25 anos de viagens
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25 anos de viagens
0 Apresentação Nasci durante a segunda guerra mundial, uma espécie de precursor do baby-boomer de pós-guerra. Meu pai foi um self-made-man, formado em direito, funcionário publico federal. Minha mãe ficou órfã recém-nascida e foi „criada com vó‟, de forma que era dengosa. Tiveram cinco filhos que educaram com extrema dedicação e carinho. Desde pequeno que sou um leitor regular e depois de maduro comecei a escrever. Minha irmã, que tem um doutorado em língua portuguesa, sempre critica meus escritos, argumentando que ficam com um estilo de relatório técnico! Sou geólogo profissional e navegador amador. Casei aos 25 anos com uma estudante, filha de militar, com quem tive um casal de filhos. Fizemos algumas viagens „préhistóricas‟, isto é, que não foram registradas em relatório: visitamos de carro as cataratas de Iguaçu antes da construção da barragem, descemos o Amazonas a partir de Manaus num navio de cruzeiro, atravessamos do lago Titicaca para visitar Macchu Picchu. Com 5 anos de casado tive a oportunidade de fazer um mestrado no exterior e escolhi a Universidade do Texas em Austin, EUA, para onde fui com a família. Na volta a mãe dos meninos resolveu separar e fizemos um divórcio amigável. Foi a partir dai que passei a viajar sistematicamente nas férias, um comportamento viciante que teve continuidade na fase de aposentado, quando embarquei Mila, a tripulante que deu certo, e aconteceu também me tornar avô babão. No meu arquivo são 54 relatórios de viagem cobrindo aspectos da história, geografia e geologia de todos os continentes, incluindo velejadas em cruzeiros pelo Caribe e Polinésia, mais quatro travessias a vela do oceano Atlântico, e seis cruzeiros e regatas na costa brasileira. Destes relatórios resolvi selecionar 27 para compor um e-book no intuito de ocupar dignamente o tempo de aposentado, enquanto aguardo Mila se aposentar para que possamos nos mudar para o Pinauna 7, um veleiro „de responsa‟ preparado para nos levar até o farol do fim do mundo. O que observei neste período em cada local visitado tem que ser associado a uma data. Por exemplo, Londres de 1987 é uma cidade britânica, em 2011 é uma cidade muçulmana. Nos países ditos emergentes o contraste no final do Sec.XX é gritante: Carmópolis, no interior de Sergipe era uma vila onde se instalou a Petrobras para desenvolver um campo de petróleo. Morei lá no final dos anos de 1960. Passei lá em 2005 e simplesmente não reconheci a cidade. Isto sem falar na China, onde se constrói um prédio em uma semana. A fila anda... As viagens estão aqui relatadas em ordem cronológica, a partir de 1991, ser agrupadas geograficamente: mas podem 1. Américas 1.a- Amazônia (2002.03,05) 1.b- Brasil de norte a sul 1989,2005[3], 2008 [2], 2010,2011 1.c- América do Norte (1994,99,2006) 1.d-América Central (1995,2009) 1.e- Cone sul da América do Sul (1990,95,2010) 1.f- Galápagos (2010) 1 2. Europa 2.a- Europa latina (2004,2007) 2.b- Anglo-saxônica (2007,2011) 2.cEscandinávia (1997) 3. Oceania 3.a- Austrália (1985) 3.b- Nova Zelândia (2006) 4. Ásia 4.a- Rússia (1991) 4.b- China (1993) 4.c- Extremo Oriente (1993) 5. África 5.a- África do Sul (2003) 5.b- Angola (1982) 5.c- Marrocos (1996) 5.dEgito (2012) 6. Velejando em cruzeiros e em travessias oceânicas 6.a- Caribe (1988, 1996,2003,2012) 6.b- Polinésia (1989) 6.c- Travessias do Atlântico (1998, 2000,2001.2003) 6.d- Cruzeiros e regatas na costa brasileira (1988,1989,1992,1997,2008,2011) Salvador, BA, 2014 [email protected] 2 Sumário Amazônia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 Estados Unidos e o Pinauna V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 Cruzeiro no Curumin; Viagem ao Pantanal, Bariloche, lagos Andinos, Atacama e Macchu Picchu, 1990 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 Rússia em 1991. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 China, 1993 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 Saara, 1996 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 Península Ibérica e Costa Atlântica da França . . . . . . . . . . . . . . . 60 A Europa dos Habsburg. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 Itália e Grécia em 2004. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 Escandinávia, 1997 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91 2000 – Regata do Descobrimento– Diário de Bordo do Navegador. . . . . . . 101 Turquia e o retorno de catamarã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114 África do Sul em 2003. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122 Velejando de Salvador para as Granadinas . . . . . . . . . . . . . . . 126 Cruzeiro no Alasca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 Visita à Nova Zelândia em 2006 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151 Maranhão e Piaui, 2008 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 Fernando de Noronha e as Refeno (Regata Fernando de Noronha). . . . . . 169 Lua de mel no Caribe: Cuba e Panamá em 2009 . . . . . . . . . . . . . 180 Cruzeiro Austral em 2010 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186 Live aboard em Galápagos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 Live aboard em Abrolhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207 Live aboard nas Bahamas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 214 Turistando de carro no Reino Unido . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222 Cruzeirando na foz do Rio são Francisco . . . . . . . . . . . . . . . . 234 Egito em 2012 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 242 Caribe venezuelano 2012. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261 3 Amazonia Esta região todo brasileiro deveria visitar antes de fazer qualquer turismo no exterior. É um bioma único, de uma riqueza magnífica, ainda semi-virgem. A abundância de água doce na bacia amazônica é tão incomum que, com o uso extensivo que a população humana faz alhures e a perspectiva de crise deste recurso limitado e tão necessitado, principalmente na Ásia, onde se concentra a maior parte da população humana, não creio que seja possível preservar por mais meio século a „rain-forest‟, de onde escoa 15% da água doce que flui dos continentes para os oceanos. Meu primeiro contato com a bacia amazônica foi em 1964, quando, estudante de geologia, fui estagiar na Petrobras na antiga SRAZ, Serviço Regional da Amazônia. Naquele tempo viajei para Belém num DC-6 da VARIG, carregando um rifle de caça como bagagem de mão. A partir de Belém se acessava a Amazônia de DC-3 e de Catalina, que pousava na água. Nas minhas primeiras férias de casado, em 1970, fui com Licinha de avião para Manaus e retornamos para Salvador num navio da estatal Lloyd Brasileiro, que fazia escalas em Belém, Fortaleza e Recife. Na descida do Amazonas vi, descendo o rio, entre Manaus e Santarém, um pedaço da barranca, como uma ilha flutuante com uma palmeira em pé. Em 1972 fui numa excursão geológica no rio Tapajós, onde fotografei no aeroporto de Itaituba a altitude do aeroporto: 24m acima do nível do mar, que dista 1000 km da foz do Amazonas. O rio Tapajós em Itaituba tem no canal principal 80m de profundidade e ainda corre 250 km até desaguar no Amazonas, isto é, um afluente do Amazonas escava seu canal abaixo do nível do mar! O Tapajós desagua no Amazonas em Santarém, e ai, você em pé na margem do Amazonas não vê a outra margem. 4 Depois de aposentado, no inverno de 2002, aproveitei uma milhagem que ia expirar e peguei um voo Salvador – Santarém, aonde cheguei às 22 horas. A cidade cresceu muito desde a última vez que estive aqui, têm agora 30 mil habitantes, um calçadão novo ao longo do rio Tapajós. Instalei-me num hotel no centro. No dia 4 de julho sai cedo pelo calçadão onde ficam batelões que eles chamam de „recreio‟ e peguei o ultimo camarote disponível no B/M (barco a motor) São Francisco de Paula que sai hoje à noite para Macapá. O camarote é um cubículo com beliche e ventilador. Mas é muito melhor que ir na rede cuidando da sacola. Conversei com um agricultor que deixou de ser barqueiro, pegou um financiamento do Banco da Amazônia a 1% ao ano e está plantando feijão e mandioca. A viagem é tranquila: comida boa e farta, bem feita. Eu ficava para o „segundo-turno‟ e descia quando alguém da tripulação ia me chamar. À noite o instrumento de navegação é um farol para iluminar os tronco de árvores e umas ilhas de capim que descem o rio. O barco funciona como um instrumento de integração regional, entrando pelos „paraná‟, que são os chute-cut-off, atalhos, onde o rio é mais estreito. Logo na saída de Santarém passa o encontro das águas escuras do Tapajós com as águas barrentas do Amazonas. O barco para no caminho para desembarcar pessoas, bujões de gás, combustível e víveres, e embarcar a produção local de requeijão e produtos da floresta. A densidade demográfica é muito baixa. São 530 km rio abaixo (386 milhas náuticas) até Macapá, cobertas em dois dias, numa velocidade cerca de 10 nós, incluindo a correnteza. A navegação é toda “no olho” com conhecimento local. O prático não usa carta náutica nem instrumentos eletrônicos. Depois de receber o afluente Xingu pela margem direita, na fronteira sul do Amapá, na altura do meridiano 51°30‟W, o Amazonas recebe o rio Jari pela margem esquerda, 300 km antes do oceano aberto, e começa a deixar uma carga de fundo na forma de barra da boca do canal principal, que forma a ilha de Gurupá, alinhada longitudinalmente por 130 km, e dividindo o fluxo por dois distributários (mapa abaixo). Para além de Gurupá, na direção nordeste, ocorre uma diversidade de ilhas longitudinais formando um estuário onde o rio e a maré oceânica travam um embate de gigantes. Defronte a Macapá, bem na linha do equador, onde a 5 maré tem mais de 3m de amplitude, existe uma estação de coleta de água doce que abastece a cidade! Para jusante, a nordeste, ficam as ilhas Caviana e Mexiana, que já constituem a frente deltaica. É ai que se observa o fenômeno da pororoca, na mudança da maré morta para maré grande, quando o oceano se exibe para o rio. O rio rasga a plataforma continental rasa, onde a isóbata de 50m fica 300 km mar adentro, escava um canal submarino com profundidade maior que 100m, e vai alimentar diretamente o talude continental. O Amazonas forma um High Constructive Tide Dominated Delta. Na planície deltaica a jusante da ilha de Gurupá, em frente a Macapá, existe uma maré de 3,5m. O fluxo é contínuo, axial, homopicnal, e a água doce vai até a plataforma continental. O delta é alongado e só a parte a oeste de Marajó faz parte do processo atual. A ilha de Marajó está estabilizada com 8 km de sedimentos terciários. Em 2003 fui levar um catamarã Lagoon 41 de Salvador para os Estados Unidos e passei pelo „cone do Amazonas‟. Cruzamos o equador na longitude ʎ=43°27‟W, profundidade ~3000m. Dia 25 de outubro, em plena época de furacão no Caribe, o vento diminuiu para força3, força 2, e rondou para NE. O trecho de vento fraco foi de 0,5° de latitude e 1° de longitude, 1,5 a 2,0°N e 45°40‟ W a 46°40‟W. Às 10h subimos o talude continental, cruzando as isóbatas de 2000 e 1000m. Antes do almoço houve um show de golfinhos na água azul profundo. Durante a noite cruzamos o canal principal que alimenta o talude no cone do Amazonas. Na plataforma, entre as isóbatas de 30 e 200m, há na carta 10 da DHN um ponto circular marcando 471m. Passei nele; vinha com profundidade mensurável na sonda que tem registro analógico até 200m, e perdi o fundo por 36 minutos. Interpretei não como uma anomalia pontual, circular, mas como o talveg de um canal distributário com largura de 4 milhas, vindo do cabo Norte e de Macapá o qual não foi convenientemente mapeado. Abaixo: trecho da carta náutica DHN 10, Costa Norte da América do Sul, entre as latitudes 2 – 8° N e as longitudes 45 -53° W. A linha riscada com marcas das datas de 26 a 30 de outubro de 2003 é a rota do Blooper por sobre a plataforma continental entre as isóbatas de 50m (limite azul escuro e azul claro) e 200m. A feição Cone do Amazonas se estende da borda da plataforma até a isóbata de 3000m. 6 Este canal deve alimentar a cabeceira do grande leque no talude, o qual forma o “cone do Amazonas‟. A isóbata de 10m está a 50 milhas da costa! Tudo aqui na foz do Amazonas é grandioso. Este modelo que visualizo para o Amazonas como um delta construtivo dominado por maré não existe nas classificações dos modelos deltaicos, mas a foz do Amazonas é algo exclusivo, merece um projeto específico a ser feito com um navio oceanográfico. Os poços de petróleo perfurados na costa do Amapá atravessam uma seção de calcários marinhos de 3500m de espessura, formação Marajó, datada como Terciário inferior até o Mioceno (até 12 milhões de anos), uma seção absolutamente incompatível com a foz de um rio como o Amazonas, o que leva à interpretação que até o Mioceno o Amazonas corria para oeste. Acontece que durante o Mioceno houve o levantamento dos Andes, invertendo a drenagem da região, e a partir dai os calcários da Formação Marajó são recobertos pelos sedimentos terrígenos do Grupo Pará, atestando a chegada da drenagem do Amazonas para leste. Para mim faltava explorar o alto Amazonas, e em junho de 2005 aproveitei uma viagem com Mila para o Peru e após visitar Macchu Picchu e o rio Urubamba no inverno, voamos de Lima para Iquitos, a capital da Amazônia peruana. O rio Urubamba desce em corredeira de Macchu Picchu por 350km, no vale oriental, separando a 3ª crista da 2ª dos Andes, até receber o rio Tambo pela margem esquerda e formar o Ucayali. O Ucayali vai meandrando por 900 km para norte, entre a 2ª e a 1ª crista, até receber também pela margem esquerda o rio Maranon, formando 7 o Amazonas, que já passa em Iquitos com esse nome. De Iquitos até a tripla fronteira Colombia (Leticia), Brasil (Tabatinga) e Peru (Santa Rosa) o Amazonas corre 200 milhas náuticas (em segmentos de reta, 350 km) e ao entrar no Brasil muda de nome para São Limões (Solimões), por mais 1700 km até receber o rio Negro pela margem esquerda, quando volta a se chamar Amazonas. Em todo o percurso de 7000 km, o rio Amazonas recebe mais de mil afluentes, e sua bacia hidrográfica abrange a área de 7 milhões de km2 (equivalente à Europa continental). Quinze por cento da água doce do planeta escoa para o oceano pela foz do Amazonas. A vazão média entre 1973 e 1990 foi de 209.000 metros cúbicos por segundo. É de uma grandiosidade que tem que ser vista e admirada, porque é único no mundo! Até o Mioceno a drenagem era para oeste, para o Pacífico, inverteu quando do levantamento dos Andes, que dobrou, empurrou e continua empurrando a plataforma continental pacífica de oeste para leste. Iquitos, que devido ao porto tem um comércio ativo que abastece toda a região, já experimentou dois ciclos exploratórios, o da borracha (1879 a 1912) e do petróleo (desde 1970, com construção de uma refinaria em 1982). Hoje é a porta de entrada para o turismo ecológico que explora a biodiversidade da floresta amazônica e conta com uma estrutura receptiva: hotéis, agências, transporte terrestre (triciclos motorizados, vans, motos que se aluga por 5 soles/hora). Alugamos o motocar de Tante e fizemos um dia inteiro de turismo por US$60, incluindo a viagem de barco para visitar a comunidade dos Bora, subindo o rio Nanái e entrando pelo rio Momón. Lá comprei uma pintura de piranha na casca de árvore que eles usam como roupa, e Mila me fotografou dançando com uma nativa lindinha, corpo de mulher, seios de fora, 16 anos. O chefe da tribo, Rubem, tirou retrato com Mila. Almoçamos na cidade, ceviche com abóbora e aipim. Visitamos o barco que sai amanhã para Leticia (fronteira com o Brasil, 200 milhas rio abaixo, 2 dias de viagem). Cobra 60 soles por pessoa em camarote duplo. Levam a comida no camarote. Preferimos ir num barco rápido que cobra 60 dólares por pessoa até Santa Rosa e faz a viagem em 12 horas. Iquitos fica na foreland basin, na mesma latitude de Fernando Noronha, 3°50‟ ao sul do equador, e na longitude 73°20‟W. Caminhando de volta para o hotel, paramos ao meio dia numa praça para observar o relógio de sol. Fomos abordados pelo guia Donaldo, 58 anos, filho de espanhol, querendo vender tour. Conversamos um bocado. Disse ele que levou cinco anos fazendo levantamento do rio com um ecosonda, da margem até a profundidade de 150 pés (45m). Só uma vez na desembocadura de um tributário ele perdeu o fundo. A profundidade média é de 20 metros, e a correnteza agora em junho, com o rio baixo, 2 nós. Época boa para subir é março, com o rio cheio, com menos chance de encalhar. Nos mapas o rio tem uma sinuosidade baixa, 8 < 1,5, o que seria um padrão braided. Mas o volume de água é tão grande que a bacia hidrográfica funciona como um lago, sendo o rio o talveg. A carga suspensa é enorme e flui pelo „lago‟, mas a carga de fundo, de cascalho e areia, é restrita ao talvegue. Olhando o rio, as barras que os pilotos chamam de praia e só descobrem quando ele está bem baixo (que ainda não é o caso) são, creio, point-bars, o que caracteriza padrão meandrante. Os pilotos fazem as curvas pelo caminho mais longo, como recomenda a „regra da volta de fora‟ e atravessam o rio no meio nos trechos retos. Os pilotos que vi e conversei não usam mapa nem eco-sonda. Pelos mapas vamos entrar no Brasil no meridiano 70°W, quando o rio Javari (Yavan) que separa o Peru do Brasil entra no Amazonas pela margem direita. O rio Javari corre SW-NE e passa a 160 km a leste de Iquitos. O Amazonas corre o tempo todo pelo hemisfério sul, só cruzando o equador na foz, defronte a Macapá, no Amapá. Mas ainda tem Brasil até 5° N. Em Iquitos rearrumamos a bagagem, roupa de frio embaixo. Dia 14 de junho, saímos do hotel num motocar às 5h. O barco chegou às 6, com um gordo na entrada futucando a bagagem e se dizendo alfândega. Desatracamos às 7h. Às 8:20 passamos a entrada do rio Napo, um grande na margem esquerda, que vem do Equador. Levantei e fui falar com o motorista. Estamos andando a 45 km/h. A água é cor de café com leite, com muito material solto, folhas, troncos de árvores. Às 8:50 onde o Amazonas faz uma sinuosidade para N visível na escala 1:15.000.000, o motorista passou para a margem esquerda, seguindo a regra das curvas mais longas. Até aqui vinha pelo meio ou pela margem direita. 12:00, paisagem incrivelmente homogênea; largura do rio de pouco menos de 1 km, cor marrom terra, café com leite, mais escuro na sombra e mais marrom no sol, margens sub-verticais; raríssimas barras longitudinais, necessariamente fixadas por vegetação alta, de 5m. Estamos na época de meia-baixa, e as barras ainda não emergem; a baixa mesmo é de setembro a novembro. Existem baixios onde os navios encalham; mas não os vi até agora. O motorista concordou com a opinião de Donaldo, a melhor época para subir o rio é março-abril, no final da enchente. Às 15 h paramos em San Paldo para abastecer 200 litros de diesel. O barco não tem hélice, é um sistema de turbina hidrojato, manobra com muita facilidade e não vibra. Quando um basuro prende na turbina o motorista sente, engrena ré, limpa o basuro e continua. Já fez esta operação três vezes.Em Chimbote, imediatamente antes da fronteira com a Colômbia houve inspeção policial. Tomaram os passaportes e entraram numa casa na margem. Cada passageiro foi chamado para receber o passaporte e tornar a embarcar. Para mim a parada serviu para um cigarro. Chegamos em Santa Rosa às 17 horas. O policial peruano tomou o passaporte dos estrangeiros e se mandou. O pessoal foi andando 9 atrás sem saber para onde ia. Acabamos chegando nums barracos de madeira. Nosso grupo era um casal de ingleses, 3 australianos, um casal de mexicanos e um colombiano. Entramos na imigração, mas os passaportes estavam na policia. A inglesa chegou com o dela e fui à policia deixando Mila na imigração. Lá o policial conferia os passaportes num livro grande, e disse que ele os devolveria na imigração. Voltei. Um australiano barbicha tinha tido o passaporte roubado em Lima, pegou outro na embaixada e uma declaração, e estava com problemas. Servi de intérprete entre a funcionária da imigração e ele. Cada um explicou seu ponto de vista e no final a mulher disse que liberava se o australiano pagasse US$20. Ele topou na hora! Me agradeceram, liberaram meu passaporte e o de Mila e nos mandamos de volta para o porto. Pegamos uma canoa com motor Honda refrigerado a ar e com uma rabeta comprida sub-horizontal, sem reversor, e atravessamos a fronteira fluvial para Tabatinga, no Brasil. A rabeta é comprida para que o ângulo da hélice seja adequado para empurrar. Se fosse mais curta empurraria o fluxo para cima e não para frente. O fulano da canoa cobrou 10 soles, paguei 2 dólares. Ele não entendia bem o cambio, mas aceitou. De imediato pegamos um taxi, uma Belina velha que nos levou até o porto, onde fomos informados que dois navios sairiam amanhã para Manaus. Entramos no melhorzinho e escolhemos a melhor suíte de bordo (cama de casal, cômoda, banheiro). O camarote simples era 600 reais, a suíte 700. Na rede 200. O cambio deles era R$2,3/dólar e como eu só tinha dólar, não aceitei. Seguimos no mesmo taxi e fui jantar com Mila um pirarucu ótimo. Lá ela disse que tinha $ em reais e que pagaria o barco. Em compensação em Manaus eu a levaria para o hotel da Varig. Passamos no mercado, tomamos um moto-taxi e voltamos para o Oliveira V onde nos instalamos na suíte, cabine 7, com ar condicionado 110V alimentado com energia do píer. Dormimos bem e no dia seguinte tomamos o desjejum com o que compramos no mercado ontem. O barco ia sair às 15 horas, de forma que tomamos um taxi e fomos a Letícia, na Colômbia. A fronteira é uma rua, a Avenida Internacional. Rodamos a cidade, cuja população é na maioria de índios, visitamos as curiosidades turísticas e voltamos para almoçar em Tabatinga no mesmo lugar do peixe de ontem. Compramos lençol e sacola e embarcamos. A operação de desatracar é controlada por rádio. O timoneiro só vê a frente, e o 10 comandante na borda diz o que deve ser feito com os motores e com o leme. Quando suspenderam as defensas (pneus grandes) o operador abriu as máquinas. Bonita a saída! É como navegar no oceano sem ondas. Logo na largada cruzamos por duas lanchas que traziam pessoal da universidade, e o prático João e o imediato Erivaldo, que se revezam no leme a cada 6 horas, tocaram para leste, em „área de segurança nacional‟ na direção de Benjamin Constant. Largamos de Benjamin Constant às 18 horas. A lua estava no zênite, em Virgem, e Júpiter bem próximo. O sol em Touro já estava abaixo do horizonte, e levou Mercurio, Venus e Saturno com ele. O primeiro jantar a bordo foi pobrezinho, uma sopa com farinha. Tomamos banho na suíte e dormimos bem, sem ar condicionado. A coberta que Mila comprou foi ótima. Houve vento de leste à noite e a manhã toda, força 3, 5-10 nós, de proa. Os pilotos fazem as curvas sempre pelo lado mais longo, o mais fundo. 16 de junho, quinta-feira. O café da manhã foi café, leite, pão, manteiga e cream cracker. Nada mais. A fulana disse que amanhã vai ter queijo. A topografia do entorno é baixa, montanha só na nascente dos tributários e a relação carga de fundo/carga suspensa deve ser muito baixa. O alto teor de carga suspensa deveria dar um padrão meandrante, mas o volume de água é tão grande que o „lago‟ desce quase retilíneo. Às 11h, hora de Lima, paramos em Santo Antônio do Içá. Demorou uns 40 min, e foi servido almoço porque o barco funciona no horário de Manaus. Almoçamos com duas colombianas de Bogotá, estudantes de ecologia, Maria Alexandra e Maria Camargo, que queriam saber sobre o Brasil, estavam indo passear no sul. O almoço foi galinha, macarrão, arroz, farinha, suco de maracujá de caixa. O equipamento de navegação é um farol possante que não pode ficar aceso mais de dois minutos. Só. Não tem nem bussola. O barco é de aço, tem 39 metros, 2 motores Scania de 375 hp, 2 grupos geradores e custou 1,8 milhão de reais, sem financiamento. Consome 1600l de diesel na viagem de 3 dias. Foi feito em Manaus. Gilmar, o proprietário, estava a bordo e disse que vai fazer outro de 45 metros. Este, com dois anos já se pagou. Segundo Gilmar, se fosse feito no estaleiro que o banco financia ia custar o dobro. Com 22 horas de navegação rio abaixo, incluindo as duas paradas, já tínhamos andado 120 milhas, e a topografia da margem esquerda mostrava barreiras vermelhoamareladas, provavelmente bauxita. Às 13:30 paramos junto ao rio Putumayo, de água preta, que entra no Amazonas pela margem esquerda. Este rio nasce nos Andes colombianos e passa 200km a norte de Iquitos, fazendo a fronteira entre Colombia e Peru até entrar no Brasil. Na época da 11 borracha, os capatazes da Peruvian Amazon Company, de Julio C..Arana desciam de Iquitos até aqui para subir o rio Putumayo, nas margens do qual ficavam os entrepostos onde recebiam, pesavam e tratavam o látex coletado pelos índios. O Putumayo entra no Amazonas na latitude 3°‟S, longitude 68°W, onde vi um tronco de sumaúma, também chamada de barriguda, a maior árvore da floresta (70m, da altura das sequoias), que os índios chamam de „mãe das árvores‟ (foto abaixo) usada para fazer o flutuador velho. Havia também um flutuador novo feito de açacu (árvore do diabo). Sumaúma, a „mãe das árvores‟, do tope de uma sequoia. Às 18h estávamos no meridiano 67°W, pouco antes do rio Jutai. Aqui o Amazonas fica largo, umas três vezes a largura anterior a montante. Quando o rio fica largo perde competência e deixa a carga de fundo como barras longitudinais. Aqui o leito se enche dessas barras, espaçadas por paranás (do tupi, canal que liga dois rios), que são braços dos rios caudalosos, separados do curso principal por uma ilha. As barras se constituem em ilhas e são fixadas por uma vegetação nativa de tacanas ou flecheiras, um mato alto, parecendo trigo com 3m de altura, de onde os índios tiram as suas flechas. Estamos chegando na metade do percurso Iquitos-Manaus. No final da tarde chegaram uns estratos pesados com chuva e vento de uns 18 nós. Durou pouco, a nuvem fica quase parada e a gente passa por ela. O jantar foi igual ao almoço, galinha com macarrão, arroz e farinha. O imediato Erivaldo disse que se colocar linha de arrasto pega peixe. Eles tem uma pá (hélice) de reserva para o caso de bater num 12 tronco. Às 21h, adiantei o relógio 1 h para a hora de Manaus. Mais tarde passamos por Juruá; as cidades ficam no geral onde um tributário entra no Amazonas. O Erivaldo fez uma manobra de atracar e desatracar espetacular. Fui para a cabine assistir a desatracação. Ele opera os dois motores e o leme com maestria, num navio com 430 toneladas. Então fui dormir pensando que a ocupação humana na Amazônia é ainda muito esparsa; a floresta não é um lugar facilmente habitável, é um ambiente fechado, escuro e intransitável, ajustado para quem anda saltando de galho em galho. Para o superpredador se instalar numa região dessas é necessário remover a floresta e destruir sua rica biodiversidade. Com a projeção da explosão demográfica da espécie humana e com as limitações de água doce no planeta, não creio que esta floresta seja preservada por mais meio século. 17 de junho, sexta-feira. Acordei às 02:30 com barulho diferente. Quando abri a porta havia o maior temporal lá fora. Vento de 25 nós, ondas de 0,5m, o marinheiro arriando as cortinas. Comi uma maçã e fui na cabine de comando. Não se via nada à frente, a bandeira da Amazonia na proa estava tesa para bombordo. Os relâmpagos circundantes de vez em quando iluminavam a costa a boreste, bem próxima. O farol de bordo sendo aceso com frequência. Na cabine o clima estava tenso, o piloto reclamando pelo rádio das luzes abaixo para serem apagadas. Estava escuro na cabine. Cumprimentei João e fiquei quieto. Com pouco ouvi uma voz tensa, creio que era Walter, o veinho Comandante, resmungando de „passageiro‟. Sai e fui para a cabine. Quando entrei na cabine ouvi os motores roncando forte, creio que em ré. Possivelmente encalhou. Mas eles livraram o barco e seguiram, tudo absolutamente escuro. Ai o vento amansou e a chuva passou. Eles abriram o motor e tocaram para tirar o atraso! Tudo no sentimento, realmente um sistema de navegação primitivo, perigoso e suscetível de invocar superstições e crendices. Acordei pela manhã com a moça da cozinha batendo na porta. Durante a manhã fotografei duas samaumas na beira do rio; a foto da esquerda tem Mila e João, com a sumaúma se destacando lá no fundo. O almoço hoje teve feijão. Havia no restaurante uma índia bonita, sozinha, com um filho de 2 anos e um diamante de 3 a 4 quilates no pescoço. Dormi um pouco depois do almoço. Depois fui à cabine de comando. João estava no turno e dei aula para ele de mapa. Ele deve ter uns 50 anos, 34 dos quais navegando no trecho Manaus-Tabatinga. Já trabalhou em balsa de petróleo. Um prático cobra diária de R$100 mais passagem de volta se for o caso. Na época de baixa, setembro a novembro, poucos práticos se arriscam a passar no rio. Na época de cheia têm muitos. Quando da enchente, dezembro até fevereiromarço, descem muitos troncos no rio e tem mosquito. A época certa para vir é de março a maio porque tem menos tronco e não tem mosquito.19h, hora de Manaus. O 13 jantar acabou às 18h. Mila e eu fomos os últimos a entrar. A índia bonita do diamante não quis jantar; está numa rede a boreste, do lado da chuva, mais para a popa. Acabamos de passar o terminal de gás de Urucu. O rio Urucu engata no Coari, que logo depois entra no Amazonas que aqui fica largão, 3km ou mais, a 63°W. Faltam umas 200 milhas náuticas para Manaus. O terminal fica na margem direita, é grande e bem iluminado. Havia um navio de gás atracado com proa para montante. Cerca de uma dúzia de esferas de GLP no terminal. Mais ao fundo tive a impressão no lusco-fusco que era um grande tanque de óleo. Uma antena grande de comunicação. Tudo no padrão Petrobras, se destacando na paisagem em relação a todo o resto que já passamos. No largo, a bombordo, uma cidade iluminada mais a jusante. O jantar, para variar, foi galinha, arroz e macarrão. Mila está ameaçando que nunca mais come galinha com macarrão. Antes do jantar conversamos com Wilson Paraná, garimpeiro de ouro. Ele draga cascalho no rio onde tem sumaúma porque a sumaúma usa o cascalho para fixar as longas raízes. O ouro é removido do cascalho com mercúrio, que faz um amálgama com o ouro fino disseminado, sendo depois separado por fusão, sendo o mercúrio descartado num processo altamente impactante. Garimpar na terra dos índios é ilegal e a Policia Federal quando chamada pelos índios prende o garimpeiro. Paraná disse que a policia federal é séria, mas que a policia militar e principalmente a policia civil, são na maioria de meliantes. Houve um bingo no bar mas não fomos. Existe uma pequena parte de passageiros mal educados que não merecem a nossa presença. Mila e eu jogamos cartas na cabine e dormimos. Acordei de madrugada, estava uma noite linda, a ursa menor subindo no horizonte a bombordo. A polar não apareceu, estava abaixo do horizonte. Também estamos a sul do paralelo de 3°S! 18 de junho - Acordamos com a moça do restaurante batendo na porta para o café da manhã. Chegamos no restaurante às 06:45 e já não havia pão nem maçã. Não faz mal, Mila está emagrecendo. Fotografamos um transporte de açacu. Os troncos externos têm uma argola cravada e o conjunto é circundado por cabo de aço. Vai uma barca puxando na frente e outra empurrando atrás. Às 10 h chegamos em Mancapuru e entramos no „furo‟, um paraná que liga o Amazonas com o rio Negro, cortando caminho. A partir de Mancapuru já existe estrada 14 que vai até Manaus, e de lá para Porto Velho e Cuiabá, para o sul, e para Boa Vista e Venezuela, para o norte. Junto com a estrada corre um gasoduto. O „furo só funciona com o rio cheio. Em setembro não da para passar, está seco, e o Oliveira V tem que fazer uma volta de 2 horas pelo „encontro das águas‟. Um peixe enorme pulou na entrada do furo. A correnteza era muito forte. Parecia uma zona de crevassing do Amazonas que entrava no rio Negro. Na saída do furo vimos a refinaria de Manaus e logo depois, para o norte, a cidade, onde Erivaldo fez a manobra de atracação no porto flutuante às 11h. Despedimo-nos da tripulação e descemos. Na ponte existe uma placa gigante marcando a variação do nível do rio, que chega a mais de 20 metros. Estava agora a meia altura; sem duvidas foi uma época boa para a viagem: zero mosquito! Ao desembarcar fomos a pé passando pelas lojas da zona franca. Manaus é hoje uma cidade industrial, com mais de 500 indústrias que recebem incentivos fiscais. Por mais cuidado ambiental que haja, a chegada do „desenvolvimento‟ na área tende a trazer junto a imundície e a poluição. Nos instalamos no hotel, almoçamos e fomos visitar o Teatro Amazonas, de 1896, a expressão mais significativa da riqueza da região durante o Ciclo da Borracha. Depois fomos ver o por do sol em Ponta Negra, o point do turismo de Manaus. 19 de junho de 2005 – Após 15 dias viajando, voamos Manaus-Brasilia observando a transição entre a floresta primária, desabitada no Amazonas, cortada por estradas e exibindo algum desmatamento no Pará, e a transformação da floresta em campos de soja no Mato Grosso. Se voce quizer ver a rain forest trate de ir logo, porque na minha opinião o tal do desenvolvimento vai acabar com ela. 15 ESTADOS UNIDOS E O PINAUNA V Os Estados Unidos todo mundo que vai ao cinema ou assiste televisão conhece. A indústria de Hollywood vende a imagem que eles querem que você veja. Em 30 anos de visitas pude observar uma mudança notável neste país. Em 1968 os gringos colocaram um homem na lua, ganharam a corrida espacial, estavam orgulhosos, receptivos e consumiam metade do petróleo produzido no mundo. Eu tive a oportunidade de escolher uma universidade em qualquer lugar do mundo para fazer um mestrado em Sedimentologia, patrocinado pela Petrobras, e escolhi a Universidade do Texas em Austin. Na chegada lá, em 1973, fui a uma apresentação dos novos alunos, onde cada um dizia quem era e porque foi para lá. Eu disse que havia escolhido o Departamento de Geologia da UT em Austin porque julguei que era o melhor do mundo e de saída conquistei a simpatia dos gringos. Instalei-me num apartamento confortável com uma mulher maravilhosa e dois filhos pequenos, comprei um Mustang mecânico para mim e um Pontiac automático para ela e conclui meu mestrado com louvor no menor tempo registrado em mais de cem anos de tradição do departamento. Os meninos frequentaram o kindergarten e aprenderam a falar inglês. Viajamos de carro nas férias de fim de ano para o Grand Canyon e para a Califórnia, e de novo nas férias de verão atravessando o México de norte a sul até Acapulco. Os gringos eram simpáticos, hospitaleiros, bonitos, e tinham o melhor padrão de vida do mundo. No final do mestrado vendi os carros e aluguei um trailer U-Haul onde acomodei a mudança e com o qual atravessamos os estados do Texas, Louisiana, Mississipi, Alabama e Florida até Miami, de onde voamos de volta para casa. 16 Depois deste período de admiração, voltei aos EUA regularmente a cada 10 anos, observando que o povo ficava menos hospitaleiro, mais gordo e cheio de restrições. Nos anos 80 minhas viagens aos EUA foram para participar de congressos de geologia. Nos anos 90 além de congressos, fui também a um boatshow na Flórida durante a construção do Pinauna V, e fiz em 1999 um tour de carro alugado pelo „far-west‟ para mostrar o país a Mila. Mas ai a impressão já foi muito diferente: os gringos vinham sendo acusados de imperialismo e poluidores do mundo, estavam cheios de restrições aos estrangeiros no país deles, criando dificuldades para a concessão de visto de entrada; com a extinção da URSS em 1991 se sentiam os donos do mundo e implantaram a globalização como estratégia para o domínio das economias de mercado. Na Califórnia era quase impossível fumar, num approach hipócrita de controlar a poluição e preservar a saúde de uma população obesa. Com o consumo crescente de petróleo e a oferta estabilizada no inicio do Sec.XXI, os gringos passaram a garantir o fornecimento deles com guerras no Iraque e na Líbia, e em 2001 foram atingidos no templo lá deles, as torres gêmeas do World Trade Center em Nova York. A partir dai se sentiram acuados e sempre com medo. A última vez que fui lá foi em 2006, para levar Mila que não conhecia os Estados Unidos; em 2007 meu visto de dez anos expirou e não me interessei em renovar. Até a década de 1990 segui o refrão de meu mestre de vela, Davi Pezão: 20 anos, 20 pés, 30 anos 30 pés, 40 anos 40 pés. Mas dai resolvi fazer um downsizing e encomendei um Delta 32 no Rio Grande do Sul, um projeto novo recém-lançado, que veio ocupar um espaço no mercado nacional deixado vago com o fechamento dos estaleiros que existiam no país, no Rio e em S.Paulo. O meu era o casco nº 6, o primeiro a vir para a Bahia e deveria ficar pronto em outubro de 1994. A outra opção de ter um barco novo aqui no Brasil, onde a importação ainda não era permitida, era comprar um projeto e construir de forma amadora. Por este caminho eu poderia ter feito um catamarã, cujos projetos tiveram um grande avanço nesta década de 1990, mas a construção era muito trabalhosa e o resultado final não era satisfatório. 17 A indústria gaúcha e a Delta Yachts fabricavam o barco quase todo: casco, mastro, ferragens de convés, gaiutas, catracas, marcenaria ... importados eram apenas os eletrônicos e o motor. Eu já tinha experiência com as catracas e gaiutas nacionais, e não queria arriscar no barco novo, de forma que decidi ir em fevereiro ao boat show de Miami e comprar esses equipamentos por lá. Neste início de 1994 a moeda nacional era lixo, e em janeiro a caderneta de poupança pagou „juros e correção monetária‟ de 40% no mês. Tudo era negociado em dólar americano, que na época era a moeda forte no mundo todo. Fui com Marco Tulio, um colega da Petrobrás que também tinha barco e queria ir ao boat-show, e me ajudaria a carregar como bagagem o que fosse possível, desde que eu fosse de guia com ele à Disneyworld em Orlando. Viajamos dia 17, visitamos os expositores dia 18, compras dia 19, velejamos num Melvin 24 dia 20, visitamos os barcos que estavam na água dia 21. Comprei gaiutas, enrolador de genoa e head-foil, catracas, stoppers, estação de vento, velocímetro e profundímetro, um receptor GPS recém-lançado, o Garmin 75, ferragens. O material mais volumoso foi encaminhado por um despachante local direto para o estaleiro no Rio Grande do Sul. Alugamos um carro e fomos pela costa leste até Orlando dia 22, passamos o dia 23 no Epcot Center, retornamos a Miami pela turnpike dia 24 e voamos de volta para casa dia 25. No início de setembro o Ricardo Weber, proprietário do estaleiro Delta, veio a Salvador explicar o atraso que ocorreu na laminação do casco 6 e levou uma parcela de vinte mil dólares. No início de outubro ele ligou dizendo que havia colocado o convés e fui a Porto Alegre. Lá constatei que as anteparas do barco eram de madeira escura, e eu tinha especificado clara. Era tanta mão de obra trocar as anteparas, que Ricardo resolveu laminar um casco novo, o nº7, me prometendo que ficaria pronto antes do nº6. Nesta viagem acertei com ele as modificações que queria fazer no projeto, e ele aceitou tudo sem custo adicional para compensar o atraso que era penalizado com cláusulas contratuais ruins para ele. O casco novo deveria ser laminado com resina estervinílica abaixo da linha d‟água, mudei a disposição da mesa de navegação, removi portas internas das cabines de proa e popa, ampliei a cozinha instalando uma lixeira entre o fogão e a geladeira, fizemos uma segunda geladeira por trás dos assentos de bombordo a ser refrigerada com compressor, especifiquei a instalação de um boiler para ter água quente no banheiro, o tecido dos estofados, instalei mais um banco de baterias, passa mão de apoio por dentro da cabine e por fora, mudei o sistema de burro e amantilho, deixei para ser executado um sistema de trilho na frente do mastro para a self-tacking-jib e um suporte para âncora com rolete na proa... foram mais de 40 itens. Ricardo me levou numa viagem no carro dele até Panambi, para comprar um compressor da Compac para a geladeira, e na volta passamos em Caxias do Sul para definir as ferragens na Nautec e discutir com Amilcar as modificações no mastro e na retranca. Combinamos que o Pinauna ia sair com quilha curta, calado de 1,6m, quilha esta que o Nestor Volker ainda estava projetando. Foi uma semana no Rio Grande do Sul, onde Ricardo foi um anfitrião cortês, me levou para visitar os clubes náuticos de Porto Alegre, o Veleiros do Sul, o Jangadeiros e o Guaíba. Acho que para ele foi bom ter um cliente exigente e que sabe o que quer, porque ele viu a possibilidade de melhorar o produto que vende usando a minha experiência. 18 Dia 8 de dezembro, uma quinta-feira, foi feriado em Salvador, e fui a Porto Alegre ver o Pinauna. Ricardo me pegou no aeroporto. Na sexta fomos a Caxias do Sul ver a mastreação e estabelecer as modificações que pedi. Boris Ostergreen dimensionou o tamanho do trilho da buja self-tacking. No sábado passei o dia no estaleiro, e constatei que o barco estava mais atrasado do que eu supunha. Combinamos que, já que ele tinha que sair do estaleiro em Gravatai, de caminhão, ao invés de ir para água no rio Guaíba deveria seguir até a Marina Brachuy, a meio caminho entre São Paulo e Rio de Janeiro. Época boa de velejar para o norte é o inverno, com vento sul. Subir no verão com corrente contra navegando duas mil milhas de contravento é coisa para uma tripulação de regata, e com esta providência, já que eu queria chegar em Salvador navegando, cortei o percurso pela metade. Ainda assim foi dureza, que o diga minha filha Liana, tripulante valente que veio comigo em janeiro de 1995. Na virada do ano 94-95 eu estava sem barco, coisa que não acontecia há 1/5 de século. Fui de moto com Cris acompanhar a procissão marítima do 1º de janeiro, assistimos a chegada da galeota na boa Viagem e o desembarque da imagem do Bom Jesus dos Navegantes nos ombros dos carregadores vestidos de vermelho e amarelo. Tirei férias em janeiro de 1995 e viajei com Liana no Fiat Tipo de Felipão, levando o equipamento do barco novo (caíque, remos, salva-vidas, defensas, material de cozinha e mesa, roupa de cama e banho, equipamento de mergulho e de pesca, croque, âncora e cabos, ferramentas, etc.) e com a tarefa de entregar o carro de Felipe em São Paulo. Com os bancos traseiros arriados o carro ficou com todo o compartimento de bagagem praticamente cheio até o teto. Saímos dia 6 direto para a fazenda de Vicka 30 km a SSW de Ipiau, nas nascentes do rio do Peixe. Passamos o dia 7 na fazenda e seguimos no domingo para sul pela BR-101 numa viagem de 400 km. Em Itamaraju desviamos para sudeste pelo Parque do Descobrimento e fomos pernoitar numa pousada na praia, em Alcobaça. No dia seguinte retornamos para a BR-101 mas tornamos a entrar para a praia em Mucuri, onde almoçamos. Estes desvios para leste serviram tanto para que Lia conhecesse por terra a costa do extremo sul da Bahia quanto para que víssemos as alternativas para uma eventual aterragem de emergência quando estivéssemos subindo com o barco. Nossa estirada diária não era mais que 400 km. Ao entrar no Espírito Santo fizemos uma parada em São Mateus, na base operacional da Petrobrás, onde visitamos o pessoal da geologia. Telefonei para Ricardo em Porto Alegre, e ele me confirmou que o Pinauna seria embarcado dia 13, e que seguiria para Porto Brachuy, Ψ=22°57‟S, λ=44°23‟W, onde ele tinha gente de apoio para fazer a montagem do mastro e os acabamentos finais. Boa notícia, o parto da criança estava próximo! Seguimos para Vitória e nos instalamos no apartamento de Reco. Na terça-feira 10 o Fiat não quis pegar. Liguei para a concessionária Fiat de Vitória, que rebocou para oficina com bagagem e tudo. Lá foi diagnosticado que a central eletrônica de injeção não funcionava, e eles não tinham outra para repor! A solução encontrada foi remover uma de um Tempra da loja e instalar no Tipo. À noite visitamos Marcio Cruz no hotel, ele estava como instrutor da meninada do Iate Clube da Bahia que disputava um campeonato nacional de Optmist na raia de Vitória. 19 Na quarta 11, mais uma esticadinha de pouco menos de 400km, agora para oeste, atravessando a Serra do Caparaó até Viçosa onde visitamos André. Quinta com rumo sul até o Rio, onde pernoitamos com Raul e Marilda. Visitei Marcio Melo, que me ofereceu o Apt.205, Bloco 2, Península 1, Marina Brachuy, no Saco do Canto Largo; peguei as chaves e segui para lá na sexta. E ai começaram as „dores do parto‟, de sábado a segunda de olho no pátio esperando o caminhão. Nada do Pinauna chegar. Compramos panelas de aço inox, „da boa‟, mantimentos, Lia cozinhou feijão com carne moída, ficou ótimo. Ligamos para Porto Alegre e recebemos a desculpa de que havia morrido o pai do Demétrio, dono da transportadora e motorista do caminhão, mas que o Pinauna sairia na terça. Na terça fomos visitar a usina nuclear em Angra dos Reis, passeamos por Paraty, um antigo entreposto de ouro e porto de venda de escravos, hoje sujo e cheio de mosquitos de mangue. Seguimos pela BR-101 pela beira da praia até Caraguatatuba, SP, defronte a Ilha Bela, onde estão os mais ricos Yacht Clubes do Brasil, ao longo do canal de São Sebastião. É rico, mas o canal tem uma milha de largura. Hoje eu estou um tanto azedo com a demora do Pinauna. De Caraguatatuba subimos a Serra do Mar e descemos no Vale do Rio Paraíba do Sul, na direção de São José dos Campos. Esta região é das mais ricas e desenvolvidas do Brasil, e ai estão instaladas grandes indústrias e centros de ensino, com destaque para a Embraer e o ITA, Instituto Tecnológico da Aeronáutica. Pernoitamos num hotel em Jacarei, a 80 km de São Paulo. Na quarta 18 passamos num posto em Jacarei e mandamos lavar o carro por fora e por dentro. Entramos em São Paulo e deixamos o carro na garagem da Tenenge, limpo e abastecido, as chaves com Emilia, secretária de Felipe. Falei no telefone com Felipão que estava em Londres, fomos de taxi para a rodoviária do Tietê, lanchamos e pegamos o primeiro ônibus da Cometa para o Rio. Ufa, não consigo respirar direito em São Paulo! A estrada BR-116, Via Dutra, no estado de São Paulo vai beirando o curso do Rio Paraíba do Sul entre a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira até Barra Mansa; daí a estrada atravessa a Serra do Mar para a costa e o rio a contorna pelo norte, indo desaguar em São João da Barra, perto da fronteira entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo. Vamos passar lá orçando e com corrente contra dentro de alguns dias. Mas hoje descemos do Cometa em Barra Mansa e pegamos o ultimo ônibus do dia para Angra, de pé os 70 km ao longo da fronteira entre São Paulo e Rio. Chovia a cântaros. Em Angra fomos a uma farmácia, comprei remédio para a coriza alérgica que desenvolvi em poucas horas de São Paulo, e aproveitamos para equipar uma caixa com os remédios para a farmácia de bordo. Pegamos um taxi e chegamos na Marina Brachuy às 23:30. A quinta foi de telefone e expectativa. Na sexta Marcio e Leslie chegaram com as filhas para o final de semana e levaram Lia para passear de lancha. Eu peguei uma carona num Chevette com moradores de Brachuy e fui na rodoviária de Angra pegar as velas Diamond que chegaram do Rio. Acertei uma despachante, Lilia, para providenciar com a Capitania dos Portos a vistoria e a licença de viagem, uma vez que eu queria inscrever o barco no porto de Salvador. No sábado sai com a turma e fomos mergulhar na Baia de Angra, a família de Márcio e a do sócio dele na lancha, Nilo 20 Azambuja, também geólogo da Petrobras. Matamos uns meretes, e à noite fizemos churrasco. No domingo, 22 de janeiro, nova saída para mergulho, e voltamos cedo porque o pessoal ainda ia retornar para o Rio. Às 14 horas estávamos de volta, e de longe eu fui o primeiro a ver: o Pinauna estava sobre a carreta em frente ao estaleiro na Marina Brachuy. O motorista da carreta, Jair, tinha um recado de Dalmo (o „montador‟ de Brachuy): ele tinha sido contratado por Ricardo para montar o barco. Embora fosse domingo, começamos o trabalho imediatamente e antes do por do sol Lia fez o batismo com champagne e o Pinauna foi para água, ficando atracado no píer G, na casa de Márcio. Domingo, 22 de janeiro de 1995, batismo do Pinauna V Na segunda-feira cedo começamos a montagem. Lilia trouxe os milicos da marinha, providenciou a vistoria e a expedição da licença de viagem, tudo sem complicação. Ótimo o serviço de Lilia, que cobrou R$150. A lingada do travel-lift custou R$160. Paguei a Jair R$2500 do transporte. Mas você não acha que o parto de um barco novo aqui no Brasil é assim indolor, né? Com o barco na água liguei o motor e verifiquei que uma das três baterias não carregava, a geladeira não ligava, nem os instrumentos nem a bomba de pressurização. Dalmo trouxe um português muito competente, o Sarmento, que consertou tudo ($90) exceto o piloto automático que diagnosticou como com um transistor queimado. Na terça o trabalho de parto continuou e a criança só nasceu na quarta ao meio dia. Ao abastecer de diesel vimos que o tanque vazava. Consertamos as conexões. O 21 estai de popa estava mal posicionado e transferimos as ferragens fazendo novos furos na popa. O estai de proa era muito curto, o que resolvemos com um esticador enorme; o tensor do mastro dentro da cabine muito longo, cortamos o terminal prensado e colocamos um terminal Norsemann. Não vieram a enora e uma adriça, e o Dalmo resolveu com um jeitinho. Montamos o enrolador de genoa e ao subir a buja ela se mostrou um pouco comprida demais na testa por causa do esticador grande demais abaixo do enrolador. Deu para tensionar, mas a parte de cima do enrolador ficou atritando com o mastro e o estai de proa. Na quarta arrumamos a bagagem no barco, fechamos as contas e largamos do píer G na casa de Marcio para a casa de Dalmo às 14:30. Abastecemos de água, fixamos a enora, uma ultima revisão na parte elétrica e ao por do sol saímos motorando umas 15 milhas até Porto Galo, atrás da Ilha Grande, na saída da Baia de Angra dos Reis para o leste. A lua estava no quarto minguante e só ia sair à meia-noite, a maré morta, com amplitude de menos de meio metro. Passamos pelo terminal da Petrobras e ancoramos 3 milhas adiante, na Enseada de Itapinhoacanga. Instalamos as talas da vela mestra, tudo pronto, fomos dormir. Quinta-feira, 26 de janeiro de 1995. Acordei às 02:00, sem despertador. Liana muito disposta, sempre valente, baixou o espírito de minha bisavó Joviniana, a índia kiriri, e andava descalça pelo convés. Subimos a vela mestra, subimos a âncora e largamos para levar o Pinauna para casa, uma lua minguante ainda baixa na proa. Velejamos em orça umas 10 milhas quando a maré virou de enchente e o vento entrou duro, 32 nós. Estávamos no 2º rizo e o Pinauna se comportou bem, exceto que havia um vazamento de diesel que nos fez enjoar e vomitar. Ao meio dia o vento morreu e motoramos. Às 16 horas atracamos na piscina do Iate Clube do Rio de Janeiro, onde Fillet de Cação nos recebeu e nos deu muita atenção. Na perna inaugural foram 70 milhas em 11 horas. Sexta-feira, 27 de janeiro. No Rio tentei consertar Madalena, o Autohelm 4000, sem sucesso. Comprei um 2000, que foi batizado de Marilia, e conclui a instalação às 19 horas. A latrina vazou e tive que levar o barco para Marina da Glória. Chico, da IMS trocou por uma nova na garantia Nautec. Aproveitei para comprar um rotor de bomba d‟água Yanmar de reserva. Visitaram o barco Chico, Vania, Marcinha e o velho Coca. Jantamos macarronada de Lia a bordo e fomos dormir às 23 horas. Sábado, 28 de janeiro. Acordei a 01:30. Preparamos e saímos. Quando botamos a cara fora da Baia da Guanabara chegou uma frente fria, que esta época do ano ainda chega ai pelo trópico de Capricórnio. Baixamos a grande que estava no 2º rizo e seguimos de buja em popa rasa, com relâmpagos e mar ainda liso. Pela manhã a ressaca aliviou e entramos pelo boqueirão de Cabo Frio. Contornando a Ilha dos Porcos subimos 5 milhas para noroeste, adentrando o Rio Itajuru, o dreno natural da Lagoa de Araruama, atracando no píer da sub-sede de Cabo Frio do Iate Clube do Rio de Janeiro. Almoçamos, abastecemos de diesel e resolvemos que não iríamos dormir naquele riozinho de 50m de largura, ambiente de lancheiro, com correnteza apesar de bem protegido para qualquer vento. Uma decisão ousada, que valeu uma noite memorável. 22 Desatracamos, vela em cima, contornamos a Ponta da Lajinha, a Ilha dos Papagaios, e seguimos de escota folgada para nordeste. Quando passamos a Ilha do Breu,já noite escura, a pauleira recomeçou, agora à vera, com vento duro do quadrante oeste, muita chuva, trovões e relâmpagos. O mar ainda não tinha tido tempo de levantar, e as ondas estavam pequenas. Resolvi entrar no Saco do Forno 5 milhas à frente, no Cabo de Búzios. Enrolei a buja, desacoplei Marilia e Liana foi timonear debaixo de forte chuva. Estava frio, e a índia kiriri aceitou calçar meia e Liana na proa, entrando no Boqueirão de Cabo Frio sapato emprestado. Fui para a mesa de navegação para marcar os rumos, porque fora não se via absolutamente nada. Quando aproamos para a entrada do saco, Ψ=22°46,2‟S, λ=41°52,5‟W, o vento vinha lá de dentro, canalizado e zangado. Achei perigoso, e tinha que decidir rápido porque se começasse a entrar, navegando por instrumento não seria seguro manobrar com o erro de 100m que o GPS tinha naquele tempo. ARRIBA, LIANA, rumo 70 de bussola por meia milha. Desci a vela mestra, ferrei tudo e voltei para mesa de navegação. Vamos entrar a motor no Saco do Forninho, rumo magnético 10. Foi bem mais fácil, o Forninho está protegido dos ventos de oeste por um morro alto. Fomos indo devagar esperando a hora de mudar de rumo para M50 quando Liana falou: - Pai, vi agora num relâmpago que há um morro enorme na frente. - OK, já vamos arribar 40° para boreste. Ancoramos em Ψ=22°45,7‟S, λ=41°52,2‟W, 4m de profundidade. Liana secou o barco e dormiu. Eu ainda tomei um uisquinho, fumei um cigarrinho e curti o orgulho de ter uma filha como essa. Domingo, 29 de janeiro. Após longo descanso e café da manhã com frutas, saímos debaixo de uma chuvinha fina. Quando liguei Marilia, o piloto automático comprado no Rio dois dias atrás, não funcionou. Ai fiz uma proposta insana para Lia, de seguirmos timoneando na mão, e ela aceitou! Aproamos para o Cabo São Tomé 70 milhas na frente, 23 onde a costa muda para nordeste, e fomos indo com ventinho maneiro a cerca de 10 milhas da costa, eu indignado com a perspectiva de passar quase duas semanas timoneando e imaginando uma improvisação para nos livrar daquele castigo! Depois do almoço vi uma ilha a bombordo, e embora não tivesse carta de detalhe, ficou claro que estávamos atravessando a zona de oleodutos da Bacia de Campos, e no nosso través estava Macaé com porto e toda a estrutura logística da Petrobras. Ah Lia, acho que temos uma boa chance de melhorarmos nossa qualidade de vida. Rumo noroeste, vamos para Macaé! Chegamos à noite, sem carta de detalhe. Estávamos já dentro do porto, com defensas na borda, procurando uma vaga no píer, quando fomos reconhecidos por Zé Carlos, um assistente de geologia que trabalhou comigo no Delta de Camamu cerca de 15 anos atrás. Saudou-nos, orientou para que fossemos para o píer 2 e ajudou a amarrar o barco. Segunda, 30 de janeiro. Desembarquei cedo, no início do expediente, com uma sacola contendo os dois AutoHelm que não funcionavam. Fui direto ao SEGMAR (Geologia Marinha), onde eu era conhecido, e expliquei meu problema. Me levaram a João Machado, o técnico em eletrônica do SEOGED (Geodésia). Ele abriu os pilotos e pediu o manual, o que não ajudou muito porque o manual de operação não tem detalhamento dos circuitos eletrônicos. Alta tecnologia, ele comentou. Madalena ele disse que precisava trocar peças, as quais não existiam em Macaé. Mas Marília estava boa, era só secar e proteger os circuitos contra umidade. Com equipamento apropriado foi rapidinho. Testou e funcionou. Aleluia! Bendita seja a Petrobras e seus técnicos competentes! Despedidas e agradecimentos, votos de bons ventos e boa viagem, voltei para o Pinauna e fui interceptado pelo pessoal da Capitania que chegou num jipe Toyota. Pediram documentos e explicaram que o chefe da segurança havia informado que eu havia saído com uma sacola de equipamentos. Tudo esclarecido desatraquei e fui reabastecer no cais dos pescadores, a contrabordo de um pesqueiro. Às 14 horas estávamos largando direto para Vitória, 170 milhas para nordeste. 31 de janeiro, 6º dia desde a largada em Brachuy, 26º desde a saída de Salvador. Dia de lua nova, Marte circulando pelo céu a noite toda. Passamos o Cabo São Tomé por dentro, às 4 da manhã, final da enchente, motorando sem vento, muito tranquilo. A maré hoje aqui tem amplitude de 1m. Pouco adiante o nordeste entrou duro. Pelo dia choveu e acalmou o vento. À tarde ele voltou forte e foi num crescendo estabilizando à noite em força 6. Enrolei a buja e fui ajudando com o motor a 2000rpm. O mar cresceu, a buja provavelmente mal travada desenrolou um tanto e a escota endoidecida chicoteava pelos estais. Coloquei um cinto de segurança e fui para proa; tive que desatar a escota do olhal e ela acabou caindo no mar. Fiquei irritado de início, mas me acalmei e compreendi que aquele mar e aquele vento me haviam feito chegar ao meu limite. Marília estava funcionando bem, deixei o barco motorando devagar e fui deitar, Liana em turno de vigia. É a segunda vez que passando por aqui no verão o vento me joga na lona. 1 de fevereiro de 1995, quarta-feira. Chegamos em Vitória ao meio dia. Vicka estava no cais. Almoçamos, fiz papeis no clube registrando entrada e saída para a Capitania. Está em curso o campeonato de pesca do clube, e hoje chegou um marlin de 218 kg. 24 Vicka e Lia limparam o barco todo e levaram a roupa suja para lavar na cidade. Eu reapertei os estais e consertei um vazamento no sistema de água pressurizada. 2 de fevereiro, dia de Yemanjá, festa no mar da Bahia. Permanecemos atracados no píer do Iate Clube de Vitória. Exatamente sete anos depois, em 2/2/2002 este Pinauna V sob o comando de Pedro Bocca se chamava Boccalivre e o Pinauna VI, um catamarã de 29 pés foi para o mar, de novo com Liana. Reabastecemos o barco e saímos do Iate Clube de Vitória à zero hora do dia 3, mestra no 2º rizo; contornamos o Porto de Tubarão e fomos cambando em frente a Vitória no entorno da isóbata de 20 m. Passamos o baixo de Carapebus por dentro ao amanhecer do dia e continuamos com um progresso de menos de duas milhas por hora para frente. Na altura de Jacareipe, 20°10‟S resolvemos ajudar com o motor e em 3 horas andamos 14 milhas na direção do objetivo. Desliguei o motor e seguimos mais um pouco, mas estava muito duro. Em frente à Barra do Riacho (19°50‟S) vimos o terminal da Aracruz Celulose contornando a Praia da Concha. No verso da carta 1420 tinha o detalhe do porto com entrada balizada, e não resistimos: folguei pano e entramos para descansar. Reapertei os estais que haviam desenroscado porque eu não travei os esticadores com pino de segurança. Ficamos no PortoCel até o por do sol, quando o vento amainou e rondou para norte. Saímos às 19h, e às 22h o vento merrecou; motoramos para NE até a foz do Rio Doce, em Regência (19°39‟S), onde a costa começa a infletir para norte. Até o meio da manhã o progresso foi de menos de 3 nós no bordo de fora. Às 9 h do dia 4 de fevereiro, um sábado, se é que isso tem alguma importância, chegamos à latitude da Lagoa Monsaraz (19°26‟S) e ai a costa fica NNW até Conceição da Barra. Cambamos para o bordo de dentro, e fomos orçando confortavelmente com um vento leste força 4 até o por do sol, quando o vento foi rondando para sueste. Uma beleza! Neste dia testamos a genoa leve, colocamos linha e embarcamos uma sororoca quase imediatamente, o que nos permitiu almoçar e jantar muito bem. Ao por do sol, na altura do paralelo 19°S passamos por uma plataforma de petróleo, e quando estávamos a 20 milhas de São Mateus Vicka falou para casa no rádio VHF de bordo, via São Mateus Rádio. Bons tempos aqueles quando não se usava telefone celular. Liana e eu nunca sentimos necessidade de ter que nos comunicar com alguém em terra. Eu até hoje sou assim, mas creio que Lia já ficou dependente do tal de telemóvel! Pela noite continuamos no mesmo bordo e avançamos 40 milhas para NE amurados por boreste, com proa em Abrolhos. Na manhã do dia 5 o vento caiu e motoramos contra uma corrente N de 2 nós que me obrigou a corrigir o rumo em 30° para compensar a deriva lateral, até que o diesel acabou! Quem liga, isto é um veleiro! Como premio por estarmos sem motor embarcamos uma albacora grande. Passamos no canal entre as ilhas de Siriba e Sueste, e pegamos uma amarração no porto a sul de Santa Bárbara. À noite ventou forte, e se não estivéssemos numa boa amarração poderíamos ter tido problemas! Passamos quase 24 horas em Abrolhos. Lá estava fundeada a lancha Sra. De Abrolhos, de Ciro, amigo de Thales e Chico Diabo. Ele nos deu 20 litros de diesel. Os milicos do farol vieram a bordo com ferramentas para ajudar, mas eu já havia extraído o ar e o motor estava funcionando. 25 Visitamos a ilha de Siriba com Daniela e Ana Cláudia, biólogas do IBAMA. Mergulhamos ali pelo porto, e ao meio dia do dia 6 de fevereiro saímos de vela em cima por entre a Ilha Redonda e Santa Bárbara, pelo canal de dentro, no rumo de Porto Seguro, 100 milhas para nor-noroeste, que fizemos em 26 horas. No início da tarde estávamos orçando com menos de 10 metros de água debaixo da quilha, e deixamos o Parcel das Paredes cinco milhas para sotavento. Quando o recife Timbebas estava 10 milhas a sota no través, começamos a folgar escota no paralelo 17°35‟, na expectativa de termos uma noite mais confortável. No início da noite andávamos bem, com progresso de 6 nós, mesmo contra corrente, uma lua em quarto crescente caída para oeste, quando rompeu a adriça de aço da genoa, bem no terminal. Foi consequência do mau posicionamento devido a que o olhal de tope ficou muito alto, por causa do esticador enorme abaixo do enrolador que compensava o estai mais curto. Tornei a subir a genoa na adriça do balão, mas pela madrugada o vento acabou, e passamos no través dos recifes Itacolomis (Ponta de Corumbau) motorando até gastar metade do diesel da Sra. De Abrolhos. Pela manhã voltamos a velejar e às 14 horas do dia 7 de fevereiro estávamos ancorados por trás do recife que protege a Passarela do Álcool em Porto Seguro. Era final da vazante, não dava para investir o Rio da Ajuda até a bomba de diesel, e fomos esperar a maré encher comendo camarão na Passarela. Ontem fez um mês da nossa saída de Salvador, Liana tinha compromisso de trabalho e resolveu desembarcar. Vicka também. Aproveitei que estava em terra e convidei em sequência Cris, Lena, Pedro Bocca e Pedro Mutti, para fazerem Porto Seguro – Salvador comigo, as 240 milhas finais, com previsão de dois a três dias, mas todos arranjaram uma desculpa. Ai liguei para Mano, o mais ocupado de todos, dizendo que precisava de um cozinheiro de bordo, que Lia e Vicka estavam deixando as comidas prontas, era só esquentar, e a gente viria jogando damas. Ele deixou o taxi em casa, foi para a rodoviária e às 6 horas da manhã do dia seguinte estava embarcado. Na preamar do dia 7, às 20 horas, entrei com o Pinauna para o ponto de abastecimento, onde dormimos muito bem com o barco parado. Lia e Vicka desembarcaram às 7 horas do dia 8, Mano já a bordo. Mano e eu abastecemos de diesel, gelo, água, gás e ainda aproveitamos a preamar da manhã para atravessar o baixio do Rio da Ajuda. Ancoramos para arrumar tudo, reapertamos o estaiamento, instalamos uma adriça reserva de genoa; às 11 horas subimos a vela mestra e saímos costeando até safar o recife Itassepocu de Fora. Um bordo curto para fora, de duas 26 horas até a isóbata de 30m sobre o banco de Royal Charlotte e cambamos para N-NE com um ventinho E-SE que se manteve até Salvador! Mano tem sangue bom! Liana deixou um bilhete dentro do livro do diário de bordo: “Pai. Foi uma grande jornada que empreendemos e aqui começa uma nova etapa. Fico grata pelo Encontro com você e com a ampliação dos meus recursos e limites. Acho que a natureza não dispõe suas forças para nós a dominarmos; ela se oferece gentilmente para que dominemos a nós mesmos. Por isso agradeço cada provação, afinal de contas as dores passam e o aprendizado permanece. Espero você em Salvador. Que a maré, o sol e as estrelas os conduzam em Bem Aventurança ao porto de origem. Permanecemos juntos. Um beijo cheio de amor. Lia.” Essa menina é um doce. Ela que caminhou 900 km o ano passado no Caminho de Santiago, uma parte com o joelho machucado, disse depois em casa que esta travessia no contravento foi mais dura que a caminhada. Mano ficou encantado com o bilhete, mas achou a parte dele macia. Também pudera, ficamos durante dois dias num bordo só, vento aparente a 50-60° da proa, escota da genoa no barber-hauler, jogando damas, ao meio-dia quando o vento caia mais uma motorada para carregar as baterias. Após o por do sol do dia 9, uma quinta feira, propus a Mano: - Vamos jantar? e ele: - Temos um problema. Não tem arroz. Fui ao armário da cozinha e mostrei a ele um saco com quase um quilo de arroz. E ele, com um espanto desanimado: - Mas está cru! Grande cozinheiro que arrumei! Aproveitei a oportunidade para exibir meus parcos dotes culinários e depois registrei no diário de bordo: “jantamos bem; noite confortável com bom progresso”. Na madrugada do dia 10 de fevereiro, após o deitar da lua, apreciei a esteira brilhante que o Pinauna abria nas águas azuis ricas em plâncton no través de Camamu. Passamos o farol da Barra ao por do sol, deixei Mano na Ribeira para pegar o carro em casa e segui para o Aratu, onde Mano já estava me esperando no píer. No sábado 11 voltei ao clube e nem consegui lavar o barco por dentro. Foi visita o dia todo. Fui dormir na casa de Cris e a visitação continuou por todo o domingo. Na segunda 13 acordei em casa baratinado, achando que estava no barco! Voltei ao trabalho, fui visitar Mãe que estava internada no hospital. Cris comprou um carro novo e veio me visitar. Lena trouxe acarajé e veio me visitar. Tina ligou. No final da próxima semana é carnaval mas por hoje não ficou nada acertado quem é que vai sair no Pinauna. 27 1990 – Cruzeiro no Curumim e Viagem ao Pantanal, Lagos Andinos, Atacama e Macchu Picchu Dia 2 de fevereiro, uma sexta-feira, embarcamos no Curumim com destino a Abrolhos. Lito disse que não saia dia de sexta porque era supersticioso. Esperamos dar meianoite e largamos da Marina Porto dos Tainheiros. Enquanto eu subia a vela mestra disse a Lena que mantivesse rumo zero magnético, mas ela aproou para Plataforma. Reclamei e ela disse que estava no rumo zero. Fui olhar e comuniquei a Lito que a bússola dele estava errada. E agora?!, perguntou ele. Eu tinha levado um binóculo com alidade, lia o rumo, via o que a bússola maluca marcava, e fomos tocando. Estabelecemos turnos de 3 horas para cada casal. Depois do jantar do sábado dia 3, era meu turno, o vento era um ESE de uns 10 nós, e uma nuvem preta se formou a barlavento. O mar estava arrumado, a velejada confortável, quando a nuvem chegou com uma refrega pequena. Sem fazer barulho o mastro arriou para sotavento, dobrando entre o garlindéu e a primeira cruzeta. Chamei Lito com voz tranqüila, e ele levantou irado dizendo que era meu turno e que o deixasse dormir. - Mas o mastro caiu, disse eu. - Isso não é hora para brincadeira, disse ele. - Então olhe! Ele olhou para cima de dentro da cabine e ficou estupefato. - E isso são modos de me dizer? - O que você quer, que fique pulando e gritando? Ai a chuva da nuvem preta chegou, fininha. - O que você acha? Da para esperar a chuva passar? A chuva foi rápida. Todos no convés para trabalhar. Lito foi para proa e começou a desarmar o enrolador da genoa. Soltei a adriça e recolhemos o head-foil e a genoa sem maiores danos, mas a mestra não tinha como tirar do mastro dobrado, a menos que cortasse. Coloquei um moitão de escota de balão no ultimo furo do guard-rail, na popa, passei por ele a adriça da genoa e puxei o tope do mastro para a popa com a catraca grande. O mastro ficou como um cotovelo, a parte dobrada lançada para fora a boreste, e o tope apoiado no convés e amarrado no guarda-mancebo de popa. Lena foi engatinhando pelo mastro, agora quase na horizontal, e recolheu a vela mestra para cima, dobrando sobre o mastro e ferrando da melhor maneira possível. Estelinha ajudava como podia. Em meia hora não tinha mais nada na água e estávamos prontos para navegar. Marquei a direção de Ilhéus no rádiogoniômetro, ligamos o motor e pela madrugada atracamos com defensas por bombordo no cais do Porto de Malhado. 