Cónego Seabra - Forum Abel Varzim

Transcrição

Cónego Seabra - Forum Abel Varzim
forum abel varzim
Abel Varzim, Pároco da Encarnação
É necessário não deixar cair no esquecimento
esta referência de verticalidade
- foi pedido na sessão que assinalou os 50 anos da saída da paróquia, em 27 de outubro de
2007
Cónego João Maria Seabra 1
Este
encontro nasceu de uma conversa minha, com a Ana Sara Brito, sobre o
Padre Abel Varzim, e sobre os 50 anos [da sua saída de Pároco da Encarnação]. Uma
conversa perfeitamente informal, trocámos impressões. Portanto, ela tem todo o
direito de estar aqui na mesa, ao meu lado. Em termos protocolares o lugar [de
representação do Forum] seria do Presidente.
[A Ana Sara esclareceu que [a Direcção] do Forum, é uma equipa de
trabalho, pelo que não há problema algum]
Muito bem-vindos, a todos,
agradeço muito a vossa presença
porque, porque de facto temos
um grande homem para recordar,
e para não nos esquecermos
dele, do seu testemunho e da sua
presença.
A Dr.ª Maria Inácia Rezola
vai falar do papel de Abel Varzim
como doutrinador social e como
homem de intervenção social. Ela, com certeza, vai falar do seu papel na LOC e na
JOC, do seu papel de formador da juventude operária, do seu papel como doutrinador
da Doutrina Social da Igreja [DSI], portanto eu não me vou meter por esse campo,
para não estar a duplicar.
Vou fazer uma pequeníssima reflexão, embora seja um campo pelo qual sempre
me interessei muitíssimo, ao longo da minha vida. Fui professor de DSI, na
Universidade Católica, durante vários anos, fui Assistente da Comissão Nacional Justiça
e Paz (há aqui um Presidente do meu tempo), portanto também tenho o meu currículo
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Texto retirado de gravação. Editado
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nessa área, mas não é sobre isso que vou falar, porque repartimos as tarefas e a Dr.ª
Inácia vai falar, melhor do que eu, de certeza.
Queria só fazer uma chamada de atenção para um ponto, que é muito breve,
que é o [seguinte]: os Párocos regra geral – a paroquialidade –, são uma questão de
tempo, porque a paroquialidade é uma paternidade; [refiro] a minha experiência: só
fui pároco uma vez, em Santos o Velho, e agora estou aqui, estive lá treze anos, e há
muitas coisas que aconteceram simplesmente porque eu já lá estava há muito tempo.
O Pároco, muitas vezes, estabelece uma relação com o povo. Eu vejo párocos que, em
Lisboa, estiveram 50 anos numa paróquia: Monsenhor José de Freitas esteve em
Arroios até há pouco tempo; o Padre Álvaro Proença, esteve mais de 50 anos em
Benfica. Este tipo de paroquialidade é uma paroquialidade que estabelece relações, por
exemplo: baptiza uma criança e já [antes tinha baptizado] os pais e já casou os avós;
estabelece relações com as famílias – [há] muitos problemas que [surgem] no tempo e
acabam por se resolver por [causa] da amizade, da duração das relações e da atenção
às pessoas. E essas paroquialidades longas são muito boas e prestam grandes serviços
à Igreja e ao povo, mas também há outro tipo de párocos: párocos que chegam e
fulguram. Eu lembro-me, sei lá, do Padre Armindo Duarte, que não foi pároco muitos
anos em Santa Isabel, mas os anos em que foi significaram uma mudança completa da
vida comunitária, da irradiação paroquial, etc.
Há párocos que, sobretudo em certos momentos de mudança histórica, chegam
a comunidades muito anquilosadas ou muito habituadas a estruturas antigas ou muito
desanimadas do ponto de vista pastoral e que, em poucos anos de irradiação
apostólica, criam uma dinâmica grande. Se pensarmos que a vida pública de Nosso
Senhor Jesus Cristo foi só de três anos (Nosso Senhor só foi “pároco” três anos, por
assim dizer) e, em três anos de paroquialidade, mudou completamente a “paróquia”
que tinha, criando um novo mundo, uma nova civilização e […] a Igreja. É muito
impressionante nós olharmos para esses homens que são capazes de chegar e, como
um relâmpago, iluminar uma realidade e mudá-la. E depois vão, ou porque os levam,
ou porque outras actividades pastorais os chamam a outros lugares, ou até porque a
injustiça dos homens e a fraqueza dos tempos os impedem de continuar a sua obra.
Abel Varzim saiu da Encarnação, não porque Nosso Senhor o tivesse levado para
o Céu, não porque tivesse sido chamado a desempenhar outra obra pastoral, noutro
lugar, mas simplesmente por um conjunto de circunstâncias, que não me apraz agora
examinar, mas que, em última análise, representaram uma grande injustiça.
