as cicatrizes de um ciclo fugaz e o início da industrialização

Transcrição

as cicatrizes de um ciclo fugaz e o início da industrialização
A HISTÓRIA DA ECONOMIA BRASILEIRA
Borracha na
amazonia
A S C I C AT R I Z E S D E U M C I C L O F U G A Z E O I N Í C I O D A I N D U S T R I A L I Z A Ç Ã O
A HISTÓRIA DA ECONOMIA BRASILEIRA
Borracha na
amazonia
A S C I C AT R I Z E S D E U M C I C L O F U G A Z E O I N Í C I O D A I N D U S T R I A L I Z A Ç Ã O
A HISTÓRIA DA ECONOMIA BRASILEIRA
Borracha na
amazonia
A S C I C AT R I Z E S D E U M C I C L O F U G A Z E O I N Í C I O D A I N D U S T R I A L I Z A Ç Ã O
RICARDO BUENO
1a EDIÇÃO
QUATTRO PROJETOS
PORTO ALEGRE, RS, BRASIL
NOVEMBRO DE 2012
PROJETO CULTURAL: QUATTRO PROJETOS
REALIZAÇÃO:
QUATTRO PROJETOS I 51 3209.7568
www.quattroprojetos.com.br I [email protected]
COORDENAÇÃO EXECUTIVA: FLAVIO ENNINGER
COORDENAÇÃO EDITORIAL: RICARDO BUENO – ALMA DA PALAVRA
CONSULTORIA: VOLTAIRE SCHILLING
TEXTOS: RICARDO BUENO E VOLTAIRE SCHILLING (CAPÍTULOS 1 E 3 E BOX CAPÍTULO 6 – “À MARGEM DA HISTÓRIA?”)
REVISÃO: FERNANDA PACHECO – ALMA DA PALAVRA
PROJETO GRÁFICO E DIREÇÃO DE ARTE: LUCIANE TRINDADE
IMPRESSÃO: GRÁFICA E EDITORA PALLOTTI
PATROCÍNIO
REALIZAÇÃO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP )
B928b
Bueno, Ricardo
Borracha na Amazônia : as cicatrizes de um ciclo fugaz e o início
da industrialização / Ricardo Bueno. – 1. ed. – Porto Alegre :
Quattro Projetos, 2012.
128 p. : fots. col. ; 23 x 31 cm. – (A história da economia
brasileira ; v.2).
História do ciclo da borracha e sua importância no cenário
histórico e econômico da Amazônia.
ISBN 978-85-64393-05-9
1. Amazônia – Borracha. 2. Economia – Ciclo da borracha.
Borracha – Economia. I. Título. II. Coleção.
CDU 316.31(81)
33(81-928.8)(091)
Bibliotecária Responsável: Denise Pazetto CRB-10/1216 51 30297042
construindo
a cultura
A Case New Holland pertence a uma categoria especial de empresas: aquelas
que ajudam a moldar o mundo. A CNH produz máquinas agrícolas, fundamentais no
plantio, cultivo e colheita de alimentos, e equipamentos para a construção, utilizados
em larga escala em vários tipos de obras.
Em seus mais de 60 anos no Brasil, a CNH sempre desempenhou um papel importante no desenvolvimento agrícola nacional. Suas soluções para a maior eficiência
da agricultura e da produtividade do campo contribuíram para que o país conseguisse
usufruir do seu imenso potencial agrícola, ajudando o Brasil a se tornar um dos líderes
mundiais na produção de alimentos.
A CNH também participou, de forma ativa, de grandes momentos da história do
país, como a consolidação de Brasília, a implantação de importantes rodovias federais
e de diversas outras obras fundamentais na interiorização do desenvolvimento, além
da construção das usinas de Furnas e de Itaipu.
Investir em hidrelétricas era um dos pilares do governo do então presidente Getúlio
Vargas. Mesmo sem ver as principais obras prontas, ele vislumbrou, no Estado Novo,
uma grande oportunidade para reduzir a dependência do país desses “ciclos”, em prol
do avanço da industrialização.
O último ciclo vivido pelo presidente Vargas foi o da borracha, já na sua segunda
fase, no final dos anos 1940. Mas a primeira grande participação da borracha na história
do Brasil aconteceu no final do século XIX e no início do século XX, na Amazônia,
quando a exploração deste vegetal proporcionou a atração de estrangeiros em busca
de riquezas e a expansão da colonização, transformando sociedades e culturas e impulsionando o crescimento de importantes cidades como Manaus, Belém e Porto Velho,
além da compra e depois criação do Estado do Acre.
O “ciclo da borracha” e os “primeiros passos da industrialização brasileira” foram
períodos riquíssimos da história do país, tão importantes que eles são os dois principais temas do livro Borracha na Amazônia – as cicatrizes de um ciclo fugaz e o início da
industrialização”, que dá sequência, com maestria, à coleção “A História da Economia
Brasileira”.
A primeira publicação, lançada em 2010, aborda os ciclos do pau-brasil, ouro
e cana-de-açúcar. Já o ciclo do café foi o tema do segundo livro, lançado em 2011.
Para 2013, a nova obra abordará a industrialização e o nacionalismo dos anos 50-60,
entrelaçado com movimentos culturais. Toda a coleção é patrocinada pela CNH, com
o apoio da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura.
Com ações como esta, a Case New Holland mostra que seu papel não se limita à
construção física, mas também à construção cultural de nosso país.
Esta publicação comemora também o 20º ano do Prêmio CNH de Jornalismo
Econômico.
VALENTINO RIZZIOLI
PRESIDENTE DA CASE NEW HOLLAND E VICE-PRESIDENTE EXECUTIVO DA FIAT PARA A AMÉRICA LATINA
sumário
amazônia:
da conquista
à integração
ouro branco:
martírio,riqueza
e cultura
a conquista
do acre
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32
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introdução 14
trilhos no
inferno
verde
frustração e
abandono em
meio à floresta
os primeiros
passos da
industrialização
70
94
112
fontes consultadas 122
sobre contadores de
histórias
POR RICARDO BUENO
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Há uma máxima no mundo da comunicação
que diz o seguinte: para que um jornalista consiga
ter sucesso em sua profissão, é necessário que ele
seja um bom contador de histórias. Para tanto,
além de talento na apuração e, depois, na narrativa, é preciso que ele goste de contá-las – toda
e qualquer história. Evidentemente o jornalismo
pressupõe lidar com fatos (ou as versões possíveis
de serem levantadas e comprovadas sobre eles),
diferentemente da literatura, que na construção de
uma narrativa pode trabalhar com a realidade, com
a ficção ou com ambas, simultaneamente. Mas o
que significa, afinal, ser bem-sucedido como jornalista? Tal e qual um romancista, o segredo está em
conseguir prender a atenção do leitor, conquistar
seu interesse, estabelecer um canal de identificação
dele com a narrativa, de forma a que se garanta que
a informação/história seja transmitida na íntegra.
A posterior avaliação sobre o que foi lido cabe ao
leitor, que pode gostar, não gostar, acreditar, não
acreditar. Acontece que, mesmo para bons apuradores e contadores de histórias, se não houver
um enredo minimamente atraente, dificilmente a
conexão com o leitor/interlocutor vai funcionar.
Mas há também certas histórias que, quase independentemente da
forma como são contadas ou de quem as conta, por si só se sustentam,
tal a carga de dramaticidade que carregam, tal a riqueza de personagens
interessantes, conflitos, mistérios, sutilezas e curiosidades que as cercam.
Este é o caso do chamado ciclo da borracha, uma das atividades econômicas
mais relevantes na história de pouco mais de 500 anos do Brasil. Trata-se
de um episódio cujas tramas e dramas paralelos à atividade econômica
em si rendem não um, mas vários romances – alguns dos quais, inclusive,
já foram escritos; que rendem, como já renderam, muitos livros escritos
também por historiadores. Período esse da nossa história que, por mais que
se escreva e leia sobre ele, a sensação é a de que sempre há a possibilidade
de um novo olhar, a remexer e, quem sabe, reescrever o passado.
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introdução
Ainda que à história da extração e da exportação da borracha no
Brasil se possa, com relativa adequação, usar a palavra ciclo como definidora – no sentido de um processo econômico que nasceu, cresceu,
expandiu-se e, de certa forma, encerrou-se, tudo isso em curtíssimo
espaço de tempo –, a realidade é que os fatos históricos que se correlacionam, para quem busca entender o que efetivamente representou
a saga da extração do látex da hevea brasiliensis, são um terreno farto.
A começar pelos segredos, mistérios e fantasias que ainda hoje
envolvem a Amazônia, suas dimensões colossais, suas peculiaridades
dos pontos de vista geográfico, biológico, antropológico. Acrescente-se a esse cenário uma árvore de lindas e delicadas flores, que no
território amazônico se distribui de forma bastante esparsa, apenas
três ou quatro em um hectare, mas que esconde por trás de sua casca
um líquido precioso, cuja forma de extração, ao menos em meados
do século XIX, exigia de um ser humano uma capacidade quase incomensurável de resistência física e psicológica para sobreviver em
meio à floresta. Homens esses, quase todos, que chegavam fugidos
do flagelo de secas inclementes no Nordeste brasileiro, e que talvez
nem em sonho pudessem imaginar o significado para a humanidade
daquele gesto simples de abrir sulcos em algumas dezenas de árvores,
colocar copos para recolher o látex, e depois transformar o líquido em
estranhas bolas elásticas, mas resistentes.
Junte-se a esses personagens alguns outros, encarnados pelos homens
que os controlavam – e que de certa forma os aprisionavam –, e também os
patrões destes intermediários, donos de grandes terras ou investidores internacionais. Tempere essa relação de trabalho desigual com pitadas de muito,
muito dinheiro acumulado, que proporcionaria a transformação, quase da
noite para o dia, de duas pequenas e pacatas cidades do Norte brasileiro
em metrópoles modernas, dos pontos de vista urbanístico, cultural e social.
Faça uma pausa para tentar entender como se deu a luta, na floresta
e nos gabinetes dos diplomatas, pela agregação de um território que até
então pertencia a um país vizinho, o qual também se empenhava na
luta por mais e mais território de onde pudesse extrair a matéria-prima
da borracha, e que ansiava, mais do que tudo, por uma ligação com
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OS FATOS HISTÓRICOS QUE SE
CORRELACIONAM SÃO UM TERRENO
FARTO PARA QUEM TENTA ENTENDER OS
IMPACTOS DO CICLO DA BORRACHA
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introdução
NÃO HÁ UMA HISTÓRIA DO CICLO
DA BORRACHA, E SIM VÁRIAS LEITURAS
DAQUELE MOMENTO HISTÓRICO
E DAS CICATRIZES QUE DEIXOU
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o mar – qualquer mar. Depois, imagine que alguém teve a ideia de
construir na região uma ferrovia, talvez desconhecendo tão inóspito
cenário, cortado por rios e corredeiras, onde doenças as mais variadas
e pequenos insetos disputam, ainda hoje, o privilégio de aniquilar a
saúde de qualquer ser humano que por ali permaneça por mais de três
meses. Tente calcular o número de brasileiros e de muitos estrangeiros
que por aqui aportaram para trabalhar nessa obra insana, os quais
perderam a vida em meio a febres torturantes, chuvas torrenciais e
índios hostis, enquanto os dormentes eram assentados.
Avance no tempo e calcule o tamanho dos sonhos e ambições
do empreendedor que transformou não apenas a forma como o ser
humano se locomovia dentro das cidades, mas que também revolucionou o modo como uma indústria deveria funcionar. Tente entender a
dimensão de sua frustração ao constatar que os milhões de dólares investidos no cultivo manejado de uma planta como aquela que brotava
no seio da selva amazônica estavam sendo implacavelmente devorados
por uma pequena criatura da natureza, apelidada de mal-das-folhas.
Siga o percurso da história, e reencontre novas levas de nordestinos
dirigindo-se para a Amazônia, mais uma vez seduzidos pelo sonho de
fazer fortuna na floresta, mas também de certa forma ludibriados por
uma campanha governamental que apelou para o seu patriotismo,
em nome de uma guerra que eles não sabiam exatamente qual era.
Costure tudo isso com o enredo de um país que buscava alternativas
a um modelo baseado na economia rural, e que tentava dar seus primeiros
passos rumo à industrialização e à criação de um mercado interno sólido,
reduzindo, assim, sua dependência dos oscilantes mercados externos.
Ao fim e ao cabo será fácil concluir que não há uma história do
ciclo da borracha no Brasil, e sim várias possíveis leituras daquele incrível momento histórico. A que está agora em suas mãos é apenas uma
delas. Esperamos conquistar sua atenção daqui até a última página.
Se assim acontecer, a missão desta série sobre ciclos econômicos no
Brasil e sua correlação com a cultura e a sociedade estará mais uma
vez sendo cumprida. O que não deixa de ser um enorme privilégio para
um jornalista que gosta de contar uma boa história – qualquer uma.
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amazônia
da conquista
à integração
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amazônia: da conquista à integração
A Amazônia é a maior região florestal e hidrográfica do mundo. Ocupa grande parte do hemisfério
setentrional da América do Sul, correspondendo
a 42% do território brasileiro. Estende-se das margens do Oceano Atlântico, no leste, até o sopé da
Cordilheira dos Andes, no oeste. Espalha-se pelas
Guianas, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e
Bolívia, perfazendo mais de 6 milhões de km2. O
vale amazonense é, ao sul, abastecido pelos rios que
descem do Planalto Central brasileiro e dos que
vêm da região das Guianas ao norte, e pelos filetes
de água gelada que se desprendem da “corcova
andina”, fazendo com que termine por assumir –
como constatou o geólogo americano C.F. Marbut,
que visitou-o em 1923 – a forma de um leque, pelo
qual escorre 1/5 da água doce do planeta. O ensaísta
nortista Raymundo Moraes, por sua vez, descreveu
o vale como “o anfiteatro amazonense”.
Devido a sua inacessibilidade, insalubridade e as dificuldades para
explorá-la economicamente, a Amazônia é uma das áreas mais subpovoadas do globo. É um “deserto verde”, pertencente a uma época em que a
Terra ainda amanhecia abrigando uma das populações mais primitivas que
se conhece – o homem neolítico em estado puro. Para outros, como Pedro
de Rates Hanequim, que viveu por mais de 20 anos no Brasil, havia sido
a morada de Adão e onde se encontrava a Árvore da Vida. Tanta certeza
tinha de ter habitado o Paraíso Terreal – sendo o Amazonas o maior rio do
Éden – que, ao voltar a Portugal, deixou-se processar e executar – “afogado
e queimado” – em 1744, por ordem de um Tribunal do Santo Ofício pelo
crime de heresia e apostasia, sem jamais ter pedido clemência.
Os diversos governos, brasileiros e vizinhos, até hoje procuram
integrá-la, promovendo sua ocupação, tanto por garimpeiros, por
extrativistas, por sertanejos, criadores de gado ou empresas de mineração. O resultado disso são as intensas queimadas, ou coivaras,
antigo método indígena de limpar o terreno para a lavoura, além de
longas estradas que cortam as matas em todas as direções. Do Mato
Grosso a Roraima, a fumaça toma conta dos ares e, por vezes, escapa
completamente ao controle. Este é um dos temores do ecólogo Robert Goodland e do botânico Howard Irwin: o de que o inferno verde
torne-se um deserto vermelho, conforme o subtítulo do livro deles.
O destino da Amazônia, portanto, tem preocupado as mais diversas
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“TRATA-SE [A AMAZÔNIA] DE UM GRANDIOSO ANFITEATRO
DE TERRAS BAIXAS, ENCERRADO ENTRE O ARCO INTERIOR DAS TERRAS
SUBANDINAS E O PLANALTO DAS GUIANAS E O PLANALTO BRASILEIRO.”
AZIZ NACIB AB’SÁBER
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amazônia: da conquista à integração
A FLORESTA AMAZÔNICA NA VISÃO DE JOSEPH LEONE RIGHINI
instituições, tanto a Organização das Nações Unidas (ONU), como as organizações não-governamentais ambientalistas, que temem por um desastre
irreversível, a qualquer momento. O governo brasileiro sofre pressões de
todos os lados para tentar coibir a ocupação predatória, ao mesmo tempo
em que é politicamente constrangido pelos interesses internos no sentido
de que proporcione vantagens, isenções e benefícios a grupos, empresas
ou classes, para acelerar sua exploração econômica. Nesta tensão entre os
apelos internacionais e a satisfação das necessidades locais de crescimento,
Brasília vai alternando, ao longo dos anos, suas políticas para a região.
PRIMEIRAS EXPEDIÇÕES
“Do abismo viu o profundo/ do profundo o paraíso/ do paraíso viu
o mundo/ e do mundo viu o que quis”
Gil Vicente, 1539
As primeiras notícias que os espanhóis tiveram da existência de uma
imensa região de selvas do outro lado dos Andes foi-lhes dada pelos próprios
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O RIO AMAZONAS À ESQUERDA, EM MAPA DE 1579, DE JACQUES DE VAU DE CLAYE
nativos em Quito e em Cuzco. Graças a sua fantasia de homens medievais,
os conquistadores imaginaram de imediato que aquela área misteriosa e
desconhecida abrigava o lendário El Dorado, uma serra repleta de ouro
puro. Bastava chegar lá e carregar o que desse. É certo que o grande rio
já era conhecido desde que Vicente Pinzón navegou na sua foz, em 1500,
chamando-o de Mar Dulce, mas quem primeiro organizou uma expedição
partindo foi Gonzalo Pizarro, irmão do conquistador do Peru.
Partindo de Quito, em 1541, comandando uma expedição com 150
soldados, 4 mil índios e 3 mil animais de tropa, inclusive com alpacas
e lhamas, Gonzalo conseguiu transpassar os Andes por dificílimos
caminhos, chegando às cabeceiras do rio Amazonas. As dificuldades
encontradas fizeram com que ele destacasse Francisco Orellana para
que, utilizando um barco lá mesmo construído, desse prosseguimento
à missão exploratória. A viagem, assim, teve seguimento, até que
atingiu a desembocadura do grande rio no Atlântico, em 1542, depois
de terem sido percorridos por inteiro seus 5.825 km.
Deve-se, pois, a Orellana a denominação do lugar. Deparando-se, nas
margens do rio, com um grupo de belicosas índias que acompanhavam os
homens em combate, chamou-as de amazonas, confundindo-as com as
ORELLANA CHAMOU
AS ÍNDIAS QUE
COMBATIAM AO
LADO DE HOMENS DE
AMAZONAS,
COMO AS LENDÁRIAS
GUERREIRAS DA
MITOLOGIA GREGA
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amazônia: da conquista à integração
lendárias guerreiras da mitologia grega. Ao retornar à Espanha, Orellana
conseguiu ser nomeado adelantado, organizando uma nova sortida que o
levou ao naufrágio e morte a bordo de um bergantim, provavelmente nas
proximidades de Macapá, em 1550.
O feito de navegação de Orellana repetiu-se depois, em 1561, por
Lopo de Aguirre, um celerado e doido que assassinou Pedro de Ursua, o
chefe da expedição, aceitando ser o rei dos seus seguidores, os marañones.
FIXAÇÃO E PRIMEIRAS MISSÕES
“Esta incorporação definitiva do Amazonas ao Brasil fez-se com
as ‘jornadas’ dos capitães, com as ‘entradas’ dos colonos e com
a ‘catequese’ dos missionários. Tríplice elemento, oficial, particular,
religioso, este simultaneamente particular e oficial, interdependentes,
todos três, e nem sempre concordes.”
Serafim Leite, S.J. – História da Companhia de Jesus
no Brasil, Tomo III, 1943
SOMENTE EM 1697,
APÓS UMA LONGA
GUERRA COMERCIAL
E TECNOLÓGICA,
AFIXARAM-SE
AS FRONTEIRAS
DA REGIÃO
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Não demorou muito para que outros desbravadores viessem instalar feitorias na região amazônica, preferencialmente na embocadura
do grande rio e suas circunvizinhanças. A presença dos heréticos
ingleses e holandeses nas Guianas seguiu-se pela dos franceses no
Golfão do Maranhão, onde fundaram o forte de São Luís em 1612.
As autoridades da União Ibérica (entre 1580-1640, quando Espanha
e Portugal estavam sob o mesmo governo) decidiram por expulsar os
franceses de São Luís e fixar-se em definitivo no estuário amazônico.
