Inclusão financeira e desenvolvimento rural: A

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Inclusão financeira e desenvolvimento rural: A
Inclusão financeira e desenvolvimento rural:
A importância das organizações territoriais
D o s s iê
Ademir Antonio Cazella*
Fábio Luiz Búrigo**
Resumo
Neste artigo são analisados os condicionantes para a construção de
sistemas de financiamento de processos de desenvolvimento territorial
sustentável em zonas rurais. Em particular, são avaliadas as possibilidades
e os dilemas que se apresentam atualmente para a inclusão financeira
de segmentos sociais empobrecidos e para aumentar a participação das
organizações territoriais na gestão desses sistemas. Com base nesses
dois pressupostos, o trabalho aborda duas experiências empíricas que
demonstram avanços nessa direção: o Programa Crediamigo do Banco do
Nordeste e o cooperativismo de crédito solidário presente na região sul
do País. Conclui-se que os dois casos apresentam arranjos institucionais
inovadores, que têm gerado resultados relevantes em relação ao volume
de empréstimos, à área de abrangência, ao percentual de público atendido
e aos sistemas de governança. Porém, ambos necessitam aprimorar suas
formas de atuação caso desejem atender demandas de caráter intersetorial
e focadas no desenvolvimento dos territórios em que atuam.
Palavras-chave: Desenvolvimento territorial sustentável; Inclusão financeira; Sistemas de governança
1. Introdução
O
objetivo principal deste artigo consiste em analisar os condicionantes para a construção de sistemas de financiamento de
processos de Desenvolvimento Territorial Sustentável (DTS), especialmente voltados para o atendimento de regiões rurais brasileiras.
* Professor da UFSC, junto ao Programa de Pós-graduação em Agroecossistemas.
** Doutor em Sociologia Política (UFSC).
Nº 14 – abril de 2009
Procura-se avaliar, em particular, as possibilidades e os dilemas
que se apresentam para a inclusão financeira de segmentos sociais
empobrecidos e para aumentar a participação das organizações
territoriais na gestão desses sistemas. Uma investigação preliminar
realizada pelos autores sobre o conjunto de organizações e arranjos institucionais existentes nesse setor revelou duas experiências
que atendem parcialmente esses propósitos1. Tratam-se das ações
de microcrédito empreendidas pelo Banco do Nordeste (BN) e das
atividades microfinanceiras desenvolvidas pelo cooperativismo de
crédito rural solidário, capitaneadas pela Associação Nacional das Cooperativas de Crédito de Economia Familiar e Solidária (Ancosol).
Essas duas iniciativas, além de consolidadas – pois romperam
os limites dos chamados projetos pilotos –, apresentam um conjunto
de inovações, especialmente na formação de seus arranjos institucionais e nos mecanismos de governança. Tais avanços refletem-se
no grande número de beneficiados diretos, volume de recursos financeiros mobilizados, interface com políticas públicas, consistência
institucional, área de abrangência e, não menos importante, prédisposição de seus gestores para adoção dos preceitos do DTS.
O trabalho procura demonstrar, também, que as duas experiências apresentam formas inéditas no sentido de ampliar-se a escala
de projetos estratégicos de desenvolvimento territorial sustentável,
rompendo os limites dos chamados “arquipélagos desarticulados”
de ações dessa natureza2. Por distintos aspectos, ambas servem,
portanto, de referência para a deflagração de iniciativas similares,
tanto em territórios onde se deseja ampliar a qualidade dos produtos
e das organizações financeiras existentes, quanto em regiões “pioneiras”, isto é, zonas que não possuem serviços dessa natureza.
1 Este estudo integra um projeto de pesquisa sobre a geração de novas políticas
de desenvolvimento territorial no Brasil que está sendo realizado pela equipe
do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA – CPDA – UFRRJ),
com apoio do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA).
Para os primeiros resultados referentes ao tema “Sistemas de financiamento
do desenvolvimento territorial”. ver Cazella e Búrigo (2008a).
2 Para Ignacy Sachs, em palestra proferida durante o III Fórum internacional de
modelos e instrumentos para gestão social dos territórios organizado pelo IICA
entre os dias 05 e 07/11/2008 na cidade de Fortaleza (CE), as ações de DTS precisam romper a barreira de projetos pilotos e ampliar sua escala e impactos.
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O artigo está subdividido em três partes principais, além
desta introdução. A primeira apresenta uma reflexão teórica sobre
o tema das microcrofinanças, tido aqui como política de base para a
instauração de dinâmicas de DTS. A segunda analisa o Programa Crediamigo do Banco do Nordeste e o Sistema Cresol, identificado como
a experiência de cooperativismo de crédito rural mais consolidada
dentro da rede Ancosol. Por fim, a título de conclusão, um conjunto
de proposições é elencado, visando à superação, de um lado, da
predominância de linhas de financiamento baseadas em produtos ou
em atividades de caráter setorial, e de outro, da tendência de fuga de
recursos financeiros dos territórios rurais, especialmente daqueles
mais isolados do ponto de vista geográfico e econômico.
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2. Pobreza rural e acesso ao crédito
No meio rural brasileiro, um contingente expressivo de atores empobrecidos não integra o público prioritário das principais
agências do Estado, ONG, organizações profissionais agrícolas e
movimentos sociais e sindicais, que atuam na concepção e captação
de recursos financeiros para projetos de desenvolvimento. Dessa
forma, a ampla maioria desses projetos acaba priorizando atores que
reúnem melhores condições sociotécnicas, políticas e econômicas
para empreender no meio rural (CAZELLA, 2006).
Esse quadro exige que se supere a visão predominante de que
o meio rural brasileiro encontra-se dividido entre agricultores familiares empobrecidos versus agricultores patronais bem integrados
nos mercados e, em especial, privilegiados pelas políticas agrícolas.
Não só no interior da agricultura familiar persiste um contingente
expressivo de famílias rurais invisíveis aos olhos dos diferentes
organismos de desenvolvimento, como também se desconhece o
tamanho e as estratégias de vida de assalariados sazonais, diaristas,
empreiteiros e de uma gama de microempreendedores, que se reproduzem socialmente à margem de qualquer política ou iniciativa
formal de desenvolvimento rural.
Além disso, a compreensão de que a socioeconomia de serviços financeiros territorializados e o desenvolvimento territorial
sustentável são dois corpus indissociáveis ainda encontra-se em
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fase embrionária no Brasil. Na maioria das regiões rurais pouco se
avançou na elaboração e aplicação de projetos articulados, que não
disponibilizem crédito apenas para as atividades agropecuárias,
mas contemplem também as demais iniciativas empreendidas por
atores rurais diversos em outros setores da economia (CAZELLA &
BÚRIGO, 2008b e 2009; BONNAL & PIRAUX, 2009).
A essas debilidades soma-se o perfil do Sistema Financeiro
Nacional (SFN), que provoca uma constante fuga de capitais gerados
na maior parte das regiões rurais, especialmente daquelas que se
encontram fora da área de interesse dos grandes complexos agroindustriais. Muitas dessas zonas convivem com uma espécie de círculo
vicioso, em que a ausência de organizações financeiras regionais
aumenta a sua dependência econômica em relação aos pólos urbanos. A evasão das riquezas produzidas localmente aprofunda o
ambiente de escassez de ideias e de projetos inovadores, assentados
nos preceitos da sustentabilidade e do desenvolvimento territorial.
Perpetuam-se, assim, as desigualdades regionais e o sentimento de
dependência, minorados constantemente pela ação de políticas
compensatórias, de cunho paternalista e de origem externa.
