Da arte de simplesmente viver

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Da arte de simplesmente viver
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Relato de Trajetória
Da arte de simplesmente viver
Por Renate Esslinger
M
aio de 1958. Nasci em Monte Alegre (hoje Telêmaco Borba), Paraná.
Pai nascido na Alemanha, de cidadania austríaca por lá ter sido criado.
Mãe nascida na Hungria e criada na Áustria, país para onde fugiram do
severo regime.
Recordações tenho muitas de minha cidade natal, de nome original tão bonito.
Uma vila, para ser bem honesta, basicamente habitada pelos funcionários de
uma grande fábrica de papel. Tudo em Monte Alegre era unitário: um hospital,
uma igreja, uma escola pública, um clube, um hotel, uma banca de jornal, um
cinema. Tirando o mau cheiro causado pela celulose, lembranças puras e
bonitas. Fui uma criança de verdade, plena. Tenho lá minhas dúvidas, se
permitimos aos pequeninos de hoje serem infantis. Brinquei de tudo e mais um
pouco. Falava apenas alemão e aos 6 anos aprendi a ler e escrever com minha
mãe. Alemão, claro. Português aprendi, rapidamente e muito bem, na escola.
Em casa uma educação europeia, poderíamos até dizer rígida. Amor não
faltou. Na mesa pratos húngaros e austríacos. Feijão e arroz não. Na escola e
na comunidade, o modo mais brasileiro de viver e conviver.
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Mais de 50 anos. Dividi, subtraí, somei e multipliquei bastante e me considero
uma “boa média” de tudo aquilo que a educação europeia e a brasileira me
proporcionaram. Entendo bem o “jeitinho brasileiro”, mas respeito demais
compromissos assumidos e costumo não tolerar atrasos. Nem por isto me
considero intolerante!
Ouvi cedo a respeito da guerra, de bunkers, da fome. Pai, mãe, meus avós.
Sempre havia uma lembrança que partilhavam comigo e minha irmã.
Não era permitido desperdiçar comida, de forma alguma. Na cozinha, as
sobras de uma refeição viravam delícias do dia seguinte. Quem passou fome e
comeu “o pão que o diabo amassou” nas mãos da guerra, aprendeu a
reprocessar. Tenho para mim que até eu sou craque em reprocessamento. Só
não herdei os dons de minha avó e de minha mãe no que se refere aos doces
austro-húngaros. Infelizmente.
Mudamos para Lages, Santa Catarina e depois para a grande São Paulo. A
escola pública deixei para trás, em Monte Alegre. Em Lages e em São Paulo
frequentei escolas de freiras, o colegial técnico foi cursado no extinto Colégio
Sacré Coeur de Marie. E, na época, só havia meninas na sala de aula, meninos
e coisas assim eram tabu.
Idiomas sempre foram meu forte, minha paixão. Francês eu sabia pouco, mas
achava um charme. Inglês estudei bastante, inclusive por conta própria. Ups,
acho que esta coisa de estudar por conta não está muito na moda hoje.
Alemão eu continuava falando em casa e por aproximadamente um ano
frequentei em São Paulo o Instituto Goethe, para dominar melhor a complicada
gramática.
Completado o (então) colegial e após negociações com meu pai e uma família
conhecida dele em Hamburgo, norte da Alemanha, lá fui eu viver longe de
minha terra, de todos. A maioridade eu acabara de atingir.
Hamburgo, território definitivamente alemão. A minha nova família vivia cerca
de 18 km da cidade. Um casal jovem e duas filhas pequenas. Meus aposentos
no primeiro andar: um quarto amplo e um banheiro. A cozinha eu dividiria com
a família no andar de baixo.
Estudava todos os dias na Escola Superior de Comércio de Hamburgo. Muitas
matérias, todas lecionadas em alemão. E, obviamente, duas línguas
estrangeiras. Optei pelo velho e conhecido inglês e por espanhol, sem atinar
que anos seguintes este idioma seria de grande importância, principalmente
em nosso continente, entre outros em função do Mercosul. Para a escola eu ia
de ônibus e metrô. O último trecho ainda tinha de ser vencido a pé sob sol,
chuva ou neve. Registre-se aqui que neve nem sempre é sinônimo de beleza.
No centro de uma cidade a neve costuma se transformar em uma massa
escorregadia, bastante perigosa. Tombos levei alguns, mas nada grave.
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Eu também trabalhava como secretária trilíngue e dava aulas de inglês para
colegas da Escola de Comércio. Para economizar tempo e dinheiro, almoçava
gratuitamente na casa de uma de minhas alunas. A aula era dada logo em
seguida, antes de eu seguir para a empresa e trabalhar. Esta troca fazia muito
mais sentido do que almoçar no recém-inaugurado McDonald’s!
Fiz amizades na escola e também onde morava. Passei a namorar um rapaz
da minha vizinhança. Católica, com resquícios de minha educação rígida, sofri
consideravelmente. Sobrevivi, não há dúvida. Digeri aos poucos a nova cultura,
a nova postura de vida e passei a me sentir em casa.
Morei quase 3 anos na Alemanha, com uma passagem de 3 meses pela
sombria Londres. Voltei feliz ao Brasil, meus relacionamentos deixei para trás.
Apesar de compreender e respeitar a cultura alemã, sempre soube que meu
coração batia pelo Brasil em que nasci. Voltei cheia de emoções, fatos e fotos
reveladas à moda antiga e impressas em papel fotográfico.
Em 1978 foi fácil conseguir emprego em São Paulo. Secretária, tradutoraintérprete, professora de inglês e alemão, particular e em escolas de idiomas.
