Novas tecnologias, novos formatos, novas

Transcrição

Novas tecnologias, novos formatos, novas
Novas tecnologias, novos formatos,
novas possibilidades de construção de tiras
Paulo Ramos
Universidade Federal de São Paulo
[email protected]
Resumo – A internet trouxe uma série de novas formas de interação, do e-mail aos sites
de relacionamentos. Trouxe também um novo locus de produção e circulação de
histórias em quadrinhos, as tiras entre elas. Estas encontraram no meio virtual um
ambiente propício para sua difusão, sobrepondo-se em volume às páginas de cultura dos
jornais, onde eram e ainda são publicadas. Os recursos de leitura propiciados pela tela
do computador ou pelos tablets permitiram fugir às amarras do formato horizontal da
tira, algo que seria inviável no processo de produção para o meio impresso diário,
pautado no tamanho fixo para que a mesma história seja comercializada para mais de
um periódico. Esta comunicação procura demonstrar alguns casos de fuga ao molde
tradicional da tira. O processo será demonstrado com casos observados no blog Magias
e Barbaridades, do desenhista brasileiro Fabio Ciccone. Entre as conclusões que serão
delineadas, está a maior liberdade de utilização do formato da tiras no meio virtual, se
comparado ao impresso.
Palavras-chave – tiras; internet; blogs; jornais; formato
Abstract – The Internet has brought a host of new ways of interaction, from email to
social networking sites. It also brought a new locus of production and circulation of
comic books, strips between them. They found one in the virtual environment for its
spread, overlapping in the volume of the culture pages of newspapers, where they were
and still are published. Resources offered by reading the computer screen or the tablets
allowed to escape the shackles of the horizontal format of the strip, something that
would not be feasible in the production process through to the printed daily, based on
fixed size for the same story that is marketed to more than a journal. This
communication seeks to demonstrate some instances of escape from the traditional mold
of the strip. The process will be demonstrated with cases observed in the blog Spells
and barbarity, the Brazilian artist Fabio Ciccone. Among the conclusions that will be
outlined, is the greatest freedom to utilize the format of the strips in the virtual
environment, compared to print.
Keywords – comic strips; internet; blogs; newspapers; size
Palavras iniciais
Uma das marcas mais evidentes das tiras em quadrinhos são seu formato. O
tamanho pode ser equivalente ao de um ou ao de duas tiras, mas tem sido sempre
horizontal. Pelo menos, até o surgimento da internet. O meio virtual se tornou um locus
privilegiado para a circulação de tiras. No Brasil, chegou-se ao ponto de o volume de
histórias, no final da primeira década deste século, ser maior que o visto nos jornais,
ambiente onde foram publicadas desde os anos iniciais do século 20 (conforme
RAMOS, 2011b).
A internet – e os blogs, em particular – tornou-se um divisor de águas nesse
processo. Pode-se dizer que, especificamente no caso das tiras, ficaram mais nítidas as
propagadas mudanças anunciadas desde a virada de século sobre o impacto dos recursos
virtuais.
Além de facilitar a exposição e a circulação do gênero (ou dos gêneros de tiras),
a leitura na tela do computador ou em outros suportes (caso dos tablets) permitiu aos
autores a possibilidade de ultrapassar a barreira imposta pelo formato fixo. Há casos,
mais de um, de experiências no sentido de ampliar ou de até subverter o molde
tradicional de produção, herdado do meio impresso.
Veremos neste artigo, também limitado pelo espaço, alguns casos de mudança
do formato da tira. Nosso corpus selecionado para esta exposição será a série Magias e
Barbaridades, criada pelo desenhista brasileiro Fabio Ciccone. As histórias são
veiculadas num blog, mantido pelo autor desde julho de 2003.
Magias e Barbaridades
A série Magias e Barbaridades é um exemplo do que Ramos (2009, 2011a)
chama de tira cômica seriada. O gênero, para o autor, seria uma mescla de outros dois:
a tira cômica e a tira seriada. Explicando melhor. Todos os três gêneros dividiriam o
formato, a tendência a apresentarem sequências narrativas e o uso de uma linguagem
comum, a dos quadrinhos.
O diferencial da tira cômica é ter um processo semelhante ao de uma piada. Com
personagens fixos ou não, o gênero conduziria a um desfecho inesperado, fonte do
humor. A tira seriada, ao contrário, contaria uma história maior, dosando um capítulo
em cada tira. Se reunidas, ficaria mais claro que todas as etapas da narrativa formam
uma trama maior.
A tira cômica seriada, por fim, teria a característica de apresentar uma história de
humor, com desfecho inesperado, mas também de conduzir um enredo mais amplo, com
um capítulo de cada vez. Há poucos exemplos de produções assim na internet e o
trabalho de Fabio Ciccone é um desses casos.
A história mescla humor com aventura, ambientada no universo fantasioso do
“capa e espada”. Mostra as histórias do trio Oc, Remmil e Idana. Oc é um bárbaro, que
adora os trabalhos de William Shakespeare. Remmil é um mago que costuma se
envolver em situações embaraçosas ou inesperadas. A integrante feminina da trupe é
uma valente guerreira.
As situações giram em torno da peregrinação do grupo pelo período medieval.
Na sequência narrativa em foco, os três precisam peregrinar para um lugar distante.
Tentam, então, cortar caminho com a ajuda de um ser enigmático, que detém o poder de
dominar e manipular a linguagem dos quadrinhos. Somente com o auxílio dele é que
poderiam chegar ao outro extremo.
