Veja por dentro

Transcrição

Veja por dentro
Mohamedou Ould Slahi gostaria de dedicar este escrito à memória da
sua falecida mãe, Maryem Mint El Wadia, deixando claro que, se não
fosse por Nancy Hollander e pelas suas colegas Theresa Duncan e Linda
Moreno, não lhe seria possível fazer esta dedicatória.
Índice
Cronologia da Detenção
9
Notas sobre o Texto, os Cortes e as Anotações
13
Introdução, por Larry Siems
17
Um
Jordânia–Afeganistão–GTMO
61
Julho de 2002 – fevereiro de 2003
ANTES
DoisSenegal–Mauritânia
21 de janeiro de 2000 – 19 de fevereiro de 2000
TrêsMauritânia
171
29 de setembro de 2001 – 28 de novembro de 2001
QuatroJordânia
133
29 de novembro de 2001 – 19 de julho de 2002
217
GTMO
CincoGTMO
Fevereiro de 2003 – agosto de 2003
SeisGTMO
261
335
Setembro de 2003 – dezembro de 2003
SeteGTMO
381
2004–2005
Nota do Autor
449
Agradecimentos de Larry Siems
451
Cronologia da Detenção
Janeiro de
2000
Depois de passar doze anos a estudar, viver e trabalhar
no estrangeiro, sobretudo na Alemanha e, por um
breve período, no Canadá, Mohamedou Ould Slahi
decide regressar à Mauritânia, sua terra natal. Durante
a viagem, é detido duas vezes a mando dos Estados
Unidos da América — primeiro pela Polícia senegalesa
e depois pelas autoridades mauritanas — e interrogado
por agentes norte­‑americanos do FBI relativamente ao
chamado Plano do Milénio para bombardear o aeroporto
de Los Angeles. Chegando à conclusão de que não havia
motivos para crer que ele estivesse implicado no plano,
as autoridades libertam­‑no a 19 de fevereiro de 2000.
2000 – outono
de 2001
Mohamedou vive com a sua família e trabalha como
29 de setembro
de 2001
Mohamedou é detido e mantido na prisão pelas
engenheiro eletrotécnico em Nouakchott, na Mauritânia.
autoridades da Mauritânia durante duas semanas,
e é novamente interrogado por agentes do FBI quanto ao
Plano do Milénio. É de novo libertado, com as autoridades
mauritanas a declararem publicamente a sua inocência.
20 de novembro
de 2001
Agentes da Polícia mauritana vão a casa de Mohamedou
e pedem­‑lhe que os acompanhe para novo interrogatório.
Ele obedece voluntariamente, indo no seu próprio carro
para a esquadra de polícia.
9
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
28 de novembro
de 2001
Um avião de transporte de prisioneiros da CIA leva
Mohamedou da Mauritânia para uma prisão em Amã,
na Jordânia, onde é interrogado durante sete meses
e meio pelos serviços secretos jordanos.
19 de julho de 2002 Outro avião de transporte de prisioneiros da CIA vai
buscar Mohamedou a Amã; é despido, vendado, é­‑lhe
posta uma fralda, grilhões são­‑lhe presos aos pés e
é levado para a Base Aérea do Exército dos EUA em
Bagram, no Afeganistão. Os acontecimentos relatados no
Diário de Guantánamo começam com esta cena.
4 de agosto de 2002 Após duas semanas de interrogatório em Bagram,
Mohamedou é posto num transporte militar com outros
34 prisioneiros e segue por via aérea para Guantánamo.
O grupo chega e o processo de entrada nas instalações
dá­‑se a 5 de agosto de 2002.
2003–2004
Interrogadores do Exército dos EUA sujeitam
Mohamedou a um «plano especial de interrogatório»,
pessoalmente aprovado por Donald Rumsfeld, secretário
de Defesa. A tortura de Mohamedou inclui meses de
isolamento extremo; uma série de humilhações físicas,
psicológicas e sexuais; ameaças de morte; ameaças à sua
família; e uma simulação de rapto e de transporte.
3 de março de 2005 Mohamedou escreve à mão o seu pedido de habeas
corpus.
Verão de 2005
Mohamedou manuscreve, na sua cela de isolamento,
as 466 páginas que se tornariam este livro.
12 de junho de 2008 O Supremo Tribunal dos EUA decide, cinco votos
a favor e quatro contra, no caso Boumediene v. Bush,
que os detidos de Guantánamo têm direito a impugnar
a sua detenção através de um habeas corpus.
Agosto – dezembro
de 2009
10
James Robertson, juiz do Tribunal Distrital dos EUA,
ouve o pedido de habeas corpus de Mohamedou.
CRONOLOGIA DA DETENÇÃO
22 de março de 2010 O juiz Robertson acede ao pedido de habeas corpus
e ordena a sua libertação.
26 de março de 2010 A administração Obama apresenta um recurso.
5 de novembro de
2010
O Tribunal de Recurso de Washington, D.C. envia o
caso do habeas corpus de Mohamedou de volta para o
Tribunal Distrital para nova audiência. O caso ainda está
pendente.
Presente
Mohamedou continua em Guantánamo, na mesma cela
em que muitos dos acontecimentos relatados neste livro
tiveram lugar.
11
Notas sobre o Texto,
os Cortes e as Anotações
Este livro é uma versão editada do manuscrito de 466 páginas, que
Mohamedou Ould Slahi escreveu à mão na sua cela prisional de
Guantánamo, durante o verão e o outono de 2005. Foi editado duas
vezes: primeiro pelo governo dos Estados Unidos, que acrescentou
mais de 2500 barras pretas a censurar o texto do Mohamedou, e depois
por mim. O Mohamedou não teve a possibilidade de participar em
nem de reagir a qualquer destas edições.
Todavia, ele sempre pretendeu que este manuscrito chegasse até
ao grande público (dirige­‑se a nós e em particular aos leitores norte­
‑americanos) e autorizou de forma explícita a sua publicação em
versão editada, no pressuposto, e com o desejo, de que o processo
editorial se desenrolasse de modo a transmitir fielmente o conteúdo
e a cumprir a promessa do original. Ele confiou­‑me este trabalho,
e foi isso que tentei fazer enquanto preparava este manuscrito para
impressão.
Mohamedou Ould Slahi escreveu estas memórias em inglês,
a sua quarta língua, adquirida sobretudo enquanto prisioneiro dos
EUA, tal como descreve, por vezes de modo espirituoso, ao longo
do livro. Em si mesmo, isto é simultaneamente um ato simbólico
13
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
e um feito notável. É também uma escolha que cria ou contribui para
alguns dos efeitos literários mais importantes da obra. Pelas minhas
contas, ele dispõe de um vocabulário de menos de sete mil pala‑
vras: um léxico com a mesma dimensão daquele que encontramos
num épico de Homero. Ele usa­‑o de formas que, por vezes, ecoam
esses poemas épicos, como quando repete chavões para se referir a
acontecimentos e fenómenos recorrentes. E, tal como os criadores
dos épicos, ele fá­‑lo de forma a apresentar uma vastíssima gama de
ações e emoções. Durante o processo de edição do texto, tentei acima
de tudo preservar a sua sensibilidade e honrar o seu feito.
Ao mesmo tempo, o manuscrito que o Mohamedou conseguiu
criar na sua cela, em 2005, é um rascunho incompleto e por vezes
fragmentário. Em certas secções a sua prosa está mais polida, e noutras encontramos uma caligrafia mais compacta e mais precisa,
o que sugere a existência de rascunhos anteriores. Noutros pontos,
a letra tem a dispersão e a urgência característica de um primeiro
rascunho. Há variações significativas na abordagem narrativa, com
um relato menos linear nas secções sobre acontecimentos mais
recentes: seria de esperar, dada a intensidade dos mesmos e a pro‑
ximidade das personagens que ele está a descrever. Mesmo a forma
geral da obra não está resolvida, com uma série de flashbacks a acon‑
tecimentos anteriores à narrativa central acrescentados no fim.
Ao encarar estes desafios — tal como qualquer editor de texto
que pretende satisfazer todas as expectativas do autor de que os
erros e as distrações sejam minimizados e de que a voz e a visão
sejam apuradas —, editei o manuscrito a dois níveis: linha a linha,
o que significou regularizar tempos verbais, a ordem das palavras e
algumas locuções desajeitadas, e, por vezes, a bem da clareza, con‑
solidar ou reordenar o texto. Também incorporei na narrativa prin‑
cipal os flashbacks acrescentados e tornei o manuscrito, em geral,
14
N O TA S S O B R E O T E X T O , O S C O R T E S E A S A N O T A Ç Õ E S
mais escorreito, um processo que reduziu as aproximadamente
122 mil palavras da obra inicial para 100 mil, nesta versão. Estas esco‑
lhas editoriais foram minhas, e resta­‑me esperar que o Mohamedou
as aprove.
Ao longo do processo, fui confrontado com uma série de desafios
especificamente ligados ao processo de edição prévio do manuscrito:
os cortes do governo. Estes cortes são mudanças que foram impos‑
tas ao texto pelo mesmo governo que continua a controlar o destino
do autor, e que há mais de treze anos usa o secretismo como uma
ferramenta essencial desse controlo. Como tal, as barras negras na
página servem para nos lembrarmos da situação atual do autor. Ao
mesmo tempo, deliberadamente ou não, os cortes servem frequen‑
temente para travar o fluxo narrativo, disfarçar os contornos das per‑
sonagens e obscurecer o tom aberto e acessível da voz do autor.
Uma vez que está dependente duma leitura atenta, todo o pro‑
cesso de edição de um texto cortado implica algum esforço para ver
além das barras negras e do que está rasurado. As anotações que
aparecem no fundo da página, ao longo da obra, são uma espécie de
registo desse esforço.
Estas notas representam especulações que surgiram relacionadas
com os cortes, com base no contexto em que os cortes aparecem,
representam informação que surge noutros pontos do manuscrito,
e representam também o que agora é um manancial de recursos
publicamente disponíveis acerca do calvário de Mohamedou Ould
Slahi e dos acontecimentos e incidentes que ele aqui descreve. Essas
fontes incluem documentos estatais tornados públicos através de
pedidos e processos judiciais ao abrigo da Freedom of Information
Act1, artigos noticiosos e trabalhos publicados por diversos escritores
1 Lei de Liberdade de Informação, ou FOIA. [N. do R.]
15
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
e jornalistas de investigação e ainda abundantes investigações por
parte do Departamento de Justiça e do Senado dos EUA.
Nestas anotações, não tentei reconstruir o texto original cortado,
nem revelar material secreto. O que tentei fazer o melhor possível
foi apresentar a informação que mais plausivelmente corresponde
aos cortes quando essa informação já é do domínio público, ou é
evidente, se lermos atentamente o manuscrito, e quando eu acredito
que é importante para a legibilidade e o impacto do texto. Se houver
quaisquer erros nestas especulações, a responsabilidade é inteira‑
mente minha. Nenhum dos advogados de Mohamedou Ould Slahi
que tenham autorização de acesso analisou este material introdutó‑
rio ou as notas de rodapé, nem contribuiu para eles de modo algum,
nem tão pouco negou ou confirmou as especulações neles contidas.
Também nenhuma outra pessoa com autorização de acesso ao
manuscrito sem cortes analisou este material introdutório ou as notas
de rodapé, nem contribuiu para eles de modo algum, nem tão pouco
negou ou confirmou as especulações neles contidos.
Muitos dos desafios de edição de texto inerentes à publicação
desta obra notável resultaram diretamente do facto de o governo dos
EUA continuar a deter o seu autor, sem que se conheça até hoje
qualquer justificação satisfatória, num regime de censura que o
impede de participar no processo editorial. Aguardo com expectativa
o dia em que Mohamedou Ould Slahi seja libertado e possamos ler
este livro na íntegra, como ele quiser publicá­‑lo. Entretanto, espero
que esta versão tenha conseguido captar o feito do original, ainda
que ele nos recorde, em quase todas as páginas, o muito que ainda
temos para ver.
