PDF - Jornal Plástico Bolha

Transcrição

PDF - Jornal Plástico Bolha
plástico bolha
w w w. j o r n a l p l a s t i c o b o l h a . c o m . b r | j o r n a l p l a s t i c o b o l h a . b l o g s p o t . c o m
Distribuição Gratuita
Ano 6° - Número 29
é involuntário
uma grande nuvem rosa
roça a testa
do cristo redentor
neste exato instante agora
a revolução sutil silenciosa
que jamais se pôde supor
Dado Amaral
www.angeloabu.com.br
DESTAQUES
Entrevista com Zélia Duncan, por Aline Miranda
Luisa Noronha investiga Rousseau na coluna Puzzles
Coluna Oráculo, com texto de Antonio Mattoso sobre Adriana Partimpim
Eduardo Lacerda e os hinos das torcidas de futebol na coluna Por dentro do tom
Poemas de Roberto Corrêa dos Santos, Fred Coelho, Andityas Soares de Moura, Flávia Iriarte, Dênis Rubra, Ismar Tirelli Neto,
Ana Salek, Marina V. Medeiros, Victor Heringer, Tiago Rattes de Andrade, Carolina Sims, Domingos Guimaraens & Isabel Wilker
Textos de Carlos Eduardo Varella Pinheiro Motta, Ivan Cunha, Chiara di Axox, Miguel Del Castillo & Dimitri Rebello
BOLHETIM
EDITORIAL
Plástico Bolha: O Livro
bobinas de plástico bolha
obtidas do processo
de extrusão do polietileno
utilizadas nos produtos
que necessitam de proteção
contra impactos, riscos e rupturas, com
propriedades de resistência
a choques, umidade, poeira e vapores;
isolante térmico;
não poluente e reutilizável,
inodoro, atóxico, reciclável
com transparência de 75%, consolidam
sua aplicação em diversos segmentos,
de embalagens a poesias
Em novembro de 2010, foi lançada pela Editora Oito e meio a Antologia de prosa Plástico
Bolha, uma cuidadosa seleção de 35 textos
representativos dos primeiros cinco anos do
jornal. Um livro reunindo o melhor da nossa prosa, entre contos, minicontos e prosas
poéticas, nos quais o leitor poderá conferir,
também, algumas das tendências que se
apresentam na literatura contemporânea
brasileira deste início de século. Com 112 páginas, orelha de Marília Rothier e prefácio de
Pina Coco, a Antologia se encontra à venda
nas melhores livrarias ou pelo site da editora:
https://editoraoitoemeio.wordpress.com.
Heinz Langer
Os autores da Antologia de prosa
Plástico Bolha:
Caixa Postal
Caros,
Quero agradecer o prestígio da publicação no Blog do Bolha e não posso deixar de parabenizar
o jornal e o site de vocês. Vejo esse trabalho como peça-chave de consolidação cultural, uma
consolidação livre que circunda os infinitos limites da internet — seja pelo livre acesso dos escritores ao jornal, seja pelo livre acesso dos leitores ao jornal (que é gratuito). Vejo que ele vem crescendo e, de fato, por ter sido prestigiado, me vejo instigado a continuar a escrever e a construir o
meu olhar e desenvolver a minha poética, que não é minha mas reflexo do meio e tecido social
de que faço parte. O jornal, então, por consolidar essa poética em si, contribui para desenhar
um cenário, que é identidade cultural e que, na sua construção e forma, ganha unidade cultural,
dentro da pluralidade que é o Rio de Janeiro.
Obrigado. Em breve disponibilizo outros escritos.
Ricardo Fernandes
Adriano Espínola, Alice Sant´Anna, Augusto
de Guimaraens Cavalcanti, Camila
Justino, Carlos Andreas, Carlos Santana
Jr., Chiara de Axox, Constanza de Córdova,
Domingos Guimaraens, Fábio Reis Vianna,
Greco Blue, Gregorio Duvivier, Henrique
Meirelles, Isabel Diegues, Isabel Wilker, João
Francisco da Costa Ribeiro, Laila Melchior,
Leonardo Vieira de Almeida, Léo Torres,
Lucas Viriato de Medeiros, Luciano Prado
da Silva, Marcela Sperandio Rosa, Marcelo
dos Santos, Marilena Moraes, Miguel Del
Castillo, Paola Ghetti, Paulo Vitor Grossi,
Raïssa Degoes, Rodrigo N.C., Tatiana Salem
Levy, Tiago Maviero, Yuri Amorim.
ENVIE SEUS TEXTOS PARA
[email protected]
EDIçÃo Lucas Viriato
Conselho Editorial Alice Sant`Anna | Gabriel Matos | Marilena Moraes
DIAGRAMAÇão Mariana Castro Dias
Revisão Gabriel Matos | Marilena Moraes | Rafael Anselmé
Equipe Beatriz Pedras | Fernando Fernandes | Gisele Lemos
webdesign Henrique Silveira
Em memória da professora Claudia Castro.
Edição Março/Abril de 2011
DISTRIBUÍDO no estado do Rio de Janeiro e nas cidades de Belo Horizonte, Vitória, Brasília, Salvador, Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre.
TIRAGEM 13.000 | IMPRESSO na ZM Notícias
2
o
jornal
da geração
pós-contemporânea
Poetizando Tragos
Poema zero
segredo
Cama:
Entre o cálculo perfeito
e a concretude áspera
do cimento e dos tijolos
Carrego comigo um segredo maior que o mundo,
Mudo, amassado e perfeito,
Meu segredo em silêncio
Eu carrego comigo.
eu, você,
o Marlboro light em box,
as cinzas no cinzeiro
seguindo a harmonia do nosso suor.
fumo a vida com você
até o ultimo trago.
Dênis Rubra
a nossa mais completa ignorância
de que a qualquer momento
este mundo pode desabar sobre nós
e seus limites de asfalto e céu de cal
planejados pela ciência do homem
sempre aquém do movimento
das placas que sob o magma colidem
sem pulsão, sem função, por acaso
por descaso por tudo que há
Acaso
Antes era um livro fechado
Um telefone desligado
Agora é vento na árvore
Varrendo toda a ilusão
Dos olhos acostumados
de amparado por essa ilusão
falível mas suficiente
que sustenta os prédios
que aterra os mares
que domestica átomos
que esvazia os cemitérios
É poema perdido,
Lançado ao mar
Como a tarrafa
Que vai sem saber
Que recolhe o ouro do mar
das engenharias e das linguagens
as verdadeiras armas que limitam
o vazio com as paredes tangíveis
E cumprem seu papel
Como os papéis do livro fechado
Na ânsia de serem lidos e entendidos
Nem que seja por uma tarrafa
Lançada sem saber
Um segredo cerzido sabe lá por que linhas,
Amarrado atrás da cabeça, apertado
No meio dos dentes,
Meu segredo borbulha calado,
Nublando meus dias quando lembro que sim,
Mesmo abafado,
Sopro sem ar,
Carrego um segredo em mim.
E nos dias de sol e azul,
Nas horas em que a vida confessa e chora,
Meu segredo me pede e embora
Eu nem mesmo saiba sobre o que ele canta,
Meu segredo destrava a garganta e pede um trago
Faz um charme, eu o afago,
E assim meu segredo se abre
Estende suas asas em voo de nave
E proclama seu fim
conferindo à paisagem
a mudança enganadora
que movimenta a engrenagem
Preocupação não há
Os peixes hão de vir
Caminham cegos
Ao seu destino quiçá
Que não sabem
Quando vejo a pedra da gávea
Meu segredo se agita aqui dentro
Um segredo sem norte,
Sem rima,
Eu carrego comigo em segredo
Um segredo até mesmo para mim.
Frederico Coelho
que nos protegem de escorrermos
pelos sonhos mais do que pela morte
— que só ficam intactas as arestas do mundo.
Flávia Iriarte
Fernando Brum
3
PUZZLES
por luisa noronha
Rousseau: o obreiro e sua obra
Qual a relação entre o estilo adotado por Rousseau em sua obra Ele não vê a educação como uma correção, mas como uma
Emílio ou da educação e a proposta pedagógica nesta apresen- descoberta das habilidades naturais, em um processo de dentro
tada? Ao constatar que a maneira de escrever legitima e elucida para fora. Se na ordem social ensina-se ao homem uma vocação,
aquilo que foi escrito, como um componente ativo do texto, na ordem natural ensina-se a ser homem.
percebe-se a singularidade do estilo de Rousseau, convergindo
para a afirmação do homem tanto no âmbito do discurso, isto Daí a importância da figura do preceptor no processo educacional.
é, da universalidade, quanto no âmbito da vida prática em suas Este não é um modelo de retidão nem um modelador de caráter.
diversas situações. Se fora do contexto pode parecer desconcer- Se por um lado ele é quase um coadjuvante no processo educatante e paradoxal, o discurso rousseauniano ganha vida no texto cional, na medida em que deve deixar por conta do fluxo natural a
ao mesmo tempo que o sustenta, em um movimento dialético tarefa educativa, sua participação é fundamental, já que a natureza
recíproco e coerente. Sobre a obra finalmente conclui-se que não conseguiria levar a bom termo seu trabalho sem a ajuda dele:
suas disposições físicas e metafísicas são instrumentais, que a “Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos
cultura e o artifício devem buscar a realização plena da natu- de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos,
reza humana e que a formação do homem tal qual Rousseau precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que
concebeu em Emílio tem grande influência sobre as aspirações precisamos adultos, é nos dado pela educação” (Emílio, p.10).
educacionais vigentes até nossos dias.