28 Acordamos tarde, olhamos o estrago e vimos que a solução era um mastro novo. Fomos almoçar na cidade, e disse a Lito que ia passar numa agencia de turismo e arrumar uma passagem de avião para mim e para Lena para Porto Seguro, afim de aproveitar as férias. Ai Estelinha disse: também vou! E Lito: eu não vou ficar aqui sozinho! Voltamos para o barco de barriga cheia, bom humor, e sentamos debaixo de uma árvore para tomar um licor. A parte de cima do mastro, de baixo da primeira cruzeta até o tope estava aproveitável, e sugeri que tentássemos fazer uma mastreação de fortuna. Todo mundo aderiu no maior entusiasmo. Trabalhamos até a hora do jantar removendo o mastro, separando o material aproveitável e serrando no ponto que fletiu. Fomos jantar pitu no 'Céu é o Limite', um restaurante típico na margem do Rio Cachoeira que eu tinha ficado freguês o ano passado quando estava remapeando a Bacia de Almada. No dia seguinte ao meio dia estava pronto: enfiamos o pedaço de mastro na enora, usamos os estais de força como brandais e estai de proa, e um dos brandais como estai de popa. A vela mestra não dava para usar, secamos e guardamos; subimos a genoa com o punho da escota na adriça, isto é, a esteira como testa, a valuma como valuma, e o tope como ponto de escota que era caçado quase na popa. Reabastecemos o barco, e Lito entusiasmado: pronto, vamos para Abrolhos! Mas eu não compartilhava com as maluquices de Lito. No dia seguinte, terça-feira dia 6, navegamos para o norte com vela e motor. Pela tarde entramos em Itacaré. Dia seguinte continuamos para norte e entramos em Camamu. Lena resolveu desembarcar e voltar de ônibus para Salvador. Não registrei o motivo que ela deu, mas lembro que Lito estava ficando chato, grosseiro e brigando com Estelinha. Na quinta, dia 8, fizemos Camamu – Morro de São Paulo, quando embarcamos uma barracuda que Lito serviu com vinho. No sábado de madrugada estávamos de volta à Ribeira, mas o mastrinho de fortuna ficou em operação por todo o resto do ano! Dia 1 de julho sai de férias, viajando com Lena para pescar no Pantanal do Mato Grosso, esquiar em Bariloche na Argentina, atravessar os Lagos Andinos até Puerto Montt, rodar de Toyota no Deserto de Atacama e visitar Macchu Picchu no Peru. Fomos de avião para Corumbá, Mato Grosso do Sul, margem esquerda do rio Paraguai, na tríplice fronteira Brasil, Bolívia e Paraguai. Corumbá fica bem no meio da América do Sul, numa planície baixa e extensa, o Pantanal, com altitude entre 100 e 200 metros, entre os Andes e o Planalto Central do Brasil. Nesta planície acumulamse por sobre um substrato de calcário pré-Cambriano sedimentos aluviais trazidos das áreas altas, compondo um excelente modelo sedimentar em bacia intra-cratônica. Julho é o mês que chove menos e a temperatura é mais amena. De Corumbá fomos para o sul, numa kombi da Evidência Liguepesca, uma empresa de turismo, num safári para a Fazenda Santa Clara. Ao longo da estrada brincamos com uma sucuri, vimos muitos jacarés, tuiuiús, capivaras e cotias. Um pássaro comum na estrada é o carcará. Os peões tem sotaque de paulista. Da sede da fazenda subimos de 'voadeira' o rio Abrobal no final da tarde para ver o poleiro onde as garças e os frangos d'água vão dormir. Estimamos que chegaram uns 5000 pássaros no poleiro. No dia seguinte saímos para passeio a cavalo e pesca de 29 barranco. Sai montado em Maravilha, uma égua velha e fogosa. Lena foi num cavalo preto e preguiçoso. Fomos tocar o gado e o cavalo preto não queria galopar. Troquei com Lena e quando chicoteava o cavalo ele saltava e empinava, mas acabou se acomodando. As fotos abaixo mostram na esquerda uma revoada de pássaros indo para o poleiro, e na direita Lena na Fazenda Santa Clara com três das mais de 600 espécies de aves catalogadas na região. Em julho de 1990 estava em curso a 14ª copa do mundo de futebol na Itália. Dia 3 voltamos de ônibus para Corumbá, e havia um jogo Itália e Argentina. A Itália, anfitriã e favorita, perdeu nas semifinais por pênaltis. Assistimos a final, Argentina e Alemanha em Buenos Aires, no Clube Náutico San Isidro. A Alemanha foi campeã! Dia 4 de julho embarcamos às 7 horas no Trem do Pantanal, onde nos divertimos numa cabine simples mas privada. Havia um vagão restaurante. A locomotiva era uma 'Maria Fumaça' que atravessa todo o Mato Grosso do Sul a 40 km/h, uma viagem tranquila com uma paisagem que não cansa; no segundo dia cruza o Rio Paraná logo abaixo de onde ele recebe o Tietê e ai pudemos sentir o contraste entre as regiões sudeste e centro-oeste do Brasil. No estado de São Paulo a ferrovia segue paralela ao Rio Tietê uns 30 km pelo sul, chegando a Bauru, fim da linha de 1200 km. A viagem durou 36 horas. Em Bauru fomos visitar o campus da UNESP, jantamos e seguimos na mesma noite, às 23:30, agora num trem expresso da decadente Rede Ferroviária Noroeste. Chegamos em São Paulo às 6 da matina, dia 6. Visitamos Felipão que nos esperava no apartamento dele. Ele foi trabalhar e nos deixou à vontade. Tomamos banho e seguimos para o aeroporto de Guarulhos de onde voamos para Buenos Aires chegando à noite. Tínhamos reserva no Hotel Regente. No sábado, dia 7 fizemos um city tour e à noite fomos ao 'Tango Mio' assistir um show com jantar. Coisa de turista, mas Lena gostou. Fazia frio. No domingo passamos o dia no iate clube em San Isidro, um dos maiores de Buenos Aires e que tem convenio com o Iate Clube da Bahia. Tadinhos dos argentinos, ficaram desolados com o gol de pênalti dos alemães aos 40 minutos do segundo tempo. Nem deu para ver muito choro, porque o jogo logo acabou e fomos embora. 30 O Rio Paraguai depois que atravessa os alagadiços do Pantanal no Brasil e no Paraguai, delimita a fronteira nordeste Argentina - Paraguai no Chaco, e na cidade Argentina de Corrientes se junta com o Rio Paraná, seguindo pela Argentina com o nome de Paraná, até que em Buenos Aires recebe pela margem esquerda o Rio Uruguai, formando uma baía com 120 milhas náuticas de comprimento. Esta baía é conhecida como Rio de la Plata; a água é barrenta, cheia de barras de areia e lama e com uma maré com amplitude máxima de 0,6m. O acesso por mar de Montevidéu até Buenos Aires é feito através de um canal artificial, o Canal Punta Índio, com profundidade de 10m. No dia 9 de julho fizemos um tour num catamarã grande, e à noite fomos a uma churrascaria famosa, onde soubemos que Fernando Collor, presidente do Brasil, havia jantado na véspera. Dia 10 o vôo da manhã que tínhamos reservado para Bariloche não existia mais. Fomos num vôo direto às 16 horas, atravessando os Pampas argentinos e o Rio Colorado já no escuro, pois aqui no inverno o sol se põe às 16:30. Em compensação o Cruzeiro do Sul estava alto, a 70° de altura. Bariloche fica na borda noroeste da Patagônia, 1400 km a sudoeste de Buenos Aires, no meio da cadeia dos Andes, na margem sul do lago Nahuel Huapi; na mesma latitude de Puerto Montt (41°S) e a uns 50 quilômetros da fronteira com o Chile. Em Bariloche o hotel Bela Vista dizia não ter confirmação da reserva (o que achei que era mentira) e nos deslocou para o Nevada. Para compensar os transtornos jantamos hoje uma truta deliciosa. Na quarta, 11 de julho fizemos um tour matinal de ônibus, beirando o lago, e à tarde fomos ao Cerro Catedral, onde alugamos roupa para neve, subimos no teleférico e descemos escorregando do 3° para o 2° estágio. Decididamente esta não é a minha praia. Bariloche tem uma paisagem belíssima, mas é uma arapuca para o turista. Fiquei agoniado quando cheguei e aliviado quando sai. Dia 12 caímos fora da Argentina. O 'Cruce de Lagos' é um percurso de uns 200 km, que fizemos em dois dias. Saímos do hotel de ônibus até Pto. Blest, na beira do lago 31 Nahuel Huapi, onde embarcamos num catamarã. Embora as montanhas na Patagônia tenham entre 1000 e 3000 metros de altitude, os lagos, com profundidade máxima da ordem de 200-300 metros, são escalonados, o Nahuel Huapi, o mais alto do percurso, com a superfície na cota de 767 metros. Os lagos juntam a água do degelo, e tornamse mais baixos para oeste, na direção do Pacífico. Desembarcamos em Puerto Pañuelo, e pegamos um microônibus que seguiu por uma estradinha sem pavimento próxima à geleira do Tronador. A fronteira com o Chile passamos a pé, carregando as sacolas. Um ônibus chileno nos levou até Puella, na beira do lago Todos os Santos, onde nos instalamos no hotel Natura Patagônia, que Lena gostou. Dia seguinte embarcamos numa lancha, a MN. Puella e navegamos pelo lago Todos os Santos que de manhã estava emoldurado com um arco-íris. O guia nos falou dos Alacalufe, 'os gigantes do fim do mundo' que viviam por aqui até 1920. Desembarcamos em Petrohué e seguimos de ônibus até Puerto Varas, onde visitamos o cassino e nos instalamos no Hotel Cabanas do Lago. No sábado, 14 de julho, chegamos em Puerto Montt. Esta região experimentou no final do Séc. XIX uma colonização alemã, bem preservada na arquitetura. Ela ocupa uma posição estratégica, como ponto de partida para atrações turísticas dos fiordes do sul do Chile e como porto marítimo para as regiões mais austrais da América. Daqui saem os cruzeiros do Skorpios, que visitam as geleiras azuis, resquícios da ultima glaciação, a um preço (janeiro de 2008) de 2 mil dólares por passageiro, tudo incluso a partir de Puerto Montt. À tardinha saímos do aeroporto internacional "El Tepual", para uma rápida parada em Santiago, onde nos instalamos num 5 estrelas 'downtown', o Hotel Galerias. Dia seguinte à tarde voamos para Calama, no norte do Chile, pouco acima de Antofagasta. O Chile é uma tripa com 4 mil km de comprimento de norte a sul, e uma largura variável de 100 a 300 km. Calama fica no trópico de Capricórnio, na mesma latitude do Rio de Janeiro, e funciona como base de apoio da maior mina de cobre conhecida em atividade, Chuquicamata. Esta região é a porta do deserto mais árido do mundo, 32 1. Skorpios em Puerto Montt; 2. Eu nas dunas no deserto de Atacama; 3. Arco-iris contornando o derrame de lava no lago Todos os Santos. 4. Lena atravessando a pé a ponte na fronteira Argentina – Chile. O Atacama, na parte mais baixa do Altiplano entre a Cordilheira Ocidental e a Cordilheira Central dos Andes (San Pedro de Atacama, h=2400m). Em Calama vi o tal do 'Trem da Morte', que vem de Corumbá. É horrível, um misto de carga e passageiros que anda a 10 km/h. Alugamos um jipe Toyota para visitar as minas e o deserto. Quem trabalha nas minas ganha de 3 a 6 vezes mais que os outros trabalhadores do Chile. Mas a condição de trabalho é muito dura, principalmente na fundição. É um dos piores ambientes de trabalho que já vi. O minério ocorre no granodiorito com uma concentração de 1,4 % de cobre. A parte de cima é de óxidos (ankerita, brochantita e atacamita), e para baixo ocorrem sulfetos (calcosina, covelina, calcopirita e enargita). A fase inicial da lavra, a que mobiliza os maiores volumes, funde o minério a 1300°C separando o 'mate', com 44% de cobre. Dai o minério vai para os fornos conversores, onde se injeta ar para eliminar impurezas e se obtém o 'blister' a 99%. Dai para os fornos de refino, onde ajustando o teor de oxigênio se elimina o enxofre conseguindo o cobre anódico com 99,6 até 99,8% de cobre. A fundição opera 1700 toneladas por dia. Seguimos para sudeste, na direção da tripla fronteira Chile, Bolívia e Argentina, pelo Vale da Lua até San Pedro de Atacama. Visitamos o museu onde fica exibida 'Miss Chile', a múmia desidratada de uma mulher de 2000 anos, bem preservada, com os 33 cabelos penteados. A mumificação é rudimentar, mas o clima é tão seco que encontram-se pelo campo verdadeiros cemitérios, os mais velhos datados de 6000 anos, onde tem ocorrido vandalização. Paramos em um destes próximo à Pukara de Quitou, uma antiga fortaleza dos Incas, e Lena sentou para ser fotografada carregando a múmia de um bebê. O Chile mantém ai um 'Instituto de Invesigaciones Arqueológicas' ligado à Universidad Del Norte. A ocupação mais velha foi datada de 13 mil anos; o início da atividade agrícola e a domesticação da llama de 6 a 5 mil anos; cerâmica e metalurgia do cobre 4 mil anos, quando os Atacameños tornaram-se sedentários, isto é, com habitação fixa. Eles foram dominados pelos Incas quando da expansão do império destes, no ano 1450 do nosso calendário. Em 1600 chegaram os espanhóis. Em San Pedro de Atacama pernoitamos na única pousada existente. Estava frio, abaixo de zero, e jantamos com os pés quase dentro da lareira, com vinho e conhaque. Estávamos empoeirados da viagem no jipe e Lena decidiu tomar banho antes de dormir. Eu tirei as botas e o casaco e me entoquei debaixo dos cobertores de roupa e tudo. A água quente não funcionou, ela tomou banho gelado e foi deitar. Eu acordei com o barulho dela batendo os dentes, tiritando de frio. Acendi a luz, a menina estava roxa, mas não reclamava. Puxei-a para debaixo de minhas cobertas que já estavam aquecidas, ela parou de tremer e conseguiu dormir. No dia seguinte saímos cedo para ver a atividade vulcânica (El Tatio geysers) ao amanhecer. O Salar de Atacama é um sabkha1 limitado a leste por um arco vulcânico na borda ocidental da Cordilheira Central e a oeste por enormes dunas eólicas. Alguns vulcões estão ativos, com fumarolas contínuas e eventuais explosões de cinza e lava. Até cerca de 5 km do vulcão o chão é de dejetos vulcânicos. Daí para o interior do salar começa anidrita nodular, halita em placas que se quebram de forma pentagonal e hexagonal, e depois montículos como pequenos domos. A zonação se repete simetricamente para oeste até o campo de dunas. As dunas são pouco móveis apesar do vento forte, contínuo e frio. Existe pouca areia e a forma das dunas acompanha o controle da estrutura dobrada, daí ser irregular. 1 Sabkha – ambiente sedimentar em clima árido onde ocorre deposição de evaporitos: anidrita, halita e eventualmente sais de potássio. 34 À tardinha voltamos para Calama, devolvemos o carro, nos banhamos num hotel, e às 21:30 de terça-feira 17 de julho de 1990 embarcamos num ônibus de boa qualidade para uma viagem noturna de 600 quilômetros até Arica, extremo norte do Chile, na fronteira com o Peru. Em Arica, na manhã do dia 18 pegamos um táxi na rodoviária e fomos a uma agência de turismo, que nos encaminhou a um 'coletivo', uma lotação que atravessa a fronteira até Tacna, no Peru. Ai o mundo muda, socialmente para muito pior. Caminhamos até a estação ferroviária, e não vimos perspectiva de ir de trem até Cuzco. Caminhamos para a rodoviária, e após atraso de 3 horas partimos num ônibus velho para Arequipa, 350 km para noroeste, o quartel general do Sendero Luminoso. A viagem foi muito interessante e perigosa. Várias paradas para que a polícia vistoriasse o ônibus. Lena com folhas de coca escondidas na caixa dos óculos, lá pras tantas aderiu ao procedimento normal e fez xixi na beira da estrada. Em Arequipa pegamos um táxi e fomos à estação ferroviária, que não funcionava! Uma aglomeração de pessoas irritadas e barulhentas. Ai resolvemos descansar, e nos instalamos num hotel razoavelmente confortável, com diária de 40 dólares. No dia seguinte fomos para o aeroporto e conseguimos um vôo para Cuzco, após alguns pequenos inconvenientes. Tudo no Peru estava mal, o presidente Alberto Fujimori, apoiado pelas Forças Armadas havia implantado uma ditadura fisiológica e o povo estava revoltado e oprimido. Mas chegamos em Cuzco pela tarde. 35 Em Cuzco, que eu tinha visitado em 1984, a situação estava deplorável. Muita miséria. Ficamos num hotel que faltava água. Depois descobrimos que todos faltavam. Lena foi a um city tour e eu fui providenciar a viagem para Machu Picchu. À noite fomos a um jantar de turista, com show, na Plaza de Armas. Fomos para Machu Picchu num trem de turista, caro para o padrão local mas com um mínimo de eficiência. A foto abaixo à esquerda é num ponto onde o trem tem que manobrar na encosta da montanha, na margem do rio Urubamba. A da direita é numa das portas de entrada da cidade, exibindo a engenharia dos incas. Na descida das ruínas, enquanto o microônibus fazia o zigue-zague da estradinha que vai contornando o morro, um adolescente de seus 15 anos desce correndo em linha reta e espera o ônibus em cada nível, bradando 'good-bye'. Em baixo, junto ao trem ele se chega para receber uma propina pelo feito. Em 1984 ele bradava 'adiós'; perguntei porque havia mudado, e ele: - estou fazendo este trabalho há 2 anos; o outro já é homem! No sábado, 21, fizemos um vôo doméstico Cuzco – Lima, com grande atraso. Como tínhamos tempo fomos almoçar na cidade para Lena conhecer. Lá havia uma passeata e estava faltando luz e água. Fizemos uma conexão para São Paulo, onde comprei no duty-free-shop um forno de microondas para substituir o velho de 3 anos que pifara (este novo ainda funciona normal, com 18 anos nunca quebrou!) , e embarcamos num DC10, classe executiva, retornando ao trabalho na segunda 23. 36 RUSSIA, 1991 Neste ano montei um projeto para sempre que possível viver no verão, e marquei férias para julho. Foi em 1991 que houve uma abertura na possibilidade de visitar a União Soviética, um país criado em 1922 com o objetivo comunista, onde não existia a propriedade privada dos meios de produção. O sistema comunista funcionou durante décadas, como uma utopia operária onde haveria uma distribuição igualitária da riqueza por toda a população. Ao final da 2ª Guerra Mundial a URSS era uma potência com extraordinário desenvolvimento social e econômico. Mas nos anos 70, o modelo político-econômico soviético que havia transformado o país numa superpotência, começava a dar sinais de exaustão. Apesar de o povo poder comprar apartamento barato, ter saúde pública e ensino gratuito, as condições de vida da população quando comparadas com as do mundo capitalista começaram a piorar rapidamente. No final dos anos 80 o presidente da URSS Mikhail Gorbatchev ciente dos problemas que o país atravessava decidiu adotar dois conjuntos de reformas. A Perestroika, ou Reestruturação, que visava mudar as condições econômicas do Estado permitindo a volta da propriedade privada e do capitalismo, e a Glasnost, ou Transparência, com o objetivo de mudar a estrutura política e abrir caminho para o surgimento de mecanismos de expressão democrática. Em 1990 Gorbatchev ganhou o Premio Nobel da Paz. Em 1991 abriu o país ao turismo internacional e eu fui numa das primeiras levas, permanecendo na Rússia no período de 1 a 14 de julho. No dia 19 de agosto irrompeu uma tentativa de golpe de estado organizado pelos militares conservadores, o qual foi controlado no dia 21 pelo Presidente da Rússia, Boris Yeltsin com o apoio popular de milhares de manifestantes que se reuniram em Moscou, debaixo de chuva forte, na região do Parlamento. Em 25 de dezembro, Mikhail Gorbatchev foi à TV anunciar que estava renunciando ao cargo de presidente da URSS, que deixava de existir. A bandeira vermelha com a foice e o martelo foi substituída nos mastros do Kremlin pela bandeira branca, azul e vermelha da Federação Russa. A minha viagem de ida foi Salvador, Rio, Frankfurt, Moscou, onde integrei um grupo de espanhóis e argentinos para irmos juntos para Sibéria. O visto para União Soviética era dado ao grupo, e de cada um era exigido um seguro saúde particular. A diferença de fuso horário de Salvador para Moscou era de seis horas, adiantando o relógio. Minha primeira impressão sobre os russos foi no vôo da Lufthansa, Frankfurt-Moscou, quando sentei junto a um grupo de músicos que tinha ido se apresentar na Alemanha. Achei que os russos externam um sentimento de falta de individualidade, não gostam de quem são. Achavam triste estar bebendo vodka Smirnoff 'made in USA'. Quando aterrissamos no Aeroporto Internacional de Moscou eu estava viajando há 22 horas. Nós turistas aguardamos confinados mais de uma hora para liberar a bagagem. A polícia alfandegária então nos encaminhou para um salão que parecia uma estação rodoviária, suja, que suponho era a imigração, tudo escrito naquele alfabeto diferente. Tentando, acabei chegando a um balcão onde uma mulher grande e gorda falava inglês. Mostrei meu passaporte e ela abriu um caderno enorme, enorme mesmo, tanto 37 no tamanho quanto no numero de páginas e foi folheando até achar meu nome; mas não carimbou o passaporte, simplesmente me disse o hotel que eu deveria ficar. - E como vou pra lá? - Seu grupo vai chegar daqui a três horas. - Posso pegar um táxi? - Naturalmente. E me apontou para um fulano. Ai ficou tudo mais fácil. No táxi troquei dólar por rublo; no 'cambio negro', onde o dólar valia 30 (trinta) vezes mais que o cambio oficial! Na recepção do hotel, que era obviamente propriedade do Estado, me deram a chave de um quarto e perguntaram, em inglês, se eu preferia jantar às 7 ou às 8 horas. Preferi mais cedo, subi, tomei banho e esperei a hora do jantar. No restaurante fui encaminhado para uma mesa, e um rapaz deixou de uma só vez um prato de sopa, umas almôndegas com verdura, um sorvete e um café! Tinha cinzeiro na mesa. Depois do jantar finalmente localizei meu grupo. O guia local, um russo que apelidei de Major, marcou a hora da saída na manhã seguinte, falando castelhano fluente. Foram dois dias em Moscou, quando visitamos o Kremlin e a Praça Vermelha, templos da igreja ortodoxa, de gosto discutível, o suntuosíssimo túmulo de Lênin – que morreu em 1924 - com o corpo embalsamado e muito bem cuidado, a exposição dos 'Avanços Econômicos da Rússia', com um pavilhão dedicado às conquistas espaciais, onde pude ver as cápsulas que levam gente para o espaço, e na ultima noite o Circo de Moscou. Ai voamos Moscou – Yrkutsk passando por cima dos montes Urais. A diferença de longitude de Moscou para Yrkutsk, que está no meio da Sibéria, é de 70°, ou seja, 5 horas, quase a mesma coisa que de Moscou para o Brasil! Não é à-toa que a Rússia é o maior país do mundo. Yrkutsk está no planalto central siberiano, na beira do lago Baikal, o maior do mundo em volume de água, em profundidade e em idade, 25 milhões de anos. Deságuam nele cerca de 300 rios, e sai só um, o Rio Lena, que drena para o Oceano Ártico. Em Yrkutsk juntou-se ao nosso grupo uma guia local, Tatiana, e quando nos vimos foi paixão à primeira vista. E olhe que ela só fala russo! Mas o Major havia levado para auxiliá-lo um rapaz colombiano que estudava geologia em Moscou, estava em férias de verão e foi junto. O rapaz obviamente falava russo, e me tratava com a deferência que um estudante de geologia dedica a um geólogo experiente. Tatiana nos levou para velejar no lago Baikal, e na volta pedi ao estudante para convidá-la para jantar fora do hotel. Foi um jantar monumental, com vodka, champagne e caviar, e no final, com o cambio negro, ficou o preço de um MacDonalds! Tatiana me levou para casa dela e começamos um romance que durou 3 dias mas foi intenso. 38 Se você olhar bem a foto da proa do catamarã, vai ver uma catraca, um bujão de gás e um stopper de adriça num lugar esquisito. Veleiro nestas paragens não é uma coisa corriqueira. O bujão de gás é para o aquecimento da cabine, coisa que neste dia de verão (5 de julho 1991) não foi necessário. Na foto da direita, Tatiana, com cabelos castanhos, coisa pouco comum a oeste dos Urais. O que se observa na Rússia siberiana é que quando você vai andando para leste a influência européia vai se esmaecendo, os tipos físicos e os costumes passam a ser mais influenciados pelos mongóis, pelos chineses e no extremo leste pelos japoneses. A conversa com Tatiana no começo foi complicada. Ela tinha em casa um dicionário inglês-russo, e eu tinha uma 'pesca' onde conseguia dizer o som equivalente às 33 letras do alfabeto cirílico, uma mistura da simbologia grega e hebraica. Mas depois de uns conhaques com café ela falava russo e eu falava português, ambos em alto astral e bom humor, e passamos a nos comunicar maravilhosamente bem. Uma coisa não consegui entender: ela me deu um maço de cigarros de fumo preto, tipo os Gauloises franceses, a parte de cigarro com uns 4 cm (o nosso tem 6cm), e no lugar do filtro, um tubo de papelão vazio do mesmo tamanho do cigarro. Só dias depois, no trem, o Major me explicou: o tubo longo e vazio é porque no inverno todos usam luvas grossas, e sem o tubo o cigarro queima as luvas! A despedida de Tatiana foi na estação ferroviária, as espanholas fazendo a maior onda ... leva ela, leva ela. Quando finalmente embarquei, descobri que a cabine a mim reservada no pacote do turismo era comunitária, para quatro pessoas. Lá estavam uma russa feia, o Major e o estudante de geologia colombiano. Um casal de argentinos também foi alojado com outro casal desconhecido numa cabine de quatro. Chamei o Major, nos dirigimos ao Chefe do Trem e deixei claro que não estava a fim de ir numa cabine comunitária. Depois de uma longa conversa em russo, o Major me traduziu: existe um vagão com cabines privativas, uma delas está vaga, mas para mudar a reserva que está no seu bilhete tem que pagar um extra, e é caro. O valor que eles disseram em rublos era mais ou menos o salário mensal de um engenheiro russo. Aceitei, e com o câmbio negro... ficou em 50 dólares. Do que tenho lembrança, este foi talvez o melhor negócio que já fiz. 39 No meu vagão, o de número 1, tinha uma camareira bonitinha, Lida, que ia tomar chá na minha cabine. No terceiro dia de viagem no trem foi aniversário de Telma, uma veinha argentina que quebrou a perna em Yrkutsk, e as espanholas foram para o vagão restaurante preparar uma tortilla. Eu ajudei cortando cebola, e pronto... me entrosei com as espanholas. Telma devia ter mais de 70 anos, e viajava com uma dama de companhia de seus sessenta e qualquer coisa. Em Yrkutsk ela escorregou, foi hospitalizada e ficou encantada com o atendimento dos russos, que recomendaram que ela voltasse para a Argentina. -- De jeito algum, essa é a viagem dos meus sonhos, e se eu morrer por causa desta perna está ótimo. Ela andava pelo trem de cadeira de rodas, e com simpatia passou a ser paparicada por todos. A Sibéria me lembrou a Amazônia, no sentido que a ferrovia trans-siberiana, como o rio, ambos funcionam como um elemento de integração. No Amazonas, se você se afasta do caminho dos barcos que atendem às comunidades não existe nada de humano 'civilizado'. Na Sibéria, a ferrovia é implantada sobre extensa planície aluvial bem a sul da linha do permafrost, com clima continental subártico, baixa diversidade de fauna e flora. Ao longo da ferrovia se vê no verão muita água de degelo, agricultura extensiva, pecuária, mineração, campos de petróleo... uma riqueza; mas a maior rodovia que vi é sem pavimentação, a da segunda foto abaixo, e tive a impressão que se afastando um pouco da ferrovia só existe a taiga próxima de coníferas e a estepe virgem e gelada para mais além. A última foto na página seguinte é na estação de Khabarovsk (na frente da qual eu estou de bermudas, e que em russo se escreve daquele jeito na fachada), o ponto mais oriental da ferrovia, na margem do Rio Amur, terra dos cossacos a 30 km da esquina nordeste da China. A primeira foto é a ponte sobre o Rio Amur, que daí escoa para nordeste, enquanto que a ferrovia ainda segue para sudoeste até Vladivostok, o fim da linha. Khabarovsk fica a 135°E, e São Petersburgo, antiga capital da Rússia, que em julho de 1991 ainda era Leningrado, fica a 30°E, uma diferença de 7 fusos horários. Fizemos um vôo doméstico direto de 8 horas num Tupolev TU-154M da Aeroflot, que decolou às 20 horas da 'tarde', quando o por do sol seria na hora local 20:53. Mas nas 8 horas de vôo atrasamos o relógio de 7 horas voando para noroeste, de forma que foi um por do sol de 8 horas a 10000 metros de altura! Não é todo dia que um nativo das Américas acostumado a voar norte – sul tem uma chance destas. 40 A área de Petrogrado foi conquistada dos suecos pelo tzar Pedro 'o Grande', que fundou em 1703 a 'Cidade de São Pedro', imitando Paris, e transferiu para lá a capital da Rússia em 1712. A cidade funcionou como capital do império até o seu fim, quando da revolução russa de 1917. Em 1918, a capital da nova União das Republicas Socialistas Soviéticas (URSS, em russo CCCP) foi transferida para Moscou, mais central. Quando da morte de Lênin em 1924, Petrogrado foi renomeada para Leningrado. Com a extinção da União Soviética em dezembro de 1991 foi de novo renomeada como São Petersburgo. A cidade embora na latitude de 60°N tem o clima amenizado pela influência da circulação atmosférica do Mar Báltico. As atividades turísticas aí são dirigidas para a arquitetura da cidade imperial com seus palácios, para os ícones da revolução russa, como o Couraçado Potemkim e a sede do Soviete de Petrogrado, (Conselho Operário de Lenin), para o Museu Hermitage reconstruído após a 2ª Guerra Mundial na margem do Rio Neva, com um acervo de arte desde a idade da pedra até o Séc.XX e o elegantíssimo cemitério comemorativo Piskarevskoye, onde estão enterrados mais de 500 mil vítimas do bloqueio de 900 dias ao qual Leningrado foi submetida pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial 41 O Rio Neva embora seja curto, jovem (3 mil anos) e fique congelado quase 5 meses por ano, é largo e forma um delta de porte com dezenas de ilhas ao desembocar no Golfo da Finlândia. A cidade de São Petersburgo, com mais de 4 milhões de habitantes está implantada na planície deltáica. A esta altura eu já estava entrosado com as espanholas e fomos ver a geologia e fazer um cruzeirinho pelo golfo num aerobarco. O Golfo da Finlândia é um apêndice do Mar Báltico com umas 400 milhas de extensão E-W, separa a Finlândia da Estônia, e a manter o rumo para oeste pelo Báltico se chega a Estocolmo, na Suécia. No sábado, 13, Ira, a lourinha da foto acima à esquerda me levou ao aeroporto e voei para Paris. Charlie e Gisa me esperavam no Charles de Gaulle, e me levaram para casa deles. Ai gripei, os brônquios inflamaram e até tive febre. Como tínhamos programado descer de carro para o sul da França na quarta-feira, na terça Charlie me levou a um médico velejador, que me tratou com antibiótico e expectorante. Muito eficiente, na quarta já estava bom. 42 Fomos passeando, Charlie me ciceroneando de Paris até Antibes, na Côte d'Azur, marina Baie dês Anjes. A foto da direita acima é o Sunkiss 47 que ele comprou com a herança do pai, Henry Gauglième, que ganhou um bom dinheiro como compositor, sendo 'La vie en rose' a música dele mais famosa. Charlie é o careca da foto da esquerda. Ele disse que quando conheceu Gisa ela se encantara porque ele era bonito e inteligente. Agora, com a herança, ele era bonito, inteligente e rico! Compraram o barco para fazer uma volta ao mundo. Daí perguntei: - Vão passar na Bahia quando forem para oeste? E Charlie: - É muito perigoso. Talvez na volta, se voltarmos pelo sul da África. Se passarmos na ida somos capazes de desistir da viagem e ficar por lá. Passeamos lá pelo sul da França, depois peguei um trem noturno e fui para Genève. Em agosto deste ano eles passaram aqui em Salvador, viajando de avião, e recepcionei-os com um jantar no Bargaço. Depois nunca mais tive notícias deles. Anos depois soube por Sampaio que eles tinham separado. Na Suissa encontrei Reco e Elaine, conforme combinado. Eles estavam morando na Europa e viajaram na 'carrinha', um Morris Mini velho com cheiro de amor. Ai acabaram as férias e voltei, com saudades de Lena; desde o retorno do carnaval lá no Morro de São Paulo que estávamos 'terminados'. Liguei e retornamos o namoro, que entre rusgas e beijos durou mais um ano e meio. 43 CHINA A China é um mistério porque a história que conhecemos é a mal contada pelos ingleses e portugueses que lá chegaram na 'nossa' idade moderna. As evidências que os chineses se desenvolveram muito antes que os europeus são vastas. A escrita e a literatura, o sistema decimal e a fundição do bronze aconteceram na China muito antes que na Europa. Invenções várias que permitiram que os europeus dominassem o mundo na idade moderna, como a pólvora, a bússola e a imprensa, foram importadas da China. Daí a relevância e o respeito que o mundo ocidental ainda tem ao relato do croata-veneziano Marco Polo, que percorreu a Rota da Seda enquanto os europeus se digladiavam com as Cruzadas. O lado bom desta história contada pelos vencedores de antanho é que nela se tem acesso aos podres da sociedade chinesa. Muito em breve, neste século XXI, os chineses vão ter a Hollywood deles para encobrir suas mazelas, glorificar seus heróis e seu 'way of life', como quer que isso venha a ser dito na língua que nossos netos vão aprender na escola. Do que se pode tirar das enciclopédias ocidentais, depreende-se que a ocupação da China foi feita por vários grupos nômades que se juntaram na região da Mesopotâmia Chinesa, entre o vale do rio Amarelo, que corre para nordeste, e o vale do rio Azul (Yang-tze), que depois de muitas represas desemboca a leste, em Shanghai. Esta região baixa é assim como Paraguai+Uruguai+Argentina sem a Patagônia, e é a mais apropriada para ocupação humana na China. Foi ai que eles desenvolveram uma agricultura extensiva. Mas esta planície central é naturalmente isolada, com áreas montanhosas pelo sul na península da Indochina, com os imponentes Himalaias pelo oeste, o deserto de Gobi pelo norte e o mar da China pelo leste. No meio da planície agriculturável está Nanquim, 'a capital do sul' que já era, com outro nome, o centro do império Qin, contemporâneo com os impérios egípcio e grego. Hoje a China continental tem 22 Províncias e 5 Regiões Autônomas (minorias étnicas nas montanhas ricas em recursos minerais) que compõem o país, algo em número e área com semelhanças com os Estados que compõem a República Federativa do Brasil. A China já era unificada na época da construção da Grande Muralha, meio milênio antes de Cristo (quando viveu Kung-Fu-tse, que os jesuítas católicos apelidaram de Confúcio), e alcançou a 'idade moderna' com renascimento e tudo na Dinastia Sung, pouco antes do ano 1000 do nosso calendário. Nesta fase foram disponibilizados livros que permitiram uma elevação do nível de educação e uma diversificação da interpretação dos dogmas de Confúcio; houve difusão da arte, do drama e da ficção, valorização dos talentos; foram criados partidos políticos com propostas distintas para a sociedade, declínio da aristocracia e crescimento da economia com a emissão de dinheiro de papel a partir de 1024. Em 1127 foi criada uma marinha de guerra no mar do sul, que dez anos depois tinha 20 esquadrões equipados com armas de fogo e uma tripulação de 52000 homens. Esta fase boa durou até 1215, quando Genghis Khan, o mongol, vindo do norte, saqueou Pequim, dominou os agricultores das planícies centrais e assumiu a soberania imperial. Repetiu na China o que seu ancestral, o também mongol Atila o Huno, fez 800 anos antes com o Império Romano. Mas a China era muito mais estruturada, e meio século depois seu neto, Kublai Kahn 44 transferiu a capital do império mongol para Pequim. No reinado de Kublai, e com 'tecnologia' importada dos muçulmanos, a China tornou-se o mais avançado centro de conhecimento de matemática e astronomia da época. O zero já tinha sido incorporado na matemática chinesa desde a Dinastia Sung. Em 1330 os chineses publicaram um mapa do mundo conhecido, abrangendo toda a Ásia, Europa e África. Acompanhe os quatro grandes rios da China de hoje, todos desaguando no Pacifico: lá no norte da Manchúria, o Amur, fazendo a fronteira com a Rússia. I've been there! Depois o Rio Amarelo, que faz dois meandros enormes contornando Pequim (Beijing). Depois o Rio Azul, que passa em Nanquim e deságua em Shanghai. E por último o Rio Pérola que forma um delta com vértices em Cantão, Hong Kong e Macau. Com a morte de Kublai em 1294 a administração dos mongóis perdeu força, a receita dos impostos caiu, mas as despesas de manutenção da nobreza mongol, do budismo e do taoísmo continuou a mesma. O dinheiro se desvalorizou tanto que deixou de ser 45 impresso em 1356. Em 1351 o rio Amarelo transbordou do seu leito, inundou a planície, e o transporte de grãos para as províncias metropolitanas do norte foi descontinuado, causando fome na corte. Os líderes das Províncias começaram a brigar uns contra os outros e todos contra os mongóis, de forma que em 1368 só sobrou um, de origem humilde, Hung Wu, o fundador da Dinastia Ming. A Dinastia Ming reinou de 1368 até 1644. Neste período a população da China cresceu de 65 milhões para 150 milhões. No reinado de Hung Wu a capital do império voltou para Nanquim, a marinha foi recuperada e foram criadas estruturas portuárias no Mar da China. A marinha chinesa armada com canhões dominou o Pacífico ocidental e todo o Índico, cobrando tributos em dinheiro, cavalos, enxofre, cobre, madeira e especiarias. Quando em atividade comercial a China pagava em dinheiro de papel, em seda e em porcelana. De 1406 a 1420 foi construída a 'Cidade Proibida' e restaurada a cidade imperial dos mongóis, e em 1421 a capital do império foi de novo transferida para Pequim. Foi na inauguração da Cidade Proibida que, segundo Gavin Menzies, comandante reformado da marinha britânica (1421, O ano em que a China descobriu o mundo) 28 chefes de estado do sul da Ásia e do leste da África foram prestar homenagem ao imperador Zhu Di, filho de Hung Wu. Os chefes de estado convidados voltaram para casa numa frota de „navios de tesouro‟. De 1425 até 1825 Pequim foi a maior cidade do mundo, no início competindo com Constantinopla. Com a Revolução Industrial na Inglaterra no séc. XVIII Londres cresceu para 1,35 milhão de habitantes em 1825, passando Pequim. Em 1925 Londres foi batida por Nova York, que em 1965 foi batida por Tókio; hoje a maior cidade do mundo em população é Mumbai, na Índia, com 14 milhões de habitantes, seguida de perto por Shangai, na China. Na virada do Sec.XIV para o Sec.XV da nossa era, o filho perseguido de Hung Wu, Zhi Di, rebelou-se, queimou o palácio de Nanquim com a família dentro e assumiu como imperador com o nome de Yongle. Criou um exército e uma enorme frota naval de mais de um milhão de homens e construiu a cidade imperial em Beijing que foi inaugurada em 2 de fevereiro de1421. O eunuco Zheng He fiel ao imperador foi designado comandante-chefe da maior frota naval do mundo, a qual tinha a missão de “navegar em todos os oceanos do mundo, preparar cartas náuticas dos mesmos, trazendo o mundo inteiro para o sistema tributário‟ chinês”. No dia 3 de março de 1421 zarparam quatro frotas de tesouros. A quinta levantara ferro no mês anterior. Eram mais de 100 juncos de guerra de 150m de comprimento, 55m de boca, 9 mastros com grandes velas de seda vermelha, dos mais de 2000 que foram construídos entre 1403 e 1419, em torno dos quais circundava uma frota de navios mercantes menores. Esta esquadra mapeou todos os oceanos, e retornou no final de 1423. No período que esteve fora um raio provocou um incêndio na cidade imperial recém-inaugurada, a China foi ameaçada pelos mongóis no norte e pelos vietnamitas no sul, e os mandarins cortaram o financiamento para as frotas no intuito de barrar a influência dos almirantes eunucos. Zhi Di morreu em 1424, e o registro das viagens da frota de Zheng He foram destruídos. Seu sucessor morreu em 1425. 46 A partir de 1426, com o Imperador Xuande da dinastia Ming, a China começou a se fechar num processo de isolamento, satisfeita com sua autossuficiência. Os mandarins do novo imperador mandaram expurgar os registros dos feitos da época marinheira, inclusive as cartas de navegação onde todo o mundo foi cartografado! Em 1474 os manchus do nordeste tentaram uma invasão, o que ensejou a recuperação e reforço da Grande Muralha. A marinha foi definhando, deixou de patrulhar a costa e no início do séc. XVI os estrangeiros começaram a chegar. Primeiro os portugueses, que ancoraram pacificamente no Rio Pérola em 1517. Entre 1525 e 1563 piratas japoneses chegaram à costa norte. Em 1555 os portugueses instalaram uma feitoria em Macau, no delta do Rio Pérola. Pela virada do séc. XVI para o séc. XVII a liderança do imperador, a economia e a moral estavam em baixa, mas as obras de infra-estrutura, pontes, estradas, palácios e templos, muros para as cidades da planície, e a Grande Muralha que passa a norte de Pequim estavam sendo tocadas. Academias se espalharam por todo o país, particularmente no sul, incentivando a liberdade de expressão dentro da tradição de Confúcio. Em 1582 chegou a Macau o jesuíta italiano Matteo Ricci, matemático e cartógrafo, que em um ano aprendeu a língua e os costumes dos chineses. Em 1583 se insinuou até o governador da Província de Guandong para exibir sua cultura ocidental. Falou sobre o novo mundo, as Américas, e levou mudas de batata doce, milho, amendoim e fumo. Junto com os chineses participou da edição de um mapa-mundi em 1584, e com isso abriu caminho para introduzir na China a evangelização e a sífilis. Em 1589 um novo vice-rei designado por Pequim para Guandong correu com ele de lá. No séc. XVII o povo do deserto no norte, e o das montanhas no oeste começaram a se rebelar e avançaram sobre Pequim. O general que bloqueava as passagens da Grande Muralha permitiu que os Manchus do nordeste passassem para ajudar a controlar a rebelião. Foi a conta. Os Manchus tomaram Pequim, correram com os sobreviventes Ming que fugiram para Formosa, e em 1644 instalaram a Dinastia Ch'ing, que governou até a Proclamação da República em 1912. Quando a paz finalmente se estabeleceu, em 1681, o imperador manchu K'ang-hsi executou no seu governo até 1722 um programa de realizações que na opinião dos analistas de hoje suplantou às dos monarcas da sua época, Pedro o Grande na Rússia, Louis XIV na França e Aurangzeb na Índia. Aventureiros estrangeiros foram reprimidos, sendo permitido aos portugueses permanecer em Macau sem acesso ao resto da China. As fronteiras da China foram para além da muralha, cuja manutenção foi interrompida. O que você visita hoje da Grande Muralha é a parte perto de Beijing (Pequim) restaurada para turista ver, com lojas MacDonald's dentro das torres. Na época que os representantes da Igreja Católica começaram a perder prestígio na Europa, os membros da Sociedade de Jesus eram os estrangeiros mais tolerados na corte manchu. Na Europa eles foram os donos do saber erudito em latim, o que garantiu seu domínio ao longo dos séculos da Idade Média européia. Na China, com um povo mais letrado, eles aprenderam chinês e manchu e foram úteis para instruir o imperador sobre um mundo que ele não conhecia. Eles também eram úteis aos chineses como intérpretes nos negócios de Estado envolvendo europeus, na elaboração de mapas, na astronomia e nos refinamentos do calendário, ou mesmo como médicos que cuidavam da malária com a casca da cinchona importada do Peru. Mas como evangelistas o trabalho não rendeu. O termo 'mandarim' é uma criação 47 destes padres para a língua chinesa, putonghua, usada na época pelos integrantes da corte, e desde 1956 a língua oficial da China. O século XVIII transcorreu com a expansão territorial da China alcançando seu limite máximo. Revoltas internas foram controladas sem piedade, e o governo manchu em Pequim acumulou um tesouro de 70 milhões de taeis (1 tael = 34 g de prata) ou seja 2380 toneladas de prata fina, a moeda da época para grandes negócios. Em 1799 morreu o imperador Ch'ien-lung e a dinastia Ch'ing dos manchus entrou em decadência. No século XIX chegaram os ingleses. O tráfico de ópio da Índia que havia sido proibido em 1729 ressurge com a conivência de autoridades corruptas. Esta parte é romanceada pelo australiano James Clavell, expert em história oriental, em três volumes memoráveis que contam a saga de Hong Kong: Tai Pan, Casa Nobre I e Casa Nobre II. Eu fui visitar a China em 1993 por causa destes livros. Hong Kong vista do mar a bordo de uma sampana, e Ah Tat que me levou para visitar as Grandes Muralhas. Os piratas ingleses se instalaram numa ilha desolada a nordeste de Macau e conquistaram na marra o direito da ilha para a coroa inglesa em 1841. Depois legalizaram um acordo com os manchus em l898, com uma concessão de soberania de 99 anos. A ilha mostrou-se um porto magnífico para proteção da frota inglesa nas épocas de tufão, os 'tai-fun', ventos supremos. Desenvolveram os clipper, grandes veleiros velozes capazes de fazer 300 milhas em 24 horas. Contrabandeavam para a China o ópio produzido na Índia, que era vendido cash em taeis de prata; com a prata compravam chá, seda e algodão e levavam para Londres, onde enriqueciam legalmente em libras esterlinas. Coisa bem de inglês. Hong Kong está para Kowloon, a cidade chinesa no continente, assim como a ilha de Santa Catarina está para Florianópolis. Só que Hong Kong tem uma área muito menor, assim como metade da ilha de Itaparica. Lá se fala cantonês, mandarim e inglês. Em 1993 a moeda circulante era o dólar de HK, ao cambio de 7 HK =1 US. Sendo o porto de entrada para as importações da China, a cidade tem um PIB per capita maior que o do Japão, tornando Hong Kong um dos territórios mais ricos da Ásia. A cidade 48 verticalizada tem hoje 7 milhões de habitantes, e funciona a todo vapor 24 horas por dia. Num apartamento de um quarto moram 6 pessoas, com três camas. Nestes apartamentos populares não existe 'minha' cama. O individuo chega e dorme na que está vazia. Os hakka vivem nos barcos, as milhares de sampanas que circulam no delta do Rio Pérola entre Kowloon e Macau. Durante a primeira metade do séc. XIX os ingleses foram ganhando espaço através da guerra naval e tentativas diplomáticas. Mas os manchus de Pequim não acreditavam em enviados diplomáticos, e para eles todos os enviados estrangeiros eram passíveis de tributos. Adicionalmente os ingleses e os americanos, com a nova produção industrial, tinham a necessidade de expandir seus mercados para colocar a produção das fábricas e obter matéria prima. Em 1834 foi cancelado o monopólio de negócios oficiais chineses com a Companhia das Índias Orientais sediada em Formosa. Neste ano o governo inglês designou um Superintendente para os negócios britânicos em Cantão, mas as autoridades chinesas tratavam o representante da coroa como o porta-voz dos mercadores contrabandistas. Em 1839 Pequim mandou um oficial acabar com o degradante tráfico de ópio, e o pau comeu. Os ingleses navegaram até Shanghai, adentraram o Rio Yangtze e atacaram a cidade de Chen-chiang. O imperador alarmado com a ousadia cedeu e fez concessões, assinando o Tratado de Nanquim em 1842. O tratado fazia a concessão da ilha de Hong Kong para a Inglaterra e autorizava o comércio em cinco portos: Cantão, Amoy, Foochow, Ningpo e Shanghai. Os chineses não ficaram satisfeitos porque entenderam que o tratado havia sido forçado e não estavam dispostos a tratar estes bárbaros ocidentais como iguais. Os bárbaros ocidentais não ficaram satisfeitos porque não lhes era permitido entrar na China continental. E o tráfico de ópio continuou. Na segunda metade do séc. XIX o mercado chinês de 400 milhões de habitantes passou a ser alvo da cobiça de todo o mundo industrializado. Em 1850 subiu ao trono manchu em Pequim o Imperador Xianfeng, que em 1856 teve um filho homem, Tongzhi , elevando sua consorte, Cixi, mãe de Tongzhi, à condição de Imperatriz. O Imperador Xianfeng permitiu a instalação de consulados em Shanghai, e concedeu aos ingleses, americanos e franceses, o controle alfandegário contra pagamento de tributos. Mas a pressão da ganância não aliviava, e os chineses passaram a ser acossados não só pelos ingleses, franceses e americanos, mas também pelos russos, alemães, japoneses, austríacos, italianos, católicos e protestantes. Xianfeng morreu em 1861, e a Imperatriz Dowager (viúva) Cixi assumiu a regência do sucessor, o Imperador Tongzhi, então com 5 anos. Ela tornou-se a Senhora Dragão aos 26 anos e governou por mais 48 anos uma China incapaz de fazer frente aos estrangeiros com força de guerra. Como alternativa tratou de aprender as vias diplomáticas. Em 1870 ela negociou o acesso dos estrangeiros à China condicionada à emigração de chineses para o mundo ocidental. Em 1875 Tongzhi morreu de varíola, e ela manobrou para que o novo imperador fosse o sobrinho, Guangxu, então com 4 anos. Neste mesmo ano a China mandou seu primeiro representante para o exterior, um embaixador na Inglaterra, e começou a trazer de volta os jovens que emigraram em 1870. 49 A influencia dos missionários estrangeiros que acessaram a China a partir de 1870 e a nova visão de mundo dos chineses que voltaram após viverem uma temporada fora do país se fez sentir nas províncias, e na década de 1880 os governadores começaram a pressionar a Imperatriz por reformas na educação, nos métodos e nos equipamentos militares, no código civil, no comércio e na agricultura, a base da economia chinesa. Queriam leis sobre patentes e direitos autorais e a abolição das sinecuras que favoreciam os membros da corte. Na ultima década do séc. XIX os chineses capitularam, saíram do seu isolamento e passaram a adotar alguns modelos ocidentais. Aproveitando o momento, o Japão que vinha se equipando com uma esquadra de guerra e de muito queria uma expansão continental, declarou guerra à China e ocupou a Coréia e a Manchúria. Mas a moeda do destino chinês tem duas faces, e outros acontecimentos na ultima década do séc. XIX criavam um indicativo que a China, a maior população unificada do planeta, não sucumbiria como um mercado dominado pelas nações industrializadas. Em 1893, Sun Zhongshan, um daqueles garotos que emigrara e voltara com cidadania e passaporte americano, tornara-se médico em 1892 e revolucionário em 1893, passou a liderar a triad (associação marginal de acordo com a lei vigente) Tiandihui, em Hong Kong. As atividades da triad proveram os recursos que ele precisava para iniciar um 'movimento de libertação' o qual culminou na estruturação do Kuomintang, KMT, o Partido Nacionalista Chinês. Um dos membros da Tiandihui protegido pelo líder Sun era o garoto de classe alta chinesa, Chiang Kaishek. Em 1893 também nasceu Mao Zedong Tse tung, o primogênito de uma família de fazendeiros classe média na província de Hunan. Este garoto em 1919 se matriculou na Universidade de Beijing para estudar pedagogia, e ai se iniciou na doutrina comunista, vindo a ser um dos fundadores do Partido Comunista da China. Em 1898 a Senhora Dragão restaurou as milícias municipais, começando pelas províncias do nordeste, e a estas milícias se agregaram monges voluntários que praticavam artes marciais. Os bárbaros ocidentais achavam que os Shaolins se imaginavam imunes a balas, e a Enciclopédia Britânica a eles se refere com a alcunha de 'boxers'. O mote dos boxers era 'proteja o país, acabe com os demônios estrangeiros'. E começaram pelos missionários e pelos chineses que haviam se convertido ao cristianismo, particularmente na província de Shantung onde o governador era declaradamente xenófobo. Em 17 de junho de 1900 a Imperatriz liberou a horda, que atacou as embaixadas e as igrejas, matando milhares nas províncias de Hopeg, Shansi e Manchúria. Houve uma reação de todas as nações que tinham investimentos na China, mas a Senhora Dragão deu início às reformas. Em 1905 uma comissão de chineses viajou ao exterior para estudar os métodos de fazer uma Constituição, e em 1906 a Imperatriz promoveu mudanças na estrutura administrativa em Pequim e deu os primeiros passos para promover um sistema parlamentar de governo. Também em 1906 as milícias provincianas foram unificadas num exército nacional com nova estrutura organizacional. Guangxu morreu em 4 de novembro de 1908 sem deixar herdeiro, e a Imperatriz Cixi, já no seu leito de morte, escolheu Puyi, um garoto com menos de 3 anos para o que viria a ser o último imperador da dinastia Ch'ing. Cixi, a Imperatriz Viúva ou a Senhora Dragão, como 50 você prefira recordá-la, morreu em seguida, em 15 de novembro de 1908, e essa parte da história você pode ver no filme que Bernardo Bertolucci dirigiu em 1987, 'O Último Imperador', ganhador de 9 Oscar (Hollywood, EUA) em 1988. Nesta linha de filmes biográficos que mostra as cortes imperiais do séc. XIX, vale à pena comparar "O Ultimo Imperador" com o filme austríaco de 1955, "Sissi", a Imperatriz da Áustria, contemporânea de Cixi. Com as reformas de Cixi os templos foram convertidos em escolas e em 1910 haviam 35198 escolas públicas com 875760 alunos. Milhares de estudantes foram para o Japão, Europa e Estados Unidos. Em 1910 foi feita a abolição da escravatura, em 1911 acabou o tráfico de drogas pelos ingleses, e em 1912 foi proclamada a república. A Proclamação da Republica foi conseqüência da mobilização de parte do exército nacional e da união de Representantes de 17 províncias (outra fonte cita 14) que se reuniram em Nanquim e numa atitude revolucionária elegeram Sun Zhongshan Presidente da China. O Regente do Imperador, que de Pequim acompanhava o movimento com muita apreensão, criou uma assembléia, outorgou uma constituição e designou o general reformado Yuan Shikai como Primeiro Ministro. Os dois grupos entraram em acordo: 1. O imperador abdica do trono e declara que o governo da China passa aos representantes do povo. 2. O imperador passa a viver confinado na Cidade Proibida com uma pensão vitalícia compatível com seu status. 3.O Presidente Eleito Sun Zhongshan passa o cargo para o Premier Yuan Shikai que governa regido por uma constituição republicana. A tomada da Manchúria pelo Japão em 1895 foi um golpe duro para a China, mas também incomodou o Czar russo que não queria japoneses no continente. Outro golpe em seguida foi a reação do mundo industrializado à matança dos 'boxers' em 1900, que resultou na tomada de Pequim por um exército internacional, o qual resgatou o que sobrou dos missionários e submeteu a China a assinar um humilhante protocolo de indenizações. Mas os integrantes do exército internacional vitorioso começaram a se desentender, particularmente a Rússia e o Japão, porque a Rússia, aproveitando a oportunidade de reprimir os chineses, ocupou a Manchúria e a Coréia. Os japoneses foram a São Petersburgo negociar a retirada, e os russos endureceram, o que resultou na guerra Japão x Rússia de 1905, quando os japoneses afundaram rapidamente a frota russa e reocuparam a Coréia e a Manchúria. Mas o início do séc. XX, o século do petróleo, foi mesmo uma época de instabilidades, de disputas territoriais e de reorganização social. O mundo foi sacudido com uma guerra de 1914 a 1918, e ao final do evento haviam-se desmoronado os impérios russo, alemão, austro-húngaro e turco-otomano. Vários novos países foram criados e o mapa político do mundo sofreu mudanças substanciais. Lênin, o novo líder na recém-criada União das Republicas Socialistas Soviéticas passou a teorizar que a guerra era uma conseqüência previsível do imperialismo econômico na luta 51 interminável por novos mercados, uma argumentação que convenceu muitos revolucionários e encontrou forte ressonância na China. Em 1913 os Nacionalistas do Kuomintang obtiveram maioria no Parlamento e criaram sérias dificuldades ao Presidente Yuan, de tendências mais liberais. Com a morte de Yuan em 1916 a China ficou dividida, o sul governado por Sun Zhongshan (o nome em chinês é Sunt-Yat-Sin, o arqui-revolucionário Pai da China Moderna), e o norte por um grupo de latifundiários e militares apoiados pelas potências ocidentais. A China dividida tanto no plano político quanto na esfera militar, foi em 1917 induzida pelo Japão e pelos EUA a entrar na Primeira Guerra Mundial em curso, e também declarou guerra à Tríplice Aliança. Embora não tenha tido participação efetiva na guerra, a China soube tirar proveito conseguindo assento nas conferências de paz, onde logrou suspender as indenizações que vinha pagando desde 1911, e a reaver as concessões portuárias que os alemães e austríacos tinham no país. Gradualmente a China foi conseguindo em acordos diplomáticos ir se livrando da influência estrangeira em seu território. Em 1921 foi criado o Partido Comunista Chinês (PCC), e os russos, precursores da aplicação da teoria econômica de Karl Marx e com a riqueza oriunda da florescente indústria do petróleo, se impuseram como orientadores dos povos. Enviaram para Cantão um emissário com a tarefa de unificar o PCC e o KMT numa atividade cooperativa. O Kuomintang (KMT) já estruturado foi reorganizado num partido disciplinado, com recursos para armas e para organizar um Exército Nacionalista Republicano. Sun Zongshan morreu em 1925, e seu protegido Chiang Kai-Shek tornou-se o líder do KMT. Em 1926 Chiang Kai-shek à frente do Exército Nacionalista Republicano incorporado com os comunistas do PCC marchou para o norte, para reunificar a China. Embora unidos com o objetivo de expurgar os estrangeiros, por onde o exército passava a ala 'esquerda' dos comunistas promovia atividades de greves e distúrbios com as quais Chiang Kai-shek não compactuava. Em 1927 houve um racha, e tanto os comunistas chineses quanto os conselheiros russos foram escorraçados. Os comunistas do PCC se organizaram em sindicados e grupos guerrilheiros sob a liderança de Mao Tse-tung e Chou Enlai. Recrutaram camponeses e soldados desertores e foram armando, com apoio dos russos, o Exército da Libertação Nacional para dar testa ao KMT. Em pouco passaram a ser a maior ameaça no caminho de Chiang Kai-shek. O Exército Nacionalista Republicano era de elite, e o novo Exército da Libertação Nacional, que passou a ser conhecido como o Exército Vermelho, era de pobres. Mas o numero de pobres que o habilidoso Mao Tse tung conseguiu aliciar para seu exército era em 1934 de cem mil homens. Furou o bloqueio e começou a Grande Marcha para o norte. Em um ano eles caminharam em ziguezague do Mar do Sul da China, nos trópicos, até perto da fronteira com a Mongólia a 39°N, a oeste de Pequim, e quando lá chegaram em 1935 Mao Tse tung estava consagrado como o principal líder da Revolução Chinesa. Em 1932 os japoneses de olho no petróleo da Manchúria lá estruturaram um Estado Associado com forte presença do exército japonês. O Sr.Puyi, imperador chinês deposto e que com a tomada de Pequim pelo Exército Nacionalista pedira asilo político 52 no Japão, foi colocado como um governador fantoche do Estado de Manchoukuo. Este imbróglio é bem apresentado no filme 'O Ultimo Imperador'. Em 1937 os japoneses começaram a invadir agressivamente outras províncias chinesas, o que obviamente gerou uma reação dos Nacionalistas e dos Comunistas que por um momento esqueceram suas diferenças e dividiram a tarefa de conter os japoneses. Em 1939 os nazistas alemães do Terceiro Reich começaram a Segunda Guerra Mundial na Europa, os Estados Unidos de fora, como espectador e fornecedor dos Aliados. Os Estados Unidos que também tinham interesses na China, financiaram o Exército Nacionalista de Chian Kai-shek, fecharam o canal do Panamá para navios japoneses e fizeram um embargo de petróleo no intuito de conter a estratégia expansionista do Japão. Em 1941 os japoneses bombardearam a frota americana no Pacifico, em Pearl Harbour, entrando na guerra de conquista no pacto do Eixo RomaBerlim-Tokio. Eles sabiam que estavam cutucando a onça com vara curta, mas era isso ou 'perder prestígio' se retirando dos territórios ocupados. Os Estados Unidos entraram na guerra do lado dos Aliados e o resto da história todo mundo sabe, a indústria de Hollywood já mostrou à exaustão. Para acabar com a farra, em 1945 o bombardeiro Enola Gay acertou uma badogada atômica nos japoneses, e em 15 de agosto de 1945 o Imperador Hirohito pela primeira vez falou no rádio ao povo japonês, para anunciar a rendição incondicional. Os chineses então puderam voltar às suas rixas domésticas. Com o fim da guerra o Japão se retirou da Ásia continental, Mao Tse tung reequipou seu Exército Vermelho com as armas dos japoneses que se renderam, expurgou os membros do Politburo orientados por Moscou, assumiu o controle do PCC e dominou a China. Mesmo com o apoio dos Estados Unidos ao KMT e sem a ajuda da União Soviética, Mao ao final da guerra civil de 1946 a 1949 forçou os nacionalistas a se refugiarem em Formosa, que também foi recuperada do Japão no butim dos vencedores. Ao assumir o governo da nova e unificada Republica Popular da China em 1º de outubro de 1949 ele declarou: "Nunca mais nosso povo será humilhado e ofendido; o vento que sopra do Oriente é vermelho". O primeiro plano qüinqüenal foi a reforma agrária, que acabou com os latifúndios. No segundo plano qüinqüenal de 1953 a meta era transmudar a China num país industrial, mas em 1957 o Premier Chou En-lai reconheceu que a meta não seria atingida. Em 1959 o PCC afastou Mao do poder executivo, e ele admitiu: "Não entendo nada de planejamento industrial". Deng Xiaoping passou a controlar a política econômica. Em 1964 a China testou com sucesso sua primeira arma nuclear, tornando-se reconhecida como a 3ª Potencia Mundial. Como presidente do Comitê Central do PCC Mao manteve sua influência e em 1966 liderou a 'revolução cultural', que provocou um grande transtorno na sociedade chinesa. No início da década de 70 ele conseguiu sua última cartada na política externa, fazendo com que a China fosse representada na ONU pela República Popular em detrimento de Formosa que era acobertada pelos EUA. No ano seguinte recebeu em Pequim o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. Em 9 de setembro de 1976 Mao Tse-tung morreu, aos 82 anos. 53 Bom, agora que estou situado no contexto, vou terminar a leitura do livro do Michael Marti, 2007, 'A China de Deng Xiaoping, o homem que pos a China na cena do século XXI'. A China de hoje tem 9,6 milhões de km² e 1,3 bilhão de habitantes representados por 56 etnias, das quais a Han constitui 92% da população. A Republica Popular estabeleceu o mandarim como língua oficial, adotou o calendário gregoriano, aboliu a poligamia e não tem discriminação sexual. As mulheres, que são minoria, se sentem valorizadas e jogam duro! 54 1996, Sahara Pedro Bocca, Simone Gonçalves, Soninha Carvalho e eu voamos Salvador Barcelona dia 1 de junho de 1996, um sábado, e em Barcelona alugamos um Citroen Xantia. Passamos um dia e meio debaixo de chuva na cidade para Simone visitar a arquitetura, e na tardinha de domingo pegamos a auto-estrada A7 para sudoeste bordejando o Mediterrâneo por 1200 km. Segunda, dia 3, nos instalamos num camping em Granada. Na terça andamos o dia todo em Granada, visitando as coisas escolhidas por Simone. Soninha começou a ficar emburrada porque não havia estudado nada e dava palpites muito fracos. Saímos de Granada à tardinha e Soninha queria passar em Torremolinos „porque era ótimo‟. Paramos e não gostamos, resolvemos seguir adiante. Dia 5 fizemos alfândega para entrar em Gibraltar, uma possessão britânica encravada em território espanhol. O enclave é uma península alta de calcário dobrado (Monte Calpe) que faz a borda leste da Baia de Algeciras, a entrada do Estreito de Gibraltar, de quem vem do Mediterrâneo. É uma reserva natural, cheia de macacos „selvagens‟, toda furada com túneis. Coisa de milico. Pedro gostou muito e melhorou o humor. O Monte Calpe é uma das Colunas de Hércules da mitologia grega, onde se conta que Hércules abriu com os ombros o estreito que liga o Mar Mediterrâneo com o Oceano Atlântico. O estreito em si tem comprimento de 20 milhas, largura de 10, e embora fundo, quando se abre para o Atlântico na altura de Tanger (Marrocos), fica raso, 150m, de forma que durante a glaciação do Mioceno interrompeu a alimentação oceânica do Mediterrâneo, que secou há 10 milhões de anos. Do lado africano a outra Coluna de Hércules é o Monte Hacho, em Ceuta. Durante o império romano as Colunas de Hércules representavam o fim do mundo conhecido. 55 Devolvemos o carro e atravessamos de ferry para Tanger, uma navegada tranquila de 30 milhas náuticas para sudoeste. Tomamos contato com o mundo árabe através de uma alfandega terceiro mundista. Um local, Abdul Ali, nos abordou e levou para um hotel cinco estrelas decadente. As meninas, aproveitando que estavam num país muçulmano, tomaram um pifão antes do jantar. No dia seguinte alugamos um Peugeot 309 da Europcar, com o qual rodamos 2500 km no Marrocos (track abaixo). Fizemos um mercadinho e tocamos para leste, pelo norte dos Atlas na direção da Argélia. Paramos em Fez, para experimentar o ópio no narguillé, e na fronteira com a Argélia descemos para sul, nas trilhas do rallie ParisDakkar. Ai é o Saara Negro, sobre um piso de calcário. Perto da fronteira (linha amarela) viramos para oeste passando num sabkha de flamingos e num draa, contornando o Atlas agora pelo sul até Zagora, o fim do caminho que o Peugeot conseguia ir. Track do gps no Marrocos 56 Dai fomos de camelo com um guia tuareg no trecho mais a sul, o Saara vermelho, onde o track faz um triangulo. O dia estava nublado e achei que ia chover. O tuareg disse: - aqui não chove nunca! Devia estar hipnotizado com as brasileiras. Ai choveu, pesado. Descemos dos camelos e com uma manta fizemos uma barraca onde coubemos nós todos. Quando o aguaceiro aliviou um pouco resolvi que devíamos voltar, e chegamos no acampamento já à noite para comemorar meu aniversário de 53 anos. sabkha draa No dia seguinte passamos a andar em estrada asfaltada, cortamos os Atlas pelo sudoeste e fomos para Marrakesh. De lá rumo norte para Casablanca, passamos em Rabat, a capital do país, onde nos hospedamos num hotel vizinho ao palácio do rei. Daí fomos costeando pela margem Atlântica, de volta a Tanger, onde devolvemos o carro. 57 Marrakesh,a cidade vermelha De volta à Espanha fomos de ônibus para Sevilha. Ai Soninha resolveu se separar do grupo e retornar. Acho que o mau humor dela era porque tinha levado pouco dinheiro e não queria admitir. Imaginando que ela estava quase a zero, perguntei se ia fazer compras no duty-free shop no Brasil. Ela disse que não, então dei uns tantos dólares para ela e pedi que comprasse uma caixa de whisky, assim a bichinha não voltaria pelada. Então alugamos um Fiat Brava e fomos para Portugal. Quando chegamos na Ponta de Sagres, ficamos um tanto decepcionados com a expectativa de ver algo da antiga Escola de Sagres, do Infante Dom Henrique. A área foi destruída no terremoto de 1755, e o farol e a fortaleza que lá existem não têm nenhuma preocupação com restauro. Na verdade os portugueses nem enfatizam a existência da Escola Naval. Quando íamos chegando, Pedro lendo o guia, disse que a altura da escarpa era de 2500 metros. Quando saltamos do carro, para mim ficou óbvio que não chegava a 300 metros. Na discussão resolvemos soltar uma pedra e medir o tempo da queda, calculando a altura. Medimos algo entre 7 e 8 segundos. Daí outro problema, estávamos na dúvida se a fórmula era h=gt2/2 ou só h=gt2 . Vinham três jovens senhoras conversando em inglês e eu as abordei: - a fórmula da aceleração da gravidade é gt2 ou gt2/2? Uma delas respondeu com presteza, que era gt2/2, que era professora de física na Universidade do Texas, e fez uma estimativa da minha probabilidade de sucesso em perguntar uma coisa dessas para uma loira. Ai ela notou que nós estávamos em três, ainda bem que Soninha tinha se mandado. Considerando a aceleração da gravidade em números redondos 10m/s2, com sete segundos, h=10*72/2= 245m. O que Pedro leu foi h=2500, onde h era o número de habitantes da freguesia! 58 A foto da esquerda é o farol na Ponta de Sagres. No meio Pedro e eu estamos mostrando os quatro pontos cardeais, e a ultima foto fiz a noite, é a Estrela Polar, um ponto fixo nos 15 minutos de exposição, enquanto as outras estrelas descrevem um arco no filme, concêntrico com a polar devido à rotação da terra. Como o eixo de rotação da terra aponta para a Polar, ela não muda a altura, que medida em relação ao horizonte indica a latitude do lugar. Como ela só é vista no hemisfério norte, para navegar no hemisfério sul os portugueses inventaram no Sec.XV a latitude pela meridiana, ao conseguirem estabelecer uma tabela da declinação do sol ao longo do ano. Com isso, mais o treinamento de uns comandantes de estirpe e a invenção da caravela, dominaram o mundo por mais de um século. De Sagres fomos para Lisboa onde entregamos o carro e voamos de volta LisboaBarcelona-Salvador. Gostei de fazer turismo em Portugal e me prometi que voltaria lá com mais vagar. 59 PENÍNSULA IBÉRICA E COSTA ATLÂNTICA DA FRANÇA - 2007 Esta viagem tinha quatro objetivos: observar e medir a mega-maré no Golfo de St.Malo, analisar a cicatriz da colisão entre o Gondwana e a Laurentia, entender porque Portugal dominou o mundo por três séculos, e propiciar a Mila umas férias movimentadas. Mila disse que adorou, o que você pode julgar pelas fotos, e a consecução dos outros três objetivos está relatada abaixo. Quando você olha o mapa da Europa inteira, dá a sensação que a Península Ibérica foi colada na França, né? Pois é isso mesmo. A Europa é um continente novo, construído no final do Paleozóico. Para facilitar sua compreensão, vamos rever um pouco de geologia: Você reconhece fenômenos cíclicos, como o dia e a noite consequente da rotação da terra, o inverno e o verão consequente da translação; talvez tenha ouvido falar dos ciclos da nutação (bamboleio do eixo de rotação do planeta) e dos ciclos da convecção interna (tectônica de placas, ciclos de 200 MA; se tiver interesse coloque 'ciclos de wilson' no Google). Este último funciona como uma máquina de fazer continente. É o seguinte: A crosta da terra, uma casca dura que reveste o planeta como a casca de uma laranja, é limitada por uma descontinuidade que os geólogos na intimidade chamam de Moho. Esta descontinuidade é uma zona onde as ondas sísmicas mudam abruptamente de velocidade, de 5,5 para 7 km/seg (descontinuidade de Mohorovicic, um geofísico croata que a reconheceu em 1909). A ultrassonografia que os médicos fazem hoje em dia é uma adaptação miniaturizada do que os geólogos fazem para auscultar seu planetinha. Eles verificaram que a crosta primária é "oceânica", feita de basalto e com espessura de 7 km. Nas zonas de fratura no meio dos oceanos as placas tectônicas se afastam gerando crosta mais nova e afastando a que cristalizou da erupção anterior. 1.Ilha do Fogo, em Cabo Verde, um vulcão emergindo do fundo do oceano, fotografado da janela do avião. 2.Rota do vôo TAP159, o avião em cima de Cabo Verde. 