16
Introdução
por Larry Siems
No verão e no início do outono de 2005, Mohamedou Ould Slahi
escreveu à mão um rascunho com 466 páginas e 122 mil palavras
na sua cela prisional, uma cabana de segregação em Camp Echo,
em Guantánamo.
Ele escreveu­‑o às parcelas, pouco tempo depois de finalmente ter
sido autorizado a reunir­‑se com Nancy Hollander e Sylvia Royce,
duas advogadas da sua equipa jurídica pro bono. Segundo os rígi‑
dos protocolos do vasto regime de censura de Guantánamo, todas
as páginas que escreveu foram consideradas material confidencial
desde que criadas, e cada nova secção foi entregue ao governo dos
Estados Unidos da América para análise.
A 15 de dezembro de 2005, três meses depois de ter assinado
e datado a última página do manuscrito, Mohamedou interrompeu
o seu testemunho durante uma audiência do Administrative Review
Board1, em Guantánamo, para dizer aos responsáveis presentes:
O Administrative Review Board, ou Conselho de Análise Administrativa, é um
1
organismo militar do Exército dos EUA que realiza uma análise anual aos detidos na
Base Naval de Guantánamo. O objetivo do conselho é examinar se os detidos ainda
representam uma ameaça. [N. dos T.]
17
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
Quero apenas dizer aqui que escrevi um livro recentemente enquanto estava
preso aqui recentemente sobre toda a minha história, OK? Enviei­‑o para
publicação ao estado da Columbia2, e quando for publicado aconselho­‑vos
a lê­‑lo. Um pouco de publicidade. É um livro muito interessante, penso eu.3
Porém, o manuscrito de Mohamedou não foi publicado. Levou
os carimbos de «CONFIDENCIAL», um nível de classificação para
informação que pode causar danos graves à segurança nacional caso
esta seja divulgada, e «NOFORN»4, que significa que não pode ser
partilhada com agentes externos ou serviços secretos estrangeiros.
Foi depositado numas instalações de segurança perto de Washington,
D.C., acessível apenas aos que tinham autorização de acesso total e
um «tenho de saber» oficial. Durante mais de seis anos, os advoga‑
dos de Mohamedou levaram a cabo processos judiciais e negocia‑
ções para poderem ver autorizada a publicação do manuscrito.
Durante esses anos, em grande parte devido à FOIA, liderada pela
American Civil Liberties Union5, o governo dos Estados Unidos divul‑
gou milhares de documentos secretos que descreviam o tratamento
Ou seja, Washington D.C. [N. dos T.]
2
Transcrição, Audiência de Mohamedou Ould Slahi por parte da Administrative
3
Review Board em 15 de dezembro de 2005, 18. A transcrição ARB está disponível em
www.dod.mil/pubs/foi/operation_and_plans/Detainee/csrt_arb/ARB_Transcript_
Set_8_20751­‑21016.pdf, 184–216.
NOTA DO EDITOR À INTRODUÇÃO: Nenhum dos advogados de Mohamedou
Ould Slahi com autorização de acesso analisou esta introdução ou contribuiu para ela
de modo algum, nem negou ou confirmou quaisquer dados nela contidos. Também
nenhuma outra pessoa com acesso autorizado ao manuscrito sem cortes analisou esta
introdução ou contribuiu para ela de modo algum, nem negou ou confirmou quaisquer
dados nela contidos. [N. do E.]
4
Contração da expressão «no foreing nationals». [N. dos T.]
Instituição norte­‑americana sem fins lucrativos cujo objetivo é «defender e preser‑
5
var as liberdades e os direitos individuais garantidos a todas as pessoas nos EUA pela
constituição e pelas leis do país». [N. dos T.]
18
INTRODUÇÃO
dos prisioneiros sob custódia dos EUA desde os ataques terroristas
de 11 de setembro de 2001. Muitos desses documentos apontavam
para o calvário de Mohamedou, primeiro às mãos da CIA e depois às
mãos dos militares norte­‑americanos em Guantánamo, em que uma
«Equipa de Projetos Especiais» o sujeitou a um dos interrogatórios
mais teimosos, deliberados e cruéis de que há registo. Alguns desses
documentos continham ainda outra coisa: excertos pungentes da voz
de Mohamedou.
Um deles estava na sua própria caligrafia, em inglês. Numa nota
curta datada de 3 de março de 2005, escreveu: «Olá. Eu, Mohamedou
Ould Slahi, detido em GTMO6 com a referência ISN #760, solicito
deste modo a abertura de um pedido de habeas corpus.» A nota con‑
cluía simplesmente: «Não cometi quaisquer crimes contra os EUA,
nem os EUA me acusaram de crime algum, pelo que solicito a
minha libertação imediata. Para mais pormenores relativos ao meu
caso, ficarei feliz com quaisquer audiências futuras.»
Outro documento manuscrito, também em inglês, era uma carta
à sua advogada Sylvia Royce, datada de 9 de novembro de 2006,
na qual ele brincava: «Pediu­‑me que escrevesse tudo o que disse aos
meus interrogadores. Perdeu o juízo? Como é que posso registar
interrogatórios ininterruptos que duram há sete anos? Isso é como
perguntar ao Charlie Sheen com quantas mulheres namorou.»
E prossegue:
Contudo, forneci­‑lhe (quase) tudo no meu livro, a que o governo lhe nega
acesso. Eu tencionava ir mais a fundo nos pormenores, mas concluí que
seria em vão.
Resumindo, pode dividir a minha pena em dois grandes passos.
Abreviação de «Guantánamo». [N. do R.]
6
19
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
1. Pré­‑tortura (o que significa que não pude resistir): disse­‑lhes a ver‑
dade sobre não ter feito nada contra o vosso país. Durou até 23 de
maio de 2003.
2. Era pós­‑tortura: em que cedi. Disse sim a todas as acusações que os
meus interrogadores me fizeram. Até escrevi a famigerada confis‑
são sobre planear atingir a Torre CN em Toronto, com base nos
conselhos de SGG
. Eu queria apenas que eles
me largassem. Não me importa quanto tempo fique na prisão.
A minha convicção conforta­‑me.7
Os documentos também incluíam um par de transcrições do
testemunho de Mohamedou sob juramento perante os conselhos
de análise dos detidos, em Guantánamo. A primeira (e a primeira
amostra da sua voz no conjunto dos documentos) refere­‑se à sua
audição durante o Combatant Status Review Tribunal8; a data é 8 de
dezembro de 2004, poucos meses após o fim do chamado «interro‑
gatório especial» a que foi sujeito. Inclui este diálogo:
P:Posso saber qual é a sua resposta à primeira alegação de todas, a de
que é um membro dos talibãs ou da Al-Qaeda?
R:Os talibãs, não tenho nada que ver com eles. Da Al-Qaeda fui mem‑
bro no Afeganistão em 91 e 92. Depois de ter deixado o Afeganistão,
cortei todas as minhas relações com a Al-Qaeda.
Carta à advogada Sylvia Royce, de 9 de novembro de 2006, http://online.wsj.com/
7
public/resources/documents/couch­‑slahilettter03312007.pdf. [N. do E.]
8
Julgamento de Análise do Estatuto de Combatente, ou CSRT. Os presos de
Guantánamo receberam a designação inicial de «combatentes ilegais». Entretanto, a
designação mudou para «combatentes inimigos». De julho de 2004 a março de 2005,
as autoridades militares realizaram um julgamento único para cada detido, de modo
a confirmar se estes haviam sido classificados de modo adequado como «combatente
inimigo». [N. dos T.]
20
INTRODUÇÃO
P:E nunca lhes deu dinheiro nem qualquer tipo de apoio desde então?
R:Absolutamente nenhum.
P:Alguma vez recrutou para eles?
R:Não, não mesmo; não tentar recrutar para eles.
P:Disse que foi pressionado até admitir que tinha estado envolvido
no Plano do Milénio, certo?
R:Sim.
P:A quem fez essa confissão?
R:Aos americanos.
P:E o que quer dizer quando fala de pressão?
R:Sua excelência, não quero falar desta natureza da pressão, se não
tiver de ser.
P:Presidente do Tribunal: Não tem de o fazer; queremos apenas
garantir que não foi torturado ou coagido a dizer algo que não era
verdade. É por esse motivo que faço a pergunta.
R:Acredite apenas em mim que não estou envolvido em qualquer ata‑
que terrível desses; sim, admito que fui membro da Al-Qaeda, mas
não estou disposto a falar disto. As pessoas inteligentes vieram até
mim e analisaram isto e tiveram a verdade. É bom para mim dizer
a verdade, e a informação foi verificada. Eu disse que não tinha
nada que ver com isto. Eu fiz o polígrafo e passei, e eles disseram
que eu não tinha de falar mais disto. Eles disseram «por favor não
fales mais deste assunto» e já não tocam nele há um ano.
P:Portanto, nenhuma autoridade dos EUA o maltratou sob forma
alguma?
R:Não estou disposto a responder a esta pergunta; não tenho de o
fazer, se não me obrigarem.9
Transcrição da audiência de Mohamedou durante o CSRT, 8 de dezembro de 2004,
9
7–8. A transcrição do CSRT está disponível em http://online.wsj.com/public/resources/
documents/couch­‑slahilhearing03312007.pdf. [N. do E.]
21
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
A outra transcrição diz respeito à audiência para o Administrative
Review Board, em 2005. Tinha passado um ano desde a sua audiência
CSRT, um ano em que finalmente tinha sido autorizado a reunir­‑se com
advogados e em que encontrou o distanciamento e a energia para registar
por escrito a sua experiência. Desta vez, ele fala livremente acerca da sua
odisseia, não com medo nem com raiva, mas com uma voz pautada pela
ironia e pela argúcia. «Ele era muito tonto», diz Mohamedou da ameaça
de um dos seus interrogadores, «porque ele disse que ia trazer pessoas
pretas. Eu não tenho qualquer problema com pessoas pretas, metade
do meu país são pessoas pretas!» Outro interrogador em Guantánamo,
conhecido como Sr. X, estava tapado da cabeça aos pés «como na Arábia
Saudita, como as mulheres andam tapadas», e com «luvas, luvas nas
mãos como o O. J. Simpson». As respostas de Mohamedou são ricas em
pormenores, para surtirem efeito deliberadamente e por pura honesti‑
dade. «Por favor», diz ele ao conselho, «quero que vocês compreendam
a minha história, está bem? Porque não importa se eles me libertam
ou não, eu quero apenas que a minha história seja compreendida.»10
Não temos um registo completo do esforço de Mohamedou para
contar a sua história ao conselho de análise, naquela audiência. Assim
que ele começa a descrever o que vivenciou em Guantánamo durante o
verão de 2006, «o equipamento de gravação começa a funcionar defei‑
tuosamente», refere uma interrupção a negrito na transcrição. Durante
a secção perdida, em que «o detido relatou de que modo foi torturado
por vários indivíduos enquanto esteve em GTMO», o documento ofe‑
rece em substituição «a recordação que o conselho tem daquela avaria
de 1000 cliques»11:
Transcrição ARB, 14, 18–19, 25–26. [N. do E.]
10
Durante a audiência, o equipamento de gravação avariou, fazendo com que o rema‑
11
nescente da terceira cassete (de um total de quatro), dos 3487 cliques aos 4479 cliques, ficasse
distorcido; dai a alusão aos «1000 cliques». [N. dos T.]