Cabe esclarecer que Rousseau concebe três tipos de educação: a
Emílio ou da educação, de Jean-Jacques Rousseau, trata de temas da natureza, a dos homens e a das coisas. A educação da natureza
políticos e filosóficos quanto à relação entre a sociedade e o aborda o desenvolvimento interno do homem, a educação dos
indivíduo, explicando como este pode conservar sua bondade homens faz uso desse desenvolvimento contínuo e a educação
natural enquanto atua em uma sociedade inevitavelmente cor- das coisas aborda o ganho sobre nossas experiências. A combirupta. Nessa obra, Rousseau elabora sua proposta pedagógica nação dessas três formas seria o ideal, mas só a educação dos
em torno da história romanceada de um jovem pupilo, Emílio, e homens está sob nossa responsabilidade e possibilidade. Ainda
seu tutor, o facilitador no processo de desenvolvimento do aluno. assim, deve-se tentar aproximar a educação da natureza. As plantas, por exemplo, podem precisar de um melhor encaminhamenA educação deve levar o homem a agir por interesses naturais, e to para que se desenvolvam melhor e deem frutos mais saborosos.
não por imposição de regras exteriores e artificiais, pois só assim
ele pode ser dono de si. Para Rousseau, a educação deve respei- A criança recém-nascida não pensa, logo está mais próxima do
tar o indivíduo, sem institucionalizar um aprendizado moldado conceito de homem ideal, natural. A partir do momento em que
ao padrão social vigente. Sua didática é inédita porque confere à começa a se questionar, ela se desvirtua e perde seu estado de
criança uma posição central no processo de educação, tal como natureza. O que é exatamente essa natureza ideal, Rousseau
nunca antes concebido. Repudiando a ideia do homem-cidadão, habilmente se esquiva de elucidar. Contenta-se em concebê-la
a proposta do autor é a educação do homem enquanto tal, pelo pela oposição àquilo que é social. O sentido da palavra natureza
seu retorno à natureza, ou seja, ao cerne das necessidades mais assume três possíveis significados ao longo de sua obra: o priprofundas da criança, respeitando seu ritmo de crescimento e meiro opõe-se àquilo que é social; o segundo é a valorização das
valorizando suas características específicas. Assim é educado necessidades espontâneas das crianças e dos processos livres
de crescimento; o terceiro refere-se à exigência de um contato
Emílio, seu pupilo ideal, em meio à natureza, o cenário ideal.
com um ambiente físico não urbano e por isso mais genuíno,
Enquanto seus contemporâneos acreditavam que a criança sem as corrupções próprias da cidade.
limitava-se a um adulto em potencial, Rousseau valorizava as
próprias propensões e vontades da criança, considerando-a Outro aspecto da educação natural é não aceitar uma educação
digna de investigação científica. Ela não vem ao mundo como intelectualizada, que leva ao ensino formal e livresco. O homem
uma tela em branco; tem sua subjetividade latente, embora não é constituído apenas por intelecto, pois suas disposições
seja desejável o acompanhamento de um mestre competente. primitivas, tais como os sentidos, os instintos, as emoções e os
Segundo Rousseau, a primeira educação cabe, por natureza, às sentimentos, são dimensões mais dignas de confiança. Rousseau
mulheres (mães), daí a importância de bem instruí-las para que introduz ideias que o distanciam do pensamento racional cartesiano próprio do Iluminismo de sua época: “Transformemos
não mimem e estraguem seus filhos.
nossas sensações em ideias, mas não pulemos de repente dos
Na medida em que problematiza a figura da criança como indi- objetos sensíveis aos objetos intelectuais. É pelos primeiros que
vidual e positiva em si, Rousseau acredita que a mãe já não pode devemos chegar aos outros. Que os sentidos sejam sempre os
dar conta de educá-la adequadamente e que um preceptor se guias em nossas primeiras operações do espírito: nenhum outro
livro senão o do mundo, nenhuma outra instrução senão os
faz necessário.
fatos” (Emílio, livro III, p.175).
Rousseau lança mão de novas ideias para combater as que
prevaleciam em sua época, principalmente a de que a educação Ao afirmar que a educação não vem de fora, mas da expressão
da criança deveria ser voltada aos interesses do adulto e da vida livre da criança no seu contato com a natureza, Rousseau, ao
adulta. Introduz a concepção da criança como um ser com ca- mesmo tempo que valoriza o papel do preceptor no processo
racterísticas próprias; desse modo, ela não podia ser vista como educacional, evidencia uma ideia aparentemente paradoxal,
mas que se revela coerente no contexto da obra. Outra contraum adulto, um ser pensante.
4
dição diz respeito à liberdade. Se por vezes é um entusiasta do
livre pensar e agir, por outras afirma que o homem natural não
precisa ser livre, porque ele não pensa na liberdade. O estado
de liberdade seria a condição social do homem. A única formação possível é aquela que aproxima ao máximo esse estado de
liberdade do estado de natureza. Mas ao afirmar que criança
não é um ser passivo às determinações da sociedade, Rousseau
defenderá como eixo da educação infantil o respeito à liberdade
desse ser. Emílio será livre, porém não desamparado.
Não por acaso esses conceitos escorregadios se materializam em
uma escrita igualmente fugidia e complexa. É como se o estilo
de Rousseau reafirmasse suas ideias, tornando-as um pouco
mais palpáveis e acessíveis. Sua escrita dá voltas, envolvendo e
conduzindo o leitor a um túnel giratório de raciocínio que parece
cercá-lo e atraí-lo ao fundo — sem luz. Mas ele já o prevenira no
prefácio sobre esse aspecto nebuloso de suas ideias: “No que
diz respeito ao que chamamos a parte sistemática, que aqui não
é senão a marcha da natureza, é ela que mais desconcertará o
leitor; será também por aí, sem dívida, que me atacarão, e talvez
com alguma razão” (Emílio, p. 3).
Além de a educação de Emílio não ser sistematicamente elaborada, a escrita de Rousseau denuncia essa complexidade; seu
raciocínio parece descer em espiral, a um sentido profundo e
indefinido. Ele ardilosamente se esquiva da imagem do autor
uno que tudo sabe, intencionado como o ponto de produção
da linguagem, libertando sua escrita de um caráter estático e
pré-estabelecido, assim como espera que seu pupilo esteja livre
das tiranias da sociedade.
O leitor é convidado para saborear suas palavras com a ótica de
uma criança que se deixa guiar sem pré-tensões, uma criança
movida pela emoção. Seu apelo é visceral, pois exalta a autoconstituição subjetiva, totalmente íntima. Rousseau se expõe de
tal forma que beira o narcisismo doentio, camuflado sob uma
humildade introspectiva. Ele desarma o leitor, estabelecendo
uma relação de parceria e abrindo a possibilidade de uma
autoria coletiva.
No contexto de sua época, Rousseau formulou princípios educacionais que permanecem até os nossos dias, principalmente
quando afirmava que a verdadeira finalidade da educação era
ensinar a criança a viver e aprender a exercer a liberdade. Suas
ideias influenciaram diferentes correntes pedagógicas, principalmente as tendências não diretivas, no século XX.
Com sua escrita elaborada e de difícil compreensão, Rousseau é,
ao mesmo tempo, amado e temido: sua obra e mesmo sua pessoa
são fascinantes para uma época em que um novo homem se abria
para novos tempos. Ele não apresenta respostas pragmáticas à
pedagogia, mas antes levanta questões e sonda respostas, instigando a investigação e a produção do conhecimento.
Seu maior mérito é problematizar a criança e lançar-lhe uma
nova luz, como um ser dotado de identidade própria, além de
propor o aperfeiçoamento humano pela reconciliação entre a
natureza e a cultura numa espécie de retorno ao paraíso perdido,
sem abrir mão dos atributos da ciência e da reflexão.
Foi o mordomo
para Os Sete Novos e Pedro Costa
não seria legal se pudéssemos assistir a um filme sem saber de antemão do que se trata? mas está cada vez mais difícil. não bastasse toda a propaganda
do lançamento, tem os artigos, as críticas. pior ainda: tem o youtube e tweets e blogs e o mural do facebook e os portais de notícias — eu só queria abrir
meu email ver a previsão do tempo ver os horários de exibição do filme mas aí, antes que você perceba, já sabe o enredo, o fim, o começo, o meio, já sabe
do diretor, dos atores, dos outros filmes que fizeram, dos filmes que vão fazer, de suas vidas privadas, e todos sabem da sua vida privada também, pelo
facebook pelo twitter pelo blog (pelo orkut não mais), as mesmas pessoas (amigos?) que, sem você pedir e sem que ninguém pague nada pra elas, fazem
de graça propaganda do filme, te contam tudo. você fecha os olhos elas entram pelos ouvidos, você tapa os ouvidos elas entram pela pele, quando você
senta na sala de cinema nem adianta, foi o mordomo, é tarde demais. e tem ainda os trailers: pra cada filme visto você perde cinco, dez, que trailer é o pior
de tudo, é o ápice do estraga-prazerismo — quer dizer, isso sem contar os clichês, o gênero, o problema com o tempo e o fato de que os filmes são todos
iguais, começou você já sabe como acaba (se não souber é porque é bem daquele tipo que é feito pra acabar exatamente como você não achava que ia
acabar , só que esse tipo você também já conhece, então dá na mesma), e não é que você seja esperto, não é mérito seu, é culpa dos filmes, que são todos
iguais. mas o problema com o tempo, o problema com o tempo é que ele passa. mesmo o tempo do filme passa, apesar das interrupções, dos celulares que
tocam, das pessoas que atendem, das pessoas que conversam dentro da sala mesmo com o som ensurdecedor da projeção (que hoje em dia as pessoas só
não falam se não conseguirem, qualquer silenciozinho elas falam em cima, se o som titubear elas gritam, berram), mas também pra que prestar atenção se
todo mundo já sabe como vai ser o filme — que perda de tempo. mas então o tempo: quando você já está na sala há uma hora, uma hora e pouco, começa
a sentir que aquilo não pode durar muito mais (o cinema tem que ter outra sessão, o orçamento do filme acabou, a produtora cortou, extras só no dvd), se
for mais longo que isso é pouco, e é exceção, mas não importa, porque do mesmo jeito, lá pelos dois terços do filme você sente, você sabe que não tem mais
dois terços pela frente, só um terço, e isso é totalmente absurdo, na vida não tem nada disso, um terço, dois terços, três terços, quatro, não seria legal entrar
num filme e ele não acabar nunca mais de passar? e não ter história, e não ter imagem nem som nem personagens nem tela nem cinema, e ninguém mais
saber que é um filme a não ser você, você e eu? mas faz tempo que não dá, está cada vez mais difícil — esse é o problema com os trailers.
Dimitri Rebello
O artista
ele é dos pés à cabeça
pinceladas sem nexo
& está todo mundo
olhando
PÃES ANTEPASTOS MASSAS MOLHOS
PIZZAS SALGADOS DOCES TORTAS
Ismar Tirelli Neto
De volta ao Leblon!
www.ettore.com.br
Av. Armando Lombardi, 800 - lojas C/D. Condado de Cascais, Barra da Tijuca - RJ Tel.: 2493-5611 / 2493-8939
Rua Conde de Bernadote 26 - loja 110. Leblon - RJ Tel.: 2512-2226 / 2540-0036
5
Brincadeira
Quando se observa a vida de cada indivíduo,
de modo geral, destacando apenas seus traços
mais significativos, percebe-se que ela não
passa de uma tragédia; porém, se examinada
em seus detalhes, tem o caráter da comédia.
