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LUA NUA Texto de Leilah Assunção PERSONAGENS SÍLVIA LÚCIO DULCE Sala de jantar de sobrado de classe média ascendente. Em primeiro plano, Sílvia e Lúcio – um casal entre trinta e trinta e cinco anos -, sentados à mesa estão esperando o café. Lêem o jornal, cada um concentrado em sua página. Ambos estão arrumados para sair, mas ela ainda está de chinelos, roupa solta, sem cinto. Na mesa, xícaras e algumas frutas, apenas. Em segundo plano a sala de visitas. No fundo, à direita, a porta de entrada e uma janela bem ampla, com cortinas. A copa de uma árvore e trepadeiras aparecem pela janela aberta. À esquerda, porta que dá para a cozinha e dependências de serviço. Um relógio grande na parede, com ponteiros pouco visíveis. Uma escada leva para a parte superior do sobrado. Um carrinho de bebê, um ‘bebê comfort’ e brinquedos espalhados pela sala denunciam a existência de uma criança na casa. Lendo, Sílvia morde uma maçã e começa a rir. SÍLVIA – Olha aí, Lúcio: “touro”. Escuta só... LÚCIO – Sílvia, por favor... SÍLVIA (Lendo) – ‘Hoje é um dia de profundas mudanças, mas que aparentemente’... LÚCIO (Interrompendo) – segunda mão. Você sabe disso. Detesto ler notícia em SÍLVIA – Seu horóscopo!... LÚCIO – Isso! E amassa bem o jornal, amassa. Você sabe que eu adoro ler jornal amarrotado! SÍLVIA – Tudo bem... (Vira a página. Os dois continuam lendo em silêncio por alguns momentos.). LÚCIO (Surpreso) – Nossa! Escute isso: “oitenta por cento das mulheres da África de”... SÍLVIA (Interrompendo) diretamente, Lúcio. – Também prefiro ler LÚCIO – Tudo bem. (Pausa.) Mas que é muito esquisito, é. (Sílvia continua a comer a maçã, lendo.) Oitenta por cento... Pô... Deve ser bastante estranho... (Silêncio. Cada um dos dois lê a sua parte no jornal.) É surrealismo puro, oitenta por cento das mulheres da África... incrível. (Pausa.) Esquisitíssimo... é quase todo o Continente!... Se eu conto ninguém acredita. (Sílvia deixa o jornal e se levanta.) Praticamente as mulheres todas... (Sílvia caminha em direção à cozinha e pára atrás de Lúcio.) E mais aqui, nesta parte do Marrocos, do Irã... (Sílvia lê a notícia por cima do ombro de Lúcio.) Tem coisa pior do que ler jornal amassado, sim. É ler com um espírito respirando frio na nossa nuca. SÍLVIA (Apontando o jornal) – Você chama isso de esquisito, apenas? É de um barbarismo!... LÚCIO – Depende. Se esse hábito tivesse como objetivo o... controle da natalidade, por exemplo, justificar-se-ia plenamente. Aquele bando de gente que, vai ver, tem filho só para receber salário-família. SÍLVIA – Foi exatamente assim que Hitler começou. (Pausa.) E você sabe que não é o caso. (Aponta o jornal.) Isso aí não tem objetivo social nenhum. É coisa medieval, troglodita... (Penalisadíssima.) O clitóris... Ah... Pobres coitadas... LÚCIO (Irônico) – Foi exatamente assim que Madre Tereza de Calcutá começou. (Pausa.) Polyana também; Maria Goretti, Santa Izildinha... SÍLVIA – Às vezes você é de uma vulgaridade... LÚCIO – Ah, você pode me acusar de tudo, Sílvia, menos de vulgaridade. Já essa blusa aí que você comprou... SÍLVIA – Nenhuma roupa está me caindo bem ainda. LÚCIO – Toda mulher recupera o corpo poucas semanas depois do parto, mas você... SÍLVIA – A Dulce está demorando... LÚCIO – O Júnior já vai fazer oito meses... SÍLVIA – Chegou... É ela, a Dulce chegou! LÚCIO – E só por isso precisa ficar histérica? Calma... SÍLVIA – Entra por aqui, Dulce, vai! Estamos atrasados! (Pela porta da frente entra Dulce, a empregada, carregada de compras. Dulce é uma mulata exuberante, redonda e sensual. Veste uma blusa decotada.). DULCE – Nossa, que fila no supermercado! SÍLVIA – Por que não foi na Padaria? DULCE – Tinha muita coisa pra comprar. (Põe os pacotes sobre uma mesinha lateral.) E depois, falaram que hoje ia subir tudo, daí o supermercado então vira uma quermesse, né? Uma mulherada, fofocaiada, ai, que delícia, parecia dia de festa! SÍLVIA (Respira fundo) – Deixe o pão e a manteiga aqui e vá ferver o leite. DULCE – Correndo!... Se o Júnior acorda e não tem leite, vai ser um berreiro! (Dulce põe o pão e a manteiga na mesa, deixa as compras sobre a mesinha e sai pela porta dos fundos, levando o leite.). LÚCIO – Corre ferver o leite para o Júnior, claro. Agora, para o patrão dela, que paga o bendito salário dela, não tem pressa de ferver leite nenhum!... SÍLVIA – Ora, Lúcio... LÚCIO – Não, eu não tenho mesmo pressa alguma de chegar ao trabalho. Sou um engenheiro medíocre e descartável, nem sei por que fui indicado para esse estágio nos Estados Unidos, Sílvia. Aliás, quem viu aquele repolho se divertindo na fila do supermercado não imaginou jamais que hoje, quinta-feira, é o dia da minha entrevista com os americanos que vai definir se vou eu ou o Douglas para esse raio de estágio na América. SÍLVIA – Sei muito bem que a sua entrevista é agora, às dez e meia. Você não fala em outra coisa. LÚCIO – E tem coisa mais importante para falar? (Olha o relógio de parede.) Faltam cinco para as nove. E ainda tenho que buscar o carro, que você bateu, aí, na oficina. SÍLVIA – Bati não, encostaram em mim, eu não tive culpa, encostaram. LÚCIO – Não, não tem coisa mais importante para falar. Ou você não quer ir para a América? SÍLVIA – Quero: claro. É importante para a sua carreira, portanto é importante para mim também, mas... LÚCIO – Acho, inclusive, que você deveria deixar o seu emprego desde já. SÍLVIA (Rindo) – Você viu a conta do supermercado? LÚCIO – Não. Por quê? SÍLVIA – Veja. Pode preparar o cheque. (Lúcio pega a notinha e arregala os olhos.). LÚCIO (Assustado) – Meu Deus! Que é? Estoque para um mês? SÍLVIA (Rindo) – Se der para uma semana é milagre. LÚCIO – Mas eu te dei um cheque à semana passada!... SÍLVIA (Irritada) – E você acha que aquele cheque, hoje, vale alguma coisa? LÚCIO – Vale. Vale alguma coisa sim. É muito dinheiro, mui-to! Tente se organizar melhor. SÍLVIA – Só o meu médico dobrou a consulta. LÚCIO – Muda de médico. Eu já larguei o inglês, aqueles assaltantes!... (Pausa.) Com você tempo integral aqui em casa pelo menos eu não ia ter que trabalhar com esta mancha na camisa. Está vendo? Minha camisa nova, feita sob medida... manchada. Por culpa daquela anta que está lá na cozinha. SÍLVIA – Essa veio do tintureiro. E não estou vendo mancha nenhuma. LÚCIO – Aqui (mostra.). No reverso do punho! E ontem não tinha um lenço limpo no guarda-roupa, sabia? Tive que ir lá, no território dela, buscar, que a imperatriz estava se divertindo na farmácia. E antes de ontem molhei a samambaia do Amazonas, sabia? (Sílvia, distraída, espia discretamente pela janela.) Estou falando com você, caramba! A samambaia estava sem brilho nenhum, eu já tinha dito: ‘esta samambaia não está bem, vocês não estão cuidando dela, ela está fenecendo’. SÍLVIA (Sorrindo) – Fenecendo?... LÚCIO – Ela não está legal, eu falei. SÍLVIA – A Dulce tem uma atenção especial com ela, sim. LÚCIO – Mentira, eu mesmo tive que ir lá e molhar a planta. Pessoalmente, antes do trabalho, de terno e gravata. Mais um pouco e a condessa vai me obrigar a pintar de vermelho, uma por uma, todas as dez unhas daquele pezão dela. Você viu a hora que a papisa levantou hoje? SÍLVIA – Eu e ela nos revezamos a madrugada inteira: o Júnior não dormiu um segundo, de dor de barriga. LÚCIO – Por isso dorme tão pesado agora. Bem, pelo menos isso. Senão estariam agora as duas aos cochichos lá no quarto e eu... aqui. Imagine, a minha samambaia do Amazonas, a única planta que eu curto aqui dentro. SÍLVIA – A lavadora quebrou e a Dulce teve muita roupinha do Júnior para lavar. Eu tive que passar. Está semana está sendo barra, Lúcio. É hoje também a minha entrevista, do caso Teixeira Leite, eu te falei. Você sabe da importância disso para mim. Não tenho tido tempo nem para respirar! LÚCIO – Estou vendo mesmo. Faz dois dias que não tira essa saia. SÍLVIA – Achei que você gostava dela. LÚCIO – Gosto, mas nunca fui obcecado. SÍLVIA – As outras não me sevem ainda, fazer o quê? LÚCIO – Ginástica, por exemplo. Você fez três meses; por que parou? SÍLVIA – Para ir ao dentista! LÚCIO – Todo mundo diz que amamentar diminui a barriga. Você amamentou quatro meses e, no entanto... SÍLVIA – Diminuiu sim! Fora o prazer imenso que senti, tá? LÚCIO – Em compensação, os seus seios... SÍLVIA – Eles não caíram nada, não vem não!... LÚCIO – Mas perderam o atrevimento. SÍLVIA – Ô Lúcio, qual é, hein? Que foi que te deu hoje? Eu tenho feito... o que todas fazem, tenho inclusive me cuidado mais, ultimamente! LÚCIO – É: esta semana melhorou um pouco. Mas seu cabelo... SÍLVIA – Comecei a fazer algumas massagens com creme. LÚCIO – Ah, para cabeleireiro você tem tempo. SÍLVIA – Aqui mesmo, quando você não está, sacola! LÚCIO – Ainda bem que é quando não estou, porque mulher com creme e aquele lenço na cabeça... SÍLVIA – Você nunca me viu com creme e lenço na cabeça! LÚCIO – A Teca, que é uma simples secretária, hoje em dia parece uma manequim francesa perto de você, Sílvia! SÍLVIA – Peça para a sua secretária trocar comigo, então! Ela vem aqui exercer a minha função e eu vou lá fazer o trabalho dela! LÚCIO – Você não entende do trabalho dela. SÍLVIA (Gritando) – Dulce: morreu com esse leite aí, raios? LÚCIO (Olhando o relógio) - Até parece que dá tempo de tomar. (Levanta.) Diga para o repolho que engula e faça bom proveito do produto da obra-prima dela. (Vai até a escada, pára, olha para Sílvia.) Estou... um pouco chato hoje, não estou? SÍLVIA – Um pouco? LÚCIO – É que... Bom, nada. Você tem se cuidado mais mesmo, ultimamente. Está... mais agradável de se ver. SÍLVIA – Vem jantar em casa, hoje? LÚCIO – Se eu venho jantar em casa hoje?... Hoje é dia vinte e sete? SÍLVIA – É: vinte e sete; quinta-feira. (Pausa.). LÚCIO – Vinte e sete de julho. (Pausa.) Não, Sílvia, esta noite não virei jantar em casa. (Lúcio sobe as escadas e sai de cena. Dulce entra pela porta dos fundos, carregando uma leiteira.). DULCE – Desculpe!... É que eu tava fervendo o do Júnior... Uma, duas, um montão de vez, até suicidar dos micóbio todos! Vai que a vaca tava doente, né? SÍLVIA (Verificando as compras de Dulce, mesinha) – Pode levar, eu também não vou tomar. na DULCE – Só porque engorda! Assim a senhora vai sumir, dona Sílvia, não pode não... (Olha para a escada e fala baixinho.) Não vai jantar em casa hoje, eu escutei. Vai jantar com a secretária, claro, arranco meu olho fora se não for. A senhora quer se fazer de cega, mas tá na cara que ele tá tendo um caso com a Teca, dona Sílvia. SÍLVIA (Olhando, temerosa, para as compras e para a escada) – Comprou fortificante? O outro vidro está quase cheio. DULCE – Foi Seu Lúcio que pediu. SÍLVIA – Já falei que não é para comprar mais deste alvejante, Dulce. É muito forte. DULCE – Branqueia até roupa de luto: é ótimo. SÍLVIA – Você manchou um macacão do Júnior com ele. DULCE – Não fui eu! Foi a faxineira que deixou o pano de chão junto com a água sanitária e o macacão tava molhado do lado e... SÍLVIA (Interrompendo) – Sei... Sei... Nada aqui dentro foi você, Dulce, nunca. Açúcar mascavo! O Lúcio não suporta açúcar mascavo! DULCE – É pro menino. Açúcar branco pra ele é veneno, eu li, é veneno. SÍLVIA – E esta batida, não é tinta pura? (Olha para a escada.). DULCE – Não, experimentar? magina... (Abre a garrafa.) Quer SÍLVIA – Não. Me lembra as batidas do bar do meu pai, em Santos. DULCE – Eu adoro ela. Fora o quê, juntando dez garrafas você entra na rifa de um alisador de cabelo. SÍLVIA (Mostrando um objeto esquisito) – E isto aqui, que é? DULCE – Sei lá! Tava de oferta... SÍLVIA (Olhando para a escada) – Não mando nada mesmo, nesta casa... DULCE (Vai até o pé da escada e olha para cima) – Se trancou no quarto. Ele disse para eu ‘tomar o produto da minha prima-irmã’, não disse? SÍLVIA – Ora, Dulce... DULCE – Disse: eu escutei. Leite é produto que vaca é que dá; ele pensa que eu sou burra. Se a vaca é minha primairmã eu diduzo então que ele me xingou de vaca, dona Sílvia. SÍLVIA – Esquece Dulce... (Vai até a escada e olha para cima.). DULCE – Pois vai ver eu sou uma vacona mesmo... Leiteira, redonda e gostosa, né? Por isso é que a rua inteira é louquinha pra me namorar; o Zeca, jornaleiro; o pedreiro lá da esquina; o Seu Tonho da farmácia; os guarda todo das guarita toda dessa rua... SÍLVIA (Voltando para o meio da sala, interrompe, nervosa) – Você entregou Dulce? Quer falar de uma vez, antes que o Lúcio volte? Você entregou o bilhete? DULCE – Claro: magina se não, Dona Sílvia! Ele ficou exuberante, não é assim que se fala? Eu li ontem na Contigo: a Cláudia Raia tava exuberante numa festa... SÍLVIA (Ansiosa) – Dulce!... DULCE – E foi assim que ‘o moço do carro vermelho’ ficou quando leu seu bilhete. Juro que achei que ele ficou assim até meio corado. Não é romântico? Um home, com aquela roupa toda bonitona de jogar tênis, envergonhado. SÍLVIA (Muito nervosa) – Ela entregou mesmo, meu Deus do céu... E agora, o que é que eu faço? DULCE – O que é que a senhora faz? Ué, vai encontrar com ele! SÍLVIA – Eu? Imagine se eu vou encontrar com ele! DULCE – Mas a senhora não mandou um bilhete aceitando o encontro que ele pediu? SÍLVIA – Foi sem querer! Foi... uma loucura!... Porque você me levou a isso, você, Dulce, minha empregada, me levou a escrever aquele bilhete aceitando o encontro. Com um desconhecido! (Serve-se de um pouco da batida e estende o copo para Dulce.). DULCE – Mas tinha mesmo que aceitar, Dona Sílvia. Tinha. Depois daquela carta linda, de amor, que ele te mandou, a senhora não tinha jeito senão aceitar. SÍLVIA – Foi uma loucura. É claro que não vou. Um ‘encontro clandestino’, imagine! Que eu mesma aceitei! Que dia, meu Deus, que dia! O caso Teixeira Leite agora de manhã e à noite... um encontro clandestino. Esta batida não é das piores... O Lúcio está voltando! (As duas param e olham para cima.). DULCE – Nada. Tá lá no quarto. SÍLVIA – Tudo isso é muito louco, claro que não vou. DULCE – Vai sim. Muito louco é sexo de menos. Tá lá na Contigo, demais é saúde. SÍLVIA – Ninguém aqui falou em sexo! Cuidado, Dulce! Não me misture com suas... experiências. DULCE – Expiriente, eu? Magina, não pensa que eu sou exprimentada, não. Mas chamo a atenção dos home; fazer o quê, né? SÍLVIA – Parecem abelhas farejando o mel, eu vejo: o boy do mercadinho, o carteiro... Maria Madalena era um lírio perto de você. DULCE (Dengosa) – Não exagera dona Sílvia... SÍLVIA – Ah, confessa de uma vez, Dulce. Você conheceu muitos homens; fala a verdade, muitos! DULCE – Oras, dona Sílvia... SÍLVIA – Pode confessar. Eu não vou criticar você, não. Na verdade até gosto de ouvir, eu sempre fui um pouco tímida. DULCE – Não me diga que a senhora conhece só o Seu Lúcio? SÍLVIA – Ora, Dulce... Isso é pergunta que se faça? Tive um... namorado antes dele. Mas foi tudo tão truncado, tão medroso e durou tão pouco que... DULCE – Foi como se não tivesse sido, né? Aposto que a senhora nem lembra do jeito que era o passarinho dele. SÍLVIA – Dulce! DULCE – A senhora lembra? Era assim meio... compridinho ou mais taludo? SÍLVIA – Mas que... absurdo! Olha o respeito, Dulce! DULCE – Mas eu falo assim de taludo e compridinho só de ouvir falar, porque prática mesmo, assim, prática... SÍLVIA – Tá bom, essa você deixa assim na dúvida se tem ou não. Vamos lá, eu quero saber mais do moço do carro vermelho. DULCE – Ficou muito alegre, mesmo. Não tô exagerando. E disse que tudo bem. SÍLVIA – Vai estar lá hoje à noite, às oito horas?... DULCE – É. Hoje às oito horas. No Café da Lua Nua. SÍLVIA – No Lua Nua, não! Eu mudei a hora e o lugar! Escrevi: ‘hoje, às oito horas, no Labareda Bar’. DULCE – Ah, claro, eu que confundi. Ele disse: ‘tudo bem, às oito horas, no Labareda Bar’. Eu confundi porque Café da Lua Negra foi onde ele pediu o encontro na carta, não foi? SÍLVIA – Foi. Só que é Lua Nua, Dulce, e não Negra. É a décima vez que te falo. Lua Negra é outra coisa, é o lado escondido dela; Lilith, a mulher demônio. DULCE (Sacudindo o corpo, como num ritual de macumba) – Íxi, Saravá, isola! Prefiro a Lua Nua, peladona mesmo! Toda peladona, toda peladona feito um sol, toda pelado... SÍLVIA (Interrompendo) – Pára Dulce! Pára. Foi lá que conheci o Lúcio. No Café da Lua Nua. Imagine - o moço do carro vermelho - marcar um encontro clandestino lá. Lá eu conheço todo mundo! No Labareda Bar não conheço ninguém. DULCE – Já escolheu a roupa que vai pôr? A de baixo, tô perguntando, aquela que ele vai tirar devagarinho, peça por peça... SÍLVIA (Encolhendo o corpo) – Dulce! DULCE – No escurinho, já pensou? Claro que aí não vai ser mais no Labareda Bar. Daí vocês dois já vão tá, com camisinha colorida e tudo, no Labareda Motel! Não esquece a camisinha, hein? SÍLVIA – Quer parar? Que atrevida! Eu jamais teria coragem de entrar com um homem num... num... DULCE – Com mulher fica pior, não acha? Olha... não injeita, não, que todo mundo aqui na rua acha ele um pão. SÍLVIA (Com ar sonhador) – Quando ele passa de... de bermuda, então... DULCE (Olhando pela janela) – Tá passando! Dona Sílvia, olha o moço aí, com a raquete, tá passando, tá passando! SÍLVIA – Disfarça! Ai, se alguém me vê!... Cadê? (Se abaixa e sai desajeitadamente até a janela.) Olha lá, meu Deus, se alguém me vê... DULCE – Êta nóis: mas que pernão... SÍLVIA – Como é bonito... Como é... bronzeado... DULCE – Hum... olha só o bronze das coxa saindo tinindo de dentro da bermuda branca... SÍLVIA – Ai, meu Deus, ele me viu! E como está olhando, Dulce. Olha aí... DULCE – Vai ficar com torcicolo! SÍLVIA – A rua inteira deve estar notando! O faço? (Encolhe-se.) Olho? Me escondo? Aceno? Rio, engulo, sumo? (Contorce-se, braços e pernas.) Dulce: me acuda que eu nó! que é que eu (Estica-se.) enroscando vou virar um DULCE – Ai, calma, calma, dona Sílvia! Olha lá... Se aquela coxa dá vontade de morder, outras coisa então... SÍLVIA – Psiu! Ai, Deus, se o Lúcio desce agora, se o Júnior acorda, se a vizinhança vê. DULCE – Tenho certeza que ele nunca devagarinho na vida dele, parece um príncipe! andou tão SÍLVIA – Imagine!... Parece mais é um chofer (tímida.) de caminhão... DULCE – Tá louca? Andando assim parece mesmo é um galo. SÍLVIA – É... Todo empinado... DULCE – Tchan... tchan... Olha só o tamanho da... raquete... SÍLVIA – Você acha que ele é muito mais novo que eu?... Ou é mais velho? DULCE – Ele tem a idade boa. Um galo... SÍLVIA – De crista alta... DULCE – Seu Lúcio! Seu Lúcio tá descendo! SÍLVIA – Meu Deus! Que eu faço... Que faço Dulce? (As duas voltam aos pacotes de compras na mesinha. Lúcio desce as escadas.). DULCE – Pronto: é esse. Seu Lúcio só gosta de queijo estrangeiro mesmo. LÚCIO (Para Sílvia) – Minha gravata Valentino marrom? SÍLVIA (Para Dulce) – Era para dar para o tintureiro. DULCE – Aquela cor de bronze, meio compridinha assim, com uns desenho meio taludo? SÍLVIA (Nervosa) – Você deu para o tintureiro? DULCE (Ofendida) – Eu? Magina! Eu nunca dei pro tintureiro! (Pausa.) Ah! A gravata... Consegui limpar eu mesmo. LÚCIO (Para Sílvia) – É seda pura! DULCE (Para Sílvia) – Ficou perfeita. (Saindo) Vou pegar. LÚCIO (Irritado) – Eu pego. (Sai pela porta dos fundos.). DULCE (Cheirando o queijo) – Hmmm!... Seu Lúcio tem bom gosto mesmo. Olha só o cheiro que a cor de bronze tem... SÍLVIA – Cadê o adoçante, Dulce? Você não trouxe. DULCE (Desembrulhando o queijo) – Olhaí... Nossa! Dá vontade até de... exprimentar... SÍLVIA – Nem xampu você trouxe... E cotonete? DULCE – Um pouco em cima, então, olha só, dá vontade de... lamber. SÍLVIA – E esparadrapo? Esqueceu tudo desta vez! DULCE – A