22
INTRODUÇÃO
O Detido começou por descrever os alegados maus­‑tratos que recebeu
de uma interrogadora do sexo feminino que ele conhece sob o nome
. O Detido tentou explicar ao Conselho
ações, mas ficou agitado e visivelmente perturbado. Explicou que tinha
sido assediado sexualmente e que, embora goste de mulheres, não gostou
do que
lhe tinha feito. A presidente do Conselho observou
que o Detido estava incomodado e disse­‑lhe que não era obrigado a contar a
história. O Detido ficou muito grato e optou por não dar mais pormenores
sobre os alegados maus­‑tratos da parte de
.
O Detido afirmou que
e
tinham entrado na sala com os rostos tapados e tinham começado a
bater­‑lhe. Bateram­‑lhe tanto que
ficou incomodado.
não gostou do tratamento que o Detido estava a receber e
começou a sentir compaixão por ele. Segundo o Detido,
estava a chorar e a dizer a
ea
para pararem
de lhe bater. O Detido queria mostrar ao Conselho as suas cicatrizes e a
localização das lesões, mas o Conselho declinou a observação. O Conselho
concorda que este é um resumo justo da parte distorcida da cassete.12
Apenas temos estas transcrições, porque, na primavera de 2006,
um juiz federal que estava a julgar um processo FOIA, interposto
pela Associated Press, ordenou a sua divulgação. Esse processo
também obrigou o Pentágono a, finalmente, quatro anos após a
abertura de Guantánamo, publicar uma lista oficial dos homens
que mantinha presos naquelas instalações. Pela primeira vez, os
detidos tiveram nomes, e os nomes tiveram vozes. Nas transcri‑
ções das suas audiências secretas, muitos prisioneiros contaram
histórias que refutam as afirmações de que o campo de detenção
Transcrição ARB, 26­–27. [N. do E.]
12
23
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
cubano albergava «os piores dos piores», homens tão perigosos,
segundo as famosas declarações do general presente quando os pri‑
meiros detidos aterravam no campo em 2002, que eles «roeriam
cabos hidráulicos num C­‑17 para o despenhar».13 Muitos, tal como
Mohamedou, abordaram a questão do seu tratamento sob custódia
dos Estados Unidos.
O Pentágono duplicou a aposta. «Os presos detidos em Guantánamo
são instrutores de terroristas, fabricantes de bombas, potenciais
bombistas­‑suicidas e outras pessoas perigosas», voltou a asseverar um
porta­‑voz militar quando as transcrições se tornaram do conhecimento
público. «E nós sabemos que eles foram treinados para tentar susci‑
tar compaixão pela sua situação e impor pressão sobre o governo dos
EUA.»14 Um ano mais tarde, quando os militares divulgaram os regis‑
tos das audiências de 2006 dos conselhos de análise de Guantánamo,
a transcrição de Mohamedou estava inteiramente em falta. Essa trans‑
crição ainda é confidencial.
A divulgação pública do manuscrito de Mohamedou foi por fim
autorizada, e um membro da sua equipa jurídica conseguiu entregar­
‑ma, num disco com uma etiqueta na qual se lia «Manuscrito Slahi
— Versão Autorizada», no verão de 2012. Nessa altura, Mohamedou
já estava em Guantánamo há uma década. Um juiz federal tinha ace‑
dido ao seu pedido de habeas corpus dois anos antes e ordenado a sua
libertação, mas o governo dos EUA interpôs um recurso e o tribunal
de apelos enviou o pedido de volta ao tribunal distrital federal para
reavaliação. O caso ainda está pendente.
Briefing noticioso do Departamento da Defesa, secretário Rumsfeld e general
13
Myers, 11 de janeiro de 2002, http://defense.gov/transcripts/transcript.aspx?transcrip‑
tid=2031. [N. do E.]
Comunicado à imprensa do Departamento da Defesa, 3 de abril de 2002, http://
14
defense.gov/news/newsarticle.aspx?id=15573. [N. do E.]
24
INTRODUÇÃO
Mohamedou continua na mesma cela de segregação onde escre‑
veu o seu diário de Guantánamo. Creio ter lido tudo o que veio a
público sobre este caso e não compreendo por que motivo ele foi
sequer levado para Guantánamo.
* * *
Mohamedou Ould Slahi nasceu em 31 de dezembro de 1970, em
Rosso, na altura uma pequena vila, hoje uma pequena cidade, junto
ao Rio Senegal, na fronteira sul da Mauritânia. Tinha oito irmãos
mais velhos e viria a ter três mais novos. A família mudou­‑se para
a capital, Nouakchott, quando Mohamedou estava a concluir o
ensino primário. O seu pai, um negociante de camelos nómada,
morreu pouco tempo depois. A conjuntura e os talentos eviden‑
tes de Mohamedou devem ter moldado a ideia que o jovem tinha
do seu papel na família. O seu pai ensinara­‑lhe o Corão, que ele já
tinha memorizado quando chegou à adolescência, e saía­‑se bem na
escola, com particular aptidão para a matemática. Uma reportagem
de 2008 no Der Spiegel descreve um miúdo popular, com gosto pelo
futebol, especialmente pela seleção alemã — uma paixão que o levou
a candidatar­‑se a uma bolsa, que conseguiu, junto da Carl Duisberg
Society, para estudar na Alemanha. Foi um enorme salto para toda
a família, como descreveu o jornal:
Slahi entrou no avião em direção à Alemanha numa sexta­‑feira,
no fim do verão de 1988. Ele era o primeiro membro da família a ir
para a universidade (no estrangeiro, ainda por cima) e o primeiro a
viajar de avião. Angustiada com a partida do seu filho favorito,
a despedida da sua mãe foi tão chorosa que Mohamedou, por instan‑
tes, hesitou antes de embarcar. No fim, os outros convenceram­‑no
25
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
a ir. «Esperávamos que ele nos salvasse financeiramente», diz hoje o
seu irmão [Y]ahdij.15
Na Alemanha, Mohamedou inscreveu­‑se num curso de Engenharia Eletrotécnica, com vista a uma carreira na área das teleco‑
municações e da informática, mas interrompeu os estudos para
participar numa causa que estava a atrair rapazes novos de todo
o mundo: a insurreição contra o governo de fação comunista no
Afeganistão. Não havia restrições ou proibições relativas a essas
atividades naqueles dias, e jovens como Mohamedou fizeram a via‑
gem voluntariamente; era uma causa que o Ocidente, e os Estados
Unidos em particular, apoiavam ativamente. Para se juntarem ao
combate, havia que treinar, pelo que, no início de 1991, Mohamedou
frequentou o campo de treino perto de Khost durante sete semanas
e fez um juramento de lealdade à Al­‑Qaeda, que dirigia o campo.
Recebeu treino relativo a armas leves e a morteiros: armas de fabrico
sobretudo russo, e projéteis dos morteiros, segundo recordou na
sua audiência CSRT, feitos nos EUA.
Mohamedou regressou aos seus estudos depois do treino, mas,
no início de 1992, com o governo comunista à beira do colapso, voltou
ao Afeganistão. Juntou­‑se a uma unidade, comandada por Jalaluddin
Haqqani, que estava a cercar a cidade de Gardez, que cedeu com
pouca resistência três semanas após a chegada de Mohamedou.
Cabul cedeu pouco depois, e, como Mohamedou explicou na sua
audiência CSRT, a causa rapidamente se tornou confusa:
John Goetz, Marcel Rosenbach, Brita Sandberg e Holger Stark, «From Germany
15
to Guantanamo: The Career of Prisioner No. 760», Der Spiegel, 9 de outubro de 2008,
www.spiegel.de/international/world/from­‑ germany­‑ to­‑ guantanamo­‑ the­‑ career­‑ of­
prisioner­‑no760­‑a583193.html. [N. do E.]
26
INTRODUÇÃO
Logo após o desmantelamento dos comunistas, os próprios mujahideen16
começaram uma jihad contra eles mesmos para decidir quem ficava
no poder; as várias fações começaram a combater­‑se umas às outras.
Eu decidi voltar, porque não queria lutar contra outros muçulmanos e
não via motivos para isso; tal como hoje, não vejo motivo para combater
e decidir quem pode ser presidente ou vice­‑presidente. O meu objetivo era
apenas combater os agressores, sobretudo os comunistas, que impediam
os meus irmãos de praticarem a sua religião.
Isso, sempre insistiu Mohamedou, marcou o fim do seu com‑
promisso para com a Al­‑Qaeda. Tal como disse à presidente da sua
audiência CSRT:
Minha senhora, eu sabia que estava a combater com a Al-Qaeda, mas
nessa altura a Al-Qaeda não tinha uma jihad contra os Estados Unidos da
América. Eles disseram­‑nos para combatermos com os nossos irmãos contra
os comunistas. Em meados dos anos noventa, eles quiseram lançar uma
jihad contra os Estados Unidos, mas eu, pessoalmente, nada tive que ver
com isso. Não me juntei a eles nessa ideia; isso é problema deles. Eu estou
completamente à margem da Al-Qaeda e dos EUA. Eles têm de resolver este
problema sozinhos; eu sou totalmente independente deste problema.17
De volta à Alemanha, Mohamedou instalou­‑se na vida que ele
e a sua família em Nouakchott tinham planeado. Concluiu o seu
curso de Engenharia Eletrotécnica na Universidade de Duisburg,
a sua jovem esposa mauritana juntou­‑se a ele, e o casal viveu e tra‑
balhou nessa cidade durante a maior parte da década de noventa.
Termo árabe que designa «combatente» ou «alguém envolvido na luta [jihad]»,
16
o mesmo que jihadista. [N. dos T.]
Transcrição da audiência CSRT, 3–4. [N. do E.]
17
27
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
Durante esse período, porém, manteve a amizade ou pelo menos
o contacto com os seus companheiros da aventura do Afeganistão,
alguns dos quais mantinham ligações à Al­‑Qaeda. Também estava
associado a um membro destacado dessa organização, Mahfouz
Ould al­‑Walid, também conhecido como Abu Hafs al­‑Mauritani,
que era membro do Conselho Shura da Al­‑Qaeda e um dos conse‑
lheiros tecnológicos superiores de Osama bin Laden. Abu Hafs é
primo afastado de Mohamedou e também cunhado por afinidade,
através do casamento com a irmã de Mohamedou. Os dois contacta‑
ram ocasionalmente por telefone enquanto Mohamedou esteve na
Alemanha — uma chamada de Abu Hafs, usando o telefone­‑satélite
de bin Laden, chamou a atenção dos serviços secretos alemães em
1999 — e, por duas vezes, Mohamedou ajudou Abu Hafs a transfe‑
rir 4000 dólares para a sua família na Mauritânia, por ocasião dos
feriados do Ramadão.
Em 1998, Mohamedou e a sua mulher viajaram até à Arábia Saudita
para realizarem o hajj. Nesse mesmo ano, não tendo conseguido o
visto de residência permanente na Alemanha, Mohamedou seguiu
o conselho de um colega de faculdade e candidatou­‑se ao estatuto de
imigrante com residência permanente no Canadá, e, em novembro
de 1999, mudou­‑se para Montreal. Ele viveu durante algum tempo
com este antigo colega, e depois numa grande mesquita al Sunnah
dessa cidade, onde, como hafiz (alguém que memorizou o Corão),
foi convidado a conduzir as orações do Ramadão enquanto o imã estava
em viagem. Menos de um mês depois de ter chegado a Montreal,
um imigrante argelino e membro da Al­‑Qaeda chamado Ahmed
Ressam foi preso ao entrar nos Estados Unidos com um carro car‑
regado de explosivos e com o plano de bombardear o Aeroporto
Internacional de Los Angeles no dia de Ano Novo, algo que fazia parte
do que se tornou conhecido como o Plano do Milénio. Ressam tinha
28
INTRODUÇÃO
estado a viver em Montreal. Deixou a cidade antes de Mohamedou
chegar, mas tinha frequentado a mesquita al Sunnah e tinha ligações
a várias pessoas a quem Mohamedou, na sua audiência CSRT, desig‑
nou como os «maus amigos» do seu colega de faculdade.