Arthur Schopenhauer
Você sai do trabalho com o corpo dolorido, mas não
sente a mínima vontade de ir para casa. Como todos os
dias, você resolve ficar um tempo a mais na rua, ignorando os apelos de seus músculos e ossos, que clamam
por descanso. Você sabe que já está velho e não deveria
travar esta batalha contra o seu organismo, mas o faz
mesmo assim. Faz de tudo para não ter que retornar ao
inferno que um dia foi chamado de lar. Mas, ultimamente, o que não tem sido um inferno para você?
Você senta num bar, mas não tem sede nem fome. Você
pensa na sua casa, no seu emprego, na sua família, mas
só distingue lugares e rostos estranhos. Lugares e rostos
que ainda há pouco tempo você enxergava com afeto.
Agora tornaram-se todos cinzentos, descoloridos. Como
a sua vida. O jogo está para terminar. A derrota é inevitável. Você percebe, a cada segundo, o efeito do tempo
que te destroça sem qualquer piedade. Logo não restará qualquer vestígio físico nem lembrança sua. Você
deseja apenas que aconteça rápido e não cause uma
dor ainda maior do que esta que te assola agora. Você
aprendeu a desejar pouco. Você só queria viver a sua velhice em paz. Paz? Que grande piada! Você sabe que a
paz não existe. A vida é um eterno estado de guerra. Os
inimigos estão em toda parte, sempre à espreita. Você é
capaz de percebê-los pela respiração e tem certeza de
que eles também identificam a sua. Eles se multiplicam
como protozoários, a cada instante surgem milhares.
Mas... você nunca quis fazer inimigos. Não importa. Se
você não os fizer, eles se fazem mesmo assim.
Você se recorda da época em que foi jovem. Existiam os
ideais, as certezas, a esperança e o amor. Ilusões. Antes
elas do que o agora, este simulacro de existência, embrutecida e acinzentada, que você há pouco chamava
de vida. Você não é mais o mesmo. Mas não foi só você
que se transformou. As outras pessoas também. Não
são mais as mesmas. Elas te olham diferente, agem de
maneira estranha. Por quê? O que pode ter acontecido a
elas? E a você? E a mulher que um dia você amou e que,
de repente, cedeu lugar a uma estranha, disforme e insuportável? E os seus filhos, que, a cada dia, vão se tornando mais estranhos, agressivos e, sobretudo, mais feios?
Neste exato momento, sentado num bar no meio da
rua, você já não consegue reconhecer ninguém, nem
mesmo a si próprio. Quando você para em frente ao
espelho, não enxerga mais do que um espectro. Perfeita cópia da realidade. Há tempos você era. O quê? Será
que você, de fato, já foi algo em algum momento?
6
Você procura motivos e só encontra malogros. Mas foi
tão repentino. Era tudo de um jeito e, de repente, tornou-se diferente. Onde está a beleza? Sumiu dos seus
olhos, como num passe de mágica. Negra. O horizonte
já não existe. Tiraram tudo de você. Até mesmo a dignidade. A sua existência, o simples fato de respirar, converteu-se em bruto, monolítico desespero. Mas nem
sempre foi assim. Ou será que foi e você não percebeu?
Você levanta da cadeira e se dirige à criança. A dor é insuportável. Um estalo. Em instantes você se vê rodeado
por uma pequena poça de líquido escarlate que escorre
em direção à beira da calçada. O riso parou. Acabou a
brincadeira? Ou é só por enquanto?
Silêncio. Mas não por muito tempo. Logo, você começa a
distinguir alguns ruídos, que não são exatamente os habituais. Um risinho, a princípio discreto, vai, aos poucos,
O que te incomoda? Será a falta de sentido? Mas já aumentando de volume, até se tornar ensurdecedor. A
houve um dia algum sentido? Será que só você não o ele junta-se outro, ainda mais potente e terrível. Agora já
compreendeu? Ou o sentido, como tudo o mais, não são muitos. Uma sinfonia de risos. Tão desafinada quanpassa de criação? Será você apenas mais uma criação? to diabólica. Sua cabeça está prestes a explodir, mas ninÉ quase certo. Mas quem será o criador? Alguém que guém parece interessado em atenuar o seu sofrimento,
cria para se divertir? Alguém que se diverte à custa dos pelo contrário. Continuam rindo de você. Por que fazem
teus infortúnios? Olha para cima e busca esse manipu- isso? Você só queria paz. Mas quem é você para querer
lador de marionetes, esse histrião perverso. Corta esse alguma coisa?
fio que te prende. Mas onde está o fio? Você já o busca
Você está cercado por uma multidão. Estranhos. Todos
há muito tempo. Em vão.
estranhos. Seus inimigos. Uma matilha de bestas sanguiVocê sente falta da verdade. Onde foi parar a maldi- nárias aguardando apenas o momento ideal para o bote.
ta verdade? É provável que não esteja ao seu alcance, Você não tem outra saída senão se antecipar. Mas há a
pois você não seria capaz de suportá-la. Aquela outra dor que te impede. Essa maldita dor. Não importa. Você
era mentira. Mas se tudo é mentira, deve haver algum deve superar a dor! Você deve superar tudo! Ataque! É
grande mentiroso por trás. Você ainda não o conhece necessário se defender!
de verdade, o que não impede que ele conheça você.
Consciente do perigo, você ataca com ferocidade, como
Mesmo sabendo que seus apelos jamais voltarão a ser um animal acuado. Apesar de tudo, você ainda é um
atendidos, você ainda insiste em clamar por justiça. guerreiro bravo e não vai se entregar tão facilmente. Mas
Que justiça? O que significa isso? Apenas um concei- eles são muitos. Parecem milhares. E possuem uma feroto vago, assim como você e sua vida. Absurdo. Você cidade ainda maior do que a sua. Legião. Emissários do
vive para ele. É o motor que te anima e te condena. teu único e real inimigo. Uma massa disforme de braços,
Nada parece real, apenas a dor. A dor que, neste exato pernas, troncos e cabeças se amontoa sobre você sem
momento, trespassa todos os seus músculos e ossos. lhe conceder qualquer possibilidade de reação. E o coro
Você clama ao vácuo para que ela cesse. Não deseja de gargalhadas continua, cada vez mais ensurdecedor. É
mais do que isso. Quando a maldita dor acaba? Se aca- impossível resistir. Você sabe que nunca será páreo para
bar, decerto, acaba junto com a brincadeira. Mas que eles. A dor aumenta ainda mais. Será possível? Dor! Dor!
brincadeira? Para você, a brincadeira já terminou. Há Dor! Lanças afiadas perfurando cada milímetro do seu
muito tempo. Porém, alguém, em algum lugar, ainda velho e cansado corpo.
continua brincando. Alguém que faz você de palhaço.
Alguém que faz de tudo para se divertir. Será que é Aos poucos, tudo vai ficando escuro. Você não enxerga,
não sente mais nada. A dor cessou. O fio de consciência
apenas você o alvo dessa brincadeira?
que ainda se manifesta não tardará a te abandonar. DenVocê continua sentado no mesmo lugar, imóvel, numa tro de poucos instantes, graças, tudo estará acabado.
cadeira encardida de um botequim infecto. Você enxerga demais. Mesmo com os olhos fechados. O mes- Todas as luzes já se apagaram, todos os risos já silenciamo de sempre. Chega! Você não suporta mais. Você ram e você está, enfim, contente, aguardando a redentora comunhão com o nada. Você não faz ideia da grande
deseja a escuridão.
surpresa que lhe foi reservada e reage com assombro no
Você observa, indignado, a vida que brota de todos momento em que o maior dos risos se revela. Um riso
os cantos e não cessa de proliferar. Para que tanta que você nunca tinha ouvido antes. Mais terrível do que
vida? E que vida é essa? Apenas transição e sofrimen- a soma de todos os risos anteriores. Um riso que permato. E a dor segue aumentando. Um garoto. Você vê nece. Como num sonho mau. Certamente é um aviso.
um garoto. Ou garota? Um sorriso. Para você. Um Um aviso dele. Daquele que te criou. Que te manipula
anjo? Não há sorriso. Apenas escárnio. Você virou e te faz sofrer. Apenas para se divertir. Ainda não é o fim
motivo de galhofa. Inimigos. São todos seus inimigos. da linha para você. O fio não foi cortado. E nunca será. A
Você nunca quis fazê-los. Eles que declararam guerra brincadeira está apenas começando. A dor é...
a você. Manipulados. Como você. Tudo por diversão.
Carlos Eduardo Varella Pinheiro Motta
Você precisa reagir.
CONTOS INSÓLITOS
O amanhã não me pertencerá
I love you is really a question
O amanhã não me pertencerá, por isso preciso falar como outro. Dias nublados em que a TV,
desligada às três da tarde, reflete meus vícios, a sujeira, aquela, um apartamento pequeno
onde caibam todos os meus sonhos, ou pelo menos cabiam quando ainda existiam. Tinta, paredes em mil cores, luzes, instrumentos musicais, canetas, papéis, uma máquina de escrever,
um roteiro engordurado de trinta e nove míseras páginas. Sacolas, maços de cigarro, latas de
cerveja e refrigerante, um tapete, uma mesa de centro. Um calibre doze, remédios pra insônia,
dor de cabeça e depressão e é claro a fotografia de uma mulher que nem sequer se lembra da
minha existência, mas que durante toda a minha vida foi meu grande amor. Só lamento não
poder ter visto o quão poética ficou a mancha de sangue na parede e o quão enigmático soou
não ter deixado nenhuma justificativa além de todas as óbvias. Só lamento não ter podido
assinar à beira de todas as fotos do legista. Será que ele entendeu as moedas que eu segurei
na mão esquerda?
Eu te amo
na verdade
é uma pergunta.
Ivan Cunha
Como eu quisesse saber deste acúmulo de coisas,
você foi caindo
a largo passo em falso:
este calor, logo frio,
este time de futebol
e o estranho gosto pelo tango argentino.
O rosto verde (lhe falta vitamina D;
a casa é insularidade).