A cidade caiu em mãos portuguesas em 1615 e, no ano seguinte,
em 16 de janeiro de 1616, o capitão-mor Caldeira Castelo Branco
fundou, na região que denominou de Lusitânia Feliz, o forte Presépio
de Belém, a casa forte que deu origem à capital do Pará. Cidade essa,
na baía de Guará, que se tornou a sentinela portuguesa na embocadura do Grande Rio e o trampolim para a conquista da hinterlândia
amazonense.
Uma longa guerra – comercial e teológica – travou-se na região, até
que em 1697 afixou-se mais ou menos a fronteira entre os interesses
holandeses, ingleses e franceses de um lado, do lado das Guianas, e os
lusitanos do outro, do lado do Amapá, tendo o cabo Orange, no rio
Oiapoque, como o acidente geográfico divisor, acordo esse celebrado
no Tratado de Lisboa, de 1701. As portas do Amazonas, desde então,
abriram-se exclusivamente aos navegantes portugueses, que passaram
a deter o monopólio sobre o vale amazônico. Em 1639, o capitão
Pedro Teixeira, partindo do rio Tocantins, atingiu a extremidade da
sua investida no rio Napo, seguindo dali até Quito, no Equador. Em
seguida, entre 1648 e 1651, foi a vez de Antônio Raposo Tavares, um
reinól dedicado às bandeiras que marchou por 10 mil quilômetros
Amazonas adentro.
MAPA DAS GUIANAS E REGIÃO AMAZÔNICA, DE JAN JANSSON (1588-1664)
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amazônia: da conquista à integração
DUROU MAIS DE
UM SÉCULO A LUTA
ENTRE MISSIONÁRIOS
E MAMELUCOS
ESCRAVAGISTAS PELO
BRAÇO INDÍGENA
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Paralelo aos capitães e desbravadores privados, assentaram-se as
missões de jesuítas, franciscanos, mercedários, carmelitas e seculares,
que se espalharam pelas vastas áreas entre os rios Solimões e Tapajós.
Os missionários foram convocados para catequizar os gentios e também
evitar a possível influência dos hereges protestantes. A orientação das
ordens religiosas, por lá já encontradas em 1570, era de que aldeassem
os nativos, geralmente dispersos em amplos territórios e divididos entre
as nações tupinambás, urubus, gamelas, timbiras, apinajés, jurunas,
caiapós, carajás, aimorés, munducurus, tapajós, aruaques, turumás,
murás, jurimaguás, omáquas, manaus, barés e ianomâmis, para melhor
evangelizá-los.
Quase que imediatamente iniciou-se um conflito entre as chamadas “tropas de resgate”, chefiadas por mamelucos escravagistas,
e os padres. A disputa se estendeu por mais de século, na luta pelo
braço indígena. Os religiosos desejavam-nos orando a Deus e a Cristo,
enquanto os colonos queriam-nos no eito, suando sobre a lavoura e
a extração. Os sacerdotes, mais influentes, conseguiram uma série de
decretos, provisões, leis e alvarás reais atribuindo-lhes autoridade sobre
os nativos e proibindo sua escravidão. Foi o caso da lei de 30 de julho
de 1609, que determinava que “fossem os índios tratados como pessoas
livres, sem serem constrangidos a executar serviços contra a vontade”,
desde que lhes divulgassem a fé – a qual, obviamente, poucas vezes foi
obedecida. Como defensor da causa dos gentios, destacou-se o Padre
Antônio Vieira, o grande sermonista, que desembarcou no Maranhão
em 1653, a quem logo os nativos chamaram de paiacu, o grande pai.
POMBAL (AO LADO) EXPULSOU
OS JESUÍTAS DA AMAZÔNIA.
NA PÁGINA AO LADO, OBRA
DE JACQUES BURKHARDT
RETRATA MANAUS EM 1865
OCUPAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO
Em 1640, Portugal recuperou sua independência, e a Espanha
voltou a ser sua adversária. Novos fortins foram instalados nas margens do Solimões e nos encontros dos rios, como o forte de São José
do Rio Negro, em 1699, onde bem mais tarde, nas suas proximidades,
surgiu Manaus. Esse período foi marcado pela penetração extrativista
e coletora atrás das “drogas do sertão” e, também pela captura, por
bandeirantes vindos do Sul, da mão de obra indígena tornada escrava.
A resistência dos padres ao costume das “repartições”, onde os
índios eram divididos entre os reinóis, agravada pela prática monopolista da Companhia de Comércio do Maranhão e Grão-Pará, ativada
em 1682, fez com que uma revolta eclodisse no Maranhão: a rebelião
– antijesuítica e antimonopolista – do senhor de engenho Manuel
Beckmann, a Revolta de Bequimão, que morreu executado em 1685.
Somente em 1750, pelo Tratado de Madri, Espanha e Portugal
acordaram em relação às suas fronteiras. De Lisboa, o Marquês do
Pombal, o todo-poderoso primeiro-ministro (1756-1777), enviara
já o seu irmão Mendonça Furtado, em 1751, para supervisionar os
negócios da companhia monopolista na Amazônia. A época do despotismo ilustrado, representada por Pombal, na Metrópole, e por seu
irmão, no Grão-Pará (como politicamente denominou-se a região do
Amazonas), foi extremamente ativa. Os jesuítas que lá estavam desde
1607 foram expulsos em 1760. Novas lavouras foram introduzidas,
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amazônia: da conquista à integração
PASSAGEM DA FAMÍLIA REAL PELO PORTO DE BELÉM, EM 1807, É SAUDADA COM FESTA
PADRE ANTONIO VIEIRA E SEUS SERMÕES: DEFESA DA CAUSA DOS GENTIOS NA AMAZÔNIA
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como a do algodão, a do tabaco, a da cana-de-açúcar e a do café
(trazido por Francisco de Melo Palheta – ver volume 2 desta coleção,
Dos cafezais, nasce um novo Brasil). “Lusitanizou-se” o nome das cidades, abandonando-se a toponímica brasílica, e a língua portuguesa
passou a ser ensinada. “Liberaram-se os silvícolas” dos seus encargos
nos aldeamentos, bem como um pequeno número de colonos açoritas
foi distribuído entre Belém, Santarém e Ourém, para viabilizar os
empreendimentos.
Administrativamente, a região sofreu uma reforma: pelo ato régio
de 20 de agosto de 1772, dividiu-se o antigo Estado do Grão-Pará –
existente desde 1618 – entre o Estado do Maranhão e Piauí (com
capital em São Luís) e o Estado do Grão-Pará e do Rio Negro (atual
estado do Amazonas, com sede em Belém), ambos subordinados diretamente a Lisboa. A integração política da Amazônia com o resto
do Brasil só deu seus primeiros passos com a instalação da corte de D.
João VI no Rio de Janeiro, em 1808, quando então as duas capitais,
Belém e Manaus, se lhe subordinaram.
Os portugueses, dentro de um rígido mercantilismo, sempre
mantiveram uma política de clausura das colônias. A Amazônia não
foi exceção. Nem mesmo ao célebre naturalista alemão Alexander
von Humboldt, que visitou a América entre 1799 e 1804 (dele, a
propósito, é a expressão “hileia amazônica”) foi permitido penetrar
no lado português da floresta. Essa política começou a ser reformada
com a vinda da família real para o Brasil, e com o decreto da Abertura dos Portos às Nações Amigas. Durante o império, começaram
a chegar ao país inúmeros naturalistas europeus, entre eles o francês
Auguste Saint-Hilaire e os germânicos Spix e Martius, que coletaram
informações sobre a botânica amazonense.
Mas o imperador D. Pedro II, apesar das pressões internacionais,
negou-se, pelo menos até 7 de setembro de 1867, a liberar a navegação do grande rio aos estrangeiros, tarefa que desde 1853 estava ao
encargo monopolista de uma empresa do Barão de Mauá. A propósito,
a abertura do rio Amazonas à navegação estrangeira, quebrando com
o monopólio de Mauá, foi um dos grandes debates políticos e ideológicos da segunda metade do século XIX, no qual se antepuseram
liberais contra os mercantilistas. Três anos antes, em 1850, em uma
outra reforma administrativa, criara-se a Província do Amazonas,
separando-a do Grão-Pará, tendo Manaus como sua capital.
A posição brasileira sobre a Amazônia era – e ainda é – ambígua.
De um lado, reconhecia-se a escassez de recursos humanos e financeiros para explorar o continente verde, e do outro, impedia-se que
estrangeiros, por meio de acordos e tratados, o fizessem. Uma das
razões mais fortes – talvez por dizer respeito às raízes psicológicas, ao
imaginário popular – é que a maioria dos brasileiros vê naquela região,
no seu verdor, nos seus imensos rios e matas, um dos símbolos maiores
da nacionalidade, tendo dificuldades em aceitar sua exploração econômica por mãos forâneas. Foi então que se deu o ciclo da borracha.
INTEGRAÇÃO POLÍTICA
DA AMAZÔNIA DEU
SEUS PRIMEIROS
PASSOS A PARTIR
DE 1808, COM A
CHEGADA DA FAMÍLIA
REAL AO BRASIL
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ouro branco:
martírio
riqueza
e cultura
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ouro branco: martírio, riqueza e cultura
Foi em 1743, quando descia o Amazonas, vindo do Equador, que o naturalista francês Charles
Marie de La Condamine tomou contato com uma
árvore grande e descorada, de galhos altos e flores
delicadas. Da planta, que posteriormente seria chamada de Hevea brasiliensis, os nativos extraíam um
líquido leitoso e viscoso. Condamine reparou que
esse líquido, após coagulado, produzia uma substância maleável, de elasticidade e impermeabilidade
sem-par, a qual os índios moldavam na forma de
seringas, botas, garrafas e brinquedos. De volta à
França, com certa quantidade do caoutchouc, como
era chamado na Amazônia, o naturalista tentou
fabricar uma roupa à prova d’água a partir do material, que seguiu importando da Guiana Francesa
para dar suporte a várias experiências. Foi assim que
a substância aos poucos ganhou mais e mais espaço
na Europa, tendo os ingleses, inclusive, percebido
que a goma era excelente para apagar, e então a
batizaram de rubber.
As seringas e galochas deixaram de ser artigos incomuns na Europa
do início do século XIX. Tanto que, em 1827, a Amazônia exportou
31 toneladas de borracha bruta, cifra que em 1830 subiria para 156
toneladas. O problema da matéria-prima, entretanto, era sua sensibilidade a mudanças de temperatura: as botas poderiam tanto ficar
duras como pedra no auge do inverno, como grudentas no calor do
verão. Somente em 1839 Charles Goodyear aperfeiçoou o processo
de vulcanização, o que permitiu usar a borracha em rodas dentadas,
correias, mangueiras, telhas, suspensórios, sapatos e capas de chuva.
Mas o grande boom no consumo da borracha viria mesmo com a
mania da bicicleta, inventada em 1890, seguida da popularização do
automóvel, a partir de 1900 (Ford construiu seu primeiro carro em
1896). A fabricação de pneus, portanto, alteraria completamente o
equilíbrio do mercado de borracha, que durante algumas décadas seria
dominado pela produção amazônica.
No Brasil, apesar do período conhecido como ciclo da borracha
ser comumente identificado como tendo ocorrido entre 1870 e 1910,
constata-se que já a partir de 1840 toda a atividade econômica da
região amazônica passou a girar em torno da extração do látex e da
exportação do produto fabricado a partir de seu manuseio. De acordo
34
GOODYEAR CONSEGUIU ESTABILIZAR QUIMICAMENTE A BORRACHA. ABAIXO, À ESQ., SERINGUEIRO, E À DIR., SEMENTES DA HEVEA
A PARTIR DE 1840 TODA A ATIVIDADE ECONÔMICA DA REGIÃO
AMAZÔNICA PASSOU A GIRAR EM TORNO DA EXTRAÇÃO DO LÁTEX
35
ouro branco: martírio, riqueza e cultura
ESTRADA DE FERRO MADEIRA-MAMORÉ SERIA IMPORTANTE CANAL DE ESCOAMENTO DA PRODUÇÃO DE BORRACHA A PARTIR DE 1912
com Bárbara Weinstein, a penetração em novas zonas produtoras
de borracha tornou-se preocupação especial já na década de 1860.
Com o contínuo crescimento da demanda pelo produto no mercado
mundial, a economia amazônica teve de incrementar sua produção
do único modo que se julgava possível, até então: via expansão física
para seringais ainda não explorados rio acima, especialmente na
província do Amazonas.
Em decorrência, Belém assumiu o papel de principal porto de escoamento da produção gomífera. Mas diz Bárbara Weinstein: “Embora o
Pará continuasse à frente na produção da borracha até anos avançados
da década de 1880, a parcela que lhe cabia na produção total da região
decaiu rapidamente de 1870 em diante. Enquanto durante os primeiros
anos apenas uns poucos municípios paraenses (Breves, Anajás, Melgaço
e Gurupá) haviam respondido pela maior parte da borracha produzida,
na década de 1870 a extração da borracha havia se espalhado para o
oeste, no baixo Xingu e no baixo Tapajós, no Pará, e de maneira ainda
mais impressionante no Amazonas, nas zonas ricas em seringueiras dos
rios Solimões, Madeira, Purus e Juruá”. Segundo Bárbara, embora muito
distantes do mercado exportador de Belém, a densa concentração de
36
PARÁ DOMINOU A PRODUÇÃO DE BORRACHA ATÉ MEADOS DOS ANOS 1880
seringueiras ao longo desses rios e a relativa facilidade com que todos
eles, com exceção do Madeira (ver capítulo 4), podiam ser navegados
pela crescente frota de barcos a vapor do Amazonas, faziam com que
fossem preferíveis aos trechos superiores do Xingu e do Tapajós, que
corriam através de florestas também ricas em Heveas, mas semeados de
corredeiras e quedas d’água intransitáveis. Ainda assim, era em Belém
que quase toda a borracha amazônica continuava a ser armazenada,
acondicionada e vendida para exportação.
De 1870 a 1910, ocorreu o maior surto econômico da região. Em
1871, a borracha alcançou o primeiro lugar nas exportações do Pará,
com 4,8 milhões de quilos, contra 3,3 milhões de quilos de cacau.
Segundo Bárbara Weinstein, em fins da década de 1880 o valor anual
das exportações de borracha havia subido 800% na comparação com
os números de 1860, e a borracha representava aproximadamente
10% do comércio exterior do Brasil, apesar da acentuada expansão da
economia cafeeira no período (ver volume 2 desta coleção, Dos cafezais
nasce um novo Brasil). “Na virada do século, a borracha se tornaria
o segundo produto brasileiro, constituindo 24% da exportação total
do país”, atesta Bárbara.
EM FINS DA DÉCADA
DE 1880, O VALOR
ANUAL DAS
EXPORTAÇÕES DE
BORRACHA HAVIA
SUBIDO 800% EM
RELAÇÃO A 1860
37
ouro branco: martírio, riqueza e cultura
REGISTROS DE SERINGUEIRO PRODUZINDO BORRACHA DENTRO DE ABRIGO CONHECIDO COMO TAPIRI
NO SÉCULO XIX, GOVERNO DO AMAZONAS NÃO COGITAVA CULTIVO MAJENADO DA HEVEA
38
OS SERINGUEIROS
O ciclo da borracha alterou de maneira significativa, não apenas a
economia, mas também as relações sociais e culturais no Brasil de finais
do século XIX. As duas mais importantes vertentes do processo dizem
respeito, de um lado, às formas brutais de exploração da floresta, e de outro,
à riqueza proporcionada pela borracha, que alterou completamente dois
centros urbanos, Manaus e Belém, os quais, de cidades inexpressivas, em
pouco tempo passaram a figurar como importantes e modernas metrópoles
brasileiras. Vejamos de início como se dava a rotina de um seringueiro.
Euclides da Cunha definiu o seringueiro como “o homem que
trabalha para escravizar-se”. Tão chocantes eram suas condições de
vida e tamanha sua impotência que o próprio Euclides registrou, em
sua narrativa Judas-asvherus, que na época da malhação do judas os
seringueiros faziam um boneco a sua semelhança, um judas-seringueiro.
Malhavam a si mesmos, como que se autopunindo por aceitarem aquela
situação infeliz. Na visão de Euclides, o maior jornalista brasileiro da
época, a exploração a que os seringueiros estavam sujeitos era tamanha
que constituía “a organização do trabalho mais criminosa que podia ser
imaginada pelo egoísmo mais revoltante”. Como isso se dava na prática?
Quando chegavam à Amazônia, os homens que imaginavam fazer
fortuna trabalhando na floresta, quase todos eles vindos do Nordeste,
fugindo da seca, eram obrigados a comprar não apenas os utensílios usados
na extração do látex, mas também o pirarucu ou charque e alguns litros
de farinha que cada um deles iria precisar nos primeiros dias na mata,
enquanto não aprendessem a caçar. O patrão do seringueiro tanto podia
ser o grande proprietário (seringalista), que arrendava suas terras ao seringueiro, como também o comerciante local, conhecido como aviador,
que controlava informalmente a produção e o comércio da borracha na
área, negociando a produção dos seringueiros e mantendo-os abastecidos
de ferramentas, víveres e quaisquer outras extravagâncias a que pudessem
se dar ao luxo.
Nas palavras de Warren Dean, respeitado brasilianista e autor de A luta
pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica, livro que se tornou
um clássico sobre o tema, a técnica da coleta do látex “é fácil de explicar,
mas difícil de imaginar”. Dean assim descreve o trabalho dos seringueiros
em meados do século XIX e início do XX:
“A Hevea brasiliensis é uma espécie típica do estágio clímax da floresta
pluvial amazônica. Como quase todas as espécies semelhantes, não se
encontrava em arvoredos ou em grupos, mas bastante dispersa na floresta,
comumente apenas duas ou três árvores por hectare. O seringueiro esperançoso tinha, primeiro, de localizar as árvores, depois abrir picadas – as
chamadas estradas – ligando-as entre si. Essa tarefa poderia levar seis e
até sete meses, tempo durante o qual pouca ou nenhuma extração podia
ser feita. Normalmente o seringueiro abria duas ou três picadas com 60 a
150 árvores cada, o máximo que uma pessoa seria capaz de se ocupar. Os
métodos de extração foram ligeiramente aperfeiçoados: em vez de deixar o
látex escorrer tronco abaixo a partir de numerosas pequenas incisões feitas
com uma machadinha, prendiam-se pequenos copos sob cada incisão. (...)
LOCALIZAR AS
ÁRVORES DA
HEVEA PODERIA LEVAR
DE SEIS A SETE MESES
DE TRABALHO, ANTES
DE SE INICIAR A
COLETA DO LÁTEX
39
ouro branco: martírio, riqueza e cultura
DESENHO DE JEAN PIERRE CHABLOZ, DE 1943, MOSTRA SERINGUEIRO PRODUZINDO AS BOLAS DE BORRACHA
Efetuava-se a sangria em dias alternados em cada estrada, a fim de permitir
que as árvores se recuperassem. O seringueiro passava duas vezes por uma
estrada. Na primeira vez, de manhã cedinho, quando o fluxo de látex era
mais pesado, fazia as incisões. Depois, na segunda passagem, colhia o látex.
À tarde, acocorava-se diante de um fogo alimentado por cocos, sobre o
qual suspendia uma vara, que girava sem parar, enquanto o látex gotejava
lentamente. Aos poucos, formava-se uma grande bola de borracha sólida”.
Prossegue Dean sobre a rotina do seringueiro:
“A temporada de coleta resumia-se aos seis meses de pluviosidade
relativamente baixa, porque na estação das chuvas as trilhas se alagavam
e os copos se enchiam de água. Dependendo das características variáveis
das árvores, do tempo, do solo e dos seringueiros, essas técnicas proporcionavam uma produção anual de 200 a 800 quilos por seringueiro, com
a média ficando abaixo de 500 quilos. (...) O processo de extração muitas
vezes transcorria de tal modo que as árvores logo se exauriam ou sua
casca ficava tão danificada que não podiam mais ser exploradas. Embora
o produto acabado, se cuidadosamente ‘defumado’, atingisse preços tão
elevados quanto os da melhor borracha coagulada das plantações, ami40
SERINGAL NO ACRE NOS DIAS DE HOJE: CULTIVO MANEJADO GARANTE RENTABILIDADE E MELHORES CONDIÇÕES DE TRABALHO
úde era cheio de impurezas, umidade e adulterações, estas introduzidas
para elevar o preço de venda. O seringueiro deve ter sentido que merecia
algum tipo de compensação. As torturantes condições de isolamento,
privação e perigo a que estava sujeito limitavam sua carreira a algumas
poucas temporadas, durante as quais contrair malária, doença de Chagas
e leishmaniose era uma certeza virtual.”
