Tênis e Futebol: Duas Éticas - Escola de Engenharia de São Carlos

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Tênis e Futebol: Duas Éticas - Escola de Engenharia de São Carlos
Artigo publicado na revista “nittenis”, Niterói - RJ, Ano VII, No 41, Agosto/2005, p. 12.
TÊNIS E FUTEBOL: DUAS ÉTICAS
José Carlos Cintra
([email protected])
No torneio Masters Series de Roma, realizado em maio deste ano, Andy Roddick
jogava, nas oitavas-de-final, contra o espanhol Fernando Verdasco. Roddick ganhara o
primeiro set, estava ganhando o segundo por 5x2 e, no saque de Verdasco, tinha três
match-points.
Verdasco efetua um saque para fora e, no segundo, o juiz de linha grita fault, por
julgar que de novo a bola tenha caído fora da área de saque. Como não houve correção do
árbitro de cadeira, teria sido “dupla falta” e ponto para Roddick que, assim, teria ganho a
partida. Mas, Roddick vai em direção à marca deixada pela bola e passa o pé sobre a
marca, no gesto característico dos tenistas para acusarem que a bola foi boa. Portanto, um
ace. O placar no game passa a 40x15, para Roddick, que ainda tem dois match-points. Mas
Verdasco confirma o seu serviço, conquistando esse game. Em seguida, quebra o serviço
de Roddick, confirma de novo o seu e, depois, acaba ganhando o segundo set em 7x6. Isso
provoca um terceiro set, que também é ganho por Verdasco, que sai vencedor da partida,
eliminando Roddick do torneio.
A atitude de Roddick, ao passar o pé sobre a marca da bola, precisa ser mais bem
entendida pelo grande público, leigo em tênis. Não se trata simplesmente de um ato de fairplay do americano, como caracterizou o jornal A Folha de São Paulo, em 6/5/2005 (Contraataque, página D 2). É muito mais do que isso. Corrigir a marcação do juiz, contra si, é uma
atitude freqüente entre os tenistas.
Situação quase idêntica à de Roddick foi vivida pelo novo gênio do tênis, Rafael
Nadal, no Brasil, no torneio da Costa do Sauípe, em fevereiro deste ano. Uma passada de
pé sobre a marca da bola, corrigindo o juiz, numa jogada de match-point a favor, também
levou a partida para o terceiro set. Curiosamente, o próprio adversário, o argentino Agustin
Calleri, já se encaminhava para a rede para cumprimentá-lo pela vitória, quando Nadal
passou o pé na marca. Mas Nadal ganhou o set decisivo e, portanto, a partida, e, depois,
acabou sagrando-se o campeão daquele torneio. E de lá para cá, Nadal chegou a diversas
finais e conquistou outros cinco títulos, inclusive o de Roland Garros, o que é um
desempenho extraordinário. Parece que o título de Sauípe alavancou a carreira de Nadal.
Mas ele poderia nem ter chegado à final daquele torneio, se tivesse perdido o terceiro set da
partida de quartas-de-final em que passou o pé sobre a marca, no seu match-point do
segundo set.
Alguém que não está acostumado com o tênis poderia interpretar que, no episódio
de Roma, Roddick só teve aquele procedimento por imaginar que a partida já estava ganha.
Ledo engano. Não importa o momento do jogo; se o tenista vê o erro do árbitro a seu favor,
ele não aceita o ponto. Isso ocorre porque desde criança, no dia-a-dia das aulas de tênis, dos
treinos, e das competições amadoras, os tenistas são ensinados a terem esse
comportamento. Nos inúmeros torneios infanto-juvenis que se realizam no Brasil, por
exemplo, promovidos pelas federações estaduais ou pela confederação brasileira, valendo
pontos para o ranking, não há árbitro nas quadras. Os próprios tenistas decidem se a bola
foi boa ou fora, indicam o placar para o “boleiro”, etc. Apenas no caso de dúvida, um
árbitro é chamado. E, muitas vezes, antes do árbitro chegar à quadra, os tenistas já
resolveram a dúvida e deram continuidade à partida.
É por isso que, após muitos anos praticando o tênis, um profissional como Roddick,
Nadal e tantos outros, não hesitam em passar o pé sobre a marca da bola, independente da
importância do ponto em jogo. Isso é “regra” e não exceção, porque isso constitui uma
espécie de ética do tênis. Tenistas que não seguem essa ética são uma grande minoria. São
verdadeiros “estranhos no ninho”. Nos torneios infanto-juvenis são muito poucos os
garotos tidos como “espertos”, o que, no mundo do tênis, é pejorativo.