3. Mesma coisa em escala menor, mostrando a mancha clara no meio do oceano que é a zona de fratura gerando crosta oceânica nova 60 Mas debaixo dos continentes a crosta é de granito, é secundária, e tem espessura de 35 km! Por cima da crosta vem a atmosfera, com espessura de uns 300 km, e por baixo da crosta vem o manto, com o topo bem desenhado pelo Moho e com espessura de uns 3000 km. Lá no meio está o núcleo quente. As ondas de convecção térmica do núcleo se transmitem pelo manto e mexem com a crosta, fazendo a tectônica de placas. Terras como o Brasil são escudos continentais antigos, consolidados no Arqueano, ha 2,6 bilhões de anos. Ano você sabe, é o tempo que a terra leva para dar uma volta ao redor do sol. Pois bem, no início do Paleozóico, 500 MA (milhões de anos) a Europa não existia. As massas continentais eram o Gondwana no sul e a Laurentia no norte. Entre elas havia o oceano Iapetus com umas tantas ilhas espalhadas pela sua crosta oceânica, a Avalonia. As massas continentais pré-paleozoicas eram muito menores do que são hoje, são as manchas amarelo claro na figura abaixo; os continentes vão sendo formados com a evolução da crosta e o resfriamento do planeta. No início do Paleozoico, quando a atmosfera já tinha oxigênio livre para sustentar a vida aeróbica, houve uma explosão da vida multicelular com o desenvolvimento dos reinos vegetal e animal, e mais para o final, o Gondwana colidiu com a Laurentia, formando o supercontinente Pangea. No processo o Iapetus se fechou e a Avalonia foi metamorfizada para formar a Europa. Pouco tempo depois desta colisão, ainda no Paleozoico (270 MA), a massa continental da Sibéria colidiu com o Pangea formando os montes Urais, que na geografia de hoje 'separam' a Europa da Ásia. Durante o Mesozoico (245-65 MA) apareceram os répteis, que se espalharam pelo Pangea praticamente de polo a polo. Durante o Mesozoico também começou um novo ciclo tectônico com a fase de divergência de placas, a abertura do oceano Atlântico, mas a Europa, coitadinha, continuou um saco de pancadas espremida no meio do 61 Pangea, e na nossa área de turismo começou no final do Mesozoico o levantamento dos Pirineus. Hoje, o mar Mediterrâneo está se fechando pela convergência entre a África e a Europa, o que gera terremotos na Grécia e vulcanismo na Itália. Encontramos a cicatriz da colisão entre o Gondwana e a Laurentia representada pelas montanhas orientadas NE-SW que se estendem entre os vales dos rios Tejo e Douro. A sequência de serras é escalonada, tudo de idade Paleozoica. Ambos os rios nascem próximos a Madri, na Cordilheira Central, e correm para oeste, o Douro pelo norte e o Tejo pelo sul das montanhas; ambos deságuam no Atlântico, o Douro no Porto e o Tejo em Lisboa. Em Portugal a continuação da Cordilheira Central da Espanha chamase Serra da Estrela, na borda sudoeste da qual situa-se a cidade de Coimbra. Aí o que resta preservado do Tribunal do Santo Ofício, o quartel-general da inquisição em Portugal (algumas muralhas, uma capela e uma cela), é feito de calcário recristalizado. No inicio da subida da Serra da Estrela, vindo de oeste, encontramos metasedimentos, com metamorfismo do fácies do xisto verde, dobrado em ângulo forte em estrutura monoclinal. As ruínas de muralhas medievais dos Celtas são construídas com placas de filito e xisto. À proporção que subimos a serra da Estrela, o grau de metamorfismo vai aumentando. Mais a leste, no topo da serra da Gata, já na Espanha, pouco antes de Tordesilhas, está a crosta continental consolidada como granito. Aí a estrutura monoclinal fica mais comprimida, acavalando com falhas de empurrão padrão dominó, vergência para noroeste. Topo da seqüência paleozóica, calcário silicificado, ancorando a muralha do Castelo de Óbidos em Portugal; esse mesmo calcário está nas paredes preservadas do prédio do Tribunal do Santo Oficio. Metasedimentos com metamorfismo do fácies do xisto verde, partindo em placas que foram usadas pelos Celtas para construção de suas muralhas (ultima foto aqui ao lado da legenda). Ψ= 41°N λ=8°15'W h=1100m 62 As duas fotos aqui abaixo são do granito paleozóico na parte frontal da estrutura Hercyniana (Permo-Carbonífero da Europa) orientada NE-SW. A máquina de fazer continente em ação. Não existem dobramentos apertados, são monoclinais de ângulo forte, o Gondwana empurrando a Avalonia e transformando-a em crosta continental. As empreiteiras adorariam uma máquina destas, se tivessem paciência para operá-la na base de centímetros por ano. A Europa é um continente novo com uma civilização velha, contrastando com a América, que é um continente velho com uma civilização nova. A Europa também é pobre de recursos naturais (metais, petróleo, água, diversidade de flora, produtividade agrícola) quando comparada com a América, e talvez desta penúria venha a cobiça dos 'descobridores' europeus, que assaltaram, contaminaram com doenças e dizimaram as populações nativas das Américas. Tudo com o incentivo, respaldo e beneplácito do dono do mundo durante o Renascimento europeu, Sua Santidade o Papa da Igreja Católica Apostólica Romana, o todo-poderoso fazedor de reis e comandante supremo das Cruzadas. Quando perdeu estes poderes temporais com a Revolução Humanista no Séc. XVIII que aboliu os privilégios do clero e da nobreza, acuado com o crescimento do ateísmo cientifico da Revolução Industrial, e empobrecido com o Liberalismo Econômico, restou a Pio IX em 1870 proclamar a infalibilidade do papa como dogma de fé. Mas a esta altura o mundo já tinha um novo dono: as tribos das ilhas conseguiram se entender, estruturaram uma monarquia parlamentar e fundaram o Reino Unido, o United Kingdom, onde se dizia no Séc. XIX que sob seus domínios o sol não se punha! E era verdade! Mas vamos entender como foi que Portugal se tornou a nação mais poderosa da terra por um bom período. A presença humana (Homo sapiens) mais antiga registrada na Europa pelos antropólogos é de 30.000 anos, quando nossos ancestrais migraram da África para Eurásia e extinguiram o Homo Neandertalis numa disputa pelo território. A Eurásia é um continente propício para a ocupação humana porque é esticada leste-oeste, facilitando a comunicação ao longo de uma linha de latitude, com condições climáticas mais homogêneas. As Américas, em contraste, são esticadas norte-sul, tem imensas florestas tropicais, de forma que os Astecas do México, por exemplo, não se 63 comunicavam com os Incas do Peru. E nessa época, quem não se comunicava não guerreava. Tudo tem seu lado bom. Neste processo migratório da África para a Europa, o homo sapiens deu uma parada no que hoje é o Iraque para inventar a agricultura, há 10 mil anos, provavelmente a maior invenção da humanidade. Enquanto um grupo fazia isto, um outro migrou pela Sibéria e atravessou para América na ultima época glacial. O grupo que foi para China foi o primeiro a unificar uma nação, há 5000 anos, com uma língua comum e uma organização política e social. As tribos que se espalharam pela Europa estão atrasadas uns 4000 anos em relação aos chineses em termos de unificação, e ainda hoje são meio 'saco de gatos'. Por exemplo, a Espanha de hoje é constituída por 13 'Regiões Autônomas', tipo País Vasco, Principado das Astúrias, Galícia ...cada um com seu dialeto e seu alcaide. Desde o Séc. VIII o território espanhol era dividido entre católicos e muçulmanos, e em 1469 começou o processo de unificação com o casamento católico de Isabela de Castela, e Fernando de Aragão. Mas hoje, exceto em Castela, que é a grande província central que inclui a Comunidade de Madri, é ofensivo você dizer para um espanhol que a língua oficial da Espanha é o 'espanhol'. A língua oficial é o castelhano, imposta na marra por Franco durante a ditadura do Séc.XX. Mas cada etnia fala a sua. Em Zumaia, no Pais Vasco, a loirinha da Oficina de Turismo que nos alugou bicicletas para visitarmos o contato K/T (Cretáceo/Terciário, uma atração turística sim senhora), declarou que "o Brasil é o modelo para o mundo de como se deve fazer uma homogeneização étnica; vocês são uma coqueteleira". A propósito de homogeneização étnica, li um livro nesta viagem muito atual, que ressalta nossos valores e discute, com base nos censos do IBGE, a política segregacionista do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e os programas sociais do Presidente Lula: Ali Kamel (2006), Não Somos Racistas, 143p., Editora Nova Fronteira. Mas não vou comentar isso agora. Recomendo o livro. Os europeus têm uma grande vantagem em relação aos americanos, porque tem uma história escrita. Pois bem, Portugal foi a primeira nação unificada da Europa, Séc. XII. Aos trancos e barrancos o jovem belicoso Afonso Henriques firmou um condado que teve o reconhecimento e a ajuda em armas, homens e navios disponibilizados pela Santa Sé, unificando o país e autoproclamando-se Rei de Portugal em 1139. Em 1179 o Papa Alexandre III, através da bula Manifestis Probatum, reconhece Portugal como país independente e vassalo da Igreja. Naquele tempo a Igreja era o cartório do mundo ocidental, e quem não tinha seu reconhecimento era um condenado. Se duvidar pergunte aos judeus; ou aos muçulmanos, que a partir de 1095 passaram a ser visitados pelos Cruzados e até hoje tentam dar o troco. Era tradição medieval a supremacia política da Santa Sé, que reconhecia a Roma o direito de dispor das terras e dos povos. Durante a idade média o imperador do Sacro Império RomanoGermânico era legitimado através de uma descendência divina...e como a religião oficial era o cristianismo, você pode imaginar o poder que o Papa tinha nas coisas do Estado. Com o fim das Cruzadas no final do Séc.XIII, o Sacro Império passou a tratar de se desvencilhar da tutela papal. Os reinados de Portugal e de Castela estavam se organizando, e o Papa passou a olhá-los como promissores candidatos a gestores de um novo império. 64 bula Manifestis Probatum 65 Mapa da Europa continental a oeste do meridiano de Greenwich,com destaque para algumas feições geográficas. Em verde escuro o roteiro de 4000 km percorrido entre França (verde floresta), Espanha (marrom) e Portugal (verde claro). 66 Os portugueses fizeram seu dever de casa. Criaram a cadeia sucessória da Casa dos Borgonha, que reinou até 1385. Neste período conquistaram a benção da Santa Sé com doações, concessões e vassalagem. Desenvolveram a agricultura, escorraçaram os mouros e em 1255 mudaram a capital de Coimbra para Lisboa, onde fundaram uma Universidade e estruturaram uma Marinha. Em 1341 descobriram as Canárias. Em 1385 sobe ao trono a Casa de Avis, com D.João I. Nesta dinastia ou mouros foram expulsos do país, e em 1417 foi fundada a Escola de Sagres, onde desenvolveram tecnologia de navegação, tecnologia de construção naval e formaram grandes navegadores, como Bartolomeu Dias, Diogo Cão, Gil Eanes , Vasco da Gama, que marcaram a "época dos descobrimentos": Madeira, Açores, Cabo Verde, contornaram a África e chegaram à América. Os castelhanos também. Era chegada a hora. O Papa Alexandre VI, espanhol, os elegeu como gestores do império global, e na bula papal Inter Coetera de 4 de maio de 1493 se expressou assim: "Esta bula origina-se de termos feito doação, concessão e dotação perpétua, tanto a vós (reis), como a vossos herdeiros e sucessores , de todas e cada uma das terras firmes e ilhas afastadas e desconhecidas, situadas em direção do ocidente, descobertas hoje ou por descobrir no futuro, Seja descoberto por vós, seja por vossos emissários para este fim destinados" (cópia acima, na p.66). A bula era tecnicamente mal feita, e D. João II abriu negociações diretas com os reis católicos Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela para mover a linha demarcatória. Seus representantes reuniram-se então em Tordesilhas, á beira do Rio Douro (vide mapa acima) onde firmaram um tratado em 7 de junho de 1494. Foi neste mosteiro ai: 67 Os portugueses estenderam as conquistas marítimas por todos os oceanos. Construíram uma rede de feitorias, entrepostos e fortalezas, captando riquezas e irradiando a língua portuguesa e a religião católica. O Sec. XVI foi o "século de ouro" para Portugal que se tornou a maior das potências européias notabilizando-se pelo conhecimento científico e geográfico, pela gastronomia e pela literatura. Lisboa se tornou o empório da Europa. A partir do Séc.XVII começou a perder terreno para os espanhóis, holandeses, franceses e ingleses; no Séc. XVIII além dos problemas de disputa territorial, Lisboa, uma cidade de 250 mil habitantes foi parcialmente destruída por um terremoto força 9 na escala Richter com epicentro no oceano ao largo da costa portuguesa, ao qual se seguiram tsunamis com ondas de 15 metros (os terremotos com magnitude acima de 8 podem provocar grandes danos em regiões localizadas a várias centenas de quilômetros do epicentro). A cidade medieval foi reconstruída e modernizada com recursos do ouro do Brasil. No século XIX Portugal perdeu 'a jóia da coroa' com a independência do Brasil. No Séc.XX aparece como um pais pequeno e pobre. Em 1974 experimentou uma reestruturação política, e em 1986 foi admitido na União Européia, passando a receber investimentos e a se desenvolver. Os portugueses operam a TAP - Air Portugal, que tem um vôo diário Salvador – Lisboa, muito conveniente no nosso inverno. A ida é noturna: sai de Salvador ao por do sol, e como se adianta o relógio de 4 horas para chegar no verão europeu, a chegada lá é ao nascer do sol. Se você não for miserável e voar ao menos de classe executiva chega pronta para começar o dia. A volta é diurna, sai de Lisboa após o café da manhã, cruza o equador ao meio dia e após atrasar o relógio 4 horas, da para matar a saudade indo almoçar uma moqueca no Yemanjá. Em Lisboa pegamos um Opel Meriva da Hertz, motor diesel que anda a 160 km/h e faz 18 km/l, equipado com um GPS portátil Magellan, no qual estava instalado um programa chamado Neverlost. O aparelhinho fala 11 línguas, incluindo português. A imagem à esquerda é a tela na estrada, a 200m de um entroncamento. Em baixo, o odômetro regressivo diz quanto falta para a manobra, e em cima como é. Feita a manobra esta imagem desaparece e o mapa da estrada toma a tela toda, a linha roxa indicando seu caminho e o triangulo amarelo onde você está. Uma voz feminina dá as instruções do que fazer, e no momento de girar o volante um sinal sonoro plim-plim toca. 68 A imagem à direita é andando na cidade; ele sabe onde é mão e contramão, coloca o nome da rua, e quando chega ao destino avisa: chegou! Bem na porta! Se você sair do caminho especificado, ele de imediato recalcula tudo em menos de 5 segundos, e uma voz tranqüila lhe diz o que fazer. Era dia 13 de maio, a lua nova era dia 15, e a meta era estar em St.Malo, a 1700 km, dia 15 antes do meio dia para pegar a maré toda vazia e acompanhar ela encher 12m até às 17:06 GMT. Saímos do aeroporto de Portela às 8 h, pegamos a auto-estrada A1, que começa no aeroporto, e pau na máquina. Rodamos 800 km para pernoitar no Parador Nacional de S. Domingos de la Calzada, no norte da Espanha, perto da fronteira com a França, chegando lá antes do por do sol. Esses paises europeus com auto-estradas maravilhosas, se você tocar direitinho atravessa dois em um dia. E ainda saímos da estrada para entrar em Tordesilhas e visitar o Mosteiro onde foi assinado o Tratado de 1494. A única coisa que me chateou foi ao chegar no topo da Serra da Gata e ver o acavalamento com falhas de empurrão padrão dominó, não ter como parar na autoestrada para fotografar; mas marquei as coordenadas: ψ = 42°25' N λ = 003°07' W. No dia seguinte atravessamos os Pirineus, todo perfurado com túneis. Este dobramento aqui é bem mais novo, da orogenia Alpina do Terciário, e afeta rochas sedimentares do Cretáceo Superior. Eu estive aqui há 28 anos atrás, no verão de 1979, num programa de treinamento quando a Petrobras estava preparando pessoal para fazer exploração em águas profundas. Era um grande desafio na época, mas a Petrobras teve sucesso e foi premiada em 1992 e 2001 na OTC (Offshore Technology Conference), uma espécie de premio Nobel setorial no que é considerado o maior evento da industria petrolífera mundial. As fotos abaixo fizemos na volta, quando vínhamos devagarzinho e alugamos umas bicicletas em Zumaia, no inicio de um dos famosos 'Caminhos de Santiago'. A geologia aqui é tão espetacular que faz parte do roteiro turístico! 69 1.Seqüência dobrada vista em corte e na superfície. 2Voltando para a bicicleta 3. Contato K/T 4. Camada invertida, com turbidito distal (ocre) recoberto por camada de hemipelágicos de água profunda (cinza claro); uma bioturbação vertical atesta a polaridade invertida, o organismo perfurou a toca de domicilio de cima para baixo. 5. Mila descansando da pedalada. Ao passar a fronteira para a Espanha, adiantamos o relógio de uma hora, o que vale também para a Galícia e a França. Os fusos horários aqui são mais ajustados às conveniências políticas do que à passagem do sol pelo meridiano do lugar. Também nesta latitude, no verão, o sol está visível por mais de 15 horas por dia. Dia 15, na hora da baixa-mar estávamos em St.Malo. Vimos a maré vazia, fizemos mercado de frutas, sucos e biscoitos, e seguimos para leste pela orla, olhando o lado francês do Canal da Mancha que aqui se chama Costa Esmeralda. Os mapas locais denominam esta reentrância triangular (vide mapa p.67) de Baia de Saint Michel. A reentrância é um triangulo eqüilátero com lado de 120 km, vértices no Cabo Gréhel, no Monte St. Michel e no Cabo de Hagne. Dentro deste triângulo a maré de 6 m do Canal da Mancha é amplificada, para no dia da lua, como hoje, chegar a 12 metros de amplitude. 70 1. O porto completamente seco atrás do molhe. 2. A industria de pesca de moluscos (catadores de papa-fumo da França) e 3. seus anfíbios de serviço 4.o irmãozinho do Pinauna VI com bandeira francesa e teto de Peugeot, encalhado na 1ª hora de enchente... 5. e 40 minutos depois estava solto e já tinha rodado com a maré. 6. O castelo do Mont St.Michel, o aterro de acesso e a extensa planície de maré de uma argila consistente que eles chamam de tangue 7. a placa que está atrás de Mila na foto anterior, colocada nos dias de maré grande que na preamar cobre o estacionamento dos turistas. 71 O Mont Saint Michel é uma ilha, um caroço de granito com altitude de uns 50 metros na foz do rio Couesnon, que faz a divisa entre os ducados da Normandia e da Bretanha. Sobre a ilha foi construído um monastério no Séc.VIII, reconstruído nos Séc.XI e XII, funcionou como prisão no Séc. XIX e no Séc.XX foi declarado pela Unesco Patrimônio da Humanidade. Tem sido o cenário de filmes que ficaram famosos, incluindo 'O Ponto de Mutação' (Mindwalk) de Capra. A mega-maré da Baia do Mont St.Michel invade o rio Couesnon criando um estuário com barras de maré alinhadas na direção da correnteza. No final do Séc. XIX foi feito um aterro para ligar a ilha ao continente, o que impediu a circulação da lama, que se acumulou no entorno criando uma planície de maré que se estende por 15 km. A planície tem uma declividade de menos de 1° e é cortada por canais de maré que adentram a linha de costa com largura de dezenas de metros, se alargando mar adentro para centenas de metros. Quando a maré vem, ela fica confinada nos canais, para só na ultima hora cobrir a planície à velocidade vertical de 1m/h e à velocidade horizontal de 1m/seg. 15 maio 2007. Foto 1 10:28 GMT. Foto 2 16:24 GMT. Baixamar 11:42, 1,8m Preamar 17:06, 12.0m A Baia do Mont St. Michel por si só já tem uma geometria propicia para amplificar a maré. Ela se abre para o Canal da Mancha, um funil de 560 km entre a Inglaterra e a França, que fica mais raso da parte mais larga, a WSW (largura 170km, profundidade 120m) para a parte mais estreita a ENE (largura 35km, prof. 45m). Com isso, cumprimos os objetivos da viagem. Passamos perto de Paris e de Madri e não entramos. Para quem gosta de cidade grande é melhor visitar de pacote, com hotel reservado, táxi e metrô. Na França, exceto em La Rochelle, pernoitamos em Chambres d'Hôtes interagindo com o veinho anfitrião e acordando tarde para não abusar da veinha simpática que se propunha a fazer o café da manhã. Assistimos na TV a cerimônia de posse do Nicolás Sarkosý, uma semana depois do resultado das eleições. A família dele, uma jovem senhora charmosa, um menino de uns 8 anos, e um rapaz de uns 18 a 19, insistentemente focado pela TV, que deve ser de um primeiro casamento. O discurso dele, muito bem ensaiado, fez um retrospecto das administrações anteriores ressaltando os pontos positivos, e concluiu com o projeto de governo que ele prometia e pedia que os franceses cobrassem. Na Espanha dávamos 72 preferência a Hostals transadinhos, com coin-loundry e facilidades de internet. Em Portugal, com exceção de Coimbra onde ficamos duas noites num hotel com garagem no meio do buxixo, usamos a rede de campings da Orbitur, onde alugávamos um bangalô ou uma caravan. A viagem de volta foi passeando, com uma olhadinha na geomorfologia e sedimentologia do litoral atlântico e nas entradas das barras até Lisboa, que não vou contar para não encher o saco. Este trecho está no entorno da latitude 40° N, e os westerlies, também conhecidos como os 40 bramadores, sopram com vontade. A costa é aberta e o mar arrebenta. Quando tem uma saída de rio, um aglomerado de barcos. É passando lá que a gente entende porque os franceses que tem barco e juízo, quando juntam algum dinheirinho levantam os panos, atravessam o Atlântico e vem para Itaparica. Os alísios de nordeste só começam no trópico, entre as Canárias e Cabo Verde. Eu já fiz este percurso três vezes, e posso afirmar que a vida nos trópicos não tem comparação. Comemos do carneiro que pasta nos polder (terra recuperada do mar com diques de contenção), dos gámbas (camarão grande) da costa norte da Espanha e do bacalhau preparado em Portugal. Em Vigo, no restaurante da marina que recebe os barcos da Volvo Ocean Race, comemos de 'aperitivo' uma torradinha com caviar de ouriço, a popular pinauna da Bahia. Ainda bem que isso aqui não é moda, mas é muito bom. Visitamos castelos, museus e marinas, e claro, Mila foi às compras. Fizemos nossa peregrinação no Caminho de Santiago, apesar de que Mila achou que levou bagagem demais. Ao invés de nos instalarmos em Lisboa para o vôo de volta, ficamos no camping de Cascais, de onde irradiávamos para turistar. Na sexta 25 de maio passamos o dia em Lisboa. Mas ai não resistimos, compramos feijão arroz e carne para preparar no bangalô; até que tomávamos vinho português, mas senti uma falta enorme de farinha, e minha bisavó, uma índia Kiriri que plantava mandioca lá pras bandas do Vaza Barris deve ter se remexido no túmulo com peninha do bisneto. Uma das vantagens de viajar é aprendermos a valorizar o que temos no Brasil. Com exceção de uns poucos quilombos no NE e algumas tribos indígenas no W e NW 'protegidas' pela Funai, somos uma nação miscigenada, homogênea e sem problemas étnicos. Enquanto que os europeus valorizam as 'culturas' nacionais nós temos o 73 privilegio de valorizar a miscigenação e a uniformidade racial. Voilá! Ali está o Cabo Calcanhar! Vamos pra casa. 74 A EUROPA DOS HABSBURG - 2007 Eu só tenho feito ginástica quando vou no barco, e estava ficando entrevado por absoluta falta de saco para neste final de inverno chuvoso caminhar na pracinha ou nadar na piscina, de forma que me inscrevi num pacote turístico para Europa. Foram 17 dias acordando cedo, comendo goulash e caminhando até o joelho doer. O programa foi contornar os Alpes, saindo de Paris para leste, um cruzeirinho rio acima no Reno entre Boopard e St.Goan na Alemanha, uma passagem pela Republica Checa e pela Hungria recém aderidos à União Européia, e o retorno raspando os Alpes pela borda leste numa passagem antiga aproveitada pela autoestrada que liga Viena a Veneza. A Europa foi ocupada de leste para oeste, e a ocupação foi controlada pela geografia física. O mapa abaixo mostra a hidrografia e o relevo, ressaltando as vias de acesso fluvial que foram usadas na ocupação original e as montanhas que funcionaram como barreira natural. A letra M no canto direito do mapa é a Mesopotâmia , local onde a espécie humana começou a domesticar espécies vegetais e animais, e segundo os registros disponíveis, pela primeira vez construiu núcleos urbanos e se organizou em tribos, com uma conseqüente estrutura social incipiente. 75 O termo europa vem do proto- Semita para designar o por do sol, o ocidente. Se você seguir o link vai ver que ele leva a uma família de línguas de povos que se diferenciaram e migraram. Os que foram pelo norte mais frio domesticaram os cavalos e construíram fornos para se aquecer. O Pest, de BudaPest quer dizer 'forno de pedra'; Buda vem de uda, água, referencia às fontes termais. Budapeste fica no ponto onde o Danúbio inflete de W-E para N-S nos contrafortes das Carpathians. Antes de produzir qualquer registro escrito, os Celtas construíram fornos metalúrgicos alimentados a carvão vegetal e capazes de reduzir minérios de cobre. Adicionando 10% de estanho ao cobre se conseguiu fundir o minério a uma temperatura mais baixa, aumentar a fluidez da mistura fundida e aumentar a dureza do produto resfriado: bronze. Foi quando essa turma, aperfeiçoando técnicas de metalurgia, conseguiu produzir em escala instrumentos de trabalho e armas. Com isso, alguns grupos passaram a deter a hegemonia sobre outros, o coletivismo deu lugar ao individualismo e as sociedades dividiram-se em classes. Os que foram pelo sul tornaram-se agricultores e pescadores, com destaque para os Fenícios que inventaram o alfabeto fonético de 22 caracteres. Com o registro escrito, tem início ao que os Historiadores chamam de Período Histórico. A transição da Pré-história para a História deu origem a duas grandes estruturas sociais da antiguidade: as civilizações de servidão coletiva e as escravistas. Desenvolveram-se impérios escravocratas, que foram se sucedendo, egípcio→ grego→ romano e dominando a Europa mediterrânea. A esta altura chegamos ao ano zero da nossa era. A qualidade de vida dos dominados era desesperadora, quando aparece um tal de Jesus de Nazaré pregando a piedade e prometendo o reino dos céus para os pobres de espírito. As idéias de Jesus e a opção por um Deus único antropomórfico e antropocêntrico foram difundidas pelos seus apóstolos e tiveram grande aceitação por parte dos dominados, tornando cada vez mais difícil a tarefa dos dominadores politeístas. A situação chegou ao ponto de desestabilizar a estrutura do império, quando o Imperador Constantino I, no ano 325 convocou os presbíteros (bispos) ao Concílio de Nicéia, onde foi decidido, por votação, que o Jesus de Nazaré seria o Cristo imortal, foram escolhidos 4 testamentos de 80 em voga para compor o Novo Testamento, foi criada a Igreja Católica Apostólica Romana com seus bispos com status de nobres tomadores de vinho, os cristãos deixaram de ser perseguidos, foi editado o Credo que nós aprendemos nas aulas de Catecismo e a religião católica se tornou a oficial do Império. O Império Romano expandiu-se para além dos Alpes, até as margens do Danúbio e do Reno, e atingiu seu auge no Séc.IV. Neste meio tempo os Bárbaros (aqueles politeístas metalúrgicos que não falavam latim) que vinham pelo norte, desenvolveram a metalurgia do ferro, se equiparam, atravessaram as fronteiras e foram para Roma. Você pode ver algumas imagens idealizadas dessa conquista alugando o filme 'Átila o Huno' (os magiares da Hungria pronunciam Atíla). A defesa de Roma foi organizada pelo Imperador Caesar Flavius Valerius Leo Augustus. Leo era católico, líder dos presbíteros. Ele se tornou o primeiro Papa de fato, com poderes, e é hoje referido como Leão I (440-461), coordenador dos bispos. Mas os bárbaros entraram em Roma em 489. Em 492 o Papa de plantão argüia que Deus havia criado dois poderes para governar os povos, o espiritual e o secular (civil). Sob o domínio dos bárbaros a economia entra em crise (entenda por economia a produção, distribuição e consumo de bens), mas a Igreja Católica foi se organizando, convertendo os vencedores, e insinuando o Sistema Feudal, uma forma descentralizada de organização econômica, política, social e cultural baseada na terra, e não no comércio. Este sistema se expandiu com Carlos Magno (742814), um franco que se tornou rei de um território do qual faziam parte a França e um pedaço da Alemanha. Com objetivo de fazer com que os outros povos bárbaros se convertessem ao Catolicismo, ele incentivou várias guerras que resultaram na conquista de grande parte da Europa. No ano 800 (o ano zero 76 do calendário cristão foi determinado em 532 por sugestão de Dionysius, calculista do papa Bonifácio II) Carlos Magno (Karl der Große) foi a Roma ser coroado imperador do Sacro Império Romano Germânico pelo Papa Leão III. (Primeiro Reich, para detalhes veja o link O MUNDO ROMANO). A chamada Idade Média (489-1453) se confunde com a Europa Medieval, e começa com a queda do Império Romano do Ocidente. É por excelência a fase de consolidação do Papado e do enriquecimento, expansão e domínio da Igreja Católica Apostólica Romana. No Séc. XI foi implementado o celibato obrigatório a todo o clero, como uma forma de impedir que herdeiros reivindicassem os bens da Igreja. Foi no início deste período que viveu Maomé, o unificador da Arábia e criador do islamismo, mas esse assunto foi censurado, não nos foi ensinado nas aulas de História. Durante a Idade Média os árabes muçulmanos invadiram a Europa e difundiram cultura e tecnologia. Entre os Séc. XI e XIII os súditos do Papa saquearam os árabes com o poderio militar das Cruzadas. Durante o período das Cruzadas (1095-1291) começou um desentendimento entre alguns reis do Sacro Império Romano Germânico e o Papa. No processo, Rudolf von Habsburg foi excomungado em 1254, mas independente da vontade papal foi eleito Imperador pelos príncipes feudais em 1273, exercendo seu mandato até morrer em 1291. Como Imperador ele negociou com o Papa Gregório X, abrindo mão da cidade de Roma, de parte da Itália, e prometeu uma nova Cruzada, com a qual ele ampliou sua área de domínio. O que eu vi na Europa neste outono europeu foi o legado de Rudolf. 77 A foto acima é Schönbrunn, o Palácio da Bela Fonte encimado com a águia de duas cabeças, em Viena, Áustria, residência dos Habsburb na sede do Império que durou de 1273 até 1918 quando a Tríplice Aliança perdeu a Ultima Guerra Feudal, também conhecida como a 1ª Guerra Mundial. Nesta guerra desmoronaram o Império Alemão, o Império Austro-Húngaro, o Império Turco-Otomano, e o Império Russo. Sobrou enfraquecido o Império Britânico, vencedor, e começou o processo de descolonização na África e na Ásia. O Primeiro Reich foi mantido à custa de conquistas militares e de casamentos de conveniência, situação na qual o dote da noiva era feito em terras. A sociedade feudal era dividida em três grandes classes: a primeira compreendia os integrantes do clero, cujos bispos eram recrutados entre os nobres que cuidavam da fé cristã; a segunda reunia os senhores feudais, responsáveis pela guerra e pela segurança, e a última era constituída pelos servos, que trabalhavam para sustentar toda a população. A mobilidade social praticamente inexistia. Rígidas tradições e vínculos jurídicos determinavam a posição social de cada individuo desde o nascimento. Em meio a uma sociedade constituída de pessoas iletradas, o clero mantinha o controle absoluto do saber erudito, em latim, o que garantiu seu domínio ao longo de séculos de maneira quase inabalável. O progresso dos europeus neste período foi a invenção dos óculos, que propiciaram uma continuidade da vida intelectual, e a invenção dos arreios para os cavalos puxarem carroção de serviço. Fora do Sacro Império, os mercadores de Veneza importaram a pólvora e a bússola. Os povos ibéricos tiveram desenvolvimento distinto porque durante boa parte da idade média foram dominados pelos árabes. No Séc.XV os árabes já haviam sido expulsos da península Ibérica, mas os turcos do Sultão Maomé II atravessaram o Bósforo, tomaram Constantinopla, extinguiram o Império Bizantino e ocuparam o leste europeu do Mediterrâneo até os contrafortes dos Alpes e das Carpathians, o que inclui toda a Hungria. Este evento define o que os historiadores consideram como o fim da Idade Média. Mas o Primeiro Reich subsistiu até 1808. Durante o reinado de Maria Teresa de Habsburg (1745 a 1765) os palácios danificados pelos turcos foram recuperados, deixando um patrimônio que é hoje explorado pela indústria do turismo. 78 Palácio dos Habsburg, reconstruído por Maria Teresa sobre as ruínas. Em alguns pontos um piso de vidro deixa ver a estrutura original. Em primeiro plano na foto da esquerda, a invasão dos bahianos, Carminha da Espaço Turismo fazendo pose com Luis César da Alcance Turismo. Dentro do Sacro Império, com o fim das Cruzadas e o aumento da população, começou um comércio nas feiras que se realizavam nas vilas ou perto dos castelos. Inicialmente eventuais, as feiras tornaram-se permanentes, propiciando o aparecimento de núcleos urbanos, os chamados burgos, a partir dos quais desenvolveram-se novas cidades onde as atividades comerciais restabeleceram o uso da moeda. Em pouco tempo moedas distintas de vários feudos circulavam nas feiras e nos núcleos urbanos, criando a necessidade de câmbio. Apareceram os cambistas que cobravam taxas e realizavam a troca de moedas, faziam empréstimos e emitiam títulos, uma atividade bem vista porque livrava os comerciantes do risco de transportar valores altos. Com o aumento do comércio a burguesia negociou ou conquistou a franquia para suas atividades sem pagar tributo aos senhores feudais. A partir do aparecimento da burguesia a sociedade de classes passou a ter mobilidade, o que culminou com a Revolução Francesa de 1789. A Revolução Francesa foi a primeira das revoluções modernas, uma sublevação política que teve início em 1789 e se prolongou até 1815. A burguesia francesa, consciente de seu papel preponderante na vida econômica, tirou do poder a aristocracia, o clero e a monarquia absolutista, marcando o que os historiadores chamam o início da idade contemporânea. Os burgueses estabeleceram na França um novo governo denominado Diretório, o qual preparou uma Constituição e estabeleceu aliança com o Exército. O novo governo teve que enfrentar escaramuças externas, e saiu-se vencedor graças ao jovem general estrategista, Napoleão Bonaparte. Em 1799 o governo do Diretório foi derrubado por Napoleão, que junto com a burguesia instituiu o Consulado, de características republicanas e dominado por militares. Nesta fase o Poder Executivo capitaneado por Napoleão fez grandes reformas no campo da economia, religião, direito, educação e administração, reformas estas que agradaram à classe dominante francesa. Em 1804 um plebiscito aprovou a restituição do regime monárquico e Napoleão foi indicado para ocupar o trono. O Papa Pio VII foi a Paris para a coroação. Napoleão concedeu títulos nobiliárquicos aos seus familiares e colocou-os em altos cargos públicos. Formou-se uma nova corte com membros da elite militar, da alta burguesia e da antiga nobreza. Para celebrar os triunfos de seu governo, Napoleão I construiu monumentos grandiosos, como o Arco do Triunfo que, como outras grandes obras da época, por sua grandiosidade e por criar empregos, melhorava a imagem do imperador perante o povo. O Império Francês atingiu sua extensão máxima neste período, em torno de 1812, com quase toda a Europa Ocidental e grande parte da Oriental ocupadas, possuindo 150 departamentos, com 50 milhões de habitantes, quase um terço da população européia da época. Com os recursos de uma Europa dominada Paris tornou-se a Cidade Luz. Nas suas campanhas de conquista, Napoleão dissolveu o Sacro Império Romano Germânico em 1806, fazendo Francisco II (Franz Joseph, neto de Maria Teresa Habsburg) renunciar à coroa. Mas os Habsburg, mantendo a tradição da casa, manobraram para estabelecer o Segundo Reich, o Império Austro-Húngaro, com Francisco agora I de Áustria como imperador. Maria Teresa de Bourbon, a imperatriz, fez casar com Napoleão sua filha Maria Luisa, então com 18 anos. Antevendo o próximo grande império das Américas, fez casar em 1818 sua outra filha, a arqui-duquesa Maria Leopoldina com o então príncipe Pedro de Bragança e Bourbon, em 1822 o Imperador Pedro I do Brasil. Foi a Imperatriz Leopoldina 79 Habsburg quem, assessorada por José Bonifácio e na ausência de D.Pedro que estava em São Paulo fornicando com Titília, a bela, assinou a declaração de independência do Brasil em 1822. O Império Austro-Húngaro fez parte da Tríplice Aliança, derrotada na Primeira Guerra Mundial, quando os Habsburg assinaram rendição incondicional, numa situação que pos fim ao regime feudal e às monarquias absolutistas na Europa. A guerra causou o colapso de 4 impérios e mudou de forma radical o mapa geopolítico da Europa e do Oriente Médio. Carlos I da Áustria (1887-1922) – Karl Franz von Habsburg, sucessor de Francisco José devido ao assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando Habsburg, na Bósnia, em 1914, fato que deflagrou a Primeira Guerra Mundial. Ele foi o último coroado no império da águia de duas cabeças, aqui retratado na sala do trono no Castelo de Praga, antes de assinar a rendição em Schönbrunn. Este castelo de Praga é o maior da Europa, uma verdadeira cidade imperial, iniciado no Séc. XII. A muralha de contorno está toda recuperada, e na face leste, virada para o rio Vltava, há um quarto onde morou Franz Kafka em 1907. O butim da Primeira Guerra Mundial foi acertado no Tratado de Versailles, o qual se degringolou numa controvérsia generalizada. A controvérsia facilitou a ascensão dos nazistas e do Terceiro Reich na Alemanha dos anos 30, o que acabou levando à Segunda Guerra Mundial. Nesta Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos e a União Soviética estavam juntos do mesmo lado, e ao final dela ficou claro que os expansionistas do "Eixo Roma-Berlim-Tóquio" estavam controlados e manietados. Hoje, os alemães, como o checos, tem um comportamento naturalmente ríspido, não por mal, mas um reflexo de quem foi maltratado por mais de uma geração. A Alemanha foi dividida e ocupada de 1945 até a queda do muro de Berlim, em 9 de Novembro de 1989. O governo de Berlim hoje incentiva a visita ao muro derrubado, tendo feito a reconstrução de alguns trechos e marcado no chão o percurso que o muro fazia quando estava erguido. 80 A Republica Checa, a Eslováquia e a Hungria passaram a fazer parte da União Européia a partir de 1° de janeiro de 2004, e estão vivendo uma transição do controle soviético de Estado forte, com economia planificada, para o capitalismo globalizado da UE. O controle do Estado em tese promete justiça e igualdade social, mas isto só funciona numa sociedade educada que se comporta bem com um Estado liberal, como os povos escandinavos, os ingleses, suíços, e mais recentemente a França e a Alemanha. Estado forte é repressivo, a Polícia é armada e vê o cidadão como potencial transgressor, a corrupção é maior pelo abuso da autoridade outorgada e o cidadão sente-se vigiado e oprimido. Isto gera primeiro o medo e depois indiferença tendendo a conformismo, até que se torna insuportável. O povo fica infeliz e ineficiente. O roteiro de 4000 km do busu contornando os Alpes e o garotão turistando com a turma da melhoridade O turismo e paisagens da Europa neste outono de 2007: . Código de Hamurabi - Detalhe da compilação jurídica do Rei da Babilônia, datada de 4mil anos, gravada em diorito com a escrita cuneiforme dos sumérios. Vinhedos nas margens do Reno e as cores do outono do hemisfério norte; dentro de 3 a 4 semanas tudo isto aqui estará branco, coberto de neve.. 81 O que sobrou do Danúbio Azul imortalizado por Strauss: uma piscina tratada na 'praia' do canal de alivio (Donaukanal) em Viena. É verdade que o Danúbio está verde acinzentado, mas seria uma malvadeza e uma injustiça não ressaltar a nobreza, a beleza e a simpatia desta cidade. Ela abriga uma das sedes da ONU, com a função de servir como elo de ligação entre o 'mundo ocidental' e o 'mundo oriental'. Abriga a sede da OPEP, seus salões de concerto são numerosos e deslumbrantes e tem o toque feminino de Sissi, a querida imperatriz do final do Séc. XIX. A foto da direita é o rio Reno na Alemanha, entre Frankfurt e Colônia, uma área que hoje se destaca por uma super infraestrutura de transporte fluvial, rodoviário, ferroviário e aéreo. Todo este tráfego fluvial retratado está descendo o rio, para norte. Mais para sudeste, na direção que nosso barco está indo, fica Frankfurt, o centro financeiro da Europa continental, agora cheia de chineses fazendo negócios. A motivação deste cruzeiro era ver a densidade de castelos ao longo das margens do rio, um retrato da fronteira do antigo Império Romano. Castelos nas margens do Reno Usina de energia nuclear 'Usina' de energia eólica A velocidade das mudanças geopolíticas do Séc.XX, o século do petróleo, propiciou que a colonização européia iniciada no Séc.XV fosse desmontada em pouco mais de 20 anos. Ao final da Segunda Guerra Mundial a Organização das Nações Unidas tinha 51 países, que 30 anos depois eram 135 e hoje somos quase 200. Durante a bipolaridade mundial da Guerra Fria entre o comunismo e o capitalismo, os estados emancipados do processo de descolonização que não se alinharam com um dos dois blocos dominantes passaram a constituir o 'terceiro mundo', neutro em relação ao enfrentamento dos dois blocos, mas com assento e representação diplomática na ONU. Com o fim da Guerra Fria em 1991 o mundo se reorganizou agora unificado com duas preocupações: 1. a degeneração ambiental consequente do desenvolvimento econômico despreocupado com a qualidade da biosfera para a manutenção da vida 82 humana, e 2. a heterogeneidade dos níveis de desenvolvimento entre os povos globalizados, com a grita dos pobres numericamente dominantes e a preocupação dos ricos economicamente dominantes. No momento três providências estão em curso: pesquisa para produção de energia limpa, controle demográfico, e tratar de limpar a imundície gerada pelo desenvolvimento econômico desvinculado de cuidados ambientais. O Séc.XXI promete ser interessante, e talvez marque o inicio de um novo calendário, quando os vínculos religiosos e patrióticos passarem a ser coisa do passado e a população mundial da espécie que passou a se constituir no superpredador, com força de criar até mesmo mudanças geológicas na superfície do planeta, passar a controlar sua reprodução e ajustar o consumo às possibilidades do planetinha que habitamos. 83 Itália e Grécia - 2004 Final de agosto é uma época ótima para viajar pela Europa. O clima é bom, não precisa carregar agasalho pesado, o que lhe permite viajar leve, sentindo-se jovem com uma mochila nas costas. No início de setembro existem vagas nos hotéis e você pode chegar de última hora sem reserva e ainda pechinchar um preço melhor. Eu tinha um Europass ferroviário que dá direito a usar os navios que atravessam o Mar Adriático, da Grécia para Itália e vice-versa. E agora com a União Européia ampliada, fica tudo mais fácil porque eliminam-se as formalidades de imigração e de estar trocando de moeda a cada 500 km. 1.No trem, de primeira classe 2.Dobra recumbente capeada por discordância na entrada do Golfo de Corinto, próximo a Patras. 3.Acesso norte do Estádio Olímpico em Atenas A Grécia pós olimpíada 2004 está com uma dívida de US$ 12 bilhões. Está parecendo um carro velho onde foi adaptado freio ABS e apoio de cabeça nos assentos. O sistema de metrô de Atenas, novinho, exibe com elegância e propriedade nas estações de downtown, painéis arqueológicos e arte antiga encontrada nas últimas escavações. Assim que passa a estação Atiki para o norte, indo para o estádio olímpico, e a estação Kalithea para oeste, indo para o porto de Pireus, o metrô corre na superfície, o que é mais barato de construir, mais agradável para o usuário e mais rico para o turista que vai vendo a cidade. Eu passei lá entre as olimpíadas dos sarados e a dos aleijados, e o estádio estava sendo arrumado. Um super esquema de segurança, com polícia e exército, rígido mas educado e tratando o turista como cliente. As ferrovias na Grécia são de bitola mais estreita que na Itália, a agricultura é pobre e o povo sofrido pelo domínio secular de romano, turco, russo, francês e inglês. Usam aquele alfabeto diferente e não têm refinamento. São parecidos com os portugueses um pouco piorados. Como os portugueses, tiveram seu apogeu há muito tempo e 84 agora são pobres no contexto europeu. Se você quiser ver a Grécia antiga, de Homero, Sócrates e Platão, atravesse as cento e poucas milhas do Mar Egeu e vá para onde hoje é a Turquia, particularmente em Éfeso, onde os alemães fizeram um primoroso trabalho de restauração. É fácil, os espartanos foram de galera a remo até Tróia buscar Helena. Se quiser ir de carro existe uma ponte em Istambul, sobre o Bósforo, que liga a Europa com a terra do sol nascente, a Anatólia, berço da civilização. 1.Ponte que liga a Europa e a Ásia 2. Acrópolis em Atenas, iluminada. 3.Canal de Corinto: uma légua de corte no calcário A cidade de Atenas está no estado de Ática, que fica entre o golfo de Corinto e o Mar Egeu. Para sudoeste está o Peloponeso, uma península que contém Corinto, Sparta (terra de Aquiles o guerreiro do calcanhar desamparado) e Patras, cidade portuária grande que recebe os barcos que vem da Itália. Tanto a oeste (Mar Jônico) quanto a leste (Mar Egeu) do Peloponeso são centenas de ilhas, que vão até as costas da atual Turquia. Os dois mares são interligados por um canal que passa em Corinto. Na antiguidade viveram nestas ilhas sábios famosos, como Tales de Mileto, Aristarco de Samos, e hoje as ilhas gregas fazem o paraíso do turismo gay. Os „mares‟ são rasos, com fisiografia de plataforma, sem talude, e estão fechando como consequência da colisão em curso entre as placas tectônicas da África e da Europa. Toda a área é dominada por afloramentos de calcário, daí a pujança da indústria de cimento local e o uso do mármore para os mais variados fins desde a antiguidade. O calcário é marinho e mesozoico, fortemente dobrado no terciário com a orogenia alpina. As relações estratigráficas são complicadas com mergulhos fortes e camadas invertidas, discordâncias angulares monumentais; talvez por isto os fundamentos da geologia tenham escapado à perspicácia filosófica dos gregos da antiguidade. A colisão das placas da África com a Europeia fechou o mar de Thetis, do qual o Mediterrâneo é o resquício, criou a leste a península arábica e suas gigantescas jazidas de petróleo, levantou os Alpes e hoje mostra sua atividade nos terremotos da Turquia e da Grécia e nas erupções vulcânicas na Itália. No Golfo de Corinto quase não havia vento. No Mar Adriático era um S-SE de 10-15 nós. Saímos de Patras às 14:30, passamos por trás de Corfu e paramos em Igumenitsa ao por do sol, às 20horas. O Europass e uma tarifa portuária adicional de €16 dá direito a uma couchette. O ferry-boat da Superfast anda a 30 nós, tem bons restaurantes, e chegou em Ancona às 11:15 de 4 de setembro, um sábado; muita gente velejando, parecia uma regata! O norte da Itália é muito mais rico e 85 desenvolvido tanto em relação à Grécia quanto ao sul da própria Itália. Atrasei o relógio em uma hora para o fuso da Europa ocidental. A Itália é difícil de ser analisada porque eles tem uma história de 1500 anos contada como um evangelho na versão dos vencedores, e mascarada sob o manto do mais rico acervo artístico do mundo. O Império Romano ocidental dominou o mundo por 500 anos (27 AC a 476 DC), e quando começou a entrar em declínio político o imperador Constantino I, lá do oriente, unificou o império, adotou o cristianismo monoteísta como religião oficial, mandou promover o Cristo mortal a deus imortal e fundamentou a Igreja Católica Apostólica Romana na versão da Bíblia com o Novo Testamento, selecionando 4 evangelhos dos 80 em voga e mandando destruir os hereges, isto é, os que não comungavam com a versão oficial. Esta Bíblia, o maior best-seller de todos os tempos, está nos últimos seis meses sendo batida na lista dos “mais vendidos” de Veja pelo livro de Dan Brown escrito em 2003, „O Código Da Vinci‟. Foi por causa deste livro que eu fui revisitar a Itália. No final do século IV o império romano foi novamente dividido, e enquanto a parte ocidental se decompôs em meio século, a parte oriental centrada em Constantinopla persistiu até 1453 quando os turcos-muçulmanos dominaram a Eurásia empurrando os europeus para o lado de cá do Atlântico. Durante o desmonte do império romano houve um fortalecimento da Igreja Católica, fomentando a criação de estados-nação, e impondo sua doutrina na marra, com as Cruzadas e a Inquisição. Quando da queda de Constantinopla, Portugal e Espanha eram estados fortes, que haviam aprimorado a navegação à vela e contavam com a proteção papal. Instigados a descobrir um caminho marítimo para as Índias, acabaram por invadir as Américas e foram agraciados pelo dono do mundo com Bula Papal Ea, quæ pro bono pacis...", sancionada por Júlio II, que dividiu „o mar-oceano‟ com os eleitos. Logo em seguida (Séc. XVI) a autoridade papal foi contestada com a Reforma, e emergindo da cisão, outros candidatos a donos do mundo e da verdade apareceram em cena. Os desdobramentos deste imbróglio da sociedade global, catalisados pelos interesses econômicos da Era do Petróleo no Séc.XX, nos fizeram passar por duas „guerras mundiais‟ e se desenrolam até hoje com o conflito entre os fundamentalistas islâmicos, donos do petróleo, e os fundamentalistas do capitalismo, que tiveram seu templo destruído com a derrubada do World Trade Center. 86 Do ponto de vista arqueológico o local mais interessante da Itália é Pompéia, na canela da „bota‟, no ponto que você escolheria para chutar se fosse para doer. As ruínas estão a cerca de 5 km a sudeste do vulcão Vesúvio, cuja cratera se eleva uns 500m acima do nível do mar. As construções mais antigas foram datadas de 2600 anos, portanto 600 AC. A cidade tinha uma muralha de 3 km com 8 portas sendo que a Porta do Mar, por onde os turistas entram hoje, ficava a 500 m do porto no Mar Tirreano. Tornou-se uma colônia romana em 80 AC, e em 79 DC o Vesúvio vomitou lava quente que soterrou e preservou a cidade debaixo de 8 metros de lava e lama. Ao lado, o roteiro da viagem de trem e de barco em 2004. O Vesúvio visto de Pompéia restaurada Habitante de Pompéia cozinhado no ano 79 Com o resfriamento da lava, o mar foi empurrado para 2km de onde é hoje a Porta do Mar. Os romanos se reinstalaram no local 200 anos depois da erupção, mas a cidade antiga ficou absolutamente preservada, e foi descoberta pelo arado de um agricultor no vale do Rio Sarno em 1700. A exploração científica começou em 1748, mas só tomou impulso em 1860 quando o arquiteto Giuseppe Fiorelli inventou um sistema engenhoso de descolar a capa protetora com a injeção de um emplastro líquido. Constatou-se que as ruínas são pré-romanas e que os templos eram dedicados a deuses pagãos. Estimou-se que ali viviam de 8 a 10 mil habitantes, 60 % livres e 40% escravos. Os escravos tinham nomes gregos e eram também professores. Os livres eram romanos e tinham três nomes. A comida era guardada em potes de barro, porrões instalados em bancadas numa cozinha retangular. As refeições nas casas dos nobres eram servidas numa área retangular rebaixada do piso da sala, no centro da qual havia uma mesa. A cidade era abastecida de água pelo Rio Sarno, poços e um aqueduto. 87 Pompéia permite estudar de forma única a atividade social da época pela preservação forçada. Cerca de 2/3 da área construída era residencial. Os italianos fizeram uma restauração que quando comparada com a de Éfeso mostra-se muito pobre. A impressão que tive é que o material das paredes e dos pisos não tem muito a ver com o original. As gravuras são mosaicos incrustados nas paredes e nos pisos retratando bicho e gente, e num nível artístico mais evoluído, afrescos retratando paisagens com ilusão de profundidade. O desenvolvimento da perspectiva, do efeito de luz e sombra, só ocorreu dois milênios depois, e é esta fase de „renascimento‟ das artes que é vendida ao turista no norte da Itália. O roteiro Roma-Florença-Veneza vende Michelangelo, Botticelli, Rafael, Ticiano, Donatello, artistas de primeira linha que produziam protegidos e financiados por papas e reis. Emergindo de um mundo teocêntrico, e contemporânea ao auge do furor da Inquisição, a arte renascentista italiana retrata de forma repetitiva os evangelhos da bíblia oficial entremeada de esculturas dos deuses pagãos. Se você deitar de costas num banco da Capela Sistina, no Vaticano, e estudar a „criação do mundo‟ desde Adão até o „juízo final‟ de Michelangelo, pode dizer que pegou a idéia. O resto é variação sobre o mesmo tema exposta em quilômetros de galerias. A arte do renascimento está para a teocracia da inquisição assim como a arte de Hollywood está para a democracia capitalista. E o Renascimento também teve seu documentarista a la Michael Moore: chamava-se Leonardo da Vinci. Leonardo foi tido como bastardo, homossexual e o artista mais reconhecido de todos os tempos. Como seus contemporâneos Rafael, Ticiano e Michelangelo, aprendeu a pintar e a esculpir com o mestre Andréa del Verrocchio, em Florença. Foi autodidata como engenheiro, médico, geólogo (reconheceu os processos de intemperismo, transporte de sedimento e litificação) e inventor. Inventou a bicicleta, o pára-quedas, a sonda de perfuração, o sistema de diferencial, a catraca, a hélice, o rolamento e muitos utensílios de guerra. Ele escrevia em código, da direita para esquerda numa imagem especular da escrita normal. Seus escritos e suas pinturas vem sendo recentemente objeto de extensivas pesquisas principalmente porque infere-se que Leonardo escondia as pistas de sua dissidência religiosa na sua arte. Na Igreja de San Stae, em Veneza, havia uma exibição dos „Códigos de Leonardo‟. Dediquei um tempo à exibição. Mas Veneza em setembro merece um tempinho adicional do turista. 88 Veneza foi fundada no séc.VI por fugitivos que encontraram nas ilhotas da laguna um porto seguro e fácil de defender, e ali unificaram uma comunidade de pescadores sob a autoridade de um doge. Construíram uma frota marítima, implementaram intensa atividade comercial entre a Ásia e a Europa, ligando os portos mulçumanos e cristãos, e expandiram-se numa republica que dominou o Mar Adriático por cerca de um milênio. A cidade foi muito rica até que seu negócio acabou com a descoberta pelos portugueses do caminho marítimo para as Índias. A laguna é protegida por um conjunto de ilhas-barreira de construção quaternária, baixas e alinhadas paralelas à costa. Em área é semelhante à Baia da Ilha Grande, em Angra dos Reis, e a cidade de Veneza foi instalada num conjuntinho de ilhas mais centrais, com cerca de 20km2. As avenidas são canais, os táxis são lanchas envernizadas, e o transporte individual é uma canoa enfeitada que eles chamam de gôndola. Na cidade de Veneza não existe automóvel, mas você pode andar a pé pelas ruelas estreitas e passar de uma ilhota para outra por pontes para pedestre. Na lateral dos palácios da para fotografar sem disfarce um esgoto eventual caindo na „rua‟. Fede, mas nada insuportável. No início de setembro a cidade exibe uma tradicional regata a remo, antecedida por um desfile aberto solenemente pelo doge e a dogesa numa gôndola grande, evento que é fotografado e aplaudido por milhares de turistas ao longo do Canal Grande. 89 Fechando este relato gostaria de comentar o retorno num 767 da AirEuropa, uma empresa espanhola que faz Salvador de Bahia seu aeroporto de entrada na América do Sul. A revista de bordo do mês de setembro traz reportagens turísticas sobre os destinos da Empresa, e no caso do Brasil, ela retrata a reserva natural da biosfera, a capoeira, a bunda das brasileiras, o presidente Lula que „desperta paixões‟, o futebol de Ronaldinho, a arquitetura de Oscar Niemeyer ... e três páginas sobre o „homem orquestra‟ Carlinhos Brown, agitador cultural que canta, produz, domina a percussão, é líder da comunidade e no filme „O Milagre do Candeal‟ mostra sua obra mais querida: a recuperação do bairro onde nasceu. 90 ESCANDINÁVIA, 1997 No dia 15 de maio de 1997 entrei com meu pedido de aposentadoria no INSS, assinei o PDV da Petrobrás -- pedido de demissão voluntária, comprei na Verona Turismo uma passagem VASP Salvador-Bruxelas e um europass para a Escandinávia. Pela internet reservei um SUV Feroza de uma empresa local em Reykjavík, Islândia, e sai de férias, sozinho, as últimas como empregado do sistema produtivo, presente de aniversário de 54 anos. Voei para Bélgica dia 26 de maio. Na estação ferroviária do aeroporto em Bruxelas validei o bilhete de quinze dias do eurailpass e fui ver a cidade que é a capital da União Européia. Bem no centro de um país que é menor que o estado do Rio de Janeiro. O primeiro impacto foi a ordem e o progresso, que ali não é faixa de bandeira, é pra valer. Mas isso foi só o começo. Na Escandinávia foi que vi uma sociedade que neste final de Sec.XX merece a designação de primeiro mundo. Na minha adolescência li vários livros do jornalista italiano Dino Segre, mais conhecido pelo pseudônimo de Pitigrilli. Ele afirmava que adotou esse pseudônimo porque gostava de "colocar os pingos nos ii". Era capaz de contestar com sarcasmo, malícia e humor os vícios e as fraquezas de um mundo necessitado de senso ético. Foi muito influenciado pelo existencialismo do fim da Segunda Guerra Mundial e seus personagens são homens e mulheres com um viés cientifico vivendo numa sociedade de crenças vazias. Um dos livros que me causou mais curiosidade foi „Loura Dolicocéfa‟, e a estória se passava em Oostende, Bélgica, de forma que peguei o trem em Bruxelas, saltei para almoçar em Brugge, tão recomendada nos guias de viagem e fui me instalar em Oostende por uma noite. Bem na beira do Mar do Norte, na latitude 91 de 51°N, defronte a Londres. De Oostende para a Ilha, atravessando o Mar do Norte, é mais perto do que para Bruxelas. Maré com amplitude de 5m por influência do Canal da Mancha, mas dai para o norte a maré vai diminuindo rapidamente na direção da Holanda. Na Oostende do Sec.XIV foram construidos diques de contenção aos „polders‟, e no Sec.XIX um porto, que ligava a ferrovia de Bruxelas, via ferryboat, para a Inglaterra. Pitigrilli (1883 -1975) deve ter escolhido Oostende por concentrar a nobreza belga de bom humor no Sec.XIX; a Belgica se tornou uns pais independente em 1830, e seu primeiro rei, Leopoldo I, escolheu Oostende para sua vila de praia, o que levou a nobreza belga também a frequentar a área, criando um ambiente propício para o enredo da „Loura Dolicocéfala‟. De Oostende peguei um trem para Amsterdã, na Holanda, com uma descida em Rotterdam para ver o porto e o delta do Rio Reno. Holanda é uma denominação considerada coloquial e incorreta para Nederland, literalmente „país baixo‟ em neerlandês. „Holanda‟ são duas das doze províncias do „Países Baixos‟, a Holanda do Norte e a Holanda do Sul (esta contém a cidade de Rotterdam e a capital da província, Haia). A forma plural 'Países Baixos' em português é reminiscente dos tempos de quando o país ainda não era independente ou unido, o que ocorreu em 1648, tornando-se a primeira nação européia a assumir uma forma de governo republicana. Metade do território do país fica a menos de um metro acima do nível do mar, sendo o ponto mais alto na fronteira sudeste com a Bélgica, com altitude de 321 m. Muitas áreas baixas estão protegidas por diques e barragens. Partes dos Países Baixos foram conquistadas ao mar -- estas áreas são conhecidas como pôlderes. O país é cheio de canais e o transporte fluvial é de grande relevância. A Holanda tem uma agricultura altamente mecanizada, e é o terceiro maior exportador agrícola mundial em valor, atrás apenas dos Estados Unidos e da França. Os principais setores industriais são os de processamento de alimentos, a química, a petroquímica e o maquinário elétrico. O porto de Rotterdam, no delta do rio Reno, tem a reputação de ser o „portão de entrada da Europa‟, com acesso fluvial fácil para a 92 Alemanha. O sistema alfandegário holandês está voltado para a facilitação das operações de exportação e importação. Livraram-se da crença religiosa, e talvez porque sua guerra de independência tenha estado intimamente relacionada aos conflitos religiosos desencadeados pela Reforma, o país tem uma tradição de tolerância e liberalidade. As políticas nacionais sobre drogas, prostituição, direitos dos homossexuais, aborto e eutanásia atraem atenção internacional por sua tolerância. O turista tem acesso a toda esta liberalidade, mas os holandêses que acessei nos trens são compenetrados e trabalhadores, tomam sua cerveja depois do expediente e deixam essas liberalidades para serem usufruidas pelos turistas. De Amsterdam peguei um trem e fui para Dinamarca, atravessando o norte da Alemanha via Hamburgo, com uma conexão em Dusseldorf. É necessário reservar o lugar no trem, o que é feito num posto de turismo dentro da estação. No trem, tudo bem, na primeira classe; mas a Alemanha, que é uma potência industrial, foi dividida, maltratada e ocupada após a segunda guerra mundial durante uma geração, e é um país indócil. Está sendo invadida, como aliás toda a Europa, por africanos e asiáticos, e não é um lugar onde eu me sinto confortável. Dei uma voltinha, fiz minha conexão, peguei uma chouchette num trem noturno e segui para a Dinamarca. A Dinamarca também é toda baixa, constituida pela península de Jylland que faz fronteira com a Alemanha, e um arquipélago no Mar Báltico, de forma que para chegar em Copenhague, que fica na ilha de Zealand, é necessário passar de ferry. Mas só me dei conta quando já estava dentro do ferry com trem e tudo. Ai fui ao „duty-free-shop‟, comprei whisky e castanhas e fui fumar um cigarrinho numa mesa com cinzeiro. Na Dinamarca as pessoas são educadas para valorizar a humildade, e algumas dinamarquesas descoladas desfilam com negões importados e amestrados com muita pose. A península e a centena de ilhas do arquipélago ocupam uma área igual à do Espírito Santo, com uma população equivalente à do estado de Goiás (5,5 milhões) . A Dinamarca teve seus dias de glória e poder no Sec. XI, quando os Vikings dominaram boa parte da Europa. No Sec. XIX, depois de perder o domínio da peninsula escandinava, andou tomando umas porradas dos alemães, o que deixou marcas na identidade nacional dinamarquesa. Após as porradas, a Dinamarca adotou uma política de neutralidade, permanecendo neutra na Primeira Guerra Mundial, o que não impediu de ter sido ocupada pelos nazistas na Segunda. Aderiu à União Européia em 1992. Em Copenhage a rede de supermercados se chama Netto. Fui jantar na praça Tivoli onde assisti a um concerto aberto. Dia seguinte, entre as visitas turísticas, passei algumas horas no museu interativo Experimentarium, onde os pais levam as crianças 93 para entender o corpo humano (veja na foto um ouvido ampliado), a vivenciar o comportamento de um aquifero, bombeando água manualmente enquanto observa o cone de depleção no lençol freático. Da ilha Zealand para a Suécia não precisa de ferryboat, o trem passa por pontes e túneis e chega a Estocolmo, bem defronte ao Golfo da Finlândia, a 60°N, a mesma latitude de São Petersburg, na Russia, 700 km direto para leste. A viagem de Copenhage para Estocolmo já é de quase 600 km, a Suécia é grandinha, área equivalente a São Paulo + Paraná, com a população só do Paraná (10 milhões), o maior dentre os países escandinavos. Apesar de super-cuidadoso e polido, o povo é simples, com um jeito de tabaréu cheirador de rapé. Tudo muito limpo, e apesar de ser um país industrial, não existe indústria pesada na cidade de Estocolmo, que é implantada sobre 14 ilhas na saida do lago Malaren para o mar Báltico. Uma eclusa faz a conexão do lago para o mar. As ilhas são ligadas por pontes, de sobre as quais o pessoal pesca salmão numa água transparente. As marinas têm barcos simples, sem suntuosidade, muito bem cuidados. As terras europeias do Mar Báltico para norte são ricas em minérios metálicos e fazem parte de um antigo escudo arqueano, o Laurentia, de granito e gnaiss, muito distinto do restante do continente europeu da Dinamarca para o sul, que é novo, só se formou no paleozoico com o fechamento do oceano Iapetus e a colisão do Gondwana com o Laurentia para compor o supercontinente Pangea. No norte da península escandinava fica a Lapônia gelada, ocupada por nômades caçadores desde há oito mil anos e cristianizada no Sec. XVI quando virou “a terra de Papai Noel”. O Sec.XVI foi um período de grande turbulência religiosa, quando a Suécia tornou-se um estado luterano. Hoje é uma monarquia constitucional parlamentarista. No fim da ultima glaciação, há 11 mil anos, esta região era coberta com mais de um quilometro de gelo que retrocedeu nesta nossa época inter-glacial, deixando na Suécia lagos glaciais. No tempo dos Vikings, o lago Malaren era uma baia do mar Báltico, mas com o levantamento da massa continental conseqüente ao equilíbrio isostático do degelo, hoje está 0,7m acima do nível do mar, inviabilizando a navegação do mar para o interior. A implantação de Estocolmo numa posição estratégica no mar Báltico data do Sec.XIII. 94 Estocolmo é a cidade natal dos Nobel, o patriarca dos quais, Inmanuel Nobel, enriqueceu na Rússia czarina negociando com armas no inicio do Sec.XIX. Os filhos estudaram em São Petersburgo, sendo que Ludwig, engenheiro, ampliou os negócios do pai na segunda metade do século, tornando-se um pioneiro na produção e transporte de petróleo do Azerbaijão. Foi ele que em 1877 encomendou a um estaleiro sueco o projeto do primeiro navio petroleiro construído, o Zoroaster. Alfred se interessou por química, e acabou por inventar um método seguro de usar a nitroglicerina, um líquido oleoso intratável, para trabalhos de engenharia. Inventou e patenteou a dinamite, tornando-se um milionário pacifista depois que seu invento passou a ter uso militar. Mudou-se para San Remo, na Itália, onde morreu em 10 de dezembro de 1896 aos 63 anos. No seu testamento, possivelmente com a intenção de ter um obituário benigno, deixou instruções para que fosse criada uma instituição que premiasse anualmente as pessoas que mais tivessem contribuído para o desenvolvimento da humanidade. Em 1900 foi criada a Fundação Nobel e os critérios da premiação, que passou a ser outorgada desde 1901 pelo Rei da Suécia, na data do aniversário de morte de Alfred Nobel. O prêmio consiste numa medalha de ouro, um diploma com a citação da condecoração e uma soma em dinheiro em torno de 1 milhão de euros, com o propósito de permitir que os laureados continuem a trabalhar ou pesquisar sem pressões financeiras. De Estocolmo peguei o trem para atravessar a Suécia para oeste, pouco mais de 300 km até a fronteira com a Noruega. A ferrovia vai pela planicie aluvial do rio Klaralven, o maior da Escandinávia, com nove hidroelétricas até formar o lago Vanern. Enquanto que os rios de alta latitude são estreitos em relação aos tropicais, os lagos são imponentes. O lago Vanern tem 140 km de extensão e um arquipélago preservado como parque nacional. A ferrovia contorna o lago Vanern pelo norte e ai a fisiografia muda, subindo para as terras altas da Noruega. Fiquei duas noites em Oslo, uma cidade onde o custo de vida fica acima da média da Europa. Fui lavar a roupa num coin-loundry e visitar o Fram (Avante, Prafrente, em norueguês), o barco de madeira construido em 1892 que durante vinte anos estabeleceu recordes de latitude, indo sob o comando de tres noruegueses de 85°57'N até 78°41'S. Com o Fram, Fridtjof Nansen mostrou que a região ártica era um oceano coberto de gelo, e Roald Amundsen ancorou na Antártida e tornou-se o primeiro homem a chegar até o polo sul. O Fram é uma escuna de 39m, para 16 tripulantes, tem um motor a vapor de 220 HP e andava a 7 nós; calado de 4.6m, foi construído para invernar nas altas latitudes, de forma que a água ao congelar empurra o barco para cima ao invés de esmagá-lo. Os escandinavos em geral, e os noruegueses em particular, constituem-se numa sociedade monárquica e patriarcal de línguas germânicas, que veneram os ancestrais. Essa tradição da antiguidade se manteve na atualidade, e hoje a Noruega é uma democracia parlamentarista -- no parlamentarismo não existe uma separação nítida entre o executivo e o legislativo, e as crises são resolvidas com um voto de censura popular. A partir dos anos 70 do Sec.XX foi descoberto petróleo na plataforma continental da Noruega, e hoje o país é o terceiro maior exportador de petróleo do mundo, atrás da Arábia Saudita e da Rússia. Um país do tamanho do Maranhão, com 95 uma população de menos de 5 milhões, todos com um mínimo de 9 anos de escolaridade, pacífico, rico, educado, com um forte parque de energia hidroelétrica e isolado num canto do mundo, tem merecidamente o título de líder mundial no Índice de Desenvolvimento Humano e no Produto Interno Bruto per capita. Não aceitou fazer parte da Comunidade Européia. Eu vi lá um pobre, de paletó, futucando o lixo! Há décadas que estão tentando resolver diplomaticamente com os vizinhos do nordeste, os russos, as pendengas de direito econômico no Mar de Barents. A área continental da Noruega acima do círculo polar ártico contorna a 71° N o extremo setentrional da Europa, pelo norte da Suécia e da Finlândia, e vai fazer fronteira com a Rússia. A área continental da Noruega é montanhosa e glacial, e a linha costeira é recortada por fiordes -- embaiamentos estreitos e profundos escavados por geleiras que descem para o mar. Em Oslo meu tempo estava ficando curto, e eu tinha que decidir se ia para sudoeste, para Stavanger, a capital do petróleo norueguês, e de lá de catamarã (4 horas a 25 nós, US$100) para Bergen, ou ia direto noroeste para Bergen, que no livro que eu usava como guia dizia ser o ponto alto do turismo no país. Fiz a reserva e fui direto. O Eurailpass é válido em todos os trens da Noruega. O trem diurno foi ziguezagueando pelas montanhas, parando nas vilas, contornando lagos glaciais por uns 400 km em 7 horas, de Oslo a Bergen. Num trecho da viagem sentou junto de mim uma lourinha de uns trinta e poucos anos. Estava indo ao banco, na vila natal, pegar um empréstimo para comprar uma casa em Stavanger. Ela disse que era assim, mantinha os vínculos com a terra onde cresceu, onde todos se conheciam. No mesmo vagão, mais à frente, dois casais bem veinhos eram tratados de forma diferenciada. A lourinha explicou que esta geração mais velha foi quem construiu o país para os mais novos, e tinha que ser tratada com respeito. As fotos abaixo são paisagens da Noruega, vistas do trem e do passeio de barco nos fiordes em Bergen. 96 Dai tentei um navio para a Islândia, sem sucesso e voei 27° de longitude para oeste e 5° de latitude para o norte. Vinte e sete graus significam 27*60=1620 minutos, que na latitude aqui da Bahia são 1620 milhas náuticas, 3000 km. Mas de Bergen para Reykjavik, próximo ao circulo polar, 27 graus de longitude representam somente 1500 km. À proporção que você vai subindo em latitude, a volta ao mundo ao longo de um paralelo vai ficando mais curta, até que, no pólo, você finca o calcanhar e roda 360° fazendo a volta ao mundo em cima do eixo da terra! Por isso que numa carta náutica você só pode medir distância com o compasso ao longo de um meridiano. A Islândia foi a parte que mais me agradou na viagem. A ilha tem 103000 km 2 (duas vezes o Rio Grande do Norte) com uma população de 300 mil (1/3 da população de Natal), 2/3 da qual na área metropolitana de Reikjavik. Uma estrada que contorna o perímetro de 1300 km, a maior parte sem asfalto em 1997. Os livros de turismo deixam claro que o charme da ilha é a wildness da natureza e das islandesas. Estas andam de minissaia com umas meias longas para proteger do frio, e se comportam como vikings. A cidade está próxima do circulo polar, e no inverno o dia fica claro por 4 horas, no verão quase não tem noite. O povo de lá acha maravilhoso! A ilha fica sobre um hot-spot bem no meio da dorsal do Atlântico, local onde duas placas tectônicas divergem gerando vulcanismo e crosta oceânica nova. É a parte emersa do planeta onde ocorre a maior intensidade de vulcanismo e emanações hidrotermais. O nome gêiser vem de uma localidade de lá (veja placa de sinalização na foto abaixo, e o próprio adiante, vomitando água a 120°C). Da rodovia perimetral existem caminhos para carro com tração nas 4 rodas que vão até aos afloramentos da zona de fratura. No verão os acessos são liberados, e eu vim aqui foi para ver isso. Na chegada peguei o Feroza da Bílaleigan Car Rental Service, reservado por 3 dias (lá não existia Hertz e Avis), fiz um mercadinho e toquei para leste. 97 A primeira foto acima é o rift-valley, a zona de fratura, vista do avião na ida para Reykjavik. A segunda é na saída da perimetral, highway 1, 50 km a leste de Reykjavik, porque havia um caminho recém liberado do degelo deste final de primavera, por onde entrei para nordeste na direção de Gullfoss, a Cachoeira Dourada, foto 3. Na foto 4 coloquei a câmara no automático para me documentar caminhando nos basaltos da zona de fratura que se afasta atualmente na base de 2 cm por ano. Esta fratura iniciou-se no Cretáceo, há 100 milhões de anos, foi mais ativa durante o Terciário, 5 a 10 cm/ano, e propiciou a deriva continental de 6000 km entre a América do Sul e a África. Estava frio, mas a calefação do Feroza era eficiente, e fui seguindo para nordeste para ver a geleira Langjokull na parte central da ilha. Lá pras tantas comecei a me sentir cansado e constatei que eram quase 10 horas da „noite‟. O sol que pela manhã estava na cara, a leste, rondou para o sul, para oeste e agora estava a noroeste baixo e claro. Resolvi parar para dormir, estacionei o Feroza atrás de um morrote de lava vulcânica, fiz um lanche, arriei o encosto do banco do acompanhante e dormi de meia e bota. Mas acordei umas duas horas depois tiritando de frio. Liguei o motor para reaquecer o carro e tornei a dormir. Quando acordei de novo o sol já estava a leste, e meu intestino, que estava se adaptando ao novo fuso, achou que era hora de fazer cocô. Quando sai do carro com um rolo de papel higiênico, senti o vento forte e gelado. Me protegi a sotavento de um monte de lava, desci as calças, ceroula e cueca até os joelhos e executei de cócoras a saudável cagada matinal. Estava me limpando quando veio uma rajada descendente por trás, levantou o cocô que subiu mais de 5 metros; o papel sumiu como se tivesse a intenção de entrar em órbita. Voltei para o carro ligeirinho e resolvi retornar para o Hotel Duna, em Reikjavik, cancelando a visita a Vik, a vila pesqueira no sul da ilha, onde se lia no guia a oferta de esportes aquáticos e à geleira Vatnajokull, „a maior da Europa‟, que fica na beira da Highway 1. Que Europa que nada! A Islândia está muito mais próxima da Groelândia do que da Noruega. Ela é tangenciada ao norte pelo círculo polar ártico, e seu limite oeste é mais ocidental que a borda leste da Groelândia. O que ela tem de europeu é a ocupação de 1200 anos. Mas só depois da 2ª Guerra Mundial, quando foi ocupada por ingleses e americanos, como ponto estratégico, é que começou a ter investimentos e desenvolvimento. Com os investimentos e mantendo uma população pequena conseguiu os valores mais altos do IDH, índice de qualidade de vida que a ONU aplica desde 1993 na avaliação anual dos países membro. Em boa parte dos 400 km que andei no jipinho não existia nada vivo, nem animal nem vegetal. As duas primeiras fotos abaixo são do caminho recém liberado sobre o basalto vulcânico para chegar à geleira Langjokull. A terceira é uma emanação hidrotermal, gêiser. A grande riqueza da região é uma combinação de grande disponibilidade de energia (atividade hidrotermal, e hidroelétrica) associada à baixa ocupação demográfica. A quarta foto mostra a geleira azul que aparece quando se raspa a neve que a recobre. Daí retornei para a costa, onde visitei uma réplica de um navio viking e fotografei as estufas onde eles executam a atividade agrícola protegida nas áreas baixas. 