O seringueiro era o último elo da cadeia econômica da borracha. Aparentemente, era livre, mas a estrutura econômica o colocava em situação
de trabalho semelhante à relação de servidão. Isto porque ele não tinha
alternativa a não ser comprar os suprimentos necessários, a preço altíssimo,
no armazém mantido pelo seringalista, e por isso estava sempre em débito
na contabilidade e endividado, não conseguindo escapar da exploração
do patrão. Aqueles que tentavam fugir de seus débitos eram remetidos de
volta aos seringais, capturados em Belém ou Manaus.
Apesar da desigualdade absurda a que se submetiam os seringueiros,
Warren Dean acredita que tal forma de organização era a única que aceitariam: “Embora o sistema extrativo lhes impusesse taxas de mortalidade
e uma exploração tão severa que sua reprodução se tornava impossível,
SERINGUEIRO
ESTAVA SEMPRE
ENDIVIDADO,
NÃO CONSEGUINDO
ESCAPAR DA
EXPLORAÇÃO
DOS PATRÕES
41
ouro branco: martírio, riqueza e cultura
DE PEQUENAS E
MODESTAS CIDADES,
BELÉM E MANAUS SE
TRANSFORMARAM
EM MODERNAS
METRÓPOLES
os seringueiros, segundo se afirma, preferiam a existência itinerante ao
plantio, por um orgulho embriagador e uma idêntica predileção pelo enriquecimento rápido em detrimento de uma remuneração fixa.”
A lucratividade da borracha era tanta e o domínio do mercado mundial, tão marcante, que pouco se cogitava, na época, de buscar métodos
de plantio manejado. Como relata Warren Dean, “a seringueira nativa era
invencivelmente superior à seringueira plantada. O governo do Amazonas exprimia sua confiança em que, quando a demanda desabrochasse, o
Estado atrairia cada vez mais capital estrangeiro, o que reduziria os custos
da coleta, estimulando, assim, o fornecimento nativo.” A crença na época, portanto, era de que, caso um dia os estoques naturais se esgotassem,
os amazonenses poderiam plantar a Hevea quando bem quisessem, e a
borracha resultante sempre seria mais barata e de melhor qualidade que
a asiática, onde, por volta de 1890, se iniciaram as primeiras experiências
de cultivo manejado. As sementes da Hevea brasiliensis que viriam a desencadear uma violenta alteração no mercado da borracha, cerca de 20 anos
depois, teriam sido contrabandeadas do Brasil pelo inglês Henry Wickham,
tendo as plantas que brotaram passado por um período de adaptação no
Jardim Botânico de Kew, na Inglaterra, antes de serem transportadas
para Ceilão, Java e Sumatra, onde deram origem a enormes seringais. Em
seu livro, Warren Dean narra com riqueza de detalhes toda a misteriosa
operação de contrabando realizada por Wickham, que acabou inclusive
recebendo, em 1926, um prêmio por ter sido “o Francisco de Mello Palheta
dos ingleses” (Palheta é o sargento-mor que em 1726 teria contrabandeado
para o Brasil as primeiras sementes de café, as quais transformariam o país
no maior produtor mundial do grão).
BELÉM, DO PARÁ E DO MUNDO
Os sacrifícios a que eram submetidos os seringueiros na floresta amazônica eram apenas uma das faces do ciclo da borracha. Graças à riqueza
proporcionada pela exportação do produto, Manaus e Belém viveram
momentos de luxo e glamour. As duas cidades passaram a ser as mais
desenvolvidas do Brasil e das mais prósperas no mundo, principalmente
Belém, não só pela sua posição estratégica – quase no litoral –, mas também porque sediava um maior número de residências de seringalistas,
casas bancárias e outras importantes instituições. Foram atraídas para a
região, nesse período, levas de imigrantes estrangeiros, como portugueses,
chineses, franceses, japoneses, espanhóis e outros grupos menores, com o
fim de desenvolverem a agricultura nas terras da Zona Bragantina.
Maria de Nazaré Sarges, autora do estudo Belém – riquezas produzindo
a Belle Époque (1870-1912), refere que todo o processo de transformação
pelo qual passou a capital do Pará se deve ao fato de que uma parte do
excedente que se originou da riqueza proporcionada pela borracha foi
canalizada para os cofres públicos, os quais direcionaram o investimento
para a área urbana, incluindo o calçamento de ruas com paralelepípedos
RUA XV DE NOVEMBRO E OS TRILHOS DOS BONDES: MODERNIDADE NA CAPITAL PARAENSE
42
43
ouro branco: martírio, riqueza e cultura
CHAFARIZ NO LARGO DA PÓLVORA E CASAL EM TRAJES DE ÉPOCA, EM FOTO DE BELÉM NO INÍCIO DO SÉCULO XX
de granito importados da Europa, construção de prédios públicos, casarões
em azulejos, monumentos, praças etc. “Era preciso alinhar a cidade aos
padrões da civilização europeia. Desse modo, a destruição da imagem da
cidade desordenada, feia, promíscua, imunda, insalubre e insegura, fazia
parte de uma nova estratégia social, no sentido de mostrar ao mundo
civilizado (entenda-se Europa) que a cidade de Belém era o símbolo do
progresso, imagem que se transformou na obsessão coletiva da burguesia”,
refere a autora.
Da Europa, especialmente da França, é que veio o modelo de urbanismo moderno, reproduzido em Belém com expressividade. Foi durante a
administração do Intendente Antônio José de Lemos que se construíram
boulevards, praças, bosques, asilo, mercados. Na mesma época, implantou-se também uma rigorosa política sanitarista. “Belém vai sofrer alterações
que se operam nas estruturas sociais, ocasionando uma intensificação da
vida social e intelectual da cidade, aumento demográfico, maior complexidade nas relações sociais e a concentração de fortunas entre os novos
setores dominantes”, atesta Maria de Nazaré.
Esse nova ordem econômica propiciou a composição de uma nova
elite, formada por comerciantes, seringalistas, financistas, com destaque
para os profissionais liberais, geralmente de famílias ricas e oriundos de
universidades europeias. É este novo grupo dominante que, em nome
44
VER-O-PESO LOGO SE TRANSFORMOU EM UM DOS MAIS MODERNOS MERCADOS DO PAÍS
do progresso, vai direcionar a remodelação da cidade, imprimindo-lhe o
brilho da chamada belle époque.
O cosmopolitismo do ciclo da borracha transformou Belém, e também
Manaus, como se verá adiante, em pequenas reproduções de cidades
europeias. Em Belém, entre 1890 e 1900, surgiram 25 novas fábricas –
de biscoitos, açúcar refinado, caramelo, pão, café; de fibras e cordas; de
artefatos de borracha, e até uma fábrica de licores, além da Fábrica de
Cerveja Paraense, em 1905.
Não há dúvida de que a moda é um fenômeno típico da sociedade urbano-industrial, estimuladora do consumo. Na Belém do século XIX, mulheres das classes abastadas tinham um zelo especial pela indumentária,de
tal forma que precisavam mandar buscar seus vestidos em Londres e/ou
Paris. Para resolver essa questão, surgiram na cidade estabelecimentos
comerciais para atender o requinte das damas e cavalheiros, entre eles
Paris N’América, Bom Marché, Maison Française, além de lojas ambulantes que vendiam, em carros e tabuleiros, fazendas francesas, inglesas e
diversas miudezas.
A navegação a vapor, introduzida em 1853, teve grande importância
econômica para a exportação da borracha e o comércio internacional.
Os modernos extrativistas trataram de mandar seus filhos estudarem na
Europa, visando a uma futura substituição dos burocratas administrativos
EXTRATIVISTAS
MANDAVAM OS FILHOS
PARA A EUROPA,
FORMANDO UMA NOVA
ELITE INTELECTUAL
45
ouro branco: martírio, riqueza e cultura
O TEATRO DA PAZ, EM OBRA DE RIGUINI
que comandavam o país até então. Essa elite de doutores e intelectuais
influenciou na formação de novos hábitos: os donos de seringais, em sua
maioria, moravam na cidade, atraídos pelos confortos que esta passara a
lhes oferecer. Alguns dos novos ricos construíram suas residências inspirados no estilo art nouveau, com azulejos de Portugal, colunas de mármore de
Carrara e móveis de ebanistas franceses. Mandavam buscar companhias
artísticas na França, em Portugal e no Rio de Janeiro, que fizeram época
no Teatro da Paz. Calcula-se que apenas de fevereiro a dezembro de 1878
foram apresentados aproximadamente 126 espetáculos no teatro.
Foram criadas linhas de bonde, bancos instalaram-se na cidade (em
1886 já funcionavam quatro estabelecimentos), assim como companhias
seguradoras, essas últimas intimamente ligadas ao sistema financeiro estabelecido na região. Na verdade, franceses, ingleses e norte-americanos
dirigiam a comercialização da borracha. Os ingleses chegaram a instalar
na cidade uma agência do London Bank of South America, antes mesmo
de outros bancos brasileiros. A libra esterlina circulava como mil-réis, e
os transatlânticos da Booth Line faziam linhas regulares entre a capital
amazonense e Liverpool.
Todo o processo de urbanização em Belém não esteve ligado somente
à intensificação da vida industrial, como ocorreu nas cidades europeias
e americanas. Aqui, as funções comercial, financeira, política e cultural
tiveram influência decisiva. O crescimento populacional impactou a cidade. Em 1872, a população do Pará era de 275 mil habitantes, 61.900 dos
46
A IMPONENTE CATEDRAL DA CAPITAL DO PARÁ, TAMBÉM NA VISÃO DE RIGHINI
quais em Belém. Em 1900, estes números subiram para 445 mil no Estado
e 96.500 na capital. Em 1920, o Pará tinha quase 1 milhão de habitantes,
dos quais 236 mil em Belém.
Além dos lucros gerados pela extração e comercialização da borracha, a
queda da Monarquia e a proclamação da República garantiram aos Estados
maior autonomia e maior participação na renda concernente à exportação
da borracha. Foi graças a esses recursos que surgiram na cidade o Mercado Ver-o-Peso (1901), o Hospital Dom Luiz, o Grêmio Literário, a The
Amazon Telegraph Company, o Arquivo e a Biblioteca Pública (1894), o
já citado Teatro da Paz (1878), 43 fábricas (que produziam desde chapéus
até perfumarias), cinco bancos, quatro companhias seguradoras, além da
implantação da iluminação a gás, em 1905.
Do ponto de vista do saneamento e da limpeza pública, o objetivo
era afastar os ares fétidos causados pela emanação mal cheirosa do lixo
urbano. A utilização do crematório do lixo tornou-se imprescindível. O
governo estabeleceu e divulgou a hora em que o arrematante da limpeza
passaria nos prédios e casas para recolher os lixos e nos lugares públicos
em que seus carros especiais passariam. Os infratores seriam multados.
Graças à criação do Departamento Sanitário Municipal, viabilizou-se a
construção de redes de esgotos e de água e a drenagem de pântanos. Até
mesmo barbeiros, cabeleireiros e semelhantes foram obrigados a empregar
materiais que não prejudicassem a saúde e a esterilizar seus instrumentos.
O conceito de “higienização” da cidade incluiu também uma nova
DEPARTAMENTO
SANITÁRIO CONSTRUIU
REDES DE ESGOTOS
E ÁGUA E DRENOU
OS PÂNTANOS
47
ouro branco: martírio, riqueza e cultura
ALARGAMENTO DAS
RUAS E CONSTRUÇÃO
DE AVENIDAS E
SUNTUOSAS PRAÇAS
RENOVARAM O CENÁRIO
URBANO DE BELÉM
E DE MANAUS
48
ordem no que se refere às questões de moralidade. Ao observarem-se as
condutas que passavam a ser proibidas, é possível detectar alguns dos
hábitos frequentes dos cidadãos que moravam nos núcleos urbanos antes
do boom da borracha. Pelo artigo 110 do Código de Posturas, por exemplo,
ficava proibido “fazer algazarras, dar gritos sem necessidade, apitar, fazer
batuques e sambas”. Já o artigo 128 proibia inclusive “proferir palavras
obscenas nas ruas e lugares públicos, praticar atos ou gestos reputados
ofensivos à moral e à decência, tomar banho nas praças e fontes públicas”.
O inciso VII do mesmo artigo ia além: “... é proibido chegar à janela ou
porta em traje indecente ou em completa nudez, ou conservar-se em casa
em tais condições, de maneira que seja visto pelos transeuntes”.
Se de um lado Belém era dependente comercialmente da Inglaterra,
de outro mantinha uma relação cultural muito próxima com a França, a
qual se intensificou a partir de 1838, com a criação do Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro. A babel de influências estrangeiras nos hábitos e
costumes, de outra parte, se expressava na importação de biscoitos e champanha franceses; de vinagre e azeitonas portuguesas; de vinhos franceses,
portugueses e espanhóis; de manteiga inglesa; de sabão americano e até
de chá de Pequim. Os navios europeus, principalmente franceses, traziam
também as notícias sobre as peças e livros mais em voga, as escolas filosóficas predominantes, o comportamento, o lazer, as estéticas e até as doenças.
Até a arborização fez parte do planejamento urbano, visando à
qualidade de vida proporcionada pelo ar purificado, mas também o
embelezamento da cidade, amenizando o clima tropical. O calçamento
se intensifica, tomando o lugar das pedras soltas e areia. Nas vias que
circundavam o Teatro da Paz, por exemplo, foram usados paralelepípedos
de asfalto, para que o tráfego de veículos condutores de passageiros,
quando feito junto a esse prédio, não perturbasse os assistentes das
funções da casa de espetáculos.
O serviço de viação pública, a propósito, foi inaugurado em agosto
de 1907. Havia vários tipos de bondes, incluindo-se carros-salões, com
vestíbulo em cada extremo, 12 cadeiras móveis, seis janelas de ventiladores,
caprichado acabamento interno e até mesmo serviço de buffet. Quando
ocorria a condução de autoridades em ocasiões especiais, acrescentavam-se ventiladores, cortinas, porta-chapéus e bengalas, vasos com plantas e
pequenas mesas.
O alargamento das ruas, a construção de largas avenidas e suntuosas
praças também integrava a renovação do cenário urbano de Belém. No
Mercado de Ferro Ver-o-Peso, os balcões dos açougues eram de mármore
e as ruas do interior calçadas a paralelepípedos de granito, sobressaindo-se
na construção os gradis, a escada em espiral feita de ferro, tudo de acordo
com o estilo art nouveau.
MANAUS
Manaus, simultaneamente, foi uma das primeiras cidades do Brasil
a vivenciar o espírito da belle époque, transformando-se de um simples vilarejo à beira do rio Negro em uma pujante cidade, dotada de
infraestrutura urbana moderna, tornando-se a sede dos negócios que
giravam em torno da borracha na Amazônia ocidental. O governador
Eduardo Ribeiro destacou-se por suas ações administrativas visando à
estruturação urbana e paisagística da cidade, dotando-a, inclusive, com
o Teatro Amazonas, inaugurado em dezembro de 1896 e considerada
a mais importante demonstração de refinamento e bom gosto da belle
époque no Brasil. Em janeiro de 1909, os amazonenses criaram aquela
que é considerada a primeira universidade brasileira, que recebeu o nome
de Escola Universitária Livre de Manaus, atualmente denominada de
Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Os médicos Adolfo Lindenberg e Vítor Godinho publicaram, inicialmente no jornal O Estado de S. Paulo, e depois em livro (Norte do Brasil
através do Amazonas, do Pará e do Maranhão) as impressões de uma viagem
que empreenderam em 1904. A respeito de Manaus, dizem eles:
“A cidade de Manaus lembra São Paulo por muitas razões: por seu
cosmopolitismo, por seu progresso vertiginoso, por sua arquitetura, por
suas obras municipais, por ter um monopólio comercial e pelo futuro que
lhe está reservado. Há 50 anos, Manaus era uma cidade pequeníssima:
contudo, os seus visitantes já lhe previam um futuro grandioso por sua
situação privilegiada. Depois da República, ela tem aumentado extraordinariamente, devendo possuir hoje uma população de 50 mil a 55 mil
habitantes. Pode-se dizer que foi a imigração maranhense que lhe levou
a iniciativa e o progresso.”
Prosseguem Lindenberg e Godinho em sua narrativa:
“O progresso de Manaus lembra o vertiginoso progresso de São Paulo,
porque se acentuou depois da República. (...) Em Manaus, há muito menos
pedra de construção do que em São Paulo; por isso, as edificações são em
sua grande maioria de tijolos, que se prestam a uma arquitetura muito mais
fácil e mais em conta do que pedra. (...) Quase todas as casas têm platibandas, o que as torna muito mais elegantes. Também as ruas são largas e bem
alinhadas, e já se tem cuidado da arborização de alguma delas, e sobretudo
das praças. Bonitos jardins existem, ostentando a exuberância da região
amazônica, e nos arredores da cidade bosques bem aproveitados. (...) As
ALFÂNDEGA (ALTO) E SEDE
DO BANCO ULTRAMARINO
(ACIMA), EM MANAUS. NA
PÁGINA AO LADO, BANCO
COMERCIAL, EM BELÉM
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ouro branco: martírio, riqueza e cultura
CÚPULA DO TEATRO AMAZONAS: 36 MIL PEÇAS DE ESCAMAS EM CERÂMICA ESMALTADA E TELHAS VITRIFICADAS, VINDAS DA ALSÁCIA
ruas centrais da cidade são bem calçadas a paralelepípedos de granito,
importados de Portugal ou do Rio de Janeiro, e duas delas são asfaltadas.
(...) É de lastimar. Os chopes consumidos em Manaus são de procedência
alemã, e por isso custam caro, 1 mil réis. O consumo de cerveja é muito
grande, como em geral de todas as bebidas alcoólicas. Os botequins e
mercearias existem profusamente e são todos muito frequentados. Neles
se nota um hábito muito europeu: as mesinhas dispostas nos passeios dos
boulevares ou avenidas, nos trottoirs, como se diria em Paris.”
Mais adiante, comentam os médicos:
“Em Manaus, não faltam doentes de impaludismo. Os seringueiros
que adoecem nas regiões mais paludosas vêm tratar-se na cidade, e são
em tão grande número que dão meios de subsistência a um respeitável
corpo clínico. Quando lá estivemos, havia na cidade cerca de 70 médicos. (...) O Palácio da Justiça é um monumento aparatoso tanto por sua
construção como por sua mobília. (...) A mesma coisa se poderá dizer do
teatro, que custou 11 mil contos de réis. Este tem enormes saguões, espaçosos corredores, um recinto primoroso e um foyer magnífico. O foyer é
circundado de vistosas colunatas fingindo mármore, e a decoração é obra
de De Angelis. (...) A cúpula do teatro é toda de mosaico, com as cores
da bandeira nacional, losangos amarelos em campo verde.”
A DECADÊNCIA
Em janeiro de 1910, o mundo industrial foi subitamente acometido
de grave crise de “febre” da borracha. Após dois anos de aumentos de
50
TOMBADO COMO PATRIMÔNIO HISTÓRICO EM 1966, TEATRO TEM CAPACIDADE PARA 701 PESSOAS NA PLATÉIA E NOS CAMAROTES
preço firmes, porém gradativos, uma alta sem precedentes no valor da
borracha fez com que os capitalistas de todo o mundo se lançassem a
investir apressadamente na produção da borracha bruta. Nos meses que
se seguiram, centenas de companhias, representando milhões de libras
esterlinas de capital, surgiram literalmente da noite para o dia. A Indian
Rubber World, sempre tomando o pulso do mercado da borracha bruta,
instava com seus leitores que não hesitassem em aceitar adquirir a borracha
a 2 dólares a libra, advertindo ser pouco provável que os preços viessem a
cair em futuro próximo. Mas já no mês de maio a febre estacou. Ninguém
estava preparado para o violento mergulho que deu o mercado da borracha
bruta nos meses restantes do ano de 1910, chegando a menos de um 1,20
dólar já em novembro.