Não ganhava mal.
Minha mãe viria a falecer pouco tempo depois e em seguida, coração partido
pela ida da filha, minha avó.
Encontrei aquele que se tornaria o pai de meus dois filhos. A cultura
“avançada” da Alemanha havia deixado traços e eu não quis casar de papel
passado, não era coisa de mulher moderna. Moderno era “juntar”, passar a
morar com alguém. Dito e feito, não casei e não ganhamos presentes. A família
tradicional de meu companheiro não compreendia nossa postura. Mesmo
assim, sempre fomos marido e mulher e meus filhos foram registrados como
tantos outros. Amor jamais faltou e não falta até hoje.
Filhos, como acabo de mencionar, dois. Muito bem me recordo de educá-los
numa linha mais brasileira do que europeia, mostrando, no entanto, as
vantagens de certos aspectos menos latinos, se assim podemos dizer.
Cresceram saudáveis, inteligentes, filhos de mãe coruja. Concluída a
universidade, decidiram continuar a residir em Campinas.
Meu estado civil passou de “juntada” para separada, meu filho menor não havia
completado um ano. Sofri. Voltei a sorrir. Fiz novas amizades e voltei a sair de
mãos dadas. Caí na desilusão e voltei a erguer a cabeça. Fiquei mais exigente,
até menos flexível. Aprendi, porém, a viver um dia por vez, lembrando que
após a tempestade vem a bonança. Sou do tipo otimista, diga-se de passagem.
Depois de tempos bastante negros na economia brasileira, 1 real passou a
valer 1 dólar americano. Em junho de 1997 decidi então pegar a mochila
(literalmente) e zarpar para a Europa. Intenção era viajar de trem pela
Alemanha e a Áustria, dormindo na casa de velhos amigos, parentes ou em
albergues da juventude.
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Eu não pude deixar de incluir uma visita ao casal alemão com quem vivi 3
anos, cujas filhas estavam crescidas. Dieter e Renate, minha xará,
continuavam na mesma casa e confirmei que saudosismo pode ser algo
positivo. Tudo tinha um delicioso sabor de aventura e, como não podia deixar
de ser, os anos haviam deixado suas marcas em todos. Nada que não
pudéssemos encarar. Em meu roteiro ainda incluí um pedacinho da Dinamarca.
Mais uma vez voltei ao Brasil carregada de emoções, fatos e fotos impressas.
Um ruído quase imperceptível e, ao toque de um dedo (um tal “clique” no
mouse ou através da tecla enter), enviei uma mensagem via ICQ, em inglês
diz-se “I seek you”, eu lhe procuro. Nada que a nova geração entenda, está
ultrapassado. Hoje o chique é estar no facebook e tantos outros que nem
conheço. Mas voltemos ao que realmente interessa... Minha mensagem havia
sido enviada para inúmeras pessoas conectadas em diversas partes do mundo.
Mal sabia eu que minha vida daria uma guinada. 1998, agosto.
Em inglês perguntei se alguém poderia dar informações sobre o funcionamento
do tal ICQ. Eu não o via como monstro inoperável, mas confesso que não
compreendia muito bem seu funcionamento. Talvez nem bem a razão de sua
existência! Os jovens de hoje nascem “plugados” e são imediatamente
postados na rede. Sou mais do tipo antigo. Não que seja velha, apenas lembro
com saudade de épocas menos caóticas, onde tudo era menos frenético. Havia
tempo para digerir um fato e hoje os fatos parecem nos atropelar.
Seja como for, obtive diversas respostas desestimulantes de pessoas
estressadas nos cinco continentes do mundo: “Não tenho tempo para outros.”
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“Espero que alguém possa lhe ajudar, não posso.” “Lamento, estou super
ocupado.”
Eu não pretendia desistir. Aguardei. E repentinamente uma resposta mais
simpática: “Instalei ICQ há pouco tempo, não sei muito, mas posso tentar
ajudar. Árpád, Holanda”.
Quase caí da cadeira. Literalmente. Árpád, nome de origem húngara. E tudo
tomou outra forma a partir do momento em que informei ser filha de mãe
nascida na Hungria e criada na Áustria.
Árpád nasceu em 1947, filho de fugitivos da Hungria. Na Áustria, país neutro,
sua família ganhara abrigo em um campo de refugiados próximo à cidade de
Gmuend, no estado da Caríntia, onde meus pais haviam sido criados.
Cidadania austríaca, no entanto, Árpád jamais obteve.
Como coincidência pouca é bobagem, iniciou-se uma relação mágica, de
pequenos e grandes fatos, em cores diversas, em sons estonteantes,
envolvendo muitas cartas longas, minhas para Árpád e dele para mim, inclusive
postadas do Iêmen, onde Árpád fora passar 5 semanas em setembro/outubro
de 1998. Eu havia completado 40 anos em maio daquele ano e ele completaria
51 em outubro do mesmo ano. Ele também separado.
Em dezembro de 1998 o primeiro encontro. Aeroporto Internacional de
Guarulhos. Coração inquieto. Na ala de desembarque o primeiro abraço,
bastante forte e carinhoso. Eu havia levado ao aeroporto taças de cristal e um
espumante para celebrar o momento que eu imaginava mágico. Eu até
arriscaria dizer que foi amor à primeira vista. Bem sabemos que o amor não
conhece idade.
Faceiros e falantes seguimos para minha residência em São Paulo, onde meu
pai nos encontraria. Afinal, quem era este homem que eu levava para dentro de
casa?