A captura de Ressam desencadeou uma grande investigação à
comunidade de imigrantes muçulmanos em Montreal, e à comuni‑
dade da mesquita al Sunnah em particular. Pela primeira vez na sua
vida, Mohamedou foi interrogado quanto a possíveis ligações terro‑
ristas. A Real Polícia Montada do Canadá «veio e interrogou­‑me»,
testemunhou ele na sua audiência de 2005 perante o Administrative
Review Board.
Eu tive medo de lhes contar. Eles perguntaram­‑me se eu conhecia Ahmed
Ressam, eu disse «Não», e depois eles perguntaram­‑me «Conhece este
tipo?», e eu disse «Não, não.» Eu estava tão assustado que tremia […].
Não estava habituado a isto, era a primeira vez que me interrogavam,
e eu só queria ficar longe de problemas e garantir que dizia a verdade.
Mas eles estavam a vigiar­‑me de um modo muito feio. Não faz mal
sermos vigiados, mas não está certo vermos as pessoas que nos estão a
vigiar. Foi muito trapalhão, mas eles queriam passar a mensagem de
que estavam de olho.
Na Mauritânia, a família de Mohamedou ficou alarmada. «O que
estás a fazer no Canadá?», lembra­‑se ele de lhe terem perguntado.
«Não disse nada, mas [à] procura de emprego. E a minha família
decidiu que eu tinha de voltar à Mauritânia, porque este tipo deve
estar num ambiente muito mau e queremos salvá­
‑lo.» A atual
ex­‑mulher de Mohamedou telefonou em nome da família para lhe
comunicar que a sua mãe estava doente. Segundo descreveu ao con‑
selho de análise:
29
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
[Ela] ligou­‑me e estava a chorar e disse: «Ou consegues que eu vá para o
Canadá ou vens para a Mauritânia.» Eu disse: «Ei, tem calma.» Não
gostava desta vida no Canadá, não conseguia desfrutar da minha liberdade
e ser vigiado não é muito bom. Eu detestava o Canadá e disse: «O trabalho
aqui é muito duro.» Vim embora na sexta­‑feira, dia 21 de janeiro de 2000;
apanhei um voo de Montreal para Bruxelas, e depois para Dakar.18
Com esse voo, iniciou­‑se aquilo que viria a tornar­‑se a odisseia do
Diário de Guantánamo de Mohamedou.
Começa aqui, porque, deste momento em diante, apenas uma
força determina o destino de Mohamedou: os Estados Unidos.
Geograficamente, aquilo a que ele chama a sua «infindável volta ao
mundo» de detenções e interrogatórios percorrerá 32 000 km ao
longo dos dezoito meses seguintes, a começar naquilo que deveria ser
um regresso ao lar e a terminar consigo isolado, a 6500 km de casa,
numa ilha das Caraíbas. Pelo caminho, será detido e interrogado em
quatro países, e sempre a mando dos Estados Unidos.
Eis como a primeira destas detenções é descrita numa cronologia
que o juiz distrital dos EUA James Robertson incluiu na sua decisão
pública de 2010 de aceitar o pedido de habeas corpus de Mohamedou:
Jan 2000
Voou do Canadá para o Senegal, onde os irmãos o
receberam para o levar para a Mauritânia; ele e os irmãos
foram intercetados pelas autoridades
e
interrogados quanto ao Plano do Milénio. Uma pessoa
dos EUA veio e tirou fotografias; depois, alguém que
ele presumiu ser dos EUA levou­‑o de avião para a
Mauritânia, onde ele voltou a ser interrogado pelas
autoridades mauritanas quanto ao Plano do Milénio.
Transcrição ARB, 15–16. [N. do E.]
18
30
INTRODUÇÃO
Fev 2000
relativamente ao plano
Interrogado por
do Milénio.
14/02/2000
libertaram­‑no, concluindo que não
havia motivos para crer que ele estivesse implicado no
Plano do Milénio.
«Os mauritanos disseram: “Não precisamos de ti, vai­‑te embora.
Não temos qualquer interesse em ti”», recordou Mohamedou
enquanto descrevia a libertação durante a sua audiência perante o
ARB. «Perguntei­‑lhes: “E quanto aos americanos?” Eles disseram:
“Os americanos estão sempre a dizer que tu és uma ligação, mas
não nos apresentam provas; portanto, que podemos fazer?”»
Contudo, tal como o Juiz Robertson registou na sua cronologia,
o governo mauritano voltou a convocar Mohamedou, novamente a
pedido dos Estados Unidos, pouco depois dos ataques terroristas
do 11 de Setembro:
29/09/2001
Preso na Mauritânia; as autoridades disseram­‑lhe
preso, porque Salahi teria
estado alegadamente envolvido no Plano do Milénio.
12/10/2001
Enquanto estava detido, agentes realizaram uma busca
em sua casa, apreendendo cassetes e documentos.
15/10/2001
Libertado pelas
autoridades.19
Entre essas duas detenções mauritanas, que incluíram ambas
interrogatórios por parte de agentes do FBI, Mohamedou levou uma
vida completamente vulgar e, segundo os padrões do seu país, bas‑
tante bem­‑sucedida, trabalhando com computadores e eletrónica:
19
Memorando da Decisão, Mohammedou Ould Salahi v. Barack H. Obama,
N.º 1:05­‑cv00569­‑JR, 13–14. O Memorando da Decisão está disponível em www.aclu.org/
files/assets/2010­‑4­‑9­‑Slahi­‑Order.pdf. [N. do E.]
31
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
primeiro para uma empresa de material médico que também forne‑
cia serviços de Internet, e depois para um negócio familiar de impor‑
tação igualmente diversificado. Embora ele estivesse livre e «tivesse
voltado à sua vida», como explicou ao ARB:
Eu pensei «agora vou ter um problema com o meu empregador, pois o meu
patrão não me vai aceitar de volta, porque sou suspeito de terrorismo», mas
eles disseram que iam tratar do assunto. À minha frente, enquanto eu estava
[ali] sentado, o superior dos serviços secretos na Mauritânia ligou ao meu
empregador e disse que eu era boa pessoa, «não temos problema com [ele] e
prendemo­‑lo por um motivo». Tivemos de o interrogar e já o interrogámos
e ele está livre, portanto podem recebê­‑lo de volta.20
O seu patrão aceitou­‑o de volta, e, apenas um mês depois, o tra‑
balho de Mohamedou levou­‑o ao palácio presidencial da Mauritânia,
onde passou um dia a preparar uma proposta para um concurso
que visava melhorar as redes telefónica e informática do presidente
Maaouya Ould Sid’Ahmed Taya. Quando chegou a casa, a Polícia
nacional apareceu de novo, dizendo­‑lhe que era mais uma vez cha‑
mado a interrogatório. Mohamedou vestiu­‑se, pegou nas chaves
— foi voluntariamente, indo no seu próprio carro para as instalações
da Polícia — e disse à sua mãe que não se preocupasse, pois em
breve estaria de volta. Desta vez, porém, desapareceu.
Durante quase um ano, a sua família foi levada a acreditar que ele
estava sob custódia mauritana. O seu irmão mais velho, Hamoud, visi‑
tava regulamente a prisão de segurança para deixar roupas e dinheiro
para as refeições de Mohamedou. Contudo, uma semana após
Mohamedou se ter entregado voluntariamente, um voo de transporte
Transcrição ARB, 19. [N. do E.]
20
32
INTRODUÇÃO
de prisioneiros da CIA levou­‑o para a Jordânia; meses mais tarde,
os EUA foram buscá­‑lo a Amã e levaram­‑no para a Base Aérea
de Bagram, no Afeganistão, e, umas semanas depois disso, para
Guantánamo. Durante todo este tempo, a sua família pagou pela sua
subsistência na prisão de Nouakchott; e, durante todo esse tempo,
os responsáveis da prisão puseram o dinheiro ao bolso, sem nada dizer.
Por fim, a 28 de outubro de 2002, o irmão mais novo de Mohamedou,
Yahdih, que tinha assumido a posição de Mohamedou como o mem‑
bro da família que ganha dinheiro na Europa, pegou na edição do Der
Spiegel dessa semana e leu que o seu irmão estava há meses numa
jaula de arame farpado no campo prisional de Guantánamo.
Yahdih ficou furioso: não, segundo se recorda, com os Estados
Unidos, mas com as autoridades locais que vinham garantindo à
família que teriam Mohamedou e que ele estaria a salvo. «Aqueles
polícias são más pessoas, são ladrões!», disse uma e outra vez à sua
família quando telefonou com a notícia. «Não digas isso!», entraram
eles em pânico, desligando. Ele ligou­‑lhes de volta e voltou a dizê­‑lo.
Eles desligaram novamente.
Yahdih ainda vive em Düsseldorf. Eu e ele encontrámo­‑nos no
ano passado e partilhámos diversas refeições num restaurante mar‑
roquino na Ellerstraße, um centro para a comunidade do Norte
de África a residir na cidade. Yahdih apresentou­‑me a vários ami‑
gos seus, sobretudo jovens marroquinos, muitos dos quais, como
Yahdih, são agora cidadãos alemães. Entre eles falaram árabe, fran‑
cês e alemão; comigo, à semelhança de Yahdih, tentaram corajosa‑
mente o inglês, rindo­‑se dos erros uns dos outros. Yahdih contou
uma anedota clássica de imigrantes, em árabe para os seus amigos
e depois traduzindo­‑a para mim, acerca do teste de inglês de um
aspirante a trabalhador num hotel. «O que dizes, se quiseres chamar
alguém?», pergunta ao candidato. «Por favor, venha cá», responde ele.
33
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
«E se quiseres que a pessoa se vá embora?» O candidato faz uma
pausa e depois o seu rosto ilumina­‑se. «Vou lá fora e digo­‑lhe “por
favor, venha cá!”»
Em Düsseldorf, eu e Yahdih passámos uma refeição inteira a
ordenar e etiquetar fotografias de irmãos, irmãs, cunhados e sobri‑
nhos, muitos dos quais vivem no lar multigeracional da família em
Nouakchott. Durante a sua audiência CSRT de 2004, Mohamedou
explicou o seu desinteresse na Al­‑Qaeda depois de ter regres‑
sado à Alemanha, dizendo: «Tenho uma grande família para ali‑
mentar, eu tinha 100 bocas para alimentar.» Era um exagero, mas
talvez só pela metade. Agora cabe a Yahdih uma grande parte
dessa responsabilidade. Como o ativismo pode implicar riscos na
Mauritânia, ele também assumiu a liderança dentro da família de
advogar em prol da libertação de Mohamedou. Durante a nossa
última refeição juntos, vimos vídeos do YouTube de uma manifes‑
tação que ele ajudou a organizar em Nouakchott no ano passado,
diante do palácio presidencial. O orador principal, destacou ele, era
um ministro parlamentar.
Uns dias antes de ter visitado Yahdih, Mohamedou tinha rece‑
bido autorização para fazer uma das duas chamadas que lhe são per‑
mitidas por ano para a sua família. As chamadas são organizadas
sob os auspícios do Comité Internacional da Cruz Vermelha, e esta‑
belecem a ligação entre Mohamedou e a sua casa em Nouakchott e
com Yahdih na Alemanha. Yahdih disse­‑me que tinha escrito recen‑
temente à Cruz Vermelha a perguntar se o número de chamadas
poderia ser aumentado para três por ano.