Ao contrário do que também imaginavam os brasileiros, a partir
de 1911 o preço do produto caiu vertiginosamente, à medida que uma
quantidade cada vez maior da borracha de cultivo (originária da Ásia)
chegava ao mercado. Numa onda especulativa, o produto brasileiro
subiu para 15 mil réis o quilo em abril de 1910, mas em junho de 1911
caiu para 6 mil réis. Nas palavras de Bárbara Weinstein, “essa queda,
longe de um simples interlúdio, acabou sendo o começo de uma decadência de dez longos anos que iria aleijar a economia extrativa da
Amazônia”. Prossegue Bárbara: “Para tornar pior o que já estava mau,
a causa real dessa febre de última hora da borracha era exatamente
aquilo que iria desferir o golpe fatal na economia extrativa da região:
após 20 anos de trabalho dedicado de botânicos e de empresários
QUEDA BRUSCA
DOS PREÇOS DA
BORRACHA, EM 1910,
DEU INÍCIO A UMA
LONGA E DEMORADA
DECADÊNCIA
51
ouro branco: martírio, riqueza e cultura
SE O CICLO DA
BORRACHA ESTAVA
ENCERRADO, OUTROS
CAPÍTULOS NA
HISTÓRIA DA AMAZÔNIA
ESTAVAM POR
SER ESCRITOS
britânicos, as plantações de Hevea na Ásia tinham, afinal, começado
a produzir borracha em quantidades consideráveis”.
Ao contrário do que caracterizava o modo de produção brasileiro,
que previa a necessidade de mais e mais seringueiros embrenhando-se
cada vez mais profundamente na floresta, a borracha cultivada quase não
apresentava obstáculo à expansão, após o período de cinco a oito anos
para as árvores atingirem a maturidade. Em termos gerais, as condições
na Ásia eram extremamente favoráveis ao cultivo: enormes extensões
de terra podiam ser ocupadas sem burocracia, o transporte era feito sem
dificuldades e a preços baixos, enquanto a mão-de-obra era abundante e
sabidamente barata. Com isso, não é de se estranhar que a área de cultivo
da Hevea crescesse de 5,3 milhões de hectares, em 1905, para 46 milhões
em 1910, e para incríveis 101 milhões de hectares em 1915. Como aponta
Bárbara Weinstein, “se se calcular uma média de 200 árvores por hectare,
torna-se logo evidente como o cultivo de Hevea conseguiu, em tão pouco
tempo, eclipsar a economia da borracha silvestre”, com suas duas ou três
árvores por hectare.
O governo brasileiro, tardiamente, tentou reagir, criando o plano
Defesa Econômica da Borracha, que incluía prêmios para pessoas que
tentassem um “cultivo racional” e recursos para estações agrícolas experimentais. De nada adiantou. Mais uma vez é Warren Dean quem sintetiza
o momento: “Quando a crise atingiu a região, o crédito privado logo sofreu
um colapso, juntamente com o do governo. Os aviadores e patrões estavam
endividados, com pouca margem para honrar os exportadores credores.
Diz-se que as perdas em 1913 chegaram a mais de 4 milhões de libras. A
elite regional lutou para persuadir os investidores estrangeiros a renovarem
seus investimentos na coleta da borracha. Procurou fundos para o banco
regional proposto, para novos escritórios locais de compra das indústrias
da borracha e para mais aquisições de seringais nativos pelas chamadas
companhias de plantação”.
Mas tudo foi por água abaixo com a queda do preço da borracha. Em
1910, a exportação do produto correspondia a 134 mil contos de réis, para
uma produção de 34 mil toneladas. Três anos depois, não alcançava 70
mil contos de réis. A crise se manifestou na falência das casas aviadoras,
na queda da produção dos seringais, no caos das finanças públicas.
Luis Osiris da Silva assim resumiu a fase de decadência: “A Amazônia,
descapitalizada, manietada pela falta de poupanças locais, presa a uma
estrutura econômica retrógrada, viu passar desse modo sua chamada fase
áurea. E assim, embora tenha sido a pedra de toque da conquista do vale
para o Brasil, a borracha ficaria reduzida apenas ao mais vibrante capítulo
do homem planiciário para constituição de sua economia”.
Se o primeiro ciclo da borracha estava encerrado, outros capítulos na
história da região amazônica ainda estavam por ser escritos: a conquista
do Acre, a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a Fordlândia
e a triste história dos soldados da borracha.
TEATRO AMAZONAS PASSOU POR COMPLETA RESTAURAÇÃO EM 1990
52
53
a conquista
do acre
54
55
a conquista do acre
Trinta e cinco anos antes de eclodir o problema
do Acre, território que o Brasil reconhecia ser da
Bolívia, o governo do império do Brasil assinara o
Tratado de Ayacucho, em 1867, com aquele país
no sentido de mais ou menos fixar áreas limítrofes
em comum. Dez anos depois, assombrados pela
violenta seca de 1877/79, que devastou o Ceará,
milhares de cearenses partiram para os fundões
da Amazônia atrás de uma alternativa para a sua
sobrevivência. Em 1882, fundaram o Seringal Empresa, que mais tarde veio a ser a capital do Acre,
rebatizada de Rio Branco.
Foi assim, na chamada “transumância amazônica”, que os nordestinos
adentraram na região do rio Acre, situada no extremo noroeste do Brasil,
atrás das valiosas seringueiras. A revolução dos transportes que andava a
galopes nos países Europeus e nos Estados Unidos, paralela à expansão da
eletricidade, tinha fome por borracha, que naquela época saía toda ela da
Amazônia, sendo que 60% era extraída do território acreano.
Obviamente que o governo andino não via com bons olhos aquela
arribada crescente dos brasileiros. Para os bolivianos, a situação praticamente repetia o que ocorrera na década de 1870, com a penetração de
trabalhadores chilenos na área do Atacama atrás do salitre, que provocara
a Guerra do Pacífico (1879-1883). A Bolívia, derrotada, perdeu sua saída
para o Oceano Pacífico, tendo que aceitar ficar isolada dos oceanos do
mundo.
Em um primeiro momento, José Paravicini, o embaixador boliviano
no Rio de Janeiro, determinou que fosse fundado, em 3 de novembro de
1899, um posto alfandegário em Puerto Alonso, para se fazer presente na
área. Ato de soberania que, se bem que legítimo, irritou profundamente
os seringueiros brasileiros que cercaram o posto e expulsaram os funcionários dali.
Neste entremeio, entra em cena o aventureiro Luís Galvez, dito “o
Imperador do Acre”. Luiz Galvez Rodrigues Arias era um jornalista de
origem espanhola, que pretendeu ocupar o vazio deixado pela momentânea ausência das autoridades bolivianas, espantadas com a fúria dos
seringueiros. Poliglota, duelista audaz e boêmio, Galvez era diretor do
jornal Comércio do Amazonas, e escorado pelo governador Ramalho Júnior,
tomou a peito realizar uma incursão ao Acre.
Tratou-se de uma epopeia rocambolesca, digna das páginas da literatura fantástica, visto que Galvez, um sem-raízes que vivia intrigando nas
redações, consulados e palácios, terminou não somente proclamando a
IMAGEM DE J.A.CORREA RETRATA A FOME NO CEARÁ EM 1877-78
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57
a conquista do acre
A GRANDE SECA NO CEARÁ LEVOU MILHARES A MIGRAREM PARA O ACRE
AVENTURAS E
TRAPALHADAS DE
GALVEZ RENDERAM
LIVROS EM PORTUGUÊS
E ESPANHOL
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Independência do Estado do Acre, na data simbólica de 14 de julho de
1899, como ainda, por nove meses (entre 14 de julho de 1899 e 1º de
janeiro de 1900 e depois, entre 30 de janeiro e 15 de março), agiu por
lá, nos velhos moldes ibéricos, como um ditador. Assumiu por igual a
magistratura, mandou fazer selos, desenhou a bandeira acreana (a estrela
vermelha pairando em meio às cores brasileiras), criou ministérios e até
um serviço de bombeiros. Por igual abriu escolas para tentar dirimir o
analfabetismo dos seringueiros.
É possível que, com a captura do Acre, ele quisesse realizar uma espécie
de desforra contra os ianques, pois naquele mesmo ano, com o desastre
da Espanha na Guerra Hispano-Americana de 1899, Cuba e Porto Rico
haviam sido integradas aos interesses dos Estados Unidos. Tanto assim que,
na formação do seu “exército”, Galvez conseguiu atrair uns 20 veteranos
espanhóis que, foragidos do Caribe e enfiados no interior da Amazônia
atrás da fortuna, se mostraram dispostos a embarcar no navio para dar
uma lição nos prepostos dos americanos. Para eles, impedir que os ianques
ocupassem o Acre era compensar-se da recente derrota.
Era um império de selva fechada e de barrancas de rio, habitado
por uns 13 mil seringueiros com suas famílias. O sonho delirante acabou
MONUMENTO A GALVEZ, EM FRENTE À ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ACRE
quando tropas federais brasileiras, atendendo os reclamos dos bolivianos,
deslocaram-se para lá para afastá-lo definitivamente. Luiz Galvez, que ao
seu jeito, como modos de tirano, implementou o primeiro governo modernizador naquelas áreas, ainda que bem pouco conhecido, foi o derradeiro
aventureiro espanhol a embrenhar-se na conquista da Amazônia, façanha
começada no século XVI com Gonzalo Pizarro e Francisco Orellana.
Detido sem resistência no Acre, Galvez, levado de volta para Manaus,
viu-se desterrado para Pernambuco, de lá embarcando de volta para a
Espanha. Suas aventuras e trapalhadas atraíram a atenção do novelista
amazonense Marcio de Souza, que narrou suas peripécias no livro Galvez,
imperador do Acre, de 1976. Na Espanha, editou-se em 2003 o livro La
Estrela Solitaria, de autoria de Alfonso Domingo, que conta a aventura do
espanhol que criou o Estado Independente do Acre, concluindo que ele
foi “o único espanhol que ganhou uma guerra contra os Estados Unidos”.
CAPA DO LIVRO DE ALFONSO
O BOLIVIAN SYNDICATE
Cada vez ficava mais evidente de que a Questão do Acre repetia
Atacama, portanto La Paz precisava agir para manter o território em mãos
nacionais. Além de enviar uma força para lá, engendraram um outro
DOMINGO SOBRE GALVEZ
59
a conquista do acre
PLÁCIDO DE CASTRO E BARÃO DO RIO BRANCO: FIGURAS DECISIVAS NA HISTÓRIA DO ACRE
60
caminho. A solução encontrada não podia ter sido pior. Fora o próprio
Luís Galvez que, trabalhando então para o cônsul boliviano em Manaus,
descobriu que os bolivianos estavam em tratativas de passar o controle
do território do Acre para o Anglo-Bolivian Syndicate, de Nova York,
que tinha o milionário Withridge como seu acionista principal. Era um
contrato do tipo conhecido como chartered companies, muito em voga na
África naquela época, pelo qual uma empresa concessionária qualquer,
europeia ou americana, praticamente assumia as funções soberanas sobre
certa área que ela desejava explorar economicamente. Detinha não só o
monopólio sobre a produção e exportação, como também auferia os direitos
fiscais, mantendo ainda as tarefas de polícia local.
Concretizado o contrato, o Bolivian Syndicate, associado à U.S.
Rubber Co., que compraria toda a produção da borracha, fatalmente
atrairia para dentro da região amazônica o poder dos Estados Unidos
que, em última instância, assumiriam, ainda que indiretamente, a
proteção dos interesses de uma empresa norte-americana no Acre
que gozaria por lá de privilégios majestáticos. Portanto, qualquer desavença que ocorresse entre os seringueiros e os interesses do Bolivian
Syndicate oporia o Brasil aos Estados Unidos. Dois acontecimentos
vieram, então, a atrapalhar aqueles planos dos bolivianos: a rebelião
acreana de Plácido de Castro e a ação diplomática do Barão do Rio
Branco, que considerou a concessão boliviana ao Bolivian Syndicate
uma “monstruosidade legal”.
A VIDA DE PLÁCIDO
DE CASTRO AINDA
NÃO DEU ORIGEM A
UM ROMANCE QUE
ESTEJA À ALTURA
DE SEUS FEITOS
A REVOLTA DOS SERINGUEIROS
Os conflitos anteriores entre brasileiros e bolivianos – entre os quais a
célebre “expedição dos poetas”, uma romântica aventura de intelectuais e
estudantes amazonenses liderados por Orlando Corrêa Lopes que, partindo
de Manaus a bordo do vapor Solimões, quiseram ajudar os seringueiros
a “libertar o Acre”, fracassando lamentavelmente –, fizeram-se quase
espontaneamente, sem planos, sem estratégia, sem liderança. Foi então
que entrou em cena um novo personagem, que daria outros rumos aos
acontecimentos.
A vida de Plácido de Castro ainda não gerou um romance a sua altura.
Nem os poucos ensaios que lhe foram dedicados conseguiram capturar a
diversidade dramática das suas façanhas. Gaúcho de São Gabriel, nascido em 9 de setembro de 1873 na estância Tapera da Genoveva, Plácido
trazia no sangue o pulsar de um guerreiro. Descendia de uma dinastia
de militares: seu pai, Prudente da Fonseca, havia lutado na Guerra do
Paraguai; seu avô, José Plácido, esteve nas Guerras Cisplatinas, e um dos
seus bisavós, Joaquim José Domingues, participou junto com Borges do
Canto na ocupação das Missões, que levou à integração delas ao território
do Rio Grande do Sul, em 1801.
Quando aluno do Colégio Militar, Plácido não acompanhou seus
colegas de farda na época da Revolução Federalista de 1893. Antiflorianista e anticastilhista, abandonou o exército e foi alistar-se junto ao líder
maragato Gumercindo Saraiva (1852-1894), que assombrava o interior do
Rio Grande do Sul com sua veia de combatente astuto e muito valente.
61
a conquista do acre
A EXPERIÊNCIA DE
COMBATE ENTRE OS
MARAGATOS
AUXILIOU PLÁCIDO
A MONTAR A MELHOR
ESTRATÉGIA DE LUTA
Anistiado no posto de major aos 21 anos ao findar o levante, Plácido
de Castro tinha alguns conhecimentos técnicos, e assim tornou-se inspetor
do Colégio Militar do Rio de Janeiro e, logo depois, funcionário das docas
de Santos. Curiosamente, justo quando estava na função de fiscal do cais
do porto, obteve a provisão de agrimensor.
Entediado com aquilo, tomando por meio de um amigo ciência da
carência de profissionais nas áreas da borracha, embarcou em 1899 para
o Amazonas, atrás de fortuna. Pouco depois, quando estava demarcando
áreas seringueiras no rio Purus, estourou o escândalo do Bolivian Syndicate,
que implicava no arrendamento do território por 20 anos. Os seringais
voltaram a se abalar com os gritos de guerra. A notícia do arranjo de La
Paz com os americanos foi o elemento catalisador de todas as energias
revolucionárias. Desta vez o furor dos acreanos teria um comandante
profissional na liderança da insurgência. O tempo dos amadores impulsivos, como Galvez e os poetas, passara. A Revolução Acreana, por fim,
encontrara o seu caudilho.
Em uma reunião feita em Caquetá, no 1º de julho de 1902, Plácido e
os demais insurgentes, formando a Junta Revolucionária, urdiram as bases
do futuro Estado Independente do Acre, prevendo sua integração no Brasil.
O gaúcho exigiu de todos o compromisso de obediência indiscutível ao
Comandante-em-chefe do Exército do Estado Independente do Acre,
não aceitando a dispersão da autoridade ou seu questionamento. Obteve,
inclusive, a anuência do representante do governador do Amazonas, o
doutor Gentil Norberto, que, mesmo sendo o homem do dinheiro e do
fornecimento das armas, aceitou subordinar-se a ele.
A experiência de combate adquirida por ele junto à guerrilha maragata
ajudou-o na montagem da estratégia. Em pouco tempo, um exército de
2 mil seringueiros estava à disposição nos arredores de Xapuri. Bastaram
33 deles, capitaneados por um tal de José Galdino, para capturarem o
povoado. Em 6 de agosto de 1902, começara a etapa final do processo
revolucionário com a imediata proclamação de independência, ato que
se seguiu ao arriar a bandeira boliviana.
A LUTA NA SELVA
Cercando as guarnições enviadas de La Paz com grandes cinturões
de homens armados com rifles e com arma branca (por força do ofício,
os caucheiros eram exímios lutadores com facas), surgiam de repente do
interior dos matos e punham todos os inimigos a correr. Diga-se que, naquelas condições, caminhando pelas trilhas em meio à selva densa, mais
medo tinham das feras e dos insetos do que de enfrentar homens.
Em uma campanha relâmpago, uma por uma das praças foram
caindo no controle dos revoltosos, até que, 171 dias depois da tomada
de Xapuri, em 21 de janeiro de 1903, Plácido de Castro contou com
a vitória definitiva. Os combates mais importantes foram o da Volta
da Empresa, travado em 18 de setembro de 1902 (ocasião em que
os acreanos emboscaram a tropa do coronel Rosendo Rojas), e o da
Nova Empresa (onde o mesmo oficial foi novamente batido quando
submetido a um cerco em 6 de outubro de 1902).
62
UMA DAS RARAS IMAGENS DE PLÁCIDO DE CASTRO
EM COMBATE (NO ALTO, À DIREITA, A CAVALO)
PLÁCIDO LIDEROU
2 MIL SERINGUEIROS,
MAS TERMINOU MORTO
EM UMA EMBOSCADA
NO BRASIL
63
a conquista do acre
QUANDO O GOVERNO
BOLIVIANO AMEAÇOU
MARCHAR SOBRE O
ACRE, NA TENTATIVA DE
RECUPERAR O TERRITÓRIO
PERDIDO, ENTROU EM
CENA A HABILIDADE DO
BARÃO DO RIO BRANCO
O BARÃO DO RIO BRANCO
RETRATADO POR J.G.
FAJARDO, OBRA EXPOSTA NO
CONGRESSO NACIONAL
64
A operação derradeira foi concluída com o ataque de Plácido
ao Porto Acre, manobra que se estendeu por nove dias, de 15 a 24
de janeiro de 1902, e que findou com o içar da bandeira branca por
parte do governador boliviano e a assinatura da Carta de Rendição da
Bolívia por Dom Lino Romero. Os remanescentes dos destacamentos
bolivianos entregaram-se ou deram a volta para o interior do país.
Plácido de Castro pouco proveito tirou da vitória. Ainda que transformado em mito vivo aos olhos dos seringueiros, não conseguiu fazer
frente às práticas traiçoeiras da política das selvas. No dia 8 de agosto
de 1908, foi vítima de um atentado tramado pelo coronel Gambino
Bezouro e pelo subdelegado Alexandrino José da Silva, que lhe montou uma tocaia. Baleado pelas costas, Plácido veio a falecer dois dias
depois na companhia do seu irmão, Genesco, em um lugarejo chamado
Benfica. Seu corpo foi transladado para Porto Alegre e sepultado no
Cemitério da Santa Casa, sendo que a família mandou gravar sobre a
lápide o nome dos 14 jagunços que participaram do crime, para que a
infâmia jamais fosse esquecida. O nome dele foi dado a um município
que hoje conta com pouco mais de 15 mil habitantes.
Voltando a 1902: quando o governo da Bolívia, na presidência do general José Maria Pando (1899-1904), empenhou-se em uma mobilização de
tropas, acenando com uma grande marcha para o Acre, a fim de recuperar
o terreno perdido e dar fim nos “flibusteiros brasileiros”, a diplomacia do
Barão do Rio Branco entrou em ação.
TRATADO DE PETRÓPOLIS
ENTROU PARA A HISTÓRIA
O TRATADO DE PETRÓPOLIS
Estimaram a multidão que o recepcionou em 10 mil pessoas, que se
espalhavam desde o cais do porto até as avenidas do centro do Rio de
Janeiro. Todos lá estavam, naquele dia jubiloso de 2 de dezembro de 1902,
para saudar o Barão do Rio Branco, o Juca Paranhos, como era conhecido
entre os cariocas. Viram-no como um bom filho que retornava à casa, o
Brasil. Recepcionaram-no desde o porto com bandas, palmas e aclamações,
espalhando os retratos dele por toda parte. Até a estátua do pai do barão,
o Visconde do Rio Branco, merecera uma bela ramada de flores.