Dito e feito. Meu pai apareceu assim que chegamos e eu acabei ficando meio
de lado. Pudera! Ambos começaram a devanear sobre os livros de Karl May,
alemão, autor de livros de viagens e aventuras no Oriente, na América do Norte
e América do Sul. Leitura recomendada, diga-se de passagem. Bom foi ver que
se tratava de um homem culto, versado e, por outro, bastante simples. Viajado
também. Aliás, ele ficaria 20 dias no Brasil. Tivemos momentos a dois e em
família, por ocasião do Natal. Meus filhos, minha irmã e amigos o conheceram.
Aprovação unânime.
Como não podia deixar de ser, viajamos um pouco. Passamos pelo Rio de
Janeiro, por Búzios e demos uma esticada para Ilha Grande. E passamos por
Cunha, Estância Climática entre São Paulo e Rio de Janeiro. Fotos há, estão
bem organizadas em álbuns. A fotografia digital estava engatinhando.
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Aqui vale arriscar e dizer que provavelmente muitos gostariam de saber se
“consumamos” nosso primeiro encontro. Fato é que demorou e o restante não
será revelado. Justo assim, ou?
Quando nos despedimos no aeroporto de Guarulhos, momentos de tristeza. Eu
tinha para mim que jamais voltaria a ver este homem. Para uma viagem à
Europa eu não tinha dinheiro e ele certamente não retornaria para um
reencontro.
No entanto, nosso desejo de reencontro foi maior. Aeroporto de Bruxelas, junho
de 1999. Nosso primeiro encontro em território europeu. Após 2 dias
maravilhosos na encantadora capital belga, seguiríamos de carro para a
Holanda. Fique aqui registrado que fui a convite dele, passagem aérea por
conta daquele que havia vindo ao Brasil no final de 1998 para me conhecer.
Árpád havia preparado tudo para me receber em sua casa geminada e
alugada, em Venray, no sudeste da Holanda. Tudo simples, mas confortável e
ajeitado. Um homem divorciado que sabia cuidar de si e que acabou se
revelando um perfeito chef de cuisine. Conheci também seu filho e sua filha.
Não que eles ainda residissem com ele, mas a curiosidade era mútua. Afinal, o
pai abria as portas de sua casa para uma mulher que acabara de conhecer
num longínquo país da América do Sul.
Eu havia planejado ficar aproximadamente 40 dias na Europa. Queria viajar um
pouco e conhecer melhor o homem que a tecnologia havia colocado em meu
caminho. Nada como pensar em um merecido recomeço!
Como não podia deixar de ser, esta viagem tornou-se um importante marco em
minha vida. Ambos tínhamos redescoberto o amor. Não faltaram passeios de
mãos dadas, risos, uma boa garrafa de vinho para acompanhar momentos
ternos. Lágrimas discretas rolam pela minha face no exato momento em que
digito estas palavras. Recordar é viver!
Quando retornei ao Brasil estava mais tranquila, pois sabia que nos veríamos
ao menos duas vezes ao ano, por um período de 30 a 40 dias cada vez. Uma
forma de cultivar nossa relação apesar da distância. O voo São PauloAmsterdam, quando direto, é coisa relativamente rápida. Contando a ida ao
aeroporto, o check-in, a espera, o controle alfandegário e o trajeto até a
residência, uma viagem de 16 a 22 horas, dependendo das circunstâncias.
Nada que nos fizesse desistir de nossa proposta.
Como combinado, em dezembro de 1999 Árpád desembarcou em São Paulo.
Um pouco de rotina e algumas viagens. O Natal foi comemorado com minha
família em São Paulo e a virada 1999-2000 passamos no Rio de Janeiro. Uma
virada de dar inveja, tudo para entrarmos bem no novo milênio. Não parece
que foi ontem? Fotos foram tiradas muitas, mas apesar do novo milênio
continuávamos com nossa câmara analógica.
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2000 acabou, sendo efetivamente um ano diferente. É muito bom quando
percebemos que a vida nem sempre nos conduz pelos mesmos caminhos!
No carnaval de 2000 Árpád veio ao Brasil com sua filha. Uma viagem curta, de
10 dias. Mesmo assim pudemos curtir as escolas de samba no Sambódromo
de São Paulo, uma experiência única para todos.
Em uma certa madrugada, de maio do mesmo ano, meu sono foi interrompido
pelo barulho de um carro parando em frente à entrada principal de minha casa.
Minha janela dava para a rua. Ouvi passos e achei que alguém havia aberto o
portão. Chamei um de meus filhos, preocupada. Ambos, ainda sonados,
começamos a descer a escada em direção à sala. No meio da escada, o susto.
Árpád de braços abertos e um enorme sorriso estampado no rosto: “Surpresa,
cheguei!” Inacreditável, mas lá estava ele, em carne e osso. Viera para meu
aniversário. Ele, o presente em pessoa. Não pensem que pulou o portão ou
arrombou a porta, eu havia dado as chaves de casa para ele em nosso último
encontro, sem imaginar que ele faria uso dela tão rapidamente.
O que fazer? Deixar a cara de espanto de lado, pedir para meu filho voltar a
dormir e dar um forte abraço e beijo no homem que ali estava. Um gentleman
que havia viajado quilômetros e quilômetros para me parabenizar pelo
aniversário. Os pequenos gestos que fazem a grande diferença. A qualquer
momento da vida.
Foi um aniversário diferente e duas semanas mais tarde nos despediríamos
novamente no aeroporto de Guarulhos. Definitivamente eu não embarcaria
para a Europa em junho, mas sim em dezembro de 2000 para passar o Natal e
o Reveillon em território frio, com uma das irmãs de Árpád na Suíça e com
parte da família de meu pai na região da Floresta Negra, Alemanha.