É possível que o tenista se descontrole por causa do próprio erro e até acabe
descontando na raquete, ou que reclame mais ostensivamente da marcação do árbitro em
quadras cujo piso não deixam marca, mas, em seguida, se constatar um erro a seu favor,
recusa o “benefício”. No torneio profissional feminino de Wimbledon, em 2004, o árbitro
de cadeira enganou-se na contagem, atribuindo um ponto a mais à croata Karolina Sprem,
que estava sacando no tie-break do segundo set, contra a americana Venus Williams. O
jogo continuou com esse ponto “a mais”. Posteriormente, foi colocado em dúvida o
comportamento da croata, que foi beneficiada pelo erro do árbitro e que acabou ganhando a
partida, em dois tie-breaks. Se ela percebeu o equívoco, deveria ter recusado aquele ponto,
de acordo com a ética vigente no tênis.
Em contraposição, tem-se o vale-tudo do futebol. Quase à mesma época do torneio
de tênis de Sauípe, ocorria uma partida de futebol do campeonato paranaense, em que o
Atlético-PR perdia, em casa, para o Império por 2x1. Em lance reprisado diversas vezes na
TV, o atleta William do Atlético chuta a bola na rede, pelo lado de fora, cai ao chão e
lamenta pela oportunidade perdida, colocando às mãos à cabeça. Mas, a bola fura a rede
lateral e balança a rede ao fundo, o bandeirinha assinala gol e o árbitro confirma. O autor
do lance instantaneamente começa a comemorar o seu “gol”, que decretou o empate. E o
gol de mão de Maradona, contra a Inglaterra, nas quartas-de-final da copa do mundo de
1986, no México? O árbitro não viu a irregularidade e considerou válido o “gol” da
Argentina, que acabou vencendo por 2x1. E por isso os argentinos louvam até hoje a
malandragem de Maradona. Cair na área para “cavar” uma penalidade máxima é tentativa
corriqueira, às vezes até incentivada pelos treinadores. No futebol, ludibriar o árbitro é
sinal de esperteza. Não é a toa que a conhecida lei de Gerson, que preconiza levar
vantagem em tudo, tem relação com o futebol. Gerson, um dos maiores craques do Brasil,
na década de 70, fez uma propaganda na TV usando essa ideologia que, por isso, recebeu o
nome de lei de Gerson. E o torcedor apaixonado costuma dizer que ganhar “roubado” é
mais gostoso.
Na final de campeonato paulista de 1973, entre Santos e Portuguesa (a Lusa),
persistiu o empate de 0x0 até o final da prorrogação. Na decisão por pênaltis, após três
cobranças de cada equipe, de uma série de cinco, chegou-se ao placar de 2x0 para o Santos.
O árbitro Armando Marques precipitou-se e encerrou as cobranças, conferindo o título ao
Santos. O técnico da Portuguesa, Oto Glória, percebeu o erro e, rapidamente, retirou os
seus jogadores de campo e do vestiário, por avaliar que seria difícil reverter a situação, caso
fossem retomadas as cobranças de pênalti. Alertado do erro, o árbitro foi ao vestiário pedir
que a Portuguesa voltasse a campo, mas não encontrou os jogadores. Essa “esperteza” foi
recompensada: decidiu-se “dividir” o título entre os dois clubes, considerando-os ambos
campeões.
Essa é a ética do mundo do futebol. Desde criança, até nas escolinhas de futebol,
aprende-se o vale-tudo. Desde que o árbitro não veja, podem e devem ser usados todos os
meios. Assim, proliferam as variadas formas de provocação entre os jogadores, incluindo
xingamentos, ofensas e até cusparadas.
Dentro dessa ética, a esperteza e a malandragem são o comportamento esperado, ou
pelo menos o aceito como normal. Se um jogador avisar o árbitro que não foi gol ou que
não foi pênalti, “prejudicando” a sua equipe, será considerado um “estranho no ninho”, um
ingênuo. Será recriminado pela sua torcida, dirigentes e companheiros de time.
Vê-se, portanto, que são duas éticas praticamente opostas, a do tênis e a do futebol.

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