98 Retornei de Reykjavik para Bruxelas via Londres, no dia 9 de junho, para pegar meu vôo VASP de volta ao Brasil no dia 10. No café da manhã no hotel Duna em Reykjavik, o proprietário, um ex-motorista de taxi, que fez o hotel com financiamento, veio à minha mesa saber de onde eu era. Quando eu disse que era brasileiro e geólogo, ele ficou todo excitado e chamou um russo que tomava café numa mesa ao lado. Nos apresentou, o russo era geofísico e havia estado no Brasil fazendo levantamento para fins científicos na plataforma continental. O anfitrião perguntou quantos geólogos havia no Brasil, e com base no evento raro de ter um brasileiro na Islândia, passou a calcular a probabilidade de ter dois geólogos no hotel dele, sendo um brasileiro. Este fato me fez entender o que faz a diferença do primeiro mundo: é a educação dos cidadãos que permite a chamada mobilidade social fazendo com que todos cresçam desde que tenham tido a oportunidade – no caso deles a obrigação – de uma educação abrangente. O segundo fator numa sociedade dominada pela economia é a disponibilidade de financiamento para estimular a capacidade de empreender, e o 99 terceiro, mas não o menos importante neste mundo globalizado do sec.XXI, é ter uma baixa densidade demográfica. No Hotel Opera, em Bruxelas, o despertador tocou às 07:15, mas dormi de novo. Por sorte acordei sozinho uma hora depois. Tomei café e peguei o trem para o aeroporto. Ainda tive tempo de entregar o roteiro de uso do eurailpass na mesma estação que o validou, me credenciando a receber pelo correio um brinde de um relógio de mesa. A experiência de viajar de trem na Europa é ótima. Em pouco tempo a gente se acostuma a usar todo o potencial das gares, as estações cheias de serviços, tudo bem sinalizado. Minha bagagem era uma mochila, que está no carrinho da foto ai ao lado, no aeroporto de Salvador onde Mila e Liana me esperavam para festejar meu aniversário. O presente de Liana tinha um bilhete que dizia: Pai querido. Envelhecer é uma arte e uma dádiva para aqueles que descobrem seu sentido. Como um índio, agora você chegou à maturidade e eu o honro por isso. Com muito amor, Lia, em 11.6.1997. 100 REGATA DO DESCOBRIMENTO 2000. DIÁRIO DE BORDO DO NAVEGADOR Na virada do século, dentre as festividades governamentais para celebrar os 500 anos do „descobrimento do Brasil‟ foi feita uma convocação aos velejadores para uma regata-passeio que recongraçasse a viagem de Cabral de Lisboa à Bahia. Meu amigo Felipão se propos a comprar um barco novo na Europa se eu topasse participar com ele da empreitada. E assim ficou combinado no final de 1998. Dia 21 de fevereiro de 2000 embarquei com Felipe, Rose e Nobbi num voo para Lisboa. Na chegada Felipe alugou uma van Seat de 5 lugares e fomos direto ver o Arribasaia na marina em Cascais. Felipe então lembrou que havia esquecido o tabuleiro de gamão no avião. Retornamos nos „perdidos e esquecidos‟ e após meia hora de burocracia recuperamos o tabuleiro. O Arriba estava com sujeira na linha d‟água. Nos alojamos num apartamento que Felipão alugara em Cascais. Dia 22 saimos para velejar com vento de 30 nós, uma saidinha de 10 milhas da marina. Dia 23 Felipe foi cedo para trabalhar em Londres, Rose saiu com Alzirinha e eu fui com Nobbi subir o Arribasaia no trevel-lift para limpar e dar nova venenosa. Dia 24 fomos de carro a Lisboa para analisar a raia de largada no rio Tejo: deixa a pedra grande do forte por boreste e cruza o rio para margem esquerda, do sul. É fácil, entra navio. Fomos ao shopping onde comprei roupa de tempo, impermeável de goritex, pull over polartec que deixa transpirar e não esfria, e ceroulas de lã. Também fizemos mercado para preparar jantar em casa. À noitinha pegamos Felipe no aeroporto, Rose e Nobbi fizeram o jantar e Felipe e eu começamos o infindável torneio de gamão que durou toda a travessia. Dia 25 fomos à APORVELA, entidade orgnizadora da regata e conversamos com o Cmdte. Canelas Cardoso. Compramos furadeira, multiteste e conectores; também cartas náuticas e almanaque náutico. Dia 26 limpamos e arrumamos o barco, fazendo uma lista do material que faltava. Dia 27 saimos para velejar com Enio Silva, filho de Tia Zete, prima de pai. Fomos até a entrada do Tejo. À noite baixamos da internet um programa de previsão de maré. Dia 28 fomos ao Salão Náutico de Lisboa, onde compramos patescas, manicacas, rapalas, etc. À noite Wilfredo Schurman foi ao Arribasaia , ajustou o SSB , tomamos duas garrafas de vinho e ele nos convidou para visitar o Aysso. Dia 29 instalamos ferragens internas, rede na cabine de proa, extintores, cunho no mastro. Dia 1 de março subi no mastro e consertei a luz de cruzeta e a de alcançado, verifiquei os pinos e lubrifiquei os moitões. Nobbi instalou o adesivo com o nome do barco. Dia 2 compramos e instalamos fuziveis para placa solar, checamos o óleo do motor e do reversor, e saimos para velejar na direção da Madeira. Trocamos a genoa por buja e decidimos 101 largar na regata de buja. Dia 3, sexta, Felipão levou a tripulação para turistar em Sintra. Felipão tem um jeito especial de manter a tripulação motivada e feliz, uma qualidade de comandante que mostrou-se inestimável durante a travessia. Dia 4, desmontei o sistema de gás do barco para tentar adaptar um “cubo” da Shell, sem sucesso. A solução foi usar o bujão de 2,75kg de camping. Dia 6 fizemos a arrumação final com os mantimentos e chegaram Mila e Pappy, uma surpresa, já que Pappy não iria na regata. À noite foi o cocktail de abertura no palácio, a tripulação do Arriba toda uniformizada. Dia 7 foi a reunião de comandantes, e dia 8 de março, quarta-feira de cinzas, a largada, exatos 500 anos depois de Cabral. Só que Cabral saiu com 13 barcos, nós largamos 31, dos quais 11 brasileiros: Arribasaia, Aysso, Bahia, Clack na Sula, Curumii, Fia, Hozoni, Parati, Papaléguas, Viva, White Dolphin. O desfile de largada começou às 11:30, e na arquibancada estavam os Presidentes das Repúblicas do Brasil e de Portugal. Pappy e Nobbi desembarcaram após o desfile numa lancha portuguesa que passeava fazendo fotos. Na barra sul do Tejo, Ψ=38°41‟N, λ=9°17‟W, aproamos para o próximo waypoint, na ilha da Madeira, 479 milhas a sudoeste 102 A noite foi fria e no dia 9 a temperatura era de 17°C, pressão 1024mb, vento SE geralmente fraco, eventualmente com rajadas de até 30 nós. O primeiro dia no mar é de enjoo. Motoramos umas 4 horas, e tivemos um progresso de 120 milhas em 24 horas. Na segunda noite eu estava enjoado e Mila fez o meu turno. Tomei dramin e dormi; quando acordei estava bom. Às 6 horas da manhã do dia 10 estávamos a 36°06‟N, 12°06‟W, com vento de W 10-15 nós. Hoje todos ficaram bons do enjoo da saida e começou a fase de relaxamento e das partidas de gamão e de tranca das meninas. Ta frio ai, comandante? Dia de contra-vento. Falamos no rádio com Viva, Curumii e o Escola de Sagres, que estavam perto. Dia 11, havíamos passado uma zona de baixa, e a pressão estabilizou 103 em 1023mb. A temperatura subiu para 20,5°C. Andamos no rumo M220, sempre no contra-vento fraco. Quando o aparente cai abaixo de 9 nós, motoramos e ligamos a geladeira. Mila está ótima, bem humorada e participativa. Felipão em franco progresso, decide sozinho o que fazer com as velas. Às 13:30 Ψ=34°30‟N, λ=13°50‟W. Rumo 208 velocidade 4 nós, T=20,5°C P=1023mb.,vento SW 16 nós. Nas ultimas 24 horas andamos 100 milhas. À noite teve vento e andamos bem com grande toda e buja. Ao amanhecer do dia 12 o vento caiu e motoramos. Transferimos 40l de diesel do camburão para o tanque. O tanque de água 1 está no meio, o 2 intocável. Em reunião decidimos programar a chegada para amanhã pela manhã, tendo uma vista da Ilha da Madeira ao nascer do sol. O almoço foi elaborado. Felipão hoje não teve sorte no gamão e foi surrado. Tomei banho cedo. Avistamos o farol do Ilhéu de Cima, em Porto Santo às 20 h, a 20 milhas de distância. Forte nevoeiro. Vento S-SE 2 nós! 13 março, segunda-feira. Ao amanhecer estávamos no canal entre a Deserta Grande e a ilha da Madeira. O Cisne Branco, o navio-escola da marinha brasileira ia chegando também, e a tripulação do Escola de Sagres, o navio-escola da marinha portuguesa, estava perfilada sobre a verga das velas cantando “Ó Cisne Branco, em noite de lua”. Chegamos no porto em Funchal às 9 horas. A recepção foi precária e os brasileiros foram encaminhados para o porto de carga. Felipão mandou adentrar a marina e atracamos no píer de abastecimento. Nestes 5 dias motoramos 66 horas e gastamos 95 litros de diesel, com um consumo de 1,44l/h @ 1500rpm. Enquanto abastecíamos Felipão foi na secretaria da marina arrumou o telefone do dono do barco que estava na ultima vaga do píer e pediu autorização para atracar a contrabordo. E conseguiu! Quando o Parati chegou e Amir Klink foi abordado pelos repórteres, fez uma reclamação publica e a administração da marina mandou tirar os barcos de serviço para fazer espaço para os brasileiros atracarem. Tomamos banho em terra e levamos a roupa suja para lavanderia. Visitamos a Exposição Brasil 500 com livro comemorativo e visitamos a caravela Boa Esperança, com seus 18 tripulantes que trocavam em cada porto. Mila, Felipe e Rose foram à missa comemorativa. Dia 14 alugamos um Hunday pequeno de 4portas e fomos até Ribeira Brava, onde almoçamos. Na volta pegamos a roupa na lavanderia e fizemos mercado. À noite jogamos chouette em Natasha com Jamil „Barba‟, tripulante do Parati. Amyr chegou perto mas disse que „estava destreinado‟. Em Cabo Verde ele se arriscou e Felipão escalou Mila para jogar com ele que foi devidamente surrado. Dia 15, concluímos o mercado, devolvemos o carro, arrumamos o barco e fizemos o check-out na imigração. Nobbi chegou no final da tarde, cheio de histórias de negócios e entusiasmo. No bar de Natasha a Associação de Vela da Madeira ofereceu um cocktail. Depois fomos a um jantar no palácio, onde foi feita a premiação ao Marujo, o Espírito da Madeira, um 38 pés de madeira, com motor lacrado, muito bem tripulado, que ganhou a primeira parte da regata. Chegaram em regata 4 barcos: Bahia, Mariposa, Marujo e Viva. No discurso da premiação o veinho de cabelo atravessado na careca, Canelas Cardoso, „coordenador‟ da Aprovela, em quem ninguém acredita, falou de descobrimento ou achamento do Brasil, e eu na qualidade de índio Kiriri intervi: Invasão! Dia 16 resolvemos largar antes da regata. A caravela saiu às 03:00. Parati resolveu sair cedo também, às 11. Às 12:30 estavam no mar: Parati e Hozoni com proa em Las 104 Palmas de Gran Canária, Curumii com mestra no 1ºrizo, andando a 5 nós e Arribasaia com tudo em cima a 6,5 nós, proa em Mindelo. Decididos os turnos, Felipe 12-15, Nobbi 15-18, Sérgio 18-21. Às 15:30 tinhamos andado 23 milhas, V=6,5nós, T=21,5°C, P=1023, Umidade relativa 67%, vento E 15-20 nós. Nobbi ficou na cabina grande, a meia nau; Felipe e Rose se mudaram para a cabine de popa a boreste. Mila e eu na cabine de popa a bombordo, desde Lisboa. Às 12h do dia 17 tínhamos um progresso de 144 milhas, vento NE18nós, temperatura 22°C, rumo M212. Ninguém enjoou à vera. Vento em popa ~150°, armado em asa de pombo desde ontem à tarde. Gastamos 1/10 do tanque d‟água. Ao por do sol morreu uma albacora macho, 4,5 kg, que jantamos. Felipão chamou no VHF, em canal publico, o Parati, e Amir respondeu. – Quero falar com o Barba. Jamil „Barba‟ é restauranteur sofisticado em São Paulo e estava de cozinheiro do Parati. Felipão explicou como foi preparado o peixe e pediu conselho a Barba de qual vinho devia servir, enquanto o pessoal da regata estava ouvindo e possivelmente comendo sanduíche com cerveja. Esse Felipão é mesmo abusado, mas no torneio de gamão até aqui está perdendo de 3x1, partidas de 15 pontos. Mas ele tem artes do cão! Já perdi para ele um torneio de „amarelinho‟ na coroa do Morro de São Paulo. Dia 18, de madrugada deixamos Las Palmas de Gran Canária no través, 50 milhas a bombordo. Vento NE 15 nós UR=81%, o que reduz a sensação de frio. Às 00:30 Ψ=29°20‟N, λ=18°40‟W. A bateria está sendo drenada rapidamente e precisamos ligar o motor para corrigir. Estimo que temos que ligar ao menos 3horas/dia. No turno de Nobbi, das 3 às 6 o vento foi extremamente regular, estamos na área dos alísios de nordeste. Peguei às 6, HVL 4:48, e medi a Polar no sextante no crepúsculo matutino. Observei a Ursa Menor rodar em torno da Polar, ,acompanhei o nascimento de Venus até os 10° de altura, e quando nasceu o sol, subi o balão com Nobbi. O amantilho do pau soltou da ferragem e o pau bateu na cabeça de Nobbi, que sangrou. No barco é assim: existem duas maneiras de fazer as coisas, ou perfeito ou uma merda total. E a lição vem de imediato. Passamos a andar a mais de 8 nós com o balão até que Felipão pegou o leme no turno das 9 h. O nordeste estabilizou em 15-20 nós. Estamos chegando no trópico, e aqui a gente aprende literalmente na pele que a vida nos trópicos é outra coisa! Dia 19 foi tranqüilo. Rose melhorou do enjôo de ontem. Motoramos pela manhã e subimos o balão à tarde. À noite o vento rondou pela popa e mudamos o rumo mais para oeste para evitar a popa rasa. Vamos entrando 10° na direção da África, mas amanhã a gente corrige. Pousou uma pomba com duas anilhas nas pernas. Pombo correio. Amyr relatou no rádio que está com 5 a bordo. Curumii com duas. A nossa dormiu no convés, atrás do mastro e não quis comer. Ψ=25°16‟N, λ=20°49‟W, P=1020mb, estável, vento de N30 com 20 nós. Durante a noite de 19 para 20 passamos do meio caminho Madeira-Mindelo. Pela madrugada, no meu turno, senti um vento sujo, era o Marujo, apagado com o balão na nossa popa. Orcei ele com direito, e ouvi um barulho de catraca, caçando a escota de sota do balão, eles orçaram mais e nos passaram. No dia seguinte a pomba tinha ido embora e comentei no rádio com a flotilha a manobra do Marujo. Os portugueses falaram: esses caras acham que estão correndo regata de bóia! Em Mindelo o comandante deles foi se explicar que não estava apagado! Hoje, 20 de março, às 07:40GMT o sol no equinócio passou pelo equador para fazer a primavera do hemisfério norte. Ao meio dia foi servido carne do 105 sol e à noite macarrão. Às 23h cruzamos o trópico de Cancer. Mila veio para fora na madrugada para ver Venus. Foi uma noite linda de lua cheia. Vimos Touro e Gêmeos no zodíaco, Saturno e Júpiter também estavam passeando pelo céu noturno. Vento NNE 10-15 nós, andamos toda a noite em asa de pombo com amuras por bombordo, vento a 170° da proa, com piloto automático em „vane‟, controlado pelo anemômetro. Dia 21 meu turno foi de 6-9 GMT, que hora local é 5 HML. Coloquei a linha e tranquilamente embarquei uma albacora de 5 kg. Veio em boa hora, porque pela manhã as meninas fizeram limpeza geral da geladeira e jogaram 8 peitos de galinha estragados fora. Também foram ao mar as frutas que começaram a estragar. Aleixo tinha avisado no livro da primeira volta ao mundo, que se numa viagem oceânica você começa a comer fruta que começou a estragar, passa todo o tempo comendo coisa estragada. Tem que jogar fora. No quinto dia após Funchal, às 12h Ψ=22°13‟N, λ=22°25‟W, T=24°C, P=1018mb, UR=75%, trip 708 milhas. Ontem mapeei duas áreas de contra-corrente, consequentes da convecção das águas em torno das montanhas submarinas. Vento NE 5-10 nós, progresso nas ultimas 24 horas 122 milhas. Tarde de motorada e jogatina: gamão e 8 maluco. Happy hour com scotch, jantar peixe com arroz e batata. O único momento de tensão na viagem foi quando as meninas ficaram nervosas por causa de uma dama de páus que não saia para fechar uma canastra. Ao invés de piruar o jogo veja ai as cestinhas de frutas ainda abastecidas Dia 22, velejando nos trópicos; às 03:00 Ψ=20°57‟N, λ=23°02‟W; progresso em 24 horas 125 milhas. Apesar das motoradas, o tanque de combustível ainda não chegou no meio, e o grande de água está a 1/3. Ambiente a bordo tranquilo. Nobbi na cabine de proa acordou cedo, resmungando do sacolejo e preparou uma magnífica salada de frutas que deixou na geladeira com um bilhete bem humorado. Hoje o dia foi de balão. Subimos logo cedo, depois do café da manhã e o mantivemos até o por do sol. Sob forte pressão geral e por determinação do comandante, tomei banho e fiz a barba. O torneio de gamão está 5x4 para mim. Às 20 h, Trip 890, faltam 160 milhas para Mindelo, Ψ=19°29‟N, λ=23°44‟W, T=23,5°C, P=1018mb, UR=75%. O almoço foi na mesa, com balão em cima, moqueca de albacora by Mila. Ótima. Progresso do dia 134 milhas, estamos subindo no Plateau de Cabo Verde. 106 Dia 23 velejamos em asa de pombo com NE 10-15 nós @ 170° da proa. À meia noite vimos de binóculo as luzes de Sto.Antão. Torneio de gamão SN 6 x 4 FC. Partida em andamento SN7 x 3 FC. 24 de março. A chegada no canal entre Sto.Antão e S.Vicente foi magnífica. Na proa, na bochecha de BB o Cruzeiro do Sul com as alfa e beta do Centauro @ 10° de altura. Na popa, pela alheta de BE a Polar. No período de aproximação a Ursa Maior (Carro Grande) rodou puxando o rabo da arraia. No través de BB a lua parecia um capacete de motocicleta, iluminava tudo. A 15 milhas de Mindelo tiramos as velas. Ao entrarmos no canal entre as ilhas, o vento NE rondou para N-NW e por causa do efeito venture dobrou de velocidade. Depois voltou para NNE 20 nós. A carta inglesa, sem datum explícito, tem um erro em relação ao GPS no datum WGS-84 de 0,1milha. Ancorado no porto plota na 367 em terra! Ancoramos junto à „marina‟ do navio alemão Eirene, às 04:30 GMT. Preparamos o caíque „arreia calcinha‟ para combinar com o Arribasaia, e ao descermos em terra foi que aprendemos a valorizar a maestria do nosso Comandante: enquanto nós andávamos de braços dados na maior amizade, as outras tripulações, alguns ex-amigos de 30 anos queriam um matar o outro. Durante o dia passeamos em Mindelo. Almoçamos num restaurante alemão novo, na rua principal. Depois fomos à telefônica e todo mundo, até eu, telefonou para casa. À noite fomos jantar no hotel e depois Nobbi foi para a gandaia com as outras tripulações. Dia 25 foi dia de compras: bujão de gás – agora a Shell já tem os camping gás! Não achamos coca-cola em litro e compramos uns refrigerantes locais, horríveis. A pobreza de Mindelo me incomodou mais que da vez passada. Parece que em dois anos a população cresceu muito e com muita gente acaba o ambiente amistoso. O Eirene, o catering alemão, funcionou como marina, os barcos colocam a âncora e atracam de popa no entorno, e tem energia 220V e água. Tem caíque com motor de popa que transporta os clientes até um cais pequeno, de forma que se desembarca sem molhar os pés. Dia 26 pela manhã fomos ao cais de navio e abastecemos de água. O tanque de proa estava vazio (300l) e o de popa (250l) estava pela metade. Voltamos para ancorar junto ao Eirene e fomos ao almoço festivo no Centro Náutico da ANV (Associação Nacional de Vela dos cruzeiristas de Portugal. O Espírito da Madeira foi premiado de novo, ganhou a segunda perna. O pessoal do Heikon, um ketch alemão pequeno de aço, de Heiko e Konstanze, se integrou conosco, e Heiko instalou pra a gente um modem que ele construiu, ligando o SSB no lap-top. Doravante já temos como ter a nossa previsão meteorológica independente. Zerei o hodômetro do Arriba, que estava com 1065 milhas desde Funchal, velocidade média 5,64 nós. Dia 27 o pessoal foi tomar o café da manhã no hotel e eu fiquei a bordo para abastecer de diesel e revisar o motor. Foram 118 litros, incluindo os dois camburões vermelhos. O consumo neste trecho foi de 1,3 l/h. Motoramos 62 horas, parte das quais em baixa rotação para carregar a bateria. Voltaram com mais compras: cebola, limão, aipim e pão e foi feita uma votação na qual por 3x2 decidimos sair amanhã, terça-feira, dia 28 de março. Como a feira principal foi no sábado eu propus sair no domingo, mas fui voto vencido. À noite o pessoal foi jantar em terra e eu fiquei a bordo com Mila. Falei com Rafael no SSB e ele recomendou cruzar o equador na longitude λ=30°W, e informou que no hemisfério sul os ventos estão de E. 107 Dia 28, largamos às 09:30 GMT, 07:30 HML, sem festas. Assim que contornamos S.Vicente armamos asa de pombo com vento NNE 10-15 nós, rumo M209, proa em Ψ=0 λ=30°W. Às 12:15 o vento rondou para E 15 nós. Desarmamos a asa de pombo e mantivemos buja, andando M209 @ 5-5,5 nós. Às 14:25 mudamos de rumo para M204, aproando para Ψ=0 λ=29°W. Quando a regata largou já estávamos 36 milhas na frente. O Cisne Branco passou a sotavento pelo través, à vela. Às 20 GMT Nobbi lubrificou de novo a cabeça do leme, que começou a ranger. Durante a noite ligamos 2h de motor para carregar bateria e ligar a geladeira. 29 de março – agora estamos qualificados para pegar a carta sinótica no SSB, com o modem de Haiko. O negócio é passear na frequência até o sinal ficar claro, ~2 hz para menos da frequência nominal. No nascer do sol, no meu turno, o peixe comeu a pá da rapala e fugiu. Às 11:30 GMT completamos 153 milhas em 24 horas. Subimos balão e a velocidade aumentou 2 nós. T=25°C, P=1017, subindo, UR=70%, Ψ=14°30‟N λ=25°40”W. Rumo V193, M206 Vel. 7 nós, vento N50 15 kn. Trocamos buja por genoa e destrocamos porque a asa de pombo fica melhor com a buja. Mila queimou a mão numa escota, e Nobbi fica nervoso sob pressão das manobras. É melhor irmos com o mínimo de pano do que forçar a barra e o povo se machucar. Dia 30, quinta feira, se é que isso tenha qualquer significado. Começou a ficar mais nublado. Apareceram muitos cumulus e estrato-cumulus. A temperatura do ar e da água subiu, creio que agora pra valer, acabou o frio. Já andamos de calção, sem camisa e sapato. À meia noite, 22 HML, T=24°C P=1016 UR=79%, Ψ=12°16”N λ=26°11”W. A vela mestra começou a bater muito e a recolhemos, andando só de balão a 4-5 nós. É como se estivéssemos num porto com levadia! Ao por do sol descemos o balão e falamos com o Parati, que viu a operação. Jogamos 8 maluco.. Estou com uma gripe horrível, constipado. Dia 31 o balão subiu às 10 GMT, Ψ=10°38‟N λ=26°33”W P=1016îT=26,5°C UR78%. Neste terceiro dia andamos 125 milhas, totalizando 395 em 3 dias. Hoje, 4ºdia de viagem, deveria se instalar a fase de relaxamento, com as frutas e verduras no ponto, mas não está assim. A carne de sol guardada na geladeira apodreceu. As verduras acabaram ou estão imprestáveis. Fazendo as compras de Mindelo no sábado, deveríamos ter saído no domingo. Para usufruir a fase de relaxamento, tem que conquistar. Ao por do sol tentamos deixar o balão em cima, armado como gennaker. Felipão resolveu motorar também, e o balão desarmou e soltou o estropo. Nobbi foi pegar e segurou na esteira, que rasgou. Descemos para costurar, subimos a mestra e continuamos com motor. Às 21 GMT Ψ=9°45‟N λ=26°45”W. Faltam 600 milhas para o equador. T=27°C, Tágua 26°C, P=1016îUR=78%. 1º de abril. Pasei um dia de cão, com forte gripe, dor no corpo, dor de cabeça, lezeira. Pela manhã subimos o balão já consertado, e à tarde o vento rondou de NE para N e tivemos que dar jaibe. Ai deu confusão e descemos o balão. Não dei meu turno, Felipe e Nobbi administraram. Hoje é aniversário de casamento de Nobbi, e Rose resolveu abrir um vinho. Daí que passou a noite mal, enjoada. O Bahia cruzou o equador hoje, e prevê chegada em Salvador 6 a 8 de abril. 108 Em Mindelo, 1. o Comandante e seus agregados; 2.cais de desembarque. 3. No doldrum, todas as gaiutas do Beneteau 41 abertas. 4. Costurando a esteira do balão no dia 31/3/00. 2 abril. Às 09:30 GMT trip 629 mi, Vmedia 5,16 Ψ=6°53‟N λ=27°24”W, Rumo V193, vel.5kn, vento NNE 10-15 nos, P=1016mb T=27,5°C UR=79%. Esta segunda travessia está mostrando que o discurso previsivo da primeira é simplório. Provavelmente cada travessia é única e o que pode ser generalizado é pouca coisa. Liana tem razão de novo: este tipo de viagem é para exercitar a humildade. Durante o dia descansei e melhorei da gripe. Ao por do sol fumei o primeiro cigarro do dia. As partidas de gamão estão SN8x4FC. O balão desceu ao por do sol, e Rose vomitou na operação. Já é o quinto dia seguido de balão o dia todo, com todas as gaiutas abertas. Às 20 GMT Ψ=5°53‟N λ=27°38”W, vento NNE 10-15 nos, P=1014T=29°C UR=74%, vento NNE 12 nós. 3 abril. Já estou bem melhor da gripe e acordei cedo, 6h, para subir o balão. Andamos bem nas ultimas 24 horas, 140 milhas. Às 09:00 GMT T=27,5°C P=1015îmb UR=77%, céu com cumulus, Ψ=4°41‟N λ=27°55”W , trip odometro 766 mi rumo V193 vel. 7 nós, vento NE 10-15 kn. Acabou o primeiro bujão de gás desde Mindelo. Às 13:44 GMT, meio dia hora verdadeira local, o sol rondou pelo sul e passou no meridiano local @ 92°. Passou de SE para NW, muito rápido em menos de 30 segundos. O sol hoje passou sua declinação pela nossa latitude. Tomei banho na popa com água salgada, enxaguei com água doce, e aparei a barba. Às 17 hvl apareceu um trem de ondas secundário de ENE, interagindo com o trem principal de NNE.T=31°C P=1013 UR 72% Ψ=3°41‟N λ=28°08”W, Vento NE 10 kn.. 109 4 abril. O dia amanheceu limpo e lindo, exceto pelo sul que estava cinza claro de estratos. Às 09:30 GMT Ψ=2°20‟N λ=28°27”W, começou a chover pouquinho. Desarmamos a asa de pombo, subimos dog-house e bimini e seguimos com NE de 15 kn.Trip 913, progresso em 24h 143 mi. Ao entrar debaixo dos nimbo-estratos o vento caiu para 4 nós. É o DOLDRUM, finalmente! O mar ficou desencontrado, com ondinhas como na baia de Todos os Santos. Começamos a motorar a 1800 rpm, 5 nós, rumo V193. Às 12 GMT passou a dominar um trem de ondas ENE e o vento se estabeleceu ESE com 5-8 nós, Ψ=2°07‟N λ=28°30”W. Às 16 GMT o dia limpou, só nuvens altas, vento ENE 10 nós, Ψ=1°43‟N λ=28°36”W, P=1014 T=30°C UR=77%. Um levantamento após um almoço ruim, mostrou que só temos 11 refeições. Alterei o rumo em Ψ=1°30‟N λ=28°39”W para V209. Trip 967. 5 abril – Às 13:134 GMT cruzamos o equador na longitude λ=29°28,8”W. Todo mundo na água para „batismo‟, quando o sol passou „a pino‟, meio dia hora verdadeira local. Nesta viagem tudo deu absolutamente certo. Felipão tem sangue bom. Nobbi, o „He-man‟, foi fotografado não sei se chegando para o almoço ou saindo para o batismo. O restante da tripulação foi mais comedida. Depois motoramos até 22:30, quando entrou um E-SE de 15 nós em Ψ=0°50‟S λ=29°56”W. Desligamos o motor e passamos a velejar só de genoa a 7 nós (trip 1127mi, desde Mindelo). 110 6 abril. Velejando o dia todo de mestra e genoa no hemisfério sul. Hoje foi o melhor rendimento até agora, 152 milhas em 24 horas. Minha gripe atacou de novo. Sobram 4 bananas, 3 ovos para cada e acabaram as verduras. Não temos comida suficiente para chegar em Salvador, e o Comandante mandou fazer rumo para Recife. O piloto automático, carinhosamente apelidado de Helô, em homenagem a Heloisa Schurmann, voltou a operar em NAV no rumo V216, direto para Recife. 7 abril. Hoje cedo Helô deixou de funcionar, mas o pessoal não me chamou. Foram timoneando na mão das 10:40 até as 13h, excessivamente arribados. Também nem Nobbi nem Felipão cabiam naquele buraco chocho onde está instalado o piloto. Quando acordei, desci lá e consertei, trocando os terminais; era apenas um mau contato. Às 13h estávamos a 35 milhas a barlavento de Fernando de Noronha, em Ψ=3°49‟S λ=31°47”W. 8 abril. 11º dia de mar desde Mindelo. Os alísios de SE do hemisfério sul já estão estabelecidos. Por 3 dias seguidos cumprimos 152 milhas, em través apertado e contra-vento folgado, genoa toda e mestra no 1ºrizo quando o vento apertava para 20 nós. Hoje cedo uma onda entrou pela gaiuta do salão. Coisinha de nada, mas o povo se assustou, não estamos acostumados com isso! Uma enguia pegou a rapala no nascer do sol. Ninguém tratou, e no por do sol joguei fora. O chão do barco começou a ficar seboso, na cabine. Rose e Felipe não suportam mais entrar na cabine deles. A minha está boa. Li muito o dia todo, e a gripe está passando. Felizmente não contaminei ninguém. A noite foi de contravento. Andamos no „vane‟, caindo para terra, e pela madrugada do dia 9 de abril vimos as luzes de João Pessoa. Pela manhã o vento rondou de S para SE, 10-15 nós. Mantivemos orça total com tudo em cima. Às 09:30, odometro 1598, andamos 125 milhas. Tarde de contra-vento. À tardinha estávamos tão aterrados que começamos a motorar por 30 milhas, até Recife, onde pegamos uma poita no PIC às 22:45, hora local, 01:45 GMT do dia 10 de abril. Ψ=8°04‟S λ=34°52”W. Odometro parcial 1673milhas, total 4230. Vm.5,4 nós. Zerei o odometro parcial. No dia 10, uma segunda-feira, abastecemos com 106 litros de diesel os tanques, mais ~40 litros dos camburões „doldrum‟, de forma que gastamos 150 litros em 90 horas de motor 1,7 l/h. O horimetro do motor estava com 360 horas, e troquei 5 l do óleo do motor. Abastecemos com 450 litros de água, ou seja 450/5/13, gastamos uma média de 7 litros/pessoa/dia, uma esnobação! Hoje fomos jantar numa churrascaria, „O Porcão‟. 11 de abril. Saímos às 08:30 do Recife Iate Clube, onde fomos abastecer, com mestra em cima e motor. Ao passar no PIC havia lá um barco português, que como nós arribou para Recife. Saímos a barra e pegamos rumo M180. Às 13:20 estávamos velejando a Ψ=8°28‟S λ=34°46”W, com vento SE a SSE 5-10 nós. 12 abril – Hoje às 08:30 marcamos um progresso de 126milhas, vela com ajuda de motor, que contravento não é coisa de cavalheiro .Às 10:30 o vento rondou para ENE, com cumulus e estratocumulus. Às 12h P=1014mb T=31°C UR=74% Ψ=10°08‟S λ=35°27”W. No final da manhã andamos em asa de pombo. À tarde o vento fraquejou, ENE 10 nós, verdadeiro, descemos a mestra e ligamos motor. O campeonato de 111 gamão evoluiu e Felipe chegou a me passar, fazendo FC9x8SN, mas recuperei e no momento, 16h, está SN10x9FC, Ψ=10°25‟S λ=35°43”W P=1013, T=29,5, UR=79%. Rose hoje ficou a manhã toda na cozinha fazendo o almoço: galinha+arroz+batata+farofa. Mila fez o feijão. Ganhei a 20ª partida, agora, 18h, SN11x9FC. 13 abril – A zero hora o vento era NE. Pela madrugada rodou para E 5-10 nós, e ai ficou. Às 09:00 P=1017 T=29°C UR=83%, Ψ=11°30‟S λ=36°48”W, rumo V224, Helô em nav, mestra e motor a 5,5-6 nós. Progresso das ultimas 24 horas 130 milhas. À tarde entrou um SE de 15 nós que nos empurrou firme a 7-8 nós até a noite. Não houve jantar hoje. O almoço foi um strogonoff de filé com arroz que Nobbi fez. Colocou cogumelo e creme de leite separado em consideração ao navegador, que não gosta destas frescuras. 14 de abril. No meu turno, de 0-3, aproei no farol de Itapuã. Liguei para Dedo, Mano e Pedro Bocca. Vento E-SE 10-15 nós. Às 07:00 o vento rondou para ENE. Jaibamos o balão e às 08:00 entramos na BTS, de balão em cima, para júbilo das Felipetes que acompanhavam de terra. Ao passar o farol, Ψ=13°00‟S λ=38°32”W o hodômetro marcava 402 milhas, o do GPS 441, de forma que pegamos 39 milhas grátis, de correnteza favorável. Os hodômetros totais da viagem marcavam respectivamente 4632/4753. O final de semana de 15 e 16 de abril foi de festas no Iacht Clube da Bahia, com show folclórico, a melhor de todas as festas da travessia. 112 Track do Arribasaia, de 8 de março a 14 de abril de 2000, 4700 milhas navegadas, saindo de Lisboa e parando em Funchal, Mindelo e Recife, com chegada em Salvador. Zero problemas a bordo, travessia tranquila e confortável. 113 Turquia, e o retorno de catamarã Aproveitando que ia para Europa embarcar no Aloha no final de março, embarquei com Mila dia 16 de março para a Turquia, num vôo Swissair com conexão em São Paulo e Zurique. Em Zurique deixei no guarda-malas a sacola do caíque cheia com o material que eu ia usar na viagem do barco. Daí voamos Turkish Airlines direto para Ankara, capital do país, 350 km ESE de Istambul, onde chegamos 24 horas após sair de Salvador, com uma diferença de fuso de -5 horas. Um guia da Pacha Tour, fez o transfer para hotel, e nos integrou com um grupo de médicos portugueses para uma excursão de ônibus contornando os montes Taurus. A Turquia é limitada ao norte pelo Mar Negro. Ao leste, pela Georgia, Armênia e Irã. Ao sul pelo Iraque, pela Síria e pelo Mar Mediterrâneo; a oeste fica o Mar Egeu, que através do Estreito de Bósforo se liga com o Mar Negro. Ankara é uma cidade do tempo dos babilônios, dominada pelos romanos, pelos mongóis e pelos otomanos, que tinham a capital em Istambul, antiga Constantinopla, mais antiga ainda Bizâncio. Após a Primeira Guerra Mundial, que desmontou o império otomano, a Turquia foi ocupada pelos Aliados. Em 1920, Mustafa Kemal Ataturk, o herói lá deles, estabeleceu em Ankara o quartelgeneral do movimento de resistência, em 1923 conquistou a independência da Turquia e Ankara passou a ser a capital da república que substituiu o império otomano na administração do povo turco. Ataturk promoveu mudanças radicais no estilo de vida, implantando o calendário e o alfabeto ocidental e dando mais liberdade às mulheres, que são maioria na Turquia atual. No dia 18, um domingo, chegou uma guia local, Ylknur, que nos acompanhou num tour de ônibus de 10 dias na Turquia. No primeiro dia em Ankara, visitamos o „Museu da Cultura‟, antropológico. Com o levantamento do nível do mar há 114 10000 anos, e a mudança climática conseqüente, o homem migrou da Africa para a Mesopotamia, inventou a agricultura e tornou-se sedentário. A mais bem preservada vila paleolítica conhecida foi escavada em 1961 em Konya, no centro-sul da Turquia, 250 km a sul de Ankara, o assentamento de Çatalhöyüke, onde não existem templos nem edificações publicas, somente construções domésticas, onde o acesso era pelo teto descendo por escada. Supõe-se que era uma sociedade de 5 a 8 mil pessoas, sem distinção de classes, matriarcal. Na parte alta da comunidade foi encontrada uma estátua de barro, interpretada como uma deusa, e nos espaços tidos como públicos, imagens de cenas de guerra, grandes ruminantes fósseis, homens com o falo ereto. Em Ankara visitamos também um cemitério onde a lápide dizia que fulano nasceu em 1290 e morreu em 1950. O calendário muçulmano ou islâmico é essencialmente lunar, com ano de 354 dias, e o seu ano 1 é a data da Hégira, a fuga de Maomé de Meca para Medina, em 16 de julho de 622 do nosso calendário. São 12 meses que começam no 1º dia da lua nova. De Ankara saímos de ônibus com os portugueses para leste na direção da Capadócia, terra dos Hititas que criaram ai um império no Sec. Sec.XV antes de Cristo, e dos assírios, a partir do Sec.VII aC. Depois veio o domínio grego. A região é de rochas sedimentares, arenitos e calcários recobertos por tufos vulcânicos friáveis, que no clima semiárido desenvolvem uma erosão eólica com formas bizarras. A facilidade de escavar fez com que ao invés de construir suas habitações, a população tenha preferido escavar cavernas, onde os primeiros cristãos se escondiam para escapar da perseguição romana. Numa delas que funciona como centro de artesanato comprei (US$320) um tapete persa de lã, pintado com tinta vegetal, com certificado de origem. A estrada passa pelas trilhas comerciais que traziam de camelo a produção do oriente para a Europa, e ainda existem restos das caravançarais: Caravançarai é o nome dado a uma construção de ½ hectare onde as caravanas que atravessavam o deserto paravam para se alojar temporariamente. Ai se encontravam pessoas de várias tribos que pagavam pedágio e contavam-se histórias. A Capadócia (terra dos cavalos de raça) fica limitada a leste pelo rio Eufrates, que desce para o Iraque, e a sul pelos montes Taurus. O turista hoje não passa do Eufrates por causa do terrorismo; é nas nascentes do Eufrates e do Tigre, no Monte 115 Ararat, um vulcão ativo até o Sec.III, que os turcos dizem ter encontrado vestígios da „Arca de Noé‟, na área do desembarque referida no Genesis da bíblia, numa altitude de 4000m! O deus malvado gastou muita água para exterminar os pecadores! Dizem eles que dataram a madeira com C14 em 4,8 mil anos! Atravessamos os Taurus para oeste, cruzando o planalto central aonde vimos perto de Konya uma enorme base aérea da Turquia moderna. Nesta região também fica Pamukkale, onde uma fonte termal desce a encosta e a precipitação de travertino forma piscinas naturais para banhos termais O roteiro turístico incluía Éfeso, a Nova York do tempo do império grego, capital da Ásia Central com 250.000 habitantes, anterior aos bizantinos, habitada pelos gregos desde o Sec.XI AC até I DC, quando foram dominados pelos romanos Na verdade a Grécia dos livros de filosofia era onde é hoje a Turquia. Lá ainda existe um teatro construído pelos romanos de 25.000 lugares, (foto abaixo) e a Academia, com uma fileira de latrinas, onde os pensadores cagavam e filosofavam. 116 Éfeso fica numa área sujeita a terremotos e foi destruída no Sec.VI, sendo recentemente restaurada com muita competência por arqueólogos alemães. Imbuídas do espírito filosófico, nossas amigas portuguesas, Conceição e Maria João, me pediram para fazer uma palestra no hotel sobre o tempo, no sentido de tempo geológico, da dimensão e escala, o que fiz com muito gosto. Falei da datação com Carbono 14, e os portugueses estavam muito permeáveis a qualquer informação que lhes era transmitida. Da fase romana foi restaurada a biblioteca de Celso, onde os documentos eram em pergaminho, pele de carneiro, uma vez que por aqui não havia papiro. No dia seguinte fomos até o Monte Rouxinol, onde a guia nos mostrou a casa da Virgem Maria, datada com C14 como Sec.I; ela contou que Maria foi para lá levada pelo apóstolo João que no Sec. I ai pregou a uma nascente comunidade cristã. Sobre a tumba de João o imperador Constantino mandou construir a Basílica de São João. Muita culhuda bíblica na arqueologia da Turquia, mas o cenário vale à pena! De Éfeso seguimos 250 km para noroeste pela rodovia 550 que vai bordejando o Mar Egeu para as ruínas de Tróia. A estrada é boa, pavimento de qualidade. Troia fica na esquina noroeste da Turquia, cerca de 250 km em linha reta a sudoeste de Istambul. Em 1870 as ruínas de Troia foram escavadas por um antropólogo alemão que interpretou que na área de cinco hectares foram erigidas nove cidades que ele numerou de 1 a 9, construídas em sucessão a cada outra, após incêndios e terremotos seculares que até hoje ocorrem na Turquia. Troia 1 a 3 registra objetos da idade do bronze, 3000 a 2000 anos a.C, Troia 6, idade do ferro, e Troia 7 da ocupação grega, Sec.VII a.C, quando Homero escreveu seus poemas épicos. Na língua hitita Troia era chamada de Ilios, em homenagem a um de seus fundadores, Ilus, daí Iliada. ←Helena de Tróia A história contada em 15.693 versos é um painel da alma humana, com temas abstratos como honra e amizade, envolvidos no sequestro de Helena por um príncipe troiano, Páris. Helena, a mulher mais bonita do mundo era casada com Menelau, rei de Esparta, e foge com Páris. Os espartanos invadiram Tróia numa guerra de 10 anos – 1193-1183 a.C. para recuperar Helena, e o seu guerreiro mais famoso, Aquiles, no final é morto por uma flecha de Páris no calcanhar. Aquiles é um semideus, filho da deusa marinha Tétis e do mortal Peleu. Tétis, para tornar Aquiles invulnerável o mergulha quando bebê no rio Estige segurando-o pelo calcanhar. Mais tarde ela profetiza que ele poderá escolher entre dois destinos: lutar em Troia, 117 morrer cedo e alcançar a glória eterna, ou permanecer em Esparta, ter vida longa sendo logo esquecido. Troia, ou Ilios, foi invadida pelos persas em 596 a.C, e Troia 9 é da época do império romano. A área foi abandonada no Sec.III d.C com a criação de Constantinopla. Durante o império grego, o rei Bizas fundou em 667 a.C a cidade de Bizâncio, na margem direita do Bósforo. Em 330 d.C, o imperador Constantino instalou ai a sede do império romano oriental, ou império bizantino, e mudou o nome da cidade para Constantinopla, que se tornou a maior cidade do mundo até a sua tomada pelos turcos otomanos em 1453, que passaram a chamá-la de Istambul, nome oficialmente adotado em 28 de março de 1930. A região metropolitana de Istambul se estende hoje dos dois lados do Bósforo, tem 13 milhões de habitantes, é a 5ª maior cidade do mundo, e está na zona de compressão da Anatólia, consequente do acavalamento da placa da Arábia sobre a placa Eurasiana durante o período Terciário, o que torna a Turquia agora no Holoceno uma região sujeita a terremotos e vulcanismo. Em Istambul Mila foi a um banho turco com as portuguesas, mas declinou da experiência por achar tudo muito sujo. As casas de banho são separadas, masculino e feminino. O pessoal de lá tem tradição no jogo de gamão, sendo comum nos bares e cafés encontrar tabuleiros abertos nas mesas. Eu até aproveitei a oportunidade para surrar uns locais, inclusive o Sarrat, motorista do onibus, num tabuleiro em marchetaria que Mila comprou. Fizemos também um cruzeirinho pelo Bósforo num barco de turismo, e após 10 dias na Turquia embarcamos num voo da Swissair direto para Zurich. Mila fez uma conexão direta para o Brasil e eu fui para Lisboa onde estava o Lagoon38 Aloha, no qual fiz minha terceira travessia do Atlântico à vela. Foi nessa travessia que ganhei confiança no desempenho dos catamarãs no oceano e encomendei o Pinauna VI. Bósforo em Istambul e a ponte que liga a Europa à Ásia Embarquei no Aloha dia 27 de março, e lá estavam Popó, Sergio Bordalo e Soninha. Popó disse que estávamos prontos para partir, e largamos na quarta 28 para Funchal, na ilha da Madeira.Tica e Henrique soltaram as amarras do pier de abastecimento da marina de Cascais. Neste trecho para Funchal tivemos tres problemas a bordo: 1. Popó não queria que fossem removidos os plásticos que revestem os estofados “para que o barco chegasse novinho!” 2. Ele tem um olho de vidro e gasta mais água que o razoável para lavar o tal olho, mal sabendo que o estoque de agua doce a bordo é o item mais importante numa travessia. 3. Como ele pagou a passagem de Soninha, queria que ela lavasse o banheiro dele, e ela disse que ia desembarcar na Madeira. Bordalo contornou o problema e ela seguiu até as Canárias. Na madrugada de 3 de 118 abril vi o farol de Porto Santo no final do meu turno de 0 às 3h, e atracamos na marina às 8:30 de um dia ensolarado. Arrumamos o barco, reabastecemos de água e almoçamos em terra, na marina. Tentamos alugar um carro, sem sucesso. Fizemos o check-in na alfândega e demos uma voltinha na cidade. Na tentativa de fazer funcionar o SSB, Xará descobriu que a antena não estava aterrada. Saimos ao meio dia e fizemos as 48 milhas até Funchal, onde chegamos ao por do sol. O pessoal foi fazer um tour por Funchal e eu fiquei no barco. Na marina comprei um saco de dormir porque estava dividindo um edredom com Soninha. Saimos dia 6 ao meio-dia com previsão de vento favorável; deu um través largo de 20 nós todo o tempo. À noite rizamos a mestra, fazendo 184 milhas em 24 horas. Passamos a barlavento das Selvagens, vendo a ilha. O dia estava feio e resolvemos não ancorar lá. Chegamos nas proximidades de Las Palmas de Gran Canária na madrugada do dia 8 de abril, com vento nordeste forte. Pedi a carta de detalhe do porto e Popó não tinha. Montei então uma estratégia de entrar com os recursos disponíveis e Popó começou a dar palpites, querendo interferir na navegação com o argumento que aquilo era um trabalho de equipe! Assumi uma postura de comandante duro e disse a ele que num barco o comandante manda e a tripulação obedece, o que criou um clima de animosidade. Isto exemplifica o maior problema que pode existir numa travessia: o desentendimento da tripulação, todo o resto é fácil. Quando estávamos atracados na marina disse a Popó que o ambiente não estava bom, e que um de nós dois devia desembarcar. Ele como dono do barco escolhia. Soninha desembarcou e negociei com Popó que ele desceria no próximo aeroporto, o que seria em Noronha. Aproveitei a parada nas Canárias e comprei sem imposto equipagem para o Pinauna VI: piloto automático, monitor de bateria e 4 catracas Lewmar, mais barato que nos Estados Unidos. Recebemos a visita de Dom Rafael, coordenador da Roda dos Navegantes. Largamos às 15h do dia 11, sem cozinheira, o que foi uma merda: cada um fazia sua comida. “No final da tarde pegamos o „tubo venture” do sudeste de Gran Canaria com vento de 40 nós true, pelas alhetas, tudo em cima; chegamos a surfar a 15,6 nós. Tenho pensado no lay-out do Pinauna novo, principalmente convés e mastro, e decidi colocar 4 catracas sobre a cabine. No dia 13 um pombo-correio espanhol com duas anilhas, uma verde e uma vermelha, pernoitou conosco na latitude 26-25°N. Deixou o convés todo cagado. Decidi mudar o lay-out interno da cabine central do Pinauna VI: remover a “caixa do motor” que decidi vai ser de popa numa nacele, instalar uma mesa-geladeira circundada por bancos. Sob o banco que fica atrás do mastro ficarão as baterias e os bujões de gás, e sob os bancos laterais serão os armários de cozinha a BE e de material de navegação a BB. Cruzamos o trópico de Cancer na madrugada do dia 14 de abril na longitude 19°W. Preparei uma tabela de vento aparente em função do vento real, da velocidade do barco e do ângulo de ataque do vento real: VA=VR+VB cos α. Decidi colocar uma roda de leme pequena no Pinauna VI. Ainda não resolvi onde colocar o tanque d‟água. Chegamos em Mindelo (ψ=17°N) dia 17 e atracamos na popa do Eireene, por fora: âncora na proa e tres cabos na popa. Os irmãos Paulo e César Lima tem agora uma empresa de charter com 3 Bavaria de bandeira alemã, 35, 42 e 44 pés. Nesta parada consertamos a ferragem da escota da mestra que quebrou quando Popó desavisadamente deixou que acontecesse um jaibe acidental. Em Mindelo há um restaurante novo de Cristian e Manuela, ótima comida. A lavanderia fechou. Fui no internet café ver meus e-mail e transmiti um para André. Estou com o dedo anelar da mão esquerda machucado desde dia 12, quando escorreguei com a mão apoiada na gaiuta. O dedo ficou preso e torceu. Botei pomada 119 Reparil e imobilizei com faixa. Largamos de Mindelo dia 19, vento E 30 nós até 60 milhas a sul da ilha; depois caiu para 20-24 nós toda a noite, no través. No final do meu turno, às 24h, ψ=15°N ʎ=25°W, rumo V180 M192, vi a Polar na esteira do barco Ho=15° e o Cruzeiro do Sul na proa, Ho=15°! Em 24h andamos 170 milhas. Bordalo fez a comida: feijão, salada de tomate e cebola, salmão de lata, arroz. Acresci uma cenoura, farinha e pimenta. Pela manhã do dia 21 coloquei aço novo, grosso na linha de arrasto, e no final da tarde o peixe bateu, Bordalo estava ouvindo rádio e não ouviu, e o peixe levou a penultima rapala, 4 de 5, com linha e tudo. À noite falei com Rafael no SSB que informou previsão de bom tempo com vento até 5°N. A faixa de 12°N até 9°N é a zona de peixes voadores. Dia 23 no final do meu turno de 15 às 18h passamos o paralelo 6°N. O vento rondou de NE para NNE e fraquejou. A pressão barométrica caiu de 1002 para 997mb e a temperatura subiu para 30°C. Dia 24 foi muito quente e úmido. Tomei banho salgado e rodei o ventilador o dia todo! Hoje matamos um atum de ~5kg às 16 GMT, 3°35‟N, 25°W. Foi o primeiro peixe da viagem, após perder 4 rapalas. Popó ficou anormalmente nervoso, está uma pilha. Bordalo tratou o peixe fazendo festa e fotos. Hoje fiz o almoço e o jantar de todos: almoço, feijão, farinha, salsicha, arroz; jantar, torta de batata com cebola em banho maria. Dia 25 subimos no arco de ilhas que faz parte do „rise de Serra Leone e entramos nos DOLDRUMS @ 2°15‟N. A pressão caiu para 997mb mas o dia ficou mais agradável. O almoço foi muqueca de atum by Bordalo. Popó está ansioso para desembarcar em Noronha e decidiu que não vai mais trabalhar na Venezuela, quer chegar logo para resolver com a Odebrecht. 120 Na minha meditação de hoje conclui que as religiões têm um ponto comum: aliviar a ignorância. E que os religiosos se dividem em 3 tipos: 1. Os inocentes (beatas e teistas indiferentes), 2. Os exploradores que se subdividem em 2a – inquisidores autoritários e 2b-assistentes sociais; e 3. Os fanáticos, fundamentalistas, perigosos e antipáticos. Cruzamos o equador na longitude 27°35‟; o motor foi desligado a 0,02 milha antes, e passei timoneando na inércia, rumo V180. Sergio Xará pulou na água para batismo às 21:30 GMT. Depois liguei o motor e seguimos para Noronha, RV230, RM250. Dia 27 no inicio do meu turno de 9-12 um cumulus-nimbus grande passou pela proa trazendo chuva e formou um arco-iris bem na proa. Dia 27 foi o 4º dia de motor direto! Atravessar os doldrum na diagonal é besteira! Saimos dele a 2°30‟S, quando entrou um SE firme de 10-15 nós. Foram 5°, desde 2,5N ate 2,5S, só que atravessamos dos meridianos de 25 a 31W. Chegamos em Noronha às 15GMT de 29 de abril, após 10 dias de ceu e mar; expliquei a Popó que não era permitido atracar dentro do molhe, e ele desembarcou com uma mochila, de carona numa lancha de passeio que circulava próximo ao porto. Ancorei fora do molhe e desembarquei com Bordalo. Não havia água para banho nem restaurante aberto para jantar. A ilha vive do turismo de mergulho, e nesta época é uma visão muito diferente da época da regata Recife-Noronha. Dia 30 desembarcamos no caique e fizemos compras: diesel, gasolina, frutas e verduras amassadas por um transporte deficiente. Seguramente pior que em Mindelo. Mergulhamos em apnéa no navio naufragado na entrada do porto. Era um SS, steam ship, com duas caldeiras enormes, mais de 50m de comprimento. Largamos às 17h, vento SSE 15 kn, RV210, vel 6-7 kn. e a viagem ficou tranquila, apesar de contravento. Bordalo pescava e cozinhava e nos entendíamos bem. O Aloha escorrega de lado (COG) 15° em relação ao heading. Regras para contravento, vento aparente: Vento <10 nós →motor; vento 10-16kn→piloto em vane, tack, 50°. Vento 1622 nós→piloto em tack 45°; vento22-26 nós→ 1º rizo; > 28 nós genoa @ 70%; 33 nós 2ºrizo, genoa @ 50%. Com este esquema não precisamos cambar, andamos 158 milhas nas primeiras 24 horas passando a 120mi a barlavento de Natal, onde o vento rondou de SSE para ESE, a 80 milhas de João Pessoa às 22:30 do dia 1 de maio, e a 110 mi de Recife. Na madrugada de 2 de maio aproximadamente no mesmo local onde o Bandavuô quebrou o piloto em 1997, ~ 6°S 33°W, com VA 25 kn, quebrou o moitão e a manilha da escota da mestra, na retranca. Gastamos ½ hora para substituir pelo moitão da escota do balão e tornamos a subir a mestra, agora no 1º rizo. Dia 3 de maio, quando Pai faria 88 anos, andamos 175 milhas. Às 22:30 GMT, perto de casa a 11°05‟S, 36°17‟W, RV222, vel 7 kn, vento ESE 15 kn, fiz ponte para Rafael via Tomaz, de Cabo Verde, um pescador que teve oportunidade de rebocar o veleiro de Rafael por 40 milhas quando este perdeu o hélice. Agradeci a toda a roda pela companhia. Pulo e Altino pelo suporte em português. Alberto,o argentino, sempre atento com seu transmissor potente. Dom Rafael, o tranquilizador, que nos leva em segurança pelos mares do mundo, sempre pronto e disponível, amigo e conselheiro. Às 17:20 GMT do dia 4 de maio subimos na plataforma continental com o farol de Garcia D‟Ávila no través. Atracamos na Bahia Marina na noite de 4 de maio, 38 dias de travessia, no catamarã mais rápida e muito mais confortável que nos monocascos. 121 África do Sul, 2003 Dia 4 de setembro viajei com Mila para comemorar o aniversário dela de 40 anos no cabo da Boa Esperança, na África do Sul. Fizemos uma conexão em São Paulo para um Airbus lotado da South African Airlines, e descemos em Johanesburgo, onde uma guia portuguesa bem preparada, Yolanda, nos esperava com plaquinha e um sedan novo. Demos uma volta na cidade, onde foi descoberto ouro em 1886, ensejando uma invasão de estrangeiros que se desentenderam na cobiça do ouro e diamante gerando duas guerras dos boers (descendentes de colonos dos Países Baixos, Alemanha e França), nas quais os ingleses saíram vencedores e dominaram a região estabelecendo uma legislação fortemente racista, o apartheid, que perdurou até 1990. A cidade é um centro industrial com aspecto de perigosa, e não tem nada de turística. Dai seguimos para Pretoria, a capital executiva do país, 50 km ao norte. O nome Pretoria foi dado em homenagem ao africâner descendente de holandês que a fundou em 1855, quando os boers foram escorraçados pelos ingleses. Em 2005 a Câmara Municipal mudou o nome da cidade para Tshwane, que em zulu significa «Somos todos iguais». Em Pretoria visitamos o museu de ciências, que exibe a evolução biológica e geológica do planeta, com uma exposição de meteoritos e fósseis de hominídeos; entre Johanesburgo e Pretoria fica o sítio arqueológico de Sterkfontein (fonte forte em africânder), tombado como patrimônio mundial e considerado o berço da humanidade. Depois do almoço tocamos numa ótima estrada mais uma hora para norte pela catinga e paramos em Sun City, de fama internacional pela extravagância de suas instalações. É uma Sauípe africana, construída por americanos, de gosto aceitável. Nos instalamos num 5 estrelas e apesar de estarmos sem usar uma cama por mais de 24 horas, emendamos com banho e jantar. Só fomos dormir às 22:30 local, 5 horas a mais que no Brasil. Dia seguinte, no café da manhã num restaurante na parte externa do hotel, levantei para pegar mel e um macaco desceu da árvore e levou uma banana do meu prato! 122 Contratei um tour a uma fazenda de leões durante a manhã. Lá aprendi que um leão adulto come uma vez por semana, e é criado para ser vendido para um caçador atirar nele! Os ingleses e os norte-americanos ricos representam de fato o cumulo da hipocrisia! Visitamos a pé o complexo turístico, com parque aquático, jardim botânico e às 15h fomos a um safári no Pilanesberg National Park, visitar os „african big five‟: leão, leopardo, búfalo, elefante e rinoceronte; ainda passamos junto de hipopótamos, girafas, e uma manada de zebras. O parque fica implantado sobre um complexo vulcânico alcalino, cuja vegetação muda de uma catinga seca para uma savana mais úmida, e o trajeto foi num jipão aberto conduzido por uma lourinha que portava um rifle atrás do para-brisa. Os bichos ficam por lá, e os guias se comunicam por rádio para indicar onde eles estão. Jantamos no centro de entretenimento, onde o jipão nos deixou, e dormimos cedo. Estava frio em Sun City, coisa de 15°C. No terceiro dia encontramos Yolanda no café da manhã. Fizemos o check-out e retornamos para Johanesburgo, parando no caminho para Mila fazer compras. Às 13:30 voamos para Cape Town, 1300 km para sudeste. A Africa do Sul, do que vi do avião está devastada, sem vegetação, tudo remexido para exploração mineral. O processo de colonização dos ingleses é brabo, explora até sangrar. Em Cape Town fomos recebidos por uma guia do Zimbabue, que falava português. Demos uma volta na cidade e nos instalamos no Holliday Ynn Cape Town, um 4 estrelas. Jantamos no hotel. No dia 8 de setembro constatamos no café da manhã que as montanhas da Mesa estavam com um lençol de nuvens e fomos para o Water Front, um centro de lazer no complexo portuário. Visitamos um museu náutico e o Aquário dos dois oceanos (Índico e Atlântico). Depois alugamos um barco a motor tipo taxi e fomos para o Iate Clube Cape Town, no fundo da baia. Desembarcamos no píer e fomos paquerando os 123 barcos. Na lojinha do clube comprei cabo de spectra de 6mm que usei no sistema de leme do Pinauna. O restaurante do clube não funciona na segunda-feira, e voltamos a pé para o Water Front, uma palhetada de uns 5km que Mila reclamou do sapato.O dia seguinte foi de turismo no Cabo das Tormentas. Fomos com outro casal brasileiro, Cassia e Lino, na van da guia Maria João. É um passeio de 50 km numa península de arenitos paleozoicos silicificados que constituem uma continuação à Mesa da Cidade do Cabo. No caminho fizemos um passeio de barco até a Ilha das Focas; o Lino enjoou e voltou de taxi para Cape Town. Os sedimentos paleozoicos da Mesa e do Cabo das Tormentas se continuam para o oceano Indico após o Cabo Agulhas, e 400km para leste existem campos de petróleo em Mossel Bay. Na praia do lado oeste do cabo das Tormentas existe um ⇽< padrão português de Bartolomeu Dias, que ai ancorou em 1488. O forte vento sul e a tripulação assustada os obrigaram a voltar. Para marcar o lado leste do cabo foram mais 10 anos de tentativas até que Vasco da Gama conseguiu e instalou outro padrão em 1498. Entusiasmado com o sucesso da descoberta do caminho marítimo para as Índias, o rei D.João II de Portugal renomeou o cabo para Boa Esperança. Mas em 1500, na viagem de Cabral, uma tormenta abateu a nau de Bartolomeu Dias, o primeiro navegador a se arriscar longe da costa no Atlântico Sul, que ai pereceu. No dia que estivemos lá o tempo estava manso, e achei que o Pinauna naquele dia faria com galhardia o contorno do cabo. Os 40 anos de Mila passando o cabo da Boa Esperança foram tranquilos.No dia 10 voamos Cidade do Cabo – Johanesburgo, onde pernoitamos no 124 Hotel Ceasar, um 5 estrelas. No dia seguinte fizemos uma conexão imediata em São Paulo para Salvador. 125 VELEJANDO DE SALVADOR ÀS GRANADINAS Em setembro de 2003 a BYC – Brasil Yacht Charter resolveu desativar sua filial de Salvador porque o retorno do investimento era baixo, e a Policia Federal deu um prazo para pagamento do imposto de importação dos veleiros que ela trouxe em comodato. Jairo Zollinger, meu vizinho de atracação na Bahia Marina e gerente da BYC me comunicou que estava procurando um skipper para devolver os barcos para os Estados Unidos. Já que ele não queria levar, eu achei que seria uma oportunidade imperdível velejar um Lagoon 41 numa viagem dessas e disse que levaria grátis, isto é, como se estivesse fazendo um charter com as despesas pagas e passagem de volta para dois tripulantes. Ele consultou os proprietários que aceitaram a proposta, desde que eu saísse imediatamente, mesmo nesta época de furacão no Caribe. Dia 26 de setembro assumi como comandante, e foi foemalizada a saida na receita federal, policia federal e capitania. Dia 28 visitei Beto Correia Ribeiro e Fafá e peguei as cartas do Caribe e os conselhos de onde parar e por onde navegar. No dia 1 de outubro fui com Jairo, Joba e Bruno, filho de Joba, recém-chegado da Austrália, de lancha para a Ilha das Canas ver o Blopper. Fiz orçamento para as despesas da viagem, US$4250 (menos da metade do que eles pagariam a um profissional) que me foi adiantado; testamos o barco e Bruno foi aprovado para ir até o Caribe. Igor estava revisando o piloto automático. Dia 4 de outubro recebi o catamarã às 11:30 na Bahia Marina, levado por Gordon – gerente de náutica da Ilha das Canas, e o filho dele. André, Gilca, Liana e Lara chegaram ao meio dia para se despedirem. Igor ainda estava em cima do mastro concluindo a revisão do anemômetro. Larguei às 14 horas, com Joba, Bruno, Pedro Mutti e Adriana. Nenhum deles tinha visto de entrada para os EUA. Ficou combinado que deve embarcar pelo menos um tripulante, com minha aprovação, lá pelo Caribe.O Sereno acompanhou até o Iate. A tripulação com ótimo astral e cheia de entusiasmo. Quando contornamos o farol da Barra foi servido almoço de feijoada. À meia noite estávamos com o farol de Garcia D‟Ávila (2 piscos a cada 10”) pelo través, vento 10 kn, velocidade 4kn. Decidimos os turnos: Bruno 0-2 e 16-18.; Sergio 2-4 e 18-20; Pedro 4-6 e 20-22 e Joba 6-8 e 22-24h. Na manhã do dia 5, um domingo, matamos um peixe no arrasto. Fechamos o tanque grande que deve ter gasto 40 l, e abrimos o tanque pequeno de bombordo, de 100l. Às 13h, com 23h de velejada estávamos a 12°09‟S 37°35‟W, 90 milhas de progresso num bordo unico de contra-vento e contracorrente. O odometro marcou 107 milhas, portanto 17 de correnteza. Jantamos o 126 peixe, feito com ervas. Ontem no meu turno de 2 às 4 pegamos duas nuvens pretas com rajadas de 25kn. Mas foi rápido e não precisou fazer nada. Hoje ao anoitecer baixamos a mestra para o primeiro rizo. No meu turno da magrugada entrou vento com refrega de 30 nós, e houve stress para enrolar a genoa @ 60%. No dia 6 demos um bordo para fora defronte a Mangue Sêco com os dois motores por duas horas. Lavamos o cockpit e nos reunimos com musica de Caetano e Willie Nelson para o almoço. Dormi à tarde. A noite foi tranquila com a mestra no 2º rizo. Progresso diario às 14h 101 milhas no contra-vento. Dia 7 encostamos em terra na Barra de São Miguel, Alagoas, as baterias com 11,5 V, e demos um bordo para fora a motor. Instalamos o 3ºrizo com o cabo do 1º. O almoço foi magnífico, mangalô de muqueca com lombo desfiado, farinha e arroz. Às 13h estávamos de novo junto à praia; ao ligar os motores para sair, o de BE deixou de refrigerar. Joba diagnosticou e consertou: correia da bomba d‟água folgada. Drica e Bruno fizeram uma limpeza em regra na cabine central. Tomei banho e fiz a barba. O astral da tripulação está ótimo. Acabamos o primeiro tanque d‟água. Dia 8, 4º dia de mar, progresso de 145milhas. A partir de Ponta do Patacho, 9°10‟S, em Porto de Pedras, PE, o vento permitiu folgar pano aumentando a velocidade e afastando da costa. Novo stress, com bronca do comandante: o 2º tanque d‟água pequeno acabou de repente! Estamos gastando mais de 10 l/pessoa/dia! Dia 9, progresso de 190 milhas em 24h. Ancorado em Noronha às 23h, com o intuito de esperar passar a época de furacão no Caribe,que vai até novembro. Jantar comemorativo, strogonoff de frango. Acabou o 1º bujão de gás. Dia 10 de outubro mudamos o barco, ancorando ao lado norte do molhe, em ψ=3°49,934‟S e ʎ=32°24,115‟W. Descemos a genoa para costurar a capa de proteção, e coloquei birutas na valuma da mestra, costurando tiras recortadas de minha cueca de seda de gatinhas. Motor de BE sem refrigerar, diz Joba que é a correia folgada de novo, e desceu para comprar arruela de pressão. O motor de BB estava com nylon enrolado na helice. Levei 1 hora cortando e puxando de alicate e ainda não saiu tudo. Mergulhei em 9m de profundidade para marcar de 10 em 10m a corrente da âncora com cordão.Mutti, Drica e Joba desceram com um VHF portátil para turistar. O caique velho funciona e o motorzinho também. Só desci em terra à noite, e fomos assistir no auditório do IBAMA a uma ótima palestra de Leo, da empresa de mergulho Aguas Claras, sobre tubarões. Ele editou um filme muito bem feito e fez a palestra com uma fita de video em camara lenta, onde ele interrompia a fita e ia falando de forma muito bem coordenada com a imagem. Jantamos em Nascimento, “no 30”, que é um bairro onde está o supermercado. Dia 11 todos trabalharam a bordo. Bruno subiu no mastro e consertou a luz de tope. Na descida consertou o head-foil da genoa. Drica consertou um remendo da genoa com silver-tape. Subimos genoa. Pedro e Joba 127 encheram os tanques d‟água. Dei entrada na policia do porto e paguei R$477,5 (US$164,65) da taxa de preservação ambiental (2 dias 4 tripulantes, R$23,87/pesoa/dia, comandante não paga) e taxa de ancoragem de 3 dias (>10m, R$95,50/dia). No domingo dia 12 limpei o fundo do barco e tirei o que pude do nylon do hélice do motor de BB. Calibrei o „rudder‟ do piloto com orientação de Igor por telefone e do manual de instalação. Conversei com o Mestre Raimundo, da balsa de abastecimento da ilha, que tem experiência pescando lagosta na costa norte, e recomendou ir por fora e não entrar no Maranhão. Falei com Mila e com André no telefone. Dia 13, 3º dia de lua cheia, navegamos Noronha-Natal, ancorando no Iate Clube. A refrigeração do motor de BB pifou. Pedro Mutti e Drica desembarcaram dia 14 e Joba dia 15. No clube tinha gente do Brasil todo que estava voltando da regata de Noronha. À noite foram longos papos com Gileno, do Caboge & familia, que estavam indo numa viagem circum-atlântica num barco de aço de 35 pés. O pessoal do Salmo 33 estava indo para o Caribe. Também estava lá o barco branco de aço de 50 pés, de Torres e Sra., que fazem charter nas regatas longas. Desmontei a bomba d‟água do motor de BB, que tinha um parafuso quebrado, e consertei. Fiz mercado com Bruno e abastecemos de água, gelo e diesel. Os motores de 3 cilindros consomem 3l/h. Dia 16 visitei Geraldo e Valéria do Vadyo, um Cal 9.2 também em viagem circumatlântica, apoiados pela Nutri. Nos deram 20 barras de cereal. Largamos de Natal só de genoa, no rumo do Atol das Rocas, abrindo até estar a 20 milhas da costa. Dai arribamos para norte, com amuras por BE, e o vento começou a rondar lentamente para SE. Na troca de turno de mim para Bruno às 23h, fizemos o jibe e montamos o Cabo Calcanhar a 20 milhas da costa, vendo o pisco do farol de Touros. A costa do RN tem uma intensa atividade de pesca. Andando próximo à borda da plataforma, eramos balizados por luzes de barco de pesca continuamente. Quando passávamos por um viamos a luz do outro! Dai que abrimos para velejar na isóbata de 1000m a 40 milhas da costa. É ótima a sensação de andar com as forças a seu favor: vento e corrente. A viagem está confortável, mas se fosse ao contrário, quando “tem que ser”, sem duvida seria estressante, cansativo e pouco produtivo. No dia 17 o vento estabilizou de leste com < 20 kn. Tivemos um progresso de 140 milhas em 24 horas e resolvemos subir a mestra. À noite, muito escura, refrescou para 28 nós e o barco surfava a mais de 8. Diminuimos pano reduzindo a velocidade para 6, e a situação ficou menos tensa. Como diz Fernando Peixoto com espírito sarcástico, vela de oceano é 90% tédio e 10% de terror. Com vela rizada o terror amaina, fica tudo sob controle, a energia sobre o barco volta à dimensão humana. Dia 18 às 03:00 Bruno me acordou. Estávamos pegando fundo e subindo na plataforma continental a ψ=3°50‟S e 128 ʎ=37°37‟W. A temperatura da água caiu para 25,9°C. Começamos a aterrar para Fortaleza no rumo 276V, com vento e ondas na popa. Às 13:30 estávamos atracados no Marina Park Hotel em Fortaleza, após 47 horas de poita a poita desde Natal. Estavam lá: Dragonwing, da Africa do Sul, com Mason e Kerry, dois Endurance 35 espanhóis, Sidoba de Luis e Xari, e Marie Celeste, de Stanislau, com a mulher e a filha geóloga, que desembarcaram e deixaram o veinho solitário. Ficamos aqui por 4 dias, quando Leila, uma ex-namorada nos deu um apoio maravilhoso com o carro. Os espanhóis arrumaram com um frances solitário uma carta antiga de Isle du Salut, do tempo de Napoleão, e tinham uma carta de Trinidad. Emprestei a carta que tinha de Tobago e eles xerocaram tudo. Hoje estava rolando o furacão Nicholas no Caribe, conforme e-mail de André. Dia 19 Bruno e eu fomos almoçar com Leila. Liguei para Jairo que ainda não sabe onde devo deixar o barco. Comuniquei que o shore-power não funciona para carregar as baterias, só para ligar o ar condicionado direto no pier. Comprei uma escova de dentes e na primeira escovada veio um pedaço de dente. Dia 20 fui a um dentista indicado por Leila, Luciano, que olhou o molar superior esquerdo onde houve retração da gengiva, expos o bloco de metal que soltou um pedaço da porcelana. Disse que está sem problema, a precelana é só estética e nem cobrou a consulta. Jantamos na casa de D.Dayse, viuva do General Miranda, mãe de Leila, com Bruno, Rodrigo e Roberta. No dia 21 visitei o Sidoba. Luis teve cancer na lingua e na garganta, mas ainda fuma um pouco. Teve „seis meses de sobrevida‟ e já está navegando há anos. Xéri é filha de um amigo dele, cego, de 72 anos, que vive navegando. Paguei R$30 das xerox das cartas. Sairam dois barcos hoje de manhã: o americano que se manteve afastado de todos, e o holandês, Zwerver, de Henry e Helen. Este não conseguiu ligar o motor nos doldrums, vindo de Cabo Verde, e veio parar em Fortaleza. Daqui vai orçar de volta para o cabo Calcanhar, parar em Natal, Salvador, e descer até a Patagonia. De lá vai via estreito de Magalhães para o Pacífico. Comprei copos de vidro para whisky, castanha e silicone. Bruno gastou um tubo inteiro consertando vazamento no freezer. Peguei roupa na lavanderia. Dia 22 fizemos o check-out do hotel com Armando, um cearence gordinho, gerente da marina e amigo de Igor. Desatracamos da marina Park Hotel junto com Sidoba e Marie Celeste. Passamos todo o dia e a noite junto com eles, nós só de genoa, mantendo o mesmo rumo para atravessar a plataforma continental e navegar no talude. Passamos por dois campos de petróleo da bacia de Mundau-Camocim. Dia 23, subi a vela mestra e despachamos os Endurance. Em 24 horas, progresso de 160 milhas. Acabou o segundo bujão de gás aberto em Noronha dia 9/10. Durou 2 semanas, mas desses 15 dias passamos 5 no porto, entre Natal e Fortaleza. Dia 24, o terceiro de velejada, o organismo já adaptado, muita leitura. Cada vez que se sai do porto recomeça o 129 processo de adaptação, enjoo, etc., que dura tres dias. Hoje é o 20º dia desde a saida de Salvador, 15 dos quais navegando. Às 11:10 ψ=0°15‟S, ʎ=43°00‟W. Vento NE 17 nós aparente. Progresso de 190 milhas em 24 horas. Média desde Fortaleza 7,1kn. Cruzamos o equador na longitude ʎ=43°27‟W, profundidade ~3000m. Bruno e eu pulamos na água, um de cada vez. Passamos por fora dos recifes Manuel Luis, no Maranhão, todo o pano em cima. Dia 25 o vento diminuiu para força3, força 2, e rondou para NE. Tivemos um progresso de 162 milhas em 24 horas. Passou um navio de container, por fora, para SE. . Dia 26, outro navio, também por fora, bem longe, no rumo NW. Às 04:30 o vento cresceu para 10 nós, NE, e estabilizou. O trecho de vento fraco foi de 0,5° de latitude e 1° de longitude, 1,5 a 2,0°N e 45°40‟ W a 46°40‟W. Às 10h vimos um veleiro na proa quando subiamos o talude continental, cruzando as isóbatas de 2000 e 1000m. Antes do almoço houve um show de golfinhos que Bruno fotografou. A água continua azul, mas mais escura. Durante a noite cruzamos o canal principal que alimenta o talude no cone do Amazonas. Na plataforma, entre as isóbatas de 30 e 200m, há na carta 10 da DHN um ponto circular marcando 471m. Passei nele; vinha com profundidade mensurável na sonda que tem registro analógico, e perdi o fundo por 36 minutos. Interpretei não como uma anomalia pontual, circular, mas como o talveg de um canal distributário com largura de 4 milhas, vindo do cabo Norte e de Macapá que não foi convenientemente mapeado. Este canal deve alimentar a cabeceira do grande leque no talude, o qual forma o „cone do Amazonas‟. A isóbata de 10m está a 50 milhas da costa! Tudo aqui na foz do Amazonas é grandioso. Às 22:50 havia um pesqueiro grande na frente. Acendi a luz de navegação e fui de proa. O pesqueiro chamou no rádio, com voz de velho amazonense. Estava à deriva a 3,6 nós, largando equipamento de pesca. Foi uma comunicação cordial com o barco. No dia 27 tivemos um progresso de 173 milhas, e a água mudou de cor para esverdeada. Passaram 3 navios, por dentro possivelmente para pegarem menos 130 correnteza. Motoramos 7 horas, toda a tarde,um motor de cada vez, no intuito de chegar em Salut ao entardecer do dia 28, mas às 17:50 o motor de BE superaqueceu e tocou o alarme: partiu a correia da bomba d‟água salgada, e o de BB entupiu o filtro de combustivel. Como não tinha balão, decidi ir „drifting‟ com vela suficiente para manter o rumo e passar mais uma noite no mar, chegando pela manhã do dia 29. Foi uma decisão interessante andar mais devagar. Acabou o barulho do motor, ficou tudo relaxado e mantivemos o mínimo de vela só para sustentar o rumo, porque a correnteza é de 2 nós a favor. O problema agora é administrar o „excesso‟ de velocidade para não chegar muito cedo, ainda escuro. Igor fez mil recomendações para não investir as ilhas à noite. Identificamos o veleiro que vimos ontem, está agora por sota e no través. É um ketch americano, Carduff, que não respondeu minha chamada! Mas hoje falei com um navio, o P&O Nedloyd, de Houston, e ele também. Deve ser um desses gringos fdp amedrontados que segue as regras de segurança lá deles. Dia 28 consertamos os motores e administramos o „excesso de velocidade‟ enrolando toda a genoa. Desliguei o piloto para economizar energia e travei o leme com um ângulo de 15°... e fomos derivando a 2 nós, abrindo 20 a 30° do objetivo. Durante 16 horas! Foi assim que passamos a fronteira internacional Brasil-Guiana. Dia 29 atrasamos o relógio 1 hora, para o fuso de Caracas, GMT-4. Às 02:45 ψ=5°21‟N ʎ=51°51‟W, destravei o leme, apontei M270 para corrigir a correnteza, abri a genoa toda com vento SE força 3 e andamos SOG 3-4 nós na direção de Iles du Salut. menos de 50 milhas à frente. A água estava verde escuro, azeitonada. Às 11h ancoramos em Ile Royale, ψ=5°17‟N ʎ=52°35‟W, 1037 milhas desde Fortaleza em 7 dias. Consumimos 100 litros d‟água, mais de 7 l/pessoa/dia, uma esnobação. Lá estavam ancorados 9 veleiros, incluindo os Endurance 35, Sidoba III e Marie Celeste. Chegaram ontem à tarde, cumprindo o 131 que nós iriamos fazer se não tivessem pifado os motores. Como se ve na Blue Chart, as ilhas ficam a 5 milhas do continente e a 8 milhas de Caiena, e é tudo muito raso. Mas tem uma maré de 3m. Fomos Stanislau, Luis, Xari, Bruno e eu de caique, visitar as ilhas de St.Joseph e do Diabo, todas vulcanicas. Bruno subiu num coqueiro e derrubou sete cocos. Visitamos as celas comunitárias e as solitárias, de 1,5x3m, escuras,fechadas com um circulo no teto. Hoje os franceses se envergonham do tratamento que davam aos presidiários. No dia 30 os espanhóis foram embora cedo. Fui com Bruno visitar Île Royale, onde ficava a administração do presídio e hoje é a sede do receptivo turístico. A única coisa que conseguimos comprar foi um cartão de telefone por €12,4, que usamos para falar para o Brasil até o ultimo centavo. Aqui euro e dólar têm o mesmo valor. Almoçamos no restaurante da pousada, visitamos o farol antigo junto do telescópio moderno que rastreia os foguetes lançados do Centro Espacial em Kourou no continente defronte. A base é conveniente para os franceses porque fica próxima à linha do equador. Largamos às 15 h, contornando a Île Royale pelo sul e rumando 316V, direto para Granada, passando pelo norte de Tobago. O plano é, se quebrar o barco, entramos para Trinidad; se estiver tudo bem vamos direto para Granada. Vento NE 15 kn. Me sinto melhor velejando num mar arrumado e vento folgado do que em terra! Na madrugada do dia 31, defronte à fronteira com o Suriname, a 30 milhas de terra fomos abordados pela guarda costeira (?). Chegaram completamente apagados e chamaram no rádio, creio que em holandês. Não respondi e meteram um holofote possante sobre o Blooper. Respondi em Inglês, e eles pediram identificação. Satisfeitos com as respostas desejaram boa viagem e apagaram tudo de novo. Quando nos afastamos mais da costa o vento caiu à noite para 8 nós e a corrente cresceu para 2. Hoje passamos a usar o tanque grande. O de 100 litros que enchemos em Fortaleza durou 10 dias: 5l/pessoa/dia. Estamos melhorando. Às 15h progresso de 132 137 milhas. Ψ=6°45N ʎ=54°17‟W, prof 45m, correnteza 0,5 a 1 nó. Vento real E<10kn nas ultimas 16 horas. Dia 1 de novembro descemos da plataforma continental para o talude a 7°30‟N; a plataforma aqui tem 100 milhas de largura. Dai os alísios de NE começaram a se firmar, crescendo lentamente de 10 para 15 nós a 8°N, e passando de 20 nós a 9°N, com ondas de 2m. A temperatura da água subiu para 27,4°C, e a cor voltou a ser azul. Como a costa da Guiana é orientada NW na direção da Venezuela, estamos agora andando em asa de pombo no talude, paralelo à costa. A correnteza aumentou de 0,5 para 1 nó, de ESE. Às 15 h, em Ψ=8°12N ʎ=55°50‟W, marcamos um progresso diário de 130 milhas. Perdemos a ultima colher de arrasto disponível. No dia 2 de novembro o vento começou a crescer devagarzinho, para não assustar. Continua leste. Refresca à noite e cai de dia. Nesta madrugada de 1 para 2 tivemos algumas nuvens pretas mas mantivemos tudo em cima. Fomos de novo abordados por navio de guerra, igual a ontem, só que hoje já chegaram falando inglês com sotaque americano. De novo, não vimos o barco. Hoje às 15h completam 11 dias desde Fortaleza. Lavei shorts e cuecas. 