Em 3 de junho de 2001 desembarquei mais uma vez na Holanda, sem ter
noção da emoção que eu sentiria nos 40 dias seguintes.
Apenas alguns dias após minha chegada, pegamos o carro e fomos até
Munique para visitar Elisa e Karl. Elisa tinha sido minha aluna particular de
alemão em São Paulo em duas ocasiões diferentes. Aos 12 anos pela primeira
vez e, após uma longa pausa, aos 20 anos, na condição de universitária. Foi
neste período que ela conheceu Karl em Munique durante um de seus cursos
de alemão. Conversa vai, conversa vem, casaram e hoje vivem com um lindo
menino em Munique. A vida não dá ponto sem nó!
Naquele verão europeu de 2001 eu procuraria conhecer melhor a terra natal de
minha mãe, Hungria. Terra natal também da família de Árpád. Dois adultos à
procura de uma conexão com o passado, com a história de suas vidas. Somos,
afinal, uma somatória do ontem, do hoje e, inclusive, do amanhã, o qual
podemos influenciar de alguma maneira.
As estradas, as cidades e o povo da Hungria... Descortinávamos um mundo
que jamais imaginei poder conhecer. Não resta dúvida de que foi de grande
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vantagem estar ao lado de um homem com domínio pleno do idioma húngaro,
já que poucos na Hungria falavam inglês.
Foram dias fantásticos. Provamos os deliciosos vinhos húngaros na região de
Tokai e nos familiarizamos um pouco com a música húngara. A comida
regional, que ambos já conhecíamos de casa, nos deixa com água na boca até
hoje. No Balaton, maior lago da Europa, curtimos sol, sombra e água morna.
De barco passeamos pelo famoso Rio Danúbio, não necessariamente tão azul
quanto na valsa, mas muito bonito. Visitamos não apenas a capital, Budapeste,
mas também diversas cidades do interior, inclusive a cidade natal de minha
mãe. Emoção pura foi passear pela rua onde meus avós haviam criado minha
mãe durante os primeiros anos de vida dela! Para eterno registro de um
pedacinho de meu passado, guardo até hoje uma foto que tirei da casa que um
dia havia sido o lar de minha mãe!
http://youtu.be/tcD-Pf6v4xI - Hungria, Budapeste
Mas consegui muito mais com a ajuda de Árpád. Uma tarde batemos à porta
da paróquia da igreja católica da cidadezinha de Bátaszék. Abriram a porta
apesar do horário. Não poderiam atender mais ninguém. Árpád então explicou
calmamente que eu viera do Brasil, portanto de muito longe, para obter
informações sobre minha mãe. A igreja certamente teria o livro de batismo.
Pudemos entrar e, alguns momentos depois, após informar a data de
nascimento de minha mãe, conseguimos localizar o nome dela e dos pais no
livro de batismo. Reconheci, inclusive, a inconfundível assinatura de meus
avós. Ela fora batizada em 11 de janeiro de 1933. Não preciso dizer que meu
coração disparou de alegria.
No cartório consegui uma certidão de nascimento de minha mãe, a qual guardo
no álbum que fiz. Minha mãe perdera a cidadania quando tiveram de fugir da
Hungria para a Áustria. Este documento faz parte de uma longa história de
minha família.
Neste mesmo verão passamos pela cidade natal de Árpád na Áustria.
Visitamos o local onde um dia havia sido erguido o campo de refugiados, seu
lar por 10 anos. Seus pais também haviam fugido da Hungria. Cidadania
nenhum deles tinha, nem húngara, nem austríaca. Mais adiante eles
escolheriam a Holanda para viver, e foi este país que concedeu a todos um
passaporte holandês.
Nosso modo simples de viajar, como mochileiros, pernoitando em albergues ou
pousadas simples, faz com que nosso dinheiro renda mais. Importante é
conhecer o maior número de lugares do mundo e absorver muito dos infinitos e
variados aspectos que cada pedacinho de chão revela.
No dia 13 de julho de 2001, carregava não apenas minha bagagem corriqueira
de volta ao Brasil, mas alguns quilos a mais de sabedoria, de vivência e de
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história de minha família. Deixei a Europa com a certeza de que em cada
despedida mora um recomeço.
Em dezembro de 2001, como não podia deixar de ser, Árpád, mais uma vez,
desembarcou no Aeroporto Internacional de Guarulhos, desta vez
acompanhado de sua irmã que mora na Suíça.
Nosso natal em terras brasileiras foi regado a maravilhas da cozinha alemã,
austríaca e húngara. A irmã dele caprichou especialmente nas bolachas
tipicamente natalinas e eu acabei por vivenciar um natal similar a tantos de
minha infância.
Logo após o período natalino minha casa em São Paulo tomou dimensões
irreais. Sobrava espaço. Meus filhos já não moravam comigo. Eu era
autônoma, secretária, professora e tradutora-intérprete. Nenhum contrato me
prendia. Eu sonhava em ter companhia, em compartilhar coisas do cotidiano.
Em 25 de janeiro de 2002 a cidade de São Paulo comemorava mais um
aniversário, e eu embarcava para a Holanda, exatamente no mesmo dia em
que Árpád e sua irmã deixavam o Brasil. Só não conseguimos embarcar no
mesmo voo, mas o aeroporto de desembarque era o mesmo, com
aproximadamente 2 horas de diferença no horário de chegada.