Provavelmente muitos deles, dos que lá estavam presentes para
aplaudir o novo ministro das Relações Exteriores, recém vindo da Europa, tinham estado umas semanas antes na frente do Palácio da Catete
para vaiarem estrepitosamente o presidente Campos Sales, quando esse
deixava o poder coberto de impopularidade. Enquanto o político paulista
saía debaixo de apupos, o chanceler carioca desembarcava com vivas.
A república, o novo regime recém implantado no Brasil fazia 13 anos,
tinha causado enormes decepções ao povo. Primeiro, pela inflação e pelos
escândalos financeiros provocados pelo Encilhamento, em 1890/91; em
seguida, a Armada rebelou-se por duas vezes, uma em 1891 e outra em
1893, disparando contra a própria Capital Federal, ocasião em que também rebentou no Rio Grande do Sul a sangrenta Revolução Federalista
de 1893/95 e, mal cauterizada essa, foi a vez da revolta de Canudos fazer
correr sangue no sertão da Bahia, em 1896/97.
DA DIPLOMACIA BRASILEIRA
65
a conquista do acre
CENTENÁRIO DA MORTE DO BARÃO DE RIO BRANCO REUNIU DESCENDENTES EM BRASÍLIA
Como uma espécie de arremate de tanta desgraça, o presidente
Campos Sales, herdando os rombos orçamentários daquilo tudo, teve que
apelar para o Funding Loan, uma renegociação geral da dívida externa do
país, acertada em 1898, que implicou em tomar mais 10 milhões de libras
esterlinas das casas financeiras.
POR IRONIA, A
REPÚBLICA, QUE
NÃO TINHA HERÓIS,
FESTEJOU O RETORNO
AO PAÍS DE UM
MONARQUISTA
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UMA REPÚBLICA SEM BONS EXEMPLOS
Deodoro da Fonseca morrera, Floriano Peixoto também, Benjamin
Constant fora-se antes de todos os outros, a república não tinha heróis,
não oferecia alguém de peso, um vulto ilustre, um varão a lá Plutarco com
quem o povo pudesse se empolgar ou se orgulhar. Daí a vibração com o
barão, ironicamente um monarquista, alguém do antigo regime derrubado em 1889, mas que naquele momento muito especial, quase que de
depressão coletiva, encarnava, por assim dizer, as melhores expectativas
da nacionalidade. Rodrigues Alves (1902-1906), o novo presidente, o
convidara para o ministério, e ele, deixando Londres, viera assumir o
posto. E chegava em boa hora, porque os atritos na fronteira do Brasil com
a Bolívia, lá longe, na floresta amazônica, soltavam chispas para todos os
lados. Como observou Álvaro Lins, o melhor biógrafo do barão, “o caso
do Acre fora a princípio de geografia e história, depois, uma questão de
ordem política e econômica.”
Rio Branco estabeleceu dois frontes para evitar o choque militar com
a Bolívia. Em um deles, arregimentou o apoio da Casa Rothschild, de Londres, instituição financeira de históricas ligações com o Brasil, para que os
banqueiros intermediassem um acordo com o Bolivian Syndicate de Nova
York. Operação bem-sucedida, pois os norte-americanos aceitaram uma
compensação de 110 mil libras esterlinas para desistir do negócio, o que
enfraqueceu o lado do governo de La Paz. O outro, foi mostrar à Bolívia que
o Brasil estaria mesmo disposto a ir à guerra na defesa do povo extrativista
do Acre, visto que a opinião pública não aceitaria que o governo do Rio de
FOTO DE PEDRO HESS, FEITA EM 1860-1870, MOSTRA PRAÇA DE PETRÓPOLIS
67
a conquista do acre
MAPA DA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA, DE HORACIO E. WILLIANS (1905)
68
Janeiro cruzasse os braços, caso soubesse que os seringueiros seriam expulsos
pelas armas daquela área. Um admirador exaltado da posição tomada pelo
barão escreveu na imprensa: “Temos um homem no Itamaraty.”
Para dar prova de seriedade, como demonstração de força, ordenou-se a mobilização de tropas federais em Mato Grosso e no Amazonas para
que se deslocassem para o território do Acre. Assim, com essa articulada
combinação de diplomacia e do uso do argumento militar, só restou ao
governo da Bolívia retroceder. Aceitou um acordo provisório, assinado em
março de 1903, e decidiu por comparecer à mesa de negociação. O local
acertado foi Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, honorável cidade
imperial onde se encontravam as delegações estrangeiras no Brasil.
O princípio sustentado pelo Brasil na sua demanda para com a Bolívia
foi o mesmo utilizado pelos portugueses nos tempos dos tratados de 1750 e
1777, assinados então entre o Reino de Portugal e o Reino da Espanha para
acertarem suas diferenças fronteiriças na América Ibérica: o do uti possidetis
solis, quer dizer, tem direito ao território quem o possui; quem tomasse a
terra contestada era o seu dono de fato. Pelo lado brasileiro, atuaram Ruy
Barbosa e depois o gaúcho Assis Brasil, que o substituiu, enquanto que
representando a Bolívia encontravam-se o senador Fernando Guachalla e
o ministro Cláudio Pinilla. No primeiro dos seus dez artigos, fixou-se: “Do
rio Beni na sua confluência com o Mamoré (onde começa o rio Madeira),
para o oeste seguirá a fronteira por uma paralela tirada da sua margem
esquerda, na latitude 10º20’, até encontrar as nascentes do rio Javari.”
ALÉM DE AGREGAR
UM TERRITÓRIO DE
200 MIL KM2 SEM
DISPARAR UM SÓ TIRO,
TRATADO EVITOU QUE
BRASIL FICASSE MAL
VISTO NO CENÁRIO
INTERNACIONAL
O ACERTO FINAL
Acordou-se então que o Brasil indenizaria a Bolívia com 2 milhões de
libras esterlinas em troca de um território que incorporaria não somente
o Acre inferior (142.000 km²) , como o Acre superior (48.000 km²), rico
em florestas e reservas de seringais. O Brasil, por igual, comprometeu-se
a entregar em permuta certas áreas da fronteira do Mato Grosso que, no
total, perfaziam 3.164 km, bem como dar início à construção da Estrada
de Ferro Madeira-Mamoré, numa extensão de aproximadamente 400 km,
para permitir uma saída da Bolívia para o Oceano Atlântico (promessa
feita a primeira vez em 1867).
As negociações, entre os legatários bolivianos e os brasileiros, iniciadas
em julho de 1903, encerraram-se quatros meses depois, com a assinatura
solene do Tratado de Petrópolis no dia 17 de novembro de 1903. Consagrou-se como uma das maiores vitórias diplomáticas do Brasil, visto que
conseguiu incorporar ao território nacional, sem deflagrar guerra, uma
extensão de terra de quase 200 mil km², entregue a 60 mil seringueiros e
suas famílias para que lá pudessem exercer as funções extrativas da borracha. E, fundamentalmente, evitou-se um conflito bélico com a Bolívia,
um país pobre e isolado do mundo. Guerra que, se travada, traria uma
mancha indelével para a imagem do Brasil, pois o país iria aparecer no
cenário mundial como um valentão prepotente tirando proveito dos mais
fracos. O Barão do Rio Branco, por sua parte, foi homenageado pelo povo
acreano com a fundação da Vila de Rio Branco, atual capital do estado do
Acre. Em 2012, celebra-se o centenário de sua morte.
69
trilhos no
inferno
verde
70
71
trilhos no inferno verde
Estrada dos trilhos de ouro, em que cada dormente representa uma vida, conhecida pela alcunha de ferrovia do inferno, romanceada quase
um século depois, no livro Mad Maria, de Márcio
de Souza, que deu origem a uma minissérie de
televisão. A história das tentativas de construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré rende
excelente argumento para um romance, tais são
as cores dramáticas e a miríade de interessantes
personagens que a caracterizam.
A PROMESSA
BRASILEIRA DE
CONSTRUÇÃO DE UMA
LIGAÇÃO DA BOLÍVIA
COM O ATLÂNTICO FOI
FEITA PELA PRIMEIRA
VEZ EM 1867
72
A Ferrovia do Diabo, a propósito, é o nome do livro do jornalista
Manoel Rodrigues Ferreira, cuja primeira edição foi publicada em
1960 e na qual se faz um relato minucioso deste fato histórico, o
qual, até a publicação do livro, era pouco conhecido no país. Há
outras importantes referências bibliográficas, como o livro The Jungle
Route (O Caminho da Selva), escrito pelo norte-americano Frank
W. Kravigny, que trabalhou na construção da ferrovia, e a biografia
de Percival Farquhar, The Last Titan (O Último Titan), escrita por
Charles A. Gauld sobre personagem-chave neste episódio, como se
verá mais adiante. Cabe mencionar ainda o livro Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré, escrito pelo norte-americano Neville B. Craig no
século XIX e publicado no Brasil apenas em 1947.
Não fosse o genial trabalho de Dana B. Merril, fotógrafo contratado pelo empresário Percival Farquhar e que registrou, entre 1909
e 1910, a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, e ainda
menos documentação se teria sobre o episódio. Merril produziu mais
de 2 mil fotografias, boa parte das quais encontra-se na Coleção Museu
de São Paulo e também na Biblioteca Nacional.
A construção da ferrovia, como já mencionado, era uma consequência do Tratado de Petrópolis, de 1903, pelo qual o Brasil se comprometia a construir uma ligação da Bolívia com o Oceano Atlântico,
via acesso ao rio Amazonas, em troca da anexação do território do
hoje estado do Acre. De fato, tratava-se de uma antiga promessa, cuja
primeiro registro é de 1867, e que até então não havia sido cumprida.
ANTECEDENTES
O rio Amazonas, que é tipicamente um rio de planície, nasce
nos Andes peruanos, entra em território brasileiro na localidade de
Tabatinga, e a partir daí percorre cerca de 3.100 quilômetros, até
desembocar no Oceano Atlântico. O rio Madeira, seu maior afluente à margem direita, nasce na fronteira com a Bolívia, onde se dá a
confluência de dois grandes rios bolivianos, o Mamoré e o Beni, e
outro rio que nasce no Brasil, o Guaporé, mas que quando entra em
território boliviano passa a se chamar Itenez. A partir desse ponto,
LIGAR GUAJARÁ-MIRIM A PORTO VELHO POR VIA TERRESTRE: O DESAFIO
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trilhos no inferno verde
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ACIMA, EMBARCAÇÃO CRUZA UM VARADOURO. AO LADO, O RIO MADEIRA EM FOTO DE DANA MERRIL
até o Amazonas, onde tem sua foz, o Madeira percorre cerca de mil
quilômetros, boa parte deles – mas não sua totalidade – caracterizados
por águas mansas em meio à planície amazônica.
Uma das questões de logística que marca a história da Bolívia diz
respeito ao fato do país não possuir acesso soberano ao mar. Essa situação
surgiu após a chamada Guerra do Pacífico (1889-93), ao final da qual o
Chile incorporou a província de Tarapacá, até então pertencente ao Peru,
e a província de Antofagasta, território que permitia a ligação da Bolívia
ao Oceano Pacífico. De outra parte, uma das mais importantes ligações
entre a Bolívia e o Brasil, e alternativa de acesso ao mar que havia sido
percorrida por dezenas de viajantes portugueses e espanhóis já a partir do
século XV, é a que vai da localidade de Guajará-Mirim, às margens do
Mamoré – portanto, ainda em território boliviano –, até Santo Antônio,
às margens do Madeira, pouco acima de Porto Velho, já em território
brasileiro.
Nestes cerca de 400 quilômetros em descida (Guajará-Mirim fica
a 140 metros de altitude em relação ao nível do mar), existem cerca de
20 acidentes geográficos, ora no curso do Mamoré, ora no do Madeira.
Estes acidentes são genericamente chamados de cachoeiras, mas do
ponto de vista de sua denominação técnica, são uma sequência que
intercala sete cachoeiras, dez correntezas e três saltos (quedas com até
10 metros de altura). Se é verdade que, entre esses acidentes, existem
diversos trechos nos quais as águas correm mansas, permitindo uma
navegação tranquila (alguns deles com dezenas de quilômetros de
extensão), de outra parte a tarefa de cruzar os três saltos e algumas
das cachoeiras, utilizando-se embarcações maiores e carregadas de
NOS CERCA DE
400 QUILÔMETROS
EM DESCIDA, EXISTEM
20 ACIDENTES,
GENERICAMENTE
CHAMADOS DE
CACHOEIRAS
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trilhos no inferno verde
ACIMA, DESCIDA DE UMA CACHOEIRA. AO LADO, A LOCALIZAÇÃO DOS OBSTÁCULOS
mercadorias, era tarefa impossível, restando a opção de se contornar
estes obstáculos por terra, através dos chamados varadouros.
Nestes locais, as embarcações eram ancoradas, e as cargas transportadas via terrestre, até o ponto seguinte em que as águas voltavam a ser navegáveis. Em alguns trechos, as embarcações vazias, desde que conduzidas
por remos habilidosos, conseguiam cruzar as águas revoltas. Acontece que
nos saltos e em algumas das cachoeiras era preciso transportá-las também
por terra, rolando-as sobre toros de madeira, chamados roletes. Calcule-se, portanto, o grau de dificuldade que caracteriza esta travessia, marcada
por diversas paradas e, em boa parte do ano, realizada em meio às chuvas
abundantes em território amazônico. Um outro tanto de complexidade
deve ser adicionado à tarefa se o percurso for feito em sentido contrário, ou
seja, subindo-se o Madeira a partir de Santo Antonio, onde fica a primeira
cachoeira em território brasileiro, até alcançar Guajará-Mirim, último
acidente geográfico do trecho, já nas águas do Mamoré. Por fim, tenha
em mente que a região foi sempre altamente insalubre. É fácil chegar-se à
conclusão de que subir o Madeira sempre foi uma epopeia.
Pois foi com o objetivo de tornar menos árdua e perigosa essa alternativa de ligação da Bolívia com o Oceano Atlântico que se pensou em
construir, ali, uma ferrovia que margeasse o leito dos dois rios.
Foi o bandeirante Antônio Raposo Tavares o primeiro a conhecer todo
o curso do rio Madeira, em 1650, quando desceu suas cachoeiras e chegou
ao Amazonas. Entretanto, a façanha de vencer os obstáculos naturais no
sentido contrário, e com o diferencial de contar com um auxiliar para
registrar por escrito a viagem, coube ao sargento-mor Francisco de Melo
SUBIR OU DESCER O CURSO DO MADEIRA FOI
SEMPRE UM DESAFIO PARA OS VIAJANTES
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77
trilhos no inferno verde
SOMENTE EM 1861
SURGIRAM OS
PRIMEIROS ESTUDOS
SOBRE UMA LIGAÇÃO
FERROVIÁRIA
PARALELA AO MADEIRA
E AO MAMORÉ
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Palheta, que partiu de Belém em 11 de novembro de 1722 e chegou à
confluência entre o Mamoré e o Guaporé/Itenez em 15 de agosto do ano
seguinte. O trecho encachoeirado do Madeira foi percorrido por Palheta
em 45 dias. Pouco tempo depois de concluída a façanha, o sargento-mor
receberia outra importante missão, desta feita de caráter diplomático: a de
viajar até a Guiana Francesa com o intuito de restabelecer com o governo
local as fronteiras delimitadas pelo Tratado de Utrecht. As negociações
tiveram resultados duvidosos, mas Palheta retornou da viagem com certa
quantidade de sementes na bagagem, as quais teriam dado origem ao
cultivo do café em terras brasileiras (para maiores detalhes sobre o ciclo do
café, consultar Dos cafezais nasce um novo Brasil, volume 2 desta coleção).
O PRIMEIRO CICLO
Foi somente em 1861 – quando o Brasil, a propósito, começava a
construir suas primeiras estradas de ferro, financiadas pela riqueza proporcionada pelas crescentes exportações de café – que surgiram estudos sobre
a possibilidade de estabelecer uma ligação ferroviária paralela ao curso do
Madeira e do Mamoré, de forma a que se pudessem evitar seus muitos
obstáculos. Não muito tempo depois, em 1867, Brasil e Bolívia assinariam
o Tratado de Amizade, Limites, Navegação, Comércio e Extradição, o
qual, entre outros itens, previa a livre circulação dos bolivianos pelos rios
navegáveis do Brasil (e vice-versa), facilitando-se, assim, o acesso do país
vizinho ao Oceano Atlântico e ao mercado europeu. Assinados os papéis,
quase simultaneamente ambos os países tomaram providências no sentido
de efetivamente construir algum tipo de ligação no trecho.
Enquanto o Brasil contratou engenheiros para realizarem um estudo
ACIMA E AO LADO, IMAGENS DOS CONSTANTES DESMORONAMENTOS DE TERRA
sobre a possibilidade de uma ferrovia na região, a Bolívia negociou com o
empresário e general norte-americano George Earl Church a concessão
para organizar uma empresa de navegação que operaria no trecho Madeira-Mamoré, devendo, para tanto, canalizar suas cachoeiras. De pronto, ficou
claro para Church que construir uma ferrovia seria bem mais viável do que
apostar na navegação, e assim o contrato com os bolivianos foi modificado,
tendo sido criada a Madeira & Mamoré Railway, que ficaria encarregada
de administrar o projeto.
Como a ferrovia seria construída em território brasileiro, seria necessário solicitar às autoridades nacionais autorização para tocar em frente
a empreitada. Uma vez fornecida a licença, sucederam-se idas e vindas
envolvendo diferentes empreiteiras contratadas para dar conta da obra,
todas elas resultando em retumbantes fracassos, sempre pelos mesmos
motivos: as péssimas condições de trabalho em meio à floresta amazônica
terminaram por afugentar duas empresas norte-americanas e uma inglesa,
não sem antes terem sido contabilizadas centenas de baixas em seus quadros de funcionários, acometidos por febres e diversos outros males fatais.
Mas Church não desistiu.
Em outubro de 1877, assinou novo contrato com uma empreiteira, também norte-americana, a P&T Collins, cuja má sorte pareceu estar selada logo de início, quando um dos quatro navios que
zarparam para o Brasil com funcionários e equipamentos naufragou
ainda nos Estados Unidos, matando por afogamento 80 dos mais de
200 passageiros. Sem conhecimentos detalhados das condições de
trabalho às margens do Madeira, bastou pouco mais de um ano para
O PERSISTENTE
CORONEL CHURCH
ACREDITOU QUE A
P&T COLLINS DARIA
CONTA DA TAREFA
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trilhos no inferno verde
MERRIL REGISTROU ENCONTRO DE EMPREITEIROS DA FERROVIA, EM 1909
que esta nova tentativa resultasse em mais uma frustração. Chuvas
diárias, mosquitos, formigas vorazes, falta de alimentos, disenterias,
malária, febres e ameaças constantes de ataques dos índios resultaram
em centenas de mortes, em meio a um sem-número de deserções
de homens desesperados com as condições selvagens para exercício
do trabalho.
Ao mesmo tempo em que os donos da P&T Collins e o general
Church tinham dificuldade em captar recursos na Europa para seguir
financiando a empreitada, centenas de norte-americanos, italianos,
irlandeses e mesmo brasileiros, cooptados no Ceará, perdiam a vida
em meio àquele ambiente extremamente hostil. Calcula-se que o total
de mortos, na época, tenha ficado entre 450 e 500. O próprio Philip
Collins foi alvo dos índios, e por milagre sobreviveu a duas flechadas,
uma das quais perfurou seu pulmão. No dia 19 de agosto de 1897, finalmente foi dada a ordem para que todos os cidadãos norte-americanos
que ainda se encontravam no Brasil retornassem para seu país. Após
10 anos, fechava-se o primeiro ciclo de tentativas de construção da
ferrovia, restando de tudo, além das mortes e da falência de vários
empresários, apenas 7 quilômetros concluídos.