2 de novembro 2003, domingo. Acordei com a queda de um peixe voador nas minhas costas. Entrou pela fresta aberta da gaiuta de popa a barlavento! Acendi a luz e joguei de volta para o mar. Nesta madrugada pegamos corrente contra, de W, entre 8,5 e 10°N, e tráfego de navios na rota Miami-Recife. Defronte à Guiana Inglesa, até a foz do Rio Orinoco, a 140 milhas da costa, pegamos uma zona de depressão da tarde do dia 2 até a manhã de 3 de novembro. Igor havia avisado que por aqui tem uma depressão semanal. Era uma sequência de cumulus altos, espaçados no horizonte a leste, parecendo barcos de pesca alinhados na borda da plataforma, cada um em forma de charuto. Quando chegou o primeiro, o Blooper parecia um carroção, vibrando todo a 10 nós. Ai descemos a mestra para o terceiro rizo, e melhorou. Se minha neta de um ano estivesse a bordo, uma possibilidade aventada de Lia e ela embarcarem em Fortaleza, ou ela ia ficar vacinada para o resto da vida, ou ia se assustar com a eventual expressão de tensão dos mais velhos; um risco que eu não estava disposto a jogar. Além do mais, com ela a bordo eu ia acabar 133 quebrando uma regra de segurança fundamental: o barco tem prioridade. No dia 3 fomos abordados de novo na costa leste da Venezuela, perto de Trinidad, de dia, com tempo bom. Chegaram em silencio pela popa, chamaram em inglês sem sotaque, e se identificaram como 'warship F-793'. Ostentavam uma bandeira francesa. A antena do radar dos caras era quase do tamanho da retranca do Blooper. Fizeram as perguntas de praxe, nome do barco, quem está a bordo, bandeira, registro, procedência e destino. Informaram a meteorologia. Quando perguntei se eram da Guiana, responderam "no, sixteen and out". Esses gringos estão apavorados. Até os velejadores americanos se isolam com medo. Hoje acabou o gelo e comi a penúltima banana. O despertador que estava sobre e mesa de navegação, que sacode a cada „marretada‟ de onda no casco de sotavento, começou a enganchar e atrasar. Bruno já esta a fim de desembarcar. Nosso relacionamento esta ótimo, mas ele não tem visto americano e esta achando que já é tempo demais. Eu também; meus câncer de pele no braço já estão começando a se exibir. Falei com Pedro Bocca de Ile Royale. Ele quer passar uma semana de executivo estressado, embarcando num sábado e desembarcando em dia marcado. Isto não funciona numa velejada. A gente sai do porto quando pode, e chega quando o vento deixa. Não confio que esta opção funcione para chegar a Fort Lauderdale. No meu turno da madrugada de 3 para 4, fiz um registro em tempo real do diário de bordo: BLOOPER,4 de novembro de 2003,31o dia de viagem,13o a partir de Fortaleza. Acordei às cinco para duas, naturalmente, sem ser chamado e sem despertador. Tinha ido deitar às 23 horas, e estava pronto para meu turno de 2 às 5. Calcei meia e sapato, me vesti para a madrugada e fui render Bruno, que estava todo orgulhoso de ter feito o contorno pelo norte de Tobago enquanto eu dormia. Dei uma olhada lá fora, tudo normal. Vela mestra rizada, genoa bem regulada, caminho livre na proa. A lua estava a 10o acima do horizonte no poente, e clareava a noite. A cerca de 10 milhas ao sul, no través de bombordo, uma visão que há quase uma semana eu não tinha: terra à vista! As luzes de terra pareciam inclusões de vacúolos em cristais de quartzo. Alinhadas, baixas. No final das luzes, piscava o farol, como um coração pulsante, um lampejo vermelho a cada segundo. O farol só se mostra depois que se faz o contorno da ilha. Para sudoeste um clarão esmaecido, possivelmente Plymouth+Scarborough. Passado o farol subimos um degrau de 700 metros no fundo do mar, cruzando a isóbata de 1000 metros, que aqui deflete para oeste e depois para norte, contornando o Tobago Trough, uma depressão fechada entre Barbados, Granada e Tobago. Canopus estava a 22o acima da última luz a sudeste. Por trás do farol, uma sombra alta, o cone vulcânico que está registrado na carta com altitude de 566m. Bonito o contorno da ilha que Bruno executou, conforme ficou registrado no track do GPS. 134 Às 2:10 a lua estava se pondo, com o limbo iluminado para baixo, formando um C deitado, de crescente. Ψ=11o32' N, λ = 60o32' W. Passamos a andar no rumo verdadeiro 286-290, proa na Prikley Bay, em Granada. A voltagem do banco de baterias caiu para 11,4 volts, e liguei o motor de BB às 2:25, engrenado à vante, 1700 RPM. Liguei o freezer. Aldebaran estava no zênite. Saturno entre Gêmeos e Betelgeuse. Órion imponente, em ascensão, já a uns 80o. Capella a 56o, na ponta de um triângulo escaleno, voltada para o norte. Havia um estratocumulus alongado, como se fosse um chapéu sobre a ilha, com base a uns 500m de altura. A visão era como do Monte Serrat para Itaparica, só que o coração pulsante do farol estava lá no oeste. A lua logo se pôs e ficou uma escuridão total à frente, Granada a 70 milhas. Júpiter estava nascendo, baixo no horizonte. Desci para ligar o computador, marcar os pontos na carta e mexer no GPS, e quando olhei de novo, Júpiter já estava a quase 15o de altura! Fiz o registro do track e salvei no Captain. O vento era NE força 4 e o mar estava arrumado. Passagem tranqüila. Corrente para W-SW. Corrigi o rumo 3o para boreste. Alguém falou no rádio, com voz tranqüila. Não vi ninguém, mas acendi as luzes de navegação. Um avião com luz estroboscópica passou por baixo de Júpiter, para SE. Ainda bem, esta é a forma adequada de andar para contravento: a jato! Quando acordei, Marte já tinha ido dormir ha 3 minutos. Está 8o na frente da lua, a qual está com idade de 10 dias, @ 80%. O Cruzeiro do Sul vai nascer às 5:05, e ao crepúsculo matutino vai atingir a altura de 8o lá no sul. A Polar já esta no céu, a 11o de altura. A constelação de Touro está com o V apontado para oeste. Aldebaran esta na ponta mais a leste. Apareceu um navio no horizonte, pelo norte. Parece ir em direção a Granada mas ainda está longe, não vejo as luzes de navegação. Olho de binóculo. É vermelha e está convergindo comigo. Vou desligar o motor e o freezer, que já tem uma hora e dez minutos. Também o vento refrescou, tenho que ir olhar as velas. São 03:40. Andei 12 milhas em 1h 40 min. Ufa, que fome! Vou comer uma barra de cereais e fazer um cafezinho. Senhoras e Senhores, acabo de adentrar o Mar do Caribe, vindo do sul. Já estou atrás de Tobago. Começa uma falação no canal 16, navio pedindo prático. O que vinha convergindo passa pela proa. Um cumulus preto se forma na popa. Olho nele! Este negócio de fazer o registro em tempo real é uma trabalheira! Não dá tempo de fumar um cigarrinho! Será que André e Liana vão querer ler esta baboseira? Mas Tica vai, ela é danada; vou escrever para você, irmãzinha. Vai navio, que quero desligar as luzes de navegação. A bateria voltou para 12 volts. Estamos andando a 6,1 no velocímetro e a 6,5 SOG. Rumo magnético 300, COG 285T. Declinação 15o W. Logo, tenho uma corrente favorável de 0,4 nó. A nuvem preta chegou sem vento. Ótimo. Vejo a luz de alcançado do navio se afastar. Ótimo. São 135 04:05 e começa um leve clarão a leste. Daqui a pouco é o crepúsculo matutino. Júpiter já está alto, meço com a mão, dá uns 40o. Ligo a Rádio Barbados Broadcasting, em AM @ 900 khz, para tentar uma previsão do tempo. Chega alta e clara. É um programa de entrevista na madrugada, analisando o comportamento da juventude que faz pega de carro em Bridgetown. Desligo. Na frente, para oeste, uma escuridão total. Gravo o track no computador e desligo. Guardo tudo e cubro com uma camiseta suada que vou jogar fora. 04:30 - Começo a ver o horizonte mal definido a 360o. Mas ainda não dá para navegação astronômica. As luzes mais baixas de Tobago começam a afundar. O farol continua piscando, agora fraquinho, na alheta de BB. O vento caiu e a velocidade do barco também, agora 5,5 nós. Previsão de chegada em Granada 19:03 GMT. Como estamos no fuso horário de Caracas, ETA é para cerca de 3 horas da tarde. Ótimo. Vamos jantar em terra hoje, e não terei que lavar pratos! Opa, uma 'estrela cadente'. Boa sorte para Lara! Que cresça saudável, forte, bonita e inteligente. A temperatura da água está em 26,5 oC, 1o a menos que durante o dia. A água aqui no mar do Caribe é mais quente que na corrente Equatorial do Atlântico, 26,1 oC durante o dia. A esteira do barco não está fazendo 'varinha de condão', quer dizer, a água é pobre de algas. 04:46 - A nuvem preta passou pela popa. Deve ser de baixa pressão, porque o vento correu para cara 10o e aumentou 2 nós. Está agora 13 nós @ 80o da proa, vento aparente. Ótimo. Dei uma volta na catraca da escota da genoa e a velocidade subiu para 6,7. Catamarã é outra coisa! 05:01 - Bati na porta da cabine de Bruno, que respondeu de imediato, bocejando. O horizonte começa a se definir devagarzinho. O nascer do sol será às 5:56 HML e a cada dia que passa o dia vai ficando menor neste outono caminhando para inverno. Faltam 58 milhas, e vou dormir. Quando acordar às 8 já estou de agenda cheia: preparar a aproximação e a chegada em Granada. Hoje às 15 h completa exatamente 1 mês que largamos de Salvador. Muito bem, Blooper, você chegou ao Caribe e se comportou bem. No momento Ψ=11o37' N, λ = 60o50' W, rumo V285 vel.6-7 nós. -- Bruno, precisa orçar mais 4o. Aproveite o seu turno. Às 8 horas o dia estava radiante, com cumulus de bom tempo e visibilidade até o horizonte. Ψ=11°43‟N ʎ=61°06‟W. Faltam 41 milhas para o wpt Granada, que está claramente visível como um dromedário de 3 corcovas puxando um filhote, Carriacou. Na popa, também claramente visível, Tobago, pouco mais comprida que Granada. Pouco mais de 0,5 nó de correnteza nos empurra para WSW. A maré aqui é micro, coisa de 1 palmo. Vento E-NE força 4, com ondas de 1m vindas de NE. O Blooper deslisa suave a 6 kn. A última banana, que era de Bruno, ele ofereceu dividir comigo no café da manhã. Também a última lima. Ainda temos duas laranjas, 2 maçãs, 8 ovos, 4 batatas, 1 136 tomate, 8 cebolas, 2 iogurtes e 3 nescauzinhos. O tanque d‟água principal está a ¾. Gastamos 200 litros d‟água de fortaleza para Granada, em 13 dias, incluindo a parada nas Îles Du Salut. Os tanques de diesel estão acima do meio, embora o marcador elétrico diga que estão cheios. Separei as cartas do Caribe que copiei de Beto Correia Ribeiro e botei feijão e carne de sol na panela de pressão. O vento real caiu para menos de 10 nós, aparente 6-7, e a velocidade sobre a água 3,5 nós! É hora de gastar o óleo diesel poupado para garantir a chegada de dia. Acabamos de cruzar a isóbata de 1000m, subindo da Tobago Basin para o degrau vulcânico das Ilhas de Barlavento. Em cima de cada ilha fica um aglomerado de cumulus, dizendo que embaixo é terra. Um altão, bem ao norte, deve ser o vulcão Soufrière, em San Vicent. Ajustei o alarme da sonda, mudando de 60m para 4m. Às 15h ancorado em Prickly Bay, Spice Island Marine em 11m de profundidade, Ψ=11°59,7‟N ʎ=61°45,7‟W. O odômetro do Blooper até aqui registrou 2819 milhas em exatamente um mês. Mais 400 milhas e teremos coberto uma distancia igual à do Arroio Chuí ao Rio Oyapoc, só que aqui foi em área tropical e a maior parte do tempo em mar de almirante. No momento estamos ancorados em Prickly Bay, Granada e está tudo bem a bordo. Lembranças da viagem: Ontem sonhei cruzeirando por trás das ilhas de Tinharé e Boipeba, o Pinauna, o Estripulia e o Puck. Às vezes, após o por do sol, ligo o computador, vejo o mapa do céu, a navegação com as cartas digitais, e jogo gamão no jelly-fish. Bruno tem sido ótima companhia: disciplinado, trabalhador, organizado. Fez uma planilha que é um inventário do que existe a bordo, onde está cada item, controle do consumo e do estoque; fez outra para uso dos motores, que já quebraram cinco vezes; eles se revezam, só para manter a gente ocupado. O barco também andou quebrando, e Bruno sobe no mastro, mergulha e costura o que rasga. Não joga nada, mas também não da tempo. É metido a botar os temperos de Pedro Mutti nas comidas Na véspera de chegar nas Iles du Salut, na Guiana, tínhamos 3 cenouras. No almoço Bruno colocou duas. Perguntei se não era esnobação, e ele disse que íamos chegar e ele compraria mais. Argumentei que em Salut não haveria disponibilidade e ele: deixe comigo, se lá existe uma pousada, haverá comércio, eu sou Administrador, e pela teoria é assim. Deve ser por essas e outras que Millor Fernandes dizia que 'na prática a teoria é outra'. Vai ver que Millor se refere às teorias da administração, da economia e da política! O corte pelo cone do Amazonas foi enriquecedor! O ano passado, quando desci o rio até Macapá, comecei a montar algumas hipóteses. Agora, analisando as correntes e o registro da ecosonda acrescentei mais algumas peças ao modelo do super-delta. Se me arrumassem um navio oceanográfico e um financiamento do CNPq bem que eu toparia mapear aquilo lá. Análise de meus sentimentos com relação aos americanos após o encontro com o Carduff: em 1973-1974, quando morei lá, os americanos haviam acabado de ganhar a corrida espacial, pousado um homem na lua. Eram os líderes do mundo, os 137 vencedores, e transmitiam um entusiasmo contagiante. Tinham o melhor padrão de vida do mundo, era o grande mercado consumidor, e eram também hospitaleiros, vencedores, seguros, ricos e orgulhosos, no bom sentido. Com a derrocada do império soviético em 1991, passaram a se considerar donos do mundo, e o orgulho virou intromissão, arrogância, prepotência. Montados na segurança de serem os mais fortes descuidaram do relacionamento humano, e descuidaram de si mesmos, tornando-se em pouco tempo uma comunidade de obesos conduzidos por fantasias hollywoodianas. Na virada do século foram atingidos no templo da sua cultura (world trade Center) por um adversário que consideravam desprezível. E agora, com a paranoia do terrorismo, tornou-se um povo amedrontado e acuado. Nada simpático. A companhia de americanos não transmite mais simpatia! Granada é um paisinho com tradição agrícola de especiarias, dominada por crioulos, como todo o Caribe. Ancoramos às 15h do dia 4 de novembro, e desembarquei de caíque na alfândega às 15:55, porque fechava às 16. Mas o pessoal tinha ido embora às 15:45. But don't worry, be welcome, use our facilities, and tomorrow you'll make the entrance! O East Caribbean Dollar tem a mesma cotação que o Real. Água custa no pier EC$0,35/galão. Ao contrario de muitas outras ilhas vulcânicas pelai, esta não tem problemas com disponibilidade de água doce, mesmo com mais de 100 mil habitantes. A meta de tirar o Blooper do pais está cumprida. Os arrendatários estão livres da multa de US$120 mil. O barco está inteiro e limpo, melhor que na saída. Acabei de fazer a entrada dele aqui em Granada; em seguida fomos a uma lan house mandar e-mails e depois almoçar na marina. No e-mail de Jairo, eu disse: Bruno, que trouxe uma prancha, quer descer em St.Vicent, pegar uma balsa de linha e ir surfar em Barbados. Se Pedro Bocca vier, posso esperar por ele aqui em Granada, e subir ate Santa Lucia ou no máximo ate Martinica. Estaríamos entregando o barco lá pelo dia 15 de novembro. Ai a chance de furacão fica zero, e você podia vir com Ana e fazer o resto da viagem, mil e poucas milhas. Quinze de novembro Igor também já esta disponível, e é uma opção profissional. Outra opção profissional é o fulano de Fort Lauderdale, o que vai receber o barco, mandar um skipper com cidadania americana para Santa Lucia . Por ultimo, posso eu mesmo, com sua autorização, contratar um localmente. Isto é possível nas empresas de charter. Existem também velejadores tipo Luis Poesia fazendo volta ao mundo em seus próprios barcos, e precisando fazer algum dinheiro, e uma coisa fácil para eles é um delivery. Hoje Bruno sai a campo para tentar vender o barco por aqui. Ficou entusiasmado com a perspectiva da comissão. No e-mail para Pedro e Felipe, eu disse: Ate aqui a viagem foi uma velejada um pouco trabalhosa, com turnos a cada 3 horas, mas tranquila e de grande aprendizado. Agora começa a parte macia, praticamente day-sailing and a lot of fun (!). Pelo meu interesse, fazendo as Ilhas de Barlavento consigo visitar os vulcões importantes na formação deste arco de ilhas. Se vocês vêm, mandem um e-mail para mim ainda hoje, e espero vocês até sábado. Pedro: o esquema de uma semana no 'ultimo trecho' acho que é uma furada. Das Ilhas Virgens até a Florida são 1000 milhas, e só ai já se gasta uma semana sem paradas. Venha por uma semana aqui pelas Ilhas de Barlavento, deixamos o barco 138 conforme uma combinação com Jairo, e vou com você de avião para suas compras em Miami. Felipão, esta disponível para você uma cabine de popa, com cama de casal, armário e sanitário privativo. Também, para quem esta acostumado a andar de primeira classe, não podia ser diferente. Os velejadores de meio barco quando chegam a bordo, não conseguem disfarçar uma expressão de inveja. O Lagoon 41 para uma viagem destas é sem duvidas um barco de sonho! No dia 6, uma quinta-feira, saímos de taxi pela ilha. Comprei o livro do Cris Doyle, guia das ilhas de barlavento, levei o motor de popa para consertar, fiz xerox da documentação de entrada em Granada para o pessoal da BYC, abasteci 16,6 galões (60 litros) de diesel e já que não temos SSB anotei as estações AM que fornecem previsão do tempo: Granada, 535kz e St.Vicent 705kz. Dia 7, sem receber qualquer resposta positiva, exceto que era para entregar o barco para um tal de Tucker West, em Fort Lauderdale, que tinha uma companhia chamada The Catamaran Co., com filial em Tortola. Sem endereço nem telefone. Quando sai de Granada, fiz a saída na Alfândega local para Tortola, nas Ilhas Virgens e pela nona vez pedi a Jairo via telefone e via e-mail, para que providenciasse uma informação completa. Fizemos uma feirinha e às 10:30 estávamos com âncora em cima. O vento rondou para nordeste e endureceu, fazendo a gente derivar muito para oeste. Contornamos Granada por sotavento, mas quando chegamos na metade do caminho para Cariacu e o nordeste descobriu de trás do morro, recebemos uma rajada de 40 nós que arrancou a capa protetora da genoa e a ferragem da bicha. Machuquei a mão ao segurar a contra-escota fora da catraca na hora de enrolar a vela. Foi contra-vento duro até ancorarmos em Cariacu imediatamente após o por do sol, com lua cheia. Dia 8, um sábado, acordei cedo, fiz um desjejum de suco de caju, ovos mexidos com cebola, tomate e farinha para mim e para Bruno e fui até o Iate Clube defronte de onde estávamos. Liguei para o celular de Jairo que estava na Fonte do Tororó, dizendo que era a décima tentativa que eu fazia durante a viagem, e que ia deixar o barco em Union Island. Ele não retrucou, disse que mandasse um e-mail e que segunda-feira ia tomar providencias. A genoa sem a proteção uv azul e o temporal chegando em Union Is. 139 Saímos motorando pelas Granadinas, com parada para almoço em Sandy Is, onde ainda deu para mergulhar no recife. Cheguei cedo em Union Is. e ancorei em Clifton Harbour, em frente ao Anchorage Iacht Club. Clifton Harbour at Union Island é uma laguna com 10-15m de profundidade, com um recife no meio. Aqui é o coração das Granadinas, tem base da Moorings e é considerada a área classe A do Caribe. 2/3 dos barcos presentes são catamarãs, a maioria Lagoon 38 de charter. No domingo dia 9, fiz Costums & Immigration no aeroporto que é logo atrás do Iate Clube, com permissão de permanecer até 20 de novembro. Começou a chover a cântaros, e a previsão era que o temporal demoraria pelo menos mais cinco dias. Não vi ninguém se arriscando a sair da laguna, quem fez reserva para esta semana se deu mal! Mandei via e-mail um relatório para BYC dia 9, com informação detalhada da posição e situação do barco. Bruno ficou a bordo com o barco na âncora, com uma diária de US$60 que é menos do que deixá-lo sob a guarda da marina, uma vez que a partir de 15 de novembro é alta-estação no Caribe. O Drifter, o outro Lagoon 41 da BYC que estava sendo devolvido com uma tripulação paga e profissional, vinha uma semana atrás do Blooper, arribou para Union Is. passou um tripulante para o Blooper e seguiram para norte. Deixei a bordo um adiantamento das diárias para Bruno, uma prestação de contas documentada do adiantamento que George fez em nome da BYC, bem como os documentos da saída do barco do Brasil e da entrada em Granada. Dia 10 chovia torrencialmente com vento forte. Desembarquei cedo e às 8 h estava na agência de viagens. Depois de uma novela dramática comprei uma passagem para Port of Spain, Trinidad, com pernoite em St.Vicent e conexão amanhã. Almoçamos na marina, e à tarde de temporal desembarquei minhas sacolas no caíque, enroladas em saco de lixo de 100 litros; no aeroporto vesti roupa seca e joguei fora a bermuda e a sandália encharcadas. Despachei a bagagem na Mustique Airways, ficando com uma sacola de mão e o computador. Voei num aviãozinho de 10 lugares, incluindo o piloto, um australiano de seus 37-38 anos, bom piloto. Passamos sobre Tobago Cays e pousou em Canouan onde desembarcaram dois crioulos. Depois sobrevoou Mustique, a ilha dos ricos e famosos. Chegamos em St.Vincent à noite, e consegui deixar a sacola grande de 20 kg e ruim de manejar, no depósito da Alfândega. Grátis! Fui a pé para um „hotel‟ defronte ao aeroporto, Adams Apartment. Jantei, tomei banho, preparei a bagagem para sair cedo e deitei antes das 9. Acordei às 11pm com o barulho da chuva forte. No dia 11, o 4º seguido de temporal, cheguei cedo ao aeroporto, mas encharcado, caminhando descalço na rua que parecia o leito de um rio. Peguei a sacola na alfândega e vesti calça e sapato secos. A camisa secou no corpo. Como não existe „sistema operacional‟ nesses aeroportinhos daqui, fiz o check-in sem possibilidade de confirmar uma conexão. O voo para Trinidad foi num turbo-hélice Dash-8, para 50 passageiros. Saiu com atraso de 1 hora, e depois que decolou o piloto informou que atrasou porque há mal tempo em todo o Caribe. A propósito, Caribe foi um povo guerreiro que chegou por aqui 150 anos antes de Colombo e expulsou os Arauaques, que eram pacíficos. Os habitantes originais eram 140 os Cyboneys, de 5000 anos. Os pretos foram trazidos pelos ingleses que mataram os Caribes. O desembarque em Port of Spain foi horrível. Primeiro, o fulano da imigração prendeu meu passaporte porque não tinha conexão marcada. Esperei todo mundo passar, ele atendeu o celular e depois analisou meu caso. Quando finalmente me liberou fui pegar a bagagem e só estava a sacola grande numa esteira parada. Dezessete pessoas do meu vôo estavam sem bagagem. Depois de uma hora de confusão, sai para tentar uma conexão, com a intenção de voar Paramaribo, no Suriname – Belém, sem sucesso. Quando voltei para a alfândega as malas de todos os 17 apareceram rodando em outra esteira. Disse o fiscal, que não acreditei, que elas tinham sido encaminhadas para a esteira errada. Acabei indo numa van para o Piarco Hotel que, como tudo que vi em Trinidad tem um gosto amargo de subdesenvolvido. Diária de US$90. Me instalei, fumei um cigarro e fui me acalmando. Peguei o catálogo telefônico de páginas amarelas e comecei a ligar, até que consegui uma reserva via CaracasSão Paulo-Rio-Salvador. Depois do almoço fui na van do hotel ao aeroporto, peguei minha passagem classe econômica e paguei no cartão o equivalente a US$1257, para posterior reembolso pela BYC. Dormi bem e acordei às 5h. Check-out do hotel e check-in no aeroporto sem problemas. O céu está coberto de alto-estratos, mas o dia está ensolarado sem chuva e sem ventão. O avião foi um Dash-8, igual ao de ontem. Sentei na janela e vi a „Boca do Dragão‟, onde quem vem do mar contorna a ilha pelo oeste e entra para o porto cheio de veleiros. Ao largo, dentro da grande laguna, existem campos de petróleo, com jack-ups e navios petroleiros. Uma grande pluma de material em suspensão vem da foz do Orinocco, carregada pela costa da Venezuela até a Boca do Dragão.A ilha de Trindade está para o Orinocco assim como Marajó está para o Amazonas. Para passar pelo sul de Trindade tem que navegar pela foz do rio. Em Caracas fui fazer alfândega e a oficial, uma gatinha, me aconselhou a não dar entrada no pais, ficar na área de conexão. Bem que Igor havia dito, a Venezuela é terra de mulher bonita. Fui para a sala VIP da American Airlines, que tem sala de fumante decente, merenda, cafezinho e internet grátis. Sentei no computador e peguei o boletim do tempo da NOOA: TROPICAL NWS TPC/NATIONAL 1130 AM EST WEATHER HURRICANE WED CENTER NOV OUTLOOK MIAMI FL 12 2003 FOR THE NORTH ATLANTIC...CARIBBEAN SEA AND THE GULF OF MEXICO... A BROAD AREA OF LOW PRESSURE CONTINUES TO PRODUCE NUMEROUS SHOWERS AND THUNDERSTORMS OVER PORTIONS OF THE NORTHEASTERN CARIBBEAN SEA...LAND AREAS FROM HISPANIOLA TO THE LEEWARD ISLANDS...AND THE ADJACENT PORTIONS OF THE ATLANTIC. THE SHOWER ACTIVITY REMAINS DISORGANIZED AT THIS TIME ... AND CONDITIONS DO NOT APPEAR FAVORABLE FOR SIGNIFICANT DEVELOPMENT OF THIS 141 SYSTEM. HOWEVER...EVEN IF NO DEVELOPMENT OCCURS...THIS SYSTEM SHOULD CONTINUE TO PRODUCE LOCALLY HEAVY RAINS WITH THE THREAT OF FLASH FLOODS OVER PORTIONS OF THE LEEWARD ISLANDS...THE VIRGIN ISLANDS.AND PUERTORICO. AN AIRFORCE RESERVE UNIT RECONNAISSANCE AIRCRAFT WILL INVESTIGATE THE AREA EARLY THIS AFTERNOON. Às 17:30 fiz meu check-in, O avião era um Boeing 737 da Varig, com classe executiva, e usei minhas milhas Smiles para um up-grade, que eu mereço. Cheguei em Salvador dia 13 de novembro. Bruno chegou dia 4 de dezembro. Foi até São Domingos no Blooper, fazendo uma escala em Martinica e repetindo cinco séculos depois o desembarque de Cristovam Colombo. Ele também voou de volta via Caracas. 142 CRUZEIRO NO ALASCA – Junho 2006 O Cruzeiro no Alasca saiu do sudoeste do Canadá, de Vancouver, BC, a 50°N, vizinha a Seattle, WA, EUA, cidade da Microsoft e da Boeing. Rumou para norte pelas águas protegidas da Inside Passage, um conjunto de fiordes glaciais, adentrou as águas estadunidenses no que é politicamente o Alasca a partir de 55°N – uma tripa de uns 150 km de largura nos fiordes a noroeste do Canadá - e finalmente passou para o oceano aberto a 60° N, navegando para oeste no golfo do Alasca até Seward. O círculo polar ártico passa bem no meio do Alasca, de forma que quem vai pra lá está afim de ver geleira. Por ali elas existem de dois tipos: as geleiras „alpinas‟, que são como rios de gelo descendo das montanhas numa „correnteza‟ de 2cm a 2m por dia; e as geleiras que flutuam no oceano, as da capa polar. Gelo é água cristalizada, e a água, dentre outras propriedades incomuns em relação às outras substâncias, tem uma densidade menor quando em estado sólido do que quando em estado líquido. A gente aprende isto no curso primário, mas se não vai lá ver, só se dá conta do efeito no “whisky on the rocks”. Se o gelo afundasse, o planeta que você vive seria muito mais frio, porque o gelo iria para o fundo do mar e se acumularia numa quantidade muito maior, sem chance de derreter nas bordas das calotas polares. Não existiriam icebergs, o nível do mar seria mais baixo no mundo todo, e o pior, teríamos menos área para velejar. Se você quiser ver como é um esquimó típico, vai ter que pegar um trenó com cachorros e andar bem para o norte por sobre a capa de gelo. Vá se conformando com minha amiga Tlingit, que já tomou banho e está integrada ao estilo de vida dos americanos. O tipo físico é isto ai. Os nativos foram mortos, ou escorraçados pelos russos e pelos americanos, ou se integraram num novo estilo de vida. Representam 11% da população do Alasca atual, de 600 mil habitantes. E olhe que o Alasca é do tamanho do Amazonas, o dobro do Texas! Metade destes 600 mil estão em Anchorage, que cresceu na segunda metade do Séc.XX, como base militar e como base das empresas de petróleo que produzem no oceano Ártico. Anchorage é uma cidade americana típica e moderna, e se você lá não alugar um carro não vai a lugar algum. 143 Os 300 mil restantes da população do Alasca estão espalhados, com baixa densidade demográfica. A capital é Juneau, que fica bem mais ao sul, na zona dos fiordes e da Inside Passage. Juneau tem hoje 30 mil habitantes, e começou a existir como um acampamento de garimpeiros em 1880. Até hoje não tem acesso rodoviário nem ferroviário, só se chega lá de avião ou de navio. Ainda assim, recebe de uma só vez 4 navios de turismo, cada um com 2000 passageiros. Junto ao porto existe uma estrutura de receptivo, com 6 helicópteros, 4 aviões, 20 ônibus para levar a turistada às shore excursions e aos museus. Juneau, com 4 cruisers no porto Esquimó retratado no museu Turistas bateando no Rio do Ouro, Juneau Observe que o norte está torto uns 50° para direita Para efeito de turismo existem dois Alasca: 1. o da tripa na Inside Passage, onde está toda a história da conquista da região, século XIX, incluindo o ciclo do ouro, e 2. o do oleoduto, entre Valdez e Prudhoe Bay, passando por Anchorage e Fairbanks, e cruzando o circulo polar ártico. Em termos de geografia também as duas regiões são bem distintas. Vamos dar uma voltinha. 144 Na ultima glaciação, há 20 mil anos, o nível do mar estava entre 110 e 120 metros mais baixo que o atual no planeta inteiro. A capa polar era muito maior que é hoje. Então o Estreito de Bering, que separa a Ásia da América, era emerso, terra e gelo, e as águas do Ártico não se misturavam com as do Pacífico. A distância entre a Sibéria oriental e o Alasca ocidental é de 42 milhas, mais ou menos como de Aratu a Morro de São Paulo. Foi nesta época, e pelo que é hoje o Estreito de Bering (profundidade atual entre 40 e 50 metros) que o Homo sapiens passou para a América do Norte. Depois migrou para a América do Sul, contornou a floresta amazônica, atravessou a mata atlântica, e por fim, 10 mil anos depois, com o nível do mar 35 a 40m abaixo do atual, chegou à Bahia, um dos últimos locais do planeta a ser ocupado, excetuando a Antártida e as ilhas do Pacífico. Não admira que o bahiano tenha fama de cansado! A partir de 500 anos atrás as Américas foram invadidas pelos navegantes europeus, e os nativos foram dizimados. O povo que veio da Ásia e ficou lá pelo norte é adaptado ao frio. O esquimó de verdade habita o gelo na periferia setentrional da América, do Alasca até a Groenlândia. Eles moram em tocas de gelo e neve, os iglus. Ao nascer, dentro do iglu, são revestidos com óleo de baleia ou de foca, como uma segunda pele. Vestem uma roupa de baixo de pele de caribu, uma espécie de rena, e por cima roupa de pele de urso. Quando ficam velhos, entre 40 e 50 anos, que os dentes estão gastos, saem para uma caminhada forçada, suam, o suor congela e eles morrem. Se você estiver interessada, recomendo o livro do Hans Ruesch, “No País das Sombras Longas”, 1998, Ed. Record,204p. Urso marrom e pássaros no verão Caribu pastando numa tundra. Representação de um esquimó tirando uma foca de um buraco no gelo. Toda a região é ambientalmente muito sensível. A ocupação pelo homem branco cria um desequilíbrio insustentável, e as cidades de hoje tem que importar tudo que consome, exceto peixe. O bacalhau está quase em extinção por lá, e agora é a vez do salmão. Esta gramínea acima, a tundra, só existe no verão. No inverno todo este campo está coberto com 1 a 2m de neve. Toda primavera as estradas tem que ser recuperadas. No verão o sol „amanhece‟ no leste, roda para o sul, vai para oeste, noroeste, e à meia noite está no norte. No inverno em Anchorage são 5 horas de um sol bem baixinho, sempre pelo sul, fazendo sombras longas (dizem). Até os campos de golfe são „inside‟ e climatizados. 145 1.„Meia-noite‟, do hotel em Anchorage, 11 de junho, olhando para o norte 2. Foto de uma foto numa galeria de arte: aurora boreal: a corrente elétrica acende a ionosfera 60 km acima da superfície, como uma lâmpada neon. 3. Transição da tundra para a mata de pinheiro olhando para o sul na estrada de Anchorage para Seward. Em 1728, Pedro o Grande, czar da Rússia, mandou Vitus Bering verificar se a Ásia e a América tinham uma ligação. Bering velejou pelas Aleutas, acompanhando a corrente quente do Japão, que em contato com as águas frias que descem do Ártico desenvolvem um fog, de forma que a visibilidade fica muito limitada. Mas mapeou o estreito que hoje leva seu nome. Em 1799 os russos se instalaram em Sitka, uma ilha na borda dos fiordes da Inside Passage. Eles caçavam, e estabeleceram um comércio de peles com a China, o grande mercado da época. Tiveram muitos conflitos com os nativos, mas dominaram a região por 50 anos. Ai começaram a chegar espanhóis, franceses, ingleses e americanos. Em 1850 os ingleses já eram os „donos do mundo‟, estavam ocupando todo o Canadá e os russos com dificuldade de manter a posse, venderam o Alasca para os americanos. O negócio de 7.200.000 dólares foi assinado em Sitka em 1867. O povo americano reclamou, achando que era desperdício de dinheiro público. Em 1880 dois aventureiros, R.Harris e Joseph Juneau acharam ouro mais ao norte, na borda do continente, e fizeram um acampamento na beira da praia. No ano seguinte mais de 100 garimpeiros estavam na área e fizeram uma vila que é 146 hoje a cidade de Juneau, a qual em 1906 passou a ser a capital do Alasca. Em 1917 os americanos já tinham tirado de lá 70.000.000 de dólares de ouro, e em 1959 o território do Alasca foi incorporado como o 49° estado americano. Durante a „guerra fria‟ Anchorage foi ligada com ferrovia e rodovia ao Canadá e aos Estados Unidos, e cresceu como uma grande base militar avançada. Em 1969, os americanos, que já haviam desbancado os ingleses como „donos do mundo‟, já haviam desembarcado um homem na lua, descobriram petróleo em Prudhoe Bay, no north slope do Alasca, onde estão hoje as maiores reservas dos Estados Unidos. Juneau vive hoje do turismo dos navios de cruzeiro, da exploração de madeira (timber), da pesca e dos royalties do petróleo de Prudhoe Bay. Acima: Navegando no fog do Golfo do Alasca Alasca Placa do Pacífico em subadução sob o sul do Abaixo: Sedimentos de talude marinho, dobrados, na frente do arco de ilhas A Inside Passage e as Aleutas, são arcos de ilhas vulcânicas que se levantam na frente da placa do Pacífico, da mesma forma que o Japão (vide mapa acima que fotografei na Escola de Geologia da UBC em Vancouver e lamentavelmente não anotei o nome da autora). As faixas vermelhas são zonas de deformação, com vulcanismo e terremotos. A costa do Canadá e do Alasca na Inside Passage é alta, as montanhas da Coast Ranges chegam junto ao mar nos fiordes, e são constituídas por rochas ígneas. Tudo fortemente dobrado. Quando chegamos em Hoonah, na saída para o golfo do Alasca, entramos na bacia sedimentar, argilitos e calcários dobrados para nordeste, com estratificação paralela, marcas de sola, tudo duro e cimentado, aparentemente com bom teor orgânico (foto). O Coast Ranges contorna o sul do Alasca com o nome de Alaska Range e se continua para sudoeste representado pelas 147 Aleutas. A parte central do estado, para norte, na altura dos 65°N, é dominada pela planície aluvial do rio Yukon e seus afluentes, que drena para oeste no Mar de Bering. A norte do círculo polar e subparalelo ao Coast Range, estão as montanhas do Brooks Range, que se continuam para sudeste pelo Canadá e pelos Estados Unidos como as Montanhas Rochosas. A norte do Brooks Range, além do paralelo 70°N, estão as bacias petrolíferas no Oceano Ártico. 1.oleoduto 2. terminal com petroleiro 3. pista de Cooper do Summit, deck 11, 700m .4.Celebrity Cruiser O petróleo de Prudhoe Bay é escoado por um oleoduto de 1,2m de diâmetro que vem suspenso em 78000 suportes espaçados de 20m até atravessar o permafrost (substrato permanentemente congelado, foto). Onde o substrato permite drenar a neve que se derrete em contato com o duto “sem causar problemas”, o duto é enterrado. O oleoduto contém um volume de 9 milhões de barris, o equivalente a um campo pequeno de petróleo, e movimenta 6 milhões de barris de petróleo por dia (3 vezes a produção diária da Petrobras!) até o terminal em Valdez, de onde saem 4 petroleiros por dia. Brinquedinho de gente grande! 148 1. no camarote 2. imagem da câmara de proa vista na TV do camarote 3. bar-boite no deck 10 do Summit, proa 4. píer basculante de bordo Para terminar, uma palavrinha sobre o navio. A Celebrity Cruises é uma empresa que os americanos compraram dos gregos, e hoje tem 9 navios. Eles fazem o Caribe no inverno de lá (depois dos furacões do verão e outono), a Escandinávia e o Alasca no verão, o Mediterrâneo, o Mar do Norte, fazem travessias do Atlântico Norte, vão ao Havai, a Galápagos e às Bermudas. Fazem cruzeiros pelo Canal do Panamá e pelo cone sul da América do Sul, de Valparaiso até Búzios, passando pelo Cabo Horn no verão nosso. O navio que eu fui para o Alasca é o Summit, um empreendimento de algumas centenas de milhões de dólares com um foco de serviços destinado a atender aos norte-americanos da terceira idade. Nos portos onde parou a Celebrity mantém uma estrutura receptiva para dar suporte às shore excursions. O GTS-Summit é um resort de 100 mil toneladas, operado com turbinas a gás. Não tem eixo, são rabetas oscilantes. Manobram no porto sem rebocador. Não vibram nada, de forma que tanto faz você ir num deck alto ou num baixo. No teatro luxuoso com assento para 1200 pessoas, num evening houve um show do Cirque du Soleil, com trapezistas e malabaristas atuando e o navio andando a 20 nós. São onze andares servidos por elevadores panorâmicos grandes e rápidos. Impecavelmente limpo. Tem áreas de fumante decentes, um jornal diário com a programação, distribuído nas cabines à tardinha do dia anterior. Nos portos onde não atracam no píer, são basculados dois píer auxiliares a boreste no deck 1 onde atracam os tender que desembarcam os 2 mil passageiros. Os tender são as „balsas salva-vidas‟, de 149 fibra, dois motores diesel, assentos estofados para 120 passageiros de cada vez. Tudo muito organizado e eficiente. O camarote tem controle de temperatura para ser regulado à vontade do freguês. Uma ducha pressurizada com água quente abundante, toalhas de algodão egípcio, telefone para ligar via satélite a qualquer hora (9,7 dolares/min), serviço de camareiro 24 horas, e uma TV interativa grande com os canais do navio, onde você assiste a um „trailer‟ da excursão e compra ali mesmo. Também canais tipo Discovery e CNN, e mais uns tantos “pay-per-view”, tipo „filmes para adultos‟ e acesso direto ao pregão da bolsa de Nova York. Francamente, é bom ir lá para poder contar esta história. Mas essa não é exatamente a minha praia! li dois bons livros na viagem. 150 Visita à Nova Zelândia – março 2006 A Nova Zelândia tem uma área de 268000 km2, assim do tamanho da Inglaterra (incluindo Escócia e Irlanda), ou do Rio Grande do Sul, ou metade da Bahia, e se estende esticada NE-SW com uma largura média de 120 km. A parte mais a norte fica no paralelo 34°S, na altura de Buenos Aires, e a mais sul no paralelo 47, de forma que viajar na Nova Zelândia é como se você estivesse na parte norte da Patagônia. Mas com uma grande diferença: ao invés de lidar com os queridos hermanos, lá você encontra 4 milhões de simpáticos kiwis. 34 S 47 S 166°E 179°E O país é servido por uma boa rede de estradas bem sinalizadas. Lá você tem que dirigir pelo lado errado, mas prestando atenção sai tudo bem. Nós alugamos uma campervan das grandes na qual rodamos 3000 km em 10 dias, sem qualquer problema. Usamos uma rede de campings para passar a noite, os Holiday Park, de ótimo padrão, e algumas vezes dormimos em qualquer lugar. Entre a chegada e a saída passamos 4 noites de hotel em Auckland, a cidade que tem a maior quantidade de veleiros por habitante no mundo, segundo a propaganda deles. Auckland concentra ¼ da população do país, está estrategicamente situada no fundo de um golfo no noroeste da Ilha do Norte, aberto para o Pacífico e a sotavento dos vigorosos westerlies que açoitam a costa oeste, aberta para o Mar da Tasmânia. 151 Dentro da campervan, pernoitando no camping A área é quase tão boa para velejar quanto a costa da Bahia, e o governo da Nova Zelândia, uma monarquia constitucional da atualmente diluída British Commonwealth, tem como meta institucional a atividade esportiva, e a vela é uma delas. Fotos em Wellington, a capital do país, a 41°S, no estreito de Cook O esporte mais popular é o rúgbi, onde os Máoris, um povo primitivo e forte, faz caretas e bate nos britânicos, mas uma minoria elitizada veleja mesmo, e fatura em cima do arquiteto naval mais famoso do mundo hoje, o Bruce Farr, que no momento (março de 2006) está perdendo para o argentino Juan Kouyomdjian na Volvo Ocean Race, a super regata de volta ao mundo com tripulação. Nesta regata o Brasil está representado pelo barco Brasil 1, comandado pela mais brilhante estrela olímpica de vela, o carioca Torben Grael. O barco holandês que está disparado na frente da regata, no entanto, é comandado por um kiwi de Auckland, Mike Sanderson. A respeito de Mike o comitê de imprensa da VOR escreveu: “sailing is a world where superstars are rare. When they are found they burst on scene like a supernova”. Mas na verdade, talvez por tradição ou racismo, os kiwi estão atrasados na arte de construção naval: a quantidade de catamarans por lá é mínima e primitiva, uma imitação dos outrigger nos quais os máori chegaram na terra virgem 300 DC. Eles ainda estão na fase de desenvolver os meio-barco da Inglaterra, monocasco, carregando uma enorme quilha trambolhenta dependurada embaixo. 152 O “Big Boat”, o KZ1 projetado por Farr (2ª foto p.151 e essa ai ao lado), o monocasco mais veloz do mundo, 40 tripulantes, desafiou em 1988 os americanos dentro das regras originais da America‟s Cup, o Deed of Gift. Os gringos fizeram dentro do prazo da regra um catamarã cujo comprimento era metade do Big Boat, o Star & Stripes, 11 tripulantes, e em duas regatas de 40 milhas, chegaram 20 minutos na frente! Os vizinhos de oeste, na Austrália, separados pelos 1600 km do Mar da Tasmânia, estes sim, estão desenvolvendo catamarãs de verdade. Mas isso é outra história. A Nova Zelândia fica na borda leste de uma placa continental que inclui a Austrália e o Mar da Tasmânia, e por baixo desta placa desce em subadução a placa oceânica do Pacífico (vide mapa p.147). Esta convergência de placas, à semelhança da costa oeste da América do Sul, propicia uma zona de orogenia ativa desde o Mioceno (25 milhões de anos) e os sedimentos marinhos que fazem o substrato das ilhas foram fortemente dobrados com vergência para oeste. A cadeia de montanhas que se levanta em consequência, eles chamam de Southern Alps (Tiritiri dos Maori), e a atividade vulcânica na ilha é uma realidade que eles vendem para o turista. Em Waitomo nós entramos de barco inflável numa caverna de calcário cretáceo iluminada pelos glowworm, os vermes vagalume ($60/pessoa) e em Waimangu filmamos os gêiser em atividade ($25/pessoa para acessar a área) e os vulcões de lama borbulhando mansamente. 153 Calcários cretáceos mergulhando para oeste Pohuto Geyser em atividade e Embarcando no bote para explorar a caverna vulcão de lama borbulhando mansamente O turismo é uma das principais fontes de renda da Nova Zelândia, se não a maior. O que vimos por lá foi uma forte atividade madeireira, em áreas de reflorestamento de pinho, e extensivas criações de ovelha, onde eles agregam valor industrializando o leite e a lã. Quando os ingleses chegaram, em meados do Séc. XIX, fugindo do desemprego e da fome, consequência social do primeiro impacto da revolução industrial em curso na Inglaterra, usaram sua técnica de ocupação: tocaram fogo na mata nativa. A Nova Zelândia, como a África do Sul inglesa, não tem mais vegetação primária. Foi tudo destruído com o argumento que floresta primária é lugar de bicho e não serve para gente viver. O que é verdade, mas a Amazônia... Pois bem, os kiwi recompuseram a mata plantando pinheiro. E hoje vendem a imagem de „untouchable country‟, monitoram os peixinhos dentro da marina, tem energia limpa, hidroelétrica e geotermal, você pode beber a água da torneira. Ganharam o apelido de kiwi durante a 2ª Guerra Mundial, quando tiveram que lutar junto aos australianos contra os japoneses. Os australianos e os neozelandeses se gozam como os portugueses e os brasileiros, e nas livrarias se vendem livros de piada com foco exclusivo nos aussie. Os milicos aussie chamam os neozelandeses de kiwi, que é um pássaro lerdo que não voa, quase extinto. Não vimos nenhum vivo. 154 Regata vespertina no lago Taupo e o ferry que faz a travessia entre a ilha do Norte e a ilha do Sul Separando a ilha do Norte da ilha do Sul está o estreito de Cook, com ventos de 30 nós, marés de grande correntada e baixios extensivos devido aos derrames de lava vulcânica. É todo balizado, mas cuidado: quem vai para o porto deixa a boia vermelha por bombordo. Na Austrália também. Fui „reclamar‟ com o Harbour Master no Lago Taupo e o velhinho queria me convencer que são regras internacionais. O ferry que faz a travessia do estreito de Cook navega nas águas protegidas dos fiords próximo a Picton. NZ$500 para atravessar a campervan com 6 pessoas. $50 por pessoa + $200 para o carro. (1NZ=0,7US). A travessia dura 3 horas. O lago Taupo tem 600km2, e no Tratado de Waitangi, que deu a independência da Nova Zelândia em 1926, o lago e o Rio Waikato, seu único outlet (que tem várias hidroelétricas), ficaram como propriedade da Coroa. Embora o Cook Strait separe a ilha do Norte da do Sul, a travessia de Wellington para Picton vai de leste para oeste. O ferry anda a mais de 15 nós, e se você vai para o solar deck no 10° andar, tem dificuldade em andar para a proa, contra o vento. Quando sai do estreito para as águas protegidas dos canais, tem a sensação de estar em fiordes, uma costa dendrítica, profundamente recortada. Os „fiordes‟ são na verdade canais que sobraram dentro da massa de lava vulcânica que adentrou o mar, canais estes que se distinguem dos fiordes verdadeiros porque são rasos, e os fiordes glaciais são profundos. A ilha do Sul tem uma densidade populacional mais baixa, e lá você encontra uma concentração maior de maoris, possivelmente empurrados para as áreas mais frias pelos europeus. Mas é também na ilha do Sul onde você pode praticar os esportes de inverno. Nosso grupo estava mais interessado em coisas mais quentes, como o sky dive, onde se salta amarrado a um instrutor em queda livre por 2 km, mais 1,5 km de pára-quedas ($185/pessoa), ou descer corredeira num bote inflável. Quem não quer esquiar pode descer nas geleiras de helicóptero ($200/pessoa). Existe uma bem montada estrutura para receber o turista, e em qualquer vila está disponível uma loja de informações turísticas com bom atendimento, os і site, das 9am até 5pm. 155 1 -Methven é um vilarejo próximo ao Monte Cook, Ilha do Sul, o ponto culminante da NZ com 3753m. 2 – Lá vem Reco no paraquedas cor de rosa 3 – Chegou! Na ilha do sul nós descemos pela costa leste até Christchurch, atravessamos o Tiritiri o te Moana e subimos pela costa oeste para Nelson e Picton. Em Christchurch ficamos mais de 24 horas, uma opção prolongada para o nosso ritmo de viagem. Se você for num programa de pacote, do tipo aeroporto-hotel-aeroporto, Christchurch deve ser contemplada com uns três dias. É a maior cidade da ilha do Sul, e é bem equipada para receber convenções. O porto comercial, uma marina e um terminal de petróleo estão agrupados na cratera do vulcão Akaroa. Pegamos o ônibus 28 e fomos até a „gôndola‟, um teleférico que lhe leva ao topo de um monte de lava que constitui a Banks Península. A Banks Península é a bola dendrítica à direita da imagem acima, derramada como lava na borda do oceano Pacífico e resfriada de tal forma que preservou um conjunto de baias endentadas na periferia. Foi construída pela erupção de dois vulcões. As crateras geminadas foram aproveitadas como os portos de Akaroa e Lyttelton. Em 1770, James Cook, comandante do Endeavour, um barco da marinha inglesa com finalidades científicas, mapeou a Nova Zelândia, e deu a esta península o nome do botânico de bordo, J. Banks. No topo do morro de basalto acessado pela gôndola existe um centro turístico e uma galeria que eles chamam de “Túnel do Tempo”, um 156 museu que conta a história da Nova Zelândia e tem no final um pequeno anfiteatro onde um filme de 12 minutos conta a mesma história. A história começa no Mioceno Superior, no filme com uma animação mostrando a erupção, e na galeria com um perfil litológico no basalto in situ. Uma vegetação luxuriante se desenvolveu do Plioceno ao Recente. A chegada dos Maoris ocorreu no Séc.III DC, nas enormes canoas tongiaki, com outrigger e velas de esteira de palha. Foram os primeiros humanos a chegar na ilha; 1500 anos depois chegaram os ingleses. A chegada dos europeus é contada com detalhes e bem documentada. Daí vem a guerra entre as duas etnias, contada rapidamente, e o tratado de paz de 1926. Esta parte final você pode ver romanceada e em casa, alugando numa loja de vídeo o filme “Honra e Liberdade”. 157 . canoa tongiaki, com outrigger e vela de palha Os Netto (Reco,Elaine, eu, Mila, Tica e Henrique) e seus agregados do Oca-Ata-Aruai, equipados para uma saída no Excitor em Paihia 158 MARANHÃO – PIAUI 2008 Mila tirou dez dias de férias e voamos Salvador - São Luis voltando de ônibus via Teresina. Essas férias foram metade turismo e metade „aventura‟, onde aventura quer dizer viajar numa região „terceiro mundo‟ usando os meios disponíveis para o povão. Descobrimos que é tudo na base do ar condicionado, tem carro, moto e barco para alugar em todo canto, o povo é lascivo, simpático, ignorante, pobre e subjugado pelo poderio econômico. O Maranhão e o Piauí são político-administrativamente parte da Região Nordeste do Brasil, portanto sob a jurisdição da Sudene, mas do ponto de vista de geografia física representam uma transição do nordeste semiárido para o norte úmido. O chamado Polígono das Secas, área „protegida‟ por legislação específica, (lei nº. 175, de 7 de janeiro de 1936, e Decreto-Lei de nº. 63.778 de 1968, que delegou ao Superintendente da SUDENE a competência de declarar quais municípios pertencem ao Polígono) tem seu limite oeste numa diagonal que atravessa o estado do Piaui NE-SW, sempre a leste do rio Parnaíba. O rio Parnaíba nasce na Chapada das Mangabeiras, na quádrupla fronteira entre Tocantins, Maranhão, Piaui e Bahia (10° S, 46°W), e faz a fronteira política entre o Maranhão e o Piaui em todo o seu percurso de 1400 km. Para oeste do rio Parnaíba começa um Brasil semivirgem e grandioso. O Maranhão e o Piaui juntos têm 585 mil quilômetros quadrados, algo entre Bahia e Minas Gerais. A bacia hidrográfica do Rio Parnaíba tem 340 mil km2, e está implantada sobre uma bacia sedimentar paleozóica constituída de rochas arenosas distribuídas numa área de 600 mil km2. O contorno em preto representa os limites da Bacia Sedimentar do Parnaíba. As linhas claras são as fronteiras estaduais, que no caso entre o Maranhão e o Piaui coincide com o curso do Rio Parnaíba. A manchinha branca na linha de costa cortada pelo meridiano 43°W é a área de turismo de europeu conhecida como Lençóis Maranhenses. Da foz do Parnaíba até a 159 fronteira do Ceará são 66 km da costa do Piaui. A norte do paralelo de 3°S e a leste do meridiano 45°W existe uma estrutura de turismo funcionando bem o ano todo. Viajando por esta região dá a sensação que o alagoano Manuel Deodoro da Fonseca, quando proclamou a República, estabeleceu um plano estratégico de importar a revolução industrial européia para os estados do sul, onde dominava a oligarquia do café, e preservar os estados do norte para só „desenvolver‟ quando o Brasil tivesse 200 milhões de habitantes. Os turistas estrangeiros (alemães, portugueses e americanos) com os quais nós percorremos os „lençóis maranhenses‟ exultavam com o ambiente preservado, a vegetação primária de restinga no litoral e cerrado mais para dentro, a riqueza e abundancia de água limpa, a diversidade de espécies de palmeiras nativas, que em campos sem cerca começam a ser cultivadas com a nova onda do biodiesel. No momento, o governo do PT deu um chega pra lá na oligarquia piauiense, e está construindo a ferrovia transnordestina, que integrada com a rede antiga da Cia. Ferroviária do Nordeste e a Estrada de Ferro Carajás vai ligar Pernambuco até o Pará, passando em Fortaleza e São Luís. A expectativa da chegada da ferrovia incrementa o plantio de grãos. Os paulistas, paranaenses e gaúchos estão comprando terras no Piaui, onde soja e milho começam a ser plantados em quantidades crescentes, um reflexo do crescimento da soja no Maranhão. O trem facilitará o escoamento dessa produção, e quando pronta, a Transnordestina estará apta a se integrar às ferrovias Norte-Sul, Carajás e à Centro-Atlântica. 160 Os maranhenses e piauienses na santa ignorância lá deles, dizem que tem um inverno de dezembro a maio e um verão de junho a novembro. O que ocorre é que após o equinócio de setembro, quando o sol vem fazer o verão do hemisfério sul, a insolação nesta área equatorial é intensa, as máximas de temperatura aumentam mais de 10°C e ocorrem as chuvas de verão, que eles chamam inverno e os deputados da industria da seca repetem. A Embrapa e a Sudene tem levantamentos que mostram que o período chuvoso estende-se de outubro até metade de abril, „ou até o início de maio nos anos bons‟, e o período de estio ocorre de maio até setembro. A água da chuva se infiltra na bacia sedimentar, e a mitigação da estação de estio é tradicionalmente feita com a construção de açudes, o que atende a interesses politiqueiros, mas quem passa por lá vê que açude não é solução, é um fomento à pobreza e ao subdesenvolvimento. Mas solução existe. A bacia sedimentar do Parnaíba é um aqüífero aberto, com intrusões de diabásio, onde o ciclo anual da água renovável acumula dezenas de milhares de quilômetros cúbicos (1km3=1 bilhão m3) de água doce abaixo do nível freático. Esta água pode ser produzida como se produz petróleo, com a vantagem que é anualmente renovada. Se não for usada, na época das chuvas o nível freático sobe, inunda as planícies fluviais e escorre para o mar. O que pode e deve ser feito é uma cubagem da quantidade de água infiltrada por ano, um programa de desenvolvimento sustentável de campos de água e a implantação de uma infraestrutura de distribuição. O nosso turismo começou em São Luis, uma cidade hoje com quase um milhão de habitantes, implantada numa ilha enorme, quase do tamanho da Baia de Todos os Santos com todas as suas ilhas. Esta ilha de São Luis separa a foz do Rio Itapecuru, do lado leste, da foz do Rio Mearim, do lado oeste, e depois de Marajó é a maior da costa brasileira. O Rio Mearim desemboca na Baia de São Marcos, cuja área e amplitude da maré são o dobro das respectivas na Baia de Todos os Santos. A correnteza na Baia de São Marcos no pico da maré passa de 6 nós, de forma que a navegação ai é saindo na vazante e entrando na enchente. Exceto no canal balizado que dá acesso ao super-porto da Vale do Rio Doce, por onde sai o minério de Carajás, é tudo raso. O Iate Clube nem tem píer de atracação, os barcos ficam encalhados na praia. É a terra dos catamarãs, os meio-barco de quilha não tem vez. Veja acima a flotilha de catamarãs na praia do Iate Clube, e o estaleiro de Gaudêncio na Vila Bacanga. Abaixo, uma biana na maré vazia debaixo da ponte de acesso à Vila Bacanga, e uma vista da maré vazia olhando para noroeste a partir da cidade histórica, no pátio da Capitania dos Portos. Esta área há dez anos era atracadouro de navio! 161 O assoreamento dentro da baia é intenso, e a cidade de São Luís vem crescendo e se modernizando as expensas de enormes aterros. O rio Mearim foi represado a montante, e a megamaré mobiliza o sedimento dentro da baia, o qual é parcialmente removido com dragas para manter os canais e fazer crescer a área urbana. Os bairros de Renascença I, Renascença II e Ponta d‟Areia, onde ficam os hotéis e as Universidades particulares, foram criados assim nos últimos dez anos. A passagem pela cidade histórica, com artesanato e casas azulejadas mal conservadas, não me criou interesse. A única saída rodoviária da cidade e da ilha é para sul, pela BR-135, em pista dupla, bem conservada. A estrada segue paralela à Ferrovia Carajás, de bitola larga, e à Ferrovia do Nordeste, de bitola estreita. Nos 60 km que andamos para sul até Bacabeira, vi dois trens da Vale transportando minério de ferro, cada um com 1km de comprimento e 3 locomotivas. Em Bacabeira, já fora da ilha, a BR-135 entronca com a MA-402, de pista simples e de boa qualidade, a qual segue para leste por 200 quilômetros até Barreirinhas. A MA-402 foi construída por sobre as dunas fixadas por vegetação, e é paralela à costa, 50 a 60 km para dentro. As dunas são quaternárias, tem espessura de dezenas de metros e estão implantadas por sobre os arenitos cretácicos da Formação Itapecuru. Depois que passamos o Rio Piriá, nos afastando da „civilização‟, a paisagem fica deslumbrante. Trinta quilômetros para norte da estrada estão as dunas móveis do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (quatro fotos acima na p.160), e 60 km para o sul fica a estrutura geológica do final do paleozóico, o Arco Ferrer, que foi soerguido há 300 milhões de anos para isolar a Bacia do Parnaíba do Mar de Tethys. Não vou encher o saco com muita geologia, mas esta área para mim é marcante porque foi ai que tive meu primeiro contato com a prática de geologia de petróleo. Em 1964, como estudante de geologia da UFBA, fui estagiar na Petrobras orientado pelo geólogo australiano Warren Jopling no poço PAF-7-MA (Projeto Arco Ferrer nº7, Maranhão). Foram estes poços PAF que comprovaram a estrutura conseqüente da quebra do supercontinente Pangea em Gondwana e Laurásia. Os resquícios do Paleo-Tethys existem até aqui na Bahia, quando o mar interior ficou isolado pelo Arco Ferrer, secou e deixou no que é hoje a ilha de Matarandiba, o depósito de sal que é produzido à profundidade de 1100m pela Dow Chemical. Barreirinhas é um fim de mundo na margem direita do Rio Preguiças, uma vila turística onde termina a MA-402. Lá existe uma pista de pouso onde você pode 162 fretar um monomotor para sobrevoar os lençóis, umas tantas pousadas com ar condicionado e restaurante, e algumas empresas que disputam os turistas para leválos de jardineira (jipe preparado para safári) nas dunas e/ou de voadeira até Caburé, na foz do rio Preguiças. De Barreirinhas você volta para São Luis ou segue para o Piaui com as empresas de turismo. A gringalhada e os paulistas do nosso grupo voltaram. Nós seguimos. Em Caburé ficamos na Pousada Porto Buriti, a única que tem restaurante, gerador a diesel e telefone via rádio. Engraçado, não vi pretos no Maranhão nem no Piaui, exceto um turista paulista. O povo é caboclo ou branco, muitos de olhos claros. O rio Preguiças é da largura do Reno na Alemanha, e é dos pequenos aqui no Maranhão. Por aqui existe um lugarejo chamado Vassoura, e tem esse nome porque o vento na estação de estio varre tudo. As dunas móveis são de areia média, mediana de tamanho de grão entre 1Ø e 2Ø, enquanto que o normal nos ambientes eólicos é de 2Ø a 3Ø, areia fina. As dunas começam logo no pós-praia (backshore), e a Pousada Porto Buriti para não ser soterrada as mantém cobertas plantando salsa. A primeira foto acima mostra as dunas, resultantes do retrabalhamento pelo vento da areia da praia. O tamarineiro da segunda foto é centenário, e se ajustou ao vento 163 que transporta areia média. A terceira foto é a pousada com dez chalés em Caburé, e a ultima é no caminho para Tutóia, para onde fomos pela praia numa Toyota Hylux com a maré vazia: uma placa avisando aos motoqueiros que não entrem no povoado de capacete. No ano passado dois motoqueiros de capacete praticaram um roubo no povoado. Os moradores foram atrás e trouxeram os dois de volta, amarrados pelos pés e arrastados com um jipe. Um morreu, o outro foi socorrido pela polícia de S.Luis que chegou de helicóptero. A vida aqui ainda é tranquila, o caboclo não se aborrece à-toa. Em Tutóia alugamos uma voadeira com skipper e motor de popa e seguimos para o Piaui percorrendo os 40km do delta do Parnaíba. Impressionante e incomum, um super delta alongado paralelamente à costa e sem referências na literatura geológica brasileira! Dada à grandiosidade do que está preservado, imagino que a construção começou pelo menos no Pleistoceno, o rio Parnaíba deixando sua carga e formatando a barra da boca do canal principal no que é hoje a Ilha Grande de Santa Isabel, também referida em outro mapa como Ilha Grande do Piaui. Ai o Parnaíba se divide em dois distributários, um que vai para nordeste com o nome de Igaraçu e outro que vai para noroeste e mantém o nome de Parnaíba. Na saída do Igaraçu para o mar aberto foi construído um molhe de 2,5km, no que deveria vir a ser o Porto de Luis Correa. O lado de barlavento do molhe se mantém profundo, mas o lado protegido, de sotavento e sotamar, foi completamente assoreado em dez anos! Os sedimentos que escapam da planície deltáica pelos canais distributários são parcialmente acumulados na frente da Ilha das Canárias e da Ilha do Caju, compondo uma frente deltáica alinhada com a corrente equatorial. As ondas de leste-nordeste empurram esta areia praia adentro e o vento forte na estação do estio remove parte da frente deltáica para dentro da planície deltáica como dunas eólicas de mais de dez metros de altura. Mais para oeste, na Baia de Tutóia ficam as argilas do pro-delta por sobre o „cascalho de marisco‟, como descreveu Maica, o nosso skipper, naturalista por vocação, neto de índio, gente boa. Maica também nos ensinou e mostrou muito da fauna e flora na área do delta. 1. Molhe em Luis Correa olhando para oeste, e 2. o assoreamento que o distributário Igaraçu fez em dez anos onde deveria ser o porto a sotavento do molhe. 164 3. O mangue sendo recoberto pela frente deltaica: o delta do Parnaíba prograda para o lado, para oeste! 4. Olhando pela proa da voadeira de dentro de um canal distributário, se vê a frente deltáica avançando do mar para dentro! 5. e é retrabalhada pelo vento. 6.Baia de Tutóia e o pro-delta. Veja na linha do horizonte à direita a frente deltáica avançando por fora! 7.Revoada de guarás vermelhos sobre o mangue branco num canal distributário. Atravessando o rio Parnaíba chegamos na cidade de Parnaíba, 170 mil habitantes, a 2ª do Piaui. Nos instalamos na Pousada dos Ventos por duas noites. No dia 8 de março de 2008 saímos numa Mitsubishi L200 da Clip (clipecoturismo.com.br) para rodar no litoral do Piaui. A propósito, o Aurélio não registra parnaíba, mas o Caldas Aulete diz que é uma faca comprida, tipo faca de açougueiro. 165 Esta tartaruga comeu um saco plástico pensando que era uma água viva. Pronto, chegamos na civilização. A leste do rio Parnaíba você já está no mundo civilizado, e apesar de ter gado solto na estrada; da para ir sem grandes problemas no seu próprio carro tanto para o Ceará (Jericoacoara, Fortaleza) pela PI-210, quanto para Pernambuco e Bahia pela BR-343. Em Parnaíba a Clip tem barcos e carros apropriados para lhe mostrar o delta. Ela me havia reservado dois lugares num ônibus leito diurno para Teresina, onde eu pretendia visitar Aurimar, um colega de república no tempo de solteiro em Maceió. Disquei 102 e pedi o telefone. A última vez que eu havia visto Aurimar tinha sido em Florianópolis, em 1980, quando os filhos dele eram crianças de 3 a 4 anos. Eu havia mandado um e-mail para Aurimar e não tinha resposta. Liguei de Parnaíba e atendeu uma criança de uns 3 a 4 anos; quando eu perguntei por Aurimar, ele chamou Vôo... e a ligação caiu. Tentei mais duas vezes sem sucesso. Daí Mila achou que não tínhamos o que fazer em Teresina. - Vinte e oito anos, ele nem se lembra mais da sua cara! - Você está enganada, nós éramos amigos. Chegamos em Teresina debaixo de uma chuva pesada, as bocas de lobo não davam vazão e uma parte da cidade estava alagada. Nos instalamos num hotel e liguei para Aurimar. Nosso encontro, espaçado de uma geração foi emocionante. Mila participou do início da conversa, mas depois se sentiu pouco à vontade com tanta reminiscência. De Teresina continuamos de ônibus para o sul, parando em São Raimundo Nonato, no Parque Nacional Serra da Capivara, a 60 km da fronteira com a Bahia e a 100 km de Remanso, onde o rio São Francisco está represado. Em São Raimundo Nonato alugamos uma moto, e tivemos uma grata surpresa com o Museu do Homem Americano, o resultado da dedicação de uma vida da arqueóloga paulista Niède Guidon que abriu o caminho para que o povo brasileiro possa interpretar sua própria história desvinculada da visão necessàriamente preconceituosa da igreja, da visão de dominador dos colonizadores portugueses e dos palpites apressados de cientistas estrangeiros. Ela classificou o estilo das pinturas rupestres em 240 sítios no nordeste brasileiro, argumentou e conseguiu que a Presidência da República instituísse o Parque Nacional em 1979, criou a Fundação Museu do Homem Americano em 1986, conseguiu que a Unesco declarasse em 1991 o Parque Nacional Serra da Capivara um Patrimônio Cultural da Humanidade. Com financiamento do Ministério da Cultura, do IBAMA e da Petrobras, a FUMDHAM inaugurou no ano 2006 em São Raimundo Nonato um 166 Museu Temático, onde estão expostas as evidências que fundamentam a interpretação da ocupação humana na área há 50000 anos, as mudanças climáticas de 12000 anos, a fauna fóssil de animais de grande porte. O grande chamariz do museu é o argumento da ocupação humana precoce na América. Mas este também é o ponto sujeito à maior crítica pelos arqueólogos tradicionalistas, uma vez que nenhuma ossada humana antiga foi encontrada. O que é datado como mais velho que 23000 anos são fragmentos de pedra lascada interpretados como ferramentas humanas, e restos de „fogueiras estruturadas‟ datadas pelo método da termo-luminescência. A datação com termo-luminescência é baseada no fato que os minerais expostos na superfície da terra, ao serem bombardeados com raios cósmicos se carregam de radioatividade. Conhecendo-se a taxa anual de radioatividade acumulada numa região, pode-se calcular o tempo de exposição do mineral analisado. Quando o mineral é aquecido acima de 350-400° centígrados ele perde a radioatividade acumulada, é como se tivesse zerado o relógio radioativo. Interpretar que uma pedra foi parte de uma fogueira estruturada é dizer que esta pedra foi manuseada numa atividade humana passível de ser datada. Os pesquisadores da FUMDHAM fizeram datar todos os seixos da camada onde interpretaram a fogueira, e constataram que somente aqueles que foram tidos como fazendo parte da fogueira apresentaram resultados compatíveis como se tivessem sido esquentados, o que os levou a duas conclusões: 1. o esquentamento não foi conseqüente de incêndio natural 2. as fogueiras estruturadas eram obras humanas. Com esta conclusão, o pessoal do FUMDHAM passou a postular que o homosapiens migrou da África ou da Europa para a América navegando pelo oceano, e não a pé pelo estreito de Bering durante a última glaciação, conforme a Teoria Clovis difundida na América do Norte nos anos 50 do séc.XX. Museu do Homem Americano: 1. tipos de crânio do homem americano, 2. pinturas rupestres e 3.ferramenta de pedra lascada. 