Parte de minha mobília eu havia doado, parte fora vendida. Livros também
foram parcialmente doados e outros meus filhos carregaram para a casa do
pai. Minha casa seria habitada por estranhos que haviam fechado um contrato
de locação alguns dias antes da viagem. Pai, irmã, sobrinho e filhos eu deixava
para trás. Um enorme passo em minha vida. Aos quase 44 anos um avião me
conduzia para longe. Comigo apenas o indispensável para não perder
totalmente minha identidade e lembranças.
Nas nuvens adormeci ciente de que eu havia respeitado meu momento, meu
desejo de reiniciar, de renovar. Imprescindível é nossa força de vontade. Eu
havia dado início a uma nova e longa jornada.
Casa geminada em estilo tipicamente holandês, 3 dormitórios, cozinha, sala,
banheiro e lavabo. No banheiro, um chuveiro e a máquina de lavar roupa. No
lavabo, o vaso sanitário. Não há área de serviço, não há tanque de roupa, mas
um pequeno quintal. Tudo perfeitamente simples, de excelente tamanho para
um casal. Uma das primeiras coisas que fiz foi dar um “jeitinho” no quintal. Um
toque feminino do lado de fora da casa.
Deixe-me explicar que a falta de uma área de serviço e de um tanque não era
necessariamente privilégio meu. Em diversos países da Europa não se usa o
tanque, tudo vai para a máquina e pronto. Outra coisa que chama a atenção é
o uso bem mais racional da água. Afinal, trata-se de um bem que se torna cada
dia mais escasso. O uso é consciente. Na cozinha e no lavabo não há
necessariamente um ralo para escoar a água. O piso é muito bem limpo, mas
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com pouca água, nada que um balde e um pano não resolvam. No banheiro o
único ralo é o do chuveiro.
Afinal, onde fui parar? Em um lugar moderno, no sudeste da Holanda, na
pacata cidade de Venray, com cerca de 45.000 habitantes. Os “cafés”, com
mesas ao ar livre, lotados nos dias quentes do verão. Em agosto uma
quermesse que até hoje atrai milhares de pessoas da região toda, com direito a
uma roda (não necessariamente tão) gigante, modernos brinquedos para
brincar de astronauta e as tradicionais barracas de tiro e de pesca, tudo do
jeitinho que eu bem recordo de minha infância e juventude no interior do
Paraná e de Santa Catarina.
O carnaval também é celebrado todos os anos, mas apenas no sul e sudeste
do país. Sorte a minha, não? Gente fantasiada e carros alegóricos desfilando
pela cidade em pleno inverno, um fato que vivenciei boquiaberta. Ou seja, sou
mais nosso carnaval no verão.
Eu não estava de férias desta vez, havia chegado para ficar alguns anos. Nada
de respirar fundo e descansar. Aprender holandês, minha primeira tarefa. Voltei
a ser aluna, a abrir livros, a fazer lição. Estudei muito, diariamente, em casa e
na escola. Rapidamente dominei o idioma e fui trabalhar na Herbalife,
primeiramente no setor de montagem de “kits”, e depois no setor “pick & pack”.
Trabalho relativamente pesado, braçal. É o que consegui, é o que peguei. Aos
45 anos meu corpo reclamou, mas me mantive firme e forte. Tendinite tenho
até hoje.
Uma de minhas primeiras aquisições na Holanda foi uma bicicleta de 7
marchas. Apesar de o país ser plano o vento pode dificultar muito as
pedaladas. Por isto todos preferem uma bicicleta com muitas marchas. Para o
trabalho eu ia, na maioria das vezes, de bicicleta, inclusive quando meu turno
começava às 6 da manhã em pleno inverno, ou quando chovia forte.
Rapidamente parti para minha segunda aquisição crucial: roupa especial para
pedalar sob chuva. Acreditem, a adaptação não ocorreu da noite para o dia,
mas eu posso afirmar e reafirmar que somos capazes de muito mais do que
imaginamos. Precisamos apenas ser confrontados com novas situações, novos
desafios.
França, Inglaterra, Alemanha, Áustria, Itália, Espanha, Egito, Suíça, Hungria,
Grécia...
Na Áustria voltamos ao estado da Caríntia e visitamos a cidade de Gmuend, na
qual meus pais residiram durante anos. A casa de meus falecidos avós
paternos continuava intacta. Lindas recordações de minha primeira viagem à
Europa com meus pais e minha irmã em 1973.
Nossa bagagem se resumia geralmente a uma mochila nas costas.
Pernoitávamos, sempre que possível, em albergues da juventude, devidamente
equipados para receber pessoas de todas as idades. O tipo de albergue varia
de país para país, de cidade para cidade. Os preços também. Entretanto,
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costumam ser uma boa opção, ao lado de alojamentos “Bread and Breakfast”,
comparáveis de certa forma às pousadas simples no Brasil.
http://youtu.be/WqVKNbxl_38 - Um giro pela Holanda
http://youtu.be/wS2LLiF8zf8 - Diversos países
Quando fomos ao Egito, entramos no esquema “pacote”. Pegamos um avião e
depois um barco que percorreu o Rio Nilo de Luxor até Assuan, passando por
diversas maravilhas do país. Coisa de arrepiar. Em Assuan pegamos um trem
até a capital, Cairo, onde nos apaixonamos pelo Museu Nacional. História que
não acaba mais!
A cidade em si, muito tumultuada. Cairo transpirava caos 24 horas por dia. No
trânsito, o desrespeito aos semáforos quase nos matou, a mim literalmente.