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INTEGRANTES DA TROPA ARMADA AMERICANA QUE ZELAVA PELA SEGURANÇA DOS TRABALHADORES
O DESAFIO PROSSEGUE
No fatídico ano de 1897, a Bolívia envolveu-se em uma disputa com o
Chile, na qual foi derrotada e terminou por ver anexada pelo país vizinho
justamente a faixa de seu território que garantia ligação com o Oceano
Pacífico. Crescia de importância, portanto, a ideia de se buscar uma forma
de se tornar menos complexa a saída de produtos bolivianos via rio Madeira
e Amazonas, e depois pelo Atlântico. O Brasil, que seguia interessado
comercialmente em franquear a livre circulação dos bolivianos no país,
apostando no incremento da arrecadação pela cobrança de tarifas, decide
assinar novo acordo com o país vizinho, firmado em 15 de maio de 1882.
Com uma diferença: agora seria o Brasil quem estaria à frente do projeto.
Em janeiro de 1883, parte um vapor do Rio de Janeiro levando os
integrantes da comissão Morsing, encarregada de verificar as condições
locais e elaborar um novo plano. A chegada do grupo a Santo Antonio,
depois de paradas e troca de embarcações em Belém e em Manaus, aconteceu em 19 de março. No dia 9 de abril, portanto apenas 20 dias após o
desembarque, 22 dos 60 integrantes da comissão já se encontravam adoentados. No dia 11, em meio a torrenciais chuvas, o número subiu para
32, ou seja, mais de metade do grupo. A principal doença era a chamada
APENAS 20 DIAS
APÓS A CHEGADA
A SANTO ANTONIO,
22 DOS 60 INTEGRANTES
DA COMISSÃO MORSING
JÁ SE ENCONTRAVAM
ADOENTADOS
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trilhos no inferno verde
EM 1905,
PERCIVAL FARQUHAR
APROXIMA-SE
DO BRASILEIRO
JOAQUIM CATRAMBI
febre biliosa, muito comum na região do Madeira. Em 17 de maio, tendo
falecido pouco antes o primeiro engenheiro da equipe, chamado Índio do
Brasil, cai doente o chefe da missão, Carlos Alberto Morsing, que termina
por ser removido para o Rio de Janeiro, a fim de buscar melhores condições
para seu tratamento de saúde e, simultaneamente, relatar ao governo as
dificuldades da empreitada.
Em 8 de agosto, todos os integrantes da comissão que haviam permanecido em Santo Antônio encontravam-se doentes, e o então o engenheiro-chefe em exercício, Júlio Pinkas, decide pelo encerramento dos trabalhos,
ordenando a retirada da equipe para Manaus. Contabilizaram-se, na
oportunidade, as mortes de três engenheiros e de dezenas de trabalhadores.
Recuperado, Morsing retornaria a Santo Antônio, assim como Pinkas,
que recebeu autorização para apresentar um novo projeto para a ferrovia.
Iniciava-se, então, uma longa disputa e trocas de acusações e críticas entre
os dois engenheiros, tendo como motivação definir qual plano era o mais
viável. Acalorados debates sobre custos e o melhor trajeto da ferrovia se
estenderiam até quase o final do século XIX, sem que o governo brasileiro
adotasse uma posição.
Então veio a proclamação da República, e com ela, nova guinada:
como o governo republicano buscava diferenciar-se ao máximo das políticas do Império, em 1891 foi autorizada nova concessão para a construção
da ferrovia, com um detalhe fundamental: o projeto deveria prever o ponto
inicial da ferrovia quase 200 km abaixo de Santo Antônio, tendo como
ponto final a confluência dos rios Mamoré e Guaporé, 200 km acima de
Guajará-Mirim. Em lugar dos estimados 362 km dos projetos até então
desenvolvidos, a ferrovia alcançaria cerca de 800 km de extensão. Formalizado o contrato, em 30 de maio de 1891, nova frustração: passados
24 meses, os concessionários não conseguiram dar início aos trabalhos, e
assim o prazo de concessão melancolicamente caducou, sem que um só
dormente tivesse sido assentado.
NOVO TRATADO, ESPERANÇAS RENOVADAS
Como já mencionado anteriormente, pelo Tratado de Petrópolis,
assinado em 17 novembro de 1903, o Brasil ganhava o direito de anexar
o território do Acre, mas o governo brasileiro (novamente) se comprometia a construir, em quatro anos, uma ferrovia ligando Santo Antônio a
Guajará-Mirim. O documento foi aprovado pelo Congresso Nacional em
janeiro de 1904, e somente em 12 de maio de 1905 foram publicados os
termos da concorrência visando à contratação de uma empresa particular
para realizar a obra.
Neste mesmo ano, começa a ser conhecida no Rio de Janeiro a figura
de Percival Farquhar, empresário norte-americano nascido na Pensilvânia e
com vários projetos bem-sucedidos nos Estados Unidos e na América Central. Por essa época, Farquhar havia conhecido em Londres o empresário
brasileiro Joaquim Catrambi, empreendedor de estradas de ferro cuja fama
AO LADO, HENRY F. DOSE, ENGENHEIRO DA ESTRADA DE FERRO MADEIRA-MAMORÉ
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83
trilhos no inferno verde
HOMENS ARRASTAM UM BATELÃO COM MATERIAL DE CONSTRUÇÃO
DEPOIS DE APENAS TRÊS MESES DE TRABALHO,
QUASE TODOS OS TRABALHADORES CAÍAM DOENTES
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não era caracterizada exatamente pela honestidade na condução de seus
negócios, bem ao contrário. Entusiasmado com as perspectivas de lucros em
negócios na região do Madeira, que lhe foram insistentemente enfatizadas
por um certo engenheiro A. Moreira, Farquhar aliou-se a Catrambi. Não
apenas comprou-lhe antecipadamente a concessão da estrada de ferro que
ainda estava por ser licitada, como também auxiliou-o na formatação de
uma proposta com valores bastante reduzidos. Catrambi de fato venceu
a concorrência, enquanto em paralelo Farquhar constituía a construtora
May, Jekill & Randolph. Tal era a convicção no sucesso da parceria que
a empresa iniciou suas atividades na Amazônia em junho de 1907, oito
meses antes de formalmente adquirir de Catrambi os direitos sobre a
concessão. Curioso registrar que Farquhar jamais pisou na Amazônia em
todo o período em que esteve à frente do empreendimento.
Em 2 de agosto de 1907 foi fundada a Madeira-Mamoré Railway
Company, que pouco tempo depois compraria os direitos de construção
da ferrovia, ato que foi reconhecido pelo governo brasileiro apenas em
janeiro de 1908. A companhia seria também, uma vez concluídas as
obras, a concessionária dos serviços, já que, formalmente, a ferrovia era
propriedade do governo brasileiro.
De acordo com estatísticas da própria Madeira-Mamoré, ainda em
1908 foram registrados 65 óbitos entre os trabalhadores. O número de
empregados foi aumentando no decorrer do ano. Eram 291 em janeiro,
374 em fevereiro, até chegar a 1.200 em julho, recuando para em torno de
900 até dezembro, quando somavam 1.800 pessoas. É interessante ressaltar
que, ao longo do ano, a empresa teve que importar cerca de 2.450 homens
para o trabalho, tal era o índice de abandonos, de invalidados ou mortos.
Nem é para menos. Por mais fortes e dedicados que fossem, os trabalhadores em média trabalhavam por três meses, e então caíam adoentados,
raramente conseguindo se recuperar de forma a retomar suas atividades.
A questão da mão-de-obra, portanto, era das mais complexas de serem
administradas pelos construtores da ferrovia. Ademais, os seringueiros do
vale do Amazonas viviam seu melhor período de ganhos, e dificilmente
aceitavam as propostas para trabalharem na ferrovia. Restava aos empreendedores buscar força de trabalho na América Central e Caribe.
As notícias sobre as péssimas condições eram tão impressionantes que
nem mesmo trabalhadores espanhóis que haviam trabalhado na construção
de uma ferrovia em Cuba, concluída em janeiro de 1908, aceitaram trabalhar na empreitada brasileira. Dos 350 trabalhadores que embarcaram no
vapor Amanda, no porto de Santiago de Cuba, com destino a Porto Velho,
apenas 65 chegaram ao seu destino. Os demais, durante uma parada no
porto de Belém, no Pará, ouviram relatos de tal forma aterrorizantes que
se recusaram a prosseguir viagem. Explica-se, assim, por que em seis anos,
entre 1907 e 1912, foram “importados” nada menos que 21.783 homens
para trabalhar na construção da ferrovia.
E como era a Santo Antonio da época? O povoado, bastante frequentado por produtores de borracha, tinha cerca de 300 habitantes, dos
quais a quase totalidade era composta de índios bolivianos, encarregados
de transportar as cargas das canoas e batelões para um depósito, e daí
DE 350 ESPANHÓIS
CONTRATADOS EM
CUBA, NADA MENOS
QUE 285 DESISTIRAM
AO OUVIREM, EM
BELÉM, RELATOS
SOBRE AS CONDIÇÕES
DE TRABALHO
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trilhos no inferno verde
EUROPEUS PREPARAM SUA COMIDA EM RANCHO DE FOLHAS DE PALMEIRAS
para os vapores procedentes de Belém, e vice-versa. Havia três ou quatro
armazéns cobertos com chapas metálicas corrugadas, provavelmente
deixados ali no século passado. Havia ainda algumas tiendas e cantinas.
Choças de bambu nativo e folhas de palmeiras, habitações dos índios
bolivianos, completavam a vila. A ferrovia, entretanto, seria iniciada oito
quilômetros abaixo de Santo Antonio, em Porto Velho (que anteriormente
era conhecida como Ponto Velho).
Com o início das obras de construção da ferrovia, Santo Antonio se
transformou em uma babel de estrangeiros. Em quantidade, destacavam-se
trabalhadores vindos da Espanha, de Trinidad, Barbados, Jamaica, Panamá
e Colômbia, mas havia também europeus e asiáticos, como gregos, italianos,
franceses, hindus, húngaros, poloneses, dinamarqueses etc. O espanhol
Benigno Cortizo Bouzas publicou um livro em 1950 narrando suas aventuras durante a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, chamado
Do Amazonas ao Infinito. Antes de trabalhar na construção da ferrovia,
Bouzas empregou-se em um hotel. Acompanhe alguns trechos do relato:
“A ideia que eu fazia do Amazonas, como um dos maiores do mundo,
era a de que ele seria maravilhoso, pois o que eu conhecia de um rio era
ele precipitando-se por cachoeiras, com arvoredo florido nas margens e
relva, mas agora era coisa diferente: a água era cor de barro, a floresta era
espessa e rente às margens, nem uma só flor e, em lugar de relva, lodo e
mais lodo. Enfim, uma paisagem violentamente triste. (...) Dos três companheiros, dois morreram de malária 15 dias após chegarmos ali; o terceiro,
apavorado, embarcou como passageiro clandestino para Manaus, mas o
infeliz morreu a bordo. (...) As febres também me acometeram fortemente; fiquei sem cabelos, pálido e extremamente débil, mas sempre pude
trabalhar. De manhã, tremia duas horas devido à febre intermitente, e o
resto do tempo tinha que fazer o que era possível. (...) A clientela do hotel
(devo esclarecer que o hotel não era nada do que geralmente se entende
por tal: os dormitórios eram ganchos nas colunas e paredes, os hóspedes
86
UMA DAS ETAPAS DA CONSTRUÇÃO DA FERROVIA
O ESPANHOL BOUZAS RELATOU QUE FOI ACOMETIDO POR FEBRES,
TENDO PERDIDO OS CABELOS E FICADO MUITO DEBILITADO
87
trilhos no inferno verde
TÉCNICOS DA ESTRADA DE FERRO E O LENDÁRIO FOTÓGRAFO DANA MERRIL, À DIREITA
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amarravam as suas redes naqueles ganchos, e quem não tinha rede dormia
no chão) era composta de gente de todas as partes do mundo. Além dos
seringalistas e seringueiros, em sua quase totalidade brasileiros, bolivianos
e peruanos, a companhia norte-americana levou para lá trabalhadores de
todas as partes. Os que não trabalhavam ficavam à espreita, aguardando
o dia de pagamento nas empresas, e por meio do jogo e trapaças, tiravam-lhes o dinheiro. Isto ocasionava confusões e brigas, com os conseguintes
resultados de roubos e assassinatos. Também as confusões por causa de
mulheres davam um forte contingente à desordem e à anarquia. A promiscuidade sexual era um hábito frequentíssimo. As poucas mulheres que
existiam eram provenientes dos prostíbulos de Manaus.”
Atraído pelo salário – 150 mil réis, contra os 60 mil que ganhava no
hotel –, Bouzas aceitou trabalhar nas obras, como ajudante de médico:
“Nos acampamentos, passava-se mais ou menos bem. Conservas da
Califórnia não faltavam, bacalhau, carne seca e havia também toicinho.
Todo acampamento tinha um caçador profissional, de maneira que quase
todos os dias havia porcos-do-mato, veado ou cotia frescos. Os rios e lagoas
também forneciam abundante pescado, algum de excelente qualidade.
(...) A vida era dura, mas o pior de tudo eram as doenças. A malária e sua
consequência, a avitaminose, deixavam os organismos expostos à primeira
investida de um simples catarro. As baixas eram alarmantes. Eu tinha
grandes desejos de ver montanhas, o mar. A monotonia da paisagem era
enervante: desde Porto Velho até Guajará-Mirim, a paisagem não tinha
variações: selva e mais selva de um verde-escuro e sem flores; rios e mais
rios de águas turvas, tributários do Madeira; lagoas e lodaçais sem fim.
Os mosquitos eram outro castigo terrível: de dia, o pium, o borrachudo
e o maruim, e de noite, o carapanã, o mais perigoso, porque transmite o
impaludismo.”
O dr H.P. Belt, que atuou como médico chefe na região, na mesma
época, foi enfático: “Tenho praticado continuamente por 16 anos nos
países tropicais, e sem hesitar desejo mostrar que a região a ser atravessada pela Madeira-Mamoré Railway é a mais doentia do mundo. (...)
A nenhum homem branco deve ser permitido ficar no trabalho, continuamente, por mais de nove meses, mesmo no caso que ele o queira
e aparentemente se mostre capaz de suportar”. Não é de surpreender,
portanto, que as 65 mortes de 1908 tenham pulado para 428 em 1909,
ainda que seja preciso considerar que a média mensal de trabalhadores
empregados naquele ano tenha sido de 2.200.
A respeito dos trabalhos realizados em 1909, um relato apresentado
ao presidente da República dá conta do quadro de dificuldades para a
construção da ferrovia:
“O mau estado sanitário de toda a zona, fazendo baixar ao hospital um número considerável de operários; a grande vazante do rio
Madeira, dificultando sobremaneira o transporte dos materiais vindos
do estrangeiro e descarregados em Itacoatiara; a má qualidade das
terras em geral, demorando extraordinariamente a solidez dos aterros,
principalmente na estação chuvosa e, consequentemente, a pouca
segurança da linha assentada, motivando continuadas interrupções
AS 65 MORTES
REGISTRADAS
EM 1908 PULARAM
PARA 428 EM 1909
89
trilhos no inferno verde
CONSTRUÇÃO DE PONTE SOBRE O RIO JACIPARANÁ
EM 30 DE ABRIL FOI
ASSENTADO O ÚLTIMO
DORMENTE, E EM
1º DE AGOSTO DE
1912 A FERROVIA FOI
INAUGURADA
90
nas viagens dos trens de mercadorias, de materiais e lastro, foram as
causas principais da irregularidade do serviço de construção. Embora
a companhia tivesse conseguido por em trabalho, no meado do ano,
cerca de 4 mil operários, o serviço por eles executado foi relativamente
insignificante, não correspondendo às grandes despesas efetuadas
para transportá-los até Porto Velho, porque, para tanto, houve necessidade de ser mantida uma corrente ininterrupta de gente que
subia contratada, a fim de ser compensada a deserção cada vez mais
acentuada pelo ermo da mata, que descia incessantemente em busca
de outras paragens, onde a saúde tivesse a garantia e melhor aplicação
dos lucros auferidos em poucos meses de trabalho.(...) A linha, que
deveria chegar em setembro ao Jaciparaná, a 86 quilômetros do ponto
inicial (Santo Antonio), só o atingirá talvez em fins de fevereiro do
corrente ano (1910), pelos motivos já expostos e também pela falta
de dormentes (...).”
O grande médico e sanitarista brasileiro, Oswaldo Cruz, que visitou
a região na época, ficou tão impressionado com o que viu que chegou
a dizer que a população local não tinha noção do que fosse o estado
TRABALHADORES OPERAM UM BRITADOR DE PEDRAS
hígido, pois ali a condição de ser enfermo constituía a normalidade.
Registrou Oswaldo Cruz: “De janeiro a junho de 1910 trabalharam
em média 2.588 operários por mês. Baixaram ao hospital por acessos
de impaludismo 1.736. Nos acampamentos, foram conhecidos 592
trabalhadores que interromperam o trabalho diariamente por causa
dos acessos. Houve, pois, 2.328 casos conhecidos de manifestações
agudas de malária em 2.588 operários!”
Apesar de tudo, o primeiro trecho da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, entre Santo Antonio e Jaciparaná, em uma extensão de
90 quilômetros, foi inaugurado em 31 de maio de 1910, com toda a
pompa e circunstância. O segundo trecho, em uma extensão de 62
quilômetros, ou seja, até o km 152, à altura da cachoeira dos Três
Irmãos, foi inaugurado em 30 de outubro de 1910. Em 1911, no dia 7
de setembro, foi inaugurado novo trecho, até o km 220. Por fim, em 30
de abril de 1912, assentava-se o último dormente da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré, no ponto final, em Guajará-Mirim. No dia 1º de
agosto desse mesmo ano, realizava-se a inauguração do último trecho.
Finalmente, depois de 190 anos em que o homem subira e descera
91
trilhos no inferno verde
aquela seção encachoeirada dos rios, em que milhares de vítimas foram
contabilizadas em razão de um sem-número de naufrágios, doenças e
ataques de índios, finalmente o progresso e a técnica haviam vencido.
CORREIOS
LANÇARAM EM 2012
SELO E CARIMBO
COMEMORATIVOS
AO CENTENÁRIO
DA FERROVIA
92
A HISTÓRIA RECENTE
Durante a Segunda Guerra Mundial, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré voltaria a ter grande valor estratégico para o Brasil, operando
plenamente para suprir o transporte de borracha, utilizada no esforço
de guerra aliado (ver capítulo seguinte). Em 1957, quando ainda registrava um intenso tráfego de passageiros e cargas, a ferrovia integrava
as 18 empresas constituintes da Rede Ferroviária Federal.
Em 25 de maio de 1966, depois de 54 anos de atividades, a ferrovia
foi desativada. A fim de que não se configurasse rompimento e descumprimento do acordo celebrado em Petrópolis, em 1903, com a Bolívia,
foi necessário substituí-la por uma rodovia, o que materializou-se nas
atuais BR-425 e BR-364, que ligam Porto Velho a Guajará-Mirim. Em
10 de julho de 1972, as máquinas apitaram pela última vez.
A partir de então, o abandono foi total, e em 1979 o acervo da
rodovia começou a ser vendido como sucata para a siderúrgica de
Mogi das Cruzes, em São Paulo. Somente em 1981 a ferrovia voltaria a
operar, em um trecho de apenas sete quilômetros dos 366 do percurso
original, apenas para fins turísticos, sendo novamente paralisada por
completo em 2000.
Depois de muita movimentação no sentido de que sua história fosse
valorizada, em novembro de 2005 a ferrovia foi tombada pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em novembro
LOCOMOTIVA NORTE-AMERICANA BALDWIN FOI UMA DAS ESTRELAS DA FERROVIA. AO LADO, IMAGEM DOS TRILHOS
de 2011, foi autorizado o início das obras de restauração da grande oficina da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que possui 5.700 m2 e 13
metros de altura. O trabalho de revitalização será pago pelas compensações dos impactos causados pela construção das usinas hidroelétricas
de Santo Antônio e Jirau, que integram o chamado Complexo do Rio
Madeira. O projeto prevê também a retomada do funcionamento das
locomotivas, como trem turístico, no trecho entre a Estação de Porto
Velho e a de Santo Antônio, com aproximadamente 8 quilômetros. Em
fevereiro de 2012, foi instalado o Comitê Pró-Candidatura da EFMM a
Patrimônio Mundial da Unesco. E em 1º de agosto, quando se completaram exatos 100 anos de inauguração da ferrovia, os Correios lançaram
o selo personalizado e carimbo comemorativo alusivos ao centenário.