A primeira destas chamadas ocorreu em 2008, seis anos e meio
depois de Mohamedou ter desaparecido. Um repórter do Der Spiegel
testemunhou a cena:
34
INTRODUÇÃO
Ao meio­‑dia de uma sexta­‑feira em junho de 2008, a família Slahi reúne­
‑se nos escritórios da Cruz Vermelha Internacional (CVI) na capital mauri‑
tana de Nouakchott. A sua mãe, os seus irmãos, irmãs, sobrinhos, sobrinhas
e tias envergam todos as vestes fluidas que normalmente usariam numa festa
familiar. Eles vieram para falar com Mohamedou, o seu filho perdido, pelo
telefone. A Força Operacional Conjunta de Guantánamo concedeu a sua
aprovação, com a CVI a fazer de intermediário. Tapetes fofos cobrem o chão
de pedra, e cortinas de cores claras ondulam nas janelas do escritório da CVI.
«Meu filho, meu filho, como te sentes?», pergunta­‑lhe a mãe. «Estou
tão feliz por te ouvir.» Ela começa a chorar ao ouvir a voz do seu filho pela
primeira vez em mais de seis anos. O irmão mais velho de Mohamedou
fala com ele durante 40 minutos. Slahi diz ao seu irmão que vai tudo
bem. Ele quer saber quem casou com quem, como estão os seus irmãos
e quem é que teve filhos. «Este era o meu irmão, o irmão que conheci.
Ele não mudou», diz Hamoud Ould Slahi no fim da conversa.21
Por aquilo que Yahdih me diz, as conversas são mais ou menos
as mesmas cinco anos depois, embora duas coisas tenham mudado.
Atualmente as chamadas fazem­‑se através do Skype, permitindo que
se vejam uns os outros. E agora falta­‑lhes a mãe de Mohamedou e de
Yahdih. Ela faleceu a 27 de março de 2013.
* * *
O editorial principal do New York Daily News de 23 de março de 2010
intitulava­‑se «Keep the Cell Door Shut: Appeal a Judge’s Outrageous
Ruling to Free 9/11 Thug»22. O editorial começava assim:
Goetz et al., «From Germany to Guantanamo». [N. do E.]
21
«Mantenham a porta da cela fechada: recorram da decisão chocante de um juiz
22
de libertar um facínora do 11 de Setembro». [N. dos T.]
35
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
É chocante e é verdade: um juiz federal ordenou a libertação de
Mohamedou Ould Slahi, um dos principais recrutadores dos ataques do
11 de Setembro; um homem que em tempos foi tido como o preso mais
valioso de Guantánamo.
Essa ordem foi a decisão do memorando do juiz James Robertson,
na altura ainda confidencial, em aceitar o pedido de habeas corpus de
Mohamedou: o pedido que Mohamedou escrevera à mão na sua cela
cinco anos antes. Sem acesso a essa ordem, aos documentos legais
ou às audiências em tribunal que resultaram na decisão, o conselho
editorial do jornal, todavia, conjeturou que um juiz estava a deixar que
«um terrorista com o sangue de 3000 vidas nas suas mãos» saísse
em liberdade, acrescentando perversamente que «ele talvez fosse um
homem cuja culpa era certa, embora impossível de provar para lá da
dúvida razoável, graças a escrúpulos quanto a provas obtidas através
de um tratamento duro». Mostrando confiança de que Mohamedou
teria sido «apertado justamente de forma dura após o 11 de Setembro»,
e de que o tratamento que recebera teria tornado o país mais seguro,
os editores sugeriam que a administração Obama recorresse da decisão,
acrescentando: «Qual é a pressa de o libertarem? O tribunal poderia
ter esperado, deveria ter esperado, que o país compreendesse por que
motivo isto teve de acontecer antes de exercer a sua autoridade legal.»23
Duas semanas mais tarde, o tribunal divulgou uma versão autori‑
zada e censurada da decisão do juiz Robertson. Uma secção da opi‑
nião que resumia os argumentos do governo a favor da manutenção
de Mohamedou em Guantánamo incluía uma nota de rodapé que
talvez surpreendesse os leitores do jornal:
«Keep the Cell Door Shut: Appeal a Judge’s Outrageous Ruling to Free 9/11 Thug»,
23
editorial, New York Daily News, 23 de março de 2010, http://nydailynews.com/opinion/
cell­‑door­‑shut­‑appeal­‑judge­‑outrageous­‑ruling­‑free9­‑11­‑thug­‑article1.172231. [N. do E.]
36
INTRODUÇÃO
O governo também defendeu ao início que Salahi também estava detido
segundo o critério de «contribuiu para o 11 de Setembro» da AUMF24,
mas agora abandonou essa teoria, ao reconhecer que Salahi provavel‑
mente nem saberia dos ataques do 11 de Setembro.25
Isso certamente tornaria um abuso chamar a Mohamedou um
«facínora do 11 de Setembro». Também é um abuso, sob todos os
pontos de vista, chamar à decisão de libertação de um homem,
nove anos depois de ele ter sido preso, «pressa em libertar». Mas
há uma verdade no centro daquele editorial do Daily News (e em
muita da cobertura mediática sobre o caso de Mohamedou), e essa
verdade é confusão. Nove anos são agora treze, e o país não parece
estar mais perto de compreender a justificação do governo para
manter Mohamedou preso do que estava quando o juiz Robertson,
o único juiz que analisou detalhadamente o seu caso, ordenou a sua
libertação.
Isto é o que parece claro ao analisar para os registos disponíveis:
o tempo que Mohamedou passou sob custódia dos EUA não come‑
çou com as alegações de que ele era um dos principais recrutadores
do 11 de Setembro. Quando ele foi interrogado pelo FBI na altura do
seu regresso à Mauritânia em fevereiro de 2000, e depois novamente
umas semanas após os ataques do 11 de Setembro, a atenção estava
A AUMF, ou Authorization for Use of Military Force (Autorização para Uso de Força
24
Militar) é a lei de 14 de setembro de 2001 segundo a qual Guantánamo opera. Autoriza
o presidente dos EUA a «usar de toda a força necessária e adequada contra os países,
as organizações ou as pessoas que ele conclua que planearam, autorizaram, cometeram
ou contribuíram para os atos terroristas que ocorreram a 11 de setembro de 2001, ou que
albergaram tais organizações ou pessoas, de modo a evitar quaisquer futuros ataques
de terrorismo internacional contra os Estados Unidos por parte desses países, dessas
organizações ou dessas pessoas». [N. dos T.]
Memorando da Decisão, 4. [N. do E.]
25
37
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
centrada no Plano do Milénio. Essa também parece ter sido a razão
do seu transporte para Jordânia: «Os jordanos estavam a investigar
a minha participação no Plano do Milénio», disse Mohamedou ao
Administrative Review Board em 2005. «Eles disseram­‑me que esta‑
vam especialmente interessados no Plano do Milénio.»
Na altura em que a CIA entregou Mohamedou à Jordânia, porém,
Ahmed Ressam estava a cooperar há meses com os Estados Unidos;
e, na altura em que a CIA recuperou Mohamedou, oito meses mais
tarde, Ressam havia testemunhado em dois julgamentos de terro‑
rismo e fornecido ao governo dos EUA, e a seis outros, os nomes
de mais de 150 pessoas implicadas no terrorismo. Algumas destas
pessoas eram reclusos de Guantánamo, e o governo dos EUA tinha
usado as declarações de Ressam como prova contra elas nos seus
casos de habeas corpus. Não foi assim com Mohamedou. Ressam
«visivelmente não implica o nome de Salahi», observou Robertson
no seu parecer quanto ao habeas corpus.
A CIA sabê­‑lo­‑ia. A agência também saberia, se os jordanos tives‑
sem descoberto algo que ligasse Mohamedou ao Plano do Milénio,
aos ataques do 11 de Setembro ou a quaisquer outros ataques terro‑
ristas. Porém, a CIA aparentemente nunca forneceu qualquer infor‑
mação do seu interrogatório em Amã aos advogados da acusação
de Guantánamo. Numa entrevista de 2012 no âmbito do Rule of
Law Oral History Project, da Universidade de Columbia, o tenente­
‑coronel Stuart Couch, o advogado de acusação dos Fuzileiros incum‑
bido de fundamentar o caso contra Mohamedou em Guantánamo,
disse que a CIA não lhe havia mostrado quaisquer relatórios de
informação próprios, e que a maioria dos relatórios que essa agência
tinha partilhado consigo provinha do interrogatório a Mohamedou
feito em Guantánamo. «Ele estava à guarda deles há seis meses.
Eles sabiam que eu era o principal advogado da acusação. Eles sabiam
38
INTRODUÇÃO
que estávamos a ponderar um pedido de pena capital. Se tivésse‑
mos conseguido encontrar a sua ligação ao 11 de Setembro, teríamos
pedido a pena de morte.»
«Portanto, alguma coisa deve ter acontecido», presumiu Stuart
Couch naquela entrevista. «Slahi estava sob custódia da CIA, e eles
devem ter sentido que lhe tinham arrancado toda a informação pos‑
sível, ou que a informação que tinham não se revelara importante,
e limitaram­‑se a atirá­‑lo de volta para as mãos dos militares dos
Estados Unidos em Bagram, no Afeganistão.»26
Há uma passagem arrepiante no relatório de investigação de 2004
do inspetor­‑geral da CIA, intitulado Counterterrorism and Detention
Interrogation Activities, September 2001 – October 200327, uma de ape‑
nas duas passagens não­‑censuradas, numa secção de quatro páginas
inteiramente cortadas do relatório, chamada «Endgame»28. Diz o
seguinte:
O número de detidos sob custódia da CIA é relativamente pequeno
quando comparado com os que estão sob custódia militar. Todavia,
a Agência, como o Exército, tem um interesse na posse dos detidos e um
particular interesse naqueles que, se não tivessem sido mantidos em isolamento, provavelmente teriam divulgado informações acerca das circunstâncias da sua detenção.29
The Reminiscences of V. Stuart Couch, 1–2 de março de 2012, Columbia Center
26
for Oral History Collection (daqui em diante referido como CCOHC), 94, 117, www.
columbia.edu/cu/libraries/inside/ccoh_assets/ccoh_10100507_transcript.pdf. [N. do E.]
«Contraterrorismo e atividades de detenção para interrogatório, setembro de 2001
27
– outubro de 2003». [N. dos T.]
Uma tradução possível seria «fase final do jogo». [N. dos T.]
28
Gabinete do inspetor­‑geral da CIA, «Counterterrorism and Detention Interrogation
29
Activities, September 2001 – October 2003», 7 de maio de 2004, 96. O Relatório OIG
da CIA está disponível em http://media.luxmedia.com/aclu/IG_Report.pdf. [N. do E.]
39
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
No início de 2002, nem sequer a família de Mohamedou sabia
que ele estava na Jordânia. Poucas pessoas no mundo sabiam que
os Estados Unidos estavam a levar a cabo um programa de captura,
transporte de prisioneiros e interrogatório, e que o faziam não ape‑
nas com a ajuda de aliados antigos como os serviços secretos jor‑
danos, mas também com a cooperação de outros amigos, menos
estáveis. A Mauritânia era um amigo deste género. Em 2002, o presidente mauritano, e governante desde há muitas décadas, Ould
Taya estava sob pressão internacional, devido ao historial do seu
país quanto aos direitos humanos, e domesticamente, devido à sua
cooperação próxima com as políticas de antiterrorismo dos EUA.
Que Mohamedou tenha sido interrogado por agentes do FBI no seu
próprio país em 2000, foi suficientemente controverso para atrair
a imprensa. E se ele tivesse regressado à Mauritânia em meados de
2002 com relatos de ter sido entregue aos americanos sem proce‑
dimentos de extradição, violando assim uma proteção explícita da
constituição mauritana, e de que fora interrogado ao longo de meses
numa prisão jordana?