senhora ainda vai comer um deste aqui, com licor dos bom, lá no Labareda Bar... SÍLVIA – Dulce: quer parar? DULCE – Ele não tá mais escutando! Como a senhor é preocupada! SÍLVIA – Você é maluca. completamente maluca, Dulce! Eu ainda te... Você é DULCE – Desse jeito a senhora não vai conseguir se encontrar nunca na vida com aquilo do carro vermelho. SÍLVIA (Corre até a janela) – Já foi, ah: graças a Deus! DULCE (Safada) – Ah, patroinha... não se faça de tão bobinha... Vi muito bem como a senhora deu esperança, muito assim de leve, mas que deu, deu, pras primeira olhada dele. SÍLVIA – Que petulância... Eu olhava muito discretamente, de olho baixo e canto de olho. Só para ver se ela estava mesmo olhando. Nunca pensei que ia dar no que deu. DULCE – Pois é. O coitadinho não güentou e um belo dia, nem bem seu Lúcio saiu, pimba, botou a carta aí na caixa. SÍLVIA – É um louco. Encantador, mas louco. A carta veio no meu nome... Como será que ele descobriu? DULCE – Já não contei três vez que perguntou pra mim, no mercadinho? SÍLVIA – E o dele? Como será o nome dele? Onde será que ele mora, Dulce, quem será ele? DULCE – Calma, calma... A senhora vai saber tudo hoje à noite, depois do Labareda Bar... quando ele te arrancar a derradêra peça com os dente! SÍLVIA – Pára! Eu jamais conseguiria ficar nua! Me sinto uma pata choca! DULCE – Que nada! A senhora vai ficar doidinha! SÍLVIA (Levantando a saia) – Olha... não estou com celulite aqui? DULCE – Nada! Tá melhor que antes. SÍLVIA – Minha barriga... DULCE – Tá uma gracinha. Eu também tenho um pouquinho. É sexy. SÍLVIA – Meu seio não tem mais atrevimento... DULCE – Só tá descansando um pouco, mas logo assanha. A senhora vai ficar doidinha! SÍLVIA – Seu bumbum é atrevidíssimo; o meu também era... (Dulce dá um pulo e começa a dançar uma espécie de dança africana, sacudindo os seios e as nádegas.). DULCE – Doidinha da silva. Ui, ui, vai começar o forró! SÍLVIA – Mas que forró, sua maluca! Isso aí é macumba! DULCE – É! Macumba! SÍLVIA – Dança lá dos teus antepassados, da tua bisavó, princesa linda raptada do coração da África! DULCE – E trazida escrava: é isso mesmo! SÍLVIA – A dança da geléia! DULCE (Baixinho) – Mas ninguém diz que sou neta de avô preto, diz? Diz? SÍLVIA – Não. Preta mesmo só a minha querida Ditona Redonda... DULCE – A Ditona? Que ficava com a senhora pra sua mãe ir pro Correio, trabalhar. SÍLVIA – Ditona Redonda... A dança da geléia... Vai, Dulce, vai, vai! (Dulce sacode seios e nádegas, emitindo sons guturais africanos.) Dança, mas dança baixo, se não vai acordar o Júnior. DULCE – A senhora era doidinha para dançar assim feito eu, né? SÍLVIA – Mas meu corpo não obedece. (Tenta dançar, tenta, mas não consegue.) E eu queria, sim, ter essa geléia aí solta no ombro, seios, nos meus quadris. (Tenta novamente, patética, dura.) A dança da geléia... a dança da geléia... ah, eu não consigo! DULCE – Consegue sim, eu vou ajudar: “quero”... Como é que é mesmo? “Quero”, não; é: “vontade de”... Como é que é mesmo a carta dele? SÍLVIA – “Vontade de misturar nossos cabelos bêbados”... DULCE – Aí! “Cabelos bêbados”. Nunca escutei nada mais lindo! Nem na Contigo! SÍLVIA – “Vontade de misturar nossos cabelos bêbados, rasgar, fundir, da entranha ao coração e à boca...” DULCE – “Da estranha ao coração”... SÍLVIA – Da entranha, Dulce. E foi mais lindo terminar assim, abrupto: “da entranha ao coração e à boca!...”. Exclamação, reticências e pronto, mais nada. É um suspiro completo, é um sopro... Psiu! O Lúcio está voltando! (Volta a arrumar os pacotes. Dulce pega um dos pacotes e sai para a cozinha, cantando Escrito nas Estrelas, imitando Tetê Espíndola. Lúcio entra, carregando um vaso com uma samambaia seca.). LÚCIO – Sabe o que é isso?... (Sílvia pára de arrumar as compras e olha para o vaso.) Aliás, sabe o que isso aqui já foi um dia? O que esta coisa já tentou ser, desesperadamente, um dia, na vida dela? SÍLVIA – Ô Lúcio... LÚCIO – Uma samambaia do Amazonas... SÍLVIA (Tocando a samambaia) – Poxa, Lúcio... LÚCIO – Você está chateada? Compungida? Estou enganado ou a sua expressão é de tristeza mesmo? (Sílvia com expressão infeliz, acaricia a planta.) Não... por favor, não seja piegas, uma simples planta... Morre, a gente arranca e põe outra no lugar. Uma planta é só uma planta, mais nada. Não é nem mesmo alga marinha, ou peixe, nem sequer uma minhoca; ainda se fosse uma árvore copada... não é? SÍLVIA (Terna) – Lúcio... LÚCIO – Só que o que eu acho Sílvia, é exatamente isso. Uma planta é só uma planta, mais nada. E o mundo, minha amiga, é dos fortes; os mais fortes criam anticorpos e ficam. O resto... (assopra.) vira fóssil! Mas acho também que não há força que resista: nem samambaias, nem a Amazônia inteira, à infinita ineficiência sua para administrar isso a que damos o nome de lar. SÍLVIA – A culpa não foi minha, Lúcio. A Dulce me garantiu que... estava molhando... LÚCIO (Interrompendo) – A culpa é sua. Me... descontrolo com a Dulce, mas a culpa do verdadeiro caos em que se transformou esta casa é exclusivamente sua. SÍLVIA – Eu tento me organizar! LÚCIO (Autoritário) – Você tem que cobrar dela, tem que vistoriar tudo, você é a patroa, ela é apenas uma boba alegre que nasceu para cumprir ordens! SÍLVIA – Também não posso passar o dia inteiro procurando pó atrás dos móveis! Não há Cristo que güente, ela vai embora! LÚCIO – E daí? Pega outra. SÍLVIA – Como se fosse simples! Ela gosta do Júnior. LÚCIO – É só pagar que qualquer uma gosta. Ela te domina, Sílvia, você parece uma retardada perto dessa anta aí. SÍLVIA – Imagina se ela me domina!... Eu é que sou menos... dura do que você para lidar com as pessoas. LÚCIO – Não sou duro: eu sou direto. E é isso que essa cambada quer. Isso não é gente, Sílvia, por mais que você queira: isso não é gente mesmo, é gado. SÍLVIA – Não fala assim! LÚCIO – E você não é delicada: é uma pamonha, o que é bem diferente. Não consegue se estruturar, não tem espinha dorsal, não tem jeito mesmo, aliás, para nada. É inato, questão de talento, mesmo. Você nasceu... sem... SÍLVIA – E você é um estúpido! Há muito tempo vem implicando comigo, mas não acha que hoje passou da conta? LÚCIO – Porque hoje você também passou da conta. A minha samambaia, que eu trouxe do Amazonas no avião, quatro horas no colo, no colo! SÍLVIA – Quer que eu faça o quê, agora? Um curso de jardinagem? Corte e costura, frivolité, tricô? LÚCIO – E por que não? Minha mãe fazia tudo isso, qual é o problema? Por isso mesmo, depois que meu pai morreu, ela pode sustentar a família fazendo doces para fora na maior dignidade... SÍLVIA – “E com o maior prazer”, já sei de cor. LÚCIO – Só parou quando comecei a ganhar bem, o bastante para formar meus irmãos e recuperar um pouco do que tivemos quando crianças. Com vinte anos, Sílvia, eu... SÍLVIA (Interrompendo) – Você já era o “arrimo de família”... eu sei... Você sempre foi muito eficiente mesmo. LÚCIO – Talvez não muito. Mas quilômetros mais do que você, disso não tenho a menor dúvida. SÍLVIA – Quer parar de ser grosseiro? Você hoje está um horror! LÚCIO – Uma planta é só uma planta, mas não foi só a samambaia que você quis atingir com o seu descuido. SÍLVIA – Como assim? LÚCIO – Sílvia: eu não preciso ser psicólogo como a sua irmã para perceber o que há por trás dos seus esquecimentos. SÍLVIA – O que você quer dizer com isso? A Dulce molhou a samambaia duas vezes por semana. Eu mesma tirei com as mãos as sujeirinhas e bichinhos das folhas dela. LÚCIO – Uma vez na vida você fez isso. SÍLVIA – Não tive tempo para ficar em cima dela, esta semana foi fogo, já falei. LÚCIO – Você não ‘criou’ tempo para ela. E porque não quis. Porque sabia que era a única planta que eu gostava dentro desta casa. Suas palmeirinhas estão sempre lindas, enquanto que a minha samambaia... (Olha desconsolado para a samambaia.). SÍLVIA – Que disparate você está falando! Está me acusando de descuidar de propósito! Foi um acidente! LÚCIO – Não existem acidentes. absolutamente tudo, é proposital. Tudo nesta vida, SÍLVIA – Isso... é ridículo! Por que eu faria isso, Lúcio? LÚCIO – Não sei... Aliás, não é só a samambaia, não, a casa inteira está ‘murchando’. Porque você ‘não tem mais horário’ para ela. Essa desvairada da Dulce é a verdadeira dona desta casa. SÍLVIA (Perplexa) – Que absurdo! LÚCIO – Absurdo? Quem escolhe o que se come nessa casa? Quem organiza a roupa que eu visto; os meus remédios? Quem cuida do meu filho, Sílvia? A Dulce... Só falta mesmo eu dormir com esse verdadeiro carro alegórico para me sentir casado com ele! SÍLVIA – Que loucura!... Que injustiça!... LÚCIO – Injustiça? Mas é a verdade! A minha irritação com esse horror da Dulce, por incrível que pareça, tem sido mais dinâmica que a nossa relação. Às vezes eu olho para nós dois... e parece que a gente não passa de um par de sofás floridos dentro desta sala. SÍLVIA (Gritando para a porta da cozinha) – Dulce!... LÚCIO – Preferiria que não alterasse a voz. Não estamos numa favela. (Sílvia vai até a mesa e toca um sininho, delicadamente, nervosa, mas tentando controlar-se.). SÍLVIA – Está bem assim? Pombas! (Dulce entra da cozinha. Sílvia continua tocando o sininho.). DULCE – Que é? Vai ter Missa aqui? (Sílvia coloca o sininho sobre a mesa e, nesse momento, muda sua postura, começa a se firmar. Põe o cinto, se compõe.). SÍLVIA – De sétimo dia. (Apontando para a planta.) Olha aí. O que você acha disso? DULCE – O quê? Ah!... Nossa!... Coitadinha!... (Lúcio caminha em direção à porta da rua.). SÍLVIA – Já vai sair? LÚCIO – Vou pegar o carro aí na oficina. SÍLVIA – Se me der carona você vai sentir-se uma Transportadora? (Lúcio faz cara de quem não entendeu.) Talvez não lhe agrade levar um sofá florido dentro do seu carro. Mas embora você teime em ignorar, Lúcio, eu