Os olhos verdes (lhe faltou um clichê
a menos).
As unhas verdes (um
a mais).
O mar, do qual você não gosta. A odontologia possível para arquitetar a chegada. Os ventiladores
que assustam e os que nunca despencam. Os poemas conhecidos de cor numa sala de escola. Tudo o
que você sabe é de cor. Verde os olhos, este acúmulo de coisas. Os inconfidentes, mas Minas Gerais é
muito até lá. Você não sabe que Julio Cortázar já morreu. O esforço da afabilidade. A fórmula possível
para a torção e o tornozelo nus. Havana. As linhas retas e os últimos centímetros da cintura que você
quer perder. Eu como sua imagem no café da manhã. Soluço silêncios. Você gosta. O brilho fosco do
rosto, da ressaca, da voz ao telefone. O abajur, a meia-luz, os peixes, aquele dia em que escrevi suas
mãos sem as mãos. A solução salina o suficiente para desquitar o mapa da volta. Eu menti, e você sabe;
este acúmulo me incomoda.
Verdade! Diga
eu te amo
e aguarde...
Tudo faz sentido
se ele responde
‘Eu te amo’
(e você vê sinceridade)
Eu te amo
na verdade
é uma indagação.
(e aí reside a perversidade)
Eu te amo
na verdade
é uma intimação.
Luiza Vilela
www.leonardodavinci.com.br
Av. Rio Branco, 185 – Subsolo – Ed. Marquês do Herval
Centro – Rio de Janeiro/RJ Tel.: (21) 2533-2237
Victor Heringer
Antologia da prosa
Plástico Bolha
Promessa é dividida
Juro que não jurarei, que nenhum significante estará intrinsecamente amarrado a um significado,
que os pontos finais derivarão interrogações, que farei da minha docência uma discência diária, que
farei da tradução uma fiel constelação, que comerei o pão que o divino amassou.
www.oitoemeio.com.br
Também é
involuntário!
Gabriel Matos
7
POR DENTRO DO TOM
por Santuza Cambraia Naves
Sobre o canto de torcida no Rio de Janeiro
Convidado Eduardo Lacerda Mourão1
Abertura
O futebol, praticado aqui nos mais diversos espaços e condições, é também um fértil campo de pesquisas científicas para
variadas áreas acadêmicas, das ciências médicas às humanas.
Um tema multidisciplinar e central, a se falar no e também
para se falar do Brasil.
Já se provou ser proveitoso enxergar o Brasil através do futebol,
em suas relações, por exemplo, com a sociedade, a violência, as
torcidas organizadas, a cultura de massa ou as questões de gênero e raça. A música no Brasil, principalmente a popular, tem
forte ligação com o futebol. Assim, é curioso que pouco estudo
ou interesse tenha sido empreendido neste fenômeno potente
que é o canto de torcida, protagonista nas arquibancadas, mas
ainda sem um lugar de destaque na produção acadêmica.
Pausa para alguns compassos históricos
A história do canto de torcida no contexto carioca ainda está
por ser estudada, inclusive no que toca à sua fase germinal, pré-Maracanã, do começo a meados do século XX. Os modos de
torcer mudaram bastante nestes primeiros cinquenta anos, da
época em que era um lazer “aristocrático” até quando começa
a ganhar contornos de atividade de massa, à medida que o
futebol se populariza, mudando definitivamente com a construção do Maior da Terra – estádio anfitrião da Copa de 1950.
Pouco antes, porém, um fato casual começa a modificar todo
o contexto da torcida no Rio de Janeiro: o desafio do radialista
Héber de Bôscoli ao gênio Lamartine Babo a fazer um hino
para cada clube de futebol carioca. Provocação aceita com
bravura por Lamartine, que a cada terça-feira apresentava os
hinos no programa Trem da alegria, da Rádio Mayrink Veiga.
Será que ele tinha noção de que estava mudando a história
do futebol carioca e, por que não arriscar, da música popular
brasileira? O fato é que seus hinos se consagraram na “boca
do povo”, as melodias e letras fascinantes eternizadas pelas
vozes da arquibancada.
Daí para 1950 foi um pulo; a torcida no futebol já era então
uma atividade cultural de multidões, bastante ligada à musicalidade popular. No Maracanã, a música popular marcava
presença, fossem os sucessos da época nos alto-falantes, as
marchas militares da banda do Corpo de Fuzileiros Navais, os
hinos nacionais ou a Charanga de Jaime de Carvalho, que
chefiava a torcida organizada brasileira. O campeonato ficou
marcado por nossa derrota na final (o maracanazzo), mas o que
me parece ter marcado definitivamente a atividade da torcida
no Brasil ocorreu na semifinal, em que a seleção massacrou a
Espanha por 6 x 1.
Naquele 13 de julho, sucedeu-se o que alguns dos maiores
cronistas e estudiosos do futebol brasileiro – dentre eles, Teixeira Heizer, Luis Mendes e João Máximo – definiram como
“o maior coral já ouvido em uma partida de futebol”; mais de
150 mil vozes cantaram (já com a letra adaptada, notem) as
“Touradas em Madri”, marchinha de João de Barro que parecia
ter sido feita por encomenda: Caramba, carambola / Sou do Rio,
não me amola / Pro Brasil eu vou fugir / Isto é conversa mole para
boi dormir. O Brasil inteiro ali tomava um súbito conhecimento
do fenômeno do canto de torcida. No fim, a paródia à clássica
canção Cielito Lindo embalava os lenços brancos de despedida
à “Fúria espanhola”: Ai, ai, ai, ai / Está chegando a hora / O dia já
vem, raiando meu bem / Eu tenho que ir embora.
e vêm ampliando suas fileiras incentivadoras. As influências
que sofrem de outras torcidas são muitas, notadamente das
Barras Bravas latino-americanas com seus torcedores hinchas,
que têm na Argentina seus mais conhecidos exemplos, mas
também das brasileiras, italianas e inglesas. E as influências
são de todo tipo: comportamentais, musicais, coreográficas,
ideológicas, e até no vestuário.
Na história recente, outros episódios atestam a força e a per- Mas todas estas influências são deglutidas e se misturam,
manência do canto de torcida no contexto carioca: a torcida ganhando contornos originais. Seus cantos de torcida vêm
do Fluminense cantando “A Benção João de Deus” na final do tendo enorme receptividade junto ao público de futebol em
Carioca de 1980; a torcida do Vasco cantando Nada mais gos- geral; neles, a “rivalidade cantada” não foi esquecida, mas
toso que cair da arquibancada / Raça-fla já caiu de lá, em alusão reformulada, se centrando talvez menos na agressão frontal
ao acontecimento da final do Brasileiro de 1992 – a paródia era ou no baixo-calão, e mais na criatividade, na ironia sutil.
da canção “Banana boat”, cântico popular do folclore jamaicano, que fora tema da propaganda dos chicletes Bubbaloo A grande novidade (não exatamente nova), no entanto, é o
banana na TV; e também o “chororô botafoguense”, na final renascimento de uma tradição de “cantos-exaltação”, destinado Carioca de 2007, que desencadeou uma onda de paródias dos ao apoio incondicional e apaixonado aos times de coração.
entre suas quatro grandes torcidas. A repercussão foi tamanha Daí as palavras como “amor”, “paixão”, “orgulho”, “raça” e
que o termo foi oficializado e virou verbete da nova edição do “sentimento”. Se, para falar da emoção ou do amor, se recorre
à metáfora do coração, é que estes sentimentos são como
dicionário Houaiss!
formas de experiência incorporada – um coração não pode,
de fato, ser preto e branco, assim como não pode a vida, mas
Retorno
Os modos de torcer no futebol continuam em transformação, ambos podem ser sentidos como “eternamente alvinegros”. acompanhando mudanças no esporte e na própria sociedade, e também os cantos de torcida vêm nesta esteira. Na década Da mesma forma, um tricolor diz que é “por orgulho” que ele
de 90, a violência nos estádios pôs em xeque, no âmbito do canta e veste o manto, é por “essa paixão que vem de dentro,
debate público, a instituição das torcidas organizadas, estig- um sentimento verde, branco e grená”. Um rubro-negro diz
matizadas como responsáveis por tais índices galopantes. A ao seu time que sempre o amará e onde este estiver, ele estaviolência nas/das torcidas acabou? É claro que não, vide o rá. São os sentimentos que movem os cantos, e como todos
ocorrido na última rodada do Brasileirão 2009, com a “batalha sabem, “o sentimento não para”, como diz um refrão vascaíno.
campal” do Couto Pereira (PR). A violência se reposicionou; O sentimento, para o torcedor, não precisa ser explicado, ou
por um lado, há um clamor tanto da sociedade civil quanto não tem explicação; não se tem paixão pelo Botafogo, porque
do poder público para controlá-la legalmente, e punir seus simplesmente “ser Botafogo é paixão”. Os cantos dão forma ao
responsáveis – o surgimento do novo Estatuto do Torcedor, sentimento humano, se pensarmos que a música, enquanto
em 2010, indica o processo vivo de mutação e a disputa por obra de arte, não simboliza, carrega, veicula ou representa um
que passa a atividade de torcer no Brasil. Por outro lado, as sentimento. Ela é o sentimento em si.
próprias torcidas têm dado suas respostas.
Coda
Nesta última década, assistimos a uma espécie de guinada Se a Copa de 2010 revelou ao mundo as ressonantes Vuvuzelas,
comportamental no contexto carioca, proposta por novas os berrantes africanos made in China, rapidamente apontados
torcidas, que parece ter como principal espaço de elaboração como “a morte do canto de torcidas”, essa ameaça não parece
justamente seus cantos, renovados semântica, estética e poli- ter ecoado aqui. Aliás, os cantos continuam vivos em todas as
ticamente. Como e por que a “torcida cantada” teria passado a culturas musicais em que o futebol é praticado profissionalter novo significado nos últimos anos? Apesar de não ser uma mente. No Brasil, o que eles sofrem não é um desprestígio, pelo
modalidade de torcer exatamente nova no futebol brasileiro, contrário, é uma verdadeira ascensão no gosto popular – estão
tem sido entendida como uma característica distintiva de um nas TVs, rádios, filmes, CDs, e claro, nos estádios, ruas e casas.
novo, arriscarei dizê-lo, ethos torcedor, encarnado nas práticas
de novas torcidas que pregam uma atuação pacífica, mas não O contexto carioca aponta para o potencial do fenômeno
social do canto de torcida, que vale uma agenda de pesquisa
menos engajada, nos estádios.
multidisciplinar, dada sua complexidade, atualidade e permaAlgumas notas sobre os cantos de torcida no Rio de Janeiro nência em nossa sociedade. Em sua profundidade, articula
Loucos pelo Botafogo, Guerreiros do Almirante (GDA), Uru- práticas e concepções artísticas, políticas, econômicas, jurídibuzada, Movimento Popular Legião Tricolor: são coletivos cas, estéticas, emocionais, tanto em aspectos objetivos quanto
surgidos há menos de 10 anos, que apesar de novatos no subjetivos, em um amplo horizonte de conhecimento em que
circuito dos estádios, despontaram no cenário das torcidas, ainda há muito, ou quase tudo, a ser dito.