Em todo o caso, não há qualquer indicação de que, quando um
C­‑17 do Exército dos EUA que levava Mohamedou e outros 34 prisio‑
neiros aterrou em Guantánamo a 5 de agosto de 2002, este mauritano
de 31 anos de idade fosse um detido especialmente valioso. Ele ter­
‑se­‑ia destacado, dessa maneira: um artigo publicado duas semanas
mais tarde no Los Angeles Times, intitulado «No Leaders of al Qaeda
Found at Guantanamo Bay, Cuba»30, citava fontes governamentais,
que disseram não haver «peixe graúdo» sob custódia naquele sítio
e que os quase 600 detidos na ilha não estavam «suficientemente
«Não se encontraram líderes da Al-Qaeda na Baía de Guantánamo, Cuba».
30
[N. dos T.]
40
INTRODUÇÃO
acima na cadeia de comando e na estrutura de controlo para ajudar
os especialistas em contraterrorismo a deslindar a célula e o sistema
de segurança bem fechados da Al-Qaeda»31. Uma auditoria estrita‑
mente confidencial da CIA às instalações, por volta da mesma altura,
ecoava alegadamente estas conclusões. Quando os jornalistas visita‑
ram o campo nesse agosto, o comandante das operações de deten‑
ção de Guantánamo disse­‑lhes que os seus oficiais fardados estavam
a questionar a continuada designação dos detidos como «combatentes
inimigos», em vez de prisioneiros de guerra com direito às proteções
da Convenção de Genebra. A solução do Pentágono foi substituir o
comandante e aumentar as operações de serviços secretos do campo.
Criou­‑se quase imediatamente uma cisão entre os interrogado‑
res militares e o FBI e os agentes da Criminal Investigation Task
Force32 que tinham, em geral, conduzido as entrevistas aos prisio‑
neiros em Guantánamo. Em setembro e outubro, devido às fortes
objeções dos agentes do FBI e da CITF, o Exército criou a sua pri‑
meira «Equipa de Projetos Especiais» e elaborou um plano escrito
para o interrogatório do prisioneiro saudita Mohammed al­‑Qahtani.
Esse plano incluía algumas das «técnicas de interrogatório avança‑
das» que a CIA tinha estado a usar há vários meses na sua própria
prisão secreta. Na execução desse plano, que foi implementado de
forma irregular durante o outono e concluiu, com a autorização assi‑
nada do secretário de Defesa Donald Rumsfeld, numa torrente ago‑
nizante de 52 dias que começou em novembro, os interrogadores
militares sujeitaram Qahtani a um regime permanente de privação
extrema de sono, música alta e ruído branco, temperaturas gélidas,
Bob Drogin, «No Leaders of Al Qaeda Found at Guantanamo», Los Angeles Times,
31
18 de agosto de 2002, http://articles.latimes.com/2002/aug/18/nation/na­‑gitmo18. [N.
do E.]
CITF, ou Força Operacional de Investigação Criminal. [N. dos T.]
32
41
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
posições de stress, ameaças e uma multiplicidade de humilhações
físicas e sexuais.
Foi durante este período, à medida que a discussão sobre métodos
de interrogatório se desenrolava no campo, que emergiu uma ligação
entre Mohamedou Ould Slahi e os sequestradores do 11 de Setembro.
«A 11 de setembro de 2002, os EUA prenderam um homem com o
nome de Ramzi bin al­‑Shibh, que se afirma ser o tipo fundamental nos
ataques do 11 de Setembro», declarou Mohamedou na sua audiência
perante o ARB, em 2005.
Faz exatamente um ano que aconteceu o 11 de Setembro, e desde a sua
captura que a minha vida mudou drasticamente. Ele identificou­‑me
como o tipo que viu em outubro de 1999, o que está correto, ele esteve em
minha casa. Ele disse que eu o aconselhei a ir para o Afeganistão para
treinar. Certo, depois o seu interrogador
do FBI pediu­‑lhe
que especulasse sobre quem eu era como pessoa. Ele [Ramzi] disse «Acho
que ele é um operacional de Osama bin Laden» e sem ele eu nunca me
teria envolvido no 11 de setembro.33
Bin al­‑Shibh era alvo de uma caça ao homem internacional desde
o 11 de Setembro devido ao seu alegado papel na coordenação da
«célula de Hamburgo» de sequestradores. Ficou sob custódia da
CIA imediatamente após a sua captura num tiroteio num subúr‑
bio de Karachi, e detiveram­‑no inicialmente na «Prisão Escura» da
CIA, no Afeganistão, e a seguir, durante o outono, numa prisão
perto de Rabat, em Marrocos. Durante o interrogatório numa des‑
sas instalações, bin al­‑Shibh falou de um encontro fortuito com um
estranho num comboio na Alemanha, em que ele e dois amigos
Transcrição ARB, 23–24. [N. do E.]
33
42
INTRODUÇÃO
falaram da jihad e do seu desejo de viajar para a Chechénia para
se juntarem à luta contra os russos. O estranho sugeriu que eles
contactassem Mohamedou em Duisburg, e, quando o fizeram,
Mohamedou acolheu­‑os por uma noite. «Quando eles chegaram»,
registou a Comissão do 11 de Setembro numa descrição feita de rela‑
tórios de informações secretas elaborados a partir desses interrogatórios, «Slahi explicou que seria difícil chegar à Chechénia
na altura, porque muitos dos que viajavam estavam a ser deti‑
dos na Geórgia. Ele recomendava que eles atravessassem antes o
Afeganistão, onde poderiam treinar para a jihad antes de viajarem
para a Chechénia.»34
Bin al­‑Shibh não asseverou que Mohamedou o tivesse enviado
para o Afeganistão para se juntar a um plano contra os Estados
Unidos. O tenente­‑coronel Couch, que viu o relatório de informações
secretas de bin al­‑Shibh, lembrou na entrevista de 2012: «Nunca vi
qualquer menção de que era para atacar a América. Nunca vi o facto
de que Ramzi bin al­‑Shibh tenha dito “nós dissemos­‑lhe o que que‑
ríamos fazer, e ele disse ‘é aqui que vocês podem ir receber treino.’”
Foi mais do género: “É aqui que podem receber treino.”»35 Durante
os procedimentos legais de habeas corpus de Mohamedou, o governo
dos EUA não defendeu que ele tivesse convencido os homens a
juntarem­‑se ao plano de bin Laden; em vez disso, o governo alegou
que, ao sugerir aos homens que procurassem treino no Afeganistão
— algo que Mohamedou ficara a saber ser necessário para aderir
a um combate anterior, envolvendo os russos —, ele atuava em
geral como um recrutador da Al­‑Qaeda. O juiz Robertson discordou,
The National Comission on Terrorist Attacks upon the United States, «The 9/11
34
Commission Report», 165–166. O relatório da comissão está disponível em http://
govinfo.library.unt.edu/p11/report/911Report.pdf. [N. do E.]
Entrevista CCOHC com V. Stuart Couch, 90. [N. do E.]
35
43
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
constatando que a documentação mostrava apenas que «Slahi tinha
dado guarida a três homens por uma noite na Alemanha, que um
deles tinha sido Ramzi bin al­‑Shibh e que se havia discutido a jihad
e o Afeganistão»36.
Stuart Couch recebeu os relatórios dos serviços secretos relativos
a bin al­‑Shibh quando lhe foi atribuído o caso de Mohamedou, no
outono de 2003. Os relatórios, e a missão em si, tinham um signifi‑
cado especial para o antigo piloto dos Fuzileiros: Michael Horrock,
amigo chegado, um colega piloto de reabastecimento aéreo nos
Fuzileiros, era o copiloto do avião da United Airlines que os seques‑
tradores do 11 de Setembro usaram para abater a Torre Sul do World
Trade Center. Esse acontecimento trouxe Stuart Couch de volta ao
ativo. Juntou­‑se à equipa de advogados de acusação da comissão
militar de Guantánamo com um propósito, esperando, como expli‑
cou num artigo sobre ele publicado no Wall Street Journal em 2007,
«conseguir a vingança dos tipos que atacaram os Estados Unidos».37
Pouco tempo depois, estava a analisar pilhas de relatórios de
informações secretas vindos de outra fonte, do próprio Mohamedou,
o fruto daquilo que os interrogadores militares já anunciavam como
o mais bem­‑sucedido interrogatório de Guantánamo da sua parte.
Esses relatórios não continham qualquer informação sobre as cir‑
cunstâncias do interrogatório, mas o tenente­‑coronel Couch tinha as
suas suspeitas. Fora­‑lhe dito que Mohamedou estava nos «Projetos
Especiais». Ele tinha entrevisto, na sua primeira visita à base, um
outro prisioneiro, acorrentado ao chão numa cabine de interrogató‑
rio vazia, oscilando para trás e para diante, enquanto uma luz estro‑
boscópica piscava e heavy metal tocava altíssimo. Já tinha visto este
Memorando da Decisão, 19. [N. do E.]
36
37
Jess Bravin, «The Conscience of the Colonel», Wall Street Journal, 31 de março de
2007, http://online.wsj.com/news/articles/SB117529704337355155. [N. do E.]
44
INTRODUÇÃO
tipo de coisas: enquanto piloto dos Fuzileiros, tinha sido sujeito a
uma semana destas técnicas num programa para preparar os pilotos
dos EUA para a experiência de captura e tortura.
Essas suspeitas foram confirmadas quando o investigador do
tenente­‑coronel, um agente do Naval Criminal Investigative Service38,
obteve acesso aos ficheiros dos interrogadores militares. Esses fichei‑
ros incluíam os memorandos diários da Equipa de Projetos Especiais
para registo, as descrições pormenorizadas dos interrogadores não
só daquilo que era dito em cada sessão mas também de como essa
informação era extraída.
Esses registos continuam secretos, mas estão resumidos no
«Inquiry into the Treatment of Detainees in U.S. Custody»39 de 2008
do U. S. Senate Armed Services Committee40, e da própria análise
de 2008 dos interrogatórios em Guantánamo, no Afeganistão e no
Iraque feita pelo Departamento de Justiça. Esses relatórios docu‑
mentam um «interrogatório especial» que seguiu um segundo
plano minucioso, aprovado por Rumsfeld, e que se desenrolou
quase exatamente do mesmo modo como Mohamedou o descreve
no seu Diário de Guantánamo. Entre os documentos específicos des‑
critos nesses relatórios contam­‑se dois que, quando Stuart Couch
os descobriu no início de 2004, o convenceram de que Mohamedou
tinha sido torturado.
O primeiro era uma falsa carta do Departamento de Estado que
havia sido apresentada a Mohamedou em agosto de 2003, que se des‑
tinava claramente a explorar a relação próxima que ele tinha com a sua
mãe. Neste relatório, o Senate Armed Services Committee descreve
NCIS, ou Serviço de Instigação Criminal da Marinha. [N. dos T.]
38
«Inquérito sobre o tratamento dos detidos sob custódia dos Estados Unidos».
39
[N. dos T.]
Comité do Senado dos EUA relativo aos Serviços Armados. [N. dos T.]
40
45
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
«uma carta fictícia que tinha sido redigida pelo chefe da Equipa de
Interrogatório afirmando que a sua mãe havia sido detida, que seria
interrogada e que, se não cooperasse, poderia ser transferida para
GTMO. A carta assinalava que ela seria a única detida do sexo femi‑
nino naquele “ambiente até então exclusivamente masculino”.»
O segundo era uma troca de e­‑mails de 17 de outubro de 2003
entre um dos interrogadores de Mohamedou e um psiquiatra do
Exército dos EUA. Nele, constatou o comité, o interrogador «afir‑
mou: “Slahi disse­‑me que está ‘a ouvir vozes’ agora […]. Ele está preo‑
cupado, porque sabe que isto não é normal […]. A propósito… isto é
algo que acontece às pessoas que têm pouco estímulo externo, como
luz solar, interação humana, etc.???? Parece um tanto assustador.”»
O psicólogo respondeu: «A provação sensorial pode causar aluci‑
nações, geralmente visuais e não auditivas, mas nunca se sabe […].
