguês nesse momento delicado de Nascimento, com direito a triângulo amoroso, disputas familiares e criança convalescendo em hospital. Até uma inesperada aliança estratégica firmada com antigos opositores (a antiga contenda se revela uma mera questão de método, mais que tudo), aliança esta que leva ao desmantelamento de uma organização criminosa que estende seus tentáculos até o alto escalão do poder público, surge como uma solução caseira para um problema doméstico. A interpretação de Wagner Moura, quase sempre irrepreensível, por vezes denuncia o peso dessa escolha ao recorrer a um estoque de expressões e sentimentos que ocasionalmente atingem uma nota em falso - como, por exemplo, na cena em que Nascimento encontra Matias (André Ramiro) na prisão. Mas esses pequenos deslizes não tiram o brilho da criação do ator, que carrega boa parte do elenco nas costas e só é ofuscado pela caracterização excepcional de Milhem Cortaz - que, como alívio cômico, engole o comediante André Mattos, além de ficar com os melhores bordões da continuação. E afinal, mais ou menos sensível, Moura faz crer, sempre que está em cena, que a luta de Nascimento contra o "sistema" vai além da mais pura ingenuidade um traço que seria imperdoável para alguém em sua posição. No final do filme, é sua voz em off que promete um acerto de contas como nunca antes houve na história desse país - e, ouvindo o cara, não sou eu quem vai duvidar disso. Como Nascimento é o termômetro dos dois filmes, seu caráter mais introspectivo em Tropa de Elite 2 deixa muito clara a opção da sequência por uma narrativa que privilegia o raciocínio em detrimento da força bruta. Mal comparando, Tropa 2 está para o primeiro filme como O Cavaleiro das Trevas está para Batman Begins: nas sagas desses dois heróis tumultuados, anecessidade de compreender o mundo à sua volta prevalece sobre o desejo de agir por impulso ou condicionamento.É a partir do entendimento de que não é um fuzil ou um maluco mascarado a mais que vão fazer a diferença nesse universo de muitas dúvidas e poucas certezas que nossos heróis traçam suas novas estratégias, reveem suas posições, qualificam suas agendas. E se para o homem-morcego a perspectiva de viver na ilegalidade é o preço a se pagar para ser "o herói que Gotham merece", o sobrevoo da câmera de Padilha sobre Brasília não deixa dúvidas sobre o futuro da guerra de Nascimento - um futuro talvez ainda mais ingrato que o do cavaleiro das trevas, pelo menos no que se refere a índices de popularidade. 10 É admirável o modo corajoso e arriscado com que a transição do primeiro para o segundo Tropa de Elite implica o abandono de fórmulas que mal tiveram a chance de se cristalizar. Com Nosso Lar, por exemplo, o cinema brasileiro de gênero (o espírita, no caso) pareceu saltar vinte anos em dois - levando em conta que a última empreitada no gênero, Bezerra de Menezes, foi um fenômeno muito mais localizado (e excetuando Chico Xavier, que é um produto de grife). Com Tropa 2, a situação se repete: é como se toda uma janela de oportunidades de ficções policiais se fechasse para abrir espaço a um novo conceito. Não que o elemento de exploitation, central para o sucesso do primeiro filme, não esteja presente: temos um formidável massacre em Bangu 1, magnificamente filmado; caveirões entrando na favela e caveirinhas de microondas; tortura com saco plástico. Mas o principal fator de entretenimento da continuação é a descrição detalhada, ainda que excessivamente caricatural e esquemática, dos processos de formação de grupos que disputam o poder e da guerra pela sua manutenção. Ainda assim, a impressão que se tem é que os realizadores de Tropa 2 tinham plena consciência de que não jogavam para perder - e vale voltar rapidamente aos números, que definitivamente hão de comprovar. Ao acionar um esquema de distribuição independente inédito para um filme desse porte, e ao arriscar um programa de lançamento comercial mais radical que o de muitos blockbusters norte-americanos, Tropa 2 parece fazer do risco e da audácia elementos centrais de uma estratégia a se perseguir. Mas ao jogar "pra galera", combinando denúncia requentada, exploração crassa da violência urbana e faro fino para o que comove e diverte as massas, o filme reverte sua posição, revelando um calculismo de mercado que impede um voo artístico pleno e satisfatório. Não que isso incomode a maioria, muito pelo contrário. Fato é que, em meio a essas contradições (e há muitas e muitas outras que o filme incorpora e traz à tona), Tropa 2 promove um espetáculo como nenhum outro, notável em sua perspicácia e capacidade de realização. É um filme que nasce incontornável e sobre o qual o cinema brasileiro há de se debruçar por muito tempo. E se, no fim, um herói mascarado se revelou o herói que Gotham merece e não o que ela deseja, com Tropa 2 a questão é mais simples: ele é o filme que o Brasil quer neste momento. Se o merece ou não, é outra história. Fernando Veríssimo Outubro de 2010 Revista Cinética 11 Disponívem em http://www.revistacinetica.com.br/tropa2.htm Tropa de Elite 2 põe