Por muito pouco não fui atropelada ao atravessar uma avenida. Diga-se de
passagem, que o sinal vermelho não era para mim, mas para os carros. Nada
disto tem importância em Cairo e se você pretende passar por lá um dia
desses, lembre-se de seguir meu conselho e ficar sempre de olho bem aberto.
Voltando ao cotidiano na Holanda...
Apesar da meia-idade, estávamos nos adaptando facilmente às mudanças e
nossa vida prosseguia cheia de novidades. Conheci os amigos de Árpád e
juntos fizemos novos. Jogávamos tênis, íamos ao cinema e a shows.
Emocionante demais foi ver Simon e Garfunkel ao vivo. Sessentões e um
grande show. Gente que confirma que o céu é o limite, não a idade. E às vezes
tenho para mim que nem o céu nos segura.
Confesso que aguentei firme o período na Holanda porque vinha ao Brasil uma
vez por ano, sempre no inverno europeu, em companhia de Árpád, buscar o
calor da família e do sol tropical. Reabastecer era preciso, matar a saudade era
preciso. Foi nestas idas e vindas que acabamos conhecendo algumas capitais
da América do Sul. Também aproveitamos para visitar uma tia minha (de mais
de 85 anos) e seus filhos na Venezuela. Mais uma vez eu buscava entender
melhor a história de minha família, a minha história.
Em junho/julho de 2002, apenas alguns meses após minha chegada em
Venray, fiquei feliz ao receber meus dois filhos e meu sobrinho em meu novo
lar. Os três, então adolescentes, curtiram muito as viagens de carro que Árpád
e eu proporcionamos por alguns países da Europa. Cultura para todas as
idades.
Nem sempre tudo correu perfeitamente, nem sempre as coisas se encaixaram
de imediato, mas para tudo havia, de alguma forma, uma solução. Positivos
precisamos ser, sempre, isto ajuda bastante. Não há uma fórmula mágica.
Os anos foram passando, às vezes tão rapidamente que tínhamos a impressão
de não mais poder acompanhar o tempo. Uma certa sensação de não estar
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fazendo a coisa da forma certa. Pessoalmente, resolvi relaxar e seguir, sem
mais delonga.
Momentos de grande tensão. Abril de 2007. Logo após nosso regresso de uma
belíssima viagem à cidade de Atenas, constatou-se que Árpád tinha câncer e
era necessário operar com urgência. Não hesitamos e em menos de 2
semanas o tumor foi retirado com sucesso. A tensão diminuiu, mas jamais nos
deixou por completo nos 5 anos seguintes. Resolvemos cultivar nossos planos
para o futuro próximo com mais veemência. A viagem pelo mundo que estava
há tempos planejada, iria acontecer, nada nos impediria. Sabíamos que
controles periódicos teriam de ser feitos, independente de onde estivéssemos.
Pensamento positivo. À luta!
Por fim chegou o dia da festa de despedida de Árpád. Setembro de 2007.
Despedida do hospital onde havia trabalhado durante 32 anos de seus 42 anos
de trabalho. Aposentadoria aos 60, uma opção que significaria menos dinheiro
no final do mês, porém a chance de realizar rapidamente seus sonhos.
Nada de perder tempo. Aliás, Árpád sempre pretendeu viajar tão logo se
aposentasse. Mais razão agora. Em outubro de 2007 embarcávamos de
mochila nas costas para uma jornada de nove meses, começando por alguns
dias em Madrid, depois Brasil para rever a família e os amigos. E daí pra frente:
Chile, Ilhas Fiji, Austrália, Tailândia, Mianmar, Cambódia, Índia, entre outros.
De avião percorremos apenas os trechos mais distantes, o resto fizemos de
trem, ônibus, caminhão, van, camelo, etc. Não pensem que se tratava sempre
de veículos de luxo. Longe disto muitas vezes.
Mianmar, um país que nos tocou muito, infelizmente sob regime ditatorial.
Visitar Mianmar é voltar no tempo, pois os carros são antigos e seus bancos
costumam ser puídos. Os homens vestem saias, os longyi. As mulheres e
crianças usam um pó branco chamado thanaka que protege a pele do sol.
Monges são venerados e respeitados. Cedinho, descalços, percorrem as ruas
com seus potes, pedindo alimentos aos moradores. Para não colaborar
diretamente com o governo ditatorial, procuramos evitar hotéis do governo e
ficamos em pousadas mais simples, familiares. Outra dica é evitar agências de
turismo e espalhar seu dinheiro, não comprar tudo em um só lugar. Quando o
artesanato nos atraiu, compramos sempre diretamente dos artesãos.
Mianmar, um país de templos e estupas, um povo de fé. Ensurdecedor é o som
na fábrica de folhas de ouro, usadas por fiéis de vários países asiáticos como
oferenda ao Buda. Ou seja, folhas de ouro são coladas sobre estátuas de
Budas, escondendo tantas vezes detalhes interessantes. Há estátuas vigiadas
24 horas por dia.