As políticas públicas relacionadas ao financiamento do DTS
defrontam-se, também, com duas tendências verificadas no cenário
mundial: i) a concentração bancária e a globalização dos mercados
financeiros; ii) as estratégias comerciais dos bancos que, tradicionalmente, preferem atuar junto aos maiores aglomerados urbanos, oferecendo serviços aos clientes de grande e médio porte econômico. No
caso brasileiro, mesmo dispondo de um mercado bancário extremamente sofisticado, a concentração bancária e, consequentemente, as
lacunas em termos de atendimento financeiro são notórias. Em 1995,
a relação entre crédito e Produto Interno Bruto (PIB) estava próxima
de 0,35. Em 2002, ela tinha caído para 0,24, voltando a crescer para
0,31 em 2005 e 0,41 em 2008. Ou seja, nesse último ano, a oferta de
recursos bancários para empréstimos foi da ordem de 41% do PIB. Em
países desenvolvidos, esse número ultrapassa a 100%.
No que se refere à concentração bancária, no final de 1996,
os vinte maiores bancos brasileiros detinham 72% dos ativos totais
do segmento bancário; os dez maiores bancos possuíam 60,1%; e
os cinco maiores bancos ficavam com 48,7%. No final de 2004, essa
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distribuição era respectivamente de 83,2%, 68% e 53% (BÚRIGO,
2006). É improvável que nos últimos anos tenham ocorrido melhorias significativas nesse campo. Ao contrário, a recente fusão do
Itaú e do Unibanco, a compra de bancos menores pelo Banco do
Brasil (Nossa Caixa, metade do Banco Votorantim e de alguns bancos estaduais), além da crise financeira que abalou todos os países
neste final de década, apontam para um aprofundamento desse
processo. A centralização financeira afeta diretamente a distribuição dos empréstimos bancários: no final de 1994, os cinco maiores
bancos brasileiros respondiam por 56,8% da oferta de crédito. Em
dezembro de 2008, esse porcentual havia aumentado para 77,5%
(AUSTIN RAUTIN, 2009).
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Apesar do recente esforço do Governo Federal, visando ampliar o acesso ao crédito e facilitar a abertura de contas simplificadas
para as populações de baixa renda, muitos serviços financeiros estão
ainda distantes de milhões de brasileiros. A exclusão está presente
em todas as regiões, mas afeta, em especial, os territórios rurais
menos desenvolvidos e distantes dos principais pólos econômicos.
Nota-se que a simplicidade dos serviços e produtos disponíveis
normalmente não atende as necessidades dessas regiões sob o
prisma do desenvolvimento e nem significam um processo de inclusão financeira. Isto é, a oferta de serviços financeiros resume-se
à possibilidade de dispor de uma conta bancária simplificada ou
de uma linha de crédito que, muitas vezes, não contemplam as
pessoas que mais precisam desses recursos. Além disso, a captação
e o redirecionamento da poupança local, fonte de contrapartida
e de sustentabilidade de projetos de médio e longo prazo, não
são encarados como condição necessária para o desenvolvimento
territorial sustentável.
Uma pesquisa sobre esse tema coordenada por Abramovay
(2004) demonstra que em várias localidades brasileiras são limitações institucionais que excluem os mini e micro-poupadores e não
a sua falta de interesse ou incapacidade de empreender e inovar.
Na agricultura, muitas vezes, a freqüência desses fatos impede que
agricultores pobres acumulem rendas suficientes para galgar outro
estágio social e econômico. Na falta desses serviços, eles acabam
investindo suas eventuais economias na compra de animais, terras
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ou itens de consumo, como eletrodomésticos e outros utensílios.
A ausência de serviços financeiros coletivos, baratos e impessoais,
dificulta o planejamento das atividades econômicas e a organização
da vida financeira doméstica dos pobres (MAGALHÃES, 2003). Isso
ocorre, por exemplo, quando eles têm necessidade de vender parte
de seus ativos: por estar em forma não monetária e não fracionária,
a falta de liquidez de sua poupança pode gerar situações pouco
vantajosas (é preciso vender o animal por inteiro, por exemplo).
Esse tipo de situação faz com que essas famílias sofram considerável influência de laços monetários informais, muitos dos quais são
ainda pouco conhecidos ou estudados. Embora esses laços possam
traduzir-se em mecanismos de solidaridade e auto-ajuda financeira,
assumindo, portanto, um valor positivo na sobrevivência das famílias,
são também espaços para a proliferação de sistemas de extorsão e
de agiotagem. Por sua vez, quando os pobres são assalariados, o que
se vê é a presença constante de elevados níveis de endividamento.
Para muitas famílias, a garantia salarial estimula as aquisições a prazo, mas as compras em demasia e os encargos financeiros acabam
comprometendo uma boa parte de sua renda futura.
A investigação de Ferrary (2003) revela também como as avaliações sobre os riscos existentes nas operações de crédito, efetuadas
por alguns bancos, incorporaram critérios de natureza subjetiva.
Nesses casos, a experiência dos emprestadores e o conhecimento a
respeito da situação de cada tomador contam muito. Ainda assim,
mesmo que se tenham as melhores informações sobre os rumos da
economia e sobre quais serão os seus impactos sobre os financiamentos, é impossível conhecer com exatidão a situação financeira e
as intenções dos tomadores ou o que vai ocorrer durante o período
do contrato. Essa assimetria de informações, que se move do campo
das intenções para o da capacidade de prever-se uma situação futura,
leva ao aprofundamento da seleção adversa. Ou seja, as organizações
financeiras acabam eliminando uma parte potencial de sua clientela
decorrente da falta do conhecimento pleno, seja da idoneidade do
tomador do crédito, seja da viabilidade dos seus negócios.
A conseqüência da aversão ao risco dos sistemas financeiros
tradicionais é que os serviços de crédito ficam circunscritos a número menor de clientes. São selecionados aqueles que suportam pagar
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as taxas e as tarifas estabelecidas, os que têm maiores somas de
depósitos (reciprocidade) e os que oferecem maiores garantias em
seus pleitos. Isso demonstra que a exclusão bancária e a conseqüente
criação de sistemas informais são reflexos do mesmo conjunto de
fatores que existem no mercado de crédito.
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A resistência à maior participação dos pobres no sistema
bancário começou a ser revista nas últimas décadas do século XX,
com a difusão do microcrédito e das Organizações Microfinanceiras
(OMF). Algumas OMF criaram formas inovadoras de combater a pobreza com a ajuda de recursos financeiros. Em primeiro lugar, elas
conseguiram atingir um grande número de clientes com serviços
financeiros de pequena monta, indicando que o interesse das pessoas pobres de relacionar-se com uma fonte de liquidez monetária
existe e não é eventual. Em segundo, os custos do seu trabalho
foram cobertos pela combinação de baixas taxas de inadimplência
com maneiras inéditas de reduzir as despesas operacionais.
O baixo número de maus pagadores devia-se, em parte, à intervenção de funcionários tecnicamente preparados, que visitavam
os clientes periodicamente e conheciam mais claramente os seus
potenciais e seus limites enquanto empreendedores. Os custos de
transação e a falta de garantias para a liberação de empréstimos
eram, normalmente, supridos por sistemas de aval solidário (garantias cruzadas) e por taxas de juros semelhantes às praticadas pelo
mercado bancário, porém inferiores as cobradas pelos agiotas (BÚRIGO, 2006). Em outras palavras, a onda do microcrédito provocou
um ineditismo operacional no meio financeiro que pode ser assim
traduzido: uso concomitante de agentes de crédito, garantias do
tipo solidário e contratos com prazos curtos e valores crescentes
(MORDUCH, 2000; DARCY & SOARES, 2004).
