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O cinema: da construção
à queda do muro de Berlim
Nilo André Piana de Castro*
Nosso objetivo na Guerra Fria não é a conquista de territórios
nem a subjugação pela força, explicou o presidente Eisenhower
numa coletiva de imprensa. ‘Nosso objetivo é mais sutil, mais
penetrante e mais completo. Estamos tentando levar o mundo,
através de meios pacíficos, a acreditar na verdade. Essa verdade é
que os norte-americanos querem um mundo de paz, um mundo
em que todas as pessoas tenham oportunidade do máximo de desenvolvimento individual. Os meios que empregamos para disseminar essa verdade são comumente chamados de “psicológicos”. Não tenham medo desse termo, simplesmente por ele ser
uma palavra de cinco dólares e cinco sílabas. A ‘guerra psicológica’ é a luta pela mente e pela vontade dos homens.
(Eisenhower, falando sobre como vencer a terceira guerra
mundial sem travá-la: SAUNDERS, 2207, p. 167.)
Resumo
Este artigo apresenta um vasto panorama da filmografia, especialmente Ocidental, sobre a
divisão da Alemanha, a construção do Muro de Berlim, sua queda e sobre a reunificação do
país. A análise explora os conceitos de propaganda ideológica que caracterizou grande
parte da produção cinematográfica durante a Guerra Fria. Por fim, comenta cada um dos
filmes citados, do ponto de vista tanto artístico como político.
Palavras-chave: Cinema. Guerra Fria. Propaganda ideológica. Muro de Berlim.
O muro de Berlim foi fruto da competição travada entre os
membros da coalizão vencedora da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). Ainda em 1936 havia sido formado o pacto anti-komintern,
que uniu Alemanha, Itália e Japão, formando o Eixo. Entretanto, a formalização da aliança entre Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética
(os Aliados) só se deu durante a Segunda Guerra Mundial (II GM), na
Conferência de Teerã, em 1943. Em grande medida isso se deveu às desconfianças mútuas existentes entre os aliados, devido às diferenças entre
seus regimes sociopolíticos.
* Professor de História no Colégio de Aplicação da UFRGS. Doutorando em Ciência Política pela UFRGS.
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 103-124, jul./dez. 2009
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Ilustra o fato a exigência de que a III Internacional Comunista fosse
dissolvida para que a Aliança se formalizasse. Ainda durante a Guerra
Civil Espanhola (1936-1939), as diferenças entre os futuros aliados impediram uma linha de ação comum. Para muitos, na Inglaterra (Grupo de Cliveden), a expansão da Alemanha e do Eixo (1936) era uma oportunidade
de conter ou livrar-se da União Soviética (URSS). Foi o que levou à política
de apaziguamento (Munique, 1938), que referendou a anexação da Áustria
e permitiu a ocupação da Tchecoslováquia por Hitler. Receoso da penetração nazista na Finlândia (feita sob beneplácito das potências ocidentais) e
alarmado com Munique, Stalin firmou com a Alemanha um pacto de não
agressão em 1939. Tentava ganhar tempo enquanto protegia o flanco norte
da URSS. Foi com esse propósito que a URSS desencadeou, em 1940, uma
guerra preemptiva com a Finlândia (que havia feito parte da URSS e na
qual, anos antes, havia sido travada uma guerra civil que, com apoio inglês
e alemão, aniquilou os comunistas). Em 1940, os Estados Unidos e Inglaterra prontificaram-se a enviar ajuda à Finlândia, naquela época já completamente sob influência da Alemanha de Hitler. Assim, nem a invasão da
França em 1940 conduziu a aproximação entre os aliados. Somente a agressão nazista à URSS e a declaração de guerra da Alemanha aos EUA estabeleceram certa unidade na ação. Todavia, a formalização de um compromisso, de uma visão comum acerca das condições em que se enfrentaria a
Alemanha e se faria a paz (fórmula da rendição incondicional) só foram
estabelecidos , como referido, mediante, em 1943, a dissolução da Internacional Comunista. Desse modo, o comunismo e o anticomunismo sempre
permearam as relações internas no campo aliado, e a própria guerra, em
certa medida, era vista como a preparação de uma nova contenda, feita
entre as democracias ocidentais e a URSS. Em virtude disso a abertura da
segunda frente foi procrastinada ao máximo e, mesmo durante a guerra,
surgiram mostras de que os aliados pretendiam usar a força contra a expansão do campo socialista. Foi o caso do bombardeio de Dresden e do
lançamento das bombas atômicas sobre o Japão.
A União Soviética sempre esteve em desvantagem. País mais atrasado da Europa, a Rússia viu-se mergulhada na guerra civil de 1917 até
1920, e isolada pelo “cordão sanitário” entre os anos 1920 e 1930. Na
II GM coube à URSS sustentar o maior peso da máquina de guerra nazista,
que custou a morte de 28 milhões e incapacitação de mais de 50% da população economicamente ativa, além da destruição quase completa de sua
porção ocidental.
Entre 04 e 11 de fevereiro de 1945, se deu a Conferência de Yalta,
ponto mais alto de ajuda mútua e entendimento entre as forças aliadas
contra o Eixo. Em pouco tempo, o quadro de colaboração entre as potências ocidentais capitalistas, sobretudo EUA e Inglaterra, em relação à URSS
mudou de forma acentuada. Fatos em rápida sucessão colaboram para o
estabelecimento de uma tensão que perdurou ao longo de muitos anos e
influenciou diretamente na configuração dos blocos da Guerra Fria.
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Logo depois de encerrada a Conferência de Yalta, os acertos começam a mudar. O ataque do comando de bombardeios (anglo-estadunidense) à cidade alemã de Dresden, iniciado em 13/02/1945,1 aponta para
uma demonstração de força aos exércitos soviéticos que chegariam à
cidade alguns dias depois. Em Potsdam, entre 17/07-02/08/1945, as condições estabelecidas apenas seis meses antes tornaram-se fatores de discórdia. Quatro dias depois de encerrada a conferência, foi lançada a
bomba sobre Hiroxima, dando início à era atômica. O roteiro da construção do muro antecedeu a própria queda de Berlim.
A Guerra Fria
O recrudescer dos movimentos de libertação nacional, em sua
maioria com a participação dos comunistas ou por eles hegemonizados
(Iugoslávia, Grécia, Albânia, China) ressuscitou os fantasmas adormecidos da guerra civil espanhola e criou nos aliados a percepção de uma
conspiração comunista mundial e de uma agressão soviética dissimulada
em guerra revolucionária.
O início de 1946 é marcado por uma postura enfática de lideranças
britânicas com intenção de empurrar de volta para o Leste o comunismo.
Churchill, em visita aos Estados Unidos, diante de câmeras cinematográficas, fez o famoso discurso de Fulton,2 que deu a direção a ser seguida.
Em um primeiro momento, é considerado duro demais até mesmo por
Truman. Entretanto, devido à revolução grega,3 ele mesmo adota uma
1
Entre 13 e 14 de fevereiro de 1945, foram lançadas sobre Dresden 10.000 bombas explosivas, centenas de bombas de fragmentação, 650.000 bombas incendiárias e 15.000 bidons de
fósforo e petróleo de 100 litros cada um. A cidade foi completamente varrida por uma
tempestade de fogo. O número de mortos, em sua maioria civis, sequer pode ser contado. O
ataque ainda não teve toda sua dimensão retratada no cinema, mas é mencionado nos
filmes: Matadouro 5 (Slaughterhouse Five, EUA 1972, dir. George Roy Hill), O Mapa do
Coração (The Map of Human Heart, Canadá/ França/ Austrália, 1992, dir. Vicent Ward) e
diretamente em Dresden O Inferno, (Dresden, Alemanha 2006, dir. Roland Suso Ritcher).
2
Em 05 de março de 1946, no Westminster College em Fulton, Missouri, terra natal do
Presidente Truman, Churchill faz uso de um termo criado por Goebbels, a cortina de ferro:
“Desde Stettin, no Báltico até Trieste no Adriático uma cortina de ferro caiu sobre todo o
continente. Atrás dessa linha as antigas capitais dos Estados da Europa Central e Oriental.
Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sofia. Todas essa cidades
famosas e as populações que as cercam estão de baixo do que eu tenho que denominar
esfera soviética. Exceto na commonwealth britânica e nos Estados Unidos, onde o comunismo
não está muito desenvolvido, os partidos comunistas e as quintas colunas constituem um
desafio cada vez maior e um perigo para civilização cristã. Quaisquer que sejam as conclusões desses fatos, os fatos existem, e esta não é a Europa liberada pela qual lutamos. Nem
sequer contém os elementos essenciais para uma paz permanente.”
3
A guerra civil na Grécia se estenderia de 1946 a 1949, deixando um saldo de destruição
enorme. Em 1947, a Inglaterra, vivendo dificuldades internas, retirou sua ajuda militar e
econômica à Grécia. Truman solicitou ao Congresso a autorização do envio de 400 milhões
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política agressiva em relação aos soviéticos nos meses seguintes, lançando a Doutrina Truman. Nem mesmo a indiferença soviética às revoluções
em andamento nestes países, em estrito cumprimento ao estabelecido em
Yalta, foi capaz de convencer os ocidentais de que não havia um plano
comunista para conquista do mundo.
A Doutrina Truman (março 1947), seguida do Plano Marshall
(anunciado em junho), visava a colocar os países europeus sob sua influência econômica direta.4 Os soviéticos responderam com o discurso
Jdanov (1947), o Kominform (1947), e o COMECON (1948). A Internacional Comunista não chegou a ser reconstruída, mas, em 1947, foi estabelecido o Kominform, com o propósito de coordenar a propaganda soviética
através dos Partidos Comunistas. A disputa de mentes e corações teria
um papel de destaque no novo tipo de conflito que se seguiria.
Nos EUA, ainda em 1938, havia sido constituído o Comitê de Inquérito para Atividades Antiamericanas (HUAC -House of Un-American
Activities Committee) que então teve suas atividades reorientadas para
investigar uma possível infiltração nazista, passava a fiscalizar as atividades dos comunistas e prefigurava o Macartismo. Profundamente implicada e relacionada com seu contexto, seja na projeção mundial seja no
controle social interno, a máquina dos sonhos de Hollywood começava a
operar sobre as questões. Vencido o nazismo na Europa, a guerra interna
entre a frente popular de Roosevelt e a direita conservadora do establishment estadunidense foi declarada. A famosa caça às bruxas começou em
1947, quando foram reativadas as investigações do HUAC. Os principais
alvos foram os movimentos civis (pacifistas, direitos civis, liberais, socialistas, comunistas, etc.) e o cinema.
O fato de as produções cinematográficas terem entrado na pauta da
“purificação” ideológica justifica-se por dois aspectos. Em primeiro lugar, o
próprio reconhecimento de que em Hollywood se disputava bem mais do
que bilheterias, e que, através de sua educação informal, difundiam-se
valores morais, sociais e políticos que precisavam ser mantidos sob estrito
de dólares até junho de 1948, para a Grécia e Turquia. Pela primeira vez Truman apresentou
como argumento um combate entre a liberdade e a tirania, entre o Ocidente e comunismo.
Durante o Plano Marshall, os EUA despejaram 700 milhões de dólares somente na Grécia –
abasteceram de combustível, alimentos e roupas a nação Grega, até mulas foram importadas do Missouri. A idéia era manter os russos afastados de suas reivindicações de influência
sobre os estreitos de Bósforo e Dardanelos e o mais longe possível do canal de Suez.
4
A economia soviética também precisava desesperadamente de inversões de capital para
recuperar-se da guerra – teoricamente o plano Marshall estava aberto também aos russos.
Mas, na verdade, apenas queria conquistar as democracias orientais e tirá-las da esfera
soviética. Como esclareceu o diretor adjunto do plano, Richard Bissell: “Antes mesmo da
eclosão da Guerra da Coreia, estava bem claro que o plano Marshall nunca tivera a intenção
de ser uma coisa inteiramente altruísta. A esperança era que o fortalecimento da economia
dos países da Europa Ocidental ampliasse seu valor como integrantes da aliança da OTAN,
acabando por obrigá-los a assumir uma responsabilidade de defesa em apoio aos esforços
de guerra”. SAUNDERS, Frances Stonor. Quem pagou a conta?: a CIA na guerra fria da cultura. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 41.
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controle do establishment. Em segundo lugar, uma evidente publicidade
para tal comitê, comandado por alguns obscuros políticos conservadores.
A necessidade interna de mobilização e policiamento teve no cinema um
fator-chave para dar início a uma histeria. Foi preciso caracterizar um perigo interno, forjado com largo desrespeito à constituição e aos direitos dos
cidadãos. Era preciso, antes de exportar o medo da expansão comunista,5
deflagrar esse medo no interior do próprio país. A extrema direita americana estava a postos, e não perdeu tempo, lançando mão de tudo que estava ao seu alcance para divulgar a ameaça ao “sistema de vida americano”,
que estava em marcha através da conspiração comunista.
A Guerra Fria nas imagens:
pavimentando caminho para o Muro
Inicia-se então o movimento que depois virá a se transformar numa onda cinematográfica de filmes políticos: A Cortina de Ferro (1948,
The Iron Curtain, dir. William A. Wellman), denunciando um esquema de
espionagem soviético desmembrado no Canadá; Sofia (1948, Sofia, dir.
John Reinhardt), que mostra os comunistas como ineptos até mesmo em
aspectos básicos da espionagem, e o clássico inglês financiado pelo produtor hollywoodiano David Selznick: O Terceiro homem (The Third Men,
ING/EUA 1948, dir. Carol Reed). Rodado nos esgotos de Viena ocupada
e dividida, com fotografia esplêndida e clima noir, esse filme romantizou
a partilha da Europa no pós-guerra e revelou a crueldade dos agentes
clandestinos que infestavam cidades, tornando-se imenso sucesso. Porém, Marc Ferro, ao analisar o filme, descreve essa tragédia política, escrita no espírito da Guerra Fria, como uma peça violentamente anticomunista embora nem sempre explícita, portanto, muito bem realizada. 6
O ano de 1948 ainda seria marcado pela eclosão da crise de Berlim.7 Enquanto os soviéticos reivindicavam a manutenção dos acordos de
Yalta, os seus antigos aliados começavam a formular a contenção do comunismo com o estado germânico ocidental forte. A unificação de três
zonas ocupadas pela França, Inglaterra e Estados Unidos ao mesmo tempo em que unificavam também uma nova moeda para essa região. Como
5
Em fevereiro de 1948, contrariando a sedução do Plano Marshall, os comunistas sobem ao
poder na Tchecoslováquia, contribuindo para aumentar a ideia de avanço contínuo da
influência soviética. Porém, em contrapartida, a Iugoslávia, que se havia declarado comunista por si, mantinha uma posição cada vez mais independente, acaba excluída do Kominform, solicita ajuda dos EUA, e em 1950 emerge do outro lado dos blocos, recebendo 150
milhões de dólares de ajuda.
6
FERRO, Marc. Um combate no filme o terceiro homem. In: FERRO, Marc. Cinema e história.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 53-59.
7
Bloqueio de Berlim entre 22/06/1948 e 12/05/1949.
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resposta Stalin e Partido Socialista Unificado alemão criam uma moeda
própria para a porção da Alemanha sobre controle socialista. A disparidade em condições materiais desproporcionais lançou o marco ocidental
com um valor cinco vezes maior que o oriental.
Na tentativa de reverter essas medidas, os soviéticos bloquearam
os acessos dos aliados, por vias terrestres, a Berlim. Situada a cerca de
duzentos quilômetros no interior da zona soviética, a cidade também
estava dividida em quatro zonas de ocupação. Porém, foram mantidos
três corredores aéreos de 30 km para os dois aeroportos de Berlim, pelo
tratado estabelecido desde 1945, o que permitiu o abastecimento aéreo da
porção ocidental, que conseguiu superar a crise – vitória que foi retratado
no cinema, de forma quase documental, em Ilusão perdida (The Big Lift,
EUA, 1950, dir. George Seaton).8
Berlim passou a ser a linha de frente do conflito entre os dois blocos
na então “Guerra Fria”. Dividida em zonas de ocupação: americana, francesa, inglesa e soviética, polo do atrito e vitrine do capitalismo para o leste
empobrecido, a cidade foi reconstruída em velocidade e formas bastante
diferentes nas suas duas metades (Ocidental/Oriental): a República Federal da Alemanha (1949 – RFA – Alemanha Ocidental) contando com amplo
apoio econômico dos EUA e demais potências ocidentais, e a República
Democrática Alemã (1949 – RDA – Alemanha Oriental) atrelada ao então
bloco soviético junto às democracias populares do leste europeu, que não
contava com essa pujança financeira.