1- Graduado em Ciências Sociais pela UFRJ, e mestrando no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), no IFCS/UFRJ.
8
NOTAS NO PLÁSTICO
Meu Samba
Quando aportou na cidade de São Sebastião
o samba, em companhia das Ciatas,
ficou mais dolente em seu compasso,
mais sinuoso em seu traço,
Rio de Janeiro.
por MAURO FERREIRA
Personalidade de Sandroni valoriza o
álbum Gota pura
Clara Sandroni é cantora de personalidade. Com
sua cortante voz aguda, que conjuga força e delicadeza, a intérprete imprime essa personalidade
em seu quinto álbum solo, Gota pura, já o décimo
primeiro de sua discografia, uma vez contabiliza-
Dou-me ao samba, tristeza que balança,
quando queima o couro dos tamborins,
quando geme a cuíca Seu Casemiro,
quando chora um sete cordas.
Da Praça Onze tomou pé pro subúrbio.
Plantou a jaqueira na Portela,
subiu o Prazer da Serrinha.
Quebra nas cadeiras, diz no pé,
Rio de Janeiro.
Dou-me ao samba, se ouço um bamba.
Versos Silas, samba-enredo.
Melodias Lara, samba de terreiro.
Axé de Candeia, samba de caboclo.
dos os CDs gravados com Marcos Sacramento e
Paulo Baiano ao longo dos anos 2000. No caso, sua
voz em forma interage com o piano de Paulo Malaguti Pauleira, ao abordar repertório de excelente
nível. Bela faixa de abertura, “Laser” (José Miguel Wisnik e Ricardo Breim) brilha no registro da
cantora. Gota pura também alcança bons momentos em “Quase” (Luiz Tatit), “Iracema voou”
(na melhor interpretação dessa música de Chico Buarque), “Aos pés da cruz” (Marino Pinto e
Zé da Zilda), “Ladeira da memória” (Zé Carlos Ribeiro) e “Linda Flor (Iaiá)”, o tristonho samba-canção de Henrique Vogeler, Cândido Costa, Luiz Peixoto e Marques Porto. Em outras faixas,
como a nordestina “Cajuína” (Caetano Veloso) e o samba “Carioca” (Chico Buarque), o formato
de voz e piano se revela limitador. Ainda assim, a leveza com que Sandroni canta “Rosa morena”
(Dorival Caymmi) — outro samba que pedia outro molde instrumental — sinaliza que sua voz
e sua personalidade são marcas expressivas que valorizam Gota pura, CD coerente com sua
obra fonográfica.
Para ler mais notas musicais, acesse http://blogdomauroferreira.blogspot.com
Dou-me ao samba, nosso samba.
Antonio Mattoso
Carnaval
a eternidade
e quatro dias.
Domingos Guimaraens
Plástico Bolha Recomenda:
Pousada Beira Rio
O baile
Toda última quarta do mês às 20 h
com o quadro Espaço Plástico Bolha
Aldeia Velha
Silva Jardim|RJ
pernas misturam
corpos suam
orgasmos ritmados
sorrisos cínicos
e morte feliz.
Restaurante Bar e Lanchonete
www.pousadaehotelbeirario.com.br
tel: (22) 2668-2678|2865, (22) 81288538
Roberto Borati
e-mail/orkut: [email protected]
skype: beirarioaldeia
http://cep.zip.net
Teatro Sérgio Porto, Humaitá, Rio de Janeiro
9
O caçador de sombras
Esgotaram-se os pássaros e seus cantos fiaram-se num
silêncio entrecortado por uma brisa vacilante que lamentava de vez em vez as vidas perdidas no campo de
batalha. Misturado ao som ritualístico da Morte, abria-se
para a plateia de um só espectador uma cortina de cheiro
de sangue, que tingia o ar com notícias que chegariam
desesperadoras aos ouvidos ansiosos e distantes dali.
Ele andava pelo palco formado por cadáveres e, por
mais que seus passos estivessem tão pesados quanto
sua cabeça, seguia o roteiro, segurando a respiração e
com a espada ainda empunhada na mão. No entanto, a
espada tinha a ponta virada para a terra, desenhando
nela, através do sangue de outrem que escorria por sua
lâmina, seu próprio caminho. Acompanhavam-no ainda
as risadas dos amigos e as carícias da mulher sonhada,
que em mais uma noite alentou suas esperanças de um
futuro calmo. Assombrações da noite passada, tão vivas
e presentes em sua mente que o faziam não esquecer
do que era feita a dor.
Seus passos eram ritmados por uma música de câmara,
tocada pelo órgão interno em seu peito, segundo as batidas
de seu desespero seco e entalado. Assim foi seguindo, até
virar trapo e tombar no chão. A boca ficou cheia de terra e
sangue, que entravam também pelos seus poros. Isso não
mais o incomodava. Por favor, que abaixassem os holofotes
agora. Queria morrer na escuridão do último ato e se tornar
eterno nas bocas dos jovens atores que viessem depois dele.
A Morte, contudo, não tem dono. Ela vem quando quer
e não quando é convocada. Então, vendo-se ainda vivo,
abriu os olhos. Ali era o Inferno e em breve o demônio
cantaria seu nome. E pôde ouvi-lo, numa graça de Ave
Maria, que arrepiou-lhe por debaixo da armadura, outrora tão brilhante quanto o próprio escudo de Aquiles.
Levantou-se, apoiando-se na espada, e seguiu o chamado que mais parecia um choro baixo, quase miado, no
meio dos sons da Morte, que lhe estalava a língua como
se para seduzi-lo. Revirou alguns corpos, ou eram sacos
de farinha trajados de pessoas?, até deparar-se com um
homem que vestia o uniforme rasgado do inimigo.
Os olhos do ator coadjuvante, numa emocionante interpretação, estavam voltados para o céu como se, por entre
as roldanas, cabos de ferro, passadiços e contrarregras, ele
pudesse ver um véu de estrelas cobrindo-lhe o túmulo.
O ator principal, aqui se faz necessária a explicação por
questão de créditos e egos, notou que no peito rasgado
do homem havia uma ferida feita por sua espada. Há incontáveis dias, num tempo perdido no espaço, seu mestre
ensinou-lhe a arte de matar e assinar a presa ao mesmo
tempo. E, pela primeira vez, ele se arrependeu de ver ali,
inegavelmente, a sua marca no último homem vivo.
 10 
Caiu de joelhos ante a dor. Sabia matematicamente que
o homem morreria, pois era o melhor soldado de seu
batalhão e, quando ele empunhava uma espada, era
para matar. Apesar da situação, teve que congratular
o homem por ser bravo e continuar acorrentado à sua
vida até o fim. Remorso misturou-se à admiração e inveja,
criando uma mélange que o fez segurar forte o cabo da
espada.
não o suficiente para encontrá-la. E eles estavam mais
próximos do que qualquer um poderia imaginar. Ela, a
mulher por ele sonhada incontáveis vezes, estava ali,
com ele, em suas mãos, sorrindo tristemente no retrato
dado a outro homem.
Ele olhou para as estrelas como se tivesse entendido
seu sussurro e contemplou o retrato manchado de
sangue. A imagem dela queimou seus olhos por um
Antes que qualquer ato pudesse ser criado, alongando momento. Então ela existia de fato. Não eram sonhos
mais essa cena, seu punho foi agarrado pelo homem numa imensa cama fria. Ele acariciou o rosto gelado
com uma força de quem ainda tinha vida e que não se dela. Era sua última visão da vida antes da Morte.
entregaria antes da hora. Reverenciou-se com despeito, Agora seres mortos faziam seu caminho por onde
afinal era ele o personagem principal.
passava, prontos para ajudá-lo a não mais ser. Não
poderia nunca mais voltar à sua velha vida, ao seu
O homem encarava-o como se o céu estivesse traçado velho eu de atorzinho desconhecido. Ele também
nas linhas de seu rosto. Veio à mente a possibilidade estava morto, apenas seu corpo é que não sabia disso,
de ter sido reconhecido como o invocador da Morte pois era regularmente possuído por outros que não
calada. E essa já vinha cheirando o cangote do homem, ele. Não se diria um sobrevivente. Era apenas uma
bebericando a sua vida em pequenos e saborosos go- besta vivente caçando sombras, perseguindo a Morte,
les, que também iam deixando-o zonzo. Um balbucio até ela dele se encantar e resolver entregar-se a ele
vazio, quase bêbado, tentava se equilibrar nos lábios como a um amante, deixando-se entrelaçarem numa
do homem, mas caíram por terra antes de chegarem explosão definitiva.
aos seus ouvidos.