os políticos na roda PAULÍNIA Gostei. E o público de Paulínia, este primeiro público de convidados, também gostou. Aplaudiu bem no final. Filme forte, bem feito, com cenas de impacto. Gostei, mas em termos. Sinto falta da mesma coisa que sentia em relação ao Tropa de Elite 1: um pouco de sutileza, mais senso de nuance, respeito pela complexidade das coisas. Padinha gosta de simplificar, o que é ok. Só que perde em profundidade. Mas o filme impressiona em vários momentos. Aqui em Paulínia foi aplaudido durante a projeção algumas vezes. Em especial numa hora em que o agora coronel Nascimento cobre de porrada um desafeto e o ameaça de morte. Uma moça ao meu lado, muito bonita e bem vestida, aplaudia freneticamente. As pessoas gostam desse tipo de coisa. A novidade, em relação ao filme anterior, é que este apresenta a conexão do crime organizado com os estratos mais altos da sociedade – com o poder político. Dessa forma, ao chegar à Secretaria de Segurança do Rio, Nascimento (Wagner Moura) descobre que lá reside o centro do “sistema”, como ele chama. Quer dizer, Padilha quer ampliar seu espectro de diagnóstico. Se em Ônibus 174 ele se colocava no ponto de vista do marginal, e em Tropa de Elite 2 no ponto de vista da polícia, agora busca a motivação política – quer dizer, da busca pelo poder – como a fonte maior do tráfico, dos crimes, do dinheiro que circula; em suma, do Estado. Numa época de descrédito com a política, não poderia faltar o sobrevoo da câmera sobre Brasília para sugerir que a cabeça da serpente está sempre um andar acima do que se supõe. Aliás, Padilha não sugere nada. Diz explicitamente, à sua maneira. Ao vê-lo, talvez o público não ganhe muito em compreensão, mas desafoga mágoas e frustrações. Dentro desses limites, o filme funciona. Mix de drama policial, thriller político e filme de máfia, deve fazer sucesso. Luiz Zanin Oricchio O Estado de S. Paulo (blog) Disponível em http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/primeira-impressao-sobre-tropade-elite-2/ 12 Trabalhar Cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra "Trabalhar Cansa" combina realidade e sobrenatural "Trabalhar Cansa," que marca a estreia na direção de longas dos premiados curtametragistas Juliana Rojas e Marco Dutra ("Um Ramo"), transita entre o horror e o drama social. Há ainda o horror que advém das diferenças sociais e do mercado de trabalho no Brasil, mas isso passa longe do sobrenatural, já que é o drama real da classe média. O filme estreia em São Paulo, Rio de Janeiro, Campinas e Porto Alegre. Concorrente na seção "Un Certain Regard" no último Festival de Cannes e premiado no Festival de Paulínia deste ano (prêmio especial do júri e melhor som), "Trabalhar Cansa" participa da mostra competitiva do Festival de Brasília, que acaba na próxima segunda-feira. Em sua obra, os diretores sempre lidaram com o sobrenatural, às vezes de forma explícita, às vezes apenas em um flerte. Por isso, não é de se estranhar quando esses elementos surgem em "Trabalhar Cansa" (título inspirado numa obra do italiano Cesare Pavese). Mas nem sempre há um trânsito orgânico entre eles e o realismo na trama, também assinada pelos diretores. No filme, Otávio (Marat Descartes, de "Os Inquilinos") perde seu emprego na mesma época em que sua mulher, Helena (Helena Albergaria), abre um mercado de periferia. Chega à casa da família Paula (Naloana Lima), empregada e babá que vai cuidar da filha pequena, Vanessa (Marina Flores). Aos poucos, os papéis de Otávio e Helena se invertem. Ela se torna a chefe do lar, traz o dinheiro e sustenta a casa, trabalhando fora o dia todo, enquanto ele procura emprego e tenta pequenos bicos, como telemarketing. As relações trabalhistas também ficam tensas, tanto entre Helena e um funcionário de seu mercado, quanto entre o casal e a empregada. O toque sobrenatural começa com um cachorro na porta do mercado e uma umidade inexplicável na parede do estabelecimento. Os elementos se intensificam e, mesmo que nunca totalmente explicados, servem como uma metáfora para as deturpadas relações familiares, sociais e trabalhistas dos personagens. A simbologia acaba bastante carregada no filme e o foco recai sobre elementos de estranhamento, deixando narrativa e personagens em segundo plano. Há muitas vezes a necessidade de apenas estranhar, pelo simples estranhamento. Nem sempre isso causa 13 uma reflexão ou perplexidade, algo que faria muito sentido por conta dos temas do filme. A atriz Helena Albergaria, que participou de outros curtas da dupla, cria uma protagonista um tanto fria, distante, uma dona-de-casa que começa a se entusiasmar pelo capitalismo e quer se transformar numa mulher de negócios. Por outro lado, Marat Descartes é capaz de trazer à tona toda a humanidade e conflitos de seu personagem - de longe, o mais estruturado e complexo do longa. Alysson Oliveira UOL e Cineweb Disponível em http://cinema.uol.com.br/ultnot/reuters/2011/09/29/estreia-trabalhar- cansa-combina-realidade-e-sobrenatural.jhtm Trabalhar Cansa, de Marco Dutra e Juliana Rojas (Brasil, 2011) – Un