também tenho uma entrevista importante para a minha profissão, agora, às dez e meia. Com os Teixeira Leite. LÚCIO – Passo daqui a pouco. (Sai.). DULCE – A gente cuidou tão bem dela... Como foi acontecer isso? SÍLVIA – Você molhou na semana passada? DULCE – Claro. Ficou combinado que era só eu. Não vai dizer que a senhora aguou ela também? SÍLVIA – Não. DULCE – Essas coisa têm que ficar bem claro. Porque planta molhada demais amolece tudo, encharca e afoga. SÍLVIA – Não é o caso. Acho que você deixou no sol. DULCE – Jamais! E eu não conheço samambaia? E nem no vento pode! SÍLVIA – Será que é doença? DULCE – Não. Peste cria bolota, enruga. Isso aqui foi... mau olhado mesmo. Porque eu agüei, fiz carinho, conversei com ela com uma amizade enorme, não era pra acontecer isso não. SÍLVIA – E você irrigou com o quê, Dulce? DULCE – Com o regadorzinho, claro. Ela lá em cima, eu vou aguar com o quê? SÍLVIA (Apanhando o regador de cima de um armário) – E por que então o regadorzinho está aqui em cima cheio de poeira de uma semana? DULCE – É que... mas eu limpo aí todos os dias! E... não, eu me enganei. Pra molhar a samambaia essa semana eu subi numa cadeira. SÍLVIA – Quem subiu foi o Lúcio, porque você, Dulce, não vê a cara dessa samambaia há mais de uma semana. DULCE – Também não é assim. É verdade que não molhei nessa semana, foi um pequeno engano meu, mas na semana passada, dona Sílvia... SÍLVIA (Interrompendo) – Tudo dentro desta casa sempre foi um pequeno engano seu. DULCE – É que samambaia não pode molhar demais mesmo, a senhora sabe... SÍLVIA – Assim como sei que dá uma sorte enorme varrer pó para debaixo do tapete e faz um bem imenso para a saúde misturar água no litro de gim e de vodca. DULCE – Misturar o quê? SÍLVIA – Principalmente porque aí o Lúcio e eu não percebemos quanto foi que você bebeu. DULCE – Eu nunca bebi bebida nenhuma dentro dessa casa! SÍLVIA – Eu não agüento mais, a verdade é essa, eu não agüento mais as suas mentiras, Dulce. Você é incapaz de dar uma resposta verdadeira, parece doença! DULCE – Que... barbaridade, dona Sílvia! Eu não minto nunca! SÍLVIA – Vai visitar a tia doente... Atrasa: “perdeu a hora, Dulce?” “Não!... Tive quarenta graus de febre”; “o ônibus atropelou uma velhinha”; “minha bisavó morreu”... DULCE – Minha avó morreu mesmo, o ano passado! SÍLVIA – Só que duas vezes. É. Você nem reparou nisso. Você matou a mesma avó, a mesma, na Páscoa e no Réveillon. DULCE – Não foi a mesma! SÍLVIA – Nem tocou no regador. Há quanto tempo nem chega perto da samambaia, Dulce? DULCE – Essa semana não mexi nela mesmo, falei sei lá por quê; pra enfeitar melhor as coisa; sai sem querer. Mas na semana passada a senhora mesma viu, a senhora viu! SÍLVIA – O troco então... Me sinto horrível de ficar cobrando troco, mas... DULCE – Nunca peguei nem roubei nada dentro dessa casa! A senhora agora tá querendo me chamar de ladrona! SÍLVIA – De ladra não, você devolve, Dulce. Mas e se eu não desse falta? DULCE – Devolve o quê? Não tô entendendo. SÍLVIA – De repente some uma das minhas blusas, não das mais novas, claro, das velhas: “está lavando”; “está passando”; “no tintureiro”... Logo depois ela aparece. E eu acabo dando ela para você. DULCE – A senhora tá falando coisas horrível de mim! SÍLVIA – Roupa de baixo então, adora. Aliás, tem um collant velho meu, que você inclusive já usou - que separei para te dar. Quem sabe até se já não está com ele. Fica mesmo ótimo com essa blusa meio transparente... Espere aí! (Avança alguns passos em direção a Dulce.). DULCE (Recuando) – Vixe! Ih, dona Sílvia, eu não... Ah! É isso mesmo, pronto, se percebeu então, melhor ver de uma vez. É isso mesmo que a senhora tá pensando. (Alça a blusa por um dos lados e mostra o collant branco que está vestindo.). SÍLVIA – Mas isso aí é o meu... DULCE – É isso mesmo que a senhora desconfiou. Não é o velho não, é da sua coleção secreta, de seda pura e renda... SÍLVIA (Chocada) – Que... Que horror, Dulce! DULCE – Mas eu ia devolver: juro! Se a senhora não percebesse agora não ia descobrir nunca; a intenção era boa, eu ia devolver dona Sílvia... (Sílvia vai até o armário, pega uma chave de um esconderijo. Abre uma gaveta e tira algumas roupas de baixo, coloridas.) Eu ia devolver ainda hoje! Todo lavadinho de sabão de coco! SÍLVIA – Você ousou mexer nessas minhas roupas! DULCE – A senhora não usa mesmo... E não é tão chique assim, não. Esse branco é o melhorzinho, porque, se a senhora quer saber, tem coisa aí que é até meio cafajeste. SÍLVIA – É um absurdo! Eu agüento mais coisa de você do que do meu próprio marido! Com ele meu pavio é bem mais curto. É um absurdo! (Gritando.) Mas agora chega! Chega! DULCE (Assustada) – Calma dona Sílvia!... (Tira as roupas das mãos de Sílvia e corre até o armário para guardá-las.). SÍLVIA – Já cheguei a deixar o meu trabalho para comprar comida, sabe para quem? Não, não era para o meu filho, não. Imagine! Muito menos para o Lúcio. Era para você, minha empregada, que estava doente e fraca e a geladeira estava vazia. DULCE – O que não é novidade. Vamo ser sincera; minhas tia que são pobre, me desculpe, têm mais fartura do que em muita casa chique, dona Sílvia, vamo ser sincera... Elas num são mesquinha, não... SÍLVIA – Não são o quê? Hein? Repete Dulce. (Pausa.) Só os presentes que te dou! DULCE – Minhas amigas diz que, não é o caso da senhora, mas elas diz que muitas vez presente de patroa é esmola pra não aumentar o salário. SÍLVIA – Teu salário é muito bom! Médico, décimo terceiro, férias! Cama, pensão completa, experimenta fazer as contas! Você não deve ganhar muito menos do que eu, não! Tenta fazer as contas: faz! DULCE – Faz as conta é dos preço das coisa toda: ônibus, roupa, a Contigo... SÍLVIA – Só que, se o preço da carne estoura, eu até posso passar sem ela, o Lúcio idem, mas e a Dulce? Nunca! Imagina a Dulce passar sem carne!... DULCE – É claro! Eu trabalho muito! Gasto suor nesse meu trabalho! Não sou como a senhora que diz que... SÍLVIA – Que diz que?... DULCE – Que diz que vai trabalhar, mas... Não é isso, eu sei que a senhora trabalha muito, mas tem umas vez... SÍLVIA – Mas tem umas vezes?... DULCE – Ah, a senhora acha que o moço do carro vermelho ia tá nesse assanhamento todo, até mandando carta, por causa de uma olhada? Ah, patroinha, não sei se a senhora já não encontrou com ele... SÍLVIA (Para si mesma) – É... surrealista... Se eu conto ninguém acredita. (Para Dulce.) Se não encontrei não foi por falta de insistência sua. DULCE – Eu queria saber, sim, qual era a da senhora. SÍLVIA – Para me... dominar melhor, né Dulce? Não, eu ainda não encontrei com ele, mas vou encontrar. E você não tem idéia, Dulce, do encontro que vai ser. DULCE – E vai usar as roupa? SÍLVIA – Talvez. Eram para surpreender o Lúcio, mas agora... DULCE – Vai “tentar” usar... SÍLVIA – Elas já me caem muito bem! Principalmente as mais vulgares: de cetim, vermelhas. DULCE – Olhaí: eu sabia. Dona Sílvia! Eu não disse? Eu sabia... SÍLVIA – “Vontade de misturar nossos cabelos bêbados”... Nós vamos repetir isso, agora juntos. (Com desprezo.) Mas você, Dulce, coitada, não tem idéia do significado disso. DULCE – “Rasgar a entranha”. Sei muito bem, tá mais que claro. (A luz diminui, gradativamente, de intensidade; apenas um foco resta em Sílvia.). SÍLVIA – “Rasgar, fundir, da entranha ao coração e à boca!...” Isso é um pedido de socorro, Dulce... Um homem, morrendo de sede. (Envolvida.) Um corpo todo fechado, a energia atravancada querendo fluir, mas trancada, trancada. Essa carta é uma proposta de vida, não de sexo, de vida! DULCE – Ah, isso chama ‘vida’ agora. SÍLVIA – Sempre chamou! Libido, analfabeta, oxigênio, energia, ar! Esse homem não está propondo um encontro apenas, está pedindo o encontro. Os dois juntos abrindo um espaço. Rasgando as amarras todas que atravancam o corpo. Um túnel, uma antena de comunicação. Da entranha, do coração da Terra, estremecendo a espinha, a medula, para cima, os cabelos todos até... é, até Deus, sim! E esse homem não teve medo. De ser infantil, de ser cafona. É literatura da mais barata, não é? Se você gostou, Dulce, é porque é baratíssima. É deslavado, é arrebatado. E ele não teve o menor pudor. É maravilhoso, esse estranho não teve o menor pudor... (Pausa.). DULCE (Assustada) – É de uma doidêra só... Só que a senhora não deve pôr o nome de Deus nessa semvergonhice aí, dona Sílvia... SÍLVIA – Até parece! Você só vai à Missa por causa dos homens que te esperam na saída. DULCE – Calúnia! Não vai usar o santo nome de Deus pra me acusar agora dessas invencionice! SÍLVIA – Ora Dulce! Você não pára de falar besteira dentro desta casa. O dia inteiro! DULCE – Mas nunca fiz nenhuma besteira. Sem-vergonhice de fazer mesmo eu nunca fiz e nem sei como é que faz! SÍLVIA – É má aluna então. Porque aquelas revistas pornográficas debaixo do seu colchão ensinam muito bem. DULCE – A senhora revistou meu quarto! Mentira! Debaixo do colchão eu leio Pais & Filhos que é pra saber como tratar o Júnior, porque eu sim me preocupo com isso! SÍLVIA – Ah, mas que pretensão. Você jamais terá idéia, Dulce, do que seja educar uma criança. DULCE – Sei sim! Pras madame educar é fazer tudo pra criança não encher o saco! Mas pra mim não. Eu educo mesmo e eu também sou mãe! SÍLVIA – Agora enlouqueceu de vez. Você, mãe! Eu nunca soube disso! DULCE – Sou mãe e virge, tá escutando? Eu assanho os home quando passo mas jamais deixei pôr aquelas mão imunda em cima de mim. Tenho nojo e ódio; eu assanho, eu gosto, mas só uso roupa de baixo branca e quando os home chega perto, como um tio meu chegou, eu cuspo! SÍLVIA (Ri) – Um tio. Ah!... A tua historinha tem um tio... DULCE – Não sou mais de Iemanjá nem Candomblé, agora sou igual Maria, a mãe de Cristo, nós duas, mãe e virge; ave