167 Daí pegamos um ônibus e fomos para Remanso, Bahia, na beira do rio São Francisco. Foi o único trecho de estrada ruim em toda a viagem. Nos anos 70 foi feita a construção da barragem de Sobradinho, com 41m de altura, o que criou um lago com 320 km de extensão, 4200 km2 de espelho d‟água (4 Baias de Todos os Santos) capaz de armazenar 34 km3 de água, o que permite a operação de todas as usinas da CHESF situadas ao longo do Rio São Francisco. Obviamente que todas as cidades ribeirinhas foram inundadas e a Remanso onde nos hospedamos é uma cidade com 30 anos. Alugamos um Gol velho e fomos para o cais procurar um barco que nos levasse para o outro lado do rio. Achamos, tanto para Sento Sé, 3 horas de navegação, quando para Xique-Xique, 30 horas rio acima. A Cassia I faz Remanso-Sento Sé toda sexta-feira carregando passageiros a R$15 por pessoa. Pode fretar com Marcolino, telefone 81055683, R$200 a travessia. A Estrela d‟Alva saia no dia seguinte para Xique-Xique, com carga de peixe e um menino doente. Tem como armar redes debaixo da coberta. E a DeniJane saia rio acima dentro de dois dias para buscar cachaça em Minas. Acerta com Joãozinho da Caribé na quadra 3 em Remanso. Mas Mila amarelou. Disse que era muito sujo, se eu quizesse podia ir, ela voltava sozinha de onibus para Salvador 1. Cassia I 2. Estrela D‟Alva 3. Denijane Como companheiro solidário eu abri mão do meu cruzeiro no Rio São Francisco e voltei com ela. Você pode ver nas fotos, os barcos não são luxuosos, mas da pra ir. Agora estou programando uma viagem de 1200 km de carro em abril, pela BR407 até Juazeiro, atravessa o rio S.Francisco para Pernambuco, de Petrolina vai margeando pela BR-428 até Cabrobó onde vai ser feita a transposição. Volta pela BR-110 via Paulo Afonso, Jeremoabo, Cipó. O objetivo é avaliar o rio no trecho Petrolina-Cabrobó, uns 200 km rio abaixo, se tem ilhas e praias apropriadas para armar barraca e pernoitar. Se for aprovado vou programar com Beto e Liana a gente levar umas três canoas canadenses que Beto tem e descer este trecho remando. Vida de aposentado é uma trabalheira! Quer ir? 168 Fernando de Noronha e as Refeno A quebra do Gondwana, o supercontinente do sul, ocorrida no Cretáceo há cerca de 120 milhões de anos permitiu a implantação do oceano Atlântico Sul e o levantamento da maior cadeia de montanhas do planeta, a qual em inglês é denominada de Mid Atlantic Ridge. Esta cadeia sozinha é maior que os Andes +Rochosas+Himalaias, tem forma sinuosa e sofre um desvio notável para a esquerda na altura do equador, latitude zero, desvio este reconhecido pelos geólogos como a Zona de Fratura Romanche. Antes que você desista de ir adiante, a localização da ilha de Fernando de Noronha no contexto geológico vai ser o mais breve possível, e prometo que vou falar da história, dos mergulhos, das praias e das regatas que os pernambucanos promovem para Noronha desde 1986, o ano em que os gringos começaram a testar os satélites que iriam compor o sistema GPS. A Cadeia Meso-Atlântica sobe das planícies abissais a uma profundidade de 4 a 5 km, e alguns picos vulcânicos botam a cabeça fora do nível do mar atual, como por exemplo, Trindade e Martin Vaz defronte ao Espírito Santo do lado oeste da cadeia, Santa Helena do lado leste, Fernando de Noronha 200 milhas náuticas a sul da Fratura Romanche, na latitude 4°S. Para o norte do equador temos do lado oeste da cadeia as Antilhas, Bermuda a 32°N 65°W, e do lado leste Cabo Verde, Canárias, Madeira, Açores, e lá junto ao circulo polar a ilha da Islândia, o local emerso da maior atividade vulcânica no planeta. Tudo isso é constituído por rochas basálticas, que o manto vomita lá de dentro para fazer a crosta oceânica. Não tem nada a ver com os continentes implantados sobre uma crosta de granito, muito mais velha e mais espessa. Noronha fica a 200 milhas de Natal, RN, no limite das águas territoriais brasileiras, e lá o relógio tem que ser adiantado de uma hora em relação a Natal ou a Recife. O arquipélago fica na longitude de 32,5°a oeste de Greenwich, portanto no fuso horário de 30°; têm 26 km2, o dobro da Ilha de Maré na BTS, o suficiente para lá ter sido construído pelos americanos em 1942 um bom aeroporto que transformou a ilha numa 169 base avançada durante a 2ª Guerra Mundial. Esta vocação militar fez com que a ilha fosse um Território Federal de 1942 até 1988, quando os militares foram retirados e a área passou a ser um Distrito Estadual para o qual o governador de Pernambuco nomeia um administrador-geral. Também em 1988 todo o arquipélago até a isóbata de 50m passou a se constituir num Parque Nacional Marinho subordinado ao IBAMA, que mantendo a tradição militar, tem uma lista de 16 „proibidos‟ e 5 „permitidos‟ com autorização, que você acessa após pagar a taxa de preservação ambiental. A TPA para permanência de até 10 dias é de R$34,48/dia, a partir dai sobe num crescente de forma que quem quiser passar um mês vai pagar R$2847,42 (preços de 2008). Quando Gaspar de Lemos bordejou por lá em 1500 levando para Portugal a carta de Caminha, a ilha era desabitada. Em 1504 o rei D. Manuel a doou para Fernão de Loronha, o banqueiro que financiou a expedição de 1503, um cristão-novo que nunca cuidou de ocupá-la. A ilha tornou-se um porto de piratas, tendo os holandeses se estabelecido nela em parte do Sec.XVII. No Sec. XVIII foram os franceses. Em 1737 os portugueses expulsaram os invasores, devastaram a vegetação e construíram 10 fortes, dos quais duas ruínas ainda existem, o Forte de São Pedro do Boldró e a Fortaleza de Nossa Senhora dos Remédios. Até a independência do Brasil não era permitido o desembarque de mulheres! Em 1832 o Beagle ancorou na Enseada de Santo Antonio e Charles Darwin reconheceu as rochas vulcânicas. Em 1938 durante o Estado Novo de Getulio Vargas a ilha foi convertida em presídio político e durante a 2ª Guerra Mundial tornou-se base militar com um aeroporto. Nos anos 70 os pernambucanos começaram a navegar para lá em veleiros de recreio. Em 1984 o Projeto Tamar reconheceu a ilha como um local importante para a reprodução de tartarugas marinhas e nela instalou uma estação de monitoramento. 170 Instituído o Parque Nacional em 1988, o aeroporto militar passou à categoria de civil, recebendo um vôo semanal; a pesca foi proibida e a população residente passou a viver essencialmente do turismo incipiente e do assistencialismo governamental. Em 2002, a UNESCO diplomou o arquipélago como Sítio do Patrimônio Mundial Natural. Fernando de Noronha hoje é um destino turístico com voos diários, centenas de pousadas, uma frota de bugs e motos financiados pelo Banco do Nordeste para taxi e locação aos turistas, três empresas de mergulho com barcos apropriados, equipamento de mergulho autônomo moderno e instrutores credenciados. A população nativa é de 3000 habitantes (IBGE, 2008), e uma pessoa de fora só pode se tornar residente se casar com um nativo ou for autorizada a montar uma empresa dentro do planejamento turístico da ilha. Existe uma agencia do Banco Real com caixa automático para saques e pagamentos, comunicação por telefone e vários pontos de conexão wireless para internet. Não existe uma etnia noronhense e se vê muito pouca criança por lá, sendo de 50% a taxa de mortalidade infantil (IBGE, 2000), absurdamente alta para os padrões brasileiros atuais. Os nativos da primeira geração dos lá nascidos são descendentes dos milicos e dos prisioneiros. Existe um hospital com 9 leitos assentado numa antiga instalação militar, do qual já fiz uso por três vezes conforme relatado adiante. Até o final do Sec.XX a presença feminina era uma pobreza, quantitativa e esteticamente, uma calamidade que vem sendo resolvida com a importação de potiguares. Em compensação a fauna marinha é bela e mansa e você pode ser fotografada junto aos golfinhos, tartarugas e tubarões bem alimentados e amigáveis, tanto quanto um tubarão possa ser. Em 1986 o pernambucano Maurício Castro, professor universitário, perito em navegação astronômica e proprietário do veleiro Brasilia 27, o Quarta-Feira 17, juntou um grupo de velejadores do Recife Iate Clube e organizou uma regata para logo após o equinócio da primavera, quando predomina o vento leste-sudeste, as águas quentes da ilha estão absolutamente límpidas e transparentes e começa o período da estiagem, que vai de setembro a janeiro. Aqui da Bahia foi o Avoante, premiado com o troféu de melhor navegador para Thales Magno Batista. O Mauricio Castro dava um bônus de 5% no rating para quem se comprometesse a não usar qualquer eletrônica para navegação. Em 1987 o evento se repetiu e eu fui com Lucia Botelho no Pasárgada, o Bruce Farr 40 de Tony Pacífico que deveria embarcar em Recife, mas coitado, devido a compromissos profissionais de ultima hora acabou não indo; mandou o velho Ernani „Coca‟ Simões que embarcou em Recife para correr a regata e levar o barco de volta para o Rio. Noronha neste tempo não tinha um mínimo de estrutura para o visitante, e nos limitamos a visitar a pé as praias próximas ao porto de Santo Antonio e a mergulhar nos destroços do vapor Eliane Statatus que se espalham por 50m bem na entrada do porto, sendo que parte da caldeira aflorava na maré baixa. Agora tem uma bóia no local. A possibilidade de abastecer o barco para a volta era muito precária, não 171 havia disponibilidade de água, frutas nem as facilidades de um mercadinho. E a velejada de ida e volta a Noronha com uma estadia de dois dias no porto significa estocar o barco para uma semana! Na volta, lá pelas 23 horas do segundo dia de navegação, a uma hora de distância do porto em Recife, Coca chamou Olinda Rádio no VHF (naquele tempo não existia telefone celular) e pediu uma ligação telefônica para Linéa, no Rio de Janeiro. O comandante da Lady Laura, a super lancha do cantor Roberto Carlos ancorada no Rio Capibaribe, se meteu na conversa no canal 25 e convidou o amigo Coca a atracar a contrabordo, ele ia providenciar um jantar. O Pasárgada ficou pequeno junto da Lady Laura, que dispunha de uma cozinha enorme com câmara frigorífica abastecida, e o jantar foi servido numa mesa com oito cadeiras no salão principal. Nesta 2ª regata Recife-Noronha foi um grupo razoável de veleiros do Rio e de São Paulo pastoreados pelo Nilson Campos do Ana C e em Noronha houve desentendimentos entre os cariocas e os pernambucanos, sendo que estes acabaram por se desentender entre si. O Maurício Castro se aborreceu com o acontecido e em consequência foi velejar no Caribe em 1988 descontinuando o programa de regatas. Mas a semente havia sido lançada, a ilha precisava incentivar o turismo, e o pessoal do Iate Clube do Recife assumiu a organização, arrumando um patrocínio com o Banorte de Pernambuco. A regata passou a se chamar Regata Banorte (veja a marca na camiseta do Maurício na foto). O patrocinador exigiu que a Marinha participasse do evento vistoriando os barcos com referência aos itens de segurança e a Marinha foi além, disponibilizando a partir de 1991, quando a organização da regata passou para o controle do Cabanga, uma ou duas corvetas para acompanhar a regata e dar cobertura aos competidores. Uma ideia infeliz envolver os milicos, eles passaram a querer controlar tudo, passaram a fazer palestras chatíssimas na semana que antecede à regata, exigiam que os barcos se comunicassem com a corveta duas vezes por dia para dar a posição, „organizavam‟ o tráfego dos caíques no acesso ao porto em Noronha. O Banorte foi liquidado, e a partir do ano 2000 tentou-se minimizar a interferência dos milicos, eles disfarçaram levando o navio-escola Cisne Branco para ajudar na cobertura. Tem gente que acha que está melhorando, mesmo que nenhum navegador das antigas tenha mais a expectativa de que venha a ser como no tempo da organização do Maurício. Agora em 2008 os 123 barcos inscritos só puderam largar em regata depois de obterem uma carta de liberação da Marinha! Em setembro de 1989 eu estava namorando com Lena, que se interessou em ir. Estavam inscritos dois barcos da Bahia, o Bola 7, que ia para ganhar, e o Fuzuê, um Velamar 36, que ia passear. Ivan Bola 7 estava com a tripulação fechada, e fui procurar Paulo Brandão do Fuzuê. Eu não o conhecia, mas ele conhecia a mim, e combinamos que iríamos ele, Fleury, Lena e eu até Recife. Conforme fosse nosso relacionamento na viagem poderíamos renegociar a ida a Noronha. 172 A saída de Salvador foi muito dura, com temporal, a vela mestra no 3º rizo, e Paulinho gostou do meu desempenho. Com dois dias de mar Lena assumiu a cozinha de bordo como uma velejadora de estirpe. Após 77 horas de velejada ancoramos às 21:30 de sexta-feira 22 de setembro no Iate Clube do Recife na hora do coquetel da regata. No sábado chegou o restante da tripulação que foi de avião e Paulinho fez o convite formal, que eu aceitei com duas condições: primeiro que ele se dispusesse a correr a regata com seriedade, e segundo que Lena e eu voltaríamos de avião. Tudo combinado fui com Lena ao aeroporto enquanto eles abasteciam o barco e conseguimos passagens de volta para quarta-feira 27 num voo da Nordeste Linhas Aéreas. A largada foi numa raia montada em frente à Boa Viagem, às 10:10 de domingo 24 de setembro, com vento E-SE de 20 nós. Largaram 16 barcos, Bola 7 na frente, seguido de Tito V, Fuzuê, Carcará e Girosplit. Pelo meio da tarde o Fuzuê andando bem estava um pouco atrás do Neptunus, um Fast 41, quando este começou a fazer água e retornou. Pouco depois o Girosplit chamou no rádio dizendo que havia arrebentado o head-foil e ia retornar. No final da tarde vimos crescer o Bola 7, um MB-45, e não conseguíamos entender como é que estávamos nos aproximando dele; mas logo ficou claro, ele também estava voltando. Pela segunda-feira de manhã haviam retornado sete barcos! Ai a nossa genoa rasgou! Tudo bem a bordo, descemos a genoa e subimos uma buja, que puxou bem o barco naquele vento. Colocamos piloto automático e passamos um dia relaxado. Lena, muito compenetrada, competente cozinheira de bordo, pegou linha e agulha e consertou a genoa. O Tito V e o Carcará no maior papo no rádio, todo navio que passava eles pediam a posição e a previsão do tempo. Nós não víamos estes barcos, mas eles não deviam estar longe, porque enquanto eles falavam nós víamos os navios vindo do norte para o sul. Estavam muito otimistas com a quebradeira geral, o Tito V achava que ia ser fita-azul e o Carcará ia tirar o primeiro lugar na classe. Lá pelas 20 horas de segunda-feira o Tito V falou com um navio, e pouco depois nós vimos as luzes do navio, vindo do sul para o norte. Lena virou-se numa comandante: troquem a buja pela genoa, tirem este leme de vento e vão timonear. Como o pessoal fez corpo mole ela ameaçou que não cozinharia mais. Pois bem, trocamos a vela e eu timoneei quase 10 horas seguidas. Quando o dia amanheceu Noronha estava no visual, e vimos com preocupação duas velas na proa. Mas eram barquinhos que não estavam na regata, e logo os passamos. A coisa de 5 milhas da Ponta da Sapata fui chamar a Comissão de Regatas no rádio e não tínhamos mais bateria. Instalamos uma bateriazinha de carro que Paulinho havia levado para numa emergência podermos ligar o motor e chamamos a Comissão, comunicando que estávamos chegando. O Tito V nos chamou e perguntou onde estávamos. Quando eu disse ele expressou de forma muito clara o desalento dos pernambucanos. Até hoje, quase 20 anos depois, quando encontro o Tito ele se lembra. Uma vez eu disse pra ele: você não esquece esse assunto, e ele: quem apanha nunca esquece. Cruzamos a raia às 06:47:42 de 26 de setembro, na condição de fita-azul. Foi festa a bordo, com champagne gelado e tudo. Lena se sentiu mal com a bebedeira de manhã cedo com estomago vazio, e desembarcamos para ela ser medicada no hospital da ilha. Depois alugamos uma moto e fomos para a pousada de D. Pituta, na Vila dos 173 Remédios. Pela tarde percorremos as praias do “mar de fora” (vide mapa acima), com destaque para a Enseada do Sueste, onde fica a sede do Projeto Tamar e onde os barcos se abrigam quando o vento sopra de nordeste, tornando a Enseada de Santo Antônio impraticável como porto. Na quarta-feira pela manhã Lena e eu rodamos de moto pelas praias do “mar de dentro”, todas de areia branca e águas tranquilas com o vento sudeste do mês de setembro. As praias são de fato encantadoras, e hoje as empresas de turismo as vendem como maravilhas do mundo. Para uma descrição detalhada e fotografias recomendo o site http://www.revistaturismo.com.br/Dicasdeviagem/fernoronha.htm. Visitadas as praias seguimos para a base do Morro do Pico, onde deixamos a moto e subimos o Picão até o topo, onde ficava o farol; naquele tempo havia uma escada de barras de ferro enfiadas na rocha. Lá dos 323m de altitude se descortina todo o arquipélago, e é ali que você pode compreender o encantamento da transparência das águas vendo o fundo do mar e os golfinhos nadando na Enseada dos Golfinhos. Descíamos para almoçar quando Lena tocou a perna na descarga da moto... e voltamos para o hospital para medicar. Embarcamos num Bandeirantes da Nordeste às 15:30, fizemos uma conexão para Vasp em Recife e chegamos em Salvador às 19h, guardando a recordação de uma fita-azul, coisa que hoje só é possível almejar com um barco de pelo menos 2 milhões de dólares e uma tripulação profissional. Em 1990 a regata estava em vias de acontecer com poucos barcos, quando foi suspensa porque caiu um Bandeirantes do Governo do Estado de Pernambuco logo após decolar de Noronha no dia 20 de setembro de 1990 às 19:40. Morreram dois tripulantes e dez passageiros. Em 1991 foi a IV Regata Banorte, que não pude correr porque gastei minhas férias numa viagem em junho para atravessar a Sibéria de trem. Mas em setembro Lito Fernandez levou o Curumim para a raia, e num final de semana peguei uma carona e velejei com a tripulação dele até Maceió. Em 1992 Lena e eu marcamos férias na época da regata e fomos no Pinauna 4, um Fast 41. Eu não estava com pretensão de ganhar, e não estava a fim de encher o barco de homens mal cheirosos. Lena concordou em convidar duas ex-namoradas boas tripulantes, Vicka, com quem tive planos no passado de fazer uma viagem de volta ao mundo, e Lizete que foi velejar comigo na Polinésia. A ideia era voltarmos devagar, conhecer o Atol das Rocas, entrar no rio Potengi em Natal e descer costeando, de volta à Baia de Todos os Santos. Embarcaram em Recife para a regata Pedro Bocca, meu amigo e ex-namorado de Lena, Claudinha e Marcio Cruz recémcasados. Vicka montou um esquema de reabastecer o barco com comida congelada feita em Salvador e despachada de avião, que nós pegamos em Recife antes da regata e em Natal quando voltávamos. Entramos no Rio Capibaribe na madrugada de sexta-feira 25 de setembro de 1992. Já estávamos ancorados pelo meio do rio em frente ao Recife Iate Clube, algumas das meninas de banho tomado e preparando uma comida quando aparece Serginho Bittencourt, que estava no Suzy Dear, um Swan 57, e insistiu para que colocássemos o Pinauna a contrabordo deles que estavam no píer. Estava uma correnteza forte de vazante, a quilha do Pinauna enganchou num dos muitos cabos de âncora que 174 estavam em torno do píer e foi a maior confusão. Serginho pulou naquela água imunda com faca e lanterna para safar o barco e se exibir para minhas tripulantes, e depois de tudo acabamos ancorando de novo no meio do rio para dormir em paz. Quando acordei na sexta-feira Lizete já havia preparado um lauto café da manhã e uma recepção para Pedro e Claudinha, com comprimidos para enjoo e regras de comportamento escritas num painel. Márcio Peneirão trafegando com o caíque conseguiu virar e afundar o motor, o que tomou todo o dia dele para limpar, secar e fazer voltar a funcionar. Reabastecemos o barco, participamos da reunião de Comandantes que foi um vexame, com os milicos se metendo a ambientalistas amadores. Fui obrigado a tomar a palavra como velejador sensato e ambientalista profissional e propor novas regras, que foram aprovadas. Fomos jantar dignamente no Porcão, numa mesa que não sacudia e antes da meia noite estávamos embarcados para dormir como justos. A largada da regata foi no sábado às 13:45 em frente à Boa Viagem, ψ=8º08,5‟S, λ=34º53,8‟W. Vento sueste inicialmente 16-18 nós, crescendo no final da tarde para 23-24 nós com rajadas de 30! Ao raiar do dia de domingo 27, com vento de 30 nós, descemos a mestra para segunda forra de rizo. Nas primeiras 24 horas fizemos 185 milhas, e o cabo do rizo quebrou por três vezes. Lá pelo meio dia subimos a mestra toda e deixamos a genoa enrolada a 110% do triângulo de proa, o que não era o ótimo mas ficamos em paz sem que ter que remendar mais cabo de rizo. Ao amanhecer de segunda-feira tínhamos Noronha no visual e estávamos sendo escoltados por um cardume de golfinhos que faziam piruetas em torno do barco; Pedro Bocca levou mais de uma hora filmando os peixes, os pássaros e a aproximação da ilha, o que de fato é um visual encantador! Cruzamos a raia de chegada às 7h 41‟ 29”, sexto no geral e segundo na classe. Nós estávamos inscritos na Classe Aberta A, que incluía os barcos de 40 a 50 pés de LOA e não fazia correção de tempo. O Pinauna tinha LOA 41 pés, e o vencedor na classe foi um Swan 48, o Cangaceiro, que chegou na nossa frente 56‟35” . Às oito e meia estávamos comemorando com champagne gelado ancorados no porto, na Baia de Sto.Antonio, ψ=3º50‟S, λ=32º24‟W, e ficamos ali por dois dias e meio de festas e turismo. Alugamos um bug, visitamos as praias, mergulhamos com os golfinhos e confraternizamos com os outros velejadores. Na quarta-feira 30, às 21:20, após a entrega de prêmios subimos a âncora e seguimos com os alísios de vento em popa para oeste, na direção do Atol das Rocas. 175 A velejada para Rocas durante a noite foi tranquila, em asa-de-pombo com a mestra no primeiro rizo, genoa parcialmente enrolada, vento aparente 10 a 12 nós, piloto automático. Fizemos 68 milhas em 10 horas e de manhã cedo pegamos a poita do Delícia, o veleiro Farr 38 no qual Zeca fazia o apoio à ilha, ψ=3°50,78‟S λ=33°31‟W. O pessoal do Ibama foi a bordo e nos levou para terra no bote deles. A entrada da barreta é com onda e difícil para um caíque pequeno. O pessoal do Bola 7 que chegou meia hora depois não teve a nossa simpatia para conquistar o pessoal do Ibama e não desembarcou. O fundeadouro é aberto, desconfortável, e nos avisaram que à tardinha chegam os pássaros e fazem o maior barulho. Às 15 horas deixamos a amarração e saímos em orça apertada para Natal, 140 milhas para SSW. Atracamos no píer do Iate Clube de Natal no início da tarde do dia 2 de outubro, lavamos o barco com água doce e fomos para uma amarração. Muito simpática a recepção do clube para o visitante. Marcio e Claudinha desembarcaram e voltaram de avião para Salvador. Pedro havia desembarcado em Noronha. Dia seguinte era dia de eleição e passamos nos Correios para justificar a ausência eleitoral. Tínhamos alugado um bug „Selvagem‟ e fomos para as praias do norte e as dunas de Genipabu. No domingo dia 4 levantamos vela ao meio dia e seguimos 80 milhas para SSE, no contravento, até Cabedelo, onde nos esperava a tripulação do Cangaceiro, que levaram Vicka e Lizete para compras. O Pinauna estava molhando dentro pela gaiuta de proa e o inglês Ryan, dono de um estaleiro e do trimarã „Jeitinho‟ atacou o problema. Este inglês diz que coisa difícil ele faz rápido, o impossível demora um pouco. Cabedelo, no estuário do Rio Paraíba, é um local bem protegido, bom para deixar o barco em caso de necessidade. Dia 6 de outubro, quando o sol já havia passado o equador para fazer o verão do hemisfério sul há duas semanas, e o vento já havia rondado para nordeste, saímos a barra de Cabedelo às 10 horas, dobramos o Cabo Branco, no extremo oriental do Brasil, e a velejada para o sul-sudoeste ficou macia, com vento e corrente favoráveis. Mas à noite refrescou e deu trabalho; passamos direto por Recife chegando a Maceió dia 7 à tarde. São 200 milhas de João Pessoa a Maceió, e cheguei mole e resfriado. Vicka e Lizete desembarcaram e retornaram de avião para Salvador. Silvia pegou a Lena e a mim de carro e nos levou para jantar no Divina Gula. 176 Dia 8 Lena foi às compras para reabastecer o barco e eu fiquei a bordo descansando e me recuperando do resfriado. Dia 9 já estava bom e largamos ao amanhecer para o trecho final até Salvador, quase 300 milhas até o AIC, que fizemos em pouco mais de 48 horas. Este trecho com só duas pessoas a bordo foi um passeio, com pouca vela, sem pressa, curtindo o finalzinho das três semanas de férias. Navegamos bem longe de terra para não ter que nos preocupar com barcos de pesca sobre a plataforma continental. Quando acordei pela manhã do dia 10 vasculhei o horizonte de binóculo e vi um veleiro vindo pela popa, bem na nossa esteira, só com vela mestra e motor. Chamei no rádio mas ele não respondeu. O vento estava fraquíssimo e ele logo nos alcançou quando tomávamos o café da manhã no cockpit. Era o Suzy Dear, com Serginho Bittencourt, Thales Magno Baptista e mais dois tripulantes. Eles desligaram o motor e fomos derivando juntos, Serginho fazendo a maior festa. Fizeram fotos e já estavam com planos de abordar o Pinauna quando chegou um ventinho e começamos a nos afastar. Eles abriram a genoa mas naquele ventinho fraco o Pinauna foi orçando mais e deixando o Swan pesadão mais arribado para trás, de forma que em uma hora não nos víamos mais. Esse povo tem mania de viajar vendo terra, o que é um problema a ser tratado no psicólogo. Viajar longe de terra é mais seguro, mais confortável, fora das rotas de tráfego, você pode dormir à vontade e se chegar um temporal tem espaço suficiente para correr com o tempo até que ele passe. Chegamos no AIC no domingo dia 11 de outubro pela manhã e Vicka, Liz e Pedro Bocca foram nos buscar, já com o filme da regata editado, com trilha sonora e tudo. Daí levei quatro anos sem voltar a Noronha. Quando o Banorte deixou de ser o patrocinador oficial, pouco antes de quebrar, a regata passou a se chamar REFENO mantendo a numeração desde a organização primeira de Maurício em 1986. Em 1993 ajudei a levar o LeParun até Recife, e minha filha Liana participou da tripulação de Rosa Garcia na VI Refeno. Liana me contou que foi contravento fraco com muitas cambadas, um caso raro no mês de setembro. Em 1996 foi o ano que embarquei Mila, com quem estou casado até hoje – cada um na sua casa, como devem fazer os casais sensatos. Em 1997 me aposentei da Petrobras e passei a velejar com mais frequência, tendo atravessado o Atlântico quatro vezes, uma delas com Mila, em 2000, na Regata do Descobrimento (LisboaPorto Seguro), e voltado a Noronha nove vezes, duas delas com Mila, e duas outras fora da época da regata. Em 1997 fomos Rose, Lica, Mila e eu até Recife no Bandavuô, um Beneteau 345, quando embarcou Felipão, o proprietário. Rose havia providenciado um par de alianças, e quando navegávamos em águas internacionais eu fiz valer, a pedido, minhas atribuições de Comandante, e casei ela com Felipe, com papel assinado e testemunhas! Essa é uma das responsabilidades de um comandante de barco, a bordo ele é 177 poder executivo, legislativo e judiciário! Mas num veleiro é também marinheiro, mecânico, desentupidor de latrina, eletricista, encanador, e se for realmente competente pode ser até cozinheiro. Neste ano de 97 o pessoal laboré desembarcou todo em Noronha e voltei em solitário no Bandavuô, uma delicia de velejada. Em 1998 meu primogênito André voltou para trabalhar em Salvador, comprou um veleiro e já foi duas vezes a Noronha. Em 2002, ano que minha neta nasceu, Liana convenceu o marido a comprarem um veleiro. Quando Lara, a neta, fez um ano, ganhou um optimist, nem que fosse para servir de berço, e com três anos já parecia uma macaquinha saltando com muita naturalidade dentro de um barco. Em 2006 aluguei um catamarã de 50 pés para levar a família toda na XVIII Refeno, no intuito de que Lara ganhasse o prêmio de „tripulante mais nova‟ na regata. Mas o programa não vingou, o fulano que me alugou o catamarã roeu a corda e não honrou o compromisso, e agora Lara já está muito velha para ganhar este prêmio que vai ficar faltando na minha galeria de troféus! Com a cobertura da mídia que a Refeno obteve, o Cabanga passou a contar com um numero grande de patrocinadores de peso: Petrobras, Governo de Pernambuco, Celpe, Prefeitura do Recife, Skol, Gol Linhas Aéreas, Baterias Moura, bancos, empresas menores diversas... e organizar as regatas passou a ser um bom negócio. Com mais organização passou a haver mais inscrições, e agora em 2008 foram 123 barcos inscritos em 5 classes: ORC, RGS a-e, Multicasco a-d, Aço e Aberta a-b. Com exceção de quem se inscreve na classe ORC (Offshore Racing Council), a maioria dos outros vai passear e fazer festa. A inscrição na regata custa R$300 por tripulante, o que inclui a TPA de Noronha até a quinta-feira. No total são distribuídos cerca de 50 prêmios, e este ano o designer fugiu da estilização dos golfinhos. E por último vem a grande atração do arquipélago: o mergulho nas águas equatoriais. O clima é oceânico tropical com temperatura média acima de 25°C. Chove de março a julho, quando a ilha estoca água no Açude do Xaréu (está para ser ampliada, de novo, a planta de dessalinização da praia do Boldró). A circulação oceânica anti-horária do hemisfério sul promove uma corrente para oeste empobrecida em matéria orgânica na área do arquipélago, e como consequência a flora marinha é pobre quando comparada com a da costa brasileira. Em compensação, e por esse mesmo motivo, as águas são limpas e transparentes, bem no curso da corrente equatorial que traz os cardumes migratórios sazonais. O arquipélago de Fernando de Noronha reúne sítios 178 ecológicos específicos para uma fauna marinha exuberante. Os biólogos do Ibama e do Projeto Tamar estudam esta fauna em trabalhos científicos padrão Brasil, e seus resultados são apresentados aos turistas todas as noites no Centro de Visitantes, próximo à sede do Ibama. Sítios ecológicos selecionados constituem os 28 pontos de mergulho do Parque Nacional Marinho, incluindo 3 naufrágios: o do porto, na Enseada Santo Antonio (foto na p.172), o naufrágio do Leão, e o da corveta Ipiranga (dizem as fofocas que proposital), este ultimo a 62m de profundidade. Você pode nadar e mergulhar em apneia, de máscara, tubo e nadadeira, por perto das praias e pelo naufrágio do porto. Existem vários pontos para aluguel destes equipamentos a R$15 por dia. Mas podes crer ser uma perda lastimável ir até lá e não sair para um mergulho, diurno ou noturno, com uma das três empresas que disputam os visitantes. Os pontos de mergulho autônomo são classificados em função da credencial do mergulhador. Mas se você não for credenciada, se nem sequer souber nadar, paga R$220 por um batismo e sai com um instrutor, desce a 10-15 metros, goza do silêncio do fundo do mar, de ver as bolhas subindo, de ser fotografada brincando com uma tartaruga e talvez de sentir medo quando vir um tubarão. O preço acima inclui tudo: roupa de neoprene, colete, máscara, garrafa, válvulas, regulador, manômetros, nadadeiras, cinto de chumbo, instrutor, barco para lhe levar ao ponto de mergulho e translado da pousada ao porto. Se estiver embarcada eles lhe pegam no barco. Agora prepare seu cartão de crédito, porque o fotógrafo da Ciliares vai lhe cobrar R$30 por cada foto. E você não vai resistir! 179 2009, LUA DE MEL NO CARIBE: CUBA E PANAMÁ Cuba está pobre, mas limpinha, e quem vai como turista internacional pagando em CUC (moeda cubana conversível, que vale 24 pesos cubanos ou 1,25 dólar americano) fica bem instalado em cerca de uma centena de hotéis e resorts espalhados pela ilha; tem carro coreano novo para alugar, veleiro tripulado para grupos e lancha com equipamento de mergulho; turista come quase como se estivesse no Brasil. O chato é que só estrangeiro desfruta destas facilidades, porque depois que a União Soviética acabou, a ilha vive de turismo, mas um engenheiro local ou um varredor de rua ganham igual, 500 pesos (26 dólares) por mês mais uma cesta básica. Policia armada ganha 1000, dá expediente de dois turnos de 6 horas e folga no dia seguinte. Todos têm emprego e ninguém trabalha muito, vivem se encostando e conversando alto; todo o sistema produtivo é estatal, e todos os cidadãos são funcionários públicos; os do partido único são fiscais dos funcionários. Em Havana sempre tem alguém tocando e cantando atrás de gorjeta. Aposentado ganha 240 pesos mais cesta básica. Não existe poupança, nem crédito, nem lojas, nem cocacola, nem outdoor, exceto para a propaganda política. O parque industrial é paupérrimo. Não vi nem soube de ninguém que tivesse computador particular. Visitei a Universidade e não achei ninguém da geologia. A internet disponibilizada para o turista é de 35 kb/seg. Ainda assim o povo é tranquilo e sorridente. Não existe analfabeto, mas os letrados são fracos em interpretação de texto. Em Varadero, a 200 km de Havana, a densidade demográfica é bem menor e o cubano é orgulhoso, mas sempre encostado: você que monte seu equipamento de mergulho alugado, depois lave tudo com água doce e pendure. Em Havana, com mais de dois milhões de habitantes, morando mal para os nossos padrões, o orgulho dá lugar à inveja e a uma mendicância disfarçada, todo mundo „chorando mágoa‟. Mas não dá para julgar Cuba pelos nossos valores. Eles são sedentos de autonomia, foram dominados pelos espanhóis por 400 anos, até o final do sec. XIX, quando o grande herói lá deles, o Jose Marti, fomentou a guerra de independência. A coisa já estava encaminhada quando os Estados Unidos se meteram e fizeram um acordo com os espanhóis, passando a dominar a ilha até bem depois de concluída a 2ª Guerra Mundial. Daí veio o advogado Fidel Alejandro Castro Ruz e logrou a independência em 1959. Desapropriou os estrangeiros, montou um socialismo democrático subsidiado pela União Soviética e apoiado pela população. Ficou ainda uma pedra no sapato, uma base naval dos EUA no lado sudeste da ilha, na baia de Guantánamo, um saco com 10 milhas de profundidade, refugio para furacão. Quando a União Soviética acabou em 1991, Cuba experimentou uma recessão econômica, da qual está se recuperando agora no sec.XXI com o turismo. Para retirar o dólar americano de circulação e praticar o turismo internacional, o Banco Central de Cuba criou o CUC, o cuban currency; quando for para lá leve euro que não é taxado para cambio. O povo em geral está esperançoso que o novo governo dos Estados Unidos suspenda o embargo e eles passem a ter soberania e desenvolvimento. Na semana que passei lá, houve dois encontros internacionais de governos americanos intensamente noticiados na televisão: um em Cumaná, Venezuela, liderado pelo presidente Hugo Chaves, com a presença de Raul Castro, de Cuba, onde foi criado o SUCRE (Sistema Único de Compensação Regional de Pagamentos), a moeda virtual que pretende substituir o dólar na integração latinoamericana; e outro em Port of Spain, Trinidad e Tobago, com a presença do negão todo-poderoso Barack Obama, a 5ª Cúpula das Américas, onde os bolivarianos 180 cutucados por Lula estão cafetinando a relação Estados Unidos – Venezuela – Cuba. Foi uma semana tranquila em meio aos festejos do cinquentenário da revolução de 1/1/1959. Cuba tem área semelhante à de Pernambuco, um pouco mais comprida e mais fina, com uma população um pouco maior, 11 milhões. A água do mar é um pouco mais fria que na Bahia, e a ilha é toda de calcário e vulcânicas. Na estrada de Varadero para Havana, viajando 200 km pela costa norte num ônibus chinês novinho a 90 km/h, pude observar calcários possivelmente Jurássicos fortemente dobrados com mergulho para norte, capeados por rochas vulcânicas. Torres de perfuração e poços bombeados na beira da praia, provavelmente direcionais, para objetivos na área offshore. Quando passa da província de Matanzas para a de Havana, a estrada está implantada sobre calcários possivelmente Terciários com relevo cárstico e mergulho fraco para oeste. A ilha deve ser o resultado de um empurrão da placa do Caribe para norte quando da abertura do Atlântico. Parece-me razoável esperar uma bacia petrolífera foreland na costa norte de Cuba. A estrutura geológica da ilha não parece ser simples, e não existe uma plataforma continental. Não creio que os cubanos tenham cacife nem preparo para explorar petróleo em águas profundas. Isto aqui se afigura como uma tarefa para a Petrobras. 181 As duas fotos acima mostram a Baia de Havana, com o porto no fundo, e a entrada da baia, protegida com o Forte dos Tres Reyes Del Morro, que dispara um tiro de canhão todas as noites às 21h para lembrar o toque de recolher no tempo dos piratas. O acesso a Cuba mais simples saindo do Brasil é feito pelo Panamá, voando Copa Airlines que tem voos diários saindo de São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Manaus em Boeing 737 configurados com classe executiva. Não precisa de visto, eles não carimbam seu passaporte, usam uma „tarjeta de entrada‟ que custa US$20 e é obtida pela sua agência de turismo local. Desde 1 de janeiro de 2000, quando a Cidade do Panamá passou para a soberania do Panamá que brasileiro não precisa mais de visto de entrada, só vacina para febre-amarela, uma das heranças deixadas na América pelos colonizadores europeus que transportaram o Aedes aegypti com os vírus da febre amarela e da dengue, da África para cá. O povo no Panamá comunga com os cubanos uma aversão pelos americanos que os subjugou por décadas, aliás, uma atitude de antipatia que ficou worldwide com a globalização do capitalismo. Essa história começa no sec.XIX, quando o Conde Ferdinand de Lesseps resolveu repetir o feito napoleônico de juntar dois oceanos. É esse veinho ai acima, o da direita. Vou incluir aqui um pouco da história da Idade Contemporânea que pesquisei como dever de casa antes de viajar. Afinal, lua de mel também é cultura. No final do século XVIII o Império Frances dominou a Europa e a África Mediterrânea até o Egito. Napoleão Bonaparte, na mesma época que escorraçou a corte portuguesa para o Brasil, se interessou em restaurar uma ligação marítima do 182 tempo dos faraós egípcios, do Índico para o Atlântico, e os franceses fizeram o Canal de Suez,uma ligação aberta toda ao nível do mar. Quase meio século depois de inaugurado Suez, os franceses se aventuraram a abrir o canal do Panamá, também ao nível do mar, a exemplo do sucesso anterior. Mas ai descobriram que o buraco era literalmente mais embaixo, ou mais acima, sei lá. Pelo final do Sec.XIX os franceses já não mais dominavam a Europa. Com a revolução industrial inglesa o mundo passou a ser dominado pela frota britânica, movida a vapor, que inclusive já havia se apossado da segurança e do pedágio no Canal de Suez. Antes da 1ª Guerra Mundial os americanos lograram incitar o povo do Istmo a pleitear independência da Colômbia, com apoio militar, e em recompensa ficaram com o direito de abrir e operar o canal que os franceses haviam começado. Pagaram aos franceses US$40 milhões pela massa falida que os franceses avaliavam em US$109 milhões. Deram um cala-boca de $10 milhões para os panamenhos recém-independentes da Colômbia. Foi nesta época que compraram o Alasca dos russos por $7,2 milhões. As obras do Panama Canal custaram $385 milhões. Hoje um navio de 80 mil toneladas paga $150.000 para passar. Um veleiro pequeno paga na agencia do Citibank próxima ao Iate Clube $500. The City never sleeps! Está em andamento o projeto panamenho de ampliação do canal para operar navios de até 150 mil toneladas, com um investimento de $5 bilhões no período 2007-2014. O projeto americano não mais pretendia unir o Atlântico, com micro-maré de 0,2m em Colon, ao nível do mar com o Pacífico 24 cm mais alto (variação no campo gravitacional do geoide) e com mega-maré de 5m em Balboa, no Golfo do Panamá. Foi escavado o maciço vulcânico da parte central do istmo e construído o lago Gatun para represar as águas da bacia hidrográfica do rio Chagres na cota de +27m, aproveitando as escavações que os franceses haviam feito. Foram instaladas ferrovias para remover o entulho e combatido o mosquito da febre-amarela que o médico cubano Juan Carlos Finlay havia diagnosticado na época como o transmissor da doença. O lago Gatun passou a ser controlado por eclusas dos dois lados; do lado do Atlântico a eclusa tripla abre para o canal de acesso com 5 km de extensão até às águas profundas no Mar do Caribe, onde foi construído um molhe gigantesco para proteger o porto dos fortes ventos da área. Do lado do Pacífico as eclusas do lago Gatun abrem para o lago Miraflores, na cota de +13m, e daí para o canal de acesso ao mar aberto. 183 O Istmo do Panamá passou a existir somente há 3 milhões de anos, quando o Australopitecus africanus, o „elo perdido‟ na evolução dos símios para o gênero Homo, passou a adotar uma postura bípede na África, época em que a Placa Tectônica do Pacífico acavalou a Placa Tectônica do Caribe. Essa Placa do Pacífico, sempre intrusa desde o Terciário Médio, vem empurrando o continente americano, numa velocidade equivalente ao crescimento dos seus cabelos, e durante o Mioceno (15 MA) levantou a cadeia dos Andes e sua continuação pela América Central e América do Norte até o Alasca. A passagem que unia o Pacífico ao Atlântico foi fechada pelo istmo do Panamá, o que criou uma grande mudança no clima e na circulação dos oceanos, principalmente na Europa que passou a se aquecer com a Corrente do Golfo, que leva a água quente do equador pelo Atlântico Norte em circulação horária. Os panamenhos e os americanos nunca se amaram, e chegaram a romper relações diplomáticas durante a guerra fria. Em 1977 assinaram um novo tratado, e em 31 de dezembro de 1999 o canal passou para a soberania e operação dos panamenhos. Agora você pode visitar o canal como turista sem visto americano. O Panamá hoje tem 3 milhões de habitantes, metade na Cidade do Panamá, que era parte da Zona do Canal, de domínio americano até 1999. A outra metade são índios e mestiços, e parece que o interior do país é „selvagem‟, uma necessidade para manter a floresta e a água, que é a riqueza local. Cada operação de passagem de navio drena 200 mil m3 de água do lago para o oceano. Isto é equivalente a dois minutos da vazão do Rio São Francisco, que é muito mais possante que o Chagres. No ano passado foram feitas 14000 operações, a um preço médio de US$90.000/navio. Há uma pressão do comércio mundial para aumentar a demanda, o que pode tornar o sistema insustentável. No projeto da ampliação, o novo sistema de eclusa, com três comportas laterais, vai economizar água. Observações finais para quem pretende visitar Cuba: 1. Com a aposentadoria de Fidel aos 82 anos, a disputa pela sucessão é o tema principal dos interesses estrangeiros na ilha. Os sempre ávidos em expandir mercado e os exilados de Miami trabalham por uma virada no regime. A implantação do cuban currency pode ter sido uma boa solução na cabeça dos economistas, mas dividiu a sociedade em classes: a. os que têm acesso aos CUC, os pesos conversíveis que são usados para comprar eletrodomésticos, gasolina e produtos 184 importados; b. os que ganham em peso cubano, que serve para pagar o ônibus e os produtos da cesta básica descritos nas cadernetas de racionamento, 2. De julho a novembro a ilha é atingida por furacões. O ano passado foram três. Quem vive submetido a um stress dessa magnitude tende a achar que todo o resto é secundário. Os hotéis, principalmente nos telhados, são preparados para furacão. Os barcos ficam protegidos em canais paralelos à praia e construídos no „tempo do capitalismo‟ pelos Dupont e Al Capone. Eram escavados na profundidade desejada em terra e depois abriam um dique que os inundava a sotavento dos manguezais. 185 2010 - CRUZEIRO AUSTRAL Duas semanas num navio grande, desses “de luxo”, de 2000 passageiros, custam metade do preço de uma semana num resort da Costa do Sauipe. O que faz ser tão barato é a logística. A tripulação é de 800 pessoas, toda a peãozada é selecionada e contratada num paraíso escravagista do terceiro mundo: Filipinas, Índia e Caribe. O pessoal que decide é europeu ou norte-americano, umas vinte pessoas, incluindo o staff de engenharia que faz o navio funcionar, a direção de hotelaria e a direção de cruzeiro. O segundo escalão, poliglota, que lida diretamente com os passageiros, contém gente do mundo todo. A língua oficial do navio é inglês. Fora da zona tropical o navio só navega no verão, entre os círculos polares norte e sul. Quase metade da clientela é de velha e velho piripopélio (septuagenário), classe média do primeiro mundo, para quem é mais barato e divertido ficar passeando de navio do que se instalar num asilo. Para o pessoal de meia idade com crianças, tem creche e piscinas aquecidas. No Norwegian Sun, da NCL, que viajamos dessa vez, são doze andares, doze restaurantes e 28 elevadores para passageiros, e na parte interna sem carpete, only for crew, uns tantos outros elevadores para o serviço. A ponte de comando é inacessível, e em todo embarque, inclusive nas inúmeras paradas para shore excursions, todo mundo passa por identificação, detector de metais e raios-x. Tudo é limpo e eficiente. Nos portos onde o navio não atraca num píer, são abertos no 3º andar, ao nível da água, dois píer basculantes para atracação dos botes salva-vida, de forma que todos que queiram, inclusive os de muleta e cadeira de rodas, desembarcam sem atropelos. O navio não vibra e praticamente não balança; na maior parte do tempo é como se você estivesse num resort em terra. Mas tenho que dizer, essa não é exatamente a minha praia! Quinze anos atrás naveguei pela Terra do Fogo num navio pequeno, para cem passageiros. Ainda hoje um navio pequeno, com tripulação chilena, custa por passageiro o dobro do preço do grande, para metade do tempo. O pequeno só tem um restaurante, sacode e eventualmente aderna. Mas você desce num bote inflável nas geleiras e a ponte de comando é aberta aos passageiros. Para quem é do ramo e quer sentir o ambiente, o melhor mesmo é navegar num veleiro polar, como o Kotik que ia à Antártica três vezes por ano no verão, sacudindo e molhando, com dois sanitários para todo mundo, a um custo de mais de 5 vezes o que você paga no navio „de luxo‟. O que dá suporte a um pensamento muito meu: dinheiro só compra coisa barata. Velejando no Kotic com Oleg e Sophie, você aprende o que é caro. Com a vivência de 30 anos nas altas latitudes, ele diz que no mar, se algo pode dar errado vai dar, por isso você tem que premeditar suas atitudes; um erro no mar é cobrado imediatamente. Oleg diz que num veleiro não existe mentira. Você não pode chorar e dizer: "eu não sabia”, etc. Tem que ser responsável: errou, dançou. O veleiro é sua interface com o mar. Aqui não há dengos, nem corrupção, nem despachantes (sic), e é este tipo de ambiência que traz aprendizado e boas recordações! Deixando estas filosofadas de velejador, vamos passear de Norwegian Sun. No embarque, em Buenos Aires, eles retém seu passaporte porque ao entrar na Inglaterra (Falklands) e Chile, você nem toma conhecimento das formalidades de imigração. 186 Logo depois que deu entrada no último pais a ser visitado, a babá devolve seu passaporte todo carimbado, neném. Nas duas semanas foram oito paradas diurnas de 7 a 12 horas, onde são oferecidas 76 excursões (city tour US$80 > vôo para almoço na base chilena da Antártica, US$2600), com três níveis de dificuldade: 1, fácil, 2, moderada e 3. pesada, que envolve esforço físico prolongado como subir ladeira em terreno irregular. Onde fui amarrar meu jegue! A largada de Buenos Aires foi antes do por do sol, com lua cheia. Deu para ver a alegria dos hermanos velejando no verão, naquela água marrom sempre rasa. De Buenos Aires a Montevidéu, são 150 milhas náuticas pelo estuário do Prata, 11 horas de navegação onde só existe profundidade maior que 10m no canal balizado. Durante o jantar André e eu tivemos a impressão que o navio tocou o fundo do canal; a micromaré ainda tinha duas horas de enchente. Ninguém mais notou! O acesso ao porto de Montevidéu é, como em Buenos Aires, por um estreito canal balizado. Quando acordei o navio estava já atracado no cais. O Uruguai tem área de pouco mais da metade do Rio Grande do Sul, e a população é 1/3 da gaucha. É muito plano, com extensas pradarias (pampas) onde desenvolve-se a principal atividade econômica do país: pecuária. O índice de pobreza é menor que no Brasil, a escolaridade é obrigatória; a partir do sexto ano os uruguaios aprendem português na escola. O povo é simples, simpático e sem agressividade. Na segunda metade do Sec.XX o país tornou-se a „Suíça da América‟, com uma legislação favorável à implantação de instituições financeiras, e é hoje a sede do Mercosul. Bem na entrada do oceano para o Rio de la Plata, 130 km a leste de Montevidéu, está o balneário uruguaio de Punta del Este, que agrega a renda do turismo no país, com luxo e cassinos. A parte norte do Uruguai é a borda sul da Bacia Sedimentar do Paraná, onde afloram os basaltos que capeiam esta bacia, e a parte sul, onde vive a grande maioria da população uruguaia, é geologicamente de rochas metamórficas préCambrianas. Os basaltos do Cretáceo ocorrem também por sobre o embasamento pré-Cambriano entre Montevidéu e Punta del Este, e devem ocorrer para além do estuário do Rio de la Plata. A implicação disto é que é possível que ao longo da costa do Uruguai, esteja off-shore, por cima do basalto, a continuação da bacia de Pelotas, e a Petrobras, que atua na distribuição de combustivel no país, já tem a concessão de dois blocos para exploração e planos para operar uma refinaria sub-utilizada em Montevidéu. No final da tarde largamos de Montevidéu, navegando 60 milhas para este-sudeste em canais balizados, até alcançarmos a isóbata de 20 metros; dai o navio seguiu rumo sul por 100 milhas, saindo da área de influência do estuário do Rio de La Plata; vento WNW 19 nós, temperatura 21°C. Daí aproamos para sudoeste, para 187 a próxima parada em Puerto Madryn, uma península com porto protegido a 43°S 65°W. Foram 42 horas de navegação para cobrir 720 milhas. A esta altura já conhecíamos bem o navio-resort, havíamos atrasado o relógio por uma hora, explorado alguns restaurantes e freqüentado o teatro de bordo. André e eu começamos a farra do gamão no bar de fumantes do deck 11. No terceiro dia do cruzeiro assisti um filme da aventura sobre Shackleton, o irlandês que em 1916 perdeu o Endurance no Weddell Sea, perto da península Antártica, velejou 800 milhas em 16 dias num bote de 23 pés até a Geórgia do Sul, e após 17 meses na aventura conseguiu trazer a tripulação de volta. Quatro anos depois morreu lá pelas Falkland com quase 48 anos. O filme não mostrou, mas em 2007 pesquisadores holandeses acharam na Antártica, cinco caixas de uísque que pertenceram a Shackleton, o Pinguço: (http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/02/100205_whiskyexploradorg.shtml) Às 08:40 do quarto dia de cruzeiro estávamos atracados por BB no cais de Puerto Madryn. André, Gilca, Silvio e familia e Gugu Pedreira e familia foram ver os pinguins e os mamíferos marinhos da família dos Pinipedes (focas). Aprenderam que esses mamíferos carnívoros, como os golfinhos, não tem orelhas externas, tem forma de torpedo e incluem uma diversidade grande de espécies, popularmente conhecidas como foca, morsa, leão marinho, elefante marinho, etc. O volume de sangue do seu corpo é, proporcionalmente ao tamanho, muito superior ao de qualquer mamífero terrestre e, por esse motivo, as focas conseguem armazenar grandes quantidades de oxigênio. Quando mergulham fundo, contraem alguns vasos sanguíneos mais importantes para que a circulação do sangue arterial fique dirigida ao cérebro, as pulsações descem de 100 para 10 por minuto, de forma que um elefante marinho pode ficar até 80 minutos sem respirar e consegue mergulhar até 1700 metros de profundidade! Já os pinguins são aves adaptadas à vida marinha, que não voam, mas nadam embaixo d‟água na velocidade de um submarino e tem glândulas dessalinizadoras que lhes permite beber água salgada. São cheios de arte, e tem até uma pegadinha a respeito deles: porque os ursos polares não pegam os pinguins? Porque um vive no hemisfério sul e o outro no norte! O pessoal voltou da shore excursion com um zilhão de fotos, André com uns 2 kg de amostras de solos da Patagonia para a coleção do IGEO/UFBA. Quando eu era da idade dele fazia a mesma coisa, mas dessa vez desembarquei com Mila e fomos a uma loja de náutica onde compramos umas bujigangas e ampolas lança-pimenta de defesa pessoal, que não vende no Brasil. Depois fomos à praia, de casaco e bota, conversar com a professora que estava com a turma de estudantes de maiô e calção aproveitando o verão para uma aula na praia. Desatracamos de Puerto Madryn às 18 horas, rumo SE para o arquipélago das Falklands, formado por duas ilhas principais, que cobrem uma área equivalente à 188 metade do estado de Sergipe: Gran Malvina a oeste e Soledad a leste, onde se situa Port Stanley. O arquipélago das Falklands inclue centenas de ilhas menores, com destaque para Geórgia do Sul e Sandwich do Sul. Esta feição geográfica, mais as milhares de ilhas que constituem a Terra do Fogo, a sul da latitude 52,5°S quando acaba a parte continental da América do Sul, Patagônia, na entrada do Estreito de Magalhães -- são consequentes da movimentação tectonica entre a placa sul-americana e a placa pacifico-antartica, formando este arco de ilhas imageado no Google e desenhado no mapa abaixo. Em Port Stanley, o navio ancorou no fundo de um saco no extremo nordeste da ilha Soledad (East Falkland), em 11m de profundidade, proximo ao aeroporto, com muita nebulosidade. Vento NE 23 nós, temperatura 9°C, pressão 995mb, caindo. Pela tarde o vento rondou para W mas não passou de força 7. O fuso horário aqui é o mesmo de Brasilia. Descemos nos tender (barco salva-vida, de 12m, dois motores diesel, capacidade 120 passageiros) que passam num canal de 250m de largura e chegam numa laguna onde existe um pier de desembarque com receptivo para turistas. Se a população do navio descesse toda, suplantaria o numero de moradores da ilha. Havia onibus, taxi, ruas asfaltadas, centenas de Land Rover, Mitsubishi e Toyota, casario confortável e bem cuidado. Na laguna dois veleiros de recreio ancorados. A temperatura subiu para 14°C após o meio dia. A maior parte da população visível era de velhas inglesas. Agora em 2010 os ingleses estão investindo £ 327 milhões na exploração de petróleo nas quatro bacias offshore no entorno das ilhas principais sob protesto da Argentina, que "rejeita firmemente a pretensão do Reino Unido de autorizar a realização das operações de exploração de hidrocarbonetos em regiões da plataforma continental argentina submetidas à ocupação ilegítima britânica". Vai ver que era por isso que só tinha velha para atender aos turistas. E possivelmente pela mesma razão os ingleses ficaram tão nervosinhos que mandaram em 1982 uma força naval desproporcional para desalojar os argentinos. Quem saiu ganhando foram os pinguins: os argentinos minaram a Gypsy Cove na entrada do porto de Stanley, de forma que humano que vai lá só pode acessar os locais protegidos. O peso dos pinguins não é suficiente para detonar as bombas. A foto do afloramento na Gypsy Cove, tirada com zoom, do navio, mostra as rochas paleozoicas dobradas para norte e metamorfizadas pelo empurrão da placa antartica. 189 Às 16 horas do sexto dia de cruzeiro o Norwegian Sun levantou âncora e seguiu para o famoso Cabo Horn, 450 milhas para SW. O barômetro que caiu o dia todo estava em 984mb às 23 horas. Pela manhã do dia 9 de janeiro o tempo continuava nublado. No teatro, o entertainment Zsolt, um polaco que fala inglês sem sotaque, fez uma apresentação com powerpoint da viagem de Fernando de Magalhães, de 1519 a 1522. Magalhães nasceu e foi educado em Portugal. Com 32 anos tomou parte na conquista portuguesa nos Marrocos, onde foi ferido, se desentendeu com o Comandante e deixou o serviço sem permissão. No ano seguinte o rei D. Manuel negou permissão para ele embarcar para as Indias. Ele afanou os mapas dos portugueses e convenceu o rei da Espanha a financiar uma viagem de circumnavegação, nunca antes tentada, na qual ele traria uma carga de especiarias, que na época valiam o peso em ouro. Largou no dia 20 de setembro de 1519, com cinco navios, 251 tripulantes. Em março de 1520 a flotilha ancorou no sul da Argentina para passar o inverno; em setembro um temporal destruiu um dos barcos, o Santiago. Magalhães estava numa fase de azar. Nesta época foi publicado o mapa de Schoner, com os dados que ele roubara dos portugueses, mostrando a América do Sul e a Antártica (Brasilis Inferior). Os portugueses resolveram caça-lo. Irrompeu um motim, e Magalhães executou o comandante da Vitória, o unico barco que completou a viagem. Seguiu com os quatro restantes e no dia 21 de outubro de 1520 achou a entrada da passagem que leva seu nome, entre o continente sul americano e o arquipélago da Terra do Fogo. Foi entrando e verificando que a água se mantinha salgada, o que o levou a concluir que era a ligação entre os dois oceanos. Nesta altura, Juan de Cartagena, espanhol, comandante do San Antonio, inconformado com a liderança do português amotinou-se e retornou. Em 38 dias os tres barcos restantes sairam no Pacífico. Levou todo o verão para atravessar o Pacífico e chegar às Filipinas no dia 16 de março de 1521. Entrou em conflito religioso com os nativos: cada espanhol armado matava 10 filipinos, mas Magalhães foi morto a 27 de abril. O navegador da Trinidad, o barco de Magalhães, Juan Sebastián Elcano, assumiu o comando dos 110 sobreviventes e decidiu abandonar um dos navios, o Conception. Desceu 500 milhas para sul e na altura do equador, entre Borneu e Nova Guiné, encontrou as ilhas Molucas, que no Sec.XVI eram chamadas Ilhas das Especiarias. Carregou os dois barcos, mas a Trinidad começou a fazer água, e ficou para reparo com 52 homens. Elcano seguiu com a Victoria carregada, atravessou o Índico e o Atlântico e chegou na Espanha em 8 de setembro de 1522 com 21 sobreviventes, 4 asiáticos e 17 europeus, entre estes Antonio Pigafetta, um veneziano erudito que publicou suas anotações em 1525. A 190 carga da Victoria pagou a expedição com lucro para a corte espanhola, que premiou Elcano com honrarias de primeiro circumnavegador e pensão vitalícia. O Zsolt é muito bom apresentador. No quinto dia do cruzeiro ele fez uma palestra sobre a geologia da Patagônia, bem ilustrada e compreensível para a audiência dos veinhos. Levantou um ponto interessante que pouca gente se dá conta: devido ao achatamento da terra nos polos, o ponto mais alto em relação ao centro do planeta não é o Everest, situado acima do trópico de Câncer, cuja altura de pouco menos de 9 km é medida em relação ao nível do mar. O ponto mais distante do centro é o monte Chimborazo, nos Andes equatoriais, porque a diferença do raio equatorial para o raio polar é de mais de 21km! Gugu Pedreira, que Mila apelidou de Dr.Gugoogle, me entregou revisado meu capítulo para o livro de Geologia da Bahia cujo dead-line de entrega á agora no final de janeiro. Gugu levou para bordo mapas geológicos e artigos de geologia de toda a área que passamos, e sempre tinha uma platéia ouvindo as explicações dele. Na verdade foram ele e Neuza que me motivaram a retornar nesta área. Como ele levou um casal de netos adolescentes, eu motivei André e Gilca a irem junto, e André motivou Silvio e Rosana a aproveitarem as férias e levarem Luigi e Vinicius, que se esbaldaram na creche. No sétimo dia de cruzeiro, 9 de janeiro, passamos a Isla de los Estados pelo sul, no visual. Vento sul força 3. Às 15h vento SE 7-8 nós, mar liso, a visibilidade melhorando. Neste dia tranquilo, André, após uma semana de observações e estudos, preparou uma tabela de decisão de como pedir carta para se sentir à vontade e sentar na mesa de black-jack no cassino. Ele concluiu que a chance do cassino é pouco maior que 50%, e que o jogador preparado, com um pouco de sorte, pode fazer uma fèzinha. No final da tarde, a Diretora de Eventos convidou os passageiros para um „batismo do Horn‟, onde o Comandante e o Imediato deram um ar da graça e apareceram no deck 11 para batizar com água salgada colocada num barril quem quizesse; a temperatura da água estava em 10°C, e do ar 8°C, muito mais quente que em Paris e Londres no mesmo instante. Os batizados recebiam de umas moças simpáticas uma toalha para se secarem. Da nossa turma foi Luigi, de 10 anos. Chegamos no Horn com mar liso, vento força 2. O navio fez o contorno da ilha em 360°. Muitas fotos, incluindo o farol que se vê do lado leste (dois faróis, um baixo e um alto). Ai a pressão atmosférica começou a subir e seguimos para norte na direção de Ushuaia e do Canal do Beagle. 191 Track do GPS contornando o Horn, atravessando todo o Canal do Beagle e navegando o Estreito de Magalhães até o Pacifico. À direita, a aproximação no visual do Cabo Horn, no extremo meridional da América do Sul. A imagem acima é o farol, e à esquerda é a carta sinótica para a tarde da passagem. Bem sobre o Horn as isóbaras estão afastadas e está desenhada uma zona de baixa pressão, 984mb, coerente com o barômetro de bordo. Como voce pode ver, o mar está liso e o vento suave, 10 nós. 192 Acho, sem muita autoridade para tanto, que o 'normal' é normal em qualquer lugar, e que quinzenalmente deve-se esperar uma pauleira por aqui, mais frequente nestas latitudes mais altas. Mas o pessoal que reporta essa passagem só se lembra de falar de onda de 12m e vento de 70 nós! Não creio que nenhuma pauleira de alta latitude chegue no chinelo de um furacão tropical bem criado. Nesta viagem de 4 mil milhas em 15 dias, entre Buenos Aires e Valparaiso, via Falklands, houve uma pauleira com vento força 8, 40 nós, que durou duas horas. Numa outra que fiz em dezembro de 1995, num navio pequeno, pegamos no Canal do Beagle um williwaw de 80 nós; a pressão atmosférica havia caido para 955mb, e a pauleira durou duas horas. Uns jovens atirados, com veleirinhos de plástico, como os nossos, vão para a Antártica no verão. Oleg, com a segurança de seu veleiro polar, diz que por vezes vai motorando, sem vento. No circulo polar, que contorna o continente Antártico, na primeira semana de janeiro o sol não se põe. Na latitude do Horn, 56°S, o por do sol em dezembrojaneiro é às 22h. Para mim, índio tropical, o chato em velejar nesta área é a visibilidade geralmente limitada por intensa nebulosidade, e o frio para quem se expõe fora do ambiente com calefação. No oitavo dia de cruzeiro entramos pelo leste do Canal do Beagle e atracamos no pier em Ushuaia, cedo pela manhã. T=8°C, P=990mb, crescendo, vento SW força 3, dia chuvoso. Mila foi com a turma toda para um shore excursion no Parque Nacional da Terra do Fogo. André foi ver a tundra e amostrar os solos de turfas. Gugu foi procurar afloramentos do batólito que intrudiu a área no Cretáceo. Rosana e Neuza foram levar as crias para ver a fauna. Eu desci mais tarde e fiquei impressionado em como a cidade cresceu umas cinco vezes em 15 anos. Um horror! O casario agora sobe pela montanha, foram construidas avenidas com duas pistas asfaltadas e com quebramolas para um tráfego já pesado de automóveis. O comércio na rua principal é de produtos eletrônicos produzidos na zona franca, com fábricas japonesas instaladas no canal logo a oeste da cidade, e com lojas de roupa para turista, parecendo uma „Praia do Forte‟ austral. O cais onde ficava o Kotik cresceu umas dez vezes e agora é atracadouro dos cruisers e de muitos barcos de marinha. Intenso policiamento. Do outro lado da baia implantou-se um Iate Clube agora cheio de veleiros de fibra. Fui pra lá conversar com os locais: a energia da cidade é termelétrica, que por enquanto vai bem, enquanto a Argentina ainda exporta parte do petróleo que produz. Mas a água é da neve derretida no verão e estocada em tanques para o inverno. Eu estou 193 convencido que estas regiões frias que congelam no inverno são ambientalmente muito frágeis para suportar uma ocupação humana muito densa. Esta parte da Terra do Fogo é habitada desde há 11 mil anos. Os europeus instalaram missões religiosas lideradas por um tal de Thomas Bridges, em 1869, e em 1930 quase toda a população aborígene havia desaparecido. Mais dia menos dia a sociedade vai entender que esses religiosos europeus, instruídos de leitura, que vieram para a América catequisar um povo adaptado à natureza, devem ser considerados uns assassinos. Em Ushuaia existem dois museus, pobrinhos, exaltando o modus vivendi com os Yamana, que já eram. Na qualidade de um sobrevivente Kiriri tropical, anti-religioso e instruído, sempre que posso tento recontar a história da ocupação européia na América. Minha Vó Sinhá, contava envergonhada, que a mãe dela, Bisa Joviniana, foi caçada no mato „a dente de cachorro‟. Todos a bordo às 13:30, o navio desatracou cedo, às 14 horas, de forma que poderíamos apreciar as geleiras azuis que escorrem para o Canal do Beagle, viajando com luz do dia de leste para oeste entre os paralelos 54,5° e 55°S. Logo na saída, 4 milhas a oeste de Ushuaia, vimos a cidade industrial japonesa na entrada da baia Lapataia, um fjord já sem gelo. O gelo da calota polar chegou até o paralelo 45°S durante o Pleistoceno, o período geológico marcado por grandes glaciações, e pelo aparecimento do homo-sapiens no planeta. Ainda tem um restinho de gelo nos vales, que os turistas vão ver em Perito Moreno, na Argentina, e a continuação da mesma geleira, na laguna San Rafael, no Chile. Nos ultimos 11000 anos -- o período Holoceno -- quando a América do Sul foi acessada pelo migrante homo sapiens (nós), a calota polar regrediu e continua regredindo para o polo, estando agora confinada pelo círculo polar antartico a 63° de latitude. Então, calculando a zona esférica compreendida entre 63° e 45°, para uma terra com 6300 km de raio, temos o degelo de uma área de 80 milhões de km2. Para a superficie do planeta de 4πR2 ≈ 500 milhões de km2, e considerando os dois hemisférios, temos um degelo de 32% da área total. Esse gelo derretido foi incorporado nos oceanos, que ocupam 361 milhões de km2 da superficie da terra. Para os 120m que o nível do mar subiu neste nosso período inter-glacial, foi necessário derreter 280m de gelo. Fácil de aceitar. Sobre a Antartica hoje ainda tem mais de 2km de gelo sobre o 2 continente de 13 milhões de km : (http://www.ufrgs.br/antartica/antartica-antartida.html) 194 Cada vale desses ai ao lado, onde a geleira desemboca ao longo do canal, os vendedores de turismo dão um nome diferente. O contraste da neve branca e do gelo azul é marcante. Dr. Gugoogle explicou: se um corpo reflete toda a luz incidente, êle é branco. Se absorve tudo, é preto. A água liquida tem índice de refração 1,33, isto é, a velocidade da luz diminue de 1/3 em relação à propagação no vácuo. Por isso que ao colocar uma vara na piscina voce tem a impressão que ela faz um ângulo. Quando cristaliza em estado sólido, embora sempre no sistema hexagonal, a água tem vários hábitos cristalinos: laço de fita quando neve, granular quando granizo. O indice de refração no gelo diminue para 1,31. O gelo da geleira, compactado, assume um hábito cristalino grosseiro que absorve os comprimentos de onda mais longos da luz branca e reflete os mais curtos, na faixa do azul e violeta, que alcançam sua antena para a frequência do visível, isto é, seu olho. A geleira funciona como um rio que escoa com velocidade variável, da ordem de metro por dia. Nas bordas e no fundo o movimento é mais lento que no centro. A parte em contato com a rocha faz um trabalho de erosão, desagregando e transportando fragmentos mal selecionados, isto é, em qualquer faixa de tamanho. Na figura de cima nesta página, a geleira vai carregando um pedaço da borda rochosa. Na figura de baixo está o depósito que ela deixa ao se desagregar e dissolver: a moraina, uma barra de material grosseiro mal selecionado, nesta situação aqui na Terra do Fogo, disposto perpendicularmente à frente da geleira e paralelamente ao curso do canal. O Canal do Beagle é estreito, de cima do navio sempre se vislumbram detalhes das bordas. No geral é fundo, 250m, como soe acontecer em fjords. É frequente aflorarem pedras isoladas e morainas marginais, e as cartas digitalizadas da Garmin, as blue-charts, não são confiáveis nesta área: o registro do track do GPS por vezes passa por cima das ilhas. O canal é tido como uma falha de deslocamento horizontal (left-lateral strike slip fault) 195 consequente de uma rotação tectônica do sul dos Andes (Cunningham, W. D. (1993), Tectonics, 12(1), 169–186, acessível ao clique no link STRIKE-SLIP FAULTS IN THE SOUTHERNMOST ANDES AND THE DEVELOPMENT ...). É um trecho complicado para navegação, e sem prático local eu não recomendaria investi-lo à noite. Na longitude 71°43‟W saímos do canal, passamos um trecho curto no Pacífico aberto e mudamos de rumo para noroeste numa passagem interna para o Estreito de Magalhães. O prático que estava conosco era muito bom! Amanhecemos ancorados em Punta Arenas. Punta Arenas é uma cidade de serviço, feinha, cheia de croatas (!), fundada em 1848 quando começou a corrida do ouro na Califórnia. Servia como porto cosmopolita de apoio na rota entre as costas leste e oeste dos EUA. Com a construção do Canal do Panamá em 1914, a rota foi abandonada, mas a cidade retomou um fôlego em meados do Sec.XX como base de apoio da pequena indústria de petróleo do Chile. Hoje, serve de base para o acesso à Antártica chilena e está desenvolvendo o turismo. Foi aqui que o Norwegian Sun parou por mais tempo e ofereceu o maior numero de shore excursions. O navio ficou em âncora, não existe um píer de atracação para um cruiser de porte. Todo o sul do Chile é pobrezinho e de baixa ocupação. Punta Arenas é a única cidade maiorzinha no sul do Chile, com 150 mil habitantes, tem aeroporto, rodovia que liga com a Argentina, e você pode ir de carro visitar os pingüins magelânicos ou remar um caiaque no estreito. É daqui que saem os navios Stella Australis e Mare Australis que fazem cruzeiro até Ushuaia e Cabo Horn, desembarcando os passageiros nas geleiras. Soube que o Terra Australis, que viajei em 1995, havia incendiado e afundado aqui no Estreito de Magalhães. O Estreito de Magalhães é muito mais largo que o Canal do Beagle. No estreito, se a nebulosidade permitir, de uma margem você vê a outra lá no horizonte. O clima não é o que você escolheria para morar, frio e chuvoso. No 9º dia do cruzeiro o navio saiu às 19:30, e 15 horas depois, 40 milhas antes de desembocar no Pacífico, deixamos o estreito, rumo norte por entre as ilhas dos fjords do sul do Chile. Temperatura do ar 7°C, da água 10°C, vento WSW força 8, P=988mb, ondas 1,5m, chuva. Neste 10º dia navegamos pela terra dos alacalufes, nômades canoeiros que ocuparam a região por 6 mil anos, vivendo no final uma história triste e perdedora com a chegada dos homens brancos (http://es.wikipedia.org/wiki/Alacalufes). A foto ai ao lado foi feita de dentro da cabine, os escombros de um navio a vapor apoiados numa moraina. Neste dia terminei o livro do Bill Bryson, “Breve história de quase tudo”, 2003, Companhia das Letras, 535p..O cara é escritor profissional e deve ter uma super-equipe. Entrevistou muita gente preparada pelo mundo todo e resumiu de forma brilhante um conhecimento gigantesco – cosmologia, geologia, geografia, biologia e antropologia – numa linguagem compreensível ao grande público. 