http://www.youtube.com/watch?v=Lca6fbIQcRM&feature=related – Folhas de
ouro
http://youtu.be/jsNooOGuq7s - Mianmar, rostos
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http://youtu.be/VuGXeX8xPG0 - Mianmar, bike tour
http://youtu.be/DAqtAi8Ojkk - Mianmar - Monte Popa
Índia, um país que parece encontrar-se em outro mundo. Definitivamente, a
Índia é um outro mundo. Andamos com segurança pelas ruas de inúmeras
cidades, entre hinduístas, muçulmanos e budistas. O respeito ao ser humano e
a tantas outras criaturas é grande. Nada nos deteve ou derrubou. Bem, quase
morremos na Índia, mas a culpa teria sido do motorista que não se incomodava
em afirmar e reafirmar “Indians are crazy”. Mais do que isto, todos lá dirigem
acreditando que realmente há sete vidas. Por um momento também acreditei
nisto, já que Árpád e eu sobrevivemos a inúmeras ultrapassagens
arriscadíssimas, tudo devidamente documentado. Diga-se de passagem, que
nós estávamos sentados nas primeiras poltronas, atrás de nós o segundo casal
estrangeiro. A jovem não aguentou, resolveu fechar os olhos e dormir, o
companheiro preferiu continuar nervoso. O restante dos passageiros não se
incomodava com absolutamente nada. Eram indianos. Índia, lugar de tantas
contradições, de tantos credos. Índia, ame-a ou deixe-a, não há meio-termo. Só
não pegue ônibus!
http://youtu.be/R27JaD-bHKc - Índia
Austrália. Charmoso, um país de superlativos. Os caminhões mais longos do
mundo, com inúmeros vagões, encontram-se neste país. São denominados
“road trains”.
As praias mais paradisíacas do mundo encontram-se no Norte e Nordeste da
Austrália. Pasmem. Trata-se de praias que estão sempre desertas porque são
frequentadas por animais perigosos.
Há os crocodilos de água salgada (Crocodylus porosus), os quais chegam a
medir 6m de comprimento e são encontrados nos oceanos, bem como a
centenas de quilômetros dali, em rios, planícies inundadas e pântanos.
Outro superlativo fica por conta dos crocodilos de água doce.
Um dos mais mortais animais do planeta, o “Box Jellyfish”, é uma água-viva,
com corpo meio quadrado, a qual habita o Norte e Nordeste da Austrália,
podendo ser encontrada por toda a extensão da Grande Barreira de Corais. A
toxina presente nos tentáculos, que chegam a alguns metros de comprimento,
é tão forte que os poucos sobreviventes descrevem a dor como um choque
elétrico constante. Após o contato, a pessoa provavelmente sairá do mar
gritando e irá desmaiar na areia com marcas no corpo como se fossem
chicotadas. Dependendo da extensão da área afetada, a vítima pode sofrer
parada cardio-respiratória em menos de 3 minutos. A “Box Jellyfish” é
responsável por mais mortes na Austrália que tubarões, crocodilos e cobras.
Das 10 cobras mais venenosas no mundo, 8 são cobras da Austrália. Verdade
verdadeira.
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Por último cabe mencionar o grande “outback”. É tudo aquilo que não está no
litoral ou perto de grandes cidades. Literalmente, é "tudo o que está para trás".
No fundo, no fundo, é um lugar na esquina do nada com coisa nenhuma. Só
para se ter uma ideia do tamanho, o “outback” engloba 2/3 de todo o território
australiano. O “outback” tem um significado espiritual para os Aborígenes que
lá vivem há mais de 40 mil anos e cuja história está contada sob a forma de
desenhos em pedras e cavernas. Eles receberam títulos de terras do governo
australiano, razão pela qual a maioria das vilas e aldeias Aborígenes na
Austrália de hoje estão no “outback”.
Não cabe dissertar muito mais sobre os diferentes países pelos quais
passamos. Talvez eu possa escrever sobre isto outra hora.
Seja como for, Árpád teve de fazer seus exames de controle do câncer durante
nossa viagem. Foi em um hospital de Sidnei, Austrália. Tudo estava bem. De
seu cunhado, residente em Sidnei e paciente terminal de um câncer que o
venceu, nos despedimos. Aliviados e tristes prosseguimos nossa jornada. Nem
tudo é sempre perfeito!
Maio de 2008. Em Nova Déli pegamos o último vôo de nossa longa jornada.
Destino: Amsterdam. De Amsterdam para a casa do irmão de Árpád em Venray
e depois para a casa do filho dele na cidade de Arnhem. Nossos pertences
pessoais acomodados em diversas malas, sacolas e bolsas. Afinal, nossa casa
em Venray, alugada, havia sido desmontada antes de nossa longa viagem.
Móveis foram doados, vendidos ou sucateados. Havia apenas doces
lembranças do que fora nosso abrigo e lar por tanto tempo.
Em agosto regressamos ao Brasil para o aniversário de meu pai e
aproveitamos para ficar um período mais longo em Cunha, a cidade que nos
abrigaria no futuro próximo, que eu já conhecia há mais de 20 anos.
Antes do final do ano retornamos para a Holanda e celebraríamos o Natal e o
Reveillon em território europeu, perto da filha e do filho de Árpád.
Aproveitaríamos também para marcar a data de nosso casamento na prefeitura
local.
Nossa pretensão inicial não era casar de papel passado. Eu não havia casado
jovem e não fazia questão de casar aos 51 anos. Em minha concepção, o
casamento é muito mais do que um juramento e assinaturas. Decidimos pelo
casamento após uma longa e martirizante jornada pelo sistema burocrático
brasileiro, que nos fez desistir de requerer o visto de permanência para Árpád
com base em nossa união, mais do que estável e duradoura. O visto já havia
sido negado uma vez.
No início de janeiro de 2009 embarcamos para o Brasil com o filho de Árpád, o
qual estava curioso para conhecer o país e a cidade que abrigaria o pai dele.
Confesso que foram dias maravilhosos, principalmente em Cunha, onde
pudemos ajeitar nossa futura moradia.