Maria, virge Maria. (Cantando.) Avê, avê, avê Maria... SÍLVIA (Interrompendo) – Dulce, Dulce, sua idiota! Sua bisavó que voava linda no coração da África, sabe o que fizeram com ela? Sabe? Vem cá. (Pega o jornal que Lúcio lia.) Vê se entende isso: (lendo.) “oitenta por cento das mulheres na África de influência muçulmana tem o sexo cortado”. Não é sonho não, é isso mesmo que você escutou: hoje; o sexo cortado, sabe o que é isso? É simples: extirpam um pedaçinho de nada, tiram o clitóris; acalma as moças, é mais ‘saudável’... Mais seguro ainda é para os mocinhos... DULCE (Atônita) – Que horror! Quanta esquisitice, quanta invencionice! Sou pura sim, limpa! Lavo tudo com sabão de coco! Tudo limpinho, branquinho, eu esfrego, esfrego, deixo de molho, amaciante, Comfort, tudo branquinho, branquinho! SÍLVIA – Você nasceu para isso mesmo, para limpar toda a minha roupa suja. E com isso poupar as minhas mãos cuidadas de se lambuzarem no tanque. DULCE (Sorrindo) – Até parece!... (Com ar desafiador.) Quem é que limpa o Júnior? (Pausa.) Eu... e a senhora. SÍLVIA – Sou sua patroa! DULCE (Firme) – Patrão é quem não mexe no lixo. O Seu Lúcio jamais limpou nem vai limpar o Júnior. Por isso ele me dispreza, mas eu respeito ele. A senhora, dona Sílvia, me desculpa, mas se eu sou lixo, a senhora é tão lixo quanto eu. SÍLVIA – Sabe o que eu mais queria agora, Dulce? Você, negra e retinta, num pelourinho. Para eu te chicotear até sangrar! DULCE (Assustada) – Ai!... SÍLVIA (Gritando) – Maldita Isabel da Abolição da Escravatura! Maldita seja! DULCE – Dona... Sílvia! SÍLVIA (Gritando) desgraçada, amém!... – Maldita seja para sempre DULCE (Perplexa) – Dona Sílvia... Meu Deus... (Nesse momento patroa e empregada vão invertendo seus papéis. Sílvia beira à vulgaridade e Dulce se empina com dignidade.). SÍLVIA – Está sem fala, por que, sua geringonça? Por que eu perdi a classe? Está pensando o quê, sua vadia? Sou lixo, sim! Não sou dondoca, eu não sou frouxa não, meu pai tinha sangue, tem, sei muito bem como chegar até aí em baixo, inseto. Cisco, grampo. (Pausa.) Clipe. DULCE (Chocada) – Como?... SÍLVIA – Cli-pe! É. (Dulce ainda sem entender.) Aquela coisinha ínfima, assim, de prender... (Dulce fica sem ação. Silvia fala pausadamente.) Subnitrato... de... pó... de... pulga. DULCE (Chocada) – Se o Seu Lúcio souber disso! E de um certo bilhetinho... SÍLVIA – Ah, era de se esperar. E eu que tinha pensado em te promover. O próximo filho, Dulce, eu ia pagar a tua barriga pra ter pra mim. Agora não dá mais... Uma... vagabundinha... DULCE – Isso não! Vagabunda (grita.) nun-ca! Eu sou (grita.) mãe! Sou san-ta! Eu sou mãe do Júnior! SÍLVIA – O... quê?... DULCE – Já que a senhora falou de barriga, o Júnior pode ter saído da sua. Mas a mãe dele mesmo, de verdade, diaa-dia, sou eu. Dona Sílvia, me desculpa, mas a mãe do seu filho sou eu. (Calmamente Sílvia tia os chinelos e calça sapatos de salto alto.). SÍLVIA – Arrume suas coisas e saia já daqui. DULCE – Eu... SÍLVIA – Imediatamente. Nem mais um minuto... Você está despedida. DULCE – Dona Sílvia... SÍLVIA (Gritando) – Já! Fora! Fora!... DULCE (Saindo) – Tudo bem, mas a coisa não é bem assim! Tem a constituinte! A constituinte! SÍLVIA (Gritando) – Pra fora!... (Dulce sai correndo pela porta dos fundos, resmungando. Sílvia cai no sofá, prostrada, arrasada. Tempo. Repentinamente acorda de seu torpor.) A entrevista!... (Vai até a agenda de endereços, e a folheia, apressada.). LÚCIO (Entrando pela porta da rua) – Sabe quanto custou a sua ‘encostada’? SÍLVIA (Com frieza) – Não mais do que pagamos pelas suas. LÚCIA – ‘Pagamos’ não. Eu sempre paguei minhas batidas. SÍLVIA – Me parece que nós dois trabalhamos, ganhamos e pagamos tudo dentro desta casa, não é? LÚCIO (Estranhando) – Mais ou menos... Já está pronta? São nove e vinte e cinco... SÍLVIA – Não podemos ir agora, Lúcio. Surgiu um problema. LÚCIO – Outro problema? Ah, que maravilha! O dia hoje está realmente estimulante! Qual é o novo problema? SÍLVIA – A Dulce saiu. LÚCIO – A Dulce... saiu novamente. Cleópatra foi se banhar no Nilo: temos que aguardar o seu retorno. SÍLVIA – Não. A Dulce não trabalha mais aqui. Eu a despedi. LÚCIO – Você despediu a Dulce? SÍLVIA – Despedi. Você tinha razão: é melhor arrumar outra mais eficiente. LÚCIO – Você... despediu a Dulce?... SÍLVIA – É. LÚCIO – Coitada... SÍLVIA (Surpresa) – Coitada? Lúcio!... LÚCIO – Sei lá, a gente acaba acostumando. SÍLVIA – Ela passou dos limites... LÚCIO – Bem feito! Foi no que deu o esculacho de relação que você sempre teve com ela, a liberdade, a intimidade... SÍLVIA (Interrompendo) – Com ‘alguma’ pessoa eu tinha que ter intimidade dentro desta casa, não acha? Já que com meu marido... LÚCIO – Não tem nenhuma. É isso que está querendo dizer? Ó, Sílvia... Você aí com um jogo que eu nem entendi ainda... (Pára.) Bom, nada, o problema agora é outro. O que é que você vai fazer agora? SÍLVIA – É... O que é que a gente vai fazer?... LÚCIO – É um problema mesmo... Só que eu estou atrasadíssimo, depois você me liga para dizer como é que resolveu por hoje. SÍLVIA – Espera aí, Lúcio. Acho que você não entendeu ainda. A saída da Dulce é um problema nosso e não apenas meu. LÚCIO – Mas foi você que despediu a moça, você causou o problema, agora resolva você, ora! SÍLVIA – Ela extrapolou todos os limites, poderia ter sido com você, é como se ela tivesse... pedido demissão. É um problema da nossa casa a ser resolvido, portanto, conjuntamente. LÚCIO – Só que eu tenho a entrevista com os americanos às dez e meia e estou atrasado! SÍLVIA – Mas eu também tenho uma entrevista às dez e meia... LÚCIO – Ah, você não vai querer me comparar agora essa sua entrevista com o meu trabalho, vai? SÍLVIA – Ah, a minha entrevista é uma frescura, apenas? O seu trabalho é muito mais importante que o meu. LÚCIO – Não é bem isso... SÍLVIA – É? Diga. Responde Lúcio. É mais importante? LÚCIO – É! Pronto. Quis escutar, escutou, Sílvia. É claro que o meu trabalho é muito mais importante do que o seu. SÍLVIA – Por quê?... LÚCIO – Porque... Ora, não vamos agora começar uma discussão mesquinha. Eu me nego a ser ridículo. SÍLVIA – Pois eu proponho que o sejamos. LÚCIO – Sílvia, eu estou atrasado, não tenho tempo para debates. (Pega a pasta e vai em direção à porta da rua.). SÍLVIA – Tem razão. Também estou atrasadíssima e não tenho tempo para debates. (Pega a sua pasta e também vai em direção à porta.). LÚCIO – Quer parar de brincadeira? SÍLVIA – Sim, paremos de brincadeira então, Lúcio, falemos sério. Eu tenho um compromisso agora às dez e meia e fique sabendo que à noite talvez eu tenha outro. LÚCIO – Você vai sair à noite? SÍLVIA – Você também. LÚCIO – Onde é que você vai? SÍLVIA – Você não falou aonde vai. LÚCIO – Eu... não sei ainda se vou mesmo. SÍLVIA – Também não decidi, estou na dúvida. (Pausa.) Você gosta de bermudas brancas? LÚCIO (Surpreso) – Por quê? SÍLVIA – Talvez te presenteie com uma. Talvez vá ao shopping da Raposo Tavares. LÚCIO – Na Raposo Tavares não tem shopping. Só motéis. SÍLVIA – É mesmo? Que sem-vergonhice, não? Como diria a Dulce... (Sacode, agora com graça, os seios.) Dança da geléia... dança da geléia... LÚCIO – Ficou doida? SÍLVIA – Não. Agora não tem mais perigo. Vou comprar um vestido de decote compridinho, cor de bronze, bem talu... bem assim... talhado... LÚCIO – É assim que você quer conversar a sério, Sílvia? SÍLVIA (Recompondo-se) – Desculpe. Você tem razão. (Pausa.) Você tem toda razão, Lúcio, desculpe. LÚCIO – Tudo bem: está desculpada, vá, também não precisa exagerar. É que se você quer falar sério então fala feita gente grande, argumenta, tá? Sem isso de... geléia. SÍLVIA – Tudo bem, sem geléia. Por que o seu trabalho é mais importante que o meu, Lúcio? LÚCIO – Não é uma questão de importância, Sílvia. O que você faz no escritório e o que você faz nesta casa são coisas valiosíssimas, mas veja... você ficou três meses aqui, só amamentando... SÍLVIA – Amamentando o nosso filho. Que agora já está com oito meses. E nosso, aliás, da sociedade toda! LÚCIO – Não começa! Eu não vou ter paciência, agora, para discurso! Ou faz nhenhenhém ou faz discurso, assim não dá! Vamos parar de lero-lero, tá? O meu trabalho pesa mais que o seu porque ele que é para valer, escutou bem? É o meu, o meu trabalho, e não o seu, que garante a segurança desta família. É com o meu salário, e não com o seu, que você conta para ter (aponta os pacotes das compras.) esse supermercado aí, assistência médica, seguro de vida, carteirinha do clube e tudo o mais. Tá bom? SÍLVIA – Amanhã pode ser o meu, lembra da tua mãe? LÚCIO – Mas o problema é hoje. É hoje que será resolvido se vamos ou não para os Estados Unidos. SÍLVIA – Sabe que você nem perguntou, de verdade, se quero mesmo ir? Talvez, para mim, não seja a melhor época para sair daqui. LÚCIO – Não estou entendendo. O que você está tentando me dizer? SÍLVIA – Isso mesmo que você está escutando. Estou muito entusiasmada com a minha profissão neste momento. Com o caso Teixeira Leite. LÚCIO – ‘Caso Teixeira Leite’... Ô Sílvia, eu não queria desqualificar você, mas esse seu caso é uma bobagem! Indenização por perda de emprego de uma filhinha de papai rico. Nós dois sabemos que você não passa de uma secretária de luxo no escritório dos seus amigos. SÍLVIA – Sou uma advogada! Muitas vezes me disso, mas eu sou. E esse é o meu primeiro caso. Está escutando, Lúcio? (Pausadamente.) É primeiro caso. Os Teixeira Leite têm influência, é chance. Já faltei na primeira entrevista porque estava com quarenta graus de febre. esqueço Sozinha. o meu a minha o Júnior LÚCIO – Ah! Você não gosta tanto do que faz, não. SÍLVIA – Adoro. É que me divido tanto, são tantos os meus papéis, que chego a ficar confusa. É um absurdo... como é que eu pude me confundir