No início de 1949, ao passo que a situação de Berlim se resolvia
pacificamente, a produção de filmes engajados à Guerra Fria aumentava.
Culpado de traição (Guilty of Treason, dir. Felix Feist), no qual um inimigo do regime da URSS, o cardeal húngaro Josef Mindszenty, é barbaramente torturado e depois drogado para confessar, teve recepção razoável.
O Danúbio vermelho (The Red Danube, dir. George Sidney), uma tentativa de copia do êxito de O terceiro homem, também ambientado em Viena, faz crítica da repatriação forçada promovida pelos russos. A ameaça
vermelha (The Red Manece, dir. R. G. Springsteen) traz a formação de uma
célula comunista com vários estereótipos de desavisados jovens que poderiam ser atraídos pela ideologia marxista: um ex-combatente, um estudante negro, uma moça histérica, um padre de pouca fé, um poeta revolucionário, grupo heterogêneo que logo se desiludem com o comunismo
e são perseguidos ao tentarem abandonar a seita comunista.
Outros filmes teriam alguns problemas de recepção. O traidor
(Conspirator, dir. Victor Saville), filme britânico financiado por produtores
estadunidenses, além da pouca bilheteria nos EUA, foi recebido no Brasil
como uma obra de cunho reacionário, provocando inclusive uma represá8
Em 2006, uma versão para TV alemã muito romanceada dessa ponte aérea foi realizada
pelo diretor israelense Dror Zahavi em O plano de guerra (Die Luftbrücke – Mur der Himmel
war frei – Air Lift).
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lia violenta com apedrejamento do cinema no Rio de Janeiro.9 Os filmes
seguiam a linha de enquadrar os comunistas como nazistas, tentando reeditar os passos da pré-segunda guerra, inclusive nos títulos originais:
I Married a Comunist, emulando o antigo filme antinazista I Married a Nazi,
de 1940. A resistência do público levou o estúdio RKO a tentar lançar o
filme com outros dois títulos Beautiful But Dangerous e The Woman on Pier
13. No Brasil foi batizado de Nuvens de tempestade. Conta a história de
agitadores comunistas que organizavam revoltas de trabalhadores do porto de San Francisco.
A desintegração das relações entre as ditas superpotências tomava
um ritmo de crescimento contínuo, com a explosão da primeira bomba
atômica soviética, em 29 de agosto de 1949 e a vitória comunista na guerra
civil da China, em primeiro de outubro do mesmo ano. Por parte dos americanos soou como o aviso final. Foi como se o horizonte ficasse repleto das
mais negras nuvens. A confirmação do poderio atômico soviético e alguns
casos de espionagem10 colaboraram de maneira decisiva para a instauração
de um clima de histeria forjado pelo Estado, pela extrema-direita e pelos
setores mais conservadores no seio da sociedade estadunidense.11 Foi um
período que se caracterizou pela perseguição das oposições, pela castração
das liberdades políticas e sociais, pelo cerceamento da cidadania, numa
tentativa de uniformizar a sociedade de uma maneira um tanto fascista, a
histeria macartista.12 De maneira mais que rápida, a produção hollywoodiana adaptava aos novos vilões o mesmo tratamento que havia sido anteriormente dispensado na criação de estereótipos aos japoneses e alemães
(assassinos, sem caráter ou escrúpulos, etc.). Os russos passaram a ser mostrados, como ateus escravizadores que tudo faziam para privar o Ocidente
da liberdade. Em seguida, os chineses seriam representados como monstros amarelos por fora e vermelhos por dentro. Completando o quadro da
9
Uma avaliação sobre a recepção no Brasil de vários desses filmes de cunho anticomunista
pode ser vista no trabalho de VALIN, Alexandre Busko. Imagens vigiadas: uma história
social do cinema no alvorecer da Guerra Fria, 1945-1954. 2006. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Niterói.
10 Acusações de espionagem contra Alger Hiss, Julius Rosenberg e Ethel Rosenberg ajudaram a criar um profundo receio, nos Estados Unidos, de que uma conspiração comunista
estava próxima.
11
Em junho de 1940, o Congresso dos Estados Unidos aprovou o Alien Registration Act. A lei
tornava ilegal para qualquer pessoa no país articular ou manifestar oposição franca e aberta
ao governo. Em 1949, essa lei foi usada contra os dirigentes do Partido Comunista nos EUA,
e onze deles foram condenados por violá-la.
12
McCarthy foi presidente do Comitê de Investigação de Atividades Anti-Americanas do
Senado dos Estados Unidos, criado, em 1952, como uma subseção do Comitê de Negócios
Governamentais e Segurança Nacional do Senado dos Estados Unidos. O macartismo foi
tolerado enquanto cumpria uma função política apreciada pelos detentores do poder, só
sendo derrubado ao confrontar-se com o exército, numa “queda de braço” muito previsível.
Porém, seus reflexos na sociedade americana prevaleceram durante longos anos, incluso ai
o cinema, que foi privado de uma porção de seus intelectuais.
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desintegração dessas relações, eclodiu a Guerra da Coreia, iniciada em
vinte e cinco de julho de 1950.13
A colaboração da grande imprensa tanto na construção da histeria,
através de matérias sensacionalistas, quanto na submissão à inquisição que
se seguiu, foi a mesma dos grandes estúdios de cinema que aceitaram a
imposição das listas de quem poderia trabalhar e dos que estavam banidos.
Atores, diretores e roteiristas estavam vinculados aos estúdios. Ao negarem-se a delatar qualquer atividade “antiamericana”, estavam sumariamente demitidos, passando ainda a figurar na lista negra dos que não podiam trabalhar em Hollywood.
Uma enxurrada de filmes anticomunistas invadiu as telas, e o lema
passou a ser “melhor morto que vermelho”.14 A mensagem explícita de Eu
fui comunista para o FBI (I Was Comunist for FBI, 1951, dir. Gordon Douglas), baseado em um livro de denúncia, foi transformado em novela de
rádio e, finalmente, em filme – embora ficção, indicado para o Oscar de
melhor documentário daquele ano. Cruéis dominadores (The Whip Hand,
1951, dir. William Cameron Menzies), um filme que teve a produção controlada por Howard Hughes, que mudou o roteiro original e direcionou a
denúncia que tratava de cientistas nazistas no pós-guerra,15 colocando-os a
serviço dos comunistas num plano pra dominar o mundo. Em A grande
aventura (Big Jim McLain, 1952, dir. Edward Ludwing) John Wayne praticamente encarnava MaCarthy como membro do HUAC caçando “comunas” no Havaí. Quando o farol ilumina o leste (Walk East on Bacon, 1952,
dir. Alfred Welker) foi baseado no livro do diretor do FBI Edgar Hoover, o
Crime do Século. Não desonres teu sangue (My Son John, 1952, dir. Leo
McCarey) tinha uma linha mais melodramática e apelativa da contaminação de um filho pela ideologia. Invasão dos EUA (Invasion, U.S.A., 1953,
dir. Alfred Green) colocava os russos invadindo os Estados Unidos da
América através de forças aerotransportadas e paraquedistas. Tratava-se
de um aviso do tipo se não fosse construído e consolidado um grande arsenal de armas atômicas, os estadunidenses poderiam esperar que os russos caíssem do céu a qualquer dia.16
13
Entre 1950 e 1954, foram feitos mais de trinta filmes sobre a Guerra da Coreia e temas
correlatos, como a China comunista. A produção continuou até o inicio dos anos 1960.
14 A vinheta better dead than red surgiu como mais uma cópia do nazismo. A frase original
provavelmente foi criada como slogan pelo ministro de propaganda nazista Joseph Goebbels no auge da II GM, quando da invasão da URSS: “lieber tot als rot".
15 Magnata ligado à indústria de aviação e cinema, posteriormente dono da Hughes Aircraft,
indústria ligada ao complexo militar industrial, comprou o Estúdio RKO em 1948 e produziu
uma série de filmes anticomunistas. Politicamente de extrema direita, Hughes lutava contra
qualquer possível simpatia pela esquerda em qualquer produção em que estivesse envolvido.