Esperar-se-iam ainda séculos de atos e desatados desNão demorou muito. Nem para ele notar que em sua tinos para que esse dia acordasse na memória de um
mão fora colocado o retrato de uma mulher. Nem para autor. Um grito de esperanças e sonhos quebrantados,
o homem ver Deus em seus olhos e não inspirar mais.
começado muitos séculos antes, quando os seres nem
nome tinham e o título ainda não era O Caçador de
Sob os aplausos surdos de uma plateia fantasma morria Sombras. Por enquanto, não havia mais texto nas páo último homem vivo.
ginas do roteiro. Tudo em branco. As luzes desse ato
foram apagadas. O palco verteu-se em escuridão. As
Um grito despertou o tempo e sacudiu os pássaros, que cortinas foram fechadas e por fim retiradas para lavavoltaram a tecer seu luto.
gem. Mesmo assim, ainda ouvia uma espécie de ovação
ao longe. E o guerreiro, de volta à sua imensa cama
Enquanto o sol ia se pondo, ele via as marcas de san- fria, com lençóis de áspero cetim cor de sangue e terra,
gue seco em suas mãos transformarem-se em negras. caçava mais uma sombra dentro de si. Esgotaram-se os
Negras como o abismo diante de si, como o cheiro do sonhos com a mulher amada. Estava apenas à espera
seu futuro. Fechou os olhos e apertou firme os punhos da Morte, pronto para enlaçar-lhe por entre as pernas
doloridos e marcados. Quebraria a própria vida com e domá-la definitivamente, fazendo-a sua em meio às
aquele aperto se pudesse, mas a Morte era uma pa- sombras com as quais ela tanto gostava de provocá-lo.
queradora que seguia suas próprias regras e, às vezes, O que pareceu ter acontecido por ínfimos segundos.
parecia partidária apenas do amor platônico. Soltou A Morte chegou perto de dar-se por vencida, mas era
a própria força sobre si, querendo sentir vida antes apenas um truque para requentar a relação.
de morrer. Suas unhas sujas entravam-lhe na carne,
fazendo-o sangrar, pela primeira vez, seu próprio san- Chamou-lhe o nome para que abrisse os olhos e emergue. Apertou mais a mão e voltou-a para o solo. Seu gisse de si desembocando num clarão branco que quase
sangue era uma oferenda à Morte. Doce ou amargo, o cegou. Foi penetrando nessa branquidão dolorosa,
fosse qual fosse o sabor, que a Morte decidisse dele caçando sombras que sobre ele se inclinavam, e paexperimentar agora e o resto que sumisse no turbilhão cientemente deixando que as assombrações se transfordas horas, engolfado pelos bicos dos críticos abutres, massem, ganhando os contornos de uma enfermeira a
que nos céus já desfilavam, ao som de asas tamborins, lhe sorrir numa triste alegria, coisa que só boas atrizes
a sua plumagem de falso luto.
eram capazes de fazer. Era um sorriso extremamente
fotogênico, notou.
As estrelas observavam aquela criatura sentada à beira
Chiara di Axox
do palco, provavelmente pensando se ele duraria ou
DESAFIO POÉTICO
Nossos leitores-escritores foram
convocados a escrever poemas
com as palavras plástico e bolha.
Já o desafio da trigésima edição
será comemorativo: escrever
um poema com 30 palavras.
Esperando o quê?
Bolhas de incenso
corria na rua
de ferrugens
e gritava nas esquinas
por que
a chuva?
Distração
Viagem sonora
em tempos de verão,
bons tempos eram aqueles
que era preciso um pouco
o bastante para distrair
No dilúvio de águas frias,
Dançavam as medusas-da-lua, poetisas,
Leves em simetria radial,
Desiludidas em tamanho
Transbordamento.
A água longa que delas brotava,
Como lágrima desgarrada dos olhos,
Compunha poesias em meu mar infiltrado.
Que vendaval aquático percorre seus corpos
Transparentes;
Suas coroas de tentáculos prateados?
Somente sinos e estrelas cadentes,
Perfuravam suas rimas aquáticas.
Maré alta...
As medusas rasas, profundas, líricas,
Costuravam-se ao canto do mar, sem intento.
Sozinhas no burburinho do mar,
Entre peixes brilhosos e corais estrelados...
Na demasia de meu pensamento.
bastava um copo
plástico com água
detergente caneta bic
sem tampa algumas
cargas vazias
bastava
o corpo e um
pulmão, cheirando
a verde-limão
e quando me distraio
hoje, às vezes me pego
ainda
se uma gota pode
adoçar
o riso do palhaço,
causar catarse, pode
fazer minhas mãos
jogarem
búzios e arroz
para o céu.
tentando capturar em vão
as frágeis bolhas de sabão
Carolina Sims
Braulio Coelho
Bate teu corpo
Bate teu corpo
no meu,
se a bolha,
bola de plástico da pele,
na minha boca causa
simples
revogar de cheiros
molhados,
pode
O úmido
incenso em minha vida
causar danos
Bolha-plástico
Remodela-se
[com plástico
a casa,
o rosto,
a vida.
Encabrunha-se na maleável e opaca
bolha —
que refaz em polímeros
à semelhança a imagem de si mesmo.
Pedro Vinícius do Valle Tayar
ao mármore.
que desde ontem
morre
atrás de ferrugens mentais
no mar.
Otavio Ranzani
Envie seus poemas para
[email protected]
brinda
a vida
esbarra teu corpo
no meu
sente
a vida
dorme e sonha
conosco
que o dia
é implacável
nas veias de quem
sonha
Tiago Rattes de Andrade
 11 
ORÁCULO
por Antonio Mattoso
Partimpim de Calcanhotto ou Tem bicho na plateia?
Na primeira década do século XXI, quando a canção
teve sua morte anunciada, o mercado fonográfico
entrou em crise e se criaram novos meios de adquirir música via internet, a música popular brasileira apresentou um fato inédito em sua história: a
heteronímia Partimpim de Adriana Calcanhotto. O
primeiro CD, Adriana Partimpim (BMG), lançado em
2004, trazia ironicamente a classificação livre e, no
ano seguinte, o registro ao vivo do show em DVD.
Já em 2009, Partimpim e Dé Palmeira produziram
o CD Dois (Sony Music) e Dois é show, lançado recentemente. Algumas gravadoras tiveram em seu
elenco cantores infanto-juvenis ou desenvolveram
projetos visando esse mercado, porém o dado novo
que Partimpim traz à questão é rever ludicamente
esta taxonomia: o que é adulto, o que é infantil?
A partir de 2005 tornou-se comum a presença de
crianças nos shows do ortônimo.
é impossível estabelecer uma relação entre o
vocábulo grego e o etrusco. Em português, a palavra máscara não é de origem grega tampouco
latina, mas de origem árabe (mashara → bufão,
personagem ridículo), através do italiano maschera,
segundo alguns; outros, no entanto, atribuem a
origem de máscara à forma do latim tardio masca
(demônio ou a máscara que representa o demônio).
Nas sociedades arcaicas, a máscara ritual funciona
como uma representação do divino. Como símbolo, apresenta dupla valência: tanto diz respeito à
possessão — isto é, o eu incorpora as potências
divinas e demoníacas, apoderando-se da enérgeia
do outro e restabelecendo um elo com o sagrado,
o que faz que o portador da máscara se torne contemporâneo dos deuses — quanto se relaciona à
proteção — ou seja, o eu possuído pela divindade
corre o risco de não retornar a si, de permanecer
sempre outro, em ékstasis, daí a necessidade de
Uma vez que a voz é a mesma, que o rigor da es- proteção por meio do ocultamento para fazê-lo
colha do repertório é o mesmo e que os músicos voltar a si. Podemos perceber que Calcanhotto dá
que participam das gravações quase sempre são um tratamento estético a esse fundamento ritual.
os mesmos, justificar-se-ia uma heteronímia? A
nosso ver, mais do que necessária. Dois traços, um O universo temático de Partimpim também difere
visual e outro temático, singularizam Partimpim. do de Calcanhotto. Considerados todos seus lançaVisualmente, a máscara seria o traço distintivo mentos até agora, seu tema mais recorrente seria
fundamental que subsumiria os demais. A máscara o bestiário próprio do imaginário infantil. Uma das
torna aparente o ser de Partimpim e projeta sua primeiras relações que as crianças estabelecem,
identidade. Nos CDs, o rosto de Calcanhotto está ainda no berço, com o mundo ocorre por meio de
oculto atrás da máscara. Em seu primeiro show, brinquedinhos sonoros, muitos deles em forma
ela desce ao palco e desaparece maravilhosa- de animais. No primeiro show de Partimpim, os
mente portando-a; portanto, enquanto durar o belíssimos origamis terimorfos do cenário de Hélio
show, essa é a entidade. Em grego, máscara diz- Eichbauer, que evocam formas geométricas no pal-se prósopon, -ou (s.n.), forma que se compõe do co, foram apropriados pela cantora como objetos
prevérbio prós (diante de, à face de) e se ajusta ao cênicos e musicais ao mesmo tempo. Há referências
substantivo óps, (s.f. e s.m → olho, rosto face, cara); a seres híbridos como o Centauro, a animais que se
portanto, etimologicamente prósopon significa metamorfoseiam como a lagarta borboleta-farfalla,
ajustando-se ao rosto, diante da face. Podemos a animais domésticos como o gatinho na trilogia do
perceber que o que está em questão é a ação poeta Ferreira Gullar, a insetos como a formiga —
de esconder e ocultar. Além de máscara, pode enfim, a uma parte do mistério da natureza animal
apresentar outras significações, tais como o papel que, tanto por animização quanto por metáfora, se
atribuído ao que chamamos de máscara, perso- manifesta no discurso. Dada a universalidade dos
nagem, pessoa, pessoa gramatical, bem como procedimentos vistos, acreditamos que os shows de
face e figura. Em latim, denomina-se persona, -ae Partimpim não se restringiriam a países lusófonos,
(s.f.), um empréstimo da forma etrusca φersu, que mas poderiam ser compreendidos e contemplados
significa portador da máscara, homem mascarado. em qualquer lugar do mundo.
O que está em jogo no vocábulo latino é o agente,
aquele que se mascara. Os sentidos de persona Cinco anos após sua estreia, Partimpim começou a
são os mesmos verificados em grego, exceto o compor assinando três canções no novo CD. Como
de face e figura. Ernout e Meillet (Dictionnaire não pretende ser um puer aeternus, não só amplia
Étimologique de la Langue Latine) asseveram que seu universo temático em duas destas canções —
 12 
“Ringtone de amor” e o baião “Menina, menino” —,
que tratam sobre amor mas também imprimem
sonoridade diferente em relação ao primeiro
CD. Dois se organiza conceitualmente pelo mote
expresso no título. “Alexandre” e “Na massa”, bem
como “O trenzinho do caipira” e “As borboletas”,
articulam-se de modo dialógico. Em “Alexandre”,
Caetano Veloso, à semelhança de um épico, traz à
memória o maior de todos os seus heróis, Aquiles,
e recria em terceira pessoa “as façanhas de reis e
generais e as tristes guerras”, “res gestae regumque
ducumque et tristia bella” (Hor., Ars poetica, p. 73),
justapondo-as a um refrão altamente melodioso.