Em 2002, um encontro de especialistas mundiais em microcrédito e microfinanças elencaram os elementos necessários para
implantarem-se serviços consistentes de crédito no atendimento de
populações pobres e que vivem em zonas “difíceis”. Os mais importantes são os seguintes: 1) a existência de uma gama de serviços
flexíveis e adaptados. Isso pode dar-se, por exemplo, por meio da
presença de pontos de atendimento ou de profissionais nos locais
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de maior concentração de negócios3. São também relevantes, nesse
sentido, as iniciativas que buscam combinar a poupança obrigatória
e a do tipo voluntária com projetos que estimulem a formação de
grupos de poupadores; 2) as subvenções cruzadas (fundamentais
para viabilizar a carteira)4; 3) a limitação dos custos de pessoal
(através do recrutamento local e com gente de mesmo nível socioeconômico); e 4) o apoio na intermediação de redes sociais, como
forma de reduzir os custos de transação e ampliar o alcance do
programa (HIRSCHLAND, 2003).
Para o Comitê de Trocas, Reflexão e Informação sobre os
Sistemas de Poupança e Crédito (Cerise), criado por organizações
européias que atuam na área das microfinanças e das finanças solidárias, a governança de uma organização de microfinanças apóia-se
na estrutura de propriedade, associada ao conjunto dos mecanismos
pelos quais os dirigentes eleitos, funcionários e outros definirão e
executarão a sua missão (notadamente a escolha do público alvo,
os serviços e a cobertura geográfica) e assegurarão a perenidade, a
adaptação ao ambiente, a prevenção e as soluções para as crises.
No Brasil, embora já existissem projetos localizados de microcrédito desde os anos 1970, a sua expansão em maior escala tem
sido tardia, tornando-se mais visível somente na década de 1990.
Além da lenta difusão, o microcrédito brasileiro assumiu diversos
formatos institucionais. Depois de anos de debates e de ter-se
constatado que algumas iniciativas públicas e privadas mostravam-se
incipientes diante das necessidades do país nessa área, em 2005 o
Governo Federal criou o Programa Nacional de Microcrédito Produtivo e Orientado (PNMPO). Além de alocar recursos públicos, o
PNMPO estabeleceu novas regras para o funcionamento do setor.
3 Em alguns países é comum a existência de banqueiros ambulantes e outros
profissionais especializados em oferecer atividades microfinanceiras diretamente nas ruas. Esses agentes coletam os recursos monetários e prestam
outros serviços financeiros para os pequenos comerciantes e empreendedores
que não possuem condições de se deslocar com freqüência até um ponto de
atendimento bancário.
4 Aplicação combinada dos resultados financeiros obtidos nas carteiras de empréstimos e nas carteiras de depósitos. Assim, as rendas obtidas nos serviços
de (micro) empréstimos podem auxiliar na oferta e na extensão dos serviços
ligados aos (micro) depósitos.
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Dados do Banco Central indicam que, no final de 2007, havia
cerca de 230 organizações atuando regularmente no microcrédito no
Brasil, sendo o formato jurídico dessas organizações muito variado:
ONG, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip),
Sociedades de Crédito ao Micro-empreendedor (SCM) e à Empresa
de Pequeno Porte, bancos privados e agentes governamentais. Tal
universo manejava uma carteira de R$ 1,2 bilhão, o que representava
uma penetração de apenas 16% do mercado potencial, estimado em
R$ 12 bilhões. Entre 2006 e 2007, o número de clientes ativos de
microcrédito no Brasil saltou de 690 mil para 1,1 milhão. A quase
duplicação dos beneficários em apenas um ano pode significar que
as medidas lançadas pelo PNMPO começaram a apresentar seus
primeiros resultados, muito embora o número de atendidos esteja
ainda aquém do indicado pelos estudos que avaliam o potencial do
setor das microfinanças no país. Estima-se a existência de cerca de
dezesseis milhões de pequenas unidades produtivas geridas, em boa
parte, pelos treze milhões de trabalhadores que atuam por conta
própria. Desses, sete milhões podem ser considerados demandantes
potenciais de microcrédito (SOARES & MELO SOBRINHO, 2008).
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Essa defasagem entre serviços ofertados e clientela potencial
de microcrédito instiga à compreensão de experiências consideradas exitosas nessa área. Na seqüência, o estudo passa à análise das
virtudes e limitações do Crediamigo e do Sistema Cresol, com vistas
a avançar na reflexão de novos caminhos para a inclusão financeira
e sua articulação com iniciativas de DTS no Brasil.
3. Duas experiências relevantes de microfinanças
no Brasil
3.1. O Programa Crediamigo do Banco do Nordeste
A atuação do Banco do Nordeste dá-se, fundamentalmente, na
área de abrangência da Superintendência para o Desenvolvimento
do Nordeste (Sudene) – nove estados nordestinos, norte de Minas
Gerais e nordeste do Espírito Santo –, mais o Distrito Federal. A
origem do Programa Crediamigo está associada ao processo de estabilização da economia deflagrada com o Plano Real em meados dos
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anos 1990 e à conseqüente necessidade dos bancos em criar novos
produtos e serviços. A experiência bem sucedida do programa de
crédito para a população de renda baixa de Bangladesh (Grameen
Bank)5 serviu de inspiração para a concepção, em 1998, do Programa
de Microcrédito Crediamigo.
Dentre as principais características do Crediamigo encontramse os seguintes mecanismos operacionais e de gestão: a figura
dos “agentes de crédito”, a adoção de sistemas de aval solidário,
a implantação de serviços de orientação aos empreendedores de
baixa renda, a animação de fóruns de discussão municipais denominado de “Farol do Desenvolvimento”, o Crediamigo Comunidade
(Village Bank), o Agroamigo e a parceria com o Instituto Nordeste
Cidadania (INEC).
Esse conjunto coordenado de mecanismos explica o fato de
o Crediamigo ser hoje o segundo maior programa de microcrédito
existente na América Latina e Caribe. As lições positivas obtidas na
gestão desse tipo de crédito, inicialmente circunscritas no meio
urbano, estão sendo, aos poucos, transferidas para o meio rural. É
o caso do Agroamigo, que se volta para a aplicação da modalidade
denominada “Grupo B” do Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar (Pronaf B)6, e do Crediamigo Comunidade.
Além disso, se é verdade que uma parcela importante dos clientes
do Programa Crediamigo habita em aglomerações metropolitanas,
diversos microempreendedores de pequenos municípios do interior
nordestino atendidos pelo Programa representam uma categoria de
5 O Banco do Nordeste não se limitou a se espelhar no sucesso dessa experiência,
cujos resultados e reconhecimento internacional justificam a atribuição do
Prêmio Nobel da Paz de 2006 ao seu principal idealizador (Muhammad Yunus).
Outras iniciativas de microcrédito foram consideradas, a exemplo do Banco
Rakyat (Indonésia), Banestado e Banco de Desarollo (Chile), Finasol (Colômbia)
e BancoSol e Caja de los Andes (Bolívia).
6 Linha de crédito do Pronaf que beneficia agricultores familiares de baixa
renda: faturamento bruto anual inferior a R$4.000,00, excluídas as rendas
de programas sociais públicos. O teto máximo do empréstimo anual chega a
R$1.500,00, com carência de até dois anos, taxa de juro anual de 0,5% e bônus
de adimplência de 25% do valor principal e dos juros. Apesar do forte subsídio, essa linha do Pronaf apresenta altos índices de inadimplência, sobretudo
no Nordeste, decorrentes da falta de medidas de gestão especiais junto aos
agricultores tomadores desse tipo de crédito.
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atores sociais e econômicos que diversificam e enriquecem as teias
socioeconômicas dos territórios rurais.
A iniciativa recente do Banco do Nordeste de estender sua
experiência de microcrédito para o meio agrícola por meio do
lançamento do Programa Agroamigo tem por objetivo aprimorar o
processo de gestão da modalidade do Pronaf B, que tem registrado em muitos municípios nordestinos o alarmante índice de 30%
de inadimplência. A análise desse tema realizada por Abramovay
(2008, p.18) demonstra que essa situação não é decorrente de calamidades naturais, a exemplo de estiagens recorrentes na região,
mas da difusão, “por parte de organizações locais, da mensagem
de que os créditos serão renegociados e que, portanto, não vale a
pena honrar os compromissos assumidos”.