THOMAS, Tony. Howard Hughes em Hollywood. Rio de Janeiro: Frente, 2004.
16
BRODE, Douglas. Lost films of the fifties. New York: Citadel, 1988. p. 70. A história foi
reutilizada em duas produções do período da segunda guerra fria, nos anos Reagan.
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Sucesso nos EUA, entretanto, esses filmes eram identificados pelo
público europeu justamente como peças intolerantes – ao estilo da
propaganda nazista –, recebendo pouco público e pouca repercussão.
A maior parte dos espectadores europeus estava cansada de guerra e
queria de Hollywood justamente os sonhos, os devaneios e a possibilidade de fugir de uma realidade desagradável, portanto muito mais interessada em romances adocicados e desenhos de Walt Disney.17
Na pauta do cinema engajado entram os filmes de ficção científica
com a humanidade sendo ameaçada de por seres misteriosos, inamistosos e hostis. Pairavam sobre a Terra os invasores vindos de mundos diferentes, inclusive de Marte, o planeta vermelho. O perigo da contaminação
ideológica proporcionada pelo alienígena traduzia o medo das ideias que
vinham de fora: tudo que viesse dos outros era antiamericano. Já em
1950, com Destino Lua (Destination Moon, dir. Irvin Pichel), o espaço é
abordado como mais um território a ser disputado com os russos. No
mesmo ano, The Flying Soucer (dir. Mikel Conrad) foi o primeiro filme a
usar a expressão disco voador, mas trata-se de um artefato terrestre, um
disco inventado pelos cientistas estadunidenses que é roubado pelos
inimigos soviéticos. Em 1951, O homem do Planeta X (The Man From
Planet X, dir. Edgar Ulmer), filme B, tinha um enredo no qual uma nave
cai na terra, e seu tripulante é capturado por um astrônomo. Apesar de
pacífico, o alienígena tem poderes telepáticos de dominação, podendo
transformar os mais inescrupulosos cientistas em inocentes vegetais. É o
criador do que depois seriam clichês quanto à possível invasão da terra.18
Ainda em 1951, viria O monstro do Ártico (The Thing from Another World,
dir. Christian Nyby), ameaça de invasão russa pelo Alaska e alegoria
sobre a guerra fria, através de uma criatura, e termina advertindo para o
perigo que vem do céu. Os filmes de ficção científica seguiram, por anos
de produção constante, em grau diferente de engajamento.19 Exportar o
tema do anticomunismo para outros gêneros, ainda que de forma alegórica ou difusa, era a garantia de pautar a audiência com uma mesma
mensagem disfarçada.
17 SAUNDERS, Frances Stonor. Quem pagou a conta?: a CIA na guerra fria da cultura. Rio de
Janeiro: Record, 2008. p. 312.
18
Em 1961 também foi lançado o clássico O dia em que a Terra parou (The Day The Erth Stood
Still, dir. Robert Wise), uma produção classe A, de apelo pacifista no qual o ser do espaço
somente reage à violência dos terráqueos, baseado no conto “Farewell to the Máster”, do
escritor Harry Bates. Refilmado em 2008, com discurso da ameaça ao meio ambiente.
19
O planeta Vermelho (Red Planet Mars, 1952, dir. Harry Horner), Os invasores de Marte
(Invaders from Mars, 1953, dir. William Cameron Menzies), Guerra dos mundos (The War of
Worlds,1953, dir. Byron Haskin), A Ilha da Terra (This Island on Earth, 1955, dir. Joseph M.
Newman), Invasão dos discos voadores (Earth Vs. The Flaying Saucers, 1956, dir. Fred F.
Sears). Porém, houve espaço para ambigüidade: Vampiros de almas (Ivasion of Body Snatchers, 1956, dir. Don Sigel) e até mesmo para críticas ao macartismo como em Veio do espaço (It came from Outer Space, 1958, dir. Jack Arnold).
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Entre 1952 e 1955, várias providências foram tomadas. O Estado
Maior das Forças Armadas dos EUA convocou reuniões com dirigentes
dos estúdios de Hollywood para que eles explorassem a “liberdade militante” como tema recorrente em seus filmes, criando um contraste entre o
valor da liberdade norte-americana e as propostas estrangeiras. Também
foi pedida uma pauta que evitasse trabalhar com fatos sórdidos da sociedade, como a pobreza e o racismo,20 e colocar personagens estadunidenses
com desvio de caráter ou como consumidores excessivos de álcool, num
tipo de propaganda de imagem positiva.21
O ano de 1953 ficou marcado pela posse de Eisenhower na presidência dos EUA, eleito depois de uma campanha na qual acusava os democratas de terem feito muitas concessões aos comunistas e prometendo
trazer os garotos de volta da guerra da Coreia. Na URSS, morria Stalin e o
processo de ruptura com o stalinismo começou quase que de imediato.
Entretanto, o final da guerra da Coreia e seu saldo de pelo menos três milhões e meio de vidas servia como advertência para a situação de Berlim.
A antiga capital do Reich, que já havia sido transformada, na realidade e nas telas, na cidade dos espiões, desde 1947, é pano de fundo para
filmes como O outro homem (The man between, 1953, Inglaterra. dir. Carol
Reed), uma cópia pobre de O terceiro homem, rodado em locações na
cidade e completado em estúdio, que não teve grande repercussão.
À sombra da noite (Night People, EUA, 1954, dir. Nunnally Johnson), tinha
a cidade como cenário onde os soviéticos se esgueiravam à noite pelas
ruínas sequestrando um soldado americano. A história se concentra em
contar os esforços da inteligência estadunidenses em salvar o jovem soldado dos malignos russos.
O cinema operava também outra missão importante no contexto internacional: recuperar a imagem dos outrora terríveis inimigos alemães
(pelo menos dos ocidentais), em filmes como A Raposa do Deserto (Desert
Fox, EUA, 1954, dir. Henry Hathway), no qual era cultuado o mito do general Irwin Rommel como um cavalheiro profundamente antinazista,
quando se sabe que foi justamente a proximidade com Hitler que oportunizou a Rommel uma carreira meteórica no exército alemão; em
A raposa do mar (The Enemmy Below, EUA, 1957, dir. Dick Powell), um
submarino alemão trava um duelo com um destróier da marinha dos EUA
no Atlântico Sul, no qual o comandante alemão, além de muito habilidoso
20
Parte do plano era plantar figurantes negros em vários filmes para passar a idéia de
integração social. Uma das principais denúncias dos soviéticos contra os EUA eram as
relações raciais. No filme K-19 (K-19 The Widowmaker, 2003, dir. Kathryn Bigelow), sobre o
primeiro submarino nuclear russo, em uma seqüência, o comissário político do barco, responsável pela moral da tripulação, mostra filmes sobre os Estados Unidos, salientando a
propaganda de Tio Sam: “Vocês vão ver que todos têm carro e são muito ricos e felizes. Mas por
trás disso, se esconde a realidade” adverte ele, mostrando em seguida cenas de distúrbios
raciais ocorridos no início dos anos 1960, e da Klu Klux Kan, em rituais racistas.
21
SAUNDERS, Frances Stonor. Quem pagou a conta?: a CIA na guerra fria da cultura. Rio de
Janeiro: Record, 2008. p. 309-317.