93
frustação e
abandono
em meio à
floresta
94
95
frustração e abandono em meio à floresta
A TERRA SENDO PREPARADA PARA RECEBER AS SEMENTES DA HEVEA BRASILIENSIS
FUNCIONÁRIO AO LADO DE
SERINGUEIRA COM UM ANO
A crise da borracha brasileira iniciou-se por
volta de 1910, o que pode ser comprovado pela
força dos números. Em 1900, o Brasil havia
produzido em torno de 27 mil toneladas de borracha, número que em 1919 subiu para 34 mil
toneladas. Já na Ásia, o salto foi incrivelmente
mais alto. De 3 mil toneladas no primeiro ano
do século XX, a produção pulou para mais de
381 mil toneladas em 1919, em grande parte
absorvida pela indústria automobilística norte-americana.
E no que diz respeito a esta indústria, a palavra automóvel, naquele momento histórico, era sinônimo de Henry Ford. Idealizador da
revolucionária linha de montagem que reinventou o capitalismo, Ford
planejou controlar toda a cadeia de produção. Nos EUA, era dono de
minas de ferro e carvão, matéria-prima que abastecia as metalúrgicas
96
DIA DE PAGAMENTO EM FORDLÂNDIA: SALÁRIOS ACIMA DA MÉDIA PAGA PELOS CORONEIS DA REGIÃO
que forjavam as peças automotivas. Não é de se estranhar que ele
quisesse produzir também o principal insumo para seus pneus e todas
as partes emborrachadas de seus carros.
Como se sabe, a história do controle inglês e holandês sobre a
produção de borracha no mundo se iniciou com o contrabando de
sementes da hevea brasiliensis feito por Henry Wickham em 1876, com
a consequente aclimatação das plantas no Kew Garden, em Londres, e
sua posterior adaptação no Ceilão, possessão britânica, e em Java, território holandês. Graças ao manejo do cultivo da hevea, em substituição
ao modelo extrativista em meio à selva amazônica, foi possível aumentar a produção de tal forma que as 512 libras a tonelada de borracha
brasileira caíram para 100 libras a borracha asiática. Se conseguisse
reproduzir experiência semelhante na Amazônia, Ford teria um custo
ainda mais baixo, e com a vantagem de utilizar a matéria-prima para
abastecer seus próprios empreendimentos automobilísticos.
Por volta de 1927, iniciou as negociações com o governo brasileiro
e, no início dos anos 1930 conseguiu a concessão de terras na região de
Tapajós, ao sul de Santarém, no Pará, onde construiu a infraestrutura
de um pequeno núcleo urbano que ficaria conhecido como Fordlândia.
A área tinha cerca de 1 milhão de hectares.
FORD CONSEGUIU A
CONCESSÃO DE UMA
ÁREA COM CERCA DE
1 MILHÃO DE HECTARES
97
frustração e abandono em meio à floresta
EM BELTERRA,
A SEGUNDA
FORDLÂNDIA, AINDA
HÁ MARCAS DA
PASSAGEM DOS
NORTE-AMERICANOS
98
NASCIMENTO E MORTE DA FORDLÂNDIA
Um grande capital – no total, algo em torno de 20 milhões de dólares, segundo alguns registros, ou pelo menos 12 milhões de dólares,
de acordo com outras estimativas – seria investido no lugar até 1945.
O aporte viabilizaria, além dos custos de manutenção e aquisição
de sementes, também toda a infraestrutura, da qual fazia parte uma
grande serraria, naquele tempo a maior de toda a América do Sul, de
forma a se poder aproveitar a madeira proveniente das árvores que
seriam derrubadas para o plantio das seringueiras.
Os cerca de 3 mil caboclos que seriam empregados pela Companhia Ford Industrial do Brasil moravam em casas de madeira com até
três quartos e água encanada. Contavam com um grande hospital,
escola, piscina e salão de baile com telão para exibição de filmes.
Recebiam pagamento muitas vezes superior ao que os coronéis da
região costumavam pagar. Até um campo de golfe foi construído
para o lazer dos executivos da Ford que estivessem na localidade. O
cenário parecia perfeito.
Ford chegou a se entusiasmar quando, depois de dois anos, por
volta de 1933, as cerca de 1 milhão de mudas plantadas começaram
a crescer, mostrando-se aparentemente robustas e saudáveis. Mas
ainda em 1932 o que para muitos era apenas uma questão de tempo
aconteceu: o fungo Dothidella ulei começou a tomar conta das árvores plantadas em Fordlândia. Era o mal-das-folhas, que devastava
as seringueiras e prejudicava a produção. Lenta e gradualmente,
o sonho plantado em Fordlândia ia sendo literalmente dizimado.
Quatro anos depois, em 1935, Ford fez nova tentativa. Por
sugestão de um técnico norte-americano chamado James R. Weir,
trocou parte das terras de Fordlândia por outras, com algo em torno de 250 mil hectares de extensão, mas na outra margem do rio,
agora mais próximas da foz do rio Tapajós, na localidade chamada
de Belterra. Outros tantos milhares de dólares foram investidos, e
apesar de todos os cuidados e aplicação de modernas tecnologias,
como enxertos, mais uma vez a plantação seria devastada pelo mal-das-folhas. Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, Ford
decidiu vender suas propriedades no Brasil por 250 mil dólares, valor
suficiente para quitar seus compromissos trabalhistas de acordo com
a legislação brasileira de então. A produção daquele ano não havia
ultrapassado 115 toneladas, cerca de 2% do que poderia se esperar
das 3,2 milhões de seringueiras que, de uma forma ou outra, haviam
sobrevivido ao mal-das-folhas.
Da primeira Fordlândia, pouco restou. Em Belterra, que durante
muito tempo pertenceu ao município de Aveiro, ainda há construções
que testemunham a passagem dos norte-americanos pelo lugar. O
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) abriu
processo para avaliar o possível tombamento do local. As discussões
mais recentes dão conta da pertinência da construção ou não de uma
creche no lugar, obra que já foi autorizada pelo Iphan.
SALÃO DE BAILE E CINEMA (ALTO), PISCINA (ACIMA) E CASAS DE MADEIRA EM FORDLÂNDIA (ABAIXO)
99
frustração e abandono em meio à floresta
CARTAZ DE JEAN PIERRE CHABLOZ QUE COMBINA DESENHO E COLAGEM
OS SOLDADOS DA BORRACHA
Para fixar o trabalhador rural nos sertões de Goiás e de Mato
Grosso, o governo de Getúlio Vargas concebeu, nos anos 1930, em paralelo a sua política de industrialização e substituição da mão-de-obra
imigrante pela nacional (ver capítulo 6), um plano amplo chamado de
“Marcha para o Oeste”, que logo se estendeu para a Amazônia. As
secas no Nordeste eram a justificativa moral para oferecer essa opção
àqueles que decidissem migrar. A conjuntura internacional, entretanto, abalada pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, colocou por
terra o que se pretendia ser um plano de interiorização e colonização.
Acordos assinados em 1942 em Washington condicionaram a
política externa brasileira. O controle japonês do abastecimento da
borracha colocou aos países aliados o desafio de conseguir rapidamente
um fornecedor daquele insumo, sobretudo para a indústria bélica. A
Ásia, que poucos anos antes havia derrubado a cotação do valor da
borracha, colocando por terra o ciclo que se desenvolvia no Brasil,
estava agora amarrada pelos países do Eixo. O governo brasileiro,
então, decidiu que a melhor forma de fornecer mão-de-obra barata
para os seringalistas poderem produzir mais borracha em menos tempo
na região amazônica era direcionar para lá a migração de nordestinos
100
CAMINHÃO DO SEMTA PARTE PARA O AMAZONAS, EM 1943
– exatamente como havia ocorrido no final do século XIX. A seca de
1942, não tão intensa quanto a ocorrida entre 1897-99, em tese tornava
a tarefa de convencimento menos árdua.
É importante destacar que os Estados Unidos há algum tempo se
dedicavam a pesquisar dois diferentes modelos de produção da borracha:
a chamada heveicultura, ou seja, o cultivo sistemático e racional de
plantas resistentes e de alta produtividade (conceito que havia sustentado o projeto de Henry Ford, inclusive) e a borracha sintética. Uma
terceira opção, baseada no extrativismo, surgiu como decorrência de
uma circunstância específica. A prática viria a confirmar que, de fato,
este modelo de produção apresentava resultados mais do que modestos.
A saber: entre 1943 e 1946, o Brasil viria a exportar 42,8 mil toneladas
de borracha, quantidade insignificante diante do consumo dos Estados
Unidos apenas no ano de 1943: foram 332,7 mil toneladas de borracha
vegetal, 173,6 mil toneladas de borracha sintética e 162,7 mil de borracha
regenerada. Mas o conflito bélico na Europa não deixava dúvidas quanto
à necessidade de se encontrar um modelo que substituísse a produção
asiática, ainda que parcialmente. Ademais, durante a Primeira Guerra
Mundial, cada combatente utilizava no serviço militar 16 quilos de borracha. Na Segunda Guerra, essa quantidade aumentou para 98 quilos.
NA PRIMEIRA GUERRA,
CADA SOLDADO
CONSUMIA 16 QUILOS
DE BORRACHA. NA
SEGUNDA, ERAM 98
101
frustração e abandono em meio à floresta
GETÚLIO VARGAS ESTEVE EM BELTERRA EM 1941, DURANTE A CAMPANHA
De que forma o governo brasileiro procurou organizar aquele novo
movimento migratório em massa? Criou-se de imediato o Serviço
Especial de Mobilização de Trabalhadores para o Amazonas (Semta)
e, em paralelo, o Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), que tinha
como objetivo sanear a Amazônia e a região do Vale do Rio Doce,
onde se produzia borracha e minério de ferro, ambas matérias-primas
chave no esforço de guerra norte-americano. Já a Superintendência
de Abastecimento do Vale Amazônico (Sava) se encarregaria de
efetivamente internalizar os trabalhadores, a partir de sua chegada
a Belém. De início, o governo chegou a conceder 4 mil passagens
no Lloyd Brasileiro e na Amazon River, na tentativa de atrair para a
Amazônia o maior número possível de trabalhadores.
QUEM FISCALIZA?
Para dar aparência de que haveria um efetivo monitoramento das
relações de trabalho, criou-se um modelo de contrato em que, de um
lado, o próprio governo assumia determinados compromissos, no sentido de garantir algumas condições para que os trabalhadores chegassem
até os seringais; de outra parte, os seringalistas se comprometiam com
garantias na relação de trabalho. Uma das principais preocupações do
governo era com os preços dos gêneros fornecidos aos trabalhadores,
pois sabia-se que este havia sido o calcanhar de Aquiles das relações
desiguais nos seringais desde o século XIX.
UMA DAS PREOCUPAÇÕES DO GOVERNO ERA
COM O ENDIVIDAMENTO DOS TRABALHADORES
102
O ENXOLVAL DE UM SERINGUEIRO QUE ERA ENVIADO PARA A AMAZÔNIA
103
frustração e abandono em meio à floresta
CHABLOZ (AO CENTRO) NA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA JOÃO FELIPE, DECORADA COM CARTAZES DA CAMPANHA
Para evitar problemas com o endividamento irreversível dos seringueiros, Vargas determinou que os pagamentos dos trabalhadores
deveriam ser feitos semanal ou quinzenalmente, não podendo ser
realizados mediante a emissão de vales. Os proprietários das terras
receberiam as quantias que os trabalhadores porventura quisessem
depositar, sem cobrar juros por isso, estando obrigados a entregá-las
quando solicitadas, escriturando as operações em cadernetas. Outro
ponto estabelecia que os trabalhadores poderiam comprar gêneros
alimentícios e utilidades onde lhes aprouvesse, e não apenas do tradicional aviador, que tinha exclusividade sobre determinadas áreas.
Ainda de acordo com o contrato, o seringalista se obrigava a entregar ao seringueiro peças de roupa e medicamentos de uso comum,
utensílios e ferramentas necessários ao serviço e à extração de látex,
inclusive arma e munição de caça, bem como as estradas arrendadas
em condições que permitissem sua exploração imediata. Estrada era
o nome dado a um grupo de 100 a 150 seringueiras que um homem
talhava. Cada estrada era percorrida duas vezes ao dia: na ida, o seringueiro abria cortes na árvore e colocava o recipiente em que cairia
o látex; na volta, recolhia o produto depositado nestes recipientes.
De sua parte, o seringueiro se comprometia a trabalhar seis dias por
104
DESENHO QUE CONSTAVA DA CARTILHA COM ORIENTAÇÕES SOBRE COMO COLETAR O LÁTEX
semana, mesmo no período de entressafra. Toda a borracha produzida
deveria ser entregue ao seringalista. Da borracha produzida pelo seringueiro, lhe seriam creditados no mínimo 60% sobre o preço oficial que
vigorava nas praças de Manaus e Belém. O seringueiro também teria
direito aos animais abatidos e poderia cultivar um hectare de terra, livre
de qualquer ônus. Havia “apenas” um problema: quem faria a fiscalização
do cumprimento de todas essas regras, em meio a um ambiente natural
dos mais hostis? Ninguém.
CUMPRIMENTO
DAS REGRAS DOS
CONTRATOS JAMAIS
FOI FISCALIZADO
ABANDONO QUE PERSISTE
Em novembro de 2006, o jornal The New York Times publicou reportagem assinada pelo jornalista Larry Rohter intitulada “Há muito
negligenciados, os ‘soldados da borracha’ do Brasil buscam recompensa”.
Um dos personagens entrevistados por Rohter foi Alcidino dos Santos.
“Em certa manhã de 1942, Alcidino estava a caminho do mercado para
comprar legumes para sua mãe, quando foi parado por um oficial do
exército, que lhe disse que estava sendo convocado como ‘soldado da
borracha’. Homens eram necessários na Amazônia, a 4.800 quilômetros
de distância, para extrair borracha para o esforço de guerra aliado, lhe foi
dito, e que era seu dever patriótico servir”, escreveu Rohter.
105
frustração e abandono em meio à floresta
Alcidino, na época um auxiliar de pedreiro de 19 anos, protestou
que sua mãe era viúva e dependia dele, mas sem sucesso. Ele receberia
um salário de 50 centavos por dia, segundo lembra de lhe terem dito,
além de transporte gratuito para casa assim que o conflito terminasse.
Mas tinha que partir naquele mesmo dia. “Nós fomos enganados e
depois abandonados e esquecidos”, disse Alcidino, que nunca mais
viu sua mãe e na época da reportagem morava em uma casa simples
de madeira no Acre, Estado que conta com a maior concentração de
antigos soldados da borracha. “Nós fomos trazidos aqui contra nossa
vontade e jogados na selva, onde sofremos terrivelmente. Eu estou
perto do fim da minha vida, mas meu país deveria me tratar bem”,
disse Alcidino à reportagem.
CAPA DE RELATÓRIO (ACIMA)
E CARTAZ EM LITOGRAVURA,
DE 1943 (AO LADO)
CENÁRIOS
DESENHADOS POR
CHABLOZ MOSTRAVAM
UM CENÁRIO IDÍLICO
E FANTASIOSO
106
AS CORES E OS TONS DE UMA FARSA
O pintor suíço Jean Pierrre Chabloz, que emigrou para o Rio de
Janeiro em 1940, foi um dos principais encarregados de criar as peças
da propaganda oficial realizada pelo Semta. Chabloz produziu folhetos, cartilha, cartazes, cartazetes, caracterizou os caminhões em que
os soldados eram transportados e fez os braceletes de identificação
que levavam os trabalhadores. Trabalhou principalmente com duas
técnicas: desenho e colagem com fotografias.
Para ilustrar a ideia do Estado Novo, de que a corrente migratória
do desenvolvimento deveria ser no sentido do litoral para o interior,
Chabloz desenhou um mapa do Brasil no qual podia-se observar os
soldados no litoral, fazendo a defesa da fronteira, e, no interior amazônico, os seringueiros extraindo látex das árvores, tudo acompanhado
do slogan “Cada um no seu lugar!”.
Outra peça emblemática de Chabloz é um cartaz em que a figura de
um caboclo observa, passivamente, a alegre partida de um grupo de trabalhadores para a Amazônia. O texto é uma espécie de convocação também
para aquele que fica: “Vai também para a Amazônia protegido pelo Semta”.
Em outro cartaz, a exploração de borracha aparece como uma
atividade de “fundo de quintal”. Toda a cena é idílica e indica fartura: casas, lenha, porcos, galinhas, boi e, para completar o quadro,
uma criança brincando e uma mulher pendurando roupas brancas
no varal. Até mesmo a densa floresta amazônica não é tão fechada e
deixa passar alguns raios de sol. A casa está cercada, e o homem está
tirando látex de uma seringa vizinha ao cercado. Chabloz desenhou,
ainda, uma peça mostrando o enxoval que cada trabalhador recebia:
uma calça de mescla azul, uma blusa de morim branco, um chapéu de
palha, um par de alparcatas de rabicho, uma caneca, um prato fundo,
um talher (que era colher e garfo ao mesmo tempo), uma rede e um
saco de estopa. Outra ilustração mostra os instrumentos de trabalho
e o procedimento para transformar o látex em borracha.
As peças tentavam, ainda, passar a ideia de que a migração seria
um percurso entre dois pontos: um seco, de formações vegetais tor-
107
108
tuosas e com espinhos, e outro verde e frondoso. Se a sequidade é a
pobreza, a umidade é a riqueza.
Quase todos os milhares de trabalhadores nordestinos recrutados
desde inícios de 1943 para trabalhar na região amazônica assinaram
um contrato de encaminhamento no qual optavam pela assistência do
Semta para suas famílias que ficaram no Nordeste. Muitas mulheres e
filhos de trabalhadores permaneceram em seus lugares de origem ou
reunidas em hospedarias improvisadas, esperando o momento para,
também elas, fazerem a viagem que as levaria ao encontro de seus
maridos. Outras aguardariam ali o retorno dos homens, após os dois
anos previstos de permanência no seringal. Um grande número de
mulheres e crianças ficaram no núcleo Parangabussu, casualmente
dirigido por Regina Frota, mulher de Jean Pierre Chabloz.
O abandono das famílias chegou a tal ponto que um grupo de
mulheres reunidas em Crato (Ceará) escreveu ao presidente da República reclamando que a assistência havia sido cortada, e que em seu
lugar eram oferecidas passagens para o Amazonas. Lá, supostamente
encontrariam com seus maridos, a respeito dos quais, entretanto,
não sabiam se estavam vivos, muito menos seu domicílio, caso por lá
tivessem permanecido. De fato, não se sabia se o trabalhador tinha
abandonado o trabalho no seringal, pois a Comissão Administrativa
de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia (Caeta)
desconhecia o paradeiro dos migrantes. Presumia-se que muitos, ao
chegarem ao Amazonas, desviavam-se para outro setor, mas não se
sabia com quais deles isso teria acontecido.
Como refere María Verónica Secreto, os abusos nos seringais eram
internacionalmente conhecidos. O escritor português Ferreira de Castro
foi o autor de um dos romances em língua portuguesa mais traduzido
em todo o mundo. A Selva, de 1930, é baseado em sua experiência de
vida. Emigrado para o Amazonas com apenas 13 anos, por volta de
1911, durante quatro anos Castro trabalhou como caixeiro de armazém no Seringal Paraíso (onde hoje funciona um museu). Ali, sofreu e
sensibilizou-se com o sofrimento dos seringueiros cearenses e paraenses.
Quem também retratou as mazelas da extração do látex na Amazônia
foi Roger Casement, cônsul britânico no Rio de Janeiro em 1910. Casement foi designado para investigar a situação da exploração da borracha
às margens do Putumaio, um rio com 1,5 km de extensão que nasce na
Colômbia, marca a fronteira deste país com o Peru e que quando entra no
Brasil, na região de Puerto Assis, recebe o nome de Içá. Em 1902, também
na condição de cônsul, Casement havia produzido um memorandum sobre
as atrocidades que eram cometidas no Congo, então sob domínio belga,
contra os nativos africanos na exploração do caucho (árvore de onde se
extrai também o látex). Extermínio e queima de aldeias inteiras e amputações de membros faziam parte do teatro de horrores por lá.