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Depois de três anos de atuação do BN nessa modalidade de
crédito, aplicando a metodologia de gestão do Crediamigo, a inadimplência do Pronaf B caiu para a casa dos 3,2%. “A grande novidade
do Agroamigo é que os financiamentos passam a ser geridos por
um assessor de crédito, responsável por uma carteira de projetos
e que estabelece uma relação personalizada com cada agricultor
beneficiário do Programa” (ABRAMOVAY, 2008, p.24).
Outra ferramenta do Crediamigo que começa a ser difundida nas zonas rurais, após ter sido testado em zonas urbanas,
é o Crediamigo Comunidade, inspirado na idéia de Village Bank,
ou banco da comunidade. Como explica Abramovay (2008), essa
modalidade do Crediamigo agrupa entre quinze e trinta pessoas
de uma comunidade, que participam de uma mesma conta poupança gerida por três membros do grupo, além de disporem de
contas bancárias simplificadas. Outra especificidade que diferencia essa modalidade das demais regras e serviços prestados pelo
Programa é a permissão para admitir a integração de pessoas com
pendências junto aos serviços de proteção ao crédito, decorrentes
de pequenas dívidas não-bancárias e a possibilidade de atender
empreendedores que possuam menos de um ano de experiência
no ramo que deseja financiar. A maior parte dos financiamentos
do programa volta-se para pessoas que atuam há mais de um ano
no seu ramo de negócio, não contemplando, portanto, aqueles
que desejam iniciar uma nova atividade. Até dezembro de 2007,
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o Crediamigo Comunidade dispunha de 1.145 “bancos”, vinte mil
clientes e R$ 5,6 milhões de carteira ativa.
A experiência do Crediamigo Comunidade torna-se especialmente importante para quem deseja fomentar a constituição de
organizações financeiras de base cooperativa ou ampliar a “proximidade” entre os sistemas financeiros e as comunidades. O conceito
das finanças de proximidade
parte da tese de que as relações entre as organizações financeiras e o
seu público devam apresentar um elevado grau de aproximação, que
não é somente geográfico, mas é também administrativo, cultural
e político. Para atuar numa lógica das finanças de proximidade, os
agentes financeiros devem, no aspecto espacial, se localizar próximo
de onde vivem os beneficiários; no aspecto social, se preocupar
com o atendimento das necessidades financeiras de interesse da
comunidade; no aspecto gerencial, criar estruturas de decisão democráticas e participativas (BÚRIGO, 2006, p.39-40)7.
Depois de alguns anos de funcionamento dentro da estrutura
do Banco, atualmente composta por 170 agências e 53 postos de
atendimentos, o Crediamigo conta com uma estrutura própria de
gestão. Para isso, o BN firmou um convênio, no final de 2003, com
o INEC, uma Oscip criada pelos funcionários do Banco em 1993. O
objetivo principal dessa parceria consiste na diminuição dos custos
operacionais do Programa, além de aprimorar as condições de gestão por meio da disponibilidade de um quadro de colaboradores
especializados em operações de microcrédito.
O foco no público de baixa renda condiz com os valores
dos empréstimos realizados, que podem variar de R$100,00 a
R$10.000,00, seja como capital de giro, seja como investimento
fixo. O endividamento máximo permitido é do teto para capital de
giro e de R$5.000,00 para investimento. As taxas de juros mensais
também dependem do tipo de operação. Para capital de giro com
valores inferiores a mil reais incide 1,95% ao mês (a.m.) e para as
operações superiores a essa soma os custos se elevam para 2 a 3%
7 Sobre a importância dos sistemas financeiros de proximidade ver, também,
Servet; Vallat (2001) e Abramovay (2003a).
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Inclusão financeira e desenvolvimento rural: A importância das organizações territoriais
a.m. Já para os contratos de investimento fixo, a taxa de juros é de
2,95% a.m. Nos empréstimos para capital de giro, os prazos para
reembolso variam de um a seis meses e, nos contratos de investimento fixo, chegam a 36 meses, sem carência.
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A inexistência de período de carência para iniciar o pagamento explica, em parte, o fato das operações financiadas só considerarem os micro-empreendimentos (formais e informais) que já
estejam em atividade há pelo menos um ano. Mas é nos custos dos
empréstimos que reside um aspecto importante do Crediamigo:
não existe nenhum tipo de subsídio aportado pelo banco. Embora
no início tenha recebido ajudas do Banco Mundial, atualmente
o programa não ganha nenhum aporte financeiro direto para se
manter em funcionamento, seja do próprio banco, seja de outros
agentes. A explicação para os bons resultados está, portanto, na
adoção de sistemas de governança inéditos no SFN e na adaptação
bem sucedida de técnicas de gestão de carteiras de microcrédito já
testadas em outras experiências consagradas nessa área.
Até agosto de 2008, o Crediamigo tinha 352 mil clientes, tendo por meta atingir um milhão até 2011. As estimativas feitas por
Neri (2008) sobre o mercado potencial de microcrédito no Nordeste
são de 4,6 milhões de trabalhadores por conta própria e empregadores, excetuando os empreendimentos agropecuários. Percebe-se,
assim, que o Crediamigo contemplou até agosto de 2008 quase 8%
da clientela potencial de microcrédito existente na região.
Entre o final de 2003 e meados de 2008, a carteira ativa do
Crediamigo, que considera os valores dos contratos em vigência
normal ou em atraso de até noventa dias, subiu de R$ 85 milhões
para R$ 277,3 milhões. O valor total desembolsado aos clientes
passou de R$ 368 milhões em 2003 para R$ 794,2 milhões em 2007.
Ademais, as médias das operações também aumentaram no período,
passando de R$847,00 para R$1.030,00.
Nas normas do Crediamigo considera-se como inadimplente
o tomador de crédito que atrasar o pagamento a partir de um dia.
A inadimplência caiu de 2,09% em 2002 para menos de 1% a partir
de 2004, índice que se manteve nos anos subseqüentes. A excelente
taxa de retorno dos valores emprestados está diretamente associada
ao seu sistema de gestão. Sua estrutura operacional não se encontra
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assentada de forma exclusiva, nem nas agências e postos do BN,
nem no quadro de pessoal do banco. Nos pontos de atendimentos
diversos, a exemplo de sedes de prefeituras, sindicatos, Emater
e Correios, a figura do “assessor de crédito” representa o pilar
da tecnologia de microcrédito. A proximidade e o conhecimento
interpessoal entre o tomador de crédito e o assessor explicam, em
grande parte, os resultados positivos.
Como aponta Abramovay (2008, p.25), “é claro que a proximidade pode abrir caminho igualmente a empréstimos realizados
de maneira inadequada e pouco criteriosa, por razões familiares ou
de amizades”. No entanto, o rigor gerencial do programa permite
identificar e punir aqueles assessores que não adotam os preceitos
operacionais que lhes são repassados de forma sistemática nas ações
de capacitação. Além disso, a vinculação de parte da remuneração
desses agentes aos resultados de adimplência e do tamanho da
sua carteira de crédito reforça o compromisso mútuo e os laços de
solidariedade entre assessor e beneficiado.
Outro elemento que integra a engenharia de gestão e que
certamente tem um peso explicativo importante para os elevados
índices de adimplência do Crediamigo é a intenção deliberada de
privilegiar a participação da mulher nas tomadas de empréstimos.