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e extremamente antinazista, faz críticas abertas a Hitler e ao oficial político
do partido. Em Mares violentos (The Sea Chase, 1955, dir. John Farrow),
ninguém menos do que John Wayne22 é Karl Ehrlich comandante de um
navio alemão que ama seu país, mas odeia Hitler. Sua missão é furar o
cerco dos britânicos e levar o navio da Austrália ao Reich.23
Um capítulo à parte foi a produção de filmes baseados nas obras de
George Orwell. Obras como A revolução dos bichos e 1984 foram supervisionadas e viabilizadas pela CIA. A revolução dos bichos (Animal Farm,
1956, dir. Boy Batchelor e John Halas), desenho animado feito na Inglaterra, com dois anos de produção, teve os direitos autorais comprados da
viúva Sonia Orwell através de negociações que envolveram até mesmo um
encontro dela com seu ídolo Clark Gable. A primeira versão cinematográfica de 198424 (dir. Michael Anderson) foi lançada no mesmo ano. Ambas as
obras receberam uma revisão acurada para que ficassem limpas de qualquer crítica original contra o capitalismo. A difusão desse filmes foi vista
como uma peça angular na propaganda contra a URSS e o comunismo nos
anos 1950.25
Em 1956, depois das denúncias do stalinismo no XX Congresso do
Partido Comunista, eclodia a revolta húngara contra o alinhamento com
URSS. O quadro é grave, e, em conjunto com as reivindicações de liberdade, são cometidos linchamentos, queima de símbolos oficiais do partido
comunista. Os rebeldes húngaros tentam declarar-se neutros e fora do Pacto de Varsóvia.26 A revolta foi incentivada pela rádio Europa Livre e por
agentes do Ocidente que lhes prometiam armas e apoio, mesmo sabendo
22
John Wayne era um republicano ferrenho, considerado um símbolo do americanismo e
do anticomunismo em Hollywood. Curiosamente ele seria uma vítima da Guerra Fria, pois,
ao rodar um filme sobre a vida de Gengis Kan, Sangue de bárbaros (The Conqueror, 1956,
dir. Dick Powell), em uma região desértica que teria servido para realização de testes atômicos anos antes, ele e o resto da equipe do filme foram contaminados por radiação, todos
vindo posteriormente a contrair câncer. Sobre o tema de contaminação nos EUA ver
O preço da traição (Mulholland Falls, 1996, dir. Lee Tamahori).
23
Se os planos para a reconstrução da Alemanha foram mudados rapidamente com idéia de
conter o comunismo na Europa, na Ásia a Revolução Chinesa e a Guerra da Coreia foram
decisivas para uma mudança em relação ao Japão. Sua reconstrução acelerada entra na ótica
da vitrine do capitalismo para Ásia e base estadunidense para operações no Extremo Oriente. Recuperar os japoneses através de filmes foi mais complicado, pois a propaganda feita
contra eles durante a II GM teve um forte teor racista. Mas Hollywood tentou: Todos são
valentes (Go for Broke, 1951, dir. Robert Pirosh), Three Stripes and Sun (1955, dir. Richard
Murphy) e O rei dos mágicos (The Geisha Boy, 1958, Frank Tashlin) , entre outros.
24
Adaptado para a TV pela BBC, em 1954, BBC Sunday-night Theatre, dirigido por Rudolph
Cartier, e no próprio ano de 1984 foi refilmado para o cinema (Inglaterra, dir. Michael Radford).
25 SAUNDERS, Frances Stonor. Quem Pagou a Conta?: a CIA na guerra fria da cultura. Rio
de Janeiro: Record, 2008. p. 318-326.
26 O Pacto de Varsóvia foi uma aliança estabelecendo um compromisso de ajuda mútua em
caso de agressões militares que reunia os países do Leste Europeu: RDA, Bulgária, Romênia, Tchecoslováquia, Polônia, Hungria e URSS. Foi efetuado como contra medida à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), firmada em 1949 e que aglutinava as potências ocidentais contra o socialismo. A RFA foi aceita como membro em 09/05/1955.
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que um enfrentamento traria uma guerra que nenhum dos lados queria.
No final, os húngaros são abandonados para o acerto de contas com os
soviéticos. Alguns anos depois Hollywood abordou o tema em dois filmes:
A fera de Budapeste (The Beast of Budapest, 1958, dir. Harmon Jones), uma
produção B, mostrando os casos de tortura e o velho maniqueísmo da liberdade contra a opressão, do bem contra o mal; Crepúsculo vermelho
(The Journey, 1959, dir. Anatole Litvak), uma produção classe A, que colocava uma delegação de ocidentais querendo sair da Hungria, ao passo que
é investigada por um major russo, que busca por húngaros rebeldes infiltrados, e termina por ajudá-los à custa de um alto preço.
Em 04/10/1957, a URSS vencia a primeira prova da corrida espacial
ao colocar em órbita o primeiro satélite artificial. Com o Sputnik, os soviéticos iniciavam uma nova era. O fato teve reflexos diretos nos EUA, pois seu
predomínio militar não estava mais inalcançável. Os críticos de Eisenhower foram enfáticos, atacando a ineficiência do programa espacial estadunidense. A solução foi recorrer a Werner Von Braum27 para coordenar o projeto espacial. Para resgatar sua figura pública, foi produzido
Na rota das estrelas (I am at the Stars, EUA, 1960, dir. J. Lee Thompson), no
qual ele é mostrado como um cientista antinazista que apenas tentava atingir as estrelas, mas que, segundo um comentário inglês na época do lançamento do filme “acertava em Londres”, numa clara referência aos foguetes V2 projetados por Von Braun e disparados durante a guerra.
Em março de 1958, em Memphis, no Tennessee, Elvis Aron Presley
presta juramento ao Exército Americano diante das câmeras dos noticiários de cinema dos EUA, e depois segue para a Alemanha, onde vai servir o exército na terceira unidade de tanques. Ele fez um filme no qual é
um sargento estadunidense na própria unidade em que serviu: Saudades
de um pracinha (G.I. Blues, dir. Norman Taurog).28 Elvis, na Alemanha,
foi parte de uma glamorização da zona oeste. O investimento massivo de
verbas para reconstruir a RFA chegava ao auge, e não existia possibilidade de competição. Porém, muito mais perigoso para existência da RDA e
do socialismo era o fato de que, desde 1955, os EUA treinavam um novo
exército alemão ocidental, inclusive com armas nucleares.
27
Von Braun era ex-major da SS. Mesmo que a CIA tenha feito um bom trabalho recolhendo todas as suas fotos de uniforme negro da SS, existiam testemunhas de que ele havia
coordenado um programa que envolvia trabalhadores escravos no final da II GM (Mittelwerk). Um grande número de ex-nazistas trabalhava para os EUA, até mesmo o responsável
pelo novo serviço de segurança da RFA, um nazista de alto escalão, o general Gehlen. Sobre
a importação dos nazistas, ver Pesadelo na Rua Caroll (The House on Caroll Street, 1988, dir.
Peter Yates).
28
Além ganhar publicidade para o exército e para a presença norte-americana, o filme era
parte de uma estratégia de apresentar um Elvis mais sério, menos rebelde, menos desafiador, com um ar e uma aparência mais conservadora para o mercado interno nos EUA.
Tratava-se de acalmar a rebeldia do rock.
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O ano de 1959 inicia com triunfo da Revolução Cubana “sob as
barbas” de Eisenhower,29 e o alarme sou mais alto do que nunca. Khrushchev visitou os EUA, em setembro, e um dos lugares que fez questão de
visitar foi Hollywood. Existia expectativa para a reunião que ocorreria no
ano seguinte, em Paris, marcada para 16 de maio. Porém, outro fato roubou a cena: no dia primeiro de maio, um avião estadunidense U2 foi abatido sobre a URSS. O piloto Francis Gary Powers30 foi escolhido para
decolar do Paquistão e cruzar toda a Rússia tentando localizar bases de
mísseis numa operação conjunta da Força Aérea dos Estados Unidos e da
CIA.31
O Muro
Na eleição para presidência da república nos EUA, decidida em 07
de novembro de 1960, John F. Kennedy saiu vencedor. Fazendo um uso
estudado de sua boa imagem através da televisão, ele fez toda sua campanha atacando os republicanos que deixaram o comunismo se instalar
no “quintal” dos EUA.32
Em 1961, na iminência da construção do Muro, Billy Wilder rodava uma comédia na qual um agressivo executivo da Coca-Cola (Jammes
Cagney), tentava conquistar o mercado e se deparava com um comunista
29
Em 03/01/1959, um regime que desafia aos EUA a menos de 200 km da costa das EUA.
Além do combate ao comunismo na Europa e na Ásia, naquele momento existia um exemplo local para outros povos da América Latina. Eisenhower já havia, através de um golpe
reacionário, derrubado o governo da Guatemala, em 1954, alegando influência comunista
nas medidas de Jacobo Arbenz. Os governos que sucederam Arbenz custaram ao país mais
de 140.000 mortos e desaparecidos.
30
Posteriormente, em 1976, foi feito um filme para televisão, A história de Francis Gary
Powers (Francis Gary Powers: The True Story of the U-2 Spy Incident, 1976, dir. Delbert Mann).