Certain Regard No entanto, o cinema (como dizíamos ontem) pode tudo, e assim como simplesmente o movimento pode construir por si mesmo um grande filme, a paralisia também pode ser extremamente cinematográfica – como nos lembram estes dois filmes exibidos na seção Un Certain Regard. Ambos nos relembram como também é forte e potente a capacidade do cinema, ao misturar formatos e gêneros estabelecidos, e dar a eles novos sentidos, recriando aqui, com motivos bem distintos, a idéia de um horror do cotidiano. Trabalhar Cansa vai ser muito discutido, diga-se, a partir da chave do gênero. Afinal, ainda é curiosamente raro no cinema brasileiro que cineastas se aventurem por este terreno onde o sobrenatural e o inexplicável se somam ao banal e comum, e permitem criar essa “realidade ampliada”, à qual o cinema serve tão bem. No entanto, o que o filme tem de mais forte não passa por nada disso, necessariamente. A verdadeira força do filme está na capacidade precisa de colocar na tela, como poucos filmes brasileiros conseguiram até hoje, um estado incrivelmente tenso e duro das relações entre classes, e das distintas pressões modernas exercidas pelo capitalismo em diferentes classes, e em indivíduos que sentem a necessidade de desempenhar papeis específicos. Afinal, existe ainda a lenda de que o Brasil é terra sem conflitos, e o que Marco Dutra e Juliana Rojas expõem aqui de maneira tão dolorosamente dura (e doce, ao mesmo tempo) é o tamanho dessa mentira – os conflitos existem e abundam, apenas estão todos sublimados e naturalizados em gestos os menores (seja no mercado de trabalho, seja nas relações domésticas, seja na dinâmica entre as gerações). 14 A inteligência do filme começa por um roteiro cuidadosamente trabalhado, que não se contenta com criar uma trama de poucos ecos e personagens simples. A cada novo personagem que entra em cena (depois do casal principal e sua filha pequena, vão se somando os empregados do supermercado que ela abre, a nova doméstica que chega para trabalhar na casa deles, a mãe da dona da casa, a irmã do marido, etc etc), soma-se uma camada deste jogo de relacionamentos que atinge o raro feito de passar por todas as chaves (social, étnica, doméstica, etc) sem com que nenhum deles se torne apenas um “representante de algo”. Todos os atores emprestam vida interna a seus personagens, sem com isso precisarem se tornar apenas indivíduos desvinculados do contexto específico que é morar num grande centro urbano brasileiro em determinado momento da história. Muito precisa ser dito e analisado sobre o filme ainda, pois ele é inundado de cenas que pedem detalhamento, discussão, questionamento, impressões fortes – mas não será em Cannes o momento para isso, com a “maratona crítica” pela qual passamos (e com o filme ainda inacessível para a maior parte dos leitores). Por enquanto o que basta anotar é como Trabalhar Cansa é objeto raro e impressionante (ainda mais como um primeiro longa), e que sua capacidade de filmar um Brasil que se pretende diferente, mas que ao mesmo tempo corre em falso, é algo a se reter. Eduardo Valente Revista Cinética Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/cannes11dia4.htm Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra Potências do mal estar A estréia em longa-metragem da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra é algo diferente no panorama do cinema brasileiro atual. Enquanto a tendência é colocar a afetividade no centro, em geral com certa doçura inocente ou uma afirmação positiva das relações, como se o afeto fosse capaz de salvar as pessoas da tragédia do mundo, Trabalhar Cansa é um filme político, no sentido mais puro que a palavra pode ter, algo que se desgastou como uma grife de cinema nos últimos 40 anos. É um filme de pessoas no mundo: pessoas em conflito, o homem como ser social, como um animal num mundo que lhe é hostil e cuja existência harmônica lhe parece estranha. O mal-estar na civilização. As relações são mediadas de modo muito fino por uma mistura dos sentimentos e dos papéis sociais: a empregada que mora em casa, mas quer a carteira registrada; o marido 15 que perde o emprego enquanto a esposa vira dona de estabelecimento comercial; a mãe que se acha patroa da empregada da filha por extensão; a funcionária que joga do lado tanto dos colegas quanto da patroa. Todas as personagens têm essa “dupla função”: jogam com seus sentimentos em relação ao outro, mas também com os interesses (às vezes, os mais baixos possíveis). Essa pulsão que move as relações só se faz possível, enquanto dramaturgia, pelo tom preciso do filme, que transita da observação seca à doçura, do drama existencial ao cômico, da comédia à tragédia, sem deixar marcada as fronteiras que separa um momento do outro. Sai daí uma fruição hawksiana, que se move pelos momentos sem deixá-los ser apenas isso, mas sim partes orgânicas de um todo pulsante. O filme certamente será abordado pelo seu lado sobrenatural evidente, ainda mais que este aspecto perpassa a obra da dupla desde seu primeiro curta-metragem. Contudo, se antes esse elemento