Nada menos que 64% das operações de microcrédito são efetuadas
por mulheres. A maior assiduidade nos pagamentos efetuados pelo
público feminino é uma das características que chama atenção nos
programas de microcrédito em todo o mundo. Essa orientação não
é uma inovação da experiência brasileira, mas a adoção de uma das
lições que estão na origem do Grameen Bank. Yunus e Jolis (2003)
dedicam três capítulos exclusivos do seu livro a essa temática8, além
de constantes referências e exemplos sobre a importância de se
considerar de forma contundente a questão de gênero na concepção
de sistemas de microfinanciamentos. Em Blangadesh, as mulheres
eram responsáveis por menos de 1% dos empréstimos concedidos
pelos bancos. Na fase experimental do Grameen foi fixada a cota de
8 Tratam-se dos capítulos “Por que emprestar dinheiro às mulheres, de preferência
aos homens?”; “O primeiro contato com as financiadas (ocultas pelo purdah)”
e “Ser mulher e trabalhar para o Grameen”.
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p. 301 – 331
Inclusão financeira e desenvolvimento rural: A importância das organizações territoriais
50% de empréstimos para mulheres, sendo que na atualidade esse
índice chega a 94% (Neri, 2008).
No Brasil, os esforços explícitos de inclusão do universo feminino nas operações de microcrédito ainda figuram como casos
isolados. A situação mais notória nessa área refere-se ao Pronaf. Após
mais de doze anos de existência desse programa de crédito rural, a
participação da mulher é pífia inclusive no interior de iniciativas levadas a cabo por organizações representativas da agricultura familiar.
O estudo de Fernandes (2008) revela que mesmo o movimento de
cooperativismo de crédito solidário difundido nos últimos quinze
anos no sul do país não tem dado a devida atenção a esse tema. A
linha de crédito denominada Pronaf Mulher registra um número de
contratos insignificantes no cômputo geral do Programa.
Do ssiê
Ademir Antonio Cazella • Fábio Luiz Búrigo
A avaliação efetuada por Neri (2008, p.303) sobre os benefícios econômicos que o Programa Crediamigo propiciou nos negócios
dos clientes revela que a maioria melhorou de forma considerável
sua renda. “A probabilidade de um cliente ultrapassar as linhas
de pobreza especificadas aumenta consideravelmente a cada seis
meses, quando ele se mantém como cliente ativo. Aqueles indivíduos com mais de cinco anos no programa têm uma probabilidade
maior de deixar essa situação (...)”. No entanto, outra constatação
efetuada por esse autor encontra-se no fato do Crediamigo não
contemplar entre a sua clientela a porção mais pobre dentre os
pobres, residindo aí um aspecto limitante a ser superado. Além
disso, o programa ainda não tem uma clara orientação no sentido
de aprofundar sua atuação no meio rural e menos ainda de buscar
uma inserção territorial explícita, por meio de parcerias com os
fóruns territoriais existentes. O estudo a seguir, da experiência
do cooperativismo de crédito solidário, além de contemplar uma
região geográfica distinta, aporta a especificidade de se tratar de
uma intervenção essencialmente rural.
3.2. O Cooperativismo de Crédito Solidário
Vários autores sugerem que o cooperativismo de crédito seja
a referência mais promissora para se popularizar as finanças no meio
rural brasileiro (CAZELLA, 2002; ABRAMOVAY, 2003b; BITTENCOURT,
p. 301 – 331
315
Nº 14 – abril de 2009
2003; BÚRIGO, 2006). Além de ser uma sociedade de pessoas e não
de capital, a cooperativa de crédito é a única organização legalmente
autorizada (além dos bancos) a captar depósitos (poupança) – um
dos instrumentos chaves para se dinamizar a economia local.
As regras que orientam o funcionamento das cooperativas
de crédito favorecem a organização financeira de proximidade. Por
vezes, fatores de natureza extra-econômica permitem também que
essas organizações pratiquem taxas competitivas nos seus serviços de crédito e que têm, não raramente, o papel regulatório no
mercado financeiro local. Além disso, a existência dessas cooperativas facilita a organização dos financiamentos “quentes”, que são
assim denominados por serem realizados com recursos da própria
comunidade (BÉDARD, 1986). Ao contrário dos recursos “frios”,
obtidos via fontes externas, os primeiros tornam os membros da
comunidade mais vigilantes e preocupados com a sua aplicação,
pois seu mau uso trará conseqüências diretas para eles próprios
(os associados depositantes).
Embora sua presença venha aumentando nas últimas décadas, nota-se que o peso econômico das cooperativas de crédito
ainda não é significativo dentro do mercado financeiro nacional.
Em dezembro de 2007, as 1.462 cooperativas de crédito brasileiras
e seus 2.621 Postos de Atendimento Cooperativo (PAC) atendiam
somente 3,5 milhões de associados. Juntas, essas organizações
eram responsáveis por 1,3% dos depósitos e 2,1% das operações
de crédito do segmento bancário9. Esses indicadores estão bem
aquém do que se observa na grande maioria das regiões do mundo – a taxa de crescimento do setor dentro do mercado bancário
nacional é superior apenas ao encontrado em países da Oceania e
Ásia Central. Existe também uma profunda desigualdade no interior
do país em relação à incidência do cooperativismo de crédito. Em
2007, as cooperativas de crédito da região Sul foram responsáveis
por 5,6% dos depósitos e 5,3% das operações de crédito realizados
no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, enquanto no Nordeste
9 O Banco Central contempla na “área bancária” os bancos múltiplos, comerciais,
Banco do Brasil, Caixa Econômica Estadual e Federal, os bancos de desenvolvimento e as cooperativas de crédito.
316
p. 301 – 331
Inclusão financeira e desenvolvimento rural: A importância das organizações territoriais
essa participação foi, respectivamente, de 1,2% e 0,7% (SOARES &
MELO SOBRINHO, 2008).
A existência de vários sistemas cooperativistas de crédito
no Brasil revela distintas inspirações e diferenças em termos de
concepção ideológica, arranjos institucionais e modelos gerenciais.
Dos quatro maiores sistemas, três são baseados em estruturas
cooperativas próximas de uma cultura bancária, pois norteiam sua
atuação numa lógica de profissionalização gerencial e concentração de recursos, visando ganhos de escala. Assim como em grande
parte do cooperativismo de crédito mundial, esses sistemas são
controlados e voltam-se para camadas da classe média da população,
tendo pouca inserção nos extratos de menor renda. Dois deles, o
Sistema de Cooperativas de Crédito do Brasil (Sicoob) e o Sistema
de Crédito Cooperativo (Sicredi), atuam com um público urbano e
rural diversificado, enquanto o terceiro, o Sistema Unicred Brasil
(Unicred), está ligado aos profissionais da área da saúde.
Do ssiê
Ademir Antonio Cazella • Fábio Luiz Búrigo
Paralelo a esses três grandes sistemas, ganhou força nos
últimos anos a Rede Ancosol. A Associação Ancosol foi legalmente
constituída em 2004 com o objetivo de articular, integrar e representar as organizações do cooperativismo de crédito de economia
familiar e solidária que emergiram no Brasil a partir dos anos 1990.
Esse movimento representa a consolidação de um novo modo de
funcionamento de cooperativas, denominada por Pinho (2004)
de “vertente solidária”. Trata-se de uma concepção que não se
preocupa apenas em obter benefícios econômicos e expandir seu
capital, mas procura estender a sua ação ao máximo de pessoas que
integram sua base de ação, como também fortalecer seus afiliados
em outras dimensões (social, cultural, ambiental, política etc.). As
cooperativas de caráter solidário buscam, portanto, uma forte integração na realidade local para alcançar e manter sua legitimidade
e dar cumprimento a sua missão estratégica dentro dos princípios
universais do cooperativismo (BÚRIGO, 2006).
Atualmente, a organização integrante de maior destaque da
Rede Ancosol, e que está servindo de modelo para a estruturação
de outras estruturas de cooperativas de crédito solidárias no Brasil, é o Sistema das Cooperativas de Crédito Rural com Interação
p. 301 – 331
317
Nº 14 – abril de 2009
Solidária (Cresol)10. Com treze anos de funcionamento, o Sistema
Cresol ocupa a quarta posição dentro do cenário do cooperativismo de crédito nacional, estando já presente em quase quinhentos
municípios dos três estados do Sul. Grande parte dos atendimentos
prestados pela Cresol ocorre em zonas tipicamente rurais. Ou seja,
municípios que possuem menos de vinte mil habitantes contam com
forte presença de atividades agrícolas e reúnem uma população
rural superior à média da região Sul.