tanto assim? (Vai até a janela e diz, em voz baixa, para si mesma.) Aquilo lá é fuga, o importante está aqui, sou eu mesma, o meu trabalho... LÚCIO – Pára!... Isto, aquilo, meu, eu, que é, ficou maluca? Tá ‘invocando’ o quê? (Sílvia fecha as cortinas da janela, solenemente, definitiva. Lúcio assustado.) Que é Sílvia? SÍLVIA – Vocês não me deixam saborear isso, mas a verdade é que a-do-ro a minha profissão. Assim como é verdade também que estou defendendo a moça porque acre-di-to, pronto. Pode me chamar de Santa Izildinha e do que quiser, eu a-cre-di-to, não é só interesse não. Ela não é operária nem bóia-fria, mas é um trabalhador, tem os seus direitos. Perante uma lei que está aí para ser cumprida, é uma questão de justiça. Jus-ti-ça, escutou bem, Lúcio? Acho que é por isso que eu quis ser advogada, para tentar colocar de novo essa palavra no dicionário do verdadeiro faroeste que virou este país! LÚCIO – Falou a Miss Tênis Clube da Cidade de Santos. (Pausa.). SÍLVIA (Tranqüilamente) – Miss Tênis Clube da Cidade de Santos é a puta que o pariu. LÚCIO – Sílvia... tudo bem, eu acho legal você ter falado isso. E eu respeito sim, muito mais do que você pensa. Eu digo para as pessoas: “minha mulher é advogada”, e sinto orgulho. A mulher do Douglas não faz nada, imagine: prendas domésticas, que coisa mais antiga. Mas Sílvia... se eu não apareço na minha entrevista sabe quem é que vai para esse estágio no meu lugar? SÍLVIA – Ué... Não é o Douglas e a mulher dele de prendas domésticas que-coisa-mais-antiga? LÚCIO (Desconcertado) – Ah, é, eu já falei. SÍLVIA – Você tem razão, não podemos mais perder tempo com divagações. Ação! Vamos ligar para a Tininha. Sua irmã talvez possa ficar com o Júnior para nós dois irmos trabalhar. LÚCIO (Olhando para a porta da rua, aflito, e para o relógio) – Minha irmã foi para o Rio pesquisar favelas, a maluca. Só espero que não volte ‘noiva’ de um traficante, como é hábito lá entre as sociólogas. SÍLVIA – Sua mãe! (Pára.) Não; ela está sem empregada lá na loja dela. LÚCIO – E o raio da tua prima? Sua prima milionária, que passa o dia inteiro fazendo... nada! SÍLVIA – Começou a trabalhar na Secretaria de Educação. LÚCIO – Ah. Continua a não fazer nada. Olha, Sílvia, eu quero te ajudar, eu entendo que é uma barra, mas tenho que ir andando porque já são mais de nove e meia, é um absurdo o que já me atrasei... SÍLVIA (Desolada) – Não adianta... LÚCIO – Mas para a entrevista não posso me atrasar nem um segundo... SÍLVIA – Ele não entende mes-mo... O que fazer meu Deus, o quê? LÚCIO – Tudo bem? Eu vou indo, então, numa boa, tudo bem? SÍLVIA (Gritando) – Saco!... LÚCIO – Tudo bem, Sílvia, tudo bem, eu entendi sim, tudo! Mas você não acha perda de tempo ficarmos os dois aqui? Uma dos dois já basta para resolver o problema, não basta? SÍLVIA – Pois que seja você a ficar então! Você não tem mais que trabalhar feito um camelo para sustentar mãe e irmão; eles cresceram! Você tem uma companheira que também produz. Que seja você a ficar. LÚCIO – Poxa! Eu estou com trinta e cinco anos! Sabe quando vou ter outra chance dessas? Nunca! Vou ser um engenheirinho de merda até o fim da vida! SÍLVIA – E eu - se perco esta chance - eu vou ser na-da até o fim da vida, Lúcio! Na-da, a diferença é essa: na-da. LÚCIO (Revoltado) – Mas como na-da? Como? Não adianta, não, não adianta que eu não entendo mes-mo! Socorro, senhoras de Santana, socorro, me expliquem. C. V. V. que não entendo, me ajudem, por favor, mas como na-da? Você é minha mulher, Sílvia, é a mãe do Júnior! SÍLVIA – Sempre de braços dados com alguma referência, “a mulher de”, “a mãe de”, “a filha-do-dono-do-boteco”. E eu, Sílvia, onde é que estou; o que é que eu sou? Me ajuda, Lúcio... LÚCIO (Perplexo) – Não... não pode ser... Essa daí não é você... O que foi que aconteceu? SÍLVIA – Enquanto eu dou um telefonema você vai aí do lado, por favor, e pergunta para a Dona Mariazinha se ela pode ficar com o Júnior. LÚCIO – Eu? Vou perguntar para essa vizinha se... Eu nem sei como é que se pergunta isso! SÍLVIA – Ela fica de vez em quando. Já passou da idade, não gosto de abusar, mas é uma santa pessoa. LÚCIO (Perplexo) – Você virou feminista... É isso... novela das sete... é isso que dá ficar vendo novela das sete, virou feminista! SÍLVIA – Pode me xingar do que quiser. Se eu não conseguir me impor hoje com você, neste dia tão importante para a minha vida, não vou conseguir nunca mais. (Lúcio vai em direção à porta, balançando a cabeça, contrariado; ensaia, em voz baixa.) “Dona Mariazinha... a Sílvia, sabe, a Dona Sílvia aí do lado, me mandou aqui, eu sou um marido dela”... (Gritando.) Eu não sei como é que fala isso, raios! SÍLVIA (Respira fundo) – Por favor, Lúcio... (Disca um número no telefone.) “Na alegria ou na dor”... lembra? LÚCIO (Irritado) – Isso foi o padre que falou! (Respira fundo.) Dentista é bem pior... (Caminha em direção à porta da rua, tropeça no carrinho do bebê, xinga, tropeça na escada, xinga, tropeça no “bebê comfort”, xinga e sai.). SÍLVIA (Ao telefone) – Celsinho? Oi, é sua cunhada, tudo bem? (Pausa.) Tudo médio... Olha: eu tô ligando pra pedir favor. O Lúcio e eu precisamos ir pro trabalho e não temos quem fique com o Júnior. (Pausa.) Não, a Dulce saiu, depois te conto. A Ana Paula não poderia? (Pausa.) É mesmo? Você acha que ela pode mesmo? Maravilha! Sua namorada é um encantamento, é um deslumbre. (Pausa.) Tá, eu espero, peça pra ela me ligar logo que chegar. (Pausa.) Tá, beijo, obrigada, hein? Beijão. (Desliga.). LÚCIO (Entrando pela porta da rua) – O jardineiro aí disse que a Dona Mariazinha foi visitar a irmã no balneário de... Cubatão. É, acho que é isso, de São Sebastião ou Cubatão, por aí. SÍLVIA – Não tem importância. Teu irmão falou que a Ana Paula vai poder ficar. LÚCIO – É mesmo? SÍLVIA – Ela vai ligar daqui a pouco. LÚCIO – Ótimo! Então está tudo resolvido, vou indo que já são... SÍLVIA (Olhando o relógio) – Nove e... quarenta e dois, para ser exata. Sentemos os dois e esperemos, tranqüilamente, a Ana Paula ligar. LÚCIO – Por que os dois? Por que não fica você esperando e eu vou para a minha entrevista? SÍLVIA – Porque a Ana Paula pode não ligar. LÚCIO – E se ela não ligar? SÍLVIA – Discutiremos o assunto novamente. Esperemos até dez para as dez. LÚCIO – Você é de uma antipatia... (Anda pela sala, nervoso. Sílvia permanece sentada, tranqüila. Lúcio tenta controlar-se desesperadamente.) Pernóstica. (Sílvia não se abala.) E se ela não ligar? Não é melhor ligar para outra pessoa? SÍLVIA (Tranqüila) – Ela pode telefonar e encontrar o telefone ocupado. LÚCIO (Andando, nervoso, pela sala) – Quer ficar quieta? SÍLVIA – Eu?... Não estou falando nada!... (Toca o telefone. Os dois pulam. Sílvia atende.) Alô? (Pausa.) Celsinho... (Pausa.) Ô meu Deus: justo hoje... (Para Lúcio.) Ela tem prova na faculdade. (Ao telefone.) Não, tudo bem, fazer o que, né? Deixa eu desligar então que temos que achar alguém, rápido! (Pausa.) Não, valeu a intenção... tá... um beijo, tchau, um beijão. (Para Lúcio.) Ele está mandando abraço. LÚCIO (Apanha o telefone e grita) – Eu odeio você, eu odeio você, canalha, canalha! SÍLVIA (Desligando) – Pára Lúcio! Pára com isso, que coisa! LÚCIO – Não se mete em briga minha com meu irmão, não se mete! Eu nunca me meti em coisas da tua família! SÍLVIA (Sarcástica, pausadamente) – Ah!... Ah!... Ah!... LÚCIO – Não mesmo! SÍLVIA – Ah é? Já esqueceu o meu pai, é? LÚCIO – Cobri um cheque sem fundo dele! Isso eu lembro muito bem! SÍLVIA (Gritando) – Ca-lú-nia! Foi meu pai que cobriu cheque sem fundo do seu, covarde! LÚCIO – Nunca! Ficou doida? Meu pai já-mais passou cheque sem fundo, sua mentirosa! Aliás, eu nem tenho pai! Eu sou órfão, desgraçada, já esqueceu? Sou ór-fão! SÍLVIA – Chega. (Pega a agenda de telefones.) Chega, Lúcio, isso aqui não vai ter fim, eu já conheço, já vi o teipe. O problema agora é outro. (Falando para si mesma.) Ai!... Eu tenho que me controlar, o problema é outro... (Olha na agenda.) A Vitória... tem dentista. A Malu tem paciente... LÚCIO (Com desprezo) – Médica... Ela é sócia do Cemitério do Embu, isso sim. SÍLVIA (Gritando) – Não fala mal das minhas amig... LÚCIO (Interrompendo rápido) – Não falei nada, não falei. E aquela coisa ali na esquina? SÍLVIA – ‘Coisa’? LÚCIO – Creche. Berçário. SÍLVIA – Não pega assim de uma hora para outra, tem que esperar vaga. LÚCIO – E Baby-sitter? É só olhar as Páginas Amarelas. SÍLVIA – Uma estranha, de Páginas Amarelas, para ficar aqui com o nosso filho? LÚCIO – É. Tem razão. Vai que é traficante de bebê para a Arábia Saudita. SÍLVIA – Ai!... O Júnior fazendo o jardim-de-infância no Grupo Escolar do Irã! LÚCIO (Olhando o relógio) – Faltam quinze para as dez! SÍLVIA – A Cristina, claro. Como é que não me lembrei antes? A Cristina pode! Ai, o Júnior, foi ele que chorou? (Pára e olha para cima.). LÚCIO – Não escutei choro nenhum. SÍLVIA (Em tom dramático) – Mãe escuta: toma. (Estende a agenda aberta para Lúcio.) Liga para a Cristina, tá aí o número. Vou ver o Júnior. Ela vai poder ficar, a Cristina pode, liga, por favor, liga... LÚCIO (Olhando a agenda) – Como? Cristina na letra M? SÍLVIA – Letra M? LÚCIO – É. Você me deu a letra M. SÍLVIA – Ah, é M de ‘Mães’. Vê aí: a Cristina tá aí nessa lista de Mães. Ela tá bem no fim. (Sílvia sobe as escadas correndo. Lúcio disca o número.). LÚCIO (Ao telefone) – Alô, de onde falam, por favor? (Pausa.) Dona Cristina está? (Pausa.) É o secretário de uma amiga dela, dona Sílvia. (Pausa.) Ah, não está. Por obséquio, quando ela chegar, o senhor poderia fazer a gentileza de pedir que ela telefone para a sua amiga, dona Sílvia? (Pausa.) Sim, ela tem o telefone, sim. Muito obrigado, passar bem. (Pausa.) Como? (Pausa.) Não, isto não é uma gravação. (Pausa.) Passar bem. (Anda pela