A canção “Na massa”, de Davi Moraes e Arnaldo
Antunes, possui a mesma configuração, alternando as ações de uma adolescente anônima que
sai de casa em um domingo para retornar com
toda sua liberdade e atitude no vestir-se com
um refrão de característica semelhante. O poeta
Arnaldo Antunes lança mão da ambiguidade dos
verbos de movimento e de vestir-se. Nessa canção,
Partimpim evidencia a presença do corpo nos seguintes versos: “Mostra a pele pelo rasgo da calça/
Nada debaixo do short/Derramando seu decote”.
Os feitos e a historicidade do príncipe Alexandre,
que expandiu-nos o mundo, contrapõem-se ao
anonimato e à contemporaneidade da adolescente com roupa de princesa em pele de plebeu.
Já em “Trenzinho do caipira”, Ferreira Gullar encontrou os versos para melodia pré-existente de
Villa Lobos; do mesmo modo, em “As borboletas”
(gravada na casa na floresta de Partimpim), Cid
Campos descobriu a melodia para os versos do
poeta Vinícius de Moraes, um raro encontro de
voz e canto, verso e poesia, melodia e música em
harmonia. Às imagens cromáticas iniciais, brancas, azuis, amarelas e pretas, que caracterizam as
borboletas, acrescentam-se imagens sonoras nos
dísticos, que as reduplicam como um eco. Diverso
é o processo em “Bim bom” (João Gilberto), canção
inaugural da bossa nova: Partimpim, ao fundi-la
com o samba-reggae do Olodum e com um coro
de vozes infantis, apresenta-nos um novo modo
de ouvi-la.
Heterônimo e ortônimo, alteridade e ipseidade,
confundem-se, a nosso ver, no mesmo gosto pela
poesia cantada. Para os que gostam de poesia cantada, Dois é imprescindível. Partimpim apresentou
Dois é show em 2010, no Rio de Janeiro. Ficamos
todos aguardando sua volta.
Versos eróticos
PAX ROMANA
In memoriam de Arnaldo V. Medeiros
Dás à outra o que me pertence...
Uma sombra de culpa
Perpassou em teu olhar
Enquanto sussurravas: “perdoa”.
Tuas mãos em concha colhem meus seios
E as brumas do ciúme e da mágoa
Esvaindo-se deixam ver
Teu membro hirto e fremente no qual monto
E num coito a galope
Tombo em teu peito arfante
Balbuciando: “amor, eu lhe perdôo”.
Tu, deitada no templo, decifrando as
escuras pilastras da casa, ouve
minhas palavras metálicas. Ainda
hoje saborearei teu corpo, quer
m’ofereças, quer não. Jasmins
tenho em minha carroça para
impressionar teus gostos arrojados.
Serei um afável salteador, roubando-te
as mais pecaminosas
excitações cerebrais. Ainda hoje tu
te deitarás comigo no prado.
Afastemo-nos da cidade. Então
apresentar-te-ei vários elixires, temperos
raríssimos.
Marina V. Medeiros
Os milênios serão nossos confessores.
Andityas Soares de Moura
romance n.2
juntos sentamos
num lugar alto talvez
no teto de alguma coisa
coberto de flores e
talvez alguns dentes
— porque, afinal,
as coisas se perdem —
você me aperta feito um tostex
e enquanto você olha
lá pra baixo e pensa
ainda dá tempo de morrer
eu conto uma história
pra dar um jeito na
solidão
mascarado
Fui ao doutor.
E ele me disse que eu padecia de mal terrível
E nada que eu fizesse adiantava.
Aprendi a ser pessoa qualquer que existe
E hoje aceito meu mal
Como aceito:
telefone, teleférico, alpiste
e meditação transcendental.
Isabel Wilker
Blow-up
Acordei naquele dia sem lembrar nada do dia
anterior. Caminhei até a sala. Vi minha mãe
por sobre um monte de papéis de bala rasgados, bolas estouradas e doces pisoteados.
Sua leveza me encantava. Era linda minha
mãe. Dedicada e carinhosa. Pensou em todos
os detalhes. Não hesitara em acordar cedo e
limpar a sujeira que mais um ano da minha
vida, que se arrastava, fazia em sua sala pequena. Estava tudo desarrumado e as coisas,
fora do seu lugar. Voltei meu olhar para o
quarto, e meu pai ainda estava esparramado
na cama. Olhei as fotos da noite passada por
sobre a mesa. E chorei. Não consegui engolir
o choro. Minha mãe encostou a vassoura
na parede e alisou os meus cabelos, suave.
Chorei de soluçar. Tentei respirar fundo para
que o descontrole não rasgasse o silêncio da
manhã. Mas meu pai despertou. Caminhou
em minha direção. E me deu um tapa. Bem
forte. A raiva que me atravessou o estômago
não podia mais mudar a fotografia que eu
tinha na mão. Ele seria para sempre a pessoa
que ganhou o primeiro pedaço do meu bolo
de aniversário.
Paulo Henrique Motta
Não devia ter contado a ele
Que vejo os bichos sem pele;
As velhas com os dentes roxos
E que todas as pessoas me parecem
Ter um alicate cravado na maçã do rosto.
Meu rosto não tem nem maçã.
E minha pele cai,
pendurada sobre o osso.
MASSAS - MOLHOS - PÃES - DOCES
Entregas em Domicílio
Ana Salek
Leblon: 2259-1498
Barra: 2431-9192
Laranjeiras: 2285-8377
www.massascantinella.com.br
 13 
DOBRADINHAS
CLIQUE AQUI:
por ALICE sANT’ANNA & Lucas Viriato
Parada obrigatória
A saída abrupta do Coffee Shop desestabiliza
cones e bastonetes, fazendo do traçado
pincelado da cidade um enorme quadro de
Van Gogh
Estruturas de tijolos vermelhos e letreiros
luminosos andam ritmicamente para trás
deixando o trem imóvel em seu lugar
A solidão desoladora de uma bicicleta
esquecida em frente à lanchonete em que
se oferece lixo temperado em gavetas
Três X em seu brasão antecipam seu
filme pornô, seus disparates, suas garotas
emolduradas em luz vermelha chamando
com o dedo indicador
Cruzo o museu com nome de espirro que
um amigo jura já ter ido comigo, mas que só
fui pela primeira vez dois anos depois
http://poesiasdobacamarte.blogspot.com/
o sono faz com que os turistas
esbarrem nas bicicletas
tanta gente que quase morre
atropelada por aqui
e a causa é a preguiça
de olhar para os lados
te encontro nessa mesa
tirado de um sonho
brincamos de pular no parque
esse lugar não me convence
até hoje tenho medo da prostituta
que me ameaçou com uma garrafa
em sonho eu corro mas ela é mais
rápida, grita em uma língua
que nunca vou aprender
esses croquetes de parede não
me atraem, essas flores cenográficas
que enfeitam os canais
me enchem
de sono
Alice Sant’Anna
O blog Poesias do Bacamarte tem como objetivo
a livre escrita, algo parecido com uma parrhesia
direcionada ao mundo, oralidade, histórias de
vida e, por que não, poesias? Os autores são os
frequentadores do CAPS (Centros de Atenção
Psicossocial) Simão Bacamarte, que fica em Santa Cruz, bairro da Zona Oeste do Rio: trabalhadores, familiares, todo e qualquer um que ache que
possa produzir algo conectado com sua territorialidade: Santa Cruz, CAPS, mundo, abstrações,
constatações, sentimentos, vida, saúde mental e
loucura (essa que diz tanto e é tão nossa quanto
do outro).
http://kikipeixoto.blogspot.com
Kiki Peixoto é puro afeto: não tem profissão, não
tem colegas de trabalho, nem filhos, nem marido,
nem corpo, mas tem um blog onde publica seus
fragmentos de pensamento-poesia. Kiki, uma
subjetividade desejante...
http://www.trespontos.com
O projeto Espaço Três Pontos (OOO), idealizado por
Pedro Salim e desenvolvido com o apoio da Prefeitura de Juiz de Fora, pela Lei Murilo Mendes de Incentivo à Cultura, pretende oferecer um espaço neutro
e virtual para a expressão de boas ideias. Fotografia,
vídeo, escultura, pintura, intervenções artísticas, tirinhas, story-boards, conto, desenho, música, qualquer
enigma ou coisa que passou despercebida.
http://cadernoencontrare.blogspot.com
Esse Vondelpark é vasto demais e as coisas
que o Moacir Santos canta em meus ouvidos
escondem a falta da companhia de algumas
Índias Orientais
O Caderno Encontrare é uma publicação já conhecida em Juiz de Fora. No estilo do Plástico Bolha, a
publicação divulga poemas e textos curtos dos poetas locais. Em seu blog, abre-se mais um canal de
conversa com os leitores, escritores, consumidores
de poesia, literatura e cultura.
Passeio errático por infinitas pontes
arqueadas cruzando simpáticos barcos nos
quais sei que nunca irei morar
http://www.youtube.com
buscar por Rimanessência
Rimanessência é o nome de um projeto ambicioso que
buscou valorizar a originalidade e o spoken word, num
formato televisivo, exibido na Internet. Participam
do projeto nomes como Marechal, Shawlin, Max B.O.,
Paulo Napoli, Kamau, André Ramiro, entre outros.
Lucas Viriato
http://estilingues.wordpress.com
Raïssa Degoes
Você já viu estilingue que atira livros? Conheça o
projeto que propõe uma ciranda de livros, que não
podem parar de circular.
Vale o clique!
 14 
ENTREVISTA
por Aline Miranda
Zélia Duncan: Entre letras e canções
Ela é mutante, transforma-se em outras, muitas e sempre.
A música é a base onde cria e se recria. Nascida em Niterói (RJ), morou também em Brasília (DF), onde iniciou a
carreira de cantora. Desde então são nove CDs lançados,
três DVDs, além de projetos como Mutantes ao vivo e a
parceria com a cantora Simone em Amigo é casa. Em
setembro de 2010, recebeu o Prêmio da música brasileira (21.ª edição), pelo qual foi vencedora na categoria
“Melhor cantora Pop/Rock/Reggae/Hip Hop/Funk”. Zélia
Duncan é a doce surpresa que vive no Rio de Janeiro,
onde, além de cantar, compõe, pratica corrida e cursa
Letras na Universidade Cândido Mendes. Zélia, de onde veio a vontade de cursar Letras?