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Ponho-me a pensar o que é que teria sido se ele tivesse ficado, em vez de cinco
anos, dez. [Se] o Concílio Ecuménico Vaticano II, que começa cinco anos depois da
sua saída da Encarnação, o tivesse encontrado Pároco da Encarnação, teria sido,
certamente, diferente a história desta Paróquia e, provavelmente, muito diferente a
história da Igreja de Lisboa. Mas as coisas são como são e a nós não nos compete
chorar pelas coisas terem sido, mas olhar para os feitos grandiosos dos homens nossos
[antepassados] e agradecer por eles.
O que é que Abel Varzim fez aqui na Paróquia? Antes de mais nada, como era
próprio da sua formação, abriu aqui uma realidade de atenção social que teve uma
importância fortíssima no Bairro Alto. Na altura chamou-lhe a Casa de Trabalho, hoje
chama-se Centro Social Paroquial da Freguesia de Nossa Senhora da Encarnação, mas
é a mesma realidade. É muito impressionante. (Tenho pena de ela não pode vir,
estava mesmo impedida, a Isaura, que é a nossa directora do Centro Social Paroquial,
é uma personagem que vale a pena conhecer.) A Isaura é educadora de infância,
coordena e governa, com grande autoridade e com grande competência, um
equipamento social de grande qualidade, mas começou por ser “uma menina da Casa
de Trabalho”. Ia para lá, para a “casa de trabalho” do Padre Abel Varzim, [que] tinha
um acordo com a Sacor2, onde [se] faziam os fatos-macacos dos operários da Sacor.
As meninas tinham de coser três fatos-macacos por dia e passavam lá o dia, cosendo
os três fatos-macacos [que] pagavam o seu dia; o resto do tempo iam estudar. A
Isaura cosia depressa, tinha boa agulha e era esperta. Não foi para a escola – [como]
os pais faziam o sacrifício de mandar o irmão estudar, a menina já não podia –
portanto foi para a costura com 11 anos [depois de fazer a quarta classe,] mas, como
tinha a agulha ligeira, despachava os três fatos-macacos em pouco tempo e no resto
do tempo estudava. E esta [era] uma solução; [naquela altura] não havia subsídios,
havia criatividade, generosidade e desejo de ajudar as pessoas. E esta «Casa de
Trabalho» que o Padre Abel Varzim fundou, depois foi-se tornando uma instituição com
cada vez mais valências e hoje está presente na realidade social do Bairro Alto, como
um equipamento entregue à competência da Isaura que estudou, licenciou-se em
Educação Infantil, no tempo, e é uma grande senhora. Penso que este é um caso
concreto. Para falarmos de teorias, não há nada melhor do que olhar para um caso
concreto – ilustra. Naturalmente, haverá dezenas de histórias para contar, parecidas
com esta, passadas na JOC, passadas nos diversos [meios] onde o Padre Abel Varzim
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Antecessora da “GALP”.
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[interveio], mas são sempre histórias de pessoas concretas, não são teorias. Pessoas
que encontraram aquele homem e, encontrando aquele homem, encontraram a Igreja
– encontrando a Igreja, encontraram uma possibilidade nova para a sua vida.
O segundo aspecto que eu queria sublinhar é o impacto cultural de Abel Varzim
nesta paróquia. Quando o Padre Armando chegou a esta igreja do Chiado (a obra de
recuperação foi toda feita pelo Padre Armando, eu limitei-me a gerir o que o Padre
Armando cá tinha deixado), ela estava muito arruinada e muito depauperada por
muitos anos sem obras de fundo, mas é difícil imaginar como estava há cinquenta e
cinco anos, quando o Padre Abel Varzim [aqui] chegou. Havia uma rotina e ele teve a
coragem de quebrar rotinas. Nós pensamos o que é que significou, para o tipo de
devocionismo da Baixa, para o tipo de devocionismo do Chiado, fechar a Capela de
Santo António e transformar aquele espaço num lugar de apoio social; havia uma
capelinha… ele fechou a porta que dá para a Igreja e abriu uma porta para a rua e aí
fez um centro de distribuição de alimentos, de acolhimento, de serviço social, etc. [Foi]
uma intervenção mesmo física, no edifício do templo.
Mas depois fez outras coisas, [como] a renovação dos bancos, [substituindo] os
do Século XVII pelos bancos magníficos que nós [agora] temos na nossa igreja; [ou] a
intervenção artística de João de Sousa Araújo, de quem ela muito amigo e que está
aqui. O arquitecto João Sousa Araújo, a quem ele pediu intervenções, que ainda hoje
[são] um grito de modernidade muito grande, mas que há cinquenta anos eram
obviamente uma provocação cultural. A capela de Sta. Maria Goretti, que ele fez (isso
tudo [foi] contado no seu livro “A Procissão dos Passos” que vale a pena reler – ele
conta apenas o aspecto pastoral e o aspecto, digamos assim, devocional), significou,
[num] um edifico destes do séc. XVIII, um respiro cultural extraordinário, [que
resultou] numa intervenção daquela força, daquela potência, de uma modernidade tão
característica, tão provocatória.