era uma metáfora de algum aspecto psicológico da personagem (e isso é trazido para a frente em As Sombras), aqui o terror é antes de tudo uma materialização do estado de mal-estar das personagens. Pois se o caminho era criar uma imagem “psicológica” nos curtas, agora as imagens têm uma relação física. Aliá-lo ao cinema de terror é reduzir sua potência e ignorar o que há de mais evidente em sua misè-en-scene: pessoas no espaço. Pois, Trabalhar Cansa é um filme físico. A obra se faz no nível do homem, tanto por negar uma metafísica no jogo das relações, quanto por se preocupar em filmar os atores – e é sintomático que seja um filme com tão poucos planos de passagem. É filme feito de carne e osso, louças, papel, tesoura, marreta, pano, correntes e vassouras. E isso é o que há de efetivamente fantástico nele. Raul Arthuso Revista Cinética Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/paulinia11dia6.htm Notícias de uma guerra particular (1999), de João Moreira Salles e Kátia Lund O trecho a seguir é retirado do artigo científico “Expressões fílmicas da violência urbana contemporânea: Cidade de Deus, Notícias de uma guerra particular e Falcão, meninos do tráfico” “...O filme de João Moreira Salles e Kátia Lund captou, elaborou e expressou uma situação em larga medida restrita aos morros cariocas e aos bairros de periferia das 16 grandes cidades brasileiras, que já viera à tona dois anos antes, em 1997, com a publicação de Cidade de Deus, romance de Paulo Lins. O depoimento de Paulo Lins no documentário contribui para a identificação do tráfico como elemento responsável pela mudança de qualidade do crime na periferia. Tese defendida pelo filme na introdução, narrada por uma vozover, que depois desaparece, mas que informa dados do tráfico. O trajeto de um veículo policial em direção a uma central de incineração de drogas, na periferia do Rio de Janeiro, a chegada ao local e a queima do pó – com destaque à fornalha em chamas – é o motivo visual que ilustra a fala que denuncia o tráfico de drogas como causa da situação de violência que o filme vai dissecar. A partir dessa introdução, o filme contrapõe visões de moradores, pressionados no meio de campo do conflito entre traficantes e policiais. A seqüência de entrevistas é apresentada em capítulos com títulos temáticos, um dispositivo que Cidade de Deus também adota. O uso de imagens de tiroteios captadas e exibidas por telejornais sensacionalistas permite que se pense sobre as maneiras pelas quais a situação é veiculada. Mas o filme em si não discute o problema. Em Notícias, entrevistas editadas por tema e intercaladas com material de arquivo realçam a complexidade envolvida no convívio de partes desiguais, mediadas pelo porte disseminado de armas. A necessidade de preservar a identidade dos entrevistados envolvidos com o"movimento" justifica a exibição de mascarados, no caso dos adultos, ou de rostos com feições diluídas eletronicamente pelo efeito vaselina, no caso de crianças. O som de música instrumental, em tom grave, realça a dramaticidade da situação que evolui em direção ao cemitério, com enterros em montagem paralela de um policial e de um jovem – negro. Diversos realizadores e sujeitos que aparecem nos filmes posteriores se dedicam a confirmar ou contestar versões de Notícias. O tema é candente e o cinema se estabelece como veículo privilegiado para dar visibilidade a uma chaga até então oculta. O cinema se beneficia de uma liberalidade para exibir uma brutalidade que a TV não suporta. Filmes sucessivos podem ser entendidos como proposições de novas formas de contar uma história trágica e ameaçadora. Com esses filmes, o cinema recupera a capacidade de gerar polêmica. Uma vez visível, o universo da favela provoca diferentes padrões de visualidade. Em 2002, em Cidade de Deus, Ônibus 174, O invasor, Uma onda no ar, a formafílmica se torna motivo de debate.” Ester Hamburguer 17 Revista de Antropologia (USP) Disponível em http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012008000200006 O trecho a seguir é retirado do artigo “Aspectos do documentário brasileiro contemporâneo”. “...Notícias de uma guerra particular, deJoão Salles e Kátia Lund, é fruto de um dos poucos experimentos de co-produção bem-sucedidos entre um canal por assinatura (GNT/Globosat) e uma produtora independente (a carioca Videofilmes) – parceria que gerou séries importantes, como Futebol (1998), de João Salles e Arthur Fontes, e 6 histórias brasileiras (2000), de João Salles e Marcos Sá Corrêa, entre outros diretores. Realizado entre 1997 e 1998, Notícias de uma guerra particular aborda os impasses desse confronto entre policiais e traficantes nos morros e periferias do Rio de Janeiro, e os efeitos do conflito na vida cotidiana da população pobre, moradora dessas regiões conflagradas. Embora tenha o morro Santa Marta como locação privilegiada, particularizando em alguns momentos a abordagem, o filme pretende realizar um diagnóstico da escalada de violência no Rio relacionada ao tráfico de drogas – que só fez piorar desde então. Trata-se de um