No caso de Putumaio, o interesse da Inglaterra eram as atividades da
companhia Peruvian Amazon Company e da empresa Casa Arana. Casement, entretanto, acrescentou em seu relatório detalhes sobre a utilização
do trabalho escravo e sobre a forma como Arana descia o rio Amazonas
CARTAZETE NO FORMATO 15cm X 11cm
(ACIMA) E LITOGRAVURA MEDINDO
109cm X 68cm, DE 1943 (AO LADO)
MAZELAS DA
EXTRAÇÃO DO
LÁTEX SÃO TEMA
DE ROMANCES
COMO O SONHO DO
CELTA E A SELVA
109
frustração e abandono em meio à floresta
PROJEÇÃO DE UM ACAMPAMENTO PARA 600 TRABALHADORES
110
SOLDADOS DA BORRACHA EM BRASÍLIA, EM SETEMBRO DE 2012
e ia até o Nordeste brasileiro, em especial ao Ceará, em busca de trabalhadores. A saga de Casement está brilhantemente registrada no
romance O sonho do celta, do peruano Mario Vargas Llosa, que recebeu
pela obra o Prêmio Nobel de Literatura em 1910.
O SALDO DE UM EMBUSTE
Em síntese, dos 50 mil soldados da borracha – entre trabalhadores e dependentes – que foram para a Amazônia entre 1943 e
1944, estima-se que quase a metade morreu ou desapareceu. Foi só
a partir da Constituição de 1988 que os sobreviventes obtiveram
o direito de receber o benefício de dois salários-mínimos mensais.
Naquele mesmo ano, foi assassinado, em 22 de dezembro, na porta
de sua casa, o sindicalista e seringueiro Chico Mendes, um dos
principais defensores dos homens que se dedicam à produção da
borracha e pioneiro nas causas ambientalistas no país.
E em 2012, em solenidade realizada no dia 4 de setembro, os
soldados da borracha, como grupo, tiveram seus nomes inscritos no
livro de aço do Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves,
localizado na Praça dos Três Poderes, em Brasília. “É a primeira ocasião
em que pessoas vivas chegam a esse posto simbólico que, por mais
formal e burocrático que possa parecer, explicita a importância desses
migrantes que lutaram em prol dos Aliados, fazendo borracha na floresta”, celebrou Cesar Garcia Lima. Ele foi o diretor do documentário
Soldados da borracha, média-metragem realizado em 2010, no Acre, e
que retrata a saga de seringueiros nordestinos e acreanos vivida entre
o sertão, a floresta e a cidade.
OS SOLDADOS DA BORRACHA ENTRARAM
PARA O PANTEÃO DA PÁTRIA E DA LIBERDADE
111
os primeiros
passos da
industrialização
112
113
os primeiros passos da industrialização
Ao final da Segunda Guerra Mundial, fracassado
o projeto que levou milhares de nordestinos – os
soldados da borracha – a atuarem na Amazônia, em
prol dos países aliados, o Brasil dispunha de grandes
reservas de moeda estrangeira, as chamadas divisas, fruto de ter exportado mais do que importado
(o crescimento foi de 8,9% de 1946 a 1950). Esse
processo, na verdade, é resultado de um novo cenário construído com a chegada de Getúlio Vargas
ao poder, em 1930. Vargas operou uma mudança
decisiva no plano da política interna, afastando
oligarquias tradicionais que representavam os interesses agrário-comerciais. O presidente, que deu
um golpe de Estado durante seu próprio mandato,
em 1937, quando foi implantado o chamado Estado Novo, adotou uma política industrializante,
com a substituição da mão-de-obra imigrante pela
nacional, que acabou se concentrando no Rio de
Janeiro e em São Paulo, em função do êxodo rural
(decorrente da decadência cafeeira) e dos sucessivos movimentos migratórios de nordestinos.
Para o professor doutor Pedro Paulo Zaluth Bastos, da Unicamp, o
problema das definições do nacionalismo econômico varguista a partir dos
meios pelos quais os interesses nacionais de desenvolvimento econômico
seriam alcançados reside no fato de que Vargas não manteve, ao longo do
tempo, a adesão a formas particulares de intervenção estatal e de associação
com o capital estrangeiro. “O que apresenta maior continuidade é a adesão ao ideário do nacional-desenvolvimentismo, ou seja, a vinculação do
interesse nacional com o desenvolvimento, ativado pela vontade política
concentrada no Estado, de novas atividades econômicas, particularmente
industriais, associadas à diversificação do mercado interno”.
Prossegue Zaluth Bastos: “Desenvolver economicamente a nação se
confundia, cada vez mais, com a redução de sua dependência de insumos
industriais e energéticos importados, avançando na industrialização pesada,
inclusive para poder mudar posteriormente a pauta de exportações. É por
isto que Vargas alegaria que a questão do aço era o principal desafio para
emancipação/desenvolvimento econômico nacional no início da década
de 1930, assim como o petróleo e a energia hidrelétrica (e não mais termelétrica), e também as respectivas indústrias de bens de capital, seriam
nas décadas posteriores.”
114
GETÚLIO ASSINA O ATO DE CRIAÇÃO DA PETROBRAS: O PETRÓLEO PASSAVA A SER NOSSO
VARGAS ALEGAVA, NA DÉCADA DE 1930, QUE A QUESTÃO DO AÇO ERA O
MAIS IMPORTANTE DESAFIO RUMO AO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
115
os primeiros passos da industrialização
AMPLIAÇÃO DA FÁBRICA DA GM DO BRASIL, EM 1948: PRIMEIRO CLIENTE DO AÇO PRODUZIDO PELA CSN
1953: GETÚLIO EM VISITA À REFINARIA PRESIDENTE BERNARDES, EM CUBATÃO
116
Assim, Vargas investiu forte na criação da infraestrutura industrial, na
indústria de base e de energia, destacando-se a criação do Conselho Nacional do Petróleo, em 1938, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN),
em 1941, da Companhia Vale do Rio Doce, em 1943, e da Companhia
Hidrelétrica do São Francisco, em 1945.
Com operações, escritórios, explorações e joint ventures espalhados
pelos cinco continentes, hoje a Vale é a segunda maior mineradora do
mundo. Com sede no Brasil, atua em 37 países e emprega 139 mil pessoas (entre profissionais próprios e terceiros permanentes) e mais 60 mil
terceiros em projetos.
A criação da CSN também foi um capítulo importantíssimo na história brasileira. Vargas não se conformava com o desequilíbrio na balança
comercial provocado pelas importações de aço, em especial dos Estados
Unidos. Em paralelo, pretendia expandir o sistema de transportes nacional
e fomentar a indústria de base, e assim deu início aos estudos para a criação
de uma grande siderúrgica. Para financiar a empreitada, a primeira empresa
procurada foi a United States Steel Corp., que declinou do convite, muito provavelmente em razão da incerteza sobre a condução dos assuntos
internos no país. Como Vargas mantinha relações não tão distantes assim
com o governo de Hitler, quem mostrou-se disposta a financiar a siderurgia
nacional foi a alemã Krupp. Temerosos de que a influência dos países do
Eixo tomasse proporções incontroláveis no país, assessores do presidente
Franklin Delano Roosevelt sugeriram que os EUA revissem sua posição.
Foi, portanto, com 20 milhões de dólares norte-americanos e outros 25
milhões de dólares captados pelo governo brasileiro que se deu a construção
da CSN em Volta Redonda (RJ).
Em 1946, quando efetivamente teve início a produção de aço da CSN,
abriram-se as perspectivas para o desenvolvimento industrial do país, já
que o aço constitui a base ou a “matriz” para vários ramos ou tipos de
indústria. A volta de Getúlio Vargas ao poder, reeleito pelo voto popular
em 1950, consolidou uma nova forma de política de massas: o populismo.
Ainda que hesitasse em consolidar uma democratização efetiva das grandes
decisões políticas nacionais, o governo nacionalista de Getúlio Vargas prometeu libertar o país do subdesenvolvimento, realizando uma política de
industrialização com base em grandes empresas estatais, como Eletrobras,
Petrobras e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES).
A questão do petróleo, antes da Segunda Guerra Mundial, não tinha
a mesma relevância que assumiria após o conflito bélico na Europa. Após
a perfuração do primeiro poço brasileiro, em 1939, foram as empresas
norte-americanas Texaco e Standard Oil que controlaram a produção e a
distribuição do chamado ouro negro. Apenas em 1946 surgiria a campanha
“O petróleo é nosso”, liderada pelo general Horta Barbosa, que resultaria
na criação da Petrobras em outubro de 1953.
A Petrobras teve sua instalação concluída em 1954, ao herdar do
Conselho Nacional de Petróleo duas refinarias, a de Mataripe (BA) e a
de Cubatão (SP). Elas passaram a ser os primeiros ativos (patrimônio) da
empresa. Em 10 de maio do mesmo ano, a empresa começou a operar, com
uma produção de 2.663 barris, equivalente a 1,7% do consumo nacional.
CARTAZETE DA
CAMPANHA EM FAVOR
DO MONOPÓLIO
DO PETRÓLEO
QUESTÃO DO
PETRÓLEO GANHOU
RELEVÂNCIA APÓS
O FIM DA SEGUNDA
GUERRA MUNDIAL
117
os primeiros passos da industrialização
INDÚSTRIA DE
PNEUMÁTICOS
CONSOME QUASE
TRÊS QUARTOS DA
PRODUÇÃO MUNDIAL
DE BORRACHA
Em 1954, o petróleo e seus derivados já representavam 54% do consumo
de energia no país. Para se ter uma ideia do crescimento da companhia, em
2011 o lucro líquido da hoje quinta maior empresa de energia do mundo
foi de R$ 33 bilhões. A produção superou 2,6 milhões de barris de petróleo
por dia e mais de 450 mil barris de gás natural. Presente em 28 países, a
Petrobras emprega mais de 80 mil pessoas.
Na sequência do governo Vargas, após breve passagem de Café Filho
pelo poder, surge a figura de Juscelino Kubitschek, que incrementa o caráter
desenvolvimentista com o famoso Plano de Metas e o respectivo slogan
“50 anos em cinco”. Mas esse já é um outro capítulo da história do país.
A BORRACHA HOJE
A seringueira Hevea brasiliensis é a maior fonte de borracha natural do
planeta, utilizada no transporte, indústria e material bélico. Atualmente,
existem no mercado global mais de 40 mil artigos no geral constituídos de
borracha natural, sendo que são necessários cerca de 600 kg para um aeroplano e 68 toneladas para um navio de guerra. Além disso, a borracha natural é
matéria-prima estratégica para aproximadamente 400 dispositivos médicos.
Única entre os produtos naturais, a borracha natural, devido a sua
estrutura molecular e alto peso molecular (> 1 milhão de daltons) é
possuidora de resiliência, elasticidade, plasticidade, resistência ao desgaste
e ao impacto, propriedades isolantes de eletricidade e impermeabilidade
para líquidos e gases, que não podem ser obtidas em polímeros artificiais.
A borracha natural é obtida das partículas contidas no látex, fluído citoplasmático extraído continuamente dos vasos laticíferos situados na casca
das árvores por meio de cortes sucessivos de finas fatias de casca, processo
denominado de sangria.
A borracha sintética obtida do petróleo possui quase a mesma composição química da borracha natural, porém suas propriedades físicas, viáveis
para alguns manufaturados, são inferiores para luvas cirúrgicas, preservativos, pneus de automóveis, caminhões, aviões e revestimentos diversos.
A Hevea brasiliensis é a espécie cultivada mais importante do ponto
de vista comercial. A produção mundial de borracha natural em 2011
foi de 10,97 milhões de toneladas, para um consumo de 10,92 milhões
de toneladas. Entre os maiores produtores, destaque para os países do
Sudeste Asiático, como Tailândia (30,93% da produção mundial), Indonésia (22,66%), Malásia (9,08%), Índia (8,1%) e Vietnã (7,4%). Em 2011,
o Brasil produziu 135 mil toneladas, o equivalente a cerca de 1,23% da
produção mundial.
Os maiores consumidores de borracha natural em 2011 foram a China
(32,98%), seguida pelos países da Comunidade Europeia (11,13%), Estados
Unidos (9,42%) e Japão (7%). A indústria de pneumáticos consome quase
três quartos da borracha produzida no mundo. As três maiores marcas de
pneus (Michelin, Bridgestone e Goodyear) consomem 55% da produção
mundial de pneus.
EXTRAÇÃO DO LÁTEX: CORTES SUCESSIVOS DE FINAS FATIAS DA CASCA
118
119
os primeiros passos da industrialização
EXTRAÇÃO DA
BORRACHA
PROPORCIONA
FIXAÇÃO NO
CAMPO COM BOA
QUALIDADE DE VIDA
120
O Brasil, berço do gênero Hevea, continua sendo importador de borracha natural. Para quem possui, em relação aos demais produtores, área
incomparavelmente maior, apta para o plantio de seringueira, o déficit de
produção significa, no mínimo, descaso para com um produto estratégico
de tão alto valor econômico-social. Segundo estimativas do International
Rubber Study Group (IRSG), em 2012, para um consumo de 350 mil toneladas no Brasil, foram importadas 215 mil toneladas de borracha natural.
A oferta e a demanda encontram-se distanciadas no Brasil desde meados do século passado. De acordo com o site do Sistema de Informações
Agroindustriais da Borracha Natural Brasileira (www.borrachanatural.agr.
br), em 2020 o Brasil poderá produzir 250 mil toneladas diante de um consumo potencial de mais de 500 mil toneladas. A desigualdade só poderá ser
resolvida pela substituição de borracha dos seringais por borracha sintética.
Os seringais paulistas são os mais eficientes do país, com produtividade
média superior a 1.300 kg por hectare/ano, sendo que nas áreas em que há
maior conhecimento tecnológico esse número supera 1.500 kg por hectare/
ano. O desempenho coloca São Paulo entre as regiões mais produtivas do
mundo. Sob o ponto de vista ambiental, também, é importante considerar
o impacto positivo de uma plantação de seringueira. Após a implantação,
um seringal constitui um sistema estável, apresentando características
de floresta tropical. Além disso, a borracha natural necessita de pouca
energia para a sua produção e as árvores contribuem na fixação de CO2,
minimizando, assim, os problemas com o aumento do efeito estufa.
De acordo com o seringalista e representante do Espírito Santo na
Câmara Setorial da Borracha do Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (Mapa), José Manoel Monteiro de Castro, a autossuficiência em borracha natural é urgente. “Ser autossuficiente em borracha
natural, assim como em aço e petróleo, é fundamental para qualquer país
que pleiteia ser uma potência mundial”, defende Castro. Ele ressalta ainda
que a extração da borracha é uma atividade que proporciona ao produtor
se fixar no campo com boa qualidade de vida. “A remuneração paga pelo
quilo da borracha permite uma renda mensal equiparada aos bons empregos
do meio urbano”, afirma Monteiro de Castro.
À margem da história?
P O R V O LTA I R E S C H I L L I N G
Há uma permanente preocupação das autoridades
brasileiras, especialmente dos militares, de que se o Brasil
não conseguir povoar e integrar economicamente a região
amazônica, poderosos interesses estrangeiros tratarão de
nos desqualificar da tarefa de guardá-la e resguardá-la.
Imaginam, pois, ser possível sua internacionalização futura.
A Amazônia poderia vir a ser “desnacionalizada” e dividida
entre várias grandes corporações que têm interesse em
explorá-la, basicamente em sua riqueza mineral. Outros
cogitam dela transformar-se num “protetorado” da ONU.
Esse receio, da “perda” da Amazônia, parece-nos
infundado, visto que nos dias de hoje não dominam,
entre as potências, ideias colonialistas ou usurpadoras de
apropriação direta de territórios. Além disso, a legislação
brasileira permite a livre instalação e exploração de empresas
estrangeiras. Por que elas haveriam de mobilizar expedições
militares colonialistas, se conseguem obter o que querem,
amparadas juridicamente nas concessões brasileiras? Também não se encontra entre os projetos da ONU nenhuma
referência a ela assumir o controle da região amazonense
em um futuro próximo ou remoto.
De 1920 a 1960, pode-se dizer que a região amazônica manteve-se ao largo do desenvolvimento do restante
do país, reduzida a um estado de letargia econômica: “um
grande Jardim do Paleozóico”, como disse Euclides da
Cunha. Um acontecimento espetacular, porém, voltaria a
colocá-la no cenário econômico e político nacional: a fundação, em 21 de abril de 1960, de Brasília, inaugurada no
final do governo do presidente Juscelino Kubistchek. Com
a mudança da sede do governo brasileiro para o interior
do sertão brasileiro, criou-se uma vasta rede de rodovias
ligando a nova capital com as demais partes da nação. Essa
foi a razão de ser da Belém-Brasília, aberta entre 1958 e
1964, a primeira ligação terrestre do centro do país com a
Amazônia. Posteriormente, no apogeu do regime militar, em
1970, cortou-se a região no sentido leste-oeste, com uma
estrada transversal, a Transamazônica, e outra no sentido
sul-norte, ligando Cuiabá a Santarém.
Políticas especiais de colonização, povoamento e
eletrificação foram estimuladas pela Superintendência de
Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), aceitando-se,
inclusive, na fronteira do Pará com o Amapá, a instalação
do projeto Jari, um imenso complexo de produção de celulose
de propriedade do plutocrata americano Daniel Ludwig.
Os resultados demorados disso tudo estimularam a que se
formasse uma Zona Franca em Manaus, usufruindo de
isenção alfandegária para atrair indústrias e consumidores.
A facilitação na aquisição de terras para o gado gerou
conflitos. Ao expandir a criação, os fazendeiros adotam
as queimadas e a derrubada de árvores essenciais aos
“povos da floresta”. Desde então, atritos entre garimpeiros
e indígenas dão-se paralelos aos ocorridos entre criadores e
seringueiros, os quais conduziram ao assassinato de Chico
Mendes, um internacionalmente reconhecido líder sertanejo. Além disso, particularmente no Pará, multiplicam-se
os desacertos e crimes violentos que atingem os sem-terra
mobilizados pela ação do MST, que terminam por enfrentar
os pistoleiros de aluguel e as próprias autoridades policiais
a serviço dos latifundiários.
Uma das maiores falácias a respeito da Amazônia é a
da sua enorme riqueza. De fato, com algumas exceções, o
solo da região é classificado, em sua maior extensão, como
laterítico. Removido o manto vegetal, sobra uma couraça
ferruginosa de escasso valor agrícola. A vegetação luxuriante e variada é enganadora. Esconde o fato de que suas
raízes enterram-se em areias. A floresta é alimentada pela
água das chuvas tropicais e dela mesma, do seu húmus,
da degradação das folhas e ramos que dela desprendem.
Naturalmente que o mesmo não se aplica às estimativas
das suas reservas minerais em ouro, manganês, cassiterita,
alumínio e ferro, especialmente como ocorre na Serra dos
Carajás. Enquanto isto, a Amazônia luta, tendo ao seu
lado as poderosíssimas forças inerciais da natureza, por
permanecer à margem da história.
“DE FATO, TODO O VALE
AMAZÔNICO, NO SEU
CONJUNTO, A PARTE VISÍVEL, É
IMPERTURBAVELMENTE IDÊNTICO
A SI MESMO, VISTO EMBORA
DE VÁRIAS LATITUDES.”
VIANNA MOOG, 1936
121
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79, 80, 81, 83, 84, 87, 88, 90, 91, 92, 93, 96, 97 e 99
ACERVO BIBLIOTECA BRASILIANA GUITA E JOSÉ MINDLIN/USP
Pág. 46, 47, 48, 122, 124 e contracapa (centro)
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GUILHERME DE LA PENHA. COLEÇÃO FOTOGRÁFICA MPEG
Pág. 17 e 38 (as duas, no alto)
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FOTOS GEORGE HUBNER – VISTAS DO PARÁ (c.1899)
Pág. 43, 44 e 45
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CEARÁ. COLEÇÃO JEAN-PIERRE CHABLOZ
Pág. 18, 40, 94, 100, 101, 103, 104, 105, 106, 107, 108 e 109
1125
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