196 No 11º dia de cruzeiro, lá pelo meio-dia, saímos do canal entre as ilhas e desembocamos no golfo de Penas, que para manter a tradição, nos recebeu com um westerly força 8, característico dessas latitudes (em português são chamados de quarenta bramadores, em inglês the roaring forties), com ondas de 4m. O Norwegian Sun no rumo norte pegou esse mar de lado, e os mais sensíveis como Rosana não foram almoçar. Mila nem ligou, e André aproveitou que o cassino abriu quando o barco se afastou mais de 10 milhas da costa (em águas chilenas o jogo não é permitido). A temperatura subiu de 7 para 12°C e a pressão também, de 980 para 1013 mb. Na hora do jantar já havíamos mudado de rumo para leste e a vida a bordo voltou ao normal com o vento em popa. Pela manhã do 12º dia estávamos ancorados em Chacabuco. O limite norte do golfo de Penas é a península de Taitao, unida ao continente pelo istmo de Ofqui, na mesma latitude da laguna San Rafael, 46,5°S. É nesta península de Taitao que convergem três placas tectônicas: a de Nazca e a Antártica, que se movem para leste, e a Sulamericana, que se move para oeste. Geleira desembocando na Laguna San Rafael Se você gosta de notícias do tipo das que são mostradas na TV, e clicar no link da placa de Nazca, vai ver no final do artigo: “La zona de subducción que ocurre en las costas sudamericanas ha provocado que esta zona sea altamente sísmica y volcánica. Cabe destacar el gran terremoto de Valdivia de 1960, cuya magnitud superó los 9,5º en la escala de Richter, que ha sido el más fuerte movimiento telúrico registrado en la historia de la humanidad”. Valdivia está no limite norte do mapa ao lado, a 800 km da península de Taitao. No dia 22 de maio de 1960, a placa de Nazca, que mergulha plácidamente sob a placa sulamericana a 8 cm/ano, escorregou de repente 40m ao longo de uma extensão de 1000km, provocando um sismo (tremor) medido no planeta inteiro. O epicentro do terremoto foi no mar, 180 km a NW de Valdivia e a 60 km de profundidade. A energía liberada foi equivalente a 23 mil bombas atômicas das de Hiroshima, e o maremoto consequente atravessou o oceano Pacífico chegando ao Japão, do outro lado do mundo. Para o observador desavisado da velocidade dos fenômenos geológicos, o tempo envolvido cria a ilusão de estabilidade. Mas aqui temos a sensação que o tempo parece 197 comprimido, dá para sentir nos ossos a dinâmica da geologia. Dr. Gugoogle explicou que quando a placa descendente mergulha com ângulo forte a atividade sísmica e vulcânica é mais freqüente do que quando o mergulho da placa é baixo. As forças naturais avantajadas que operam nesta região não se limitam aos movimentos das placas e das geleiras. Repare no mapa da p.197 que entre a laguna San Rafael e Puerto Montt a costa tem uma geometria de concha que recebe os vigorosos westerlies, os quais ficam barrados pelos Andes a sotavento, de forma que a micro-maré do Pacífico é ai amplificada para uma mega-maré de até 7m! A corrente oceânica fria do Pacífico Sul (West Wind drift, rica em nutrientes) se bifurca na latitude da „concha‟, desviando para o sul como a corrente do Cabo Horn e para o norte como a corrente Humboldt. Para apreciar estas forças com mais vagar, o recomendável é um cruzeiro no Skorpios (http://www.skorpios.cl/), um navio pequeno baseado em Puerto Montt. Mas isso é outra história e outra viagem. O Norwegian Sun passou o 13º dia do cruzeiro atracado no píer em Puerto Montt, cidade que homenageia Manuel Montt, o presidente do Chile que incentivou a imigração alemã em meados do Sec.XIX . Do Cabo Horn até aqui vimos os 40% do Chile agreste e gelado. Daqui para o norte é outro Chile, ocupado, agrícola e mineiro: 38% das reservas mundiais de cobre estão no norte do Chile, em jazidas que alimentam agora no Sec.XXI 36% do consumo mundial. Puerto Montt no momento está tentando sair de uma recessão, conseqüente do quiprocó dos Estados Unidos em 2008 e principalmente de uma doença que atingiu 80% do salmão, base da indústria pesqueira da região. A doença é a anemia infecciosa de salmão, conseqüente do ambiente euxínico provocado pelo excesso de dejetos produzidos por uma aqüicultura intensiva. As empresas norueguesas que operam as fazendas de salmão contaminadas já obtiveram concessões para atuar nos fjords mais ao sul!... A Patagônia chilena é a antiga plataforma continental transformada num arco de rochas paleozóicas dobradas e metamorfizadas pelo empurrão da placa de Nazca. No final do Cretáceo (70 milhões de anos, Ma) ocorreram intrusões de granito, e no Mioceno (15 Ma) houve o levantamento dos Andes e começou o vulcanismo ativo até hoje. André e Gilca pegaram um taxi e foram para o norte, amostrar os solos vulcânicos no lago Llanquihue e fotografar o que sobra da floresta de alerce. Foram os últimos a embarcar de volta, porque se entretiveram na visita aos vulcões Osorno e Calbuco e quase perdem o barco. Mila e eu fomos ao porto dos pescadores, uma espécie de Mercado Modelo de Puerto Montt, onde compramos uma amostra de pedra-pomes. Numa conversa com o dono de um restaurante ele disse que era capitão de barco de pesca, mas que com a crise do salmão teve que mudar de ramo. Depois fomos ver o museu histórico, construído onde 20 anos atrás, quando estive aqui, era o Mercado de La Rampa. O museu retrata a ocupação da área desde 12000 anos, quando começou a recessão das geleiras, até hoje. Os povos primitivos, nômades, viviam em canoas de alerce, uma madeira leve e fácil de trabalhar. Como estavam frequentemente molhados, se untavam com óleo animal para se proteger do frio, comiam focas durante milênios e tinham a temperatura corporal mais alta que a nossa. Com a chegada dos espanhóis, Sec.XVII, foram escravizados, obrigados a se vestir e a comer vegetais. Dizem que da população original sobraram dois. O museu 198 exibe uma carta do rei Felipe, de Espanha, datada de 2 de maio de 1608, ungido da propriedade dos índios outorgada pelo Santo Padre, aquele feladapota, determinando que os homens maiores que 10,5 anos e as mulheres maiores que 9,5 anos deviam ser escravizados. Quando os chilenos se livraram do domínio dos espanhóis com a independência em 1818 veio a imigração alemã com uma cultura moderna nesta região. No final do Sec.XX desenvolveu-se a aqüicultura do salmão nos fjords. Às 18 horas do 13º dia de cruzeiro largamos de Puerto Montt direto para Valparaiso, 620 milhas ao norte. O 14º dia foi todo de mar, com instruções no jornal diário para colocar as malas no corredor até à meia-noite. No 15º dia um desembarque tranqüilo, com translado rodoviário de 120 km para leste, até Santiago. De brinde, neste domingo 17 de janeiro, foi dia do segundo turno da eleição para Presidente da República do Chile. Em Santiago o tráfego estava alterado, mas não havia outdoor, nem papel no chão. Tudo ordeiro e limpo. O Chile todo tem uma população de 16 milhões (como o estado do Rio de Janeiro), com 8 milhões de eleitores. O processo eleitoral se concluiu às 17:30, e os votos foram computados na mão. Ainda assim, às 19h a televisão mostrou o candidato que perdeu cumprimentando o vencedor e agradecendo à população os 48% dos votos. Ai começou um buzinaço e a juntar gente na rua. A presidenta Michelle Bachelet, que apoiou o perdedor, ligou para cumprimentar o presidente eleito com 52% dos votos válidos, Sebastian Piñera, o qual a convidou para o café da manhã no intuito de ouvir conselhos da experiência da presidenta. Tudo mostrado na TV de forma polida e elegante. No retorno fiz uma escala em São Paulo para ir a Cabreuva visitar o estaleiro da Craftec. Eles compraram o projeto deste cat ai ao lado e iniciaram a construção do primeiro aqui no Brasil, com o nome de CatFlash35, que deve ir para água em agosto. Eu vou lá testar o brinquedinho, e se for aprovado o casco nº 3 vai ser o Pinauna VII. 199 LIVE ABOARD EM GALÁPAGOS - 2010 Listo? Nos reunimos em la plataforma a 20 metros. 1,2,3, vamos! O programa era isso. Oito turistas equipados em cada panga (bote inflável com motor de popa), um pangueiro competente e um dive- master que comanda o mergulho, mais preocupado com a câmara do que com os turistas. Vida de turista é que nem rapadura: é doce mas né mole não! Galápagos é um arquipélago de 16 ilhas grandes - 3 habitadas pelo super-predador homo-sapiens: San Cristóbal, Santa Cruz, e Isabela - e 43 ilhotas ou rochas que emergem, todas de origem vulcânica, formadas diretamente como resultado da erupção de uma chaminé que vem lá do manto e rompe a crosta da terra, uma anomalia térmica que os geólogos chamam de „hot-spot‟. O conjunto é administrado como parque nacional pela Republica do Equador, mantido com a taxa de turismo (US$50 para os do Mercosul, US$100 para „outros‟), uma reserva biológica marinha tombada em 2005 pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade. O Equador há 10 anos que não tem moeda própria, usa o dólar americano. O arquipélago de Galápagos fica 1000 km a oeste de Guayaquil, um vôo de 1,5 hora em Boeing 737 da Aerogal. É cortado pela linha do equador, latitude zero, e recebe a corrente fria de Humboldt, que vem do sul, vira para oeste para se aquecer na circulação oceânica anti-horária do hemisfério sul. No inverno, como agora, o vento sul empurra a corrente rica em nutrientes e no arquipélago a água é fria, de forma que quem vai mergulhar precisa de roupa de neoprene espessa. Uma parte do grupo, instrutores de mergulho profissionais, como o Tuca, usava roupa seca, que exige treinamento e habilidades especiais. Em compensação, no inverno, a água fria rica em nutrientes propicia que os mergulhos em Galápagos realize o sonho de quem quer pedalar as nadadeiras junto a uma fauna marinha riquíssima e equilibrada. Na ilha de Darwin, no extremo noroeste do arquipélago, os mais preparados como o Zé Alemão 200 pedalaram no azul acompanhando de perto um majestoso tubarão-baleia, o maior peixe do mundo. Enquanto isso os iniciantes, como eu – o mínimo aceitável para mergulhar ai é a certificação de advanced open water – ficam de espectadores na „arquibancada‟ a 24m de profundidade. Se lhe interessar ver um rico arquivo de fotos, de uma voltinha no álbum que o Rafael Esteves montou em: http://www.captaindive.com.br/album/album.asp?ShowSub=2010-08-Galapagos Lá no portal da Captain Dive você vai ver um cardume enorme de tubarões martelo, um bicho curioso que vem até você e se assusta quando recebe um sopro de bolha na cara. No mergulho na ilha Wolf, os tubarões-martelo estavam estressados, correndo assustados, e quando subimos o Nigro e a Olivia Suíça explicaram por que: eles viram uma orca, o mamífero marinho que está no topo da cadeia alimentícia, passeando com uma cara idiota que assustou não só os martelo como também ao Nigro. Ninguém fotografou a orca! 201 . O „hot-spot‟ de Galápagos fica na latitude 1°S, longitude 92°W, e é ai que a chaminé fratura a crosta e vomita lava quente, 1400°C, formando as ilhas. Passeando sobre o hot-spot desloca-se para leste se expandindo de oeste a 6cm/ano a placa tectônica de Nazca, que para manter a superfície do planeta constante vai se enfurnar para leste por sob a placa continental na América, a qual se dobra levantando a cadeia dos Andes. No vôo de volta dia 23 de agosto, a Aerogal distribuiu o jornal equatoriano El Comercio, que no Caderno 2, tinha uma reportagem com a chamada „Em el país se dan 2600 sismos em el año‟, disponível em http://www.elcomercio.com/Generales/Solo-Texto.aspx?gn3articleID=258009. A ilha de San Cristóbal, a mais oriental, a 1°S, 89,5°W, está sobre a placa de Nazca, a 275km do hot-spot, o que a 6cm/ano resulta que ela levou 4,6 milhões de anos para chegar onde está. Hoje, a maior atividade vulcânica ocorre na ilha mais ocidental do arquipélago, Fernandina, abaixo da qual as evidências sísmicas indicam que existem câmaras magmáticas. Nessas câmaras, o material que sobe do manto por convecção fica aliviado a uma pressão muito menor, e se liquefaz, de forma que ao alcançar a superfície escorre como lava líquida que ao baixar a temperatura se solidifica formando as ilhas, preservando na superfície as estruturas encordoadas de escorregamento fluido, como na imagem acima. 202 Observe que a lava basáltica onde a turma está caminhando é um derrame cinza escuro, circundado por morrotes de um material avermelhado. O material avermelhado é mais velho, e a cor vermelha é conseqüente da oxidação do ferro dos minerais que compõem a rocha. Se o magma na sua ascensão incorporar silicatos alcalinos e água, ele fica gaseificado e ao chegar à superfície, ao invés de escorrer, explode como cinza vulcânica quente que precipita em seguida como escória ou como pedra pomes, um material poroso de baixa densidade onde a água da chuva percola facilitando a oxidação e o intemperismo. A propósito de chuva, no verão de Galápagos, conforme indicado no mapa da p.201,na linha do equador a insolação propicia uma contracorrente equatorial quente vinda de oeste, e também uma corrente quente vinda de nordeste, do Panamá, conseqüente da descida da zona de convergência inter-tropical. O calor aumenta a umidade relativa do ar, que em contato com a corrente fria de Humboldt precipita como chuva. Se a insolação for um pouco mais intensa que o normal, o que ocorre periodicamente, as chuvas tornam-se torrenciais não só no arquipélago como no continente adjacente, configurando o fenômeno reconhecido como El Niño, de conseqüências globais. As variações climáticas neste arquipélago isolado criam adversidades onde a vida que não consiga se adaptar simplesmente se extingue. Tanto a fauna como a flora endêmicas de Galápagos são forçadas a uma adaptação, não observada onde existe área disponível para migrações, uma observação sagaz feita por um visitante ilustre, que em 1835 passou um mês no arquipélago: o jovem naturalista inglês Charles Robert Darwin. O Beagle ancorou em San Cristobal (que os ingleses chamaram Chatham) no dia 18 de setembro de 1835, e circulou pelo arquipélago, com desembarque para pesquisa em sete pontos, tendo Darwin feito uma amostragem detalhada na ilha Santiago (James). A nomenclatura que o comandante FitzRoy, do Beagle, usou na sua cartografia, foi apropriadamente modificada pelos equatorianos, que anexaram o arquipélago em 1932. No dia 20 de outubro de 1835 o Beagle içou velas e seguiu para o Taiti com ventos favoráveis, 4000 milhas para sudoeste. A formação de Darwin foi em medicina e teologia anglicana. Ele tem pedigree de uma família próspera e culta, e vocação para naturalista, com uma forte capacidade de observar e descrever. Esses atributos e o conhecimento de pessoas certas, possibilitou que ele fosse aos 21 anos de idade indicado para acompanhar o Comandante do navio hidrográfico HMS Beagle, Robert FitzRoy, também um jovem aristocrata, numa missão de mapeamento numa viagem de circunavegação. FitzRoy aprovou o embarque de Darwin, e deu para ele ler o livro de Charles Lyell (1830), Principles of Geology, onde ele aprendera a teoria do uniformitarianismo, a qual 203 postula que os processos geológicos são graduais e registram intervalos de tempo extremamente grandes, contrastando com a teoria francesa do catastrofismo vigente no Sec.XVIII . O próprio Lyell pediu a FitzRoy que observasse e anotasse aspectos da geologia, tipo a presença de blocos erráticos indicativos de processos glaciais. O jovem Darwin deu conta do recado, observou com muita acuracidade, amostrou, registrou e divulgou. Seu antigo mestre, John Stevens Henslow cultivou a reputação do pupilo fornecendo a vários naturalistas os espécimes fósseis e cópias impressas das descrições geológicas que Darwin fazia. Quando o Beagle retornou após 5 anos de viagem, Darwin era uma celebridade no meio científico. Você pode ver uma biografia sucinta de como ele se tornou um naturalista clicando aqui em Biografia de Charles Robert Darwin. O Beagle atracou de volta na Inglaterra em 2 de outubro de 1836. O pai de Darwin proveio recursos para que ele pudesse ter uma carreira cientifica auto-financiada, e ele passou a fazer experiências com plantas e animais domésticos. As conclusões às quais Darwin chegava contrariavam a idéia vigente do Criacionismo pregado na Bíblia, e ele levou 20 anos ouvindo os resmungos da prima Emma, com quem se casou, de que, se divulgasse essas idéias heréticas, ele iria para o inferno! Eles tiveram dez filhos, três dos quais morreram prematuramente, e Darwin atribuiu a fraqueza da prole ao fato do acasalamento entre indivíduos de linhagens mais próximas conforme ele aprendera experimentando com cavalos e pombos. Com a morte de sua filha Annie, de dez anos, em 1851, Darwin finalmente perdeu toda a sua fé no cristianismo e na possibilidade de um Deus benevolente. Em 1858 ele recebeu uma carta de Alfred Russel Wallace, enviada de Indonésia, encaminhando um ensaio no qual ele definia as bases da teoria da evolução e pedindo ao colega uma avaliação do mérito de sua teoria, bem como o encaminhamento do manuscrito ao geólogo Lyell. Darwin, ao se dar conta de que o manuscrito de Wallace apresentava uma teoria praticamente idêntica à sua - aquela em que vinha trabalhando, com grande sigilo, ao longo de vinte anos - escreveu ao amigo Charles Lyell: "Toda a minha originalidade será esmagada". Para evitar que isso acontecesse, Lyell e o botânico Joseph Hooker também amigo de Darwin e também influente no meio científico - propuseram que os trabalhos fossem apresentados simultaneamente à Linnean Society of London, o mais importante centro de estudos de história natural da Grã-Bretanha, o que aconteceu em julho de1858. Em seguida, Darwin decidiu terminar e publicar sua teoria, o que foi feito em 1859, com o título On the Origin of Species by Means of Natural Selection, um best seller que nas seis edições revistas e modificadas pelo autor muito influenciou a opinião pública da época. Para entender a influencia e as conseqüências imediatas do trabalho de Darwin, clique no link Charles Darwin - Wikipédia, a enciclopédia livre, muito bem escrito, em português. Para ler na viagem a Galápagos eu levei uma tradução (Eugênio Amado, 2002) do „Origem das Espécies‟ para a Editora Itatiaia. Em nota, os editores comentam que as traduções anteriores em português não tiveram sucesso. A Itatiaia de inicio se deparou com o problema de qual edição traduzir, e considerando que a evolução do conhecimento cientifico do Sec.XX veio a „corrigir‟ modificações que Darwin, pressionado pelas críticas e iludido por algumas conclusões errôneas, introduziu especialmente na 5ª e 6ª edições; resolveram traduzir a 1ª edição, por ser a mais autenticamente darwiniana, a de maior interesse histórico, e a que provocou a mais 204 acerba e prolongada controvérsia científica de que se tem notícia(p.11). O livro tem 14 capítulos, 381 páginas, e é extremamente maçante! Coisa para inglês do Sec.XIX. Na parte de biologia, Darwin conta das experiências que fez nos 20 anos que ficou preparando o trabalho, das comparações da evolução das espécies no estado doméstico e no estado selvagem, da avaliação dos instintos e do cruzamento de híbridos e mestiços. A teoria por ele levantada é baseada em elucubrações. Ele argumenta que „não há observação boa e original sem especulação‟. Nos capítulos referentes à geologia ele procura fazer compreender ao leitor a dimensão do tempo geológico, reconhece as variações do nível do mar e o levantamento continental no oeste da América do Sul, embora credite tudo que refere como se derivado do „Princípios de Geologia‟ de Lyell. No tempo de Darwin não existia ainda a genética de Gregor Mendel, e muito menos o conhecimento da molécula da vida, o ácido desoxirribonucléico, o hoje popular DNA, conforme a sigla em inglês. A unificação no Sec.XX da teoria de Darwin e da genética valorizou o pioneirismo da idéia da evolução das espécies por seleção natural e deu lugar ao neodarwinismo hoje uma bandeira carregada por Richard Dawkins, o "rottweiler de Darwin", que discute com muita elegância em programas de TV seus argumentos contra a idéia da existência de Deus e combate com veemência o conceito criacionista dos fundamentalistas estadunidenses. Para terminar, uma palavrinha sobre o barco: o Deep Blue é um trawler de aço de 30m que faz o cruzeiro pelo arquipélago em uma semana. O barco anda a 7 nós, tem dois motores de 650 HP, um grupo gerador barulhento, dessalinizador, compressores que filtram o ar para as garrafas de mergulho estaleiradas, garrafas de oxigênio para enriquecer o ar comprimido, carregando nitrox. Na popa tem uma plataforma de mergulho com escaninhos para 18 equipamentos individuais, um cabideiro para 205 dependurar as roupas de exposição à água, dois chuveiros com água quente para quem volta do mergulho. As cabines são com duas camas baixas, mesa de cabeceira, banheiro privativo e armário. A comida é boa e a tripulação simpática e prestativa. A ponte de comando é aberta aos turistas. No piso intermediário tem um salão amplo com sofás e lousas onde são feitos os briefing antes dos mergulhos. O barco é limpo e seguro, e provavelmente é a melhor maneira de visitar o arquipélago. Se você preparar um jantarzinho eu levo o DVD que o dive-master editou, o qual mostra o barco, a turma se divertindo, os cardumes de tubarões, as arraias, o tubarão baleia e a corte que o acompanha. 206 LIVE-ABOARD EM ABROLHOS Em fevereiro de 2011 a Bahia Scuba promoveu para seus alunos uma excursão a Abrolhos. O programa saiu de Caravelas, cidade do extremo sul da Bahia, que conta com três empresas de turismo com barcos equipados e orientação de dive-master para conduzir os visitantes. Embora os dive-master tenham formação em biologia, a programação é mais focada nos naufrágios do que na faciologia dos recifes. Abrolhos é desde abril de 1983 protegido como Parque Nacional Marinho, logo após a defesa da tese de doutoramento da professora da UFBA Zelinda Margarida A. N. Leão, „Morphology, Geology and Developmental History of the Southernmost Coral Reefs of Western Atlantic, Abrolhos Bank, Brazil„, na Universidade de Miami em maio de 1982. Dra. Leão descreve dois arcos de recifes de coral que ocupam uma área de 6000 km2, sete vezes maior que a área de parque preservada pela legislação. Ela constata que os elementos formadores dos recifes são os „chapeirões‟, estruturas coralígenas que crescem em forma de cogumelo coalescendo no topo como um grande chapéu e formando bancos de até 20 km de extensão. Para acessar uma descrição que mostra a área do Parque, ilustrada, abrangente e em português, clique aqui: Abrolhos–O complexo recifal mais extenso do Oceano Atlântico Sul. Os corais são animais invertebrados, sésseis, isto é, não se deslocam voluntariamente do seu local de fixação, e compõem a classe dos Antozoários (do grego anthos, flor + zoon, animal). O coral é formado por um pólipo com duas camadas de células que constituem a parede do corpo. Cada pólipo constrói um exoesqueleto calcário radial onde se aloja e vive em simbiose com uma alga (zooxantela) a qual é responsável pelas cores que observamos nos recifes, principalmente nos mergulhos noturnos. Os pólipos têm uma cavidade gastrovascular com oito septos os quais se abrem à noite em oito tentáculos carnívoros. Os pólipos individuais com seu exoesqueleto calcário são pequenos, mas a maioria dos antozoários forma colônias que se desenvolvem como os maiores indivíduos vivos do planeta terra. 207 Colônia de Mussismilia braziliensis, o coral cérebro, endêmico de Abrolhos, fotografado de dia (esquerda) e à noite. Durante o dia, as algas zooxantela realizam fotossíntese com o CO2 da respiração dos corais e produzem nutrientes orgânicos em excesso, que são utilizados pelos pólipos de coral. Devido a esta relação simbiótica eles crescem muito mais rapidamente em águas limpas que deixa entrar mais luz solar, acumulando a energia vital que da início à cadeia alimentar da vida na terra. O processo de fotossíntese usa a energia solar para sintetizar o gás carbônico e a água em glicose, liberando oxigênio, segundo a reação: 6H2O + 6CO2 → C6H12O6 + 6O2↑. Os pólipos só conseguem suportar a exposição ao ar no curto intervalo da maré baixa, e um rebaixamento do nível do mar faz a colônia morrer, como ocorreu com o substrato dos recifes atuais em Abrolhos. Na parte superior de um recife com topo plano, desenvolvem-se colônias de algas coralinas verde-azuis que preservam a estrutura dando rigidez e forma. Os recifes originais do banco de Abrolhos estão assentados sobre uma plataforma vulcânica que aflora nas ilhas do arquipélago, na área do Parque Nacional Marinho. Um poço estratigráfico perfurado na ilha de Santa Bárbara em 1961 atravessou 725m de basalto e penetrou em tufos vulcânicos até a profundidade final (1400m), confirmando as indicações da fisiografia e das anomalias magnéticas e gravimétricas mapeadas pela indústria do petróleo e interpretadas como uma província vulcânica. O vulcanismo hoje está extinto, e a datação dos testemunhos recuperados na perfuração indicou que o pico da atividade vulcânica ocorreu no Paleoceno (60 milhões de anos), conseqüente da abertura do oceano Atlântico. A plataforma de rochas vulcânicas ficou exposta quando o nível do mar baixou nas glaciações da era Quaternária, só sendo novamente recoberta pelo mar no início do período inter-glacial que estamos vivendo de 20 mil anos para cá, conforme a reconstituição que o Prof. Landim postou no seu blog ( GEOLOGIA MARINHA E COSTEIRA): 208 No final da era Quaternária, no período que os geólogos denominam de Holoceno, a transgressão oceânica alcançou o nível atual, há 7 mil anos, conforme a curva de variação eustática que constitui a Fig.37 da dissertação da Dra. Zelinda Leão. Nesta figura copiada abaixo, a escala horizontal é tempo, onde o 0 no canto direito representa hoje, e a escala vertical é a altura do nível do mar, sendo 0 a altura atual. Observe que entre 7 e 4 mil anos atrás o nível do mar foi mais alto que o atual, 5m há 5 mil anos. Foi neste intervalo de tempo que os recifes de Abrolhos se desenvolveram a uma taxa média de crescimento de 3,7m/1000 anos. 209 Os corais são organismos muito exigentes. Só vivem em águas quentes e limpas. O que faz a exclusividade do modelo sedimentar carbonático de Abrolhos, quando comparado com os recifes do Atlântico Norte e do Pacífico, é a capacidade desta fauna endêmica com baixa diversidade ser resistente ao estresse provocado pela turbidez periódica das águas e estarem associados a sedimentos terrígenos na zona costeira. Dra. Leão mapeou dois arcos recifais: o costeiro e o externo. No arco costeiro, os topos de chapeirões adjacentes coalescem lateralmente formando bancos recifais com extensão de 1 até 20 km e formas variadas, sendo o Parcel das Paredes o maior deles (fora da área do Parque). O nome deste parcel é devido à queda abrupta na sua face de barlavento, enquanto que para sotavento, na direção da praia, a superfície é recoberta por algas coralígenas e mergulha suavemente. Observe no mapa abaixo a linha amarela saindo de Alcobaça, mostrando que a largura da plataforma continental alcança 130km até a isóbata de 200m. Acima da linha amarela está o recife de Timbebas, circundado por um polígono que o inclui no Parque Nacional. 210 O arco externo abrange recifes em franja bordejando as ilhas vulcânicas do arquipélago de Abrolhos e chapeirões isolados. Corais, mileporas e algas coralinas são os principais organismos construtores dos recifes, distribuídos conforme a zonação ao lado. O número de espécies de corais é quatro vezes menor que o número de espécies descritas para os recifes do Atlântico Norte, e muitas delas são espécies endêmicas, arcaicas, isoladas de uma fauna de idade Terciária a qual se tornou resistente ao estresse provocado pela turbidez periódica das águas. Em contraste com a predominância de sedimentação carbonática na maioria dos recifes dos mares tropicais, os recifes costeiros de Abrolhos estão circundados por sedimentos lamosos com 40 a 70% de areias quartzosas e minerais de argilas. Foi neste arco externo, cheio de naufrágios, que a turma da Bahia Scuba foi mergulhar. As linhas amarela e vermelha no mapa da página seguinte é o roteiro do Titan, que fica apoitado nas bóias que marcam os pontos de mergulho. Quando apoitamos no porto sul de Santa Bárbara, fomos abordados por Felipe, o fiscal do Ibama, que estabeleceu as regras de comportamento: nenhum lixo na água, nem casca de fruta. Não deixem nem levem nada do parque nacional. Mergulho nos recifes sem luvas, e evitem tocar nos corais com as mãos ou com as nadadeiras. Retirem 1 kg de lastro do cinto, para minimizar a chance de apoiar-se ao fundo. Mergulho noturno não foque a lanterna nos olhos dos peixes nem das tartarugas. Desembarque só em Siriba, confinado à trilha, e com ele, que nos mostrou a fauna de pássaros, o domínio territorial de cada espécie, os locais de nidificação e as rochas vulcânicas. Ficamos 3 dias, de 18 a 20 de fevereiro, e a lua cheia foi dia 18, o que é bonitinho 211 mas a maré cresce e a água fica turva, com visibilidade de 5m. O certo para mergulho é ir lá na lua de quarto crescente, quando a maré é morta, a água fica mais limpa e a visibilidade alcança 15m. Os líderes do grupo foram Márcio Brito e Genser Freire, instrutores da Bahia Scuba. No retorno, todos felizes, houve a tradicional troca de e-mails, da qual destaco a observação mais querida, de Will Recarey: Cambada de Abrolhos, Bom... Sou muito suspeito pra falar de Genser e Márcio... rsrsrsrs, mas tenho que concordar que quando a gente faz o que gosta com boa vontade e dedicação, o resultado é sempre muito gratificante, como foi esse da viagem para Abrolhos. O grupo, apesar de bastante heterogêneo, teve um objetivo comum e uma alegria única... descontando aí as "rabugentíces" rsrsrs do "Alemon" - grande figura e antigo parceiro de mergulho que tive o prazer de rever e de me divertir novamente com suas histórias. Tenham certeza que para nós da Bahia Scuba o aprendizado também foi surpreendente. Cada limitação, cada superação, cada assimilação e cada resposta 212 têm um significado muito importante no processo de fazer com que vocês passem a amar o mergulho e fazer dele uma forma de oração assim como eu faço. Poder conviver alguns dias mais de perto com Genser e Márcio só me trouxe a confirmação de que grandes pessoas, amigos e profissionais eles são. Por alguns motivos pessoais, essa viagem foi uma renovação de energias pra mim. Poder me emocionar com a emoção de vocês, rir com os seus risos e juntamente desfrutar das maravilhas sub daquele lugar, me fez outra pessoa no retorno... e com mais alguns amigos no meu currículo. O agradecimento é todo meu, ou melhor, TODO NOSSO! O 12º e-mail foi do mestre Genser, externando emoções e agradecendo ao grupo: Não tenho palavras para agradecer tudo o que foi dito aqui. Estou realmente emocionado! Aproveito a oportunidade para divulgar uma conversa que tive com Will e Marcio no dia de nosso retorno a Caravelas, bem no momento em que todos estavam se divertindo na piscina, vôlei ou sinuca. Esse foi um momento de avaliação e exemplifica bem as palavras ditas aqui. Comecei falando da minha alegria vendo a união do grupo desde o encontro no aeroporto de Porto Seguro. Nossa, parecia que já nos conhecíamos há muito tempo. Continuei falando de minha preocupação quando, depois do primeiro mergulho, os caras do Titan resolveram dividir o grupo em dois. No barco, falei com Will: "... não gosto dessa divisão, as pessoas podem começar a interagir somente com pessoas de seu grupo e não interagir mais com pessoas do outro grupo...". Quando vi as brincadeiras e conversas depois do segundo mergulho, percebi que minha preocupação não tinha fundamento. A união de todos era tão grande que nada poderia nos dividir, e foi assim até o fim. Outra alegria foi, depois do último mergulho, ver que ninguém diminuiu o ritmo e aí veio aquela sessão de saltos e fotos e mais fotos com muita alegria e diversão. Apenas os mergulhos tinham acabado, mas não a nossa união e alegria. Chegamos e teve piscina, vôlei, sinuca, pizza, brincadeiras, risadas, mais e mais fotos, rs! 3.480 fotos em cinco dias inesquecíveis. Ops! esse número está desatualizado. Não contamos as fotos do desembarque até Porto Seguro, rs! Bom demais! Particularmente, aprendi muito com todos. Vi pessoas se superando, enfrentando medos e dúvidas. Vi pessoas tímidas se soltando e interagindo. Vi o nascimento de grandes amizades. Olha a equipe Bomba aêêê... Impagável a cena, na piscina, do Josef em cima da July. Aquela foto resume bem nossa viagem. Hoje tenho certeza de que mesmo se os mergulhos fossem ruins, ainda assim iríamos nos divertir muito. Muito obrigado, AMIGOS, por tudo. Espero que momentos como os que passamos, possam se repetir muitas e muitas vezes. 213 2013 – LIVE ABOARD NAS BAHAMAS A Commonwealth das Bahamas é constituída por uma dezena de arquipélagos, com milhares de ilhas e ilhotas que eles chamam de cay (os gringos chamam key: uma ilha baixa de areia calcária que se forma sobre recifes de coral) todas baixas e implantadas sobre uma extensa plataforma carbonática (The Bahama bank). É habitada por negros e negras grandes e dóceis, descendentes dos escravos dos ingleses nos Estados Unidos. Quando da guerra de independência dos Estados Unidos, muitos ingleses fiéis à monarquia britânica se mudaram para lá. Hoje é um país de afrodescendentes que se tornou independente do UK em 1973. Não têm indústria e vivem bem, essencialmente do turismo. A moeda é o dólar baamiano cotado localmente igual ao americano, que circula livremente. O tráfego nas ilhas é pelo lado errado, à inglesa, mas existem muitos carros com o volante do lado esquerdo. Conforme você pode ver na linha hachuriada no mapa acima, a ilha mais ocidental das Bahamas, Bimini, fica pertinho de Miami, 50 milhas náuticas, que uma lancha possante faz em uma hora. O alinhamento azul escuro que passa por baixo da linha hachuriada é o talvegue da „corrente do golfo ‟, uma corrente quente de 2 a 3 nós que corre para norte pelo „estreito da Flórida‟ até o paralelo 35°N e dai atravessa o Atlântico por cima do „mar dos sargaços‟ indo aquecer o norte da Europa. É aproveitando esta corrente que os veleiros de antanho (e os de hoje) atravessam de oeste para leste o Atlântico Norte. Foi numa das ilhas centro-orientais das Bahamas, que os nativos arauaques chamavam de Guanahani, que Colombo primeiro desembarcou quando velejando com os alísios de leste para oeste „descobriu a América‟, e renomeou San Salvador. A ilha de San Salvador hoje tem o Clube Med Columbus e um monumento que identifica o 214 desembarque de 12 de outubro de 1492, mas o curador de mapas do British Museum e o almirante americano que se tornou historiador S.E.Morison, asseguram que não foi ai o desembarque de Colombo, e sim na ilha que hoje se chama Cat Island, uma alongada NNWSSE com o ponto culminante das Bahamas, o monte Alvernia de 63m! (24°171N, 75°25‟W). Sobre esta colina foi construído em 1939 o monastério „The Hermitage‟ → A área azul claro da imagem que abre este relato é o „banco das Bahamas‟, o resquício de uma plataforma rasa na qual estão empilhados 4 km de calcários. Todo este registro é de material depositado num ambiente de águas rasas desde o Cretáceo (120 milhões de anos), de forma que é necessário invocar uma subsidência continuada da área para abrir espaço para a acumulação da coluna sedimentar. Se dividirmos 4000m por 120.000.000 anos, vamos calcular pouco mais de 3cm por 1000 anos, uma taxa de subsidência aceitável para que a placa norteamericana desça em subadução sob a placa do caribe. Observe bem no centro do mapa acima a pequena placa tectônica rosa, a Caribenha, comprimida entre a placa Norte-americana (marrom) e a placa Sul-americana (roxa). Esta compressão fez levantar o arco de ilhas das „Pequenas Antilhas‟ (Barbados, Granada, S.Vincent, Martinica, Dominica, Guadelupe, Antiqua e Barbuda), o qual arco limita a leste o Mar do Caribe; o limite norte do mar do Caribe são as “Grandes 215 Antilhas‟(Cuba, São Domingos e Porto Rico), incluindo também neste empurrão Jamaica e Ilhas Virgens que por consequência são ilhas vulcânicas com areia cinza e sujeitas a terremotos e vulcanismo. Estas ilhas circundam um mar mais salgado e mais denso, que se aquece no golfo do México na circulação oceânica anti-horária do hemisfério norte, e escapa num fluxo de 2 a 3 nós pelo estreito da Flórida, criando a necessidade de cuidados na navegação da Flórida para as Bahamas. É na Florida que fica um vértice do mal falado triângulo das Bermudas. O outro, do norte, fica nas Bermudas (32°N 65°W) e o terceiro em San Domingo. No passado esta era uma área temida pela pirataria. Hoje pelos furacões de verão e outono. Os arquipélagos das Bahamas definem o lado sul do tal triângulo, na borda sul da placa norte americana que vem afundando para acumular numa condição estável a espessa sequência de carbonatos. O carbonato de cálcio é precipitado da água do mar de forma inorgânica, ou por catalisadores orgânicos que formam seus esqueletos externos de calcário, como os corais. Os calcários de origem inorgânica são precipitados pela saturação na água do mar dos íons Ca++ e CO3=. O Ca++ vem da dissolução dos feldspatos das rochas primárias, e é concentrado na água do mar. O CO3= vem do CO2, o gás carbônico presente na atmosfera, que em solução gera CO3= em ambiente alcalino como a água do mar: CO2 + H2O ⇆ H2CO3- ⇆ CO3= + H2., Atingido o coeficiente de saturação o carbonato precipita como agulhas de aragonita, a variedade metaestável do CaCO3. Nos ambientes de alta energia como nos baixios rasos onde o sedimento de fundo e lavado e movimentado por ondas, formam-se oolitos. Nas lagunas protegidas, de baixa energia, e nas áreas mais fundas do fore-reef precipita lama calcária microcristalina (micrito). Adicionalmente uma parte do carbonato de cálcio é removida da água do mar por organismos que constroem um esqueleto externo como os corais e os moluscos. O resultado final é que as praias das Bahamas, onde as ondas lavam a lama micrítica e quebram as carapaças orgânicas em fragmentos tamanho areia, são constituídas por uma areia branca e fina dos calcários. Este tipo de ambiente de plataformas carbonática rasas foi muito mais comum no passado geológico, e o banco das Bahamas serve hoje como um modelo recente para se entender o registro antigo, uma compreensão necessária para a indústria de exploração do petróleo. A plataforma extensa do Mesozoico foi exposta várias vezes devido a oscilações do nível do mar. Os calcários marinhos quando expostos ao intemperismo subaéreo são dissolvidos pela água doce mais ácida, desenvolvendo um relevo cárstico, com dolinas e cavernas. Hoje, com o nível do mar alto, estes tipos de relevo ficam submersos e são vendidos aos turistas como „blue holes‟, nos quais se pode mergulhar e „blow-holes‟, emersos, onde se observa o sopro das ondas batendo nas partes submersas (clique aqui: Orchestrating the blow holes at Boysie Cay, Exumas, Bahamas). 216 Períodos mais prolongados de intemperismo promoveram à erosão de cânions que escavaram a plataforma antiga, formando braços de mar como a „tongue of the ocean‟ entre a ilha de Andros e a ilha de New Providence e o arquipélago das Exumas; e o Exuma sound, que separa o arquipélago das Exumas do das Eleutheras. O mapa ai ao lado, que mostra ambos os cânions, foi copiado de L.S.Kornicker, 1963, “The Bahama Banks: a “living” fóssil environment”: Journal of Geological Education, Vol.11 Nº1, pp.17-25 (sipddr.si.edu/jspui/bitstream/1 0088/8544/1/iz-Kornicker1963c.pdf, acessado em 30.05.2013. A figura abaixo é a curva de variação eustática nas Bahamas nos últimos 800 mil anos before present (kyr BP, a metade superior do período Quaternário). A parte mais recente, com quatro curvas (preta, verde, vermelha e azul) mostra a consistência de quatro pesquisas independentes. Para detalhes veja Sidall et at, 2006: Eustatic Sea Level During Past Interglacials - Centre for Water .... Observe a ciclicidade de aproximadamente 100 mil anos entre as glaciações, e que a descida de 100m no nível do mar é lenta, enquanto que a subida é rápida (10 mil anos; é mais fácil dissolver as geleiras polares do que faze-las crescer). 217 Chega de geologia. Let‟s go diving! Tuca da Bahia Scuba alugou o AquaCat, um catamarã de 102 pés, 300 toneladas, para uma semana de mergulhos saindo da Hurracane Hole Marina em Paradise Island e navegando 250 milhas entre o arquipélago das Exumas e o das Eleutheras. O grupo foi de 21 bahianos que ocupou por uma semana as 11 cabines do AquaCat, paparicados por 12 tripulantes dedicados e competentes: Liveaboard scuba diving in the Bahamas on the Aqua Cat. Foram 26 pontos de mergulhos, com 5 mergulhos por dia. Dois fominhas, Genser Freire e Maurício Paixão no coquetel de despedida foram agraciados com o award de iron man, fizeram todos os mergulhos. Eu, como o mais velho do grupo, fui agraciado como „the best Vovô garoto Scuba Jr aboard‟. Antes de largar me entendi com o pessoal da cozinha e em todas as refeições houve feijão e arroz. A única queixa do programa foi que não existe farinha nas Bahamas. O bar de bordo no sun deck, que tinha cinzeiro, era aberto 24h, mas quem tomasse qualquer bebida alcoólica não podia mergulhar mais naquele dia. Dos quatro mergulhos noturnos só fiz um. Havia um tabuleiro de gamão a bordo e arrumei um sparring para jogar comigo. A maioria do pessoal, inclusive meu dupla, Pedro Bocca, fez fotos e filmes dos mergulhos. Aliás estas águas são famosas 218 pelos filmes de James Bond: as cenas underwater de Thunderball foram feitas perto de Paradise Is. Para quem gosta de famosos as Bahamas fazem um prato cheio: como existem muitas ilhas pequenas mas com possibilidade de fazer uma pista para jatinho, muitos gringos riquinhos e lancheiros tem a propriedade de uma ilha por aqui. Em Exuma Cays Land and Sea Park o AquaCat pegou uma poita vizinha do Tenacious, o veleiro azul de 4 cruzetas de Ted Turner da CNN. Dos 26 mergulhos (só fiz 9, menos de 2 por dia) os que gostei mais você pode fazer também sem se molhar: nas Exumas, o washing machine, um canal entre duas ilhas onde a correnteza é mais forte. Todos ficam preparados e são cinco plataformas de salto. O AquaCat vai devagar contra a corrente, o dive master salta e todos seguem; a única demora é para quem já saltou sair de baixo. Todo mundo vai descendo na correnteza de 2 a 3 nós ao longo de uma calha sem recifes. De repente o fundo da calha despenca de 3m para 11m, como uma cachoeira submarina. Você é lançado para baixo e sobe no refluxo embolando por quase um minuto. Dai estabiliza de novo e começa a aparecer um campo de gramíneas e mais adiante alguns corais. Ai todos sobem, seguram num cabo que o dive master puxa e aguarda o barco vir buscar. O pessoal que usa nitrox (ar comprimido enriquecido com oxigênio) e computador de mergulho relata que o computador fica doido, alarmando por causa da subida repentina na máquina de lavar. Veja ai: The Washing Machine - Diving in Bahamas aboard the Aqua Cat ... Outro mergulho diferente é o shark feeding. Dura uns 35 minutos a 15m de profundidade. Todos descem e ajoelham no fundo fazendo um arco em torno da poita onde o AquaCat está amarrado. O dive master desce com um cabo que passa na argola da poita e puxa para baixo um „picolé de tubarão‟: peixes e pedaços de peixes que foram colocados num saco plástico e congelados no freezer. Tira o saco e puxa para baixo o picolé que fica amarrado na poita a uns 2 m de altura. Ai vem um cardume de tubarão (reef shark e nurse shark), algumas garoupas grandes e começam a disputar pedaços do picolé. Como o picolé está congelado alguns tubarões perdem dentes que caem no chão. A tripulante que cuida da filmagem vai focando cada turista contra o fundo de tubarão comendo. Quando acaba a farra a gente vai lá na poita à procura de dente. Eu trouxe um dente de tubarão para fazer um brinco para Lara, minha neta. O filme a seguir, de menos de 1 minuto, não é o do nosso grupo, e a merenda vai numa caixa: Shark Feeding Dive, Bahamas YouTube. Por fim, a maior riqueza do Great Bahama Bank: mais de cinquenta espécies de corais que formam os cays. Eles crescem a barlavento das ilhas, e são animais invertebrados sésseis, isto é, não se deslocam voluntariamente do seu local de fixação, e compõem a classe dos Antozoários (do grego anthos, flor + zoon, animal). O coral é formado por um pólipo com duas camadas de células que constituem a parede do corpo. Cada pólipo constrói um exoesqueleto calcário radial onde se aloja e vive em simbiose com uma alga (zooxantela) a qual é responsável pelas cores que observamos nos recifes, principalmente nos mergulhos noturnos. 219 Os pólipos têm uma cavidade gastrovascular com oito septos os quais se abrem à noite em oito tentáculos carnívoros. Os pólipos individuais com seu exoesqueleto calcário são pequenos, mas a maioria dos antozoários forma colônias que se desenvolvem como os maiores indivíduos vivos do planeta terra. Durante o dia, as algas zooxantela realizam fotossíntese com o CO2 da respiração dos corais e produzem nutrientes orgânicos em excesso, que são utilizados pelos pólipos de coral. Devido a esta relação simbiótica eles crescem muito mais rapidamente em água limpa que deixa entrar mais luz solar, acumulando a energia vital que dá início à cadeia alimentar da vida na terra. O processo de fotossíntese usa a energia solar para sintetizar o gás carbônico e a água em glicose, liberando oxigênio, segundo a reação: 6H2O + 6CO2 → C6H12O6 + 6O2↑. Os pólipos só conseguem suportar a exposição ao ar no curto intervalo da maré baixa, e um rebaixamento do nível do mar faz a colônia morrer. A poluição do superpredador homo sapiens também está danificando os corais, e a comunidade científica ambientalista está se mobilizando para a preservação: Scientists look to the Bahamas as a model for coral reef conservation As poitas alinhadas, para aluguel em Exuma Cays Land and Sea Park. 220 Acima, Tuca, de camisa branca, e a tripulação do AquaCat. O de camisa vermelha é Jim, o chef que fez feijão todos os dias. Abaixo, a lagosta bem criada na época do defenso, e o peixe leão, uma espécie exótica, invasora, originária do Indo-Pacífico que chegou a pouco tempo no Atlântico Norte, tem um estômago que pode se expandir até 30 vezes o volume inicial, e além de comer muitos peixes, se reproduz facilmente e não tem predadores devido aos espinhos venenosos das barbatanas. Sua caça com arpão é estimulada, e a carne pode ser consumida após a caça. Mas não toque nele com as mãos desprotegidas! As toxinas não são fatais mas causam muitas dores. 221 TURISTANDO DE CARRO NO REINO UNIDO -2011 Porque ir lá? Fazia quase ¼ de século que eu não ia à Inglaterra. A última vez foi em julho de 1987, quando visitei o clipper Cutty Sark num dique seco em Greenwich. Quatro anos atrás houve um incêndio e só agora é que a restauração de £25 milhões do último Clipper, construído em 1869, está se finalizando, para que a visitação seja reaberta. No ano de 1987 o verão inglês caiu num domingo, e 5 de julho foi um dia de sol, de forma que peguei um trem para o sul, até Portsmouth, de onde atravessei de barco as 10 milhas até Cowes, na Isle of Wight. Havia mais de mil veleiros bordejando no Solent ostentando a union jack. O pau da bandeira que vai na popa dos barcos é chamado de jack, e quando houve a união das tribos na ilha da GrãBretanha, sec.XVII, eles unificaram um país chamado Reino Unido (United Kingdom, UK), identificado na frota naval com a bandeira que sobrepõe a cruz vermelha em fundo branco de São Jorge (Inglaterra), com o X branco em fundo azul de Santo André (Escócia) e o X vermelho em fundo branco da Irlanda, gerando a Union Jack ou Union Flag. Os galeses, do Pais de Gales, que também fazem parte do UK, também têm sua própria cruz, a de São Davi (amarela, no meio, sobre fundo preto, sustentando um dragão vermelho). Ostentando esta bandeira na sua frota de veleiros, os bucaneiros e corsários britânicos construiram nos séculos XVIII e XIX um império onde o sol não se punha, dominando, colonizando, saqueando, e porque não dizer, educando no estilo inglês ¼ da população mundial. Neste período, os que ficaram na ilha inventaram a máquina a vapor, o que permitiu uma mudança tecnológica chamada de revolução industrial, que substituiu a manufatura artesanal pela produção industrial. A consequência mais importante desta revolução foi a implantação do capitalismo e da necessidade de colônias que fornecessem matéria prima e absorvessem a produção, gerando riqueza e lucro para o capitalista produtor, uma implicação compreendida em 1867 pelo flósofo e jornalista judeu Karl Marx, o teórico do socialismo. 222 A jóia da coroa britânica nos séculos XIX e XX era a Índia, no sul da Ásia, com um mercado consumidor de 400 milhões de habitantes. Historinha da colonização da Índia (levei para ler na viagem o livro de D.Lapierre e L.Collins, de 1983, traduzido do frances, „Esta noite a liberdade‟ 594p. ,que conta a história da India, antes, durante e depois dos ingleses) No final do sec. XVI os traficantes holandeses controlavam o comércio das especiarias, e vendiam por cinco xelins uma libra de pimenta – condimento muito apreciado nas mesas isabelinas. Escandalizados com essa provocação, vinte e quatro comerciantes da cidade de Londres reuniram-se na tarde de 24 de setembro de 1599 para fundar uma modesta casa de comércio com o capital inicial de £72.000, subscrito por 125 acionistas. Apenas o lucro motivava esta empresa, que recebeu o nome de East India Trading Company. A companhia recebeu a sanção oficial no ultimo dia do sec.XVI, quando a rainha Elizabeth I outorgou uma carta concedendo-lhes por 15 anos o direito exclusivo de fazer comércio com todos os países situados para além do cabo da Boa Esperança. Oito meses mais tarde, um galeão de quinhentas toneladas, o Hector, lançou âncora em frente do porto de Surate, uma possessão portuguesa a norte de Bombaim. O comandante William Hawkins desembarcou com uma guarda de 50 mercenários pathans e foi recebido na corte do nababo mogol Jehangir, que reinava sobre 70 milhões de vassalos; comparada com este monarca a rainha Elizabeth parecia a senhora de um pequeno feudo de província. Jehangir nomeou o pirata Hawkins oficial da sua casa real e ofereceu-lhe como presente de boas vindas a jovem mais bela do seu harém, uma cristã armênia. O primeiro inglês recebido na corte mogol foi tratado com deferências que teriam decerto espantado os austeros acionistas da Companhia das Indias Orientais. Foram abertas feitorias na costa norte de Bombaim (mar das Arábias, oeste da India). Dois navios passaram a descarregar todos os meses no cais do rio Tâmisa montanhas de pimenta, goma, açucar, seda 223 crua e algodão. Faziam a viagem de regresso com os porões cheios de produtos manufaturados. No ano seguinte contornaram a India pelo sul e foram até o gôlfo de Bengala, onde fundaram nos pântanos pestilentos do delta do Ganges, na aldeia miserável de Kalikata, a feitoria que viria mais tarde a ser Kolkata (Calcutá), hoje a megalópole imunda com 15 milhões de habitantes. O mote dos piratas era „comércio, sim, colonização, não‟. Mas a India multi-étnica, de muitas religiões, era dividida em 562 principados controlados por marajás da religião hindu, e nababos da religião muçulmana, ambos muito propensos às pompas, que consolidaram uma sociedade de castas hinduistas, cuja produção era exercida por escravos. Os ingleses acobertavam esses príncipes belicosos e a discriminação social (constitucionalmente abolida na India moderna), na política bem inglesa de dividir para controlar. Para dar cobertura às atividades comerciais em Calcutá, construiram em 1699 o Fort Williams, para abrigar um exército britânico, com a função de assegurar a atividade comercial. A pax britannica foi aceita pelos príncipes que eram nominalmente independentes, e reconheciam o monarca britânico como seu suserano feudal por meio de tratados. Em 1857 os soldados nativos que serviam aos ingleses se rebelaram e invadiram Delhi, lá no norte da India. O norte e o centro da Índia mergulharam numa insurreição que durou um ano, dirigida contra a Companhia Britânica das Índias Orientais. Muitos regimentos nativos e principados indianos juntaram-se à revolta, enquanto que outras unidades e outros principados apoiaram os britânicos. Após sufocar a rebelião e retomar o controle, o governo britânico dissolveu a companhia e assumiu a responsabilidade de governar. A Rainha Vitória recebeu em 1877 o título de imperatriz da Índia, e o parlamento ingles designou um governador geral, com o título de vice-rei. Foi ai que a Índia passou à condição de colônia inglesa. Em 1869, nasceu numa aldeia do delta do rio Ganges Mohandas Karamchand Gandhi, de uma casta intermediária de Vaixás. Rapazinho já casado, foi mandado para a Inglaterra estudar direito. Nenhum membro da familia antes dele fora ao estrangeiro. Gandhi foi solenemente excluido da sua casta de mercadores, porque, aos olhos dos mais velhos, essa viagem ao além-mar só podia mancha-lo para sempre. Quando retornou mostrou-se tímido e sem postura para atuar num tribunal. A familia desilidudida mandou-o à África do Sul tratar do processo de um parente. Foi nessa terra racista que, discriminado pelos ingleses dominadores, ele descobriu os princípios filosóficos que iriam transformar a sua vida e a história da India. Ele elaborou e aplicou ainda na África do Sul a doutrina que o tornou mundialmente célebre – a desobediência civil sem violência: resistir até a morte sem se submeter à discriminação. Foi preso várias vezes pelo governo inglês, mas incentivava seus seguidores a “fazer chorar os corações de seus inimigos com seu sofrimento silencioso”. Após a primeira guerra mundial, já na India, ele organizou uma greve de protesto no dia 6 de abril de 1919, argumentando que os indianos não precisavam violar a lei nem desafiar a polícia inglesa. Deviam apenas não fazer nada. Fechem as lojas, abandonem as salas de aula, vão orar nos seus templos, não se alistem no exército ingles. Com uma semana da India paralisada, houve desordem e sob o comando de um general ingles 1516 pessoas foram metralhadas. A tragédia fez o Mahatma (a Grande Alma) perder definitivamente a confiança num império que sacrificava seus princípios pacíficos. Ele entrou na cena política pelo Partido do 224 Congresso, decidido a transforma-lo num movimento de massas animado do seu ideal de não violência. O programa do Mahatma Gandhi baseava-se numa fórmula única: a não colaboração, de forma a atacar a economia britânica nos alicerces. A Grã-Bretanha comprava algodão indiano a preços irrisórios, que enviava às fábricas de Lancashire, e que voltava à India sob a forma de tecidos, vendidos com lucros consideráveis, num mercado onde estavam praticamente excluidos todos os têxteis não britânicos. Era o ciclo clássico da exploração imperialista. Para dar um golpe nas máquinas das fábricas inglesas, Gandhi escolheu uma arma que era a antítese absoluta daquelas: a dobadoura de madeira tradicional. Ele incitou a Índia inteira a rejeitar os tecidos estrangeiros em favor do khadi de algodão cru fiado em milhões de dobadouras. Em setembro de 1921 Gandhi deu novo impulso à sua cruzada renunciando solenemente, para o resto da vida, a qualquer outro vestuário além de um pano e um xale de algodão tecido manualmente. A humilde tarefa de fiação tornou-se um verdadeiro sacramento ligando por um rito diário os membros de todas as tendências no Partido do Congresso. O khadi de algodão tornou-se o uniforme dos combatentes da independência, que tanto vestia ricos como pobres com o mesmo pedaço de tecido branco grosseiro. A pequena dobadoura de Gandhi representava o emblema da sua revolução pacífica, o desafio ao imperialismo ocidental de um continente que despertava, o símbolo da unidade nacional e da liberdade. Existia uma unidade nacional para a auto-gestão livre do jugo inglês, mas internamente haviam disputas fraticidas, principalmente entre a maioria hindu e a minoria muçulmana. O governo inglês ao sentir que não mais tinha como controlar o impulso de independência, tratou de arrumar uma forma adequada à hipocrisia inglesa de „concede-la‟. Para evitar uma guerra civil e atender a uma condição dos muçulmanos, resolveu, contra a opinião de Gandhi, separar a população em dois países: a Índia e o Paquistão. No dia 14 de agosto de 1947, após dividir os bens e a população (do que decorreu a maior migração da história), o vice-rei Louis Mountbatten, com aprovação do Parlamento do UK e do Rei George VI, passou o controle do Paquistão para Mohammed Ali Jinnah, e o da India para Jawaharlal Nehru, sendo que ambos aceitaram fazer parte da Commonwealth, uma aspiração de George VI e do parlamentar oposicionista Winston Churchill. Esta aceitação permitiu que indus e os paquistaneses migrassem sem necessidade de visto para a Grã-Bretanha, e que tivessem amparo na educação e na saude. Em 1931 o então deputado da Camara dos Lordes, Winston Churchill, achava que perda da India representaria o desmantelamento do império britânico, seria para a Inglaterra um 225 golpe fatal e definitivo; tornar-se-ia um pais insignificante. Visão de imperialista. Hoje os ingleses ainda anunciam no aeroporto de Heathrow que na China tem mais gente aprendendo inglês do que a população da Inglaterra. E com a globalização, os chineses vendem mais que o UK, sem precisar colonizar. O que Churchill não previu e que é muito mais grave, é que o UK está sendo ocupado por asiáticos, africanos e gente do leste europeu. Nos hotéis que pretendem ter atendentes poliglotas, o comum é polonês. Existem muitos indus ricos, proprietários de imóveis para alugar. Nas ruas tem-se a impressão que o fluxo de paquitaneses é maior que o de ingleses, e que Londres é uma cidade muçulmana. A taxa de desemprego está crescente, 8% este ano, e já existem muitos britanicos fazendo trabalho desqualificado. Toma, imperialista! O turismo Mila tirou 15 dias de férias e voamos Salvador-Lisboa-Londres. No voo transatlântico sentaram atrás da gente no Airbus 330 da TAP, Mateus e Maru, velejadores bahianos que estavam indo para Dinamarca correr o campeonato mundial de snipe. Em Lisboa foi só conexão, sem dar entrada no país. Em Heathrow, considerado o maior aeroporto do mundo em termos de tráfego de passageiros internacionais, fizemos imigração e alfandega descomplicadas e pegamos o heathrow express, um trem que vai direto à estação de metrô de Paddington. De lá fomos de taxi para o Ibis London Euston St Pancras, no centro, já reservado do Brasil. Mila não quiz ir ao teatro nem à noite Londrina, jantamos no hotel e fomos dormir antes do por do sol, que neste verão é após as 20 horas. Dia 4 de agosto, uma quinta-feira, já acordamos ajustados ao jet lag, compramos um passe de dia inteiro de metrô e fomos a Greenwich, onde descobrimos que o Cutty Sark está em restauração. Passeamos no O2, uma arena de shows multiuso, que vai abrigar as competições de ginástica e as finais do basquetebol dos Jogos Olímpicos de Londres 2012. Dai embarcamos num catamarã de turista, o Clipper Meteor, e subimos por 45 minutos o rio Tâmisa até o pier da London Eye, no centro da cidade. Estava chovendo, havia uma fila enorme para comprar o ingresso à roda-gigante, e o verão da Inglaterra foi só ontem; seguimos de metrô até o museu de Historia Natural, onde havia uma fila de 1 km, na qual caminhamos por 1 hora. O museu é impon ente, focado para o grande publico, i.é., um tanto infantil. O que mais me interessou foi a parte de antropologia. Veja na foto ai ao lado a diferença entre o Homo Neandertalis que viveu na Britania há 400.000 anos (com as órbitas salientes) e o Homo Sapiens de testa redonda, que apareceu na Etiópia ha 160.000 anos. De lá fomos a pé para o Science Museum, a mesma coisa, focado para o grande publico, aqui sem 226 fila. Aqui havia uma coleção de minerais e de rochas, o registro das máquinas que fizeram a revolução industrial, construções animadas do sistema solar e registro de artefatos da engenharia espacial. A estação de metrô de Baywater estava interditada, e não conseguimos chegar ao endereço que Teca, irmã de Mila, deu para comprar uma encomenda. Ai começou a chover de novo. Pegamos um taxi e fomos fazer um almoço ajantarado num restaurante indiano na Queenway. Dia 5. Fizemos o check-out do hotel e deixamos as malas no guarda-malas. Eu tinha combinado com Arthur, irmão de Mila, que está fazendo um pós-doctor em Birmingham, que iriamos no final da tarde para pegar um carro de locadora. Fomos ao British Museum, chegando lá pouco depois das 9. O museu é o butim de um dominador, que „importou‟ relíquias dos gregos, egipcios, romanos, estátuas, esculturas, paredes inteiras, mumias, a pedra de Rosetta, que foi decifrada por um arqueólogo frances. Ouvi dizer que a carta de Caminha sobre o descobrimento do Brasil também está lá, mas não vi. Tem uma seção sobre Darwin, mas infantil, sem as amostras. Gostei mais do Louvre, em Paris. O que o ingles gosta mesmo é do culto à personalidade e às pompas de dono do mundo. Acho que estão entrando numa fase igual a dos portugueses e gregos, que também foram donos do mundo e hoje vivem de recordações. Voltamos de taxi para a Euston station, de onde sai o trem para Birmingham, compramos as passagens, fomos ao hotel que fica a uma quadra, pegamos as malas e viajamos. Lanche no trem, que anda a uns 80 km/h. Arthur nos esperava na estação e fomos para casa, onde estavam as compras que fiz pela internet e Arthur debitou no cartão dele: manicaca elétrica, gps e ais para o Pinauna. Saimos para o centro, passamos no banco, fiz saque em libras direto na minha conta no Brasil, e depositei na conta de Arthur o valor das encomendas. Dai fomos a uma locadora local onde ele havia reservado o carro e o atendente ingles fez um monte de exigências burocráticas até que desisti do aluguel. Demos uma volta na universidade e fomos para casa, de onde reservei na Avis por telefone um Peugeot 5008 de 7 lugares, para pegar amanhã. Tomamos ½ garrafa de uisque no jardim, enquanto Rita fazia o jantar . Dia 6 – saimos cedo de onibus para pegar o carro na Avis, e Arthur viu a diferença entre lidar com a franquia de uma empresa global e um tranca-rua local. Pegamos as meninas e as bagagens em casa e pé na estrada. Fomos para norte pela M1 para Nottingham, a terra da floresta de Robin Hood, da qual só sobrou um parque. Mas deu pra fazer xixi. A estrada é uma monotonia, sem afloramentos, sem área de repouso nem posto de combustivel. As rodovias principais tem acostamento, as secundárias, nem isso. Tocamos direto para York, atravessando uma bacia sedimentar mesozoica no centro-norte da Inglaterra onde finalmente vi doisafloramentros, um de calcário e outro de arenito. A cidade medieval, Eboracum, capital da provincia romana Britania inferior, fica num batólito de granodiorito, sobre o qual os romanos construiram a muralha de proteção. As construções romanas estão mais preservadas na Inglaterra do que na Europa continental. Na cidade, que é um inferno para estacionar, vimos muralhas 227 reconstruidas (a orginal que funcionou do ano 71 até o Sec. VII está soterrada). Caminhamos sobre ela e vimos a igreja onde o bizantino Constantino foi coroado imperador de Roma, e fizemos foto na estátua de 1998. A placa diz: Foi aqui que Constantino foi proclamado Imperador de Roma em 306. Seu reconhecimento da liberdade civil dos cristãos e sua própria conversão de fé estabeleceram os fundamentos da Igreja Católica Apostólica Romana. Dai começou a chover e a fazer frio neste verão ingles, e fomos ver o museu ferroviário. Jantamos num restaurante indiano e nos instalamos na pousada de um veinho inglês, todo explicadinho, mas que tem estacionamento. 7/8/11 -Saimos de York para ver mais muralhas romanas em New Castle Upon Tyne. Tyne é o rio que passa por lá e o desvio até New Castle foi decepcionante. Lá no fim do mundo pagamos £3 para estacionar no parque e caminhar no frio e chuva para ver uma muralha restaurada! PDI! Carimbo na carteira da Funai. Olha ai a turma, da esquerda para a direita: Bia, Mila, Lu, Rita e Arthur. E na página seguinte o Peugeot preto, automático, motor diesel, volante do lado errado . 228 No mapa, em amarelo, o roteiro das 1000 milhas percorridas em quatro dias. Cruzamos a fronteira com a Escócia e tocamos para Edinburgo (onde já se viu escrever n antes de b?!), que em agosto tem o Edinburgh Festival Fringe, um mes inteiro de apresentações do tipo das de Luiza, filha de Pedro Bocca, que junta uma turma jovem na rua e depois passa o chapéu. Para os velhos o que acontece é que o preço dos hotéis sobe para dobro ou triplo, simplesmente não tem onde estacionar e tem que fazer reserva no restaurante. O ponto alto que os jovens performers 229 protestam por que tiram a clientela deles é a apresentação do Edinburgh Military Tattoo, no castelo de Edimburgo, cujos 6 mil ingressos tem que ser reservados com muita antecedência. Clica ai que você vê um show tipo Olodum apresentado por milico: Top Secret Drum Corps Edinburgh Military Tattoo 2006 - YouTube. 8 de agosto – o verão escocês é do tipo meia e camiseta de lã. Temperatura 12°C. Saimos às 9h para sudeste para visitar uma destilaria de whisky. Perdemos-nos no caminho e chegamos lá pouco antes do meio dia. £6/visitante para entrar. Fomos atendidos por Christine, uma lourinha baixinha e simpática que explicou e mostrou todo o processo: a cevada é moída e depois secada com ar quente; pode secar queimando turfa para que o uísque fique smoked, defumado e com cheiro. Dai a cevada vai para o tanque de fermentação, tudo de aço inox e mecanizado, onde fica três dias, produzindo o yeast, uma cerveja com 6 a 8% de álcool. Este yeast é destilado numa torre de cobre aquecida com petróleo, que transforma a água em vapor, o qual circula nas serpentinas. Pelo que Christine explicou é na forma, no tamanho da torre e na temperatura de destilação que está a qualidade do destilado. Não é permitido fotografar. O yeast é destilado uma segunda vez para aumentar o teor alcoólico até 65%, gerando o spirit, que é incolor e vai ser misturado com água para esfriar e baixar o teor alcoólico até 50%, produzindo o whisky. Dai vai envelhecer em barris de carvalho por no mínimo três anos. Os barris ficam num porão que mantém naturalmente nesta latitude de 56°N a temperatura entre 5 e 10°C. Só pode receber o nome de scotch se for envelhecido o mínimo de oito anos. É ai no envelhecimento que pega a cor; quanto mais tempo mais escuro. No final o grupo é levado ao „bar‟ da destilaria e experimenta o single-malt de várias idades para comparar. Tem uma galeria de blended, que é também oferecido para degustação e para a venda. No rótulo do Glenkinchie de 21 anos está gravado que só é vendido na destilaria, £60/l. Mas o blended Johnnie Walker red label, que mistura 40 maltes, custava £15, mais caro que no duty free shop de Salvador, US$18. Conclusão: ao invés de carregar peso na viagem compre na Perini. Retornamos para Edimburgo onde fizemos um almoço tardio num restaurante chinês. Estacionamos numa vaga com parquímetro e colocamos moedas para uma hora; deu na conta. Dai as meninas foram ver as lojas e o movimento do Fringe, e eu coloquei no GPS „yachting‟, seguindo para um shopping onde fica docado o yacht Britania, da rainha. Estava na esperança de encontrar uma loja de náutica, mas até agora nada. O shopping Britania foi construído junto ao pier do barco, mas não tem uma loja de náutica. Achei uma loja „Crew Suit‟, que não tinha roupa de tempo, da qual estou precisado. O certo hoje é fazer compras pela internet. O barco da rainha pode ser visitado, ingresso £10, para passear no convés. É um tall ship preto de três mastros, e no acesso tem uma declaração de Isabel II dizendo que é ai que ela consegue relaxar. 230 As meninas foram ver as lojas de casimira, visitaram o castelo e a „camara obscura‟, um labirinto de espelhos com efeitos, e Lu, uma gata toda bonitinha, se permitiu fotografar num computador que a envelheceu e plotou a imagem. À noite jantamos na praça do hotel e vimos algumas performances na rua. 9/8, quarto dia da viagem, dia de voltar pra casa. Fui com Arthur pegar o carro num estacionamento todo automático, sem um empregado, tres quadras adiante do hotel; pernoite de £18 (R$50). Pegamos as meninas no hotel e saimos para oeste, na direção de Glasgow e do mar da Irlanda, atravessando toda a ilha E-W, que aqui tem uma largura de menos de 200 km. Contornamos Glasgow e descemos pela rodovia M77 para sudoeste na direção de Ayr, já no mar da Irlanda. Vento oeste, frio, 12°C. Andamos na praia onde uns meninos e cachorros brincavam alegres na água de verão do mar da Irlanda! Ah que saudade do inverno da Bahia! Seguimos para o sul e perto da fronteira Escócia/Inglaterra almoçamos num posto que tinha uma comida familiar. Voltamos para a rodovia M6, que ao passar a fronteira perto de Carlisle ficou imponente, com 6 pistas, mas sem pontos de descanso. À tardinha fizemos um desvio para visitar Liverpool, com waypoint na waterfront, na esperança de encontrar uma loja de náutica, mas não encontramos qualquer loja de coisas de barco. Além do mais já eram 17:30 e o comércio já havia fechado. Sob forte pressão das meninas fizemos um wpt para a Penny Lane, onde os Beatles fizeram uma foto atravessando a rua, e elas queriam fazer uma imitação. 231 Da Penny lane passamos num McDane-se, fizemos um lanche rápido e tocamos direto para casa, 100 milhas ao sul, em Birmingham, onde chegamos ainda com luz do sol. O sistema de milha das medidas inglesas representa uma tradição romana, a milha de mille passus ou 5 mil pés de um centurião. Antes de chegar em casa circulamos na cidade sem sucesso à procura de um posto para abastecer o carro. Vimos muita atividade policial, parando para revistar os neguinhos e as branquelas gordobas de minissaia. Em casa Rita recebeu ligações de gente assustada recomendando que não saisse na rua, mas celebrou a viagem servindo feijão com farinha de Sergipe e pimenta da Jamaica, que ela guarda para eventos especiais. 