filme realizado sem roteiro, na “urgência” e no “improviso”, segundo o próprio diretor, fruto de “um desejo de ser testemunha” (SALLES, 2006, 157-8) – e por isso é um filme que difere de uma certa “estética da observação”, mais frequente no cinema de Salles. Crucial para a inclusão das questões envolvendo tráfico de drogas, contrabando de armas, violência e pobreza na pauta audiovisual nacional, Notícias concentra e deixa nítidas tensões da violência carioca presentes em alguns filmes de ficção dos anos 90. É como se o documentário estabelecesse um pano de fundo, destrinchasse os mecanismos da violência e se apresentasse como síntese de uma situação com a qual todo filme realizado nas periferias e morros do Rio teria, dali para frente, que se confrontar – ainda que na forma de evitação e recusa.” Consuelo Lins e Cláudia Mesquita Laboratório “Cultura Viva” Disponível em http://labculturaviva.org/node/992 18 O trecho a seguir foi retirado da tese “Documentário brasileiro contemporâneo e violência urbana” Notícias de uma guerra particular inicia o percurso aqui proposto e, de certa maneira, o resume, pois acreditamos que neste filme a relação com o contexto histórico tenha sido mais determinante. Ou seja, consideramos que circunstâncias sociais, e políticas, sobretudo, influenciaram sobremaneira a forma como o filme se estruturou. Dirigido por João Moreira Salles e Kátia Lund, com a colaboração de Walter Salles, Notícias buscou estabelecer uma percepção sobre a criminalidade e a violência carioca a partir de depoimentos dos principais sujeitos envolvidos: policiais, traficantes e moradores de favelas. O filme é resultado de pesquisas e filmagens feitas entre 1997 e 1998 no Morro Santa Marta, bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. A determinação de um contexto particular, vivenciado no estado do Rio de Janeiro à época, fez de Notícias de uma guerra particular “um filme de Documentário brasileiro contemporâneo e violência urbana urgência”. O momento era de expansão do tráfico de drogas, que criou uma verdadeira guerra civil nos morros por disputa de controle, conforme colocado logo na abertura do filme, na solução narrativa convencional da voz em off que resume o argumento dos diretores. A socióloga Julita Lemgruber explica esse contexto, ressaltando o mercado lucrativo do tráfico de drogas. Para Lemgruber, o crescimento da criminalidade violenta nas favelas e nos bairros periféricos das regiões metropolitanas do país nos últimos vinte anos, determinado pela instalação do tráfico de drogas, levou aos conflitos entre facções rivais que disputam o controle de um mercado altamente lucrativo. Também ao longo dos anos, cresceram a violência e a corrupção policiais, umbilicalmente ligadas ao tráfico de drogas. É nesses territórios pobres e carentes de serviços públicos que se registram os mais altos índices de violência letal e, evidentemente, os números revelam que são os jovens negros e pobres as maiores vítimas (LEMGRUBER, 2004). Politicamente, o ano de 1997 no estado do Rio de Janeiro foi marcado por um momento crítico do governo do PSDB de Marcelo Alencar (1994-1998), que adotou 19 uma política de enfrentamento ao narcotráfico, comandada pelo chefe da Secretaria de Segurança Pública, General Nilton Cerqueira, que acreditava numa solução bélica para a guerra de traficantes nos morros cariocas. As operações de confronto resultaram na prisão e morte das principais lideranças do tráfico, e na morte de vários policiais em ação. Paradoxalmente, do outro lado, o chefe geral da Polícia Civil, Hélio Luz – que exerceu o cargo de 1995 a 1997 –, pretendia mostrar como a polícia estava agindo e como esta só fazia política de controle, de repressão. Em seu depoimento ao filme, Hélio Luz diz que “a polícia foi criada para ser corrupta e violenta, para fazer a segurança da elite que se protege recrutando moradores de periferia” (NOTÍCIAS DE UMA GUERRA PARTICULAR, 2005). Ele enfatiza o caráter político da polícia, dizendo que “se a cidade é injusta, garantimos a sociedade injusta. O excluído fica sob controle.” O tráfico é, segundo ele, é apenas um “espaço de exclusão”. E aponta a violência da miséria: “Para o miserável é emprego, não opção, trocar R$112,00 por mês por R$300,00 por semana. A miséria é violenta” (Ibid.). Segundo Alba Zaluar, para refletir sobre a violência urbana no Brasil de hoje é preciso entender o que representam dois negócios-chave, o tráfico de drogas e o contrabando de armas, negócios extremamente lucrativos ao funcionamento de um mercado livre de qualquer limite institucional ou moral, exatamente porque tratam com mercadorias ilegais, atividades econômicas que tendem a ser muito lucrativas para personagens estrategicamente posicionados que atravessam fronteiras e nações. Tal característica é o que pode explicar, para a antropóloga, as próprias conseqüências do aumento da violência. (ZALUAR, 2002). Outras personagens do filme, moradores de favelas, como Paulo Lins – em sua primeira aparição para a televisão, antes da publicação do livro Cidade de Deus –, o casal Janete e Adão Xalebaradã, e o líder comunitário Itamar Silva, também se referem ao contexto de expansão do tráfico, especialmente da cocaína, e das armas nas favelas. Eles enfatizam as mudanças provocadas na ação dos policiais e na vida das próprias comunidades, num discurso muito próximo ao cientificamente elaborado pelas pesquisas antropológicas e sociológicas de Alba Zaluar, Julita Lemgruber e outros. Para Janete, a entrada das armas no morro fez com que a polícia entrasse no lugar com mais cautela, porque passou a ter medo das reações. 