As primeiras tiras que serão analisadas neste artigo se pautam nesse fragmento
narrativo da série.
Ampliação do tamanho
Os capítulos de Magias e Barbaridades são produzidos no formato tradicional
da tira, horizontal, como as impressas. Este primeiro bloco de exemplos de Magias e
Barbaridades mostra duas alterações em relação ao molde de produção: o aumento do
tamanho da tira e o uso da cor (a série é feita normalmente em preto-e-branco). Vejamos
a discussão de forma ilustrada:
Figura 1 – Capítulo de Magias e Barbaridades
A figura 1 se passa após a “morte” de Idana, ocorrida na tira anterior. O
enigmático ser que acompanha o grupo na travessia sugere que o autor teria condições
de trazê-la de volta à vida, dando segmento à brincadeira com os recursos da linguagem
dos quadrinhos (no caso, o diálogo direto com a pessoa que produz a história).
Figura 2 – Aumento no tamanho físico da tira e uso de cor
O capítulo seguinte (figura 2), em vez de ser mostrado numa tira em preto-ebranco, como a que a precedia, é apresentada num tamanho dobrado – maior, portanto –
e em cores. Na cena, o desenhista usa uma borracha para apagar a flecha que havia
tirado a vida da personagem e reconstrói seus traços com um lápis. Pronto: Idana volta
à vida.
O formato mais amplo foge à forma como a série era conduzida até então. No
meio impresso, vale reiterar, esse recurso dificilmente seria possível. As tiras
apresentam um formato fixo para que a mesma história possa ser vendida a outros
jornais, recurso próprio da indústria cultural. Quanto mais aparições a série tiver em
outros diários, maior a repercussão dela e o retorno financeiro para a distribuidora e o
autor.
Na tira de número 500 da série, o autor usou recurso semelhante para marcar a
marca. Trocou o molde da tira pelo de uma página, como pode ser visto a seguir:
Figura 3 – Capítulo 500 da série foi feito no formato de uma página, e não de tira
Subversão do formato
Figura 4 – Capítulo de Magias e Barbaridades
Figura 5 – Capítulo seguinte apresenta a tira no formato vertical, e não horizontal
Os exemplos são eloquentes. A tira apresentada na figura 4 mostra o mago
Remill preso e amordaçado, sendo torturado pelo canto da pessoa que o mantém detido.
Descobre, na cena final, que se trata de um escriba. Não se trata, ao contrário da série
como um todo, de um final com efeito de humor. Mas funciona como gancho para o
capítulo seguinte, em que, uma vez mais, ocorre uma subversão do formato, como visto
nas figura 2 e 3.
O autor optou por construir a tira no formato vertical, e não horizontal. O
recurso, possivelmente, foi usado para valorizar a figura do Cavaleiro Amarelo,
montado num cavalo, cena que funcionaria melhor se vista dessa forma. É necessário
ressaltar que o recurso já foi usado por outros autores nas tiras veiculadas nos jornais.
Mas, ao contrário da tela do computador ou de outros suportes virtuais, havia a
necessidade de o leitor virar a página para observar o desenho na forma como foi
concebido.
Outro caso peculiar é o do exemplo a seguir, em que são criados três caminhos
de leitura para a tira:
Figura 6 – Capítulo cria três caminhos de leitura da tira
Nesse caso, em vez de uma tira, criam-se três, que partem de uma mesma cena,
no canto esquerdo superior. O primeiro caminho é percebido por meio da leitura
tradicional da história, no sentido horizontal. Um dos personagens, (re)encontra o filho.
A segunda possibilidade de leitura é feita na diagonal. Idana beija um dos integrantes da
trupe. A terceira alternativa é obtida na vertical e onde estava o efeito de humor. Remmil
e Oc, inesperadamente, estavam mais preocupados mesmo com o que se anunciava no
quadrinho inicial: serem recebidos na cidade com festa e sendo idolatrados pela
população.
Algumas observações
Nesta curta análise, tomando como base alguns exemplos extraídos da série
Magias e Barbaridades, pudemos demonstrar que o meio virtual permite impor
alterações no modo de produção das tiras, a começar pelo próprio formato delas. Houve
situações em que se optou por criar um tamanho equivalente ao de duas tiras e, em outro
momento, ao molde de uma página de história em quadrinhos. Também merece registro
o uso da cor nos dois casos.
Outros casos inverteram a forma de leitura tradicional, de horizontal para
vertical. Especificamente na situação demonstrada na figura 6, a subversão foi ainda
mais radical: criaram-se três caminhos de leitura, como se ocorressem simultaneamente
três tiras diferentes, que tomavam por base uma mesma cena.
A internet tem modificado a forma de circulação das tiras, como comentado nas
páginas iniciais deste artigo. Nos exemplos analisados nestas páginas, pudemos
constatar que os aspectos tecnológicos proporcionados pela leitura nos suportes virtuais
tem permitido novas experimentações, que têm como ponto comum a não rigidez do
formato.
É algo que permite modificar o processo de produção e que se opõe às amarras
físicas às quais as tiras estiveram sujeitas durante todo o século 20. É, enfim, uma
novidade que surge no processo de criação das tiras nacionais junto com este novo
século.
Referências
MILLER, Carolyn R. Gênero textual, agência e tecnologia. Trad. Judith Chambliss
Hoffnagel. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2009.
RAMOS, Paulo. Faces do humor: uma aproximação entre tiras e piadas. Campinas, SP:
Zarabatana, 2011a.
_____. O impacto dos blogs para a produção de tiras no Brasil. Anais das I Jornadas
Internacionais de Histórias em Quadrinhos. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo, ag. 2011b. CD-ROM.
_____. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009.

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