10/8, quarta-feira – saimos às 8h para abastecer o carro e devolver na Avis. A fatura ficou em £400 pelos 4 dias. Dai fomos numa agencia de viagens procurar um voo Birmingham-Heathrow na madrugada para fazer conexão com meu retorno ao Brasil. Não existe este voo porque „é muito perto‟. Mas o rapaz da agencia entendeu minha necessidade e sugeriu a viagem de onibus, um coach, que sai de Birmingham às 0:30 propiciando um check-in confortável para o voo da TAP Londres-Lisboa que decola às 06:00. Arthur estava disposto a levar a irmã no Fiat dele de duas portas, mas achamos que era abusar demais. No centro de Birmingham, onde fomos procurar a agencia de viagens, haviam muitas vitrines de lojas de griffe quebradas e tapumes de madeira, consequencia do vandalismo de jovens mascarados que começou em Londres no inicio da semana e se estendeu por toda a Inglaterra, com roubo, incendios, algumas mortes por atropelamento e por tiro. O governo e a polícia inglesa insistem em atribuir os distúrbios ao crime organizado. A imprensa local já admite, “que as razões para os protestos podem estar ligadas ao crescimento de um sentimento geral de incertezas de boa parcela da juventude do 232 país sobre o futuro. Os jovens estão pessimistas com o cenário econômico europeu. Eles recebem propostas de trabalhos ruins e salários baixos. No rastro da crise financeira internacional, a vizinha Irlanda foi abalada, assim como parte da Europa continental e da Zona do Euro. Para analistas, diante da ameaça sofrida pela Inglaterra, parte da população se sente alijada de apoio público diante de ajudas bilionárias oferecidas a bancos a partir de 2008”. Toma, capitalista! Como dizia Gandhi, quem tudo quer tudo tem. Voltamos para casa num ônibus urbano, daqueles de dois andares, levando uma mala rígida que comprei para substituir a que quebrou o pé de apoio na viagem de vinda. Nessa mala acomodei os brinquedinhos eletrônicos do Pinauna, essas coisas que existem nos países exploradores capitalistas. À tarde recebi uma ligação da empresa de ônibus comunicando que o centro da cidade estava fechado pela polícia, e que a estação rodoviária estava interditada. O coach iria sair no horário, de um shopping centre que deram o endereço. O coach foi direto ao Terminal 1 de Heathrow, onde despachamos as bagagens direto para Salvador, fui fumar um cigarrinho do lado de fora e Mila foi mandar um e-mail para o irmão comunicando que estávamos embarcando de volta sem problemas. O pessoal que nesta madrugada trabalhava no aeroporto era na maioria de estrangeiro; a moça da TAP que nos atendeu é italiana, e na „policia federal‟ tinha um cara com turbante de marajá e crachá de oficial. Os indianos e paquistaneses estão ocupando a Grã-Bretanha. Em Lisboa novo controle de embarque e vistoria, bem lusitano, um oficial atravancando a fila com muitas perguntas sobre líquidos nas sacolas, outro no sensor de metais apalpando os passageiros. Achou minha carteira no bolso e levou de volta para passar no raios-X. Encontramos Nagib Fadul e Sra., que vinham de Paris e estavam também em conexão para o TAP Lisboa-Salvador. O vôo foi tranqüilo, com alguma turbulência na zona de doldrum, próximo ao equador. No desembarque passamos no duty-free shop, fizemos a entrada sem problemas na alfândega, e fomos direto para a bahiana de acarajé. 233 CRUZEIRANDO NA FOZ DO RIO SÃO FRANCISCO Nas festas de fim de ano quem sai do AIC tem uma opção @ 3 milhas de ancorar na prainha defronte à Base Naval; a 5 milhas em Maré; a 10 milhas, Ponta de Nossa Senhora; 12 milhas Saco de Jesus ou Itaparica; 20 milhas foz do Paraguaçu. Mas se você tem tripulação que agüenta o oceano, pode sair pelo farol da Barra e tem Morro de São Paulo a 30 milhas, Camamu a 60, Ilhéus a 120, Porto Seguro a 200 e Abrolhos a 300. Estas saídas para o sul no verão são presentes de natal, com vento folgado para ir, mas cobram o preço de voltar no contra vento. Porém a costa da Bahia tem muito mais, afigura-se como dos melhores locais do planeta para velejar, se não o melhor: Os ventos são confortáveis, os alísios tropicais, a temperatura fica na faixa dos 25°C, chove pouco no verão, uma delicia. Para ir orçando e voltar na maciota existem opções pouco exploradas para o norte, Mangue Sêco @ 120 milhas, foz do Vaza Barris a 150 e foz do São Francisco a 210. O Pinauna juntou uma tripulação de três gerações e seguiu para norte dia 17 de dezembro de 2011, num cruzeiro de sonho! Vovô Tonho, comandante compreensivo, Mila Rainha, que quando chega ao salão cria uma atmosfera de alegria, Tio Dedo, navegador especialista em barras trabalhosas, Mamãe, administradora de tentativas de motim, Papai, com seus computadores cuidando da meteorologia e da comunicação, Tia Gilca paparicando o navegador, e Lara Pocotó, no início quieta pelo enjôo natural da saída, após o segundo dia libera toda a energia acumulada correndo pelo convés, batendo com os calcanhares uma música de pocotó. Quando ancoramos na estação maregráfica da vila do Cabeço, ela exibiu o „salto mata mãe‟, voando do convés pela popa e caindo na água doce do Opára. Daí não para mais, sobe pela escada, corre para proa, pula na água, volta nadando por baixo do barco, sobe pela escada de popa e recomeça. Só para quando se encanta e vai fotografar os búfalos nadando da península para a barra de rio que forma uma ilha. O primeiro dia foi assim (track amarelo): cambando a 120° com vento nordeste força 5 até Guarajuba. Passamos a noite orçando com a mestra no 1º rizo. Os homens fizeram turnos de 3 horas e suas respectivas mulheres ajudavam a cambar quando tocava o alarme na isóbata de 10m. No amanhecer do dia 18 o vento fraquejou e motoramos durante a manhã até o meio dia. O almoço foi ótimo, salada, e lombo com feijão, arroz e farinha. Daí chegou um vento leste força 3 que nos levou até Aracaju com duas cambadas. Fizemos um bordo bem na foz do Vaza Barris, vendo a ponte nova que atravessa este rio no Mosqueiro. Veja ai na foto como é fácil a entrada, a ponte lá no fundo. 234 . No inicio da tarde passamos por Aracaju, por dentro dos campos de petróleo, e depois de passarmos pelo Terminal Portuário de Sergipe, defronte à foz do rio Japaratuba, veio no nosso encalço uma lancha da Policia Federal, que chegou perto com um megafone perguntando de onde éramos, para onde íamos e quem estava a bordo. A Policia Federal estava a serviço do IBAMA. Conversamos no rádio VHF, Lara deu adeus para eles, que nos desejaram feliz viagem e foram embora. O pessoal tá ligado, esta semana um veleiro italiano naufragou na praia de Atalaia e o casal a bordo levava 310 kg de cocaína. No final da tarde aterramos na linha de 10m e demos um bordo para fora. Faltavam 30 milhas em linha reta para a foz do rio São Francisco, e era óbvio que no ritmo que íamos chegaríamos durante a noite. Tio Dedo navegador estava baseado nas imagens do Google, que mostravam que a barra tinha mudado bastante desde a última vez que ele havia entrado em 2006. Eu entrei lá em 2000 com meu mestre 235 David Pezão, comandante do Guma, pelo canal do leste, e foi brabo. Daí que propus que nosso bordo de fora fosse mais longo, passássemos a noite velejando por fora e aterrássemos de dia, vendo as redes de pesca que existem na foz. André, que estava enjoado, argumentou que era melhor seguir costeando até fora da barra, ancorar em 3m de profundidade até o amanhecer e entrar no início da enchente às 8 horas. Não gostei da idéia de chegar à noite arriscando a nos engancharmos nos equipamentos de pesca, mas os enjoados queriam parar de qualquer jeito e começaram a se amotinar exigindo uma votação. André marcou um waypoint ψ=10°31,025‟S, ʎ=36°25,4‟W e tornamos a cambar para dentro. Mas ai o vento rondou mais para nordeste e aterramos de novo a leste da foz do rio Sapucaia, na região que o Vmax (Fast 395) se quebrou na praia numa madrugada em 23 de setembro de 2004. Então cambei para fora às 22 horas e acabou a democracia. A única que me apoiou foi Lara que disse “faça como você quer, vovô”. Mandei baixar e ferrar a vela mestra e fomos orçando devagar para fora só de genoa no rumo sul. À meia noite cambei para dentro, enrolei a genoa e motorei para contra vento por 3 horas, quando uma chuva na frente rondou o vento para ESE. Desliguei o motor o tocamos só de genoa contra uma correntada de 2 nós. Na aproximação, Liana sentada no assento do timoneiro viu uma rede de pesca que não conseguia desviar por causa da correnteza. Ligou o motor e safou quase em cima. Chegamos na barra, com a maré toda vazia e fomos contornando desde o inicio a oeste, a sotavento. Daí André subiu na genoa enrolada (foto, vou dizer à mãe dele que ela pariu um macaco!) e foi procurando uma entrada no visual. Na primeira tentativa (track amarelo na página seguinte) passamos a barra do sudoeste, a mais tranqüila. Uma vez do lado de dentro, já protegido da arrebentação, encalhamos na maré vazia. Descemos a âncora, a Rainha assumiu os serviços e fomos tomar o café da manhã enquanto a maré enchia. Ai co meçou a festa. Passado o enjôo, o pessoal na água doce da foz, encantado com o visual, começou a fazer planos de ficar por aqui a semana toda e abortar a entrada em Mangue Seco na volta. 236 Na imagem abaixo, de 2011, a barra N-S que deixamos a barlavento protege as passagens de oeste da arrebentação. Esta barra conforme mapeada na carta náutica (compare acima), tinha uma posição bem diferente, mostrando a dinâmica da foz do São Francisco. A entrada de leste, mais ampla e usada pelos barcos de pesca maiores, estava quebrando todo o tempo que ficamos por lá. Do lado de Sergipe, a vila do Cabeço foi totalmente destruída com a erosão, e o antigo farol que ficava na 237 vila hoje é deixado por boreste por quem entra; o canal agora está sobre as ruínas da vila. Puxamos a âncora com meia maré, contornamos a barra no extremo sudeste de Sergipe e ancoramos na praia a sotavento da barra filado com o vento, no ponto que no mapa da p.4 está a norte de onde está marcado Vila, e na carta 1002 da DHN, desatualizada, está registrada uma estação maregráfica. Esta vila é o novo Cabeço, com seis casas e uma igreja pequena na parte alta da barreira. A vegetação rasteira de hidrofiláceas serve de pasto para os búfalos. Beto Lia e Lara foram de caíque na vila e foram recebidos por Flavio, reformado da Policia Militar como enfermeiro. Ele fez um caminho de tábuas por onde passa com o carrinho de mão por sobre o areião. Plantou um pomar de 0,3 ha. na parte alta do areião, que ele rega toda madrugada com água dos poços rasos que perfurou e completou a 4,5m de profundidade. Da próxima vez que for lá vou levar para ele um rolo de tubo de polietileno de irrigação. O ribeirinho aqui é muito hospitaleiro, e à tarde um canoeiro foi nos oferecer um xaréu de 3 kg. No processo de assar o xaréu no forno acabou um bujão de gás. No dia 21 saímos na enchente da manhã para deixar Beto em Piaçabuçu, almoçar em terra e reabastecer o bujão de gás. Na subida do rio o piloto automático deixou de funcionar, o que me deu um frio na espinha. Liguei para Igor, que perguntou a mensagem de erro do piloto, fez um diagnóstico e me deu instruções de como proceder. Fui executando os procedimentos e localizei um fusível de 25 ampères com corrosão, que André que é mais jeitoso lixou e o piloto voltou a funcionar. Ufa! Nem pensar em timonear por dois dias no retorno. Em Piaçabuçu Liana adotou um garoto de 11 anos, Alexandre, muito esperto, que operou como nosso guia e almoçou conosco. No retorno ancoramos no perau ao lado das dunas móveis na costa alagoana, no ponto onde param os barcos de turismo. Nos anos 60, quando havia exploração de petróleo por aqui, uma manhã o tratorista estava futucando as dunas migratórias com uma vara. – O que você está fazendo? – Procurando um D8! 238 . Dia 22 o pessoal ficou de leseira fazendo nada, e eu troquei as válvulas da bomba da latrina que estava com vazamento. Lara passou a escova na linha d‟água e limpou o casco de uma das canoas impregnado de algas oceânicas; quando eu elogiei o trabalho, ela disse „foi até divertido‟. À tarde fomos caminhar na praia de fora da barreira e observar a barra arrebentando na maré cheia. A areia da barra emersa em Sergipe é de grã média e mergulha para dentro com estratificação horizontal, que interpretei como o registro do back-shore, formado quando o nível do mar estava mais alto 5m, o que na curva de variação eustática feita para a Bahia ocorreu há 5,1 mil anos, na época que cresceram os recifes de Abrolhos. A alimentação de sedimentos na foz do rio São Francisco, que tem uma vazão média de 2700m3/seg, manteve a barra estável enquanto o nível do mar descia para a altura atual, desenvolvendo vegetação, mas dois fatores contribuem para a erosão que André mediu de 120 metros em 5 anos: as barragens das usinas hidroelétricas no médio S.Francisco, que retém a carga de fundo a montante, e a elevação do nível do mar, que mata a vegetação desestabilizando a barreira que é levada pela corrente litorânea. No processo, da antiga vila de Cabeço, onde nasceu o Flávio, restam as ruínas da escola e do cemitério que engancham as redes de pesca, e o farol abandonado para fora do canal atual. A Marinha instalou um farol novo a barlavento sobre as dunas no lado alagoano do rio. 239 Acima: Ruínas do Cabeço (2006) e a retrogradação da linha de costa(2011), 200m para dentro; abaixo o farol antigo em Sergipe, já fora do canal, e o novo em Alagoas. Dia 23 fomos de novo na praia de fora na baixa mar, porque o navegador queria caminhar nas ruínas da vila que o mar levou à procura de alguma coluna que pudesse estar no caminho de saída do Pinauna. Caminhou pelo canal com água pelo pescoço e não topou com nada alto. Depois fomos visitar o Flávio, que nos recebeu com água de coco, e mostrou a opção de vida que escolheu após se aposentar, há 12 anos. Ele está fazendo um trabalho de conscientização regional, integrando os descendentes dos Caetés que foram escorraçados da região após o episódio do bispo Sardinha, os descendentes dos holandeses, de olhos claros como Alexandre, e os quilombolas. Pela tarde as meninas fizeram uma ornamentação de natal dentro do Pinauna, com árvore, papai Noel, presentes e muita comida. Depois da faina festeira Mila aproveitou as habilidades do navegador e fez um corte de cabelo de verão. Eu recolhi o motor de popa e subi o caíque, ficando tudo pronto para retornar no dia 24, que Liana tem que chegar dia 26 para atender a um cronograma de viagens denso até 12 de janeiro. 240 Dia 24, lua nova, a maré grande começou a encher às 09:30. Às 12:45 estávamos fora da barra, com 5m de água por baixo da quilha, vento E 15-18 nós, correnteza favorável de 1 nó apesar da enchente. Vela em cima, SOG 8,2, COG 210 true, T agua 25,1, Tar 29,9°C, P=1014mb, UR62%. Às 14:30 o vento caiu para 10 nós e subimos o gennaker novo no magazinador, arribamos 5° para COG 215 T para passar por fora das atividades petrolíferas em Aracaju, e o SOG acelerou para 8,3 com vento aparente a 87° por bombordo. Às 17:15 cruzamos a isóbata de 1000m descendo para o talude continental, o vento cresceu para 15 nós, enrolamos o gennaker, abrimos a genoa e o SOG passou para 8,5-9 nós. Velejada confortável, mas Lara Pocotó enjoou de novo. Tentei de tudo para ela descer e ver o deep blue na gaiuta de escape dentro da cabine, mas nada. Às 19:30 já tínhamos passado Aracaju, com a foz do Vaza Barris a 20 milhas no través e haviam 9 indicações no AIS: navio por todo lado, mais as plataformas de petróleo lá por dentro. Parou a falação no rádio VHF, um tal de Apoio deve ter encerrado o expediente. A noite foi tranqüila e Liana fez o turno de Beto, das 2 às 5. Durante a madrugada a pressão atmosférica subiu para 1016mb e o vento merrecou. Ao amanhecer André assumiu, enrolou a genoa e abriu o gennaker, mas a velocidade ficou abaixo de 6 nós; sem correnteza no talude continental. Tagua 24,3, Tar 28,7°C. Quando eu acordei às 8, havia um déficit de carga nas baterias de 200 Ampèrs, o gerador eólico parado e a gente andando a 4 nós. Liguei os dois motores e passamos a andar a 6, empurrando 30 A.h nas baterias. Às 12:45 registramos um progresso de 154 milhas em 24 horas, bom para quem está cruzeirando com a neta. O vento E-NE chegou com 15 nós. Desliguei os motores e passamos a andar a 8. Soltei a linha de arrasto e depois do peixe arrebentar três rapalas enferrujadas, incluindo a lula vermelha matadora, embarcamos uma cavalinha de 2 kg. André num surto de cooperação com a Rainha tratou o peixe lá na popa. Às 15h aterramos na Laje da Espera, em Guarajuba, fizemos um jibe no gennaker e fomos costeando perto da praia. Às 18 horas tínhamos o farol de Itapuã no través, mas mantivemos o rumo sudoeste. Quando passamos defronte ao Rio Vermelho foi que arribamos em popa para oeste admirando a imponência do farol da Barra, que numa enquete Lara votou como a visão mais bonita da viagem. Às 24h atracamos no píer em Aratu, o hodometro do GPS marcando 220 milhas em 36h14min desde a saída dentro do rio, hodometro do velocímetro marcando 219,3 milhas, o que nos ensina que subindo para o norte no verão o melhor é ir pelo talude continental para evitar a forte correntada que experimentamos na ida velejando na plataforma perto da costa. 241 EGITO, 2012 O Egito atual é um deserto quadrado com um milhão de km2, assim do tamanho do Mato Grosso, atravessado de sul para norte pelo rio Nilo que vem das áreas altas da Etiópia. A área é ocupada por humanos nômades desde o Pleistoceno médio, cerca de 120 mil anos, quando a caça e a vegetação era disponível devido à fertilidade do solo. As rochas vulcânicas silicosas da Etiópia eram propícias para a construção de ferramentas da idade da pedra. No decorrer do período Quaternário, com o fechamento do mar de Tetis, do qual o Mediterrâneo é o resquício, o clima árido do norte da África tornou-se mais quente e seco, forçando as populações a se concentrarem ao longo do vale do Nilo, na África, e ao longo da Mesopotâmia, mais ao norte, na Ásia. Foram nestas regiões onde se iniciou a agricultura e a domesticação de animais. A planície fértil do Nilo, no Pleistoceno, tipo o atual cerrado brasileiro, deu aos humanos a oportunidade de desenvolver uma economia agrícola sedentária e 242 uma sociedade mais sofisticada, centralizada e escravagista, que se tornou um marco na história da humanidade. Por volta de 5500 aC , pequenas tribos que viviam no vale do Nilo desenvolveram uma série de culturas, demonstrando o firme controle da agricultura e pecuária , e identificável pela sua cerâmica e objetos pessoais, tais como pentes, pulseiras e colares. No sul do Egito, a cultura Naqada , começou a se expandir ao longo do Nilo em cerca de 4000 aC . Já no Período Naqada I, os egípcios pré-dinásticos importavam obsidiana da Etiópia, usada para moldar lâminas e outros objetos. Ao longo de um período de cerca de 1.000 anos, a cultura Naqada desenvolveu a partir de algumas pequenas comunidades agrícolas uma poderosa civilização cujos líderes controlavam as pessoas e os recursos do vale do Nilo. Estabelecido um centro de poder em Hierakonpolis , o líder Naqada III ampliou seu controle sobre o norte do Egito ao longo do Nilo . Foi neste período que os dominadores que adoravam o sol (Rá) passaram a ter sepultamentos reais, com o corpo em posição fetal voltados para o poente, onde o sol morria, e de onde se tem registro dos primeiros símbolos egípcios dinásticos, tais como a coroa branca do Alto Egito e o deus falcão, Hórus. Durante a última fase prédinástica, a cultura Naqada começou a usar símbolos escritos o que eventualmente evoluiu para um sistema completo de hieróglifos para escrever a antiga língua egípcia (copta). O vale do Nilo experimenta três estações ao longo do ano as quais tem influência direta na vida: a estação da cheia, no verão, a do cultivo (semeadura e colheita), e a da seca, que exige uma organização social de estocar para esperar a próxima cheia. Esta contingência natural criou a possibilidade de compreender a ciclicidade da vida, a qual foi interpretada como vontade do deus Amon. O medo e a ignorância, os fundamentos de todas as religiões, propiciaram aos povos do Nilo a cultuarem a trindade, deus-homem-animal, entendendo que um corpo de homem com uma característica de animal, exemplo, o vigor do falcão e do crocodilo, que devoravam os humanos, ou a maternidade da vaca que nutria o bezerro, fossem unidos num deus, como Iris, com corpo de mulher e cabeça de vaca, ou seu poderoso filho Hórus, com corpo de homem e cabeça de falcão. O rei dos deuses, Amon, o Criador, era representado por corpo de homem com a cabeça de carneiro, com chifres curvos e cauda curta. Para prestar homenagem aos deuses, assegurar a legitimidade da santissima trindade e, receber os donativos que asseguravam a proteção divina (tipo permitir um ano de boas colheitas), apareceram os sacerdotes, que dominavam uma variedade da escrita hieroglífica, a hierática, diferente da escrita demótica, a popular dos escribas, e referendavam um rei que tinha poderes divinos. Os reinados foram se sucedendo com estabilidade até que houve a unificação do alto e do baixo Nilo em torno de 3 150 a.C sob o primeiro faraó, Menés (Narmer em grego). Em 3000 a.C. a sede do império foi transferida para Mênfis, 30 km a sul do Cairo atual, e próxima ao delta do Nilo, e esta civilização pioneira se desenvolveu ao longo dos três milênios seguintes. Esta história milenar é contada nos hieróglifos pintados nos tumulos dos faraós das três grandes dinastias imperiais marcadas pela estabilidade política, prosperidade económica e florescimento artístico, separados por períodos de escassez devidos a secas prolongadas ou enchentes devastadoras com consequentes instabilidades políticas, conhecidos como Períodos Intermediários. O Antigo Egito 243 atingiu o seu auge durante o Império Novo (ca. 1 550-1 070 a.C.), uma era cosmopolita durante a qual o Egito dominou, graças às campanhas militares do faraó Tutmés III, uma área que se estendia desde a Núbia, entre a quarta e quinta cataratas do rio Nilo, até ao rio Eufrates, tendo após esta fase entrado em um período de lento declínio. O Egito foi conquistado por uma sucessão de potências estrangeiras neste período final. O governo dos faraós terminou oficialmente em 31 a.C., quando o Egito caiu sob o domínio do Império Romano e se tornou uma província romana, após a derrota da rainha grega Cleópatra VII na Batalha de Ácio, referida na Eneida de Virgílio. Com o domínio romano o Egito tornou-se cristão, o que fez incorporar à religião cristã os simbolos pagãos: os discos solares egipcios tornaram-se as auréolas dos santos católicos. Os pictogramas de Ísis dando o seio a seu filho Hórus milagrosamente concebido, tornaram-se a base para as modernas imagens da Virgem Maria com o Menino Jesus no colo. E praticamente todos os elementos do ritual católico – a mitra, o altar, a doxologia e a comunhão, o ato de “comer Deus” por assim dizer – foram diretamente copiados de religiões pagãs místicas mais antigas. O Deus pré-cristão Mitras – chamado o Filho de Deus e a Luz do Mundo – nasceu no dia 25 de dezembro, morreu, foi enterrado em um sepulcro de pedra e depois ressuscitou em tres dias. Aliás, o dia 25 de dezembro é também o dia de celebrar o nascimento de Osiris, Adônis e Dionisio. Até mesmo o dia santo semanal dos cristãos foi incorporado dos pagãos, isto é, a cristandade celebrava o sabá judeu no sábado, mas o imperador romano Constantino mudou isso de modo que a celebração coincidisse com o dia em que os pagãos veneram o sol: hoje a maioria dos fiéis vai à igreja na manhã de domingo, sem fazer a menor idéia que estão ali para pagar um tributo semanal ao deus-sol, e por isso em ingles o domingo é chamado de sun-day, o dia do sol. Mila levou para ler na viagem o livro de Thomas Mann, de 1938 (Editora Nova Fronteira) José no Egito. Este autor alemão foi agraciado com o premio Nobel de Literatura em 1929, e o livro descreve a sociedade dos faraóis da primeira dinastia. O José, personagem principal do livro é neto de Abraão, citado com destaque no livro do Genesis da Biblia como a sétima geração depois de Noé, o da arca do diluvio, e a quem foi prometida a terra de Canaã. Uma interpretação jocosa do capítulo 17 do Genesis da Biblia, é que Abraão era tão velho quando foi agraciado com a promessa divina (99 anos), que Deus ofereceu para ele o Canadá, ele entendeu mal e ficou naquele deserto insólito de Israel. Pois bem, o livro de Thomas Mann expande a parte IV do Genesis, capítulos 37 a 50, permitindo uma visão da vida no Egito no Império velho (notabilizado pelas piramides de Gizé). Depois do Genesis, a Biblia trata do Êxodo, quando o judeu Moisés, que nasceu no Egito e foi salvo da matança ordenada pelo Faraó, pela sua filha (do faraó), leva o povo de Israel de volta com aquela estória da abertura do Mar Vermelho e a subida no monte Sinai para receber a Tábua dos 10 mandamentos. Esta correlação entre a Biblia e a história do Egito permite uma estimativa de datação das ocorrências do velho testamento. O Novo Império (c. 1 550-1 070 a.C.) teve início com a XVIII Dinastia e marcou a ascensão do Egito como potência internacional que, no seu auge, se expandiu para o sul até Jebel Barkal, na Núbia, e incluía partes do Levante, no leste. Alguns dos faraós mais conhecidos pertencem a este período, como Ramsés I, Ramsés II, Akhenaton e 244 sua mulher Nefertiti, Tutankhamon e Ramsés III, todos sepultados no vale dos reis em Luxor. A primeira expressão de monoteísmo é desta época, com o atonismo. O país foi posteriormente invadido por líbios, núbios e assírios, mas terminou por expulsá-los a todos. Em 639 da era cristã, o Egito foi tomado pelos árabes muçulmanos sunitas, o grupo majoritário dos seguidores do islã. Os egípcios começaram então a misturar a sua fé monoteista com crenças e práticas locais que sobreviveram através do cristianismo copta, o que deu origem a diversas ordens sufistas que existem até hoje. Com o dominio muçulmano o islamismo passou a ser a religião dominante, com base no Alcorão, e o árabe gradualmente passou a ser a lingua falada e escrita no Egito. Até hoje, o dia santo da semana lá é a sexta-feira. No final do Século XVIII, ocorreu a revolução francesa, e Napoleão Bonaparte passou a dominar a Europa. Vendo que não tinha qualquer possibilidade de invadir a Inglaterra, Napoleão planejou derrotá-la no setor econômico. A base da economia inglesa eram as colônias, das quais a Índia era a principal. Napoleão planejou bloquear o longo caminho inglês para a Índia, que passava por território egípcio, entre Suez e o Mediterraneo. A 19 de maio de 1798, partiu com 18 mil soldados para conquistar o Egito. O sultão turco Selim III, que encarregara os mamelucos do xeque Abdallah al Charkawi de administrar o território egípcio, tentou fazer uma guerra santa contra Napoleão. Suas tropas precariamente armadas, porém, tornaram-se presas fáceis para os franceses, o que não foi o caso dos destróiers do almirante inglês HoratioNelson. Eles conseguiram derrotar a frota napoleônica na baía de Abukir; reconquistaram a rota inglesa para a Índia e fecharam o caminho de retorno de Napoleão para a França. Napoleão mandou construir em Roseta, na entrada ocidental do Nilo, o Forte Julien. O oficial frances Bouchard encontrou nas escavações uma peça de granodiorito com inscrições em hieroglifos (hierático e demótico) e uma terceira versão em grego clássico. A escrita hieroglifa estava perdida desde o Sec.IV,e este achado, se traduzido, poderia permitir decifrar toda a história escrita nos templos imponentes de Luxor e de Karnak, bem como nas ricas camaras funerárias do vale dos reis. A estela tem 114 cm de altura, 72 cm de largura, cerca de 28 cm de espessura e pesa 760 kg. Está em exposição no Museu Britânico, em Londres, havendo uma réplica, também em granodiorito no Museu do Cairo. A estela foi erguida após a coroação do rei Ptolomeu V, e foi inscrita com um decreto que estabelecia o culto divino do novo soberano. O decreto foi proclamado por 245 um congresso de sacerdotes reunidos em Mênfis, sua data é "4 de Xandico", no antigo calendário macedônico, e "18 de Meshir" no calendário egípcio, que correspondia a 27 de março de 196. O ano é citado como o nono ano do reinado de Ptolomeu V (equivalente a 197/196 a.C.), o que é confirmado através da citação de quatro sacerdotes que foram nomeados para o cargo no mesmo ano. Levantou-se a hipótese de que os três textos fossem o mesmo, embora apenas o grego pudesse ser entendido. O conhecimento sobre a escrita em hieróglifos encontrava-se perdido desde o século IV d.C., e do demótico desde pouco depois. Desse modo, dois problemas confrontavam os arqueólogos que trabalhavam com as inscrições: saber se os hieróglifos representavam uma simbologia fonética ou apenas símbolos pictóricos, e determinar o significado das palavras individuais. O médico britânico Thomas Young obteve um progresso substancial em 20 anos de estudo. Mas o mérito final da tradução completa, em 1822, pertence ao linguista francês Jean-François Champollion, que desta forma iniciou a ciência do estudo de assuntos referentes ao Egito, a egiptologia. Conteúdo da Pedra de Roseta O faraó Ptolomeu V Epifânio havia concedido ao povo a isenção de uma série de impostos. Em sinal de agradecimento, os sacerdotes em Mênfis ergueram uma estátua de Ptolomeu V em cada templo e organizaram festividades anuais em sua honra. Para deixar registrada para sempre tal decisão, gravaram-na em várias estelas comemorativas e colocaram uma delas em cada templo importante da época. Os soldados de Napoleão encontraram uma dessas pedras. Apesar de estar mutilada, foi possível reconstituir a totalidade do texto original da estela, graças a outras cópias do decreto que foram encontradas. Ele reza, numa tradução livre: No reinado do jovem - aquele que recebeu a realeza de seu pai - senhor das coroas, glorioso, que criou o Egito, e é piedoso com os deuses, superior a seus inimigos, que recuperou a vida civilizada do homem, senhor dos Banquetes de Trinta Anos, assim como Hefesto, o Grande; um rei, como o Sol, o grande rei das regiões alta e baixa; descendente dos Deuses Philopatores, aquele que foi aprovado por Hefesto, a quem o Sol deu a vitória, a imagem viva de Zeus, filho do Sol, Ptolomeu eterno, amado de Ptah; no nono ano, quando Aeto, filho de Aeto, era sacerdote de Alexandre...; Os sumos sacerdotes e profetas e aqueles que entram no santuário interior para a cerimônia de vestição dos deuses, e os portadores dos penachos, e os escribas sagrados, e todos os outros sacerdotes... estando reunidos no templo em Mênfis naquele dia, declararam: Como o rei Ptolomeu, o eterno, o bem-amado de Ptah, o Deus Epifânio Eucaristo, filho do rei Ptolomeu e da rainha Arsínoe, Deuses Filopatores, muito beneficiou os templos e aqueles que residem neles, bem como todos aqueles que são seus súditos, sendo ele um deus vindo de um deus e de uma deusa (como Hórus, o filho de Ísis e Osíris, que vingou seu pai Osíris), e estando 246 inclinado com benevolência em relação aos deuses, dedicou aos templos renda em dinheiro e trigo, e teve enormes gastos para trazer o Egito à prosperidade, e para manter os templos, e foi generoso através de seus próprios meios, e, dos impostos e taxas que recebe do Egito, isentou totalmente alguns, enquanto a outros abrandou [o que era cobrado], para que estas pessoas e todas as demais pudessem viver em prosperidade durante seu reinado ...; Pareceu bem aos sacerdotes de todos os templos do país aumentar grandemente as honras já existentes do rei Ptolomeu, o eterno, o bem-amado de Ptah ... E um festival será realizado em homenagem ao rei Ptolomeu, o eterno, o bem-amado de Ptah, o Deus Epifânio Eucaristo, anualmente, em todos os templos da nação a partir do primeiro de Toth, por cinco dias; durante o qual todos deverão usar guirlandas, e executar sacrifícios, e as outras homenagens costumeiras; e os sacerdotes serão chamados de sacerdotes do Deus Epifânio Eucaristo, além dos nomes dos outros deuses a quem servem; e seu sacerdócio deverá ser inscrito em todos os documentos formais e cidadãos comuns também poderão assistir os festivais e financiar o santuário mencionado, bem como tê-los em suas casas, prestando a eles as costumeiras honrarias durante os festivais, tanto mensalmente quanto anualmente, para que todos fiquem sabendo que os homens do Egito exaltam e honram o Deus Epifânio Eucaristo, o rei, de acordo com a lei. O decreto concluía com a instrução de que uma cópia deveria ser colocada em cada templo, inscrita na "língua dos deuses" (hieróglifos), na "língua dos documentos" (demótico) e na "língua dos gregos", que era utilizada pelo governo ptolomaico. A estela quase certamente não se originou na cidade de Rashid (Roseta), onde foi encontrada, mas provavelmente veio de algum templo situado mais no interior, possivelmente na cidade real de Saís O templo do qual ela foi retirada provavelmente foi fechado por volta de 392 d.C., quando o imperador romano oriental Teodósio I ordenou o fechamento de todos os templos de cultos não-cristãos. Em algum ponto depois disso a estela se partiu, e a sua maior parte se tornou o que atualmente é conhecido como a „Pedra de Roseta‟. Este trabalho de arqueologia permitiu que os egipcios de hoje tenham no turismo sua principal fonte de emprego. Em 1882, a Grã-Bretanha invadiu o Egito e os britânicos venceram rapidamente as forças egípcias no país e impuseram o controle quase total da coroa britânica. Eles que já tinham o controle acionário do canal de Suez, assumiram a operação e os rendimentos do canal. Durante a Primeira Guerra Mundial os britânicos afastaram os franceses do controle do canal, dividiram o Oriente Médio à conveniência deles e estabeleceram os limites territoriais do Egito como acontece até hoje: 247 O limite oeste fica no meridiano 25°E, o limite sul no paralelo 22°N, entre a 1ª e a 2ª cachoeira. A leste o Egito acaba no mar Vermelho, sendo que a parte asiática, a peninsula do Sinai faz fronteira com a Arábia Saudita, e Israel. A norte o Egito acaba no mar Mediterrâneo. O meandro que o rio faz para leste no mapa acima é em Luxor, e na parte concava do meandro, a oeste fica o „Vale dos Reis‟, onde foram localizadas 61 sarcófagos, a maioria vandalizada por assaltantes, alguns dos quais constituem hoje patrimonio mundial. No final do Sec.XIX, quando os ingleses dominavam o mundo, assumiram também o nordeste da África como colônia. Mapearam todo o vale do Nilo e nomearam com o nome das realezas inglesas os lagos que retém as águas que descem do planalto da Etiópia e alimentam o Nilo Branco. Os lagos, na altura do equador, funcionam com divisores de águas, em Uganda e no Congo: Lago Victória, o maior deles, e o mais alto, na cota de 1135m, lago Edward (912m) , lago Albert (634m). Os ingleses construíram uma represa no Nilo próximo a Assuã em 1901, a qual permitiu o controle das enchentes e a agricultura do algodão durante todo o ano, mas era pequena e quase se rompeu com a enchente de 1946. Em 1947 a Inglaterra perdeu o controle sobre a Índia, e em 1952 caiu o rei do Egito. Com apoio da União Soviética o general nacionalista Gamal Abdel Nasser, o homem forte e querido do Egito, nacionalizou a companhia do canal de Suez com o intuito de financiar a construção da Barragem Alta de Assuã. Expulsou os ingleses, restaurou o tráfego no Egito com a mão pela direita e tornou o árabe a única língua oficial do país. Em 1967 a aviação israelense apoiada 248 por Estados Unidos, Reino Unido e França invadiu a península do Sinai, e o canal ficou fechado até 1975. Neste meio tempo foi construída a nova barragem, o que modificou o comportamento milenar da agricultura de várzea no rio Nilo, propiciando a salinização do solo à jusante da barragem, e um processo erosional na área do delta. Nasser morreu em 1970, e o presidente Anwar Sadat recuperou o canal com a Guerra do Ramadã em 1973, quando logrou destruir as fortificações do exército israelense ao longo do canal. A união dos povos árabes nestes conflitos com Israel levou a uma crise do petróleo quando a OPEP aumentou os preços em 400%, num contexto de déficit de oferta, com o início do processo de nacionalizações das jazidas, do que resultou numa série de conflitos envolvendo os produtores árabes e numa prolongada recessão nos Estados Unidos e na Europa, a qual desestabilizou a economia mundial. A economia do Egito atual é alicerçada em quatro pilares: 1.a taxação de navios que atravessam o canal de Suez 2.A exportação do excedente do petróleo produzido no golfo de Suez, 3. A produção e industrialização do algodão e 4. Turismo. A distribuição da renda é muito ruim: uma minoria de industriais do algodão egípcio é rica e mora em palácios no Cairo e a grande maioria da população é miserável, vivendo de subsistência. O salário mínimo é o equivalente em libra egípcia a US$20. No ano passado (2011) a população se rebelou numa concentração na Praça Tahrir, incendiou prédios públicos e conseguiu derrubar o presidente Hosni Mubarak, no poder por 31 anos, tido como corrupto e ladrão por todos com quem conversei. Na administração „neoliberal‟ de Mubarak as empresas públicas egipcias foram vendidas, os políticos enriqueceram, uma junta militar assumiu o controle da nação e o turismo ficou prejudicado, aumentando a miséria da classe média que vive desta atividade. No ultimo fim de semana que passei lá (junho 2012) foi realizado o segundo turno das eleições presidenciais, mas a maioria do pessoal com quem conversei não estava disposto a votar porque os dois candidatos „eram ruins‟. O que tinha vantagens nas pesquisas era um ex-ministro de Mubarak (o ex-presidente está moribundo e condenado a prisão perpétua), e o outro é o Mohamad Mursi, engenheiro, professor universitário com doutorado nos EUA, presidente do partido Justiça e Liberdade e lider da Irmandade Muçulmana. Os muçulmanos acham que o dogma religioso pode se acirrar se o Dr. Mursi for eleito, e que muitos cristãos já estão pensando em deixar o país. Nos dias da eleição eu estava mergulhando em Sharm el Sheikh e não notei nada de anormal, exceto a presença de militares na rua. Mas no dia seguinte, no Cairo, quando eu voltava de um jantar num restaurante flutuante no Nilo, havia uma concentração na Praça Tahrir comemorando antecipadamente o indicativo de vitória do lider muçulmano. Um resumo do roteiro turístico para mostrar as fotos: Voamos TAP Salvador-Lisboa-Barcelona que Mila queria rever a arquitetura de Gaudi e nós fariamos uma parada, que eu não tenho mais idade para voar 14 horas seguidas: ói ela ai na Praça Colón onde começa o calçadão da Rambla; depois fomos na marina visitar o interior de um galeão espanhol: 249 . No dia seguinte chegamos no Cairo na hora do jantar e nos instalamos no LeMeridien Pyramids, em Gizé, bem defronte das pirâmides milenares onde é apresentado um show de luz e cores com feixes de laser: Pyramids & Sphinx " EGYPT " Sound & Light show - YouTube. No outro dia era meu aniversário, e fomos pela manhã ao Museu do Cairo, na praça Tahir. O acervo é muito rico, mas com uma apresentação pobre. O ponto alto é o tesouro de Tutancamom, um faraó da XVIII dinastia do Império Novo, que morreu aos 19 anos em 1324 aC e cuja câmara funerária no vale dos reis era um subterrâneo por baixo de outra anterior, dai que ficou preservada da vandalização. No museu do Cairo não é permitido fotografar, creio eu para que não fique evidente a esculhambação. A câmara funerária estava preenchida por quatro capelas em madeira dourada encaixada umas nas outras protegendo um sarcófago retangular de quartzito, tudo decorado em alto relevo. Dentro do sarcófago três caixões antropomórficos, a múmia no ultimo deles com o rosto coberto com a máscara funerária em ouro maciço. O resto do dia passamos circulando pelas pirâmides. . 250 Visitamos também uma loja de papiros, aonde vimos como se prepara o“papel‟(clica ai para ver o filme: COMO PREPARAR UM PAPIRO... NO EGITO): o caule do papiro, semelhante a uma cana, fina e sem os nós, de cor verde, é descascado como se faz com a cana. Daí se cortam tiras finas, que por serem quebradiças, vão ser prensadas para remover a água. Depois de submersas em água por uma semana o açúcar é parcialmente removido, elas se tornarem resistentes ao manuseio as tiras vão ser montadas como um tecido que é batido e prensado. Fica assim comprimido por mais uma semana que é o tempo que as lâminas se colam. Os gregos importavam os rolos de papiro que chamavam de biblos cujo plural é bíblia (coleção de livros). Quando chegamos ao hotel havia um bolo sem qualquer bilhete, que suponho tenha sido deixado pela gerência do hotel que viu meu aniversário no passaporte. Mila fotografou o egípcio típico: pobre, ignorante e religioso. Os homens são morenos a pardos, mais para alto que para baixo, cabelo pixaim, olhos escuros. A maioria se veste como a gente, mas a roupa típica do trabalhador é a chilaba. As mulheres geralmente estão cobertas, algumas de burca só com os olhos à mostra. Quando com a cabeça descoberta tem lábios carnudos, cabelo tratado, escuro e liso. Algumas têm olhos verdes que ressaltam como jóias na burca preta. São reconchudinhas e parideiras, tem muita criança no Egito. Dia 12 voamos num Embraer 170 (a Egipt Air tem uma flotilha de 12 desses aviões brasileiros) Cairo-Aswan, bem no trópico de Câncer 23°27‟ de latitude norte. Foi ai, quando a cidade se chamava Syene, no tempo do domínio grego sob o reinado de Arsínoe III, casada com o irmão Ptolomeu IV, com quem teve um filho, Ptolomeu V Epifânio, aquele homenageado na pedra de Rosetta – os gregos não cruzavam com o gentio local, e o casamento incestuoso era muito mum – toda esta história foi lida nos hieróglifos! Pois bem voltando a Syene, o grego Eratóstenes que ai vivia, matemático, bibliotecário e astrônomo, fundador da disciplina geografia, observou no dia do solstício do verão do hemisfério norte, 23 de junho, que o ao meio-dia o raio solar incidia perpendicularmente à superfície da terra, iluminando o fundo de um poço, portanto alinhando em Syene o centro do sol ao centro da terra. 251 Mas em Alexandria, distante de Syene como de Salvador a Maceió, um raio de sol, que ele genialmente considerou paralelo, no mesmo dia do solstício não ia para o centro da terra, formava um ângulo que ele mediu como 1/50 de uma circunferência. Com um camelo de passo uniforme ele mediu a distancia do arco de Syene a Alexandria, 5000 estádios. Então fez uma proporção simples, a circunferência da terra teria 50 vezes 5000 estádios = 250000 estádios. Considera-se que um estádio valia o que hoje consideramos uma milha romana, 1,6 km. Se você fizer a conta vai ver que Eratóstenes devia ter um camelo muito bem calibrado, porque mediu em 220 aC o tamanho da terra com muita precisão! E naquele tempo não existia a trigonometria nem as funções trigonométricas, e o ângulo era medido como uma fração da circunferência. Em Syene, hoje Aswan, fica a primeira cachoeira do Nilo, de quem vem do delta. Na área afloram granitos arqueanos, criando uma situação favorável para construir uma represa, e é ai que estão as duas, a dos ingleses de 1902 e a dos egípcios de 1970, chamada de Aswan Alta. Com a inundação consequente da barragem, que criou o lago Nasser, com área de 5x a baia de Todos os Santos, houve o remanejamento do templo de Abu Simbel para a margem do lago a 280 km de distância de Aswan, perto da fronteira do Sudão. e de uma comunidade Nubia para a parte baixa da represa. Chegamos em Aswan antes do almoço e nos instalamos num navio de cruzeiro considerado 5 estrelas, o M/S Amarante, com todas as cabines externas. Após o almoço fomos de lancha visitar a comunidade núbia e a represa: A Assuã Alta tem 3600 metros de extensão no topo, 980 metros de extensão na base e 111 metros de altura. O volume do reservatório é de 43 milhões de m³ e a vazão máxima é de 11 000 m³ por segundo. Existem vertedouros adicionais de 5 000 m³ para épocas de cheias. São 12 turbinas instaladas, cada uma produzindo 175 megawatts de energia. 252 A barragem vista de baixo Rio Nilo a jusante da represa tocando a lancha rio acima Lago Nasser ou Lago de Nubia, que se estende até o Sudão No caminho da comunidade Nubia Obelisco inacabado Abaixo, a Bacia hidrográfica do Nilo. Veja o lago Nasser na fronteira com o Sudão; o Nilo Azul descendo das terras altas da Etiópia e o Nilo Branco vindo da Tanzânia e Uganda. Somando tudo o rio Nilo é quase do comprimento do Amazonas, mas a vazão atual dele na foz é hoje equivalente à do São Francisco, ou do rio Parnaíba, 100 vezes menor que a do Amazonas. Mas o Nilo existe desde o Eoceno, e durante o Mioceno ele foi muito mais possante do que é hoje. 253 Junto à represa existe um obelisco inacabado, ilustrando a grandiosidade do trabalho de cortar um bloco de granito de quase 50m e mais de 1000 toneladas. Uma fratura descoberta tardiamente fez com que a preparação ficasse interrompida, mas deixou vestígios da tecnologia usada para cortar e polir tais monumentos. A esta altura Mila foi no barco e eu segui de camelo com uma turista italiana para visitar a comunidade Nubia, onde supostamente poderíamos interagir com uma 254 tradição cultural. A visita foi decepcionante: a comunidade é negra, muito pobre, com cerca de 4 filhos por mulher. no contra vento e sobe em popa. Tem uma bolina de aço para ajudar Mila desembarcou na comunidade e fomos a uma casa onde os anfitriões nem apareceram; um atendente serviu um chá e mostrou um crocodilo criado num buraco. No dia seguinte, 13 de junho, o navio só sairia no final da tarde e fomos velejar de felucca. Como não tem mais árvores, as felucas atuais são feitas de aço, com um leme raso e longo para trás, pesado de controlar no contra-vento. A vela é em pena, de algodão, com uma verga enorme quando comparada com a dos saveiros da Bahia. Também aqui no rio o vento é maneiro, de norte, de forma que se desce o rio a orçar. Em Aswan ainda visitamos uma mesquita. Tiramos os sapatos na entrada, vai-se a uma dependência onde existe um lavatório para rosto, braços e pés, e ai se adentra o salão de orações. O cabeça branca que manuseou o Alcorão é o nosso guia Muhamed Youssef,que fala português e nos acompanhou em todo o cruzeiro de três dias até Luxor. O M/S Amarante navegou a noite toda, e lá do convés na noite escura com a lua minguante, localizei a estrela polar alta no céu, no rabo da Ursa Menor, que eu acho mais parecida com o cabo de um carrinho de mão. Fomos à ponte de comando que é aberta aos passageiros onde o comandante nos recebeu com alegria e deixou Mila timonear o leme hidráulico do barco. O único instrumento de navegação, como no Amazonas, é um farol para enxergar o basuro à noite. Havia um radar, mas não funcionava. Bussola, nem 255 pensar. É tudo no olho. Quando acordamos no dia 14 estávamos atracados no porto em Kom Ombo. De Aswan para KomOmbo adentramos uma bacia sedimentar constituída por arenitos em camadas tabulares, aparentemente paleozóicas. O templo de KomOmbo é em arenito, e é dedicado aos deuses Sobek e Haroeris, daí que tem dois altares em granito, trazidos de Aswan. A foto ao lado é da ruína no fundo do templo, onde ficam os altares. Entre os altares tem um buraco disfarçado onde ficava escondido o sacerdote, que falava com os visitantes chamando pelo nome anotado na entrada pelos auxiliares. As oferendas eram em comida, grãos e animais. Hoje o visitante paga em libra egípcia ou em euro. Seguindo para norte a seção sedimentar fica mais argilosa. Em Edfu o templo fica sobre sedimentos argilosos aparentemente de talude, e as colunas do templo são de arenito. O átrio é de granito polido de tal forma que parece metal. A muralha do templo é de adobe. Na terceira noite a bordo houve festa de despedida e em Esna passamos a eclusa de uma barragem antiga. As outras fotos são de crocodilos mumificados e endeusados. No quarto dia do cruzeiro chegamos em Luxor, que fica numa bacia calcária, aparentemente mesozoica. O cameraman de bordo me informou que não existe exploração de petróleo na área porque o deserto está contaminado com minas explosivas desde o tempo da guerra, e que de vez em quanto explode uma. Mas “é muito caro fazer a descontaminação da área, e o Egito vem tentando ajuda internacional de quem colocou as minas”. Em Luxor a parte oriental, na margem direita do rio, é a cidade viva, na planície de inundação. A parte ocidental é o deserto, a cidade dos mortos, onde fica o “vale dos reis”. Cada câmara funerária no vale dos reis é um complexo de câmaras escavadas num túnel com 5m de altura, com as paredes todas caprichosamente esculpidas e no fundo a câmara mortuária com um sarcófago de granito e uma estátua deitada na tampa. Nos corredores laterais existem capelas e câmaras com tesouros. Entramos na câmara de Ramsés II, um incestuoso que tinha um harém com 100 mulheres, inclusive 3 filhas dele. 256 Luxor também exibe templos monumentais e grandiosos. Os templos eram para os ricos e os sacerdotes, que devia ser quem efetivamente mandava, e para os reisdeuses referendados pelos sacerdotes. O povão não tinha acesso a estes templos. Depois do vale dos reis visitamos dois templos na cidade viva, oriental. Tudo aqui é grandioso e imponente. A ultima foto acima mostra o processo de construir as colunas: os blocos de arenito são empilhados sobrepostos, depois cimentadas, alisados, polidos e esculpidos. Mas os obeliscos são de granito, e são dedicados à adoração do deus sol, Amon Rá. Os antigos vendo que o sol dava vida às plantas e ao homem olhavam para ele como um deus, o grande doador da vida. Para eles, o obelisco também tinha um significado sexual. Sabendo que através da união sexual era produzida a vida, o falo (o órgão masculino da reprodução) era considerado, junto com o sol, um símbolo da vida, e Amon-Rá é apresentado com o falo ereto. Estas eram as crenças representadas pelo obelisco, um dos quais foi levado para a Praça de São Pedro, no Vaticano. Com este aprendizado estamos satisfeitos com o turismo cultural do Egito. Vamos agora fazer o que efetivamente nos interessava do turismo egípcio: mergulhar no mar Vermelho, que o pessoal dos dive center reputa como o sonho dos mergulhadores 257 O outro lado do turismo no Egito é representado pelos resorts luxuosos no golfo de Suez, como Costa do Sauipe na Bahia ou Varadero em Cuba. No dia 15 de junho, uma sexta-feira, que no Egito é o dia de descanso semanal, voamos ao meio-dia num Embraer 170 para Sharm El Sheikh, no vértice sul da península do Sinai. De passagem se vê que o delta do Nilo, ao invés de exibir uma 'planicie deltáica' de lama, é uma vasta área agrícola, 30 vezes a área do delta do Mississipi. Lá estão instaladas várias comunidades urbanas. O Nilo existe desde o Eoceno, e no Mioceno o Mediterrâneo secou, de forma que o delta vai desde Port Said até Alexandria. Na época da civilização egípcia da idade do bronze, com a subida do nível do mar, a área já estava consolidada, e o delta do Nilo, que teve sete distributários, hoje, afogado e com a carga de fundo contida acima nas represas, está sendo erodido, não é mais exatamente um 'modelo recente de delta construtivo': sobraram dois distributários e lagos, com 50 milhões de anos de registro preservado. Saiu do vale do Nilo é tudo deserto, mas quando atravessa o golfo de Suez o normal para o turista é padrão 5 estrelas. Na península do Sinai, no Egito asiático, o avião passa sobre uma zona de granito arqueano fortemente dobrado e falhado, onde fica o Monte Sinai, o local onde Moisés recebeu a tábua dos dez mandamentos. Nada excepcional, o ponto mais alto tem 2000m, acessível por escada sem precisar ser alpinista. Aliás, diga-se a favor dos egípcios, que o receptivo turístico é exemplar, cuidadoso com a segurança, sem falhas, pontuais. Em todos os serviços contratados havia guia falando português; a reserva no dive center foi perfeita, os equipamentos a serem alugados reservados com antecedência (não levei nada daqui) traslados conforme a programação da super Denytur. Olha ai a máquininha de fazer geologia no deserto. 258 O dia 16 foi todo no mar. Saímos às 08:40 e chegamos às 17:30. O custo de alugar colete back-pack, regulador, máscara, bota, nadadeira e roupa de neoprene foi de 30 euros. O custo do mergulho no pacote, já inclui o tanque de ar comprimido e o cinto de chumbo. O dive-master não falava português, mas havia uma instrutora portuguesa com sotaque brasileiro, Rosa, que foi nos apanhar no hotel e estava a bordo. Foram dois mergulhos com almoço entre eles. A comida no Egito é saudável, muita verdura, peixe e galinha. O primeiro mergulho foi num local chamado Templo. Profundidade máxima 25m, água na superfície a 27°C, no fundo 24°. Visibilidade 1520m. A fauna é de peixe miúdo, colorido e abundante, que Mila, que fez snorkel adorou. No fundo, o pessoal ficou ouriçado fotografando uma arraia de 40 cm! Mas em compensação havia uma diversidade de corais que dizem de 200 espécies. O local se chama Templo porque o coral faz uma coluna semelhante aos templos de Luxor. Minha dupla foi uma coroa escocesa cuidadosa e safa. O segundo mergulho foi num ponto chamado Middle Garden. Ao todo, no entorno de Sharm El Sheikh, entre a entrada do golfo de Suez e a do golfo de Aqaba, são 20 sítios de mergulho nos corais, mais três naufrágios. Uma biodiversidade bem estruturada. Muitos russos, alemães e ingleses. Não vi 259 nenhum russo mergulhando, mas tinha tanto russo por lá que o cardápio do restaurante é escrito em inglês e em russo. Eles são fáceis de serem reconhecidos porque são branquelos e tem um nariz côncavo característico. As alemoas tomam tanto sol que ficam parecendo umas lagostas. No domingo, que lá é dia útil, e esse em particular era dia do segundo turno da eleição presidencial, o animador do resort estava ensinando essa turma europeia toda alegrinha a dançar “Ai se eu te pego” cantado em português num disco de Michel Teló. Para mim foi divertido, mas não é nada que não se tenha aqui na costa do Brasil. Mas tem que ir lá para desmistificar e valorizar a riqueza da terrinha tropical muito querida. 260 CARIBE VENEZUELANO - 2012 A costa norte da Venezuela aberta para o mar do Caribe tem em linha reta 560 milhas náuticas endentadas desde o golfo de Pária a leste, no delta do Orinoco, até o golfo da Venezuela a oeste, o qual se conecta por um canal ao lago de Maracaibo, onde começou a produção do petróleo venezuelano após a 1ª guerra mundial. Toda esta costa norte, algo como de Cabo Frio a Salvador, tem praias de micro maré com muitas marinas estruturadas e de baixo custo, o recanto de velejadores cosmopolitas que fazem por ai suas bases, protegidos dos furacões que assolam o Caribe no verão e outono, e saem para velejar de través nos alísios pelas Ilhas de Barlavento eventualmente indo até a Flórida na alta estação caribenha, inverno e primavera. A Venezuela, formalmente República Bolivariana da Venezuela, proclamou sua independência dos invasores espanhóis em 1811 e tem uma tradição de domínio ditatorial e oligárquico até hoje. É um país de enormes recursos naturais, tendo sido divulgado pela OPEP em 2010 que aqui estão as maiores reservas de petróleo do mundo, 296,5 bilhões de barris, ultrapassando a Arábia Saudita que tem reservas de 264,5 bi bbl. Agora em 2012 as agencias certificadores internacionais reconheceram que as reservas provadas da Venezuela alcançam 300 bi bbl. Os recursos naturais da Venezuela foram explorados durante o Sec.XX por empresas estrangeiras, principalmente americanas, que até 1943 pagavam royalties até um máximo de 15% da produção. O governo venezuelano em 1943 aumentou esta taxação para um mínimo de 16,66%, mas não conseguiu que a distribuição da renda criasse benefício para os pobres do país, no qual a grande maioria da população vivia miseravelmente e sem educação. 261 Em 1960 a Venezuela se tornou membro fundador da OPEP, e em 1976 foi criada a PDVSA, como controladora de 4 empresas estatais e 14 companhias estrangeiras que operavam no país. Na década de 1990 houve uma crise econômica e o governo fez uma abertura que possibilitou a entrada em operação de 60 empresas estrangeiras, o que aumentou a produção para o máximo de 3,5 milhões de barris por dia em 1998. Neste ano, o militar e político Hugo Chaves, eleito presidente da república, fundou o partido PSUV, Partido Socialista Unido da Venezuela, com o propósito de libertar da miséria a maioria pobre da Venezuela. As políticas de Chávez têm evocado controvérsias na Venezuela e no exterior, polarizando opiniões de analistas. Ele tem um programa de rádio dominical, no qual critica o neoliberalismo e as relações exteriores dos Estados Unidos. Os seus opositores reconhecem que houve uma melhoria notável nos planos de aposentadoria, na saúde publica, na habitação e na educação. A Venezuela tem o mais alto salário mínimo da América Latina, o equivalente a US$400 no cambio oficial. Também existem críticas fortes, inclusive dos seus eleitores mais esclarecidos, à qualidade da educação, à corrupção, e à falta de indústria e de abastecimento. O poder aquisitivo das classes D e E aumentou 150% no período 1999-2005. Isso provocou uma enorme demanda no setor de produtos alimentares, que se vê pressionado e, muitas vezes, é incapaz de atendê-la. Tradicionalmente -- desde 1930, quando a Venezuela, ao invés de desvalorizar a moeda para proteger sua agricultura, optou por importar tudo o que consome, usando para isso suas receitas do petróleo -o país produz muito pouco alimento. Eu mesmo comprei no Unicasa, o melhor mercado de Puerto la Cruz, leite de Portugal, água mineral do Brasil; não tinha café solúvel, nem papel toalha nem limão. Todos os veículos são importados; estrangeiro para abastecer o barco com óleo diesel tem que pegar uma guia no posto, levar ao banco, pagar um imposto de 30% e voltar para abastecer. Mas sempre aparece um venezuelano que entrega a bordo as bombonas cheias, cobrando 1 bolívar o litro (R$0,2 no cambio oficial, R$0,08 no paralelo) e tendo um lucro de 1000%! Esta situação, do ponto de vista dos interesses brasileiros, faz com que a Venezuela seja muito bem vinda ao Mercosul, dando preferência aos produtos do grupo em detrimento dos americanos. Em 2001 Chaves revogou o regime regulatório vigente para produção do petróleo e aumentou a participação governamental, o que gerou uma greve dos petroleiros em 2002 resultando em 18 mil demissões, o que se refletiu na produção que declinou para 2,3 milhões de bbl/dia em 2010. Chaves tem um eleitorado fiel, tipo a torcida do Bahia: pobre, ignorante e barulhenta, a qual o reelegeu presidente em 2006 e na semana passada ao clamor de P’alante Comandante! Na página seguinte está o mapa geológico esquemático da Venezuela: as áreas altas do Escudo das Guianas (vermelho) e a faixa dobrada da Sierra Nevada (vermelho, laranja e roxo, a sul do Lago Maracaibo) constituem o embasamento. As bacias mesozoicas marinhas tipo rift e as margens passivas terciárias são as produtoras de petróleo em estruturas consequentes do empurrão dos Andes colombianos e da convergência das placas do Caribe e da América do Sul. Paralelo à costa na direção WNW-ESE observa-se um alinhamento de ilhas, Aruba, Curaçau, Bonaire, Los Roques, Orchila, Tortuga, La Blanquilla e Margarita, a marrom maior, acima do golfo de Cariacu. 262 Exceto Margarita, uma ilha grande com aeroporto para jato e onde ficam os resorts luxuosos, que é de sedimento Triássico, as outras venezuelanas são vulcânicas, no entorno das quais se desenvolvem atóis de areia branca e água cristalina transparente, com 28° C neste outono do hemisfério norte O track tracejado de 500 milhas náuticas, no mapa que abre este relato na p.261, foi o cruzeiro do Chufa, o Lagoon 38 de Lito Fernandez, que chutou o pau da barraca, saiu pelo mundo e está há seis meses fundeado na Marina Baia Redonda em Puerto la Cruz. O périplo de Lito está apresentado no site www.velejarcatamaran.com.br, e como não sou baú*, vou apresentar aqui minha versão do que ele me contou nas conversas de cockpit neste cruzeiro de 10 dias (15 a 25 de outubro de 2012) * Não ser baú. 1. Fam. Não guardar, ou não sentir-se obrigado a guardar, segredo de ninguém. 263 Lito é um galego de olhos azuis, nascido em berço de ouro, que cresceu como um playboy galinha em Salvador. Veleja desde cedo, e é um navegante ousado e seguro. Casou tarde, teve um casal de filhos e é um pai amoroso. Trabalhou com o pai numa rede de lojas que não quis herdar, e aos 40 anos abriu uma banca de factoring licenciada pelo Banco Central, vivendo uma vida de banqueiro que lida direto com o cliente. Em 2010 uma cliente que tinha uma empresa de logística descontava duplicatas com ele no factoring, e solicitou que ao invés de descontar as duplicatas em dinheiro, que a empresa de Lito fizesse depósitos numa rede de postos de combustível onde ela tinha conta para abastecer os caminhões. Mas o tal posto era um antro de roubo que foi desmascarado pela Polícia Federal. Por causa disso ele recebeu um dia bem cedo a visita dos anjos da guarda de colete preto que arrestaram os computadores e os livros de registro do factoring. O stress do processo fez com que ele ficasse depressivo, com pancreatite e pólipos no intestino. Fez cirurgia e um médico amigo ofereceu a ele duas opções: uma vez que ele provou a inocência com o caso do posto, ele poderia reabrir o negócio de cobrar juros do dinheiro circulante e continuar doente, ou „largar tudo e chutar o pau da barraca‟. Foi uma decisão de vida: ele deixou as pendências com advogados, passou a ter nojo da vida de agiota, levou a namorada para o boat show de Miami e decidiu que queria comprar um catamarã Lagoon 38 e velejar pelo mundo. Depois de muita procura, achou um barco usado que julgou em bom estado e dentro do orçamento, e fez a compra do Chufa na Espanha. Preparou o barco para viajar com segurança, embarcou a família e atravessou o Atlântico direto para Salvador. Mas barco usado não pode ser importado de acordo com a legislação brasileira. Passou a temporada legal no Aratu Iate Clube e cruzeiramos junto pela Baia de Todos os Santos, já que o Pinauna 7 é irmão gêmeo do Chufa. Em abril de 2012 içou velas e foi para o Caribe com dois amigos, que desembarcaram em Port of Spain, Trinidad, no Golfo de Pária. Dai seguiu solitário para Cumana, na Venezuela, local recomendado por Beto e Fafá que ficaram 10 anos atracados por lá no final do século passado. Quando atracou na marina em Cumana achou que não mais existia a „boa energia‟ que lhe tinha sido passada. Cumana era uma base de velejadores americanos, e quando o presidente Chaves escorraçou os gringos, as marinas ficaram vazias. De lá Lito ligou para um amigo de Brasília que mantinha o barco no Caribe, e logrou que o Walter atendesse. Foi enfaticamente aconselhado a seguir para Puerto la Cruz, Marina Baia Redonda, para onde continuou. Está por lá desde maio, completamente entrosado, saudável e feliz, fazendo charter com paulistas, e construiu um site para motivar brasileiros a visitarem o Caribe: www.velejarcatamaran.com.br. Foi nessa que eu peguei um voo de milhagem, classe executiva da TAM (40 mil milhas) e baixei em Puerto la Cruz. Encontrei um Lito saudável, alegre, completamente entrosado com os velejadores do mundo todo que „moram‟ na marina. Já está pensando em comprar um dos apartamentos da marina ou alternativamente passar o canal do Panamá e seguir para o Pacífico. Antes de eu chegar ele subiu o barco, e com as próprias mãos lixou e pintou o fundo com tinta anti-fouling. No processo 264 quebrou um parafuso da base da escada que se usa para subir da água para o barco, o qual ele resolveu que faria a solda quando voltasse do nosso cruzeiro. Largamos ao meio dia de 17/10 com vento E de 15 nós, rumo NW com escota folgada, proa em Tortuga. Quando estávamos entre as ilhas La Borracha e Picuda Chica, fui limpar o sensor do velocímetro que estava travado e verifiquei que o porão da canoa de bombordo, o lado de Lito, estava cheio d‟água. A bomba elétrica não quis ligar mas fiz uma gambiarra com o interruptor do dreno do banho e começamos a esgotar a água. Eram pelo menos 150 litros de água salobra! Perguntei a Lito se queria voltar e ele decidiu continuar. Começamos a procurar por onde entrava a água e ele descobriu que era pelo parafuso quebrado da fixação da escada de popa. Ele tampou com um plugue e justificou que a água doce devia ser da lavagem que ele fez quando acabou o serviço da pintura. Velejada tranquila com piloto automático e radar com alarme durante a noite. Às 23 horas ancoramos em 1,8m de água em Tortuguilla. Quando acordamos Lito ficou desapontado porque a água não estava límpida como de costume; levantamos âncora e fomos motorando 3 milhas para Cayo Herradura, um atol pequeno com farol. Descemos o caíque e fomos à praia de areia de calcário, muito branca, e nadamos de snorkel. A barreira do atol é feita de fragmentos de algas, corais e moluscos. O Chufa garrou no fundo de cascalho com a âncora grande tipo plow e retornamos de caique, seguindo mais 9 milhas a motor para Punta Delgada no norte da ilha, onde ancoramos, almoçamos e fizemos siesta. Aqui finalmente a água estava limpa como Lito prometeu, independente da lua nova. Foi aqui que ele ficou 3 dias a semana passada durante as eleições na Venezuela. O sol está de tirar o couro, e Lito que está bem familiarizado com a região decidiu seguir à noite 100 milhas para NW para que eu visitasse o badalado arquipélago de Los Roques. Saímos às 22:30, bordo direto, amuras a boreste, vento de 12 nós pela alheta entrando pela vigia da minha cabine. Pela madrugada o vento foi caindo, coisa que surpreendeu a Lito, que tinha prometido uma velejada noturna maravilhosa. Acordei com o barulho do motor já que o vento estava de 5 nós. Às 09:30 deixamos a ilha de La Ortilla por boreste. Em 1993 Hugo Chaves ficou preso nesta ilha o ano todo, após uma tentativa fracassada de golpe de estado. No entorno dela existe na carta uma área de 10x15 milhas restrita à navegação como área militar. No meu turno das 5 às 10 horas coloquei linha de arrasto e nada, só golfinhos pequenos passando pelo barco indo para sudeste. Na hora do almoço, motorando ainda sem vento Lito resolveu entrar pela Boca de Sebastopol, que ele não tinha passado ainda porque só chegava aqui com arrebentação. Dai motoramos por dentro da laguna em profundidade de 6-20m, água transparente, temperatura 29°C. Sobre a barreira de recifes havia um naufrágio, aparentemente um navio a vapor. Por dentro da laguna principal, que é rasa, é área de Parque Nacional. 265 Ancoramos em Gran Roque às 16 horas. Um movimento intenso de penheiros, uma catraia grande de proa alta com motores de popa possantes que carregam turistas que chegam de avião para visitar o arquipélago durante o dia. À noite desembarcamos para telefonar para o Brasil, usando o serviço da empresa estatal de telefonia da Venezuela, bom, eficiente e muito barato. Aliás, para o turista tudo na Venezuela é barato. Jantamos no Aquareña, na beira da praia quando então caiu uma chuva torrencial que passou em 15 minutos. Enquanto chovia conversamos com uns turistas venezuelanos que votaram em Capriles a semana passada. Todo venezuelano remediado que tirava proveito da pobreza vota contra Chaves, mas os chavistas são unidos e na hora da eleição participam levando a turma, uma vez que lá o voto não é obrigatório; mas 80% dos eleitores participaram, mais que os 70% dos brasileiros que votaram no 28 de outubro, apesar de que aqui o voto é obrigatório! No sábado, 20 de outubro descemos de caique em Gran Roque e fomos até o farol ver os diabásios que fazem a ilha. Textura vítrea, bem preto, homogêneo. Passamos na internet para Lito cadastrar Mila para receber o sinal do SPOT, um transmissor via satélite que manda ao destinatário a posição que está plotada no mapa do Google, e em caso de emergência aciona um serviço de resgate. Depois fomos ao mercado onde compramos sucos e ovos, mas não havia frutas nem verduras. Na beira da praia os turistas brasileiros estavam desapontados com o dia feio, os 266 penheiros encalhados, coisa rara aqui em Los Roques. Ao embarcar chegou de carona num penheiro um policial da Guarda Costeira para verificar se a documentação estava em ordem e se a taxa de permanência havia sido paga. Pediu licença, tirou os sapatos e subiu a bordo. Criou dificuldades para vender facilidades, bem no estilo de polícia corrupta. Mas Lito sabe lidar bem com estas situações. Quando ele desembarcou, de novo de carona, suspendemos âncora e fomos contornando o Parque Nacional pelo norte, até a ilha Sarqui, onde mergulhamos e nadamos na água limpa de 28°C. Chegaram dois catamarãs Fontaiane Peugout 42 junto com a gente, um do Canadá e outro inglês. Dormimos aqui com pouco mosquito. À noite o vento leste voltou com 16 nós e o céu limpou. O jantar foi milho cozido e tortilhas com presunto. No domingo 21 desembarcamos de caique e vimos que Sarqui é formada por coral quebrado e empilhado. Lito fez uma feijoada com picanha e filé mignon. Ele tem uns 20 kg de farinha a bordo. Saímos com genoa e dois motores para a borda sudoeste do arquipélago e ancoramos em Cayo de Água, a única ilha que tem aquífero. Havia muitos penheiros com turistas, inclusive brasileiros, com sombrinhas e ice-chest. As russas bebiam vodca e usavam biquínis iguais às brasileiras. Dai seguimos para Dos Mosquises, que achei a melhor parada do arquipélago. No caminho embarcamos uma barracuda de 3 kg que Lito fez frita com arroz e puré de batatas. Desembarcamos para ver um berçário de tartarugas marinhas que ficam em tanques até um ano e um museu com painéis explicando a ocupação dos índios Caraca 200 anos antes dos espanhóis, deixando registro de objetos e um esqueleto. 22 de outubro, segunda-feira. Amanheceu nublado e com vento. Saímos às 10 horas para o Mosquise 2, de caíque. Vesti a camiseta de neoprene e mergulhamos na esperança de encontrar lagostas, mas só vi sardinha num fundo de grama. Voltamos para bordo e saímos às 13h com a mestra rizada e a genoa enrolada a 80%, orçando a 6 nós com vento de 20 nós, proa em Caracas. Daqui são 160 milhas de contravento até Puerto la Cruz. O primeiro bordo foi de 2 horas rumo N193. O vento rondou e cambamos para N60 abrindo a genoa toda. Às 16 horas cambamos de novo para N170, o vento foi rondando para E-NE e a proa foi fechando até 130, que era rumo direto ao objetivo. Mas o vento foi crescendo e fomos diminuindo a genoa que às 20:30 estava a 30 %, quando numa rajada de 35 nós rompeu a escota. Eu acordei assustado com Lito chamando para ajudar. À meia noite o vento rondou E-SE, cresceu e a proa caiu para N180. O barco estava imundo e molhado, enjoei e fui deitar na minha cabine que estava razoavelmente limpa. Lito me deixou dormir e só acordei às 7:30 de 23 de outubro, terça-feira. O vento caiu ao amanhecer e começou a chover. Lito ligou os 2 motores e quando sai no cock-pit a genoa estava aquartelada. Enrolei o restinho de genoa que estava aberta faltando 78 milhas, que o GPS dizia que seriam 267 cumpridas em 14 horas. O anemômetro parou de funcionar, mas não dava para ver o topo do mastro. Às 15 horas o vento voltou para E e deu para abrir um pouco de genoa, faltando 25 milhas para a marina. Entramos por sotavento a W das Ilhas Borracha, descemos a mestra e atracamos na marina às 20 horas. Mandamos uma mensagem SPOT para as meninas, banho, janta a bordo e cama. Foram 160 milhas em 31 horas, e tivemos molhação na cabine, coisas caídas, rompimento da escota da genoa e sumiço do sensor do anemômetro. Pouca coisa para quem pegou a borda de um furacão! Mas também foi no Chufa, um Lagoon 38, irmãozinho do Pinauna 7. Veja ai na imagem de satélite do dia de retorno a cintura da gordoba da Sandy, a moça que matou 51 pessoas no Caribe, cancelou 8 voos Brasil-Estados Unidos, inundou Miami Beach e fechou a bolsa de Nova York. Que esta experiência seja suficiente par seu currículo, CHUFA, e que doravante você só encontre BONS VENTOS. A seta azul com a linha de preenchimento vermelha mostra a rota do CHUFA fugindo do furacão SANDY. Os registros em Los Roques dizem que este é um evento que a ultima vez que ocorreu na área foi há 40 anos. Mas esta Sandy é uma exagerada, tem uma abrangência de mais de 1000 milhas náuticas. 268
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