20 Para ela, isso foi o lado bom do tráfico. O lado ruim, aponta, é a crueldade: “matam, esquartejam e mostram a comunidade pra ninguém vacilar, senão vai para a vala” (NOTÍCIAS, 2005). É Janete quem melhor define a nova geração de traficantes dos morros, ao dizer que tem “espírito suicida”: são “guerreiros” que não usam drogas e se preocupam com o corpo. Paulo Lins também enfatiza a mudança ocorrida com a “democratização” da cocaína: “a coisa ficou mais violenta” (NOTÍCIAS DE UMA GUERRA PARTICULAR, 2005), diz. Para ele, isso gerou na favela uma necessidade de delimitar territórios, de competição pelo lucro. “Quando saiu do espaço dos ricos para o espaço dos pobres a coisa ficou mais violenta. As mortes começaram a aparecer na mídia, sair do espaço da favela” (Ibid.). O papel de Hélio Luz em Notícias de uma guerra particular é determinante, não só por seu depoimento, que contribui para contextualizar as informações de outros “personagens”, como por possibilitar à equipe de filmagem o acesso às informações. Se não fosse exatamente pelo cargo de chefia ocupado por Luz, o filme não teria conseguido apresentar muitas de suas imagens, como o depósito de armas e os depoimentos dos meninos na instituição Padre Severino, por exemplo. Tanto é assim que em Ônibus 174, algumas imagens de Notícias de uma guerra particular foram utilizadas, pois o contexto era outro e os acessos tornaram-se muito mais difíceis, como observa o próprio João Moreira Salles (Ibid.). Ressaltamos ainda o “encontro inesperado” com Rodrigo Pimentel, e as gravações feitas logo após o primeiro contato, conforme explicou Moreira Salles (Ibid.), que fazem surgir o depoimento que inclusive dá nome ao filme. O documentarista analisa que isso foi ato de filmagem, portanto carregado da intensidade da tomada, pois que o entrevistado revelou-se totalmente diante da câmera, algo que parece inesperado até para o próprio, pela honestidade com que avalia sua ação no BOPE diante da câmera. Saberemos depois que Pimentel também tem formação em cinema, tendo atuado como co-produtor em Ônibus 174, no qual também tem ação decisiva para explicar os acontecimentos. Para Moreira Salles, Notícias de uma guerra particular assume um desencanto e um ceticismo em relação à maneira como o problema da violência é enfrentado no Brasil, mas não pode ser considerado pessimista. 21 Apenas mostra, através da metáfora do “beco sem saída”, que não há solução, pelo menos se for mantida a mesma política em relação à segurança pública. Ele fala, ainda, que a edição do filme acentuou “um certo impulso em direção à entropia”: o filme começa mais organizado e caminha para a anarquia absoluta, o caos, terminando na morte (Ibid.). O filme Notícias de uma guerra particular mostra que a violência é fruto da ausência de diálogo entre os envolvidos na guerra. “O próprio tom cético que finaliza o documentário abre ainda mais esta possibilidade: onde há efetivamente uma guerra, os beligerantes devem se sentar para discutir as diferenças e negociar, até – ou fundamentalmente – as injustiças praticadas pelas partes.” (RIBEIRO, 2000, p. 240). Segundo os diretores, o foco final na morte era uma certeza, a ponto de a produção esperar notícias de um policial morto em ação para finalizar as filmagens. O final do filme, além da morte de um policial e de um morador, dá ênfase ao crescimento da violência: na tela inscrições mortuárias aparecem ocupando todo o espaço, numa lápide que ao final está completamente tomada pelos nomes que não são mais legíveis, restando somente a tela preta. João Moreira Salles informa que os nomes não foram inventados, nem quando não havia mais nenhuma possibilidade de o espectador identificá-los (NOTÍCIAS, 2005). Foram mortes reais, que a produção do filme contabilizou e que mostram uma preocupação quanto aos próprios princípios do gênero documentário. Maria Beatriz Colucci, Doutora em Multimeios pela Unicamp Disponível em http://www.intermidias.com/txt/ed9/docbrasileiro.pdf Guantanamera (1995), de Tomás Gutierrez Alea e Juan Carlos Tabío "Guantanamera", de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío “Olofin fez a vida, mas esqueceu de fazer a morte. As pessoas viviam milhares de anos e seguiam mandando segundo suas velhas leis. Tanto clamaram os mais jovens que Olofin chamou Ikú, o qual fez com que chovesse trinta dias e trinta noites. Tudo foi ficando debaixo d’água. Só as crianças e os jovens puderam subir nas árvores 22 e nas montanhas mais altas. Depois que estiou, os jovens viram que a