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De volta à Holanda, no dia 17 de agosto de 2009 uma simpática juíza de paz
nos declarava oficialmente marido e mulher pela lei holandesa. Teve então
início uma segunda jornada pela burocracia, desta vez através do consulado
brasileiro na cidade de Roterdam. O visto de permanência seria concedido, não
havia dúvida, era realmente apenas uma questão de tempo. E tempo não nos
faltava.
Primeira vitória! O visto permanente foi concedido e Árpád tinha um prazo
relativamente curto para entrar no Brasil e se apresentar em uma unidade da
Polícia Federal para requerer seu Registro Nacional de Estrangeiros.
Desembarcamos em Guarulhos em outubro de 2009 e de lá seguimos
diretamente para nosso novo lar na pacata Cunha, cerca de 250 km da grande
São Paulo.
Segunda vitória! Em março de 2010 Árpád recebeu seu RNE com permanência
indefinida. Havíamos vencido a burocracia e estávamos finalmente prontos
para relaxar e aproveitar ainda mais as belezas da vida, lembrando que Árpád
venceu a luta contra o câncer, mas que controles periódicos serão sempre
necessários. Nada que não possamos encarar!
2012. De Cunha saímos pouco desde que chegamos para ficar. Não que
estejamos congelados ou receosos, é que por aqui há muito para fazer.
Aposentados continuamos, porém nosso espírito não permite a ociosidade e
resolvemos nos dedicar à arte de fotografar e filmar, sendo que encontramos
nossa maior inspiração na fauna e na flora que nos rodeia. Não deixamos de
registrar a cultura local, tanto que Árpád já fez um filme sobre a olaria artesanal
de Cunha, o qual recebeu menção honrosa no Mapa Cultural Paulista 20112012.
Não posso deixar de citar também que nosso hobby fotográfico rendeu belas
exposições:
• Em abril de 2010 “Mianmar e Índia pela lente de dois mochileiros”,
realizada no MIS de Campinas. (fotos tiradas entre setembro de 2008 e
maio de 2009).
• Entre 4 de setembro de 2010 e 12 de outubro de 2010 a exposição
“Cunha em Foto & Arte”, na Estância Climática de Cunha, com fotos
nossas e trabalhos dos artistas Ute M. Emminger e Fernando Thommen,
hoje residentes em Berlim.
• Em julho e agosto de 2011 a exposição “Pássaros da Mata Atlântica”,
também realizada na Estância Climática de Cunha.
• De 7 de julho a 9 de setembro de 2012 o Parque Estadual da Serra do
Mar, Núcleo Cunha, manteve o exposição fotográfica “Parque Macro-
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Micro”, com mais de 40 imagens nossas que destacam a belíssima
natureza encontrada em tão rico ambiente.
Tempo nos toma também nosso projeto “canto sem fronteira”, através do qual
pretendemos esclarecer a população mais jovem sobre os perigos envolvidos
no tráfico de aves silvestres, infelizmente bastante comum na região. Visitamos
as escolas da cidade e da zona rural, mostrando um vídeo produzido por nós, o
qual revela a beleza de pássaros em liberdade e poucas cenas de pássaros
engaiolados, enfatizando que a captura e a comercialização de qualquer
espécie de ave silvestre é crime. Cientes de que o jovem de hoje é nosso
futuro, investimos massivamente nele.
Como o tráfico de aves silvestres envolve outros países, disponibilizamos
nosso vídeo no YouTube em 6 idiomas estrangeiros e em português
(http://www.youtube.com/watch?v=-nWS8ztOFhk). Se não houver mercado, a
caça diminui.
A esse respeito também demos uma entrevista publicada no Portal do
Envelhecimento: “Amorosa conexão que envolve viagens, pássaros, filmes...”
(http://portaldoenvelhecimento.org.br/noticias/entrevista/amorosa-conexao-queenvolve-viagens-passaros-filmes.html).
Para nós não existe estresse, apenas uma agitação saudável que não nos
permite cochilar no ponto. Envelhecer é fato, mas envelhecer sem perspectiva
é opção, ao menos na classe privilegiada. Se não tivemos a oportunidade de
desenvolver paixões ou hobbies durante o período de nossa vida em que
estávamos ocupados em nascer e morrer, é necessário descobrir nossas
preferências um pouco mais adiante, quando nos dedicamos ao envelhecer.
Aumentamos desta forma, ao menos ao meu ver, a chance de uma vida mais
plena na idade avançada.
Verdade é que a aposentadoria não nos limita necessariamente, ela pode
inclusive nos conduzir por caminhos jamais percorridos antes. Temos de estar
abertos e aceitar nossa nova condição e nossas limitações, mas jamais
devemos nos render.
Tenho para mim que o segredo reside, entre
outros, em valorizar as pequenas coisas. Árpád
viveu até seus 10 anos de idade em um campo
de refugiados, conheceu apenas as coisas
simples, não havia outras em seu mundo. Eu
passei 9 anos de minha vida no interior do
Paraná, cheirando as flores de nosso jardim,
brincando de amarelinha e queimada, subindo
em árvores. Simples assim.
Certo é que o tempo só anda em uma direção. Temos de andar com ele,
procurando novos caminhos a cada amanhecer. Aprender e ensinar, sempre.
Nada é mais sublime do que a arte de simplesmente viver. Carpe diem!
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Data de recebimento: 06/10/2012; Data de aceite: 17/10/2012
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Renate Esslinger - Secretaria Trilíngue. Professora de inglês e alemão. Seu
hobby é a fotografia, que abriu um novo espaço de atuação visando a
conscientização sobre a preservação do ecossistema, por meio de exposições
fotográficas e debates em escolas. E-mail: [email protected]
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