Em Moscou o julgamento de Powers por espionagem teve grande cobertura e o piloto foi
condenado a dez anos de trabalhos forçados. Nos EUA ele foi muito criticado por não usar
o equipamento de autodestruição do U2 e o alfinete envenenado que levava com ele para se
suicidar.
31
O U2 foi detectado pelo radar e estava fora do alcance dos caças soviéticos Mig, mas
acabou abatido por um míssil S-75. Com o avião desaparecido o presidente dos EUA teria
que fazer um comunicado. A história inventada pela assessoria de imprensa de Eisenhower
foi patética e divulgada pelo próprio Presidente em cadeia de TV: o avião desaparecido era
um aparelho meteorológico e estava a grande altura, tendo desviado de sua rota original
por uma falha no equipamento de oxigênio do piloto que desmaiado teria violado o espaço
aéreo soviético acidentalmente. Khrushchev lançou uma armadilha e pegou os EUA, pois
restos do avião e o piloto foram capturados. Khrushchev exigia desculpas dos EUA. O que
não ocorreu e levando-o a abandonar reunião em Paris.
32
Além disso, vários de seus discursos calcavam-se num suposto desequilíbrio de mísseis
em favor da URSS, quando, como revelou mais tarde seu próprio Secretário de Defesa,
Robert McNamara: “se havia um desequilíbrio ele era ao nosso favor”. Kennedy insistia em
que a América devia estar preparada para enfrentar o desafio comunista expandindo suas
fronteiras.
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alemão: O Cupido não tem bandeira (One, Two, Three, EUA), com tema
principal mostrando o contraste entre o consumismo da rica América
versus o pobre comunismo.O filme foi fracasso de bilheteria, mas apresentava uma leitura demolidora sobre os dois lados do conflito, satirizando o que parecia soturno na RDA e capa da democracia da RFA, onde
tudo podia ser comprado e os ex-nazistas estavam em toda parte. O roteiro desenvolvido por Wilder abusava da situação de tensão e, ao mesmo
tempo em que destaca as vantagens do Ocidente, humanizava o ingênuo
comunista oriental, submetido a uma chantagem psicológica e material o
tempo todo, esperando-se que ele desertasse de uma vida de sacrifícios
idealistas e fugisse para um mundo de prazeres ilimitados. A síntese do
plano para desestabilizar as fronteiras diferentes foi executada no filme
pelo personagem de Cagney que, apenas por coincidência, chamava-se
McNamara.
Se no cinema a tensão pôde ser caricaturada de forma brilhante, no
plano real ela vinha crescendo de forma abrupta. O comércio de produtos
alimentares, comprados na RDA e vendidos na RFA, era muito lucrativo
para pessoas que viviam ou trabalhavam em Berlim Oeste, mas enfraquecia o sistema de economia planificada. Mas muito pior era o estímulo à
deserção entre 1953 e 1961. Estima-se que 2.800 alemães orientais passaram
para o lado ocidental, entre eles muitos cientistas e técnicos especializados,
principalmente os jovens, gerando um prejuízo de 30 bilhões de marcos.33
Na RFA fazia-se o máximo esforço e investimentos para receber e acomodar bem os fugitivos. Segundo Visentini34, mais dinheiro foi investido em
Berlim Ocidental no período do que em toda a América Latina.
Na RDA foi desenvolvida a indústria pesada em detrimento dos
bens de consumo. O país era pequeno, e a escassez de produtos obrigava a
grandes esforços. Somente o apoio soviético mantinha a economia viva.
Atendendo aos pedidos dos dirigentes da RDA, os soviéticos aceitaram
bloquear o acesso a Berlim ocidental.35 Primeiro foram intensificados os
controles nas fronteiras. Então, no dia 12 de agosto, as forças soviéticas e
alemãs orientais se mobilizaram, e, às 24 horas, a fronteira foi fechada. Em
13 de agosto, começou a construção do alambrado. Foi também uma tentativa de minimizar as possibilidades de conflito. Os alemães orientais haviam resolvido seu problema de deter as fugas sem infringir os direitos
ocidentais. Para os aliados, o fechamento da fronteira estabilizava a tensa
situação de Berlim.
33
MAN, John. Bloqueio de Berlim. Rio de Janeiro: Renes, 1979. p. 130
34 VISENTINI, Paulo Fagundes. História do Século XX. Porto Alegre: Novo Século, 1998. p. 136.
35
Em julho de 1961, Kennedy fez um discurso em que só referia aos direitos de Berlim
Ocidental, deixando subentendido que não interviria em ações que se passassem no lado
Oriental. O pronunciamento foi entendido pelos soviéticos como um sinal verde em relação
à intervenção do seu lado de Berlim. Os estadunidenses e seus aliados sabiam que, nas
últimas semanas daquele mês, milhares de pessoas haviam cruzado a fronteira. Era impossível não haver uma reação da RDA.
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Nos dias seguintes foram tomadas algumas medidas para parecer
que os EUA reagiam. Kennedy ordenou deslocamento de forças com
comboios que cruzavam as autopistas da RDA, para testar o livre acesso
à cidade. Eles foram parados, contados e depois puderam passar.36 O que
antes era uma das principais zonas de tensão aos poucos ganhava uma
normalidade. É fato que houve muitos dramas pessoais e traumas, mas a
ameaça de um choque que levaria a conflito termonuclear estava dissipada em Berlim.
No ano seguinte, o mundo inteiro prendeu a respiração com a crise dos mísseis em Cuba.37 O medo gerado por esses acontecimentos teve
um reflexo direto na leitura do cinema, primeiro enaltecendo a segurança
proporcionada pelo Strategic Air Comand (SAC) 38 com o filme apologético
Águias em alerta (A Gathering of Eagles, 1963, dir. Delbert Mann), sobre a
dedicação e o heroísmo dos homens que voavam dia e noite até o limite
do espaço aéreo soviético carregados de bombas. A história mostra o
quanto era duro essa preparação e todos os sacrifícios que foram feitos
para manter os pilotos e as tripulações sempre alertas. Porém, no ano
seguinte, quase simultaneamente, chegavam às telas dois filmes de enredo muito parecido: a comédia de humor negro Doutor Fantástico (Dr.
Strangelove or How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964, dir.
Stanley Kubrik) e o drama Limite de segurança (Fail-Safe, 1964, dir. Sidney
Lumet). Enquanto o filme de Kubrick obteve uma enorme repercussão, o
de Lumet passou quase despercebido.
A comédia ácida de Kubrick mostrava o grau de insensatez do
programa de bombardeios estratégicos, que gastava uma fortuna por dia,
voando permanentemente. Também havia o risco de algo dar errado, e a
guerra termonuclear ser iniciada. Abordava ainda o desgaste da URSS
pela corrida armamentista, que os levava ao projeto da máquina do juízo
final, um mecanismo definitivo, projetado pelos soviéticos, que em caso
de ataque estadunidense desencadearia uma reação que extinguiria a
vida na superfície da terra. Isso apenas para reduzir o gasto com armas e
poder introduzir os bens de consumo em seu regime. Mostrava também a
caricatura dos cientistas nazistas a favor dos EUA.39
36 O vice-presidente Johnson foi até Berlim e declarou, em nome de Kennedy, a firmeza do
compromisso com a segurança e os acessos de Berlim Ocidental.
37
Em outubro de 1962, a tensão foi transferida para a disputa pela capacidade de Mútua de
Destruição Assegurada (MAD – Mutually Assured Destruction). Filmes sobre o tema: Os
mísseis de outubro (Missiles Of October, 1974, dir. Anthony Page), Topázio (Topaz,1969, dir.
Alfred Hitchcock), Matinee, uma sessão muito louca (Matinee, 1993, dir. Joe Dante) e Treze
dias que abalaram o mundo (Thirteen Days, 2000, dir. Roger Donaldson).
38
O SAC já havia sido enaltecido em pelo menos dois filmes da década de 1950: Comandos
do ar (Strategic Air Command, 1955, dir. Anthony Mann) e Esperança angustiosa (Bomber B52,
1957, dir. Gordon Douglas).