Ao contrário do que se vê em muitos sistemas cooperativistas
que alcançaram bons resultados financeiros, na Cresol o sucesso econômico não significou um distanciamento da cúpula de gestores em
relação à sua base social. Para manter essa capacidade de preservar
os vínculos sociais e prestar atendimento a seu público prioritário,
além de permanente remodelação dos arranjos institucionais, foi necessária a introdução de uma série de inovações nos mecanismos de
governança. Ressalte-se que, para o BC, o sistema de governança figura
entre os elementos mais importantes para as organizações financeiras ampliarem a confiança do público e trazer novos investimentos
e recursos. Entre os benefícios que a melhoria dos mecanismos de
governança pode trazer para as organizações microfinanceiras em
geral e particularmente para as cooperativas de crédito destacam-se
os seguintes: mais segurança, aumento da participação e do controle
interno, desenvolvimento da visão cooperativista, redução de custos
operacionais, fortalecimento dos conselhos e maior estímulo ao desenvolvimento profissional (BANCO CENTRAL, 2008).
Na Cresol, as bases regionais de serviço representam o principal exemplo de inovação no modelo de governança, e que tem
exercido influência direta na sua eficiência administrativa. Embora
não sejam reconhecidas juridicamente pelo BC – pois funcionam
10 As redes cooperativas que participam da Ancosol são as seguintes: Cooperativa Central de Crédito e Economia Solidária (Ecosol); Cooperativa Central de
Crédito Rural com Interação Solidária (Cresol Baser); Cooperativa de Crédito
Rural de Interação Solidária (Cresol Central); Associação das Cooperativas de
Apoio a Economia Familiar (Ascoob); Cooperativa de Crédito Rural dos Pequenos
Agricultores e da Reforma Agrária (Crehnor). São também filiadas as cooperativas “solteiras” vinculadas aos sistemas Creditag e Integrar, já que ambos não
possuem ainda sua central.
318
p. 301 – 331
Inclusão financeira e desenvolvimento rural: A importância das organizações territoriais
como cooperativas centrais de serviços e não de crédito –, tais
estruturas reúnem cooperativas de crédito de uma mesma área geográfica. Essas bases descentralizadas fornecem coesão e agilidade
administrativa, diminuindo seus custos operacionais, aproximando
suas diferentes instâncias e fortalecendo a representação das cooperativas singulares nos órgãos superiores do Sistema.
Do ssiê
Ademir Antonio Cazella • Fábio Luiz Búrigo
Em relação à participação social, já no segundo ano de
atuação a Cresol tomou a decisão de transferir o gerenciamento
das cooperativas aos agricultores que fossem eleitos dirigentes,
dispensando a figura do gerente. A opção fez com que se empreendesse um esforço inusitado no campo da capacitação, visto que
a grande maioria de seus associados (agricultores familiares) tinha
apenas o ensino fundamental. Por outro lado, a medida revelou-se
fundamental em termos de autonomia e de controle de custos administrativos, pois permitiu que centenas de lideranças, em geral
jovens agricultores, assumissem cargos administrativos e o controle
direto de suas próprias organizações. Com isso, na Cresol não se
reproduz aquilo que Rutheford (2002, p.82) constatou ao estudar
o sistema cooperativista mundial, ou seja os “pobres normalmente
são sócios de cooperativas, [mas em geral essas organizações] são
administradas por gente com maior nível de escolaridade da classe
média” (tradução nossa).
Desde 2004, as organizações que compõem o sistema Cresol
estão agrupadas em duas centrais de crédito. A primeira (Cresol
Baser) tem como sede o município de Francisco Beltrão (PR) e atua
nos estados do Paraná e Santa Catarina. Localizada em Chapecó
(SC), a segunda (Cresol Central) foi constituída a partir do desmembramento da Baser. Sua ação abrange as cooperativas localizadas
nos estados do Rio Grande do Sul e, também, de Santa Catarina. O
elevado número de filiadas, a filosofia da descentralização que rege
o sistema e diferenças de concepção no campo da política sindical
rural foram os principais fatores que induziram à criação dessa
segunda central. A atuação simultânea das duas centrais no estado
de Santa Catarina foi o mecanismo encontrado pelos dirigentes
para equacionar os dilemas de subdivisão das áreas geográficas de
intervenção, que surgiram durante o processo de desmembramento
dos dois Sistemas Cresol (BÚRIGO, 2006).
p. 301 – 331
319
Nº 14 – abril de 2009
Em dezembro de 2007, a Cooperativa Central de Crédito
Cresol Baser possuía 73 singulares filiadas e 40 PAC. Tendo perto
dos 60 mil associados, contava ainda com o apoio de milhares de
dirigentes, centenas de agentes comunitários e quase 400 funcionários. Integrado por seis bases regionais paranaenses e duas
catarinenses, suas unidades cobrem uma área de abrangência de
quase 200 municípios.
Por sua vez, a Cresol Central possuía, nessa mesma data,
51 singulares, 39 PAC, 46,4 mil filiados, sendo que suas unidades
abrangiam uma área de quase 300 municípios do Rio Grande do
Sul e de Santa Catarina. Para dar conta da expansão, a estrutura do
Sistema Cresol Central conta com o apoio de quase uma centena
de dirigentes liberados, 1.250 agentes comunitários voluntários e
mais de 300 funcionários. Atualmente, possui cinco bases regionais,
três em Santa Catarina e duas no Rio Grande do Sul.
A Cresol Baser recebeu, recentemente, destaque no relatório
anual do The Mix Market, organização que reúne dados sobre instituições de microfinanças de todo mundo. O relatório, baseado em
informações do ano de 2007, coloca a Cresol Baser na 21ª posição no
ranking das maiores instituições de microfinanças da América Latina e
do Caribe. O crescimento do Cresol foi considerado o mais expressivo
entre as trinta primeiras do ranking das maiores instituições de microfinanças – no ano anterior a Cresol aparecia na 28ª posição. Além
disso, ela ocupa o 6º lugar no quesito de eficiência em operações de
crédito com valores abaixo de U$ 500 (CRESOL BASER, 2008).
Para acessar recursos de políticas públicas, os Sistemas Cresol
Baser e Central mantêm acordos de cooperação com os principais
bancos estatais. A partir de 2006, as duas centrais conseguiram ser
enquadradas como agentes financeiros do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), depois de cinco anos de
tratativas. Além de permitir o acesso a todas as linhas de crédito e
microcrédito do Banco – como o PNMPO –, a medida está facilitando
a aplicação dos recursos do Pronaf por meio das cooperativas. Como
o BNDES caracteriza-se por ser um agente financeiro de segundo
piso, isto é, não opera no mercado financeiro varejista, a liberação
de recursos de Pronaf para as unidades da Cresol torna-se menos
burocrática sob o ponto de vista operacional e político. O repasse
320
p. 301 – 331
Inclusão financeira e desenvolvimento rural: A importância das organizações territoriais
de Pronaf por intermédio do BNDES reduz, também, os problemas
observados todos os anos entre algumas singulares dos Sistemas
Cresol e as agências do Banco do Brasil (BB), atualmente a principal instituição oficial de gestão e operacionalização do Pronaf. Em
determinadas regiões, o acirramento da concorrência no mercado
financeiro local acaba criando dificuldades para a liberação pelo BB
dos financiamentos de Pronaf por intermédio das cooperativas. Essas
disputas locais afetam os produtores, que ficam reféns da má vontade de muitos gerentes de bancos e não podem seguir corretamente
o calendário agrícola, além de prejudicar as metas de aplicação das
verbas dos planos-safra estabelecidas pelo Governo Federal.