sala, inquieto; olha o relógio.). SÍLVIA (Descendo as escadas) – Não, rebate falso, dorme como um anjo, o meu menino. LÚCIO – Nosso menino. Pelo menos ‘uma gota’ de participação eu tive. SÍLVIA – E aí? A Cristina? LÚCIO – Foi levar as meninas na natação, deve estar chegando e liga já para cá. SÍLVIA – Quem atendeu? LÚCIO – Sei lá. Voz de homem: deve ser o marido ou o amante. Que vergonha, eu, Lúcio, tendo que tomar esse tipo de providência doméstica. SÍLVIA – Problema seriíssimo esse: cuidado que na sua idade você pode ter um infarto. LÚCIO – Não brinque com isso! Eu nunca brinquei com seus chiliques pré-menstruais. Sempre respeitei! Embora você fique in-su-por-tá-vel, sabia? Pré-menstruação, nada é mais insuportável que isso, nada, na-da! SÍLVIA – O problema é outro, Lúcio. Não desvia... LÚCIO – Claro que é outro! (Pausa.) Sabe por que foi acontecer isso com a samambaia, Sílvia? Foi... uma manifestação de independência sua, digamos assim. O retrato vivo, aliás, morto, da sua competição comigo. SÍLVIA – Vai começar... LÚCIO – Tá na cara, não sei como é que você não percebe. Você está querendo brilhar, está querendo provar para todo mundo que é tão eficiente quanto eu. SÍLVIA (Rindo) – Que bobagem, Lúcio! Mas, e se fosse? Não é riquíssimo duas pessoas ótimas, que se somam, dentro de uma casa? LÚCIO (Em tom professoral) – Sílvia: uma casa funciona como uma pequena empresa onde existe uma coisa que se chama “divisão de tarefas”. Cada setor exerce suas funções. A disputa entre dois setores leva qualquer empresa à falência. SÍLVIA – Já li isso numa Playboy velha sua, acho que de 75. LÚCIO – Além do quê, eu não acho correto (engrossa a voz.) mulher minha, solta por aí, à procura da sua realização pessoal às custas da exploração da sua empregada! Assim é fácil! SÍLVIA – Só que a Dulce se encarrega desta casa aqui para que nós dois possamos produzir. Ela é nossa empregada, e não minha! Era, aliás, porque graças a Deus a desgraçada já está arrumando as malas. (Toca o telefone.). LÚCIO – É sua amiga! É ela! SÍLVIA (Atendendo) – Alô! (Pausa.) Ô, Cristina, que bom que você chegou. LÚCIO – Manda vir rápido que eu pago o táxi! SÍLVIA (Pausa) – Ah, a Ana Paula te ligou. Pois é, não temos com quem deixar... (Pausa.) Nossa, é mesmo, eu tinha esquecido... Desculpa Cristina, é hoje a sua lipoaspiração... LÚCIO – É frescura! Manda suspender! SÍLVIA – Não, dizem que não dói nada não, só não pode deitar nem sentar por uns tempos, e respirar só bem deva-gar-zi-nho... Mas no resto... LÚCIO – Nada! Morre no ato! Manda adiar e vir pra cá! SÍLVIA (Tapa o bocal do telefone) – Quer parar? LÚCIO – Não me reprima! Não me reprima que eu tenho trauma! SÍLVIA (Ao telefone) – Não, dói um pouco mais que parto, só. LÚCIO – Faltam doze minutos para as dez... SÍLVIA – Já pensou você, no verão, de fio dental? LÚCIO – Essa aí? Fio dental! Mas nem no dente! Não tem espaço, tudo encavalado... SÍLVIA (Ao telefone) – Vou te visitar, claro, e o que você precisar, estou aqui às ordens, claro, o que precisar... Como? (Pausa.) Ah é? E ela pode ficar aqui pra mim? (Pausa.) Maravilha! Ai, que bom, Cristina, fala que eu estou esperando, então. Um beijo. Obrigada. Um beijo, tchau. (Desliga.) A Valéria está vindo para cá. Já está saindo. Ela está lá com a Cristina e vem voando para cá. LÚCIO – Tudo bem... Então, como já são quase dez horas e eu sei que você, em toda a nossa vida, foi muito compreensiva... SÍLVIA – Fui mesmo. Compreensiva. LÚCIO – Pois é. E eu sempre tive a maior gratidão por isso, e então, agora... SÍLVIA – Carinhosa e compreensiva. A vida inteira. LÚCIO – Claro. Muito carinhosa. Você sempre foi muito feminina, Sílvia, terna... SÍLVIA (Mexendo num pacote de compras) – Carinhosa; terna e compreensiva. Muito forte e feminina tal qual cristal. Ai, se o Júnior acorda agora vai ser um berreiro, deixa eu ir adiantando com a papinha... LÚCIO – Você não vai fazer papinha agora! SÍLVIA – A Valéria não sabe o que tem que dar para ele! LÚCIO (Controlando-se) – Não é possível!... SÍLVIA – Vamos adiantando as coisas, me ajuda. Se o Júnior acorda molhado e morrendo de fome vai ser pior, precisa estar tudo em cima. Pronto. Meu Deus! Está sem fralda limpa e a descartável acabou! (Sai e volta rápida, trazendo uma fralda.) Me passa essa fralda enquanto eu faço a papinha, Lúcio, por favor. (Põe o pano e a fralda sobre a mesa.). LÚCIO (Com ar ingênuo) – Como? Eu não compreendi o que você está querendo insinuar... SÍLVIA (Imitando o ar ingênuo de Lúcio) – Passa essa fralda para mim, Lúcio. LÚCIO (Horrorizado) – Então... então era isso mesmo o que eu pensei ter escutado errado? Eu? (Gritando.) Passar fralda! SÍLVIA – Tem que ir adiantando, Lúcio, por favor, a Valéria não sabe onde estão as coisas... Facilita... Eu estou na papinha, não dá para fazer tudo... a Dulce saiu, não dá para fazer tudo... LÚCIO – Passar fralda, eu, de gravata e terno de linho! Que imagem... absurda! SÍLVIA (Em tom de crítica) – Imagem? LÚCIO – Vou... transpirar inteiro, no peito, debaixo do braço, como é que posso chegar na minha reunião nesse estado? SÍLVIA – Eu estou com um conjunto de seda pura da Bloomingdale’s e salto seis de Charles Jourdan. (Os dois se medem.) Mas deixa, eu passo. LÚCIO – É que eu não tenho idéia de como é que passa isso... Isso passa? Pra quê? Vai amassar mesmo... (Sílvia vai buscar o ferro de passar roupa e traz mais panos. A sala de visitas vai adquirindo o aspecto da lavanderia da casa.). SÍLVIA – Passa sim, esteriliza, senão dá alergia, brotoeja. (Começa a passar a ferro.) “Dia de mudanças profundas”, o horóscopo avisou... Não estou elegante? Já voltei, eu sei, a ser elegante. Discretamente elegante, discretamente brilhante, raciocínio masculino discreto coroando discretamente a mais leviana das intuições discretas femininas. Eu te falei que não sou nada, imagine que disparate, eu sou, sim, sabe quem eu sou, Lúcio? LÚCIO (Olhando o relógio) – A Valéria deu certeza mesmo que vinha? SÍLVIA – Já deve estar aí. Não posso errar, eu não fracasso. Onipresente e divertida, onisciente e companheira, sabe quem eu sou, Lúcio? LÚCIO – Mulher Maravilha! A She-Ra! SÍLVIA – Não. Eu sou... Deus! LÚCIO – Quer parar com isso que hoje não tem clima? (Toca o telefone. Os dois pulam.). SÍLVIA (Atendendo) – Alô! (Pausa.) Oi, Valéria... (Pausa.) Nossa... nossa, que coisa... (Pausa.) Tudo bem, não, vai, vai, se precisar da gente... (Pausa.) Vai, corre, qualquer coisa estamos aqui. Tchau. (Desliga.) O filho caiu da bicicleta e quase esborrachou o nariz. LÚCIO (Penalizado) – Aquele ruivinho sardento? SÍLVIA – É... LÚCIO (Furioso) – Garotinho filho da puta! SÍLVIA – Ela vai atrasar um pouquinho, mas vem. Garantiu que vem. LÚCIO – Larga essa porra de criança aí e vamos embora, Sílvia! SÍLVIA – Como? LÚCIO – É! Larga aí! Essa porra de menino! Vamos! (Sílvia faz um ar de tédio. Os dois olham para o relógio da parede. Encaram-se irritados. Pausa.) Eu vou sair! Vou tra-ba-lhar. Passar bem, dona Sílvia Miranda. (Caminha, resoluto, até a porta, abrindo-a com decisão.). SÍLVIA – Eu quero o divórcio. LÚCIO – O... quê? SÍLVIA – Quero o desquite, chega, não quero mais saber disto aqui, estou cheia de você, quero a separação, agora, já, eu quero, pronto! LÚCIO (Volta para o centro da sala) – Como assim, Sílvia? O que quer dizer com isso? SÍLVIA – Ué: não escutou? Quero o desquite, o divórcio, quero ir embora daqui, ficar longe de tudo, é isso. Escutou agora? LÚCIO – Sílvia... Você não pode estar falando sério... SÍLVIA – Não acredito! Não acredito que você, por um segundo, possa não acreditar no que estou dizendo, Lúcio. Eu quero me separar de você, escutou direito agora? LÚCIO – Mas... por quê? SÍLVIA – Por quê? Ora, porque estou de saco cheio! Já não basta isso? De ser empregada sua nesta merda de empresa sua... LÚCIO – Minha? SÍLVIA – E de quem mais?... Onde não sou eficiente nem numa coisa nem noutra! Então eu opto por uma coisa apenas e peço demissão da outra, isto é, do Lar! LÚCIO – Hoje eu ainda acabo louco. SÍLVIA – E se você se sente casado com a Dulce, Lúcio, porque acha que quem faz tudo é ela, eu te digo que essa é uma excelente idéia! LÚCIO – Do que é que você está falando? SÍLVIA – É! Casar com a Dulce! Não você, claro. Eu preciso é de uma esposa e não de um marido. Obrigada por me fazer descobrir isso. Peço demissão e desculpas pelo que disse há pouco. Eu não sou Deus, não. Eu e Ele fizemos o mundo juntos sim, em seis dias, mas... LÚCIO (Interrompendo) – Não é piadinhas! Não vê que eu estou nervoso? momento para SÍLVIA – Não é piada. Tenho o escritório, a casa, o Júnior, o regime – sempre – linda – e – cheirosa – senão – perde – o - marido, trabalhar e não comer, e a bendita criança chora, trabalhar e não dormir, maldito choro, mal-di-ta criança. Ah! Não foi meu seio que perdeu o atrevimento, não, fui eu inteira, eu vi no espelho, é questão de postura, estou arcada, como se carregasse o mundo nas minhas costas! Você dorme de noite e tem fim-de-semana, a Dulce tem também fim-de-semana, eu nunca! Nem férias! Eu não sou Deus mes-mo! Eu e Ele fizemos o mundo juntos sim, em seis dias. Mas Ele, o Senhor, no sétimo descansou!... LÚCIO – Isso tudo porque quer: eu te falei. Escolha sua, quem mandou querer ter tudo na vida? Ninguém pode ter tudo na vida, Sílvia, filho, trabalho, sucesso, ninguém pode! SÍLVIA – Você tem, por que eu não posso? Amor, trabalho, alegria, pernas, braços, os dez dedos, um coração. E isso é o mínimo que a gente tem que exigir da vida, Lúcio, isto é: tudo. Eu quero, e mereço, tudo. É isso. Olha aí: (Empinando o corpo.) nem bem me defini, já voltou o atrevimento, tá vendo? Olha aí o meu peito! LÚCIO (Em tom conciliador) – Calma Sílvia, você está muito nervosa. Vamos discutir esse assunto de cabeça fria, em outra ocasião. No momento