A segunda coisa, foi a pintura daquilo que eu chamo “o percurso da aliança”. Eu
pensei (e estou em vias de publicar um livro sobre isso) em colocar uma placa e pensei
chamar-lhe “a galeria da aliança”, mas galeria é um bocadinho pretensioso – “o
corredor da aliança” também achei de menos – “galeria da aliança” é talvez um
bocadinho pomposo, como se fossem as galerias de Rafael. Por isso, acabei por lhe
chamar “percurso da aliança”. É desde a criação do mundo até ao Apocalipse, pintado
num corredor. Os nossos turistas, que entram aqui todos os dias (e entram às
dezenas), depois de [percorrido o templo], é sempre ali diante da minha “capela
sistina” que eles se embasbacam e pensam o que é que isto terá significado há
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cinquenta anos, a iniciativa cultural, o rasgo cultural de um homem como Abel Varzim,
que propõe uma expressão artística daquelas no meio, digamos assim, da pasmaceira
que era o ambiente eclesiástico do Chiado.
Dá para perceber que a incompreensão era tal que, passados poucos anos, a
pintura desapareceu, coberta por tinta branca, e esteve oculta durante quase quarenta
a cinquenta anos e também, diga-se de passagem que não foi por este prior ser um
homem de grande cultura que ela [re]apareceu, pois ela estava pintadinha de branco e
eu de branco [a] ia deixar estar. Porém, quando decidi pintar tudo de novo, o pintor,
ao remover à ponta de espátula, a tinta velha, para colocar a tinta nova, revelou aos
meus olhos uma coisa de tal maneira potente, que nem um “troglodita” como eu foi
capaz de mandar pintar por cima. Não é por que eu me considere um homem de
grande cultura – é porque os factos se impõem até às pessoas com pouca simplicidade
artística, como é o meu caso. A evidência do facto era de tal maneira imponente, que
eu não me senti com coragem de mandar pintar outra vez. Não comparo os meus
méritos com os do Padre Abel Varzim: o Padre Abel Varzim há cinquenta anos teve a
coragem de mandar fazer – eu simplesmente não tive a coragem de mandar estragar.
É um nível muito diferente de intervenção.
[Alguém da audiência: “foi o anjo da guarda”]
Pois, foi o anjo da guarda, porque eu por mim já não tinha dinheiro, já não tinha
paciência, já não queria mais obras. Já só me faltava pintar aquilo de branco para as
obras acabarem e, de repente, voltar a pôr ali o andaime para ver o Sousa Araújo,
durante seis meses, para cima e para baixo – era a última coisa que me apetecia. Mas,
de facto, hoje estou grato a Nosso Senhor por ter tido essa coragem e o João Sousa
Araújo (que ainda está um jovem) pintou há cinquenta anos e, como vêem, está ali
uma flor que basta olhar para ele para perceber que dá para mais cinquenta – mas o
facto é que passaram cinquenta anos por cima. E vir aqui todos os dias às oito da
manhã, subir ao andaime e estar sete horas em cima de um andaime a retocar
pinturas durante vários meses, é tudo menos óbvio. Dou graças a Deus porque nós
pudemos fazer, mas o que nós pudemos fazer não tem como medida o que fez o
Padre Abel Varzim como iniciativa cultural. É evidente que uma paróquia também é um
lugar de expressão cultural, porque a fé exprime-se como uma cultura; se não se
exprime numa cultura, se não se exprime num olhar sobre a totalidade das coisas,
acaba por ser uma pura dedução. Na acção social e na cultura, os cinco anos que Abel
Varzim aqui passou, mudaram a paróquia e mudaram-na para sempre.
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E, por fim, Abel Varzim era um homem de Deus e isso é uma coisa que é preciso
dizer – é um homem de fé, é um homem de Igreja. Porque há maneiras cristãs de
viver o sucesso, de viver o triunfo pastoral, de viver a mó de cima, de viver a crista da
onda e há maneiras não cristãs de viver essas coisas e Abel Varzim teve a crista da
onda, teve o sucesso. Abel Varzim foi uma autoridade na pastoral social, Abel Varzim
foi deputado da nação, Abel Varzim esteve na Assembleia Nacional e nessas horas do
seu triunfo em que os seus livros se vendiam, em que os seus artigos toda a gente os
lia, etc. soube ser um homem de coração humilde. E depois, Abel Varzim teve a hora
da derrota onde o poder o venceu e essa hora, facilmente, quanto maior for a crista da
onda, mais facilmente se transforma em amargura, em revolta, em virar costas. Saber
viver a hora da derrota com humildade e com caridade, não é de todos. Portanto, de
muitas maneiras, o Padre Abel Varzim é um homem a quem eu tenho muita honra em
suceder. Embora seja um pigmeu às costas do gigante e inferir que não seja capaz de
o imitar na arte e na pastoral social, [espero que] seja capaz de o imitar na obediência
e na humildade, quando a hora da obediência e da humildade chegarem para mim,
que também hão-de chegar.
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