Do ssiê
Ademir Antonio Cazella • Fábio Luiz Búrigo
Nos últimos anos, as parcerias dos sistemas Cresol fortaleceram-se também junto à rede bancária privada, principalmente por
intermédio de acordos para operar recursos do Pronaf oriundos da
exigibilidade bancária11. Os primeiros acordos nesse sentido foram
com os bancos Safra e Bradesco. Desde 2004, os sistemas Cresol
sustentam acordos de cooperação, também, com a Caixa Econômica
Federal (Caixa) e com Ministério das Cidades, para operar os projetos
de crédito habitacional, que estão ligados ao Programa de Subsídio
a Habitação de Interesse Social (PSH). Desde então, mais de cinco
mil moradias rurais já foram construídas ou reformadas com a ajuda
de financiamentos públicos intermediados pelas cooperativas.
Para ampliar os benefícios aos seus cooperados, a Cresol
intensificou os acordos de cooperação na área da assistência técnica. Frequentemente, suas cooperativas desenvolvem projetos
aprovados junto aos dois ministérios ligados à agricultura – Ministério do Desenvolvimento Agrário e Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento – e realizam atividades conjuntas com as
empresas estaduais de extensão rural. Em algumas regiões, essas
ações ganham o reforço de técnicos de prefeituras, cooperativas
agropecuárias e de ONG. No âmbito da cooperação internacional,
as parcerias que a Cresol Baser mantém com organizações belgas,
11 Percentual dos recursos oriundos dos depósitos a vista que os bancos são
obrigados a aplicar no crédito rural. Para atender essa determinação, muitos
bancos efetuam acordos repassando seus recursos para agentes financeiros
que possuem carteiras de crédito rural. Outros não direcionam verbas para
essa área, preferindo pagar as multas impostas pela legislação.
p. 301 – 331
321
Nº 14 – abril de 2009
alemãs e holandesas têm fortalecido suas carteiras de microcrédito
e viabilizado a contratação de técnicos para atuar junto ao público
rural de baixa renda. Há oito anos a Cresol Baser recebe assessoria
de um banco cooperativo holandês, com destaque para a concepção
de metodologias de controle e gestão, além da criação de novos
produtos para atender a demanda do seu quadro social12.
Na atualidade, os Sistemas Cresol disponibilizam dezenas
de produtos e serviços financeiros aos seus associados. Além
do Pronaf, das operações de PNMPO e dos financiamentos para
novas construções ou melhorias habitacionais, a modalidade de
crédito denominada “Bem-estar familiar” merece destaque pelos
seus resultados sociais. Essa modalidade destina-se à aquisição de
móveis, utensílios, artigos e eletrônicos para uso doméstico, como
também para o tratamento de saúde (consultas, medicamentos e
cirurgias), compra de materiais, mensalidades escolares, viagens
a turismo e atividades de lazer.
Desde que começou a operar em 1996, as aplicações de Pronaf
não pararam de crescer no âmbito do Cresol. Considerado o principal
programa público voltado para a agricultura familiar, a mobilização
política dessa categoria social, a lógica do mutualismo que sustenta
as suas organizações cooperativas e as experiências de algumas lideranças com a gestão de fundos rotativos foram elementos decisivos
para que o programa se tornasse um caso de sucesso no interior
dos sistemas. Esses elementos fizeram com que, desde o início, os
principais líderes do Cresol encarassem o Pronaf como uma política
pública de crédito, e não como uma ação paternalista de governo e,
portanto, sem controle sobre o ressarcimento dos empréstimos.
Em 2007, o total de Pronaf disponibilizado pelas duas centrais foi de, aproximadamente, R$ 273,8 milhões. Nesse ano, na
Cresol Baser, o número total de contratos de Pronaf chegou a 24,6
mil e o volume de recursos aplicados a R$ 147,7 milhões (R$ 102,7
12 O banco cooperativo Rabobank – Cooperatieve Raiffeisen Boerenleenbank – foi
fundado em 1972, baseado nos ideais de um dos maiores precursores do cooperativismo de crédito, o alemão Friedrich Raiffeisen. O modelo concebido
por Raiffeisen foi implantado, em meados do século XIX, em várias partes da
Alemanha e depois reproduzido em outros países da Europa.
322
p. 301 – 331
Inclusão financeira e desenvolvimento rural: A importância das organizações territoriais
milhões em custeio e R$ 45,1 milhões em investimento). Na Cresol
Central foram efetuados 24,4 mil contratos e disponibilizados R$
126 milhões (R$ 98,1 milhões de custeio e R$ 27,9 milhões de investimento). Tais números colocam o Pronaf como o principal produto
disponibilizado pelos Sistemas Cresol, embora nos últimos anos sua
presença venha diminuindo em termos relativos. Se em 2003, os
repasses do Programa representavam em torno de 75% dos créditos
concedidos, em julho de 2007 eles compunham 69,8 % da carteira
total do Cresol Baser (PLANET RATING, 2004, 2008).
Do ssiê
Ademir Antonio Cazella • Fábio Luiz Búrigo
No campo educacional, as ações conjuntas dos sistemas
Cresol são também importantes quando analisadas sob a ótica do
desenvolvimento e formação de capital social. Em 2005, a Cresol
Baser criou o Instituto de Formação do Cooperativismo Solidário
(Infocos), pelo qual são promovidas diversas ações de capacitação
que atendem diferentes níveis de formação. São oferecidas desde a
formação básica para os membros de novas cooperativas até cursos
à distância, que envolvem centenas de cooperados distribuídos em
diversos municípios de Santa Catarina e do Paraná. Com a tutela
de universidades públicas e privadas, as duas centrais Cresol promovem também cursos específicos direcionados aos dirigentes e
funcionários. Alguns desses programas formativos oferecem títulos
de pós-graduação ou de especialização pós-médio, dependendo do
nível de escolaridade dos participantes.
Porém, a capacidade que os Sistemas Cresol vêm demonstrando em gerar inovações no campo institucional-financeiro e
educacional em benefício da agricultura familiar não encontra correspondência no campo técnico-produtivo. Apesar dos dirigentes
afirmarem que suas cooperativas jamais deixaram de apoiar projetos
consistentes e inovadores em termos ambientais, os recursos do
Pronaf Custeio continuam sendo destinados basicamente para a
viabilização de sistemas produtivos considerados convencionais. Na
maioria dos casos, esses recursos são aplicados para o financiamento
das culturas do milho, feijão e soja e para atividades com a produção
de leite, a criação de frangos e suínos. Os cultivos orgânicos, sem
o uso de insumos químicos sintéticos, são ainda minoritários nas
carteiras das cooperativas, o que significa que essas organizações
p. 301 – 331
323
Nº 14 – abril de 2009
têm limitações para conceber e difundir um modelo de agricultura
diferenciado do sistema produtivista, que se baseia no uso intensivo
de insumos agroquímicos sintéticos.
A contradição entre o discurso dos dirigentes e o que se
observa nos financiamentos das cooperativas de crédito solidárias
demonstra que as mudanças técnico-produtivas possuem condicionantes complexos e envolvem aspectos que estão, muitas vezes,
acima da capacidade de intervenção dessas organizações. Estudando o Sistema Cresol, Junqueira (2003, p.99-100) assinala que
“a estrutura de incentivos que possibilite mudanças institucionais
necessárias à adoção de novas práticas produtivas deve-se incorporar aos métodos e às decisões dos formuladores de políticas e
agentes econômicos. Sob este ponto de vista foge-se, em parte,
da governabilidade do sistema”. Percebe-se, assim, que a implantação e a condução de novos sistemas produtivos está diretamente
vinculada à matriz técnica e política predominante no interior das
principais redes de serviços de assistência técnica e extensão rural
existentes no país. Até o momento, o desenho institucional dos
serviços de extensão rural, assistência técnica e educação rural
voltados à agricultura familiar não conseguiu suplantar os descompassos relacionados às suas atribuições e competências, e menos
ainda com sua tradição tecnicista e difusionista.