temos que concentrar nossos esforços para resolver o “problema Júnior”. Para podermos ir trabalhar; não podemos nos atrasar mais. Vamos: eu te ajudo; é para encher esta mamadeira? (Vai encher a mamadeira, quase derrama tudo, desajeitado.). SÍLVIA – Cuidado! Ô, Deus, deixa que isso eu faço... LÚCIO – Calma Sílvia: eu posso fazer. SÍLVIA – Você não tem jeito, ia sujando tudo. LÚCIO (Decidido) – Deixa comigo, sempre tem uma primeira vez... (Enquanto manipula a mamadeira fala, cuidadosamente.) Está vendo? Você mesma reconhece nossos papéis e nossas limitações. Eu ia passar a fralda sim, eu ia. Mas você achou humilhante seu marido passando fralda de terno e gravata. Passou você mesma, de seda e salto alto. Porque você mesma desqualifica essa função... e se desqualifica. (Lúcio sacode a mamadeira, o leite espirra no chão; apavorado, olhando para Sílvia, medroso e infantil, tenta limar o leite com o pé.) Na primeira entrevista com os Teixeira Leite você faltou porque o Júnior estava com febre. Podia ter pedido para eu ficar com ele. Eu ficaria. SÍLVIA – É... Nem me passou pela cabeça. LÚCIO – Na segunda entrevista, hoje, você despede a Dulce. Sabe por quê? Porque, como toda mulher, inconscientemente você tem medo do sucesso, não se sente preparada. Então vai boicotando suas próprias oportunidades, minando o campo, preparando o terreno para o fracasso. Isso até tem nome, chama Complexo de Branca de Neve. SÍLVIA – De Cinderela! LÚCIO – Noviça Voadora, Disneylândia, sei lá! Mas é isso aí que você tem. Por isso embolou o meio de campo, justo hoje, no teu grande dia. Desculpa Sílvia, não foi a mim que você quis solapar nesse caso da samambaia. Foi a si mesma. E isso é mais comum do que a gente pensa, não é só com mulher não. Alguns descuidam das plantas, outros da alimentação, outros fumam quatro maços de nicotina preta por dia. (Pega um frasco de dentro do pacote de compras.) É o carro a cento e cinqüenta, a úlcera, poluição, ponte de safena. Pequeninos e discretos atos cotidianos suicidas como se as pessoas, no meio da história delas, tivessem de repente errado o rumo e não sentissem mais prazer... O câncer, a AIDS, o avião que cai por descuido, por falha humana... (Empolga-se, fascinado com o próprio discurso.) O navio que afunda, o foguete que decola, todo mundo olhando, como um cometa de aço sobe, explode e vira uma estrela, lá em cima, uma estrela... (Subitamente pára e olha para o frasco que tem às mãos.) Este fortificante se usa em mamadeira ou é só para plantas? SÍLVIA – Que fortificante? LÚCIO – Este, ué, que eu coloquei na samambaia, o fortificante aí, das plantas. SÍLVIA – Isso não é fortificante, Lúcio. LÚCIO – Não é? SÍLVIA – Esse é o alvejante novo que pedi para a Dulce não comprar mais. “Branqueia até roupa de luto”. (Toca o telefone. Sílvia vai atender.) Alô! (Pausa.) Oi, Valéria, e aí, como está o menino? (Pausa.) Não, imagine, a gente já está se arrumando aqui, cuide do seu filho, tá? Qualquer coisa liga pra cá. Tchau. (Pausa.) Tá, tchau, um beijo. (Desliga.) Não foi “quase”. O filho quebrou mesmo o nariz. LÚCIO (Perplexo) – Eu coloquei samambaia, em vez do fortificante. o alvejante na SÍLVIA – Definitivamente não temos ninguém para ficar com o Júnior. LÚCIO – Fui eu que matei a samambaia, Sílvia... SÍLVIA – Não começa com coisa, foi um acidente, Lúcio. O vidro é muito parecido. LÚCIO – Não existem acidentes. SÍLVIA (Terna) – Claro que existe... Com todo o mundo acontece. Esquecer o ferro ligado, bater a porta com as chaves dentro... LÚCIO (Chocado) – É... terrível. Eu... discursando sobre os meus medos enquanto... SÍLVIA – Ô, Lúcio, não exagera, as coisas também não são assim. Eu vou ligar para a Lídia... LÚCIO – Deixa pra lá, Sílvia... Vai você pra sua entrevista, eu fico com o Júnior. SÍLVIA – Mas Lúcio... ah, não. Você não vai agora ficar deprimido só por causa de um acidente tolo, de uma bobagem... LÚCIO – Mas que bobagem, Sílvia? Eu acabei de falar aqui, agora, em boicotar as próprias oportunidades. Será que eu quero mesmo ir nesse raio de entrevista minha, nesse raio de viagem, ou é apenas... apenas competição com o Douglas, por exemplo? SÍLVIA – Ah, não, essa não, Lúcio. Você gosta da sua profissão, sempre gostou. “Eu dou a base sólida pra vocês poderem até voar!” Você falou isso. LÚCIO – Aquele meu chefinho de merda que subiu puxando o saco do chefe dele, também de merda... Será que é mesmo a minha vocação ou é apenas a profissão mais segura para um “arrimo de família” como eu? Eu nunca vou saber... Sabe por quê? Porque agora é tarde demais. Agora eu sou um Vencedor. É tarde demais para perguntar. Para experimentar outras coisas, como... ser psicólogo, por exemplo. Paisagista. Se eu arrisco agora, Sílvia, debaixo desse verdadeiro saque que foi a conta do supermercado, debaixo desse constrangimento imenso que tomou conta do país, deste... (Pára, procurando o termo.) esgarçamento, deste país esfarelado... e podre... Se eu arrisco agora não é nem mais questão de carteirinha de clube, não. Agora, a família morre mesmo. De fome. A família, essa coisa que eu encontro em casa depois de um trânsito enlouquecedor, você de olho arregalado grudado na televisão ligada, então eu entro e desabo e me arregalo também, e o amor mecânico não segundo a gente, mas segundo a média da classe média. Isso quando você está, porque mesmo estando você não está mais... Antes todo mundo tinha mães, o que aconteceu? Um copo de leite morno na cama, a gente fazia planos, um beijo na testa, me cobria com o cobertor, bem fofo, quente... Silvia, pra onde é que foi a minha mãe? (Encolhe-se. Pausa.). SÍLVIA – Sabe Lúcio... vou te contar uma história. Uma noite, era madrugada e eu estava sozinha no quarto com o Júnior, o meu bebê querido que então me parecia mais um bichinho, uma plantinha, do que gente. Eu costurava um pijaminha dele na luz do abajur. Silêncio, o Júnior dormindo, eu sozinha costurando. De repente senti um arrepio na espinha e tive a certeza que tinha alguém mais lá dentro do quarto. Me espiando. Senti medo, olhei dos lados; alguém, ali, estava me olhando costurar. A cortina, a cama, travesseiro, fralda, fronha, e então meu olho encontrou com o olho dele. No meio da fralda-fronha. O Júnior, Lúcio. Pela primeira vez o Júnior estava lá. Presente. Me olhando com o olho de quem enxerga... e sabe. Um ser humano. Me olhando com olho da minha família, do teu avô, um olhar feito de séculos. Com o olho da espécie humana inteira. Meu filho. E era tão fundo aquilo que eu não queria mais sair de lá. E ao mesmo tempo eu quero. Então sinto culpa. Uma culpa imensa... Dói... dói... Mais tarde um pouco a Dulce entrou no quarto e presenciou uma parte disso tudo. E juro que ela entendeu. Esse foi o momento que calou mais fundo na minha vida, Lúcio. Deveria ter sido dividido com você. Mas você não estava. (Pausa.). LÚCIO – Como a gente não se conhece... SÍLVIA – E dormimos na mesma cama... Todos os dias... (Pausa. Dulce entra, segurando o choro.). DULCE – Eu fico com o Júnior. Se a senhora não se importa eu fico com ele, dona Sílvia. E vocês dois vão pro trabalho. (Surpresos, os dois se olham.) Eu escutei um pouco do que a senhora falou aí, eu tava ali, desculpa. Eu... lembro sim... dessa noite do Júnior e... eu fui tão grossa com a senhora hoje, não sei o que deu em mim, eu não queria ofender a senhora, eu... (Chora.) eu quero ver a minha mãe estraçalhada nos trilhos de um trem se eu queria ofender a senhora que eu gosto tanto (soluça.), tanto... SÍLVIA – Tudo bem, Dulce. Depois conversamos sobre isso. DULCE – A senhora deixa eu ficar com o Júnior hoje? Eu adoro ele, não quero que a senhora me afaste dele... SÍLVIA – Você vai poder visitá-lo. LÚCIO – A Dulce diz que fica, Sílvia. Já ficou tantas vezes. SÍLVIA (Pensa um pouco antes de responder) – Tudo bem, então... hoje, você fica, Dulce. DULCE – Se quiser eu fico à noite também. Vocês dois têm compromisso, não tem? (Vai para o fundo da sala. Os dois se olham. Pausa.). SÍLVIA – Vai jantar com quem hoje? Com a Teca? LÚCIO (Decepcionado) – Não, Sílvia... não vou jantar com Teca nenhuma. (Pega a sua pasta no outro lado da sala.) E você? Pensei que fosse estrear a “coleção secreta”? SÍLVIA (Surpresa) – Você sabia da minha coleção! Gozou na minha cara! LÚCIO – Nada... Achei apenas lindamente feminino e infantil. SÍLVIA – Pois tem quem não ache! Nem infantil nem tolo! Tem quem ache que “misturar os cabelos bêbados” é deslavado e arrebatador! LÚCIO – “Rasgar, fundir, da entranha ao coração e à boca!...” SÍLVIA (Perplexa) – Você mexeu nas minhas coisas, Lúcio... Mexeu nos meus papéis... Isso eu não permito!... Que me humilhe assim, revirando os meus papéis!... LÚCIO (Perplexo) – Sílvia... Você não sabia? Você não sabe mesmo!... SÍLVIA – Não sei o quê? Eu tenho o direito sim, à minha privacidade! Aos meus segredos, eu tenho todo o direito, sim! Acabou, Lúcio! Acabou mes-mo! LÚCIO – Achou que a carta era de quem? Dos guardas, dos entregadores? De algum fanzoca que passa aí na porta? SÍLVIA – O que está tentando me dizer? LÚCIO – Hoje é dia vinte e sete de julho. Está fazendo cinco anos que nos conhecemos. Marquei um encontro no Lua Nua para comemorar o aniversário... nosso, enfim. Nunca pensei que eu precisasse assinar... Fui eu que te mandei aquela carta, Sílvia. (Sílvia perplexa. Entra música. A luz vai apagando, os dois congelam na posição e o foco de luz fica sobre eles. Outro foco de luz cai sobre Dulce, abrindo as cortinas da janela que Sílvia havia fechado.). DULCE (Suspirando, emocionada) – Ah, meus orixá, por favor... Vê se faz passar aí na frente, pra sacudir a minha vida agora... Um moço do carro vermelho... alto, de cabelo loiro, encaracolado... Montado num alazão doirado... (A luz se apaga na medida em que a música aumenta.). FIM