terra reaparecia mais bela e agradeceram a Ikú.” Revi, com um sorriso na boca e uma dor no coração, “Guantanamera”, dos cubanos Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío. Segunda parceria dos diretores, o filme é uma comédia triste, se é que essas duas palavras podem ficar juntas. É um filme engraçado, porque traz cenas impagáveis sobre o cotidiano surrealista de Cuba, que lembra muito o “jeitinho” brasileiro, o qual, por sua vez, não pode ser só analisado de forma negativa, na minha opinião: ele é também um jeito criativo de sobreviver, apesar das circunstâncias políticas e econômicas adversas. Não é à toa que meu pai chamava esse filme de “BR-101”, referência à viagem desde Guantânamo até Havana, que é a coluna vertebral do filme, e à semelhança que tudo guarda com a realidade brasileira. O enredo aparente é que uma grave crise de combustível se abate sobre a ilha (o filme é da década de 1990, depois da queda do muro de Berlim) e o transporte de defuntos se torna um problema a mais no dia a dia da população. Então, Adolfo, um funcionário graduado, tenta recuperar seu prestígio abalado, formulando um complicado plano, com baldeação do defunto província a província, o que termina por embaralhar de tal forma os mortos que eles são confundidos e, no final, nos damos conta disso. Esse personagem vive num mundo burocrático, violento, indiferente, ineficiente, autorreferente, falso, disfuncional e em ruínas, o que, com duas metáforas, o roteiro explicita – com a menininha, que anuncia mortes gerais, e com o mito de Olofin e Ikú, o qual, no meio do filme, do nada, aparece falado, acompanhado de imagens de cemitério e muita chuva. Paralelo a esse, outro mundo é mostrado – o de Gina (esposa de Adolfo), Mariano (ex-aluno de Gina) e Cândido (ex-namorado, já velho, da tia de Gina, Yoyita, cujo corpo está sendo transportado) e todo o resto da população de Cuba, olhado com muita complacência pelos diretores, até porque eles entendem, fica sugerido, o relativismo moral e ético que é necessário para a sobrevivência. Ariano Suassuna refere isso quando relata que compôs seus personagens pícaros a partir deste ditado popular que corre no sertão: “A astúcia é a sobrevivência do pobre”. 23 De fato, ao longo do caminho, tudo se vende e tudo se compra – alho, banana, porco, galinha... – não com a moeda oficial, mas com outra, mais próxima do dólar, que corre, invisível, porém real, no país. A contravenção corre solta e valida a vida. Nesse mundo, ela, a vida, acontece, com seus dispositivos – o amor, a infidelidade, a traição, os relacionamentos, o perdão, o abandono, a solidão, os enganos... e... a morte, que poucos entendem como elemento desse conjunto. A cena final sintetiza o enredo: em cima de um púlpito, Adolfo fala mentiras, enquanto Mariano e Gina fogem de bicicleta. Aí cai uma chuva, todos correm e aparece a menininha da morte, surda aos apelos por ajuda de Adolfo. Quando meu amigo Samarone chegou de Cuba, me disse que o desperdício geral de nossa sociedade foi o que mais doeu nele, depois de testemunhar a penúria de lá... É essa a parte triste do filme – a frustração; “a vida que podia ter sido e que não foi”; a pobreza; a adesão obrigatória à pirataria e ao relativismo moral; a realidade esquizofrênica com que a população tem de lidar; as fugas; as famílias partidas; as delações; a violação de direitos; os desvios de vocação e de profissões... tudo potencializa as dificuldades inomináveis de tão grandes da vida em si... A Fariñas, que, com seu protesto pacífico e heroico, conseguiu, de outra forma, chamar a atenção da comunidade internacional sobre a violação de direitos humanos em Cuba. E ao povo cubano, com que, desde sempre, me identifico. Flávia Suassuna Trança Disponível em http://fsuassuna.blogspot.com.br/2010/07/guantanamera-de-tomas-g- alea-e-juan.html Guantanamera Anotação em 1996: Uma delícia, tão bom, competente e bem feito quanto o anterior da dupla de diretores cubanos, Morango e Chocolate. (Alea morreu em abril deste ano, 1996.) É igualmente crítico dos erros do regime cubano, mas com uma crítica feita com amor e simpatia. A rigor, é ainda mais crítico que o anterior, é mais contudente no ataque à rigidez do regime, à incapacidade do regime de se adaptar, abrir brechas na estrutura imutável desde 1960. Mas é de fato uma crítica sem ranço, sem reacionarismo, sem nem um pouquinho de baba na gravata. É tudo bem humorado, pra cima, gostoso, com um grande 24 encantamento pelo povo cubano – mostrado como exatamente igual ao brasileiro: maroto, esperto, capaz de se virar, curtindo fazer pequenos trambiques, apaixonado pelos prazeres da vida, do sexo à bebida, comida, cigarro. É tudo bom – a música, a fotografia, os atores. O roteiro é delicioso. Simples, com um fiapinho de história e muitos casinhos dentro dela, praticamente esquetes. Um road movie, na melhor tradição – e Alea e Tabío aproveitam para mostrar paisagens lindíssimas da ilha, assim como as mazelas da pobreza trazida pelo embargo americano e ampliada com o fim do subsídio que era dado pelo império soviético: o casario lindo apodrecendo, a falta de infra-estrutura, a falta de comida. Usa muito bem pitadinhas de realismo fantástico: a menininha que aparece para o músico idoso, lembrança que ele tem da infância da cantora que saiu aos 17 anos de Guantánamo e conquistou o mundo, mas nunca saiu da memória dele. Usa flashbacks em preto e branco brilhantes, curtinhos, quando a ex-professora encontra o ex-aluno, os dois atraídos um pelo outro mas incapazes de concretizar o amor por ela ser casada. A história: Yoyita, a cantora nascida em Guantánamo, que saiu de sua cidade aos 17 anos, volta agora, 50 anos depois, para ser homenageada; é recebida pela sobrinha, a exprofessora, Gina, e revê o namorado da adolescência, um músico da orquestra local, Cândido (acho). Quando se encontram e conversam sobre o passado, fazendo planos de nunca mais se separarem, ela morre. Em ação paralela, vemos o marido da sobrinha, uma pessoa que já teve postos importantes na estrutura do regime, e hoje é o encarregado do serviço funerário de Guantánamo. Ele está em Havana, junto com seus pares das várias cidades do país, discutindo exatamente como e onde enterrar os mortos – se em suas cidades natais, se no lugar que a família escolher, se nas cidades onde acontecessem as mortes. E vence justamente a posição defendida por ele, a de que a responsabilidade deve ser distribuída por todas as cidades, e as pessoas devem ser enterradas onde viveram os últimos anos da vida. O corpo de Yoyita, portanto, deve atravessar o país, do extremo Leste, Guantánamo, ao extremo Oeste, Havana. Durante a viagem, Gina se encontra diversas vezes com o ex-aluno, hoje um caminhoneiro safado e mulherengo. Há todos os tipos de peripécias e, quase no fim, a inevitável troca de caixões. O encarregado do serviço funerário é a encarnação da burocracia rígida do regime cubano. A crítica é ferina, virulenta. 25 Há um diálogo especialmente delicioso. O caminhoneiro conta para o companheiro que, na faculdade, estudava uma matéria chamada Comunismo Científico. Ultimamente, a matéria tinha passado a se chamar Socialismo Científico. E o companheiro brinca que no futuro ela será substituída por Capitalismo Científico. Sérgio Vaz 50 anos de filme Disponível em: http://50anosdefilmes.com.br/1996/guantanamera/ Uma Cuba menos marxista Guantanamera mostra como o capitalismo desponta na Cuba socialista Lançado em 1995, Guantanamera é um filme singular de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío que mostram uma Cuba ambivalente, arcaica e jovial, onde o socialismo perde espaço para o capitalismo do trabalho informal. A obra, uma fusão de comédia, crítica social e road movie, apresenta Tia Yoyita (Conchita Brando), uma mulher já idosa que está em Guantánamo, sua cidade natal, para rever parentes e amigos. Durante a visita, Yoyita morre, mas não pode ser enterrada em Guantánamo. Uma nova lei determina que cada cubano deve ser sepultado na cidade onde viveu os últimos anos. Então surge um problema logístico, o de transportar a falecida até o outro lado da ilha. O caricato funcionário público Adolfo (Carlos Cruz), autor do projeto e marido de Georgina (Mirta Ibarra) – sobrinha da falecida, é designado para o trabalho. Durante o percurso, surge uma série de contratempos que destacam os muitos problemas da revolucionária Cuba. São inesquecíveis as cenas das paradas do cortejo fúnebre; os viajantes sendo abordados por ambulantes vendendo bananas. A maioria rejeita o peso, a moeda oficial, e exige o pagamento em dólares. Os principais personagens, de ideologia marxista-leninista, tentam confrontar o capitalismo que desponta de modo informal em Cuba. Há muitos momentos de ironia que ressaltam um cotidiano paradoxal. Em Guantanamera, as críticas surgem sutis, bem humoradas e até belas. Outro exemplo emblemático é a cena do caminhoneiro Mariano (Jorge Perugorría), apaixonado por Georgina, que se recorda de quando estudava comunismo científico, disciplina transformada em socialismo científico. “No futuro, será capitalismo científico”, debocha o personagem Ramón (Pedro Fernández). Os muitos questionamentos políticos 26 feitos por Alea e Tabío permitem ao espectador levantar dúvidas sobre o meio em que vive. Através da obra, o público pode até despertar para a necessidade de propor algum tipo de mudança. Considerado o menos superficial de todos os filmes de Tomás Gutiérrez, Guantanamera é contundente como uma crítica que se conjetura em autocrítica. Os autores deixam implícito que se Cuba se desvanece em vários aspectos, como o cadáver dentro do caixão rumo a Havana, é porque cada cubano tem parcela de culpa. É possível até fazer uma interpretação mais íntima da morte de Yoyita, já que Alea estava se tratando de um câncer quando decidiu rodar o filme. Curiosidade Embora guantanamera seja um gentílico para as mulheres nascidas em Guantánamo, no sudeste cubano, no filme também é uma referência a canção folclórica de José Martí e Joseíto Fernández. David Arioch Jornalismo cultural Disponível em: https://davidarioch.wordpress.com/tag/juan-carlos-tabio/ 27