4. Conclusões
A perspectiva do desenvolvimento territorial sustentável
passa pela construção de novos ambientes institucionais e o fortalecimento de interdependências entre setores econômicos e entre
as esferas políticas, sociais e espaciais. Dotar os territórios rurais
brasileiros, por exemplo, de serviços financeiros bem estruturados
e capazes de atender a demanda por crédito da parcela da população excluída do sistema bancário representa uma ação de primeira
ordem nessa direção. Em outras palavras, fortalecer a lógica de desenvolvimento territorial sustentável pressupõe ampliar as possibilidades das pessoas e das organizações de manejar os instrumentos
e os recursos financeiros endógenos, bem como ampliar o acesso
a programas de agências externas.
324
p. 301 – 331
Inclusão financeira e desenvolvimento rural: A importância das organizações territoriais
A falta de compreensão e de capacidade para operar estrategicamente nesse campo apenas demonstra a fase embrionária das
instâncias de planejamento implicadas com o enfoque do desenvolvimento territorial sustentável no Brasil. Muitas delas ainda não são
concebidas como arenas voltadas à reflexão crítica e à formulação
de projetos criativos de interesse comum. Uma análise sobre como
são concebidos e executados os projetos e como se dão as dinâmicas
de decisão dos colegiados gestores permite afirmar que, em geral,
seus componentes ou são afeitos ao clientelismo ou são induzidos
a se comportar como “agentes da sua própria causa”, preocupados,
sobretudo, em garantir uma fatia de recursos públicos em disputa
(CAZELLA & BÚRIGO, 2008b e 2009). Esse perfil de gestão e a falta de
proximidade das organizações financeiras envolvidas nos processos
de DTS reforça o descompromisso coletivo com a viabilidade dos
empreendimentos financiados.
Do ssiê
Ademir Antonio Cazella • Fábio Luiz Búrigo
Este estudo demonstrou que novos desafios precisam ser superados para se avançar na construção de sistemas de financiamento
do desenvolvimento territorial sustentável. Em primeiro lugar, tanto
as cooperativas de crédito dos Sistemas Cresol, quanto o Crediamigo
não conseguiram alcançar de forma contundente os estratos mais
pobres da população. O acesso a recursos subsidiados de programas
públicos carece de contrapartidas dos agentes financeiros locais e
de suas organizações de apoio no sentido de ousar na concepção e
ampliação de iniciativas de inclusão econômico-produtiva e financeira “dos mais pobres entre os pobres” e de preservação ambiental.
Trata-se aqui de implementar mecanismos de contratualização de
políticas públicas, que se baseiem “em compromissos recíprocos
entre o Estado, a Sociedade Civil e as famílias rurais e de agricultores
atendidos” (CAZELLA, BONNAL & MALUF, p.300).
Em segundo, as cooperativas afiliadas aos Sistemas Cresol
caracterizam-se por uma intervenção setorial, contemplando de
forma marginal as demais atividades econômicas existentes no meio
rural. Soma-se a isso a fragilidade das intervenções voltadas para
um estilo de desenvolvimento agrícola mais respeitoso do meioambiente. Essa falta de inovações no padrão dos financiamentos
revela também as debilidades das organizações de extensão rural e
assistência técnica, que não tem conseguido adequar-se às necessip. 301 – 331
325
Nº 14 – abril de 2009
dades dos agricultores familiares e demais empreendedores rurais.
Não somente as tentativas de criação e consolidação de cooperativas, associações e empresas de prestação de serviços têm registrado
avanços pouco significativos, como a maioria dos órgãos de governo
de pesquisa e extensão rural encontra-se pouco preparado para
conceber e fomentar projetos inovadores no meio rural.
Os avanços e as fragilidades aqui apontados apenas reforçam
a necessidade de se criar sinergias entre as políticas públicas de
crédito e os agentes financiadores do desenvolvimento. Embora as
experiências do Crediamigo e dos Sistemas Cresol incluam ao sistema
financeiro nacional uma pequena parcela de microempreendedores
e da população de baixa renda, sua solidez e resultados positivos
representam um convite a dirigentes e gestores de instituições de desenvolvimento rural a conhecê-las nos seus pormenores. Os esforços
de diversos agentes financeiros públicos e privados para aprofundar
a bancarização dos segmentos pobres poderiam inspirar-se nas metodologias aqui assinaladas. Certamente, as tentativas de aumentar
a inclusão social adotadas por esses bancos precisam ser efetuadas
de maneira mais coerente com os preceitos do DTS. Tais mudanças
exigem mudanças de conduta de agentes financeiros que, apesar de
defenderem no discurso seu papel de responsabilidade socioambiental, na prática mantêm uma intervenção clássica e conservadora.
O fato do Crediamigo e do Cresol estarem estrategicamente
localizadas nas regiões Nordeste e Sul pode representar uma possibilidade inusitada de aprendizado e transferência no interior do país de
tecnologias de gestão e de participação social. A difusão do cooperativismo de crédito rural no Nordeste e Norte e a adoção dos preceitos de
gestão do microcrédito pelas instituições financeiras do Sul ampliariam
de forma consistente o processo de inclusão financeira de segmentos
sociais de baixa renda. Tais articulações são também fundamentais para
se aumentar as capacidades institucionais e a qualidade dos projetos
de desenvolvimento das demais regiões brasileiras.
O cooperativismo de crédito solidário já cumpre o papel
de inspirar a estruturação de sistemas financeiros semelhantes
em regiões do país sem tradição nessa área. Suas características
de estímulo a auto-gestão representram elementos fundamentais
para a formação de capital social e de novos arranjos produtivos
326
p. 301 – 331
Inclusão financeira e desenvolvimento rural: A importância das organizações territoriais
nos territórios. Porém, é importante que as estratégias de constituição de novas cooperativas sigam metodologias apropriadas de
sensibilização e de capacitação técnica. O arranjo institucional a ser
formado precisa envolver adequadamente os distintos segmentos
sociais e as organizações existentes no território. Isso é fundamental
para que a futura cooperativa de crédito não se torne apenas uma
organização financeira local, mas possa desempenhar com sucesso
seu papel de instrumento de apoio a um estilo de desenvolvimento
sustentável do ponto de vista econômico, social e ambiental.
Do ssiê
Ademir Antonio Cazella • Fábio Luiz Búrigo
Recebido em 15.2.2009
Aprovado em 25.3.2009
Referências
ABRAMOVAY, R. Alcance e limites das finanças de proximidade no
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Abstract
Financial inclusion and rural development: the importance of
territorial organizations
In this article we analyze conditions for the construction of systems for
financing processes of sustainable land development in rural áreas. In
particular, we look at possibilities and dilemmas surrounding the financial
inclusion of impoverished social segments and for increasing the participation of territorial organizations in the management of these systems.
Based on these two issues, our work looks at empirical experiences that
demonstrate progress made in this direction: the Crediamigo Program of
the Banco do Nordeste and the cooperativism of the “solidarity” credit
form that has sprung up in Brazil’s southern region. We conclude that both
330
p. 301 – 331
Inclusão financeira e desenvolvimento rural: A importância das organizações territoriais
cases present innovative institutional arrangements that have generated
results that have had a relevant impact on the volume of loans, the area
that they reach out to and cover, the percentage of the population attended
and systems of governing. Nonetheless, both must perfect their forms of
action if they are to attend to intersectorial demands thatfocus on the
development of the lands within which they are at work.
Keywords: sustainable land development, financial inclusion, governing
systems.
p. 301 – 331
Do ssiê
Ademir Antonio Cazella • Fábio Luiz Búrigo
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