No escuro, criamos coisas a partir do pouco que temos.»41
Numa entrevista de 2009, o tenente­‑coronel Couch descreveu o
impacto das suas descobertas:
Mesmo no meio deste período, quando recebi esta informação do agente
do NCIS — os documentos, o cabeçalho do Departamento de Estado —,
e foi no fim disto, tendo tomado conhecimento de toda esta informação,
meses e meses e meses às voltas com o assunto, eu estava na igreja, num
domingo, e tivemos um batizado. Chegámos à parte da liturgia em que
a congregação repete… estou a parafrasear, mas a essência é que res‑
peitemos a dignidade de todos os seres humanos e busquemos a paz e a
justiça na Terra. E, quando proferimos essas palavras naquela manhã,
U. S. Senate Armed Services Committee on Armed Services, «Inquiry into the
41
Treatment of Detainees in U.S. Custody», 20 de novembro de 2008, 140–414. O rela‑
tório do comité está disponível em www.armed­‑services.senate.gov/imo/media/doc/
Detainee­‑Report­‑Final_April­‑22­‑2009.pdf. [N. do E.]
46
INTRODUÇÃO
havia muita gente na igreja, mas eu podia bem ser o único ali. Senti
simplesmente um incrível «ora bem, aqui está». Podes vir aqui todos
os domingos, como cristão, subscrever esta crença na dignidade de todo
o ser humano e dizer que buscarei paz e a justiça na Terra, e continuar a
avançar com a acusação a usar aquele tipo de prova. E nesse momento
percebi o que tinha de fazer. Tinha de me deixar de indecisões.42
Stuart Couch retirou­‑se do caso de Mohamedou, recusando­‑se
a prosseguir com qualquer esforço para o julgar perante uma comis‑
são militar.
Nunca se esboçou uma lista de acusações contra Mohamedou
Ould Slahi em Guantánamo, nenhum advogado de defesa da comis‑
são militar foi atribuído a este caso e parece que não houve mais
tentativas de preparar um caso para acusação. O editorial do Daily
News a criticar a decisão do juiz Robertson quanto ao habeas atribui
isto aos seus «escrúpulos» perante o uso de «provas obtidas através
de um tratamento duro», mas não é de todo claro que o interrogató‑
rio brutal de Mohamedou em Guantánamo tenha gerado qualquer
prova de que ele tenha participado em quaisquer atividades crimino‑
sas ou terroristas. Na sua audiência de 2005 diante do ARB, ele falou
de fabricar confissões sob tortura, mas os próprios interrogadores
devem ter descontado o que sabiam ser confissões induzidas; aquilo
que transmitiram nos seus relatórios de informações secretas expur‑
gadas consistia, isso sim, segundo afirmou Stuart Couch, numa
espécie de «Índice de Personalidades da Al-Qaeda na Alemanha e
em toda a Europa».43
42
Transcrição da entrevista com o tenente­‑coronel Stuart Couch para Torturing
Democracy, www2.gwu.edu/~nsarchiv/torturingdemocracy/interviews/stuart_couch.html.
[N. do E.]
Bravin, «The Conscience of the Colonel». [N. do E.]
43
47
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
Tal como o seu tratamento extremo é muitas vezes referido como
um indicador da sua culpa, também esses relatórios de informações
secretas passaram a servir de prova posterior aos factos de que o pró‑
prio Mohamedou deve estar entre o Índice de Personalidades. E, toda‑
via, segundo sugeriu Stuart Couch, o conhecimento de Mohamedou
parecia ser pouco maior do que o dos seus interrogadores. «Creio,
se bem me recordo, que a maioria deles já era do conhecimento dos
serviços secretos quando ele estava a ser interrogado», observou
Couch na entrevista de 2012, acrescentando:
Tenho de ser claro numa coisa. Quando se lê os relatórios das admissões
de Slahi, ele não se implica em nada. Ele só se implica pelo seu conhe‑
cimento destas pessoas. Ele nunca se implica em nada do que eu consideraria ser um ato que evidentemente tivesse feito parte da conspiração da
Al­‑Qaeda para atacar os Estados Unidos no 11 de Setembro.44
Também parece que os serviços secretos dos EUA não desen‑
cantaram mais nada que implicasse Mohamedou noutros planos
ou ataques terroristas. Numa entrevista de 2013, o coronel Morris
Davis, que se tornou o principal advogado da acusação das comis‑
sões militares de Guantánamo em 2005, descreveu um último
esforço desesperado, quase dois anos depois de Stuart Couch se
ter retirado do caso de Mohamedou, de criar uma espécie de acusação contra Mohamedou. O verdadeiro alvo do coronel Davis não
era Mohamedou, que nessa altura ainda mal merecera a atenção do
radar da acusação, mas sim um prisioneiro que os militares tinham
mudado para a cabana vizinha de Mohamedou, para mitigar os efei‑
tos da sua tortura e de quase dois anos de confinamento solitário.
Entrevista CCOHC com V. Stuart Couch, 95. [N. do E.]
44
48
INTRODUÇÃO
Esse prisioneiro, porém, não aceitaria um acordo judicial a menos
que Mohamedou recebesse uma oferta semelhante. «Tivemos de
pensar numa qualquer proposta parecida para Slahi», disse o coronel
Davis nessa entrevista, «o que significava que teríamos de encontrar
algo de que o acusar, e era aí que estávamos a ter sérios problemas.»
Quando Slahi chegou, penso que a suspeita era a de que tinham apanhado um
peixe graúdo. Lembrou­‑me o Forrest Gump, na medida em que houve muitos
acontecimentos dignos de nota na história da Al­‑Qaeda e do terrorismo, e lá
estava Slahi, escondido algures no pano de fundo. Ele estava na Alemanha,
no Canadá, em vários lugares que parecem suspeitos e que os levaram a pen‑
sar que ele seria peixe graúdo, mas depois, quando realmente dedicaram
esforços a investigar a questão, não foi isso que viram. Lembro­‑me de que,
uns tempos depois de ter lá chegado, no início de 2007, tivemos uma grande
reunião com a CIA, o FBI, o Departamento da Defesa e o Departamento da
Justiça, e recebemos um briefing dos investigadores que trabalharam no caso
de Slahi, e a conclusão deles era a de que havia muito fumo e nenhum fogo.45
Quando o pedido de habeas corpus de Mohamedou foi finalmente
levado ao Tribunal Federal em 2009, o governo dos EUA não tentou
argumentar que ele seria uma das principais figuras da Al-Qaeda,
ou que ele teria participado em quaisquer planos ou ataques da
Al-Qaeda. Como o Tribunal de Recurso do Distrito de Washington
escreveu na sua subsequente análise do caso:
Os Estados Unidos pretendem deter Mohammedou Ould Salahi no fun‑
damento de ele «fazer parte» da Al-Qaeda, não por ele ter lutado com
Coronel Morris Davis, entrevistado por Larry Siems, Slate, 1 de maio de 2013,
45
www.slate.com/articles/news_and_politics/foreigners/2013/04/mohamedou_ould_
slahi_s_guant_namo_memoirs_an_interview_with_colonel_morris.html. [N. do E.]
49
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
a Al-Qaeda ou com os seus aliados contra os Estados Unidos, mas sim
porque ele fez um juramento de fidelidade à organização, se relacionou
com os seus membros e os ajudou de diversas formas, incluindo receber os
líderes da organização em sua casa e redirecionar aspirantes a jihadistas
para um operacional da Al-Qaeda.46
Quando o juiz Robertson analisou o pedido de Mohamedou em
2009, os tribunais distritais de Washington que avaliavam os casos
de habeas corpus julgavam se um peticionário faria parte da Al-Qaeda
com base nas provas que o Estado apresentasse de que o peticionário
era um membro ativo dessa organização na altura em que fora detido.
Mohamedou juntara­‑se à Al-Qaeda em 1991 e na altura fez um jura‑
mento de fidelidade à organização, mas essa era uma Al-Qaeda muito
diferente, praticamente uma aliada dos Estados Unidos; Mohamedou
sempre afirmou que a queda do governo comunista no Afeganistão
marcou o fim do seu envolvimento na organização. Nos seus pro‑
cedimentos jurídicos de habeas corpus, o Estado insistiu que os con‑
tactos e interações ocasionais de Mohamedou com o seu cunhado
e primo Abu Hafs, e uma mão­‑cheia de outros amigos e conhecidos que
tinham continuado ativos na Al-Qaeda, provavam que ele ainda fazia
parte da organização. Embora algumas dessas interações implicassem
possíveis gestos de apoio, nenhum deles, sugeriu Robertson, chegava
ao nível de apoio criminoso ao terrorismo, e, sobretudo, os contactos
de Mohamedou com estas pessoas eram tão esporádicos que «tendem a
corroborar a alegação de Salahi de que estava a tentar encontrar um equi‑
líbrio adequado: evitar relações próximas com membros da Al-Qaeda,
tentando também evitar tornar­‑se num inimigo».
Decisão, Salahi v. Obama, 625 F.3d 745, 746 (D.C: Cir. 2010). A decisão está dispo‑
46
nível em http://caselaw.findlaw.com/us­‑dc­‑circuit/1543544.html. [N. do E.]
50
INTRODUÇÃO
A decisão do juiz Robertson de aceitar o pedido de habeas corpus
de Mohamedou e de ordenar a sua libertação chegou num momento
crítico: desde 1 de abril de 2010, o governo dos Estados Unidos havia
perdido 34 de 46 casos de habeas corpus. Em recursos de vários desses
casos, o governo convenceu o Tribunal de Recursos de Washington a
aceitar um critério mais flexível quanto a «fazer parte» da Al-Qaeda;
então, como o Tribunal de Recursos explicou ao anular a decisão do
juiz Robertson e remeter o caso para o Tribunal Distrital para nova
audiência, o governo já não precisava de mostrar que um prisioneiro
de Guantánamo estava a executar ordens ou diretrizes da Al-Qaeda
no momento em que foi feito prisioneiro.
Na sua opinião, o Tribunal de Recursos teve o cuidado de delinear
«a natureza precisa da acusação do governo contra Salahi». «O governo
não processou criminalmente Salahi por fornecer apoio material a terro‑
ristas da “organização terrorista estrangeira” Al-Qaeda», enfatizou o tri‑
bunal. «Nem», acrescentou, «pretende o governo deter Salahi segundo
a AUMF com o fundamento de ele ter contribuído para os ataques
do 11 de Setembro ou por ter apoiado “deliberada e materialmente” for‑
ças associadas com a Al-Qaeda “em hostilidades contra os parceiros [da
Coligação] dos EUA”.» Assim, quando o caso de habeas corpus voltar a
ser analisado no tribunal federal, o governo irá provavelmente defender
que as suas interações esporádicas com membros ativos da Al-Qaeda
nos anos noventa significam que ele também continuou a ser membro.
De acordo com o novo critério, o tribunal escreveu: «Mesmo que as
ligações de Salahi a estes indivíduos não provem por si só que ele era
“parte da” Al-Qaeda, essas ligações tornam mais provável que Salahi
fosse membro da organização quando capturado, e portanto continuam
a ser relevantes para a questão de ele estar sujeito a prisão ou não.»47
Ibid. 750, 753. [N. do E.]