39 Em Sob a névoa da guerra (The Fog of War: Eleven lessons from the Life of Robert S. McNamara, EUA, 2003), que é um documentário baseado numa longa entrevista com Robert
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Em meados dos anos 1960, alguns produtores e roteiristas aproveitaram a barreira erguida pelos alemães orientais para rodar, na sua sombra, uma série de filmes em que a cortina de ferro se transformou em concreto. No ano de 1966, foram lançadas três produções com enfoques diferentes sobre o muro e suas imediações, assim como, sobre a política dos
dois lados. Em Cortina rasgada (Turn Curtain), o mestre do suspense
Hitchcock não esconde seu anticomunismo. Apesar das boas cenas concebidas de maneira original, o maniqueísmo é constrangedor. É um dos filmes mais fracos da carreira do diretor, só ficando atrás de Topázio, outra
peça de propaganda, desta vez baseado em um livro de Leon Uris, sobre a
crise dos mísseis em Cuba.
O diretor inglês Guy Hamilton, entre um 007 e outro,40, resolve fazer uma leitura diferente do Muro em Funeral em Berlim (Funeral In Berlin). Nessa produção, o enfoque do Muro passa pela sua utilidade para os
dois lados. O serviço secreto britânico tem que conviver com uma organização usada para retirar pessoas de Berlim Oriental, num duelo com o
chefe de segurança russo. Com muitas imagens do Muro, o filme mostra
que quem trabalhava para os aliados nessas missões eram ex-nazistas preocupados apenas com o dinheiro que ganhavam, usando métodos brutais e
despreocupados com a tal democracia. O Muro também possibilitava negócios interessantes para empresários do Oeste, como o comércio de câmeras fotográficas e outros produtos do leste.
A produção com ar mais pesado foi realizada na Inglaterra, por
Martin Ritt,41 O espião que saiu do frio (The Spy Who Came in From The
Cold), baseada no romance de John Le Carré, que retrata a espionagem sem
McNamara e aborda, entre outros fatos, a Crise dos Mísseis Cubanos. Suas revelações são
surpreendentes: desde dados como 90 ogivas táticas soviéticas que já estavam em Cuba,
indo até a proximidade que se chegou do Armagedon. Segundo McNamara, mesmo após a
retirada dos mísseis da Ilha de Cuba, ainda existiu perigo – o general Curtis LeMay insistia:
“Vamos invadir, vamos acabar com eles hoje”. O general tinha certeza de que o enfrentamento com armas nucleares entre EUA e URSS iria acontecer e queria fazê-lo com superioridade de mísseis. Definitivamente, o filme revela, sem deixar dúvidas, que LeMay foi a
inspiração de Stanley Kubrick para o personagem interpretado por George C. Scott em Dr.
Fantástico, general Turgidson, e sua famosa frase sobre o conflito nuclear: “não digo que
não nos chamuscaremos um pouco, mas as chances são boas”. O clima insano segue com
McNamara exemplificando a loucura paranoica dos militares que temiam que os russos
realizassem testes com armas nucleares no lado escuro da lua, mais uma prova de que o
genial filme de Kubrick é também um documento de época.
40
O personagem 007, baseado nos romances de Ian Fleming, foi lançado no clima da guerra
fria e, ao longo de três décadas, teve uma série de filmes com protagonistas diferentes. Nos
anos 1960 destaque para Sean Conery, como o agente de sua majestade que tem permissão
para matar, nos seguintes filmes: 007 contra o stânico Doutor No (Doctor No, 1962, dir.
Terence Young), Moscou contra 007 (From Russia with Love, 1963, dir. Terence Young), 007
contra Goldfinger (Goldfinger, 1964, dir. Gay Hamilton), 007 contra a chantagem atômica
(Thunderball, 1965, dir. Terence Young), Com 007 só se vive duas vezes (You only live twice,
1967, dir. Lewis Gilbert), 007 os diamantes são eternos (Diamonds are Forever, 1971, dir. Guy
Hamilton).
41
Diretor estadunidense que foi posto na lista negra do macartismo no início dos anos 1950,
em 1973 filmou Testa de ferro por acaso (The Front), que atacava a histeria do período.
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glamour, como um negócio sórdido, e sem diferença de ideais entre o alemão oriental e o agente inglês. Foi um dos primeiros filmes a levantar a
possibilidade de que a tal luta do bem contra o mal não estava sendo realizada por anjos, mas por demônios, e de que as propostas desenvolvidas
através de políticas criadas para defender o Ocidente dos comunistas estariam, na verdade, minando os países ocidentais por dentro, destruindo os
valores que eles diziam defender.
Em 1963, Kennedy foi assassinado nos EUA, depois de ter iniciado
uma escalada no Vietnã que seria seguida pelo seu sucessor Lyndon
Johnson e se tornaria um problema com a oposição da sociedade no final
dos anos sessenta, além dos gastos gigantescos. Além disso, os EUA davam suporte para uma série de golpes na América Latina que colocavam
no poder ditaduras baseadas no binômio segurança nacional e anticomunismo. Paulatinamente, o cinema estadunidense se libertou de sua censura pelo código Hays e passou a abordar temas sociais e de contracultura,
distanciando-se da guerra fria.
Em 1969, tomava posse nos EUA o Presidente Richard Nixon, antigo caçador de bruxas da época do macartismo, interessado em dar término à guerra do Vietnã, e promover a détente. A tensão se havia consolidado entre China e URSS. As relações entre as duas Alemanhas ganharam ar de normalidade em dezembro de 1972, quando elas estabeleceram
relações diplomáticas. Em 1973, o impeachment do presidente Nixon, seguido da derrota no Vietnã em 1975, mudaram o clima interno dos EUA.
Gerald Ford cumpriu o resto do mandato, sendo substituído por Carter,
um democrata, que estabeleceu a cartilha dos direitos humanos para,
inclusive, atacar regimes que haviam sido auxiliados pelos EUA, como
era o caso do Brasil.
A Segunda Guerra Fria
Em 1981, Reagan42 era o presidente dos EUA e representa a volta
ao poder do conservadorismo moldado no calor histérico do pósguerra.43 Como destacou o cientista político Michael Rogin, Reagan go42 Foi eleito para vencer o que havia restado do establishment vigente desde o New Deal nos
Estados Unidos, retomando caminhos mais antigos: acabar com a seguridade social e a
sobrecarga de impostos; construir uma América voltada para os ricos; beber na fonte dos
Pilgrim Fathers; retomar a grandeza do destino manifesto norte americano; recuperar a força,
livrando-se da recessão industrial, da crise econômica, da humilhação exterior (reféns no
Irã), da desconfiança nos políticos (Watergate), da síndrome de derrota do Vietnã; afinal de
contas a “América está com Deus”. Todas essas idéias estavam no Discurso da Vitória, de
Reagan. LOPEZ, Luiz Ignacio. Adiós Mr. Reagan. Buenos Aires: Ediciones B, 1988. p. 36-38.
43
Entre 1947-1954, a associação dos atores de Hollywood era presidida pelo ator de segunda linha Ronald Reagan, dedo-duro que fazia carreira política municiando listas do FBI com
nomes de prováveis comunistas e simpatizantes vermelhos.
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vernou utilizando como meio de comunicação o recurso de velhos roteiros cinematográficos. 44
Em 23/03/1983, o presidente dos EUA proferiu seu famoso discurso “Star Wars”, ou “Strategic Defense Initiative”. Os gastos de defesa
dos EUA subiram de forma vertiginosa,45 e o cinema se engajava outra
vez. Na verdade, desde meados dos anos 1970, havia uma retomada de
temas de americanismo e otimismo, histórias de vencedores para afastar
o peso da crise. Entretanto, o Muro não foi a pauta principal, mas o Vietnã e uma política de intervenção reforçando o discurso da Casa Branca,
ao mesmo tempo em que a política de Gorbatchev (1985-1991), secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista da URSS, parecia
capitular durante o segundo mandato de Reagan.46
Algumas produções traziam os alemães orientais como agressores
primeiro com uma quase reedição de Invasão U.S.A. (Invasion, U.S.A.,
1952, dir. Alfred E. Green): Amanhecer violento (Red Dawn, 1984, dir.
John Milius), como parte de uma coalizão maligna que domina os EUA.
Comunistas russos, alemães orientais, cubanos e nicaraguenses invadem
os EUA e são combatidos pelos jovens e heróicos guerrilheiros estadunidenses. Em 1987, uma minissérie da rede ABC, chamada Amerika (dir.
Donald Wrye), apresenta coalizão de comunistas nos mesmos moldes.