Ler é uma herança familiar, algo cultivado em casa. Com
o passar do tempo, a vontade de dirigir um pouco isso e
aprender outros universos foi ficando forte.
O que essa escolha lhe trouxe de enriquecimento
pessoal e/ou profissional? É difícil conciliar a faculdade com a carreira?
Não estou na faculdade para ser uma artista melhor,
porque isso não existe — “ninguém aprende samba no
colégio”. Mas é algo que me dá imenso prazer mesmo.
É tudo confuso às vezes. Esta semana não consegui ir
à aula, ontem foi a entrega do prêmio e cheguei tarde.
Como demoro a dormir, de manhã precisei descansar.
Você tem muitas parcerias em composições: como
na poderosa “Pagu”, com Rita Lee, e na doce “Sinto
encanto”, com o Moska. Como ocorre esse processo:
existe alguma preferência em fazer letra ou música?
Quase sempre faço as letras; é mais fluido pra mim. Mas
minha parte em “Pagu” foi a música; acontece também.
Você tem alguma música sua preferida, que a faça
sorrir quando toca no rádio?
Isso varia; tem a ver com fases. Me ouvir no rádio é bem
legal, porque sei que estou ouvindo junto com um monte
de gente; tem um sabor mais quente.
O show Eu me transformo em outras (em que você interpreta grandes vozes e autores que marcaram sua
vida) era um projeto antigo?
Sim. Não tinha nome; só um desejo de imprimir essas
influências.
Posteriormente foi gravado o DVD desse trabalho,
lindíssimo e muito bem cuidado, na noite silenciosa
e nostálgica do centro do Rio. Como chegaram ao
Centro Cultural Carioca?
O show nasceu ali. Gosto de rechear o que faço de significados, mesmo que só para mim; mas me alimento
disso. Aquele lugar me recebeu, acolheu essa ideia e
eu cismei de gravar ali. Oscar Rodrigues Alves foi muito
feliz na direção.
Nos extras desse DVD, você conta que gravaria a
canção “O habitat da felicidade” mesmo se ela só
contivesse o verso “Felicidade não precisa de culpa”.
Por quê?
Porque a gente carrega o peso do mundo! Porque
eu ralo muito e sei das dificuldades. Por causa disso,
muitas vezes não comemoro as coisas como deveria, porque sinto uma culpa de estar feliz de vez em
quando. Mas isso é besteira; temos que vibrar com
nossas vitórias. A felicidade é mais um caminho do
que um fim.
essa porteira da diversificação, dos parceiros diferentes,
produtores e músicos novos para mim, e acho que vou
ser sempre assim. Isso me revigora, me dá frescor, me
faz querer continuar.
Quais seus autores preferidos?
Clarice Lispector e Machado de Assis são meus clássicos.
Amo poesia. Pessoa e Drummond, junto com Hilda Hilst,
sempre me acompanham. Mas adoro Kafka, Rilke, Philip
Roth, recentemente, e mais um tanto.
Divulgação
Seu último CD, Pelo sabor do gesto (com produção
delicada de John Ulhoa e Beto Villares) é uma riqueza de pequenos detalhes, com um zelo especial em
cada parte da produção do disco. Como você participa das escolhas?
O que lamento com o fim desse formato é que perdemos
justamente o prazer do roteiro. Certamente não é por
acaso; tudo ali é pensado em termos da ordem. Eu estou
ali tentando contar uma história. Eu participo de tudo o
que diz respeito a repertório, sempre. Meus trabalhos
estão sempre impregnados dos meus pensamentos e
das minhas escolhas.
Como é para você, depois de tantos trabalhos, descobrir uma nova forma de expressar sua musicalidade, a libras (língua brasileira de sinais)? Como
aprendeu?
Foi uma ideia da minha querida diretora desse show, a
superatriz Ana Beatriz Nogueira, que vibrou muito na
criação do roteiro para o palco, que já é outra coisa. Eu
aprendi só para esse momento, na música “Todos os verbos”, mas me enche de entusiasmo fazer aquilo. É muito
importante olhar as coisas, valorizar o que não está no
nosso mundo mas é o mundo do outro, que acaba nos
completando também.
Você já cantou Leminski (“Dor elegante”). Sente que
agora esse poema também lhe pertence? Gosta do
encontro entre as diversas manifestações artísticas?
Foi meu mestre Itamar Assumpção que me convidou
para cantar essa parceria dos dois pela primeira vez, no
álbum intitulado Pretobrás. Depois regravei com Naná
Vasconcelos no Pré pós tudo. Sempre me comove; tenho
muitos motivos para ser grata a essa canção. Eu abri
No curso de Letras, o que você tem gostado mais de
estudar e ler?
Gosto de Teoria Literária. Adoraria ter tempo pra mergulhar nisso. Fico fascinada com certos textos; nunca pensei
que me adaptaria aos mais acadêmicos, mas me pego
delirando com muitos deles.
Existe algum poema ou personagem da literatura
que a tenha marcado de forma especial?
Sim; Dom Quixote e os personagens das letras de Luiz
Tatit.
Se não fosse cantora, o que seria: poeta, atleta?
Cantora frustrada!
 15 
Novas sobras
Escreviver
quem-aqui-escreve
supõe não ter emergido uma literatura
contemporânea,
Se alguém pudesse ver tudo o que eu penso, provavelmente não acreditaria. É um parque de diversões
sem bilhete pra entrar e assim fica lotado. Eu sou mais fraco que eu. Minha fragilidade se abre para um
mundo que pouco conheço; escrevo para conhecê-lo melhor. Ao fim de cada frase, agradeço como no
fim de uma oração.
tal como o termo contemporâneo tem sido
visto segundo tantos saberes,
Na minha fragilidade o mundo entra em mim e é uma avalanche. Morrer seria desperdício. Sou a bola de
neve que cresce quase que ao infinito e fica mais forte. Despenco pelas ladeiras. Viver me acumula tanto.
entre eles os das artes plásticas;
Queria dizer que escrever é como tirar leite de vaca. É a alma nua ajoelhada diante daquele animal sagrado
e o cumprimento do ritual: espremer, puxar. Limito-me a um balde a cada dois dias.
no âmbito da literatura, essa atitude venha
ocorrendo somente talvez e de modo raro na
ordem do ensaio teórico-crítico-experimental,
quase poema — poema expandido;
o efeito de obras esplêndidas de certos
escritores realizadas lá antes — e com o
poder contemporâneo semelhante ao
do efeito-duchamp em arte — não se
manifestou em escritas mais próximas;
logo, em literatura, não se construiu um campo
de forças — em sua diferença brutal — capaz de,
em embate-encontro com a literatura moderna,
trazer uma massa distinta de audácias de
recurso e de pensamento expressas;
isso, ainda, talvez, talvez.
Roberto Corrêa dos Santos
Há certos dias que parecem uma anunciação. É assim: você levanta da cama e se lembra de novo dos raios
de sol. Escrever é colher esses raios de sol em dias de anunciação: inventam-se mundos. Aprecio as tatuagens, embora com certa distância. Mas é que queria ir escrevendo minha história em meu próprio corpo.
Palavras escritas na carne. Palavra-corpo. O horizonte amarelo que esmaece vermelho no fim de tarde.
As palavras formam jogos complicados em minha mente. Barulho de cartas espalhadas. Minha recusa em
agir é um tanto consciente e irreal. É o portão que se fecha segundos antes do carro chegar e a frustração.
O vaivém do balanço naquele fim de tarde.
Tudo o que escrevo são jatos de tinta na parede, e não há ninguém com um pincel para alisá-los. São meus
esforços incompletos que se estiram pelo chão gritando. Sinfonia. A lâmpada e, dentro dela, um inseto morto
há algum tempo (já o havia visto antes). Estala e incandesce: viver e suas surpresas dentro.
Não saber sobre o que escrever já se tornou constância. A parede lisa e os borrões de tinta. Total que — não
achei expressão semelhante em português a esta em espanhol, que parece trazer tudo a um clímax e encerrar
um resumo —, total que já não sei. Sinfonia, não — rapsódia.
Por isso escrevo mundos e escrevo vida e vivo. Vivo porque escrevo — o absurdo. O clique do gatilho, prestes
a explodir e o clique das teclas, uma após a outra, em ritmo descompassado. I’ve never loved nobody fully,
always one foot on the ground. Custa escrever a palavra amor. A-mor. É que lembra morte. Amar é morrer-escrever, talvez. O teclado encharcado de lágrimas.
Se escrever é só metaforizar, então melhor parar (bem como parar de rimar ar com ar). Amor, a morte, a
continuação. Escrever é também citar, às vezes. Já duas em apenas dois parágrafos. E o coração, cheio de
pulsação por vida mas a incapacidade. São mil citações de fora, palavras gestos continuações. Continuar vivo
parece prescindir o esquecimento das citações. Mas quem sou eu, este conjunto de citações e um pouco de
originalidade? Senão. Escrevo parecido com alguns escritores que admiro. Nada se cria, tudo se transforma
(mais uma). Eu me transformando em mim.
Azul-mar
Sinto muita saudade
de você, tem dias que eu sinto
que sou ilha perdida
no meio de tanto mar
como fui me separar?
de um continente tão forte
deixei pra trás
muita terra segura
passei por tempestades
tormentas, chuvas imensas
e agora uma calmaria
em que paro tudo
e observo do mirante
o oceano, atlântico
pacífico, gigante
Melhor escrever para crianças. A criança em mim. Infância e rancor. Palavras que ficaram contidas. Explosão.
A pétala da flor que não conseguiu se abrir e murchou. A lagarta que nunca saiu do casulo, e as asas que
não ruflaram de par em par.
A pior das dores é aquela que não é sua. É entrar dentro de um filme e sentir-se personagem. Não quero
escrever por identificação. Ser autobiográfico ou não, dane-se, não importa, importa enxergar. Venha ver
o pôr do sol. Palavras-espelho. Palavras e paisagens e pores de sol. Escrevo porque me faltam as palavras e
de repente aparecem.
E o fim do texto. Imaginei que seria um happy end. Escrevo rápido e releio às vezes. Escreviver. Melhor deixar
assim em aberto: a possibilidade: pisar no pedal e fixar a nota do piano: a flor que renasce: o reino que está
por vir e a esperança: o dia que se chama hoje: meu caminho em direção ao mar.
Rafael Magalhães
 16 
Miguel Del Castillo

Documentos relacionados