47
51
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
Ironicamente, quando um tribunal distrital voltar a analisar o caso,
o governo irá muito provavelmente enfrentar perguntas sobre aquilo
que sempre defendeu ser a mais lesiva dessas ligações: a relação de
Mohamedou com o seu primo e cunhado Abu Hafs. Como membro
do Conselho Shura de bin Laden, Abu Hafs tinha a cabeça a prémio
de 5 milhões de dólares, um número que aumentou para 25 milhões
depois dos ataques terroristas do 11 de Setembro. Porém, há vários
anos que os Estados Unidos sabem que Abu Hafs se opôs aos ataques;
a Comissão do 11 de Setembro anunciou que ele «chegou a escrever
uma mensagem a Bin Ladin baseando a sua oposição aos ataques no
Qur’na». Depois dos ataques, Abu Hafs deixou o Afeganistão e foi
para o Irão, onde as autoridades iranianas lhe impuseram uma prisão
domiciliária de teor flexível durante mais de uma década. Em abril
de 2012, o Irão repatriou Abu Hafs para a Mauritânia. Esteve detido
durante dois meses numa prisão mauritana, durante os quais se reu‑
niu com uma delegação internacional que incluía americanos, con‑
denou os ataques do 11 de Setembro e renunciou às suas ligações à
Al-Qaeda. Abu Hafs foi libertado em julho e 2012 e desde então vive
como um homem livre.
* * *
Eu não me encontrei com Mohamedou Ould Slahi. Além de lhe enviar
uma carta a apresentar­‑me na altura em que me perguntaram se eu
poderia ajudar a levar o seu manuscrito ao prelo — uma carta que não
sei se ele recebeu —, não comuniquei com ele de forma alguma.
Solicitei, sim, uma reunião com ele pelo menos uma vez antes de
entregar a obra terminada, para garantir que ele aprovava as minhas
alterações. A resposta do Pentágono foi breve e absoluta: «Não é pos‑
sível visitar ou comunicar de outra maneira com qualquer recluso
52
INTRODUÇÃO
nas instalações de detenção de Guantánamo, a menos que seja um
advogado a representar o detido», escreveu um funcionário de relações
públicas. «Como estará ciente, os reclusos estão detidos sob a Lei da
Guerra. Além disso, não sujeitamos os reclusos à curiosidade pública.»
A expressão «curiosidade pública» vem de um dos pilares da Lei da
Guerra, a Convenção de Genebra de 1949 relativa ao Tratamento dos
Prisioneiros de Guerra. O artigo 13.º da convenção, «Tratamento
Humano dos Prisioneiros», diz:
Os prisioneiros devem ser sempre tratados de forma humana. Qualquer
omissão ou ato ilícito por parte da Potência Detentora que cause
a morte ou ponha em grave perigo a saúde de um prisioneiro de guerra
em seu poder será proibido e será considerado uma infração à presente
Convenção […].
Os prisioneiros devem ser sempre protegidos, especialmente de atos de
violência ou de intimidação, de insultos e da curiosidade pública.
São proibidas medidas de retaliação contra prisioneiros de guerra.
Eu tinha proposto uma reunião confidencial, de acordo com pro‑
tocolos de segurança rigorosos, para garantir que a versão editada da
obra de Mohamedou — uma obra escrita especificamente para o vasto
público leitor — representaria fielmente o conteúdo e a intenção ori‑
ginais. Durante anos essa obra esteve, em si mesma, retida, sob um
regime de censura que nem sempre serviu os propósitos de Genebra.
Desde o início, a censura tem sido parte integral das operações de
detenção dos Estados Unidos após o 11 de Setembro. Tem sido dupla‑
mente intencional: primeiro para dar margem aos maus­‑tratos aos pri‑
sioneiros, e depois para esconder a ocorrência desses abusos. No caso
de Mohamedou, esses abusos incluíram o desaparecimento forçado;
a detenção arbitrária e sem meios de comunicação com o exterior;
53
D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
o tratamento cruel, desumano e degradante; a tortura. Nós sabemo­‑lo
graças a um registo documental que também foi, durante anos, rigo‑
rosamente suprimido.
Não sei até que ponto interesses pessoais e institucionais na
ocultação dos abusos contribuíram para a continuada detenção de
Mohamedou. O que sei é que, nos cinco anos que passei a ler os regis‑
tos relativos a este caso, nem as explicações vagas e mutáveis do meu
governo sobre os motivos por que ele está em Guantánamo, nem as
afirmações dos que defendem a sua detenção que agora conta com
13 anos — de que ele é quase de certeza, ou possivelmente, um isto
ou um aquilo — me convencem. Segundo o meu sentido pessoal de
justiça, a questão do que isto ou aquilo possam ser, e dos motivos por
que ele deva continuar sob custódia dos EUA, deveria há muito ter tido
uma resposta. Tê­‑la­‑ia tido, creio eu, se o seu Diário de Guantánamo
não tivesse permanecido secreto durante tanto tempo.
Quando Mohamedou escreveu o manuscrito deste livro há nove
anos, na mesma cabana isolada onde algumas das cenas mais tenebro‑
sas tinham acontecido recentemente, definiu um objetivo. «Só escrevi o
que vivenciei, o que vi e o que fiquei a saber em primeira mão», explica
ele perto do fim. «Tentei não exagerar, nem minimizar. Tentei ser o
mais justo possível, para com o governo dos EUA, para com os meus
irmãos e para comigo mesmo.»
Com base em tudo quanto vi, foi exatamente isso o que fez. A histó‑
ria que ele conta é bem corroborada pelos registos tornados públicos;
ele prova uma e outra vez que é um narrador fiável. Certamente ele
não exagera: os registos encerram tormentos e humilhações que não
foram incluídos no livro, e ele descreve vários dos que inclui com uma
discrição considerável. Mesmo quando os acontecimentos que ele
relata são extremos, a sua narrativa é temperada e direta. Os horrores
desses acontecimentos falam por si mesmos.
54
INTRODUÇÃO
É assim, porque o seu verdadeiro interesse está nos dramas
humanos destas cenas. «A lei da guerra é dura», escreve Mohamedou
no início.
Se há alguma coisa boa na guerra, é que ela traz ao de cima o melhor e o
pior nas pessoas: algumas tentam usar a ausência de lei para prejudicar
as outras, e algumas tentam reduzir o sofrimento ao mínimo.
Ao fazer a crónica do seu percurso pelas regiões mais obscuras do
programa de detenção e interrogatório dos Estados Unidos a seguir
ao 11 de Setembro, a sua atenção mantém­‑se nos interrogadores e nos
guardas, nos seus colegas reclusos, e em si mesmo. No seu desejo
de «ser justo», como ele diz, Mohamedou reconhece o contexto geral
de medo e confusão, no qual estas personagens interagem, e as forças
institucionais e sociais muito mais localizadas que condicionam essas
interações. Contudo ele também vê a capacidade de cada personagem
para moldar ou mitigar a ação, e tenta compreender as pessoas — inde‑
pendentemente dos postos, dos uniformes e das condições — como
protagonistas por direito próprio. Ao fazê­‑lo, Mohamedou transforma
até as situações mais desumanizadoras numa série de trocas humanas
individuais, por vezes angustiantemente íntimas.
Este é o mundo secreto de Guantánamo: um mundo de brutali‑
dades surpreendentemente premeditadas e de aviltamentos inciden‑
tais, mas também um mundo de gestos paliativos e de bondade, de
reconhecimentos, de curiosidades mútuas e de incursões arriscadas
através de divisões profundas. Que Mohamedou tenha conseguido
vivenciar tudo isto, apesar de quatro anos do tratamento mais arbitrá‑
rio que se possa imaginar e no meio de um dos interrogatórios mais
horrendos de Guantánamo, diz muito do seu próprio caráter e da sua
humanidade. Diz ainda mais acerca das suas capacidades como autor
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D I Á R I O D E G U A N TÁ N A M O
que ele tenha sido capaz de, pouco depois das mais traumáticas des‑
sas experiências, criar a partir delas uma narrativa que consegue ser
simultaneamente condenatória e redentora.
E contudo não foi isso o que mais me impressionou, como leitor e
autor, quando pela primeira vez abri o ficheiro com o manuscrito de
Diário de Guantánamo. O que mais me prendeu foram as personagens
e as cenas tão afastadas de Guantánamo: a clandestinidade desditosa
numa prisão senegalesa. Um pôr­‑do­‑sol em Nouakchott depois de
uma tempestade de pó vinda do Sara. Um momento pungente de sau‑
dades de casa durante uma chamada às preces durante o Ramadão.
A chegada ao aeroporto, sobrevoando os bairros de lata de Nouakchott.
Uma pista de aterragem coberta de chuva no Chipre. Uma quietude
sonolenta antes de amanhecer, num voo de transporte de prisionei‑
ros da CIA. Foi aqui que pela primeira vez reconheci Mohamedou,
o escritor, o seu olho apurado para a personagem, o seu extraordiná‑
rio ouvido para as vozes, o modo como as suas recordações estavam
permeadas de informação registada pelos cinco sentidos, o modo
como ele contacta com todo o registo emocional, nele e nos outros.
Possui as qualidades que mais valorizo num escritor: um comovedor
sentido da beleza e um aguçado sentido da ironia. Tem um sentido
de humor fantástico.
Ele consegue tudo isto em inglês, a sua quarta língua, uma língua
que ele ainda estava a aprender quando redigiu o manuscrito. Este
feito atesta toda uma vida de fascínio pelas palavras e de facilidade com
elas. Mas também deriva, torna­‑se patente, de uma determinação em
se envolver e em lidar com o seu ambiente nos seus próprios termos.
A um nível, dominar o inglês em Guantánamo significava ir além da
tradução e da interpretação, ir além da necessidade de uma terceira
pessoa na sala e também o surgimento da possibilidade de todos os
contactos com cada um dos seus captores poder ser uma troca pessoal.
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INTRODUÇÃO
Noutro nível, significava descodificar e compreender a linguagem do
poder que controla o seu destino: um poder, como a sua odisseia de
32 mil km de detenções e interrogatórios ilustra vivamente, de influên‑
cia e alcance espantosos. Deste seu envolvimento nasce uma obra
verdadeiramente notável. Por um lado, é um espelho diante do qual,
pela primeira vez em tudo o que li sobre Guantánamo, reconheci aspe‑
tos de mim mesmo, tanto nos carateres dos meus compatriotas como
nos daqueles que o meu país mantém prisioneiros. Por outro, é uma
lente sobre um império com um alcance e um impacto que poucos de
nós, vivendo nele, compreendem inteiramente.
Por agora, esse poder ainda controla a história de Mohamedou.
Está presente nestas páginas na forma de mais de 2600 eliminações
a faixa negra. Estas eliminações não escondem apenas elementos
importantes da ação. Também turvam os princípios orientadores de
Mohamedou e a sua principal finalidade, ao por em causa a candura
com que ele fala do seu próprio caso e ao obscurecer os seus esforços
para distinguir as suas personagens enquanto indivíduos, alguns
condenáveis, outros admiráveis, sendo a maioria uma combinação
complexa e mutável de ambos.
Está presente, acima de tudo, na sua continuada e mal­‑explicada
detenção. Há treze anos, Mohamedou saiu de sua casa em Nouakchott,
na Mauritânia, e foi de carro até à sede da Polícia nacional para ser
interrogado. Não voltou. A bem da nossa noção coletiva de história e
de justiça, temos de ter uma compreensão mais clara dos motivos por
que isto ainda não aconteceu e do que acontecerá em seguida.
Guantánamo vive de perguntas sem resposta. Porém, agora que
temos Diário de Guantánamo, como podemos não resolver pelo menos
as questões levantadas pelo caso de Mohamedou?
Quando o fizermos, creio que haverá um regresso a casa. Quando
isso acontecer, as eliminações serão preenchidas, o texto será reeditado
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e corrigido e atualizado como o próprio Mohamedou desejar, e todos
nós teremos a liberdade de ver Diário de Guantánamo como aquilo
que a obra é em última instância: o relato da odisseia de um homem
através de um mundo cada vez mais ansioso e sem fronteiras,
um mundo onde as forças que moldam vidas são cada vez mais
distantes e clandestinas, onde os destinos são determinados por
poderes com um alcance quase infinito, um mundo que ameaça
desumanizar, mas que fracassa em desumanizar: resumindo, um
épico do nosso tempo.
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