Dessa vez a história se passava no futuro, em 1997, depois de 10 anos de
domínio, e contava um levante de cidadania e patriotismo contra os
cruéis opressores. A série foi exibida pela TV Globo, no Brasil, em 1988.
Na nova investida cinematográfica vieram também Dramática
travessia (Night Crossing, EUA e ING, 1981, dir. Delbert Mann), sobre
uma fuga de balão da RDA; Enigma (ING e FRA,1982, dir. Jeannot
Szwarc), sobre infiltração e espionagem na RDA, repleto de clichês; Gotcha! Uma arma do barulho (Gotcha!, EUA, 1985, dir. Jeff Kanew), comédia para o público adolescente que mostra Berlim Oriental como um lugar sombrio e soturno, povoado por pessoas de mau humor.
Imediatamente após a queda do Muro, quando se acreditava, de
fato, no fim da história, não foi necessário investir em filmes sobre a RDA
ou as diferenças entre as sociedades da Alemanha unificada. Porém, na
medida em que as promessas da reunificação permanecem não cumpridas, as articulações de partidos de oposição começam a ganhar espaço
na Alemanha e torna-se necessário exumar o passado, estabelecendo a
44
ROGIN, Michael. Ronald Reagan, the Movie. Berkley: Univesity Of California Press, 1987.
45
Dentro de um ano, um esforço descomunal estava sendo feito para desenvolver todo tipo
de armas antimísseis de alta tecnologia e de feixe de energia. O orçamento secreto para
armamentos cresceu de 892 milhões de dólares, em 1981, para 8,6 bilhões, no ano fiscal de
1987. PATTON, Phill. Dreamland. São Paulo: Conrad, 2000. p. 228.
46
Para uma análise detalhada das circunstâncias que levaram à queda do Muro, bem como
suas consequências no cenário mundial, ver VISENTINI, Paulo Fagundes. Os dez anos que
abalaram o mundo. Porto Alegre: Novo Século, 1999.
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“verdade ofical”. A história da RDA deve ser apagada ou ser associada
ao nazismo. A edição seletiva das memórias impede que, até hoje, a Alemanha tenha consciência de sua identidade. É o que demonstra como
regra, a cinematografia do período.
Em 1993, é lançado O inocente (The Inocent: ... Und Der Himmel
Steht Still, ING e ALE, dir. John Schlesinger), cuja história se passa na
Berlim de meados dos anos 1950, com um desfecho trágico para um casal
de apaixonados que voltam a encontrar-se no exato momento em que o
muro está sendo derrubado. É um filme bastante interessante, que aborda
espionagem e as inter-relações mantidas por alemães orientais, alemães
ocidentais, americanos e ingleses, inclusive pautando as vantagens que os
americanos levaram sobre seus aliados ingleses e alemães no período.
Na Alemanha surgiram filmes sobre o tema: A Igreja do Nicolau
(Nikolaikirche, 1995, dir. Frank Bayer), história de três gerações de uma
família abordando a emancipação e a contestação diante do Estado da
RDA; Alameda do Sol (Sonnenallee, 1999, dir. Leander Haussmann), filme
sobre a juventude da RDA no início dos anos setenta, que critica o regime, mas trabalhando com ironias, pois apresenta uma visão muito simpática dos jovens orientais, em contrapartida aos ocidentais, explorando a
sedução cultural através do rock. O túnel (Der Tunnel, 2001, dir. Roland
Suso Richter) trata da história de uma grande fuga de Berlim Oriental
com muitos patrocinadores inclusive um canal de TV dos EUA; Paixão
além do Muro (Wie Feuer und Flamme, 2001, dir. Connie Walter) sobre
uma jovem alemã ocidental que se apaixona por um punk e tem que esperar a queda do Muro para tentar localizá-lo.
Adeus Lênin! (Good Bye, Lenin!, 2003, dir. Wolfganger Becker) foi
um sucesso internacional. Dentre os filmes mencionados, é o que mostra
uma RDA descontente com a falta de liberdade, mas, ao mesmo tempo,
um pequeno país habitado por pessoas pensantes, com sonhos e aspirações que não estavam em sintonia com RFA. Estudos recentes da Universidade Livre de Berlim apontam que a visão da RDA, principalmente
entre os jovens na Alemanha, é a de um país pequeno e atrasado, porém
com mais seguridade social, garantia de acesso à educação, excelentes
escolas e creches e um povo mais solidário. A pesquisadora Monika
Deutz-Schroeder diz que "Filmes como Adeus, Lênin! fazem a Alemanha
Oriental parecer inofensiva". "Os estudantes ficam com a impressão de
que a Alemanha Oriental era apenas um país atrasado e simpático. Seria
melhor se eles assistissem A vida dos outros".47 Parece deixar claro que
Adeus Lênin!, apesar de ter amenizado o papel do personagem que foge
para o Ocidente, mesmo ao custo de sua linha narrativa sofrer uma
visível ruptura, pela revelação das cartas, diminuindo a covardia de sua
deserção e seu individualismo, gerou desconfroto para um modelo único,
47
Disponível em: http://www.dw-world.de/dw/article/0,,3009102,00.html.
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pois exibia a vida do outro lado do muro, e mostra que na RDA também
existiam uma cultura e uma história.
A vida dos outros (Das Leben der Anderen, 2006, dir. Florian
Henckel von Donnersmarck) foi um filme premiado, e, dentre suas qualidades, a que se destaca é uma visão do mundo das polícias secretas –
no caso, a Stasi. Possui uma narrativa bem encadeada e voltada para
um dos temas de sucesso atual: a perspectiva de observar a vida alheia
como entretenimento. Porém, abusa do maniqueísmo e das manipulações, figurando como peça de propaganda que omite a existência, no
Ocidente, da contrapartida para a Stasi, contando com muito mais infraestrutura e potencial para espionar a todos na RFA.48 Em Um amor
além do Muro (Der Rote Kakadu, 2006, dir. Dominik Graf), a história se
passa em Dresden, mas transita por Berlim. Serve para avaliar a desproporção material entre os dois lados, mas, ao poucos, vai tomando o
mesmo rumo de filme produzido para ser memória oficial, transferindo
toda culpa ao lado derrotado.49
Quando o Muro veio abaixo, em novembro de 1989, esperava-se
uma total reunificação germânica; afinal, a história chegava ao seu fim e
o capitalismo havia triunfado. Apenas esqueceram que as diferenças
estruturais e sociais sob as quais as duas sociedades foram edificadas
permaneceram profundamente arraigadas nos alemães de ambos os
lados. E mesmo que o cinema alemão recente tente apagar a história e
imputar todos os problemas à RDA, a verdade permanece outra. Como
disse Peter Burke, em 1999, dez anos depois da queda, se a liberdade
estava de um lado, a igualdade e a fraternidade estavam do outro.
O muro invisível é muito mais difícil de ser destruído, ou mesmo retratado pelo cinema.
Recebido em novembro de 2009.
Aprovado em dezembro de 2009.
48
A Organização Gehlen, serviço de inteligência e espionagem da RFA, contava com dez
mil homens e mulheres de quase cinquenta diferentes nacionalidades, e estavam por toda
parte, espionando e informando não apenas sobre o potencial inimigo mais também sobre
amigos e concidadãos. WHITING, Charles. Gehlen: um gênio da informação. Rio De Janeiro:
Bibliex, 1986. p. 130.
49 Em 2007, próximo do aniversário da queda do Muro de Berlim, o Der Spiegel fez uma
pesquisa com mil alemães que cresceram nos dois lados do país dividido até 9 de novembro
de 1989. A conclusão, para desespero do semanário alemão, é que, mesmo depois de 18
anos da queda do muro, 92% dos germânicos orientais, de 35 a 50 anos, ainda preferiam o
regime comunista ao capitalista. Já 60% dos jovens, de 14 a 24 anos que moram no Leste,
lamentavam que nada tivesse restado do comunismo na sua pátria.
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Cinema: from the Construction to the Fall of Berlin Wall
Abstract
This article presents a vast view of the filmography, especially the West German production,
on the separation of Germany, construction of the Berlin Wall, its fall, and on the reunification of
the country. This analysis explores the concepts of ideological propaganda that characterized
much film production during the Cold War. Finally, each film is commented, both in terms
of artistic and political view.
Keywords: Cinema. Cold War. Ideological Propaganda. Berlin Wall.
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