A Bordadora de Sonhos

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A Bordadora de Sonhos
A Bordadora de Sonhos
Em Lucknow, todos festejavam o Meethi Id, o festival que celebra o fim do Ramadão.
As pessoas do bazar vestiam roupas novas e as lojas estavam cheias de doces e salgados
deliciosos. Aliás, o mercado era conhecido pelas suas lojas
lo de comida,, tecidos e joalharia
de prata.
Mehru, Kamru e o irmão de ambas, Azhar Mian, carregavam pacotes de prendas e
travessas cheias de doces e salgados. Todos se sentiam orgulhosos das suas roupas novas
bordadas, que tinham recebido para marcar a ocasião.
oc
A kurta1 de Mehru tinha flores de
um rosa escuro e a de Kamru exibia motivos um pouco mais elaborados. Azhar sentia-se
sentia
particularmente feliz com o seu novo chapéu bordado.
O pai dos três, Abbu, era empresário,
empresário e os comerciantes do mercado costumavam
entregar-lhe
lhe tecidos que ele mandava bordar. Os bordados eram executados por mulheres
que trabalhavam nas suas
uas próprias casas, e que eram pagas à peça. Abbu recebia
rece
uma
comissão por cada peça.
Uma vez que o pai ganhava dinheiro suficiente, a mãe, Ammi, não
não tinha de trabalhar
como bordadora. Kamru e Mehru frequentavam a madrassa e Azhar ia à escola para
rapazes. As raparigas executavam também alguns bordados e, uma vez que o pai era a
pessoa que conseguia trabalho para todas as mulheres das redondezas, eram muito mais
elogiadas do que mereciam.
De repente, Azhar estacou.
─ Estamos a esquecer--nos
nos da nossa terceira irmã, que está em casa e que não tem
nada novo para vestir hoje.
Mehru e Kamru disseram em coro:
─ Mumtaz não é nossa irmã, é nossa prima. E está em
em casa porque não pode andar!
Mas podemos levar-lhe
lhe alguns doces, claro.
Os irmãos chegaram finalmente à feira, situada nas margens do rio Gomti. Havia
muitas tentações à venda: pulseiras de vidro cintilante, fitas coloridas, colares, pássaros de
1
Uma kurta é uma espécie de túnica. (NT)
barro, animais,
nimais, soldadinhos e bonecas. Em suma,
mercadorias para todos os gostos. Cheios de excitação, os
três em breve se esqueceram
ueceram completamente da prima.
Mumtaz tinha ficado sozinha em casa de Abida, a tia
das crianças. As suas muletas estavam pousadas a um
canto.
nto. Mumtaz segurava nas mãos um bordado, mas a sua
mente estava longe dali. Mais precisamente em Hardoi,
onde a mãe e as irmãs viviam. Será que tinham tantas
saudades suas quanto ela as tinha delas? Depois da morte
do pai, a família ficara quase sem dinheiro.
dinhe
Um dia, a tia
Abida viera pedir à mãe de Mumtaz que juntasse todas as mulheres da
d região para
bordarem juntas.
A partir de então, as mulheres reuniam-se todos os dias num pátio, sentadas em
e
esteiras ou em camas de rede, a ouvir canções na rádio, enquanto bordavam em conjunto.
O trabalho de Mumtaz consistia em servir chá às mulheres mais jovens, enquanto as mais
velhas tinham sempre as caixas
caixas de folhas de bétele à mão. Os mexericos escaldavam mais
do que o chá, mas o trabalho só cessava à noite, quando as mulheres enrolavam os
bordados e iam para casa fazer o jantar para os homens que, em
em breve, voltariam do
trabalho.
Entretanto, os tecidos que
que tinham bordado eram recolhidos por Abida, que os enviava
ao pai de Kamru e de Mehru. Este, por sua vez, enviava de volta o dinheiro correspondente
ao pagamento e mais tecido para bordar.
Pouco tempo antes, Mumtaz tinha sido mandada para Lucknow com a tia
ti Abida, para
aprender um novo tipo de bordado que depois ensinaria às mulheres em Hardoi. Embora
Lucknow fosse longe de casa, Mumtaz não se sentia infeliz, porque tinha levado consigo o
seu papagaio, Munia, e dois pombos, Lakka e Lotan.
Os três pássaros eram todos muito habilidosos. Lakka conseguia voar muito alto,
Lotan era um dançarino e acrobata fabuloso, e Munia conseguia imitar vozes de pessoas.
Mumtaz estava sempre a aliciar Munia para que a imitasse. Enquanto a rapariga
trabalhava, os pombos faziam acrobacias e comiam o milho que ela lhes dava. Depois,
voavam dali para fora e só voltavam para pedir mais.
Mumtaz fez novos amigos em Lucknow. Um deles era Munnu, um rapaz de oito anos,
filho do vendedor de legumes. Mumtaz partilhava a comida com ele todos
tod os dias e
sentavam-se
se ambos a ver Lakka e Lotan a brincar. No dia do festival, enquanto estavam
ambos sentados a observar os pássaros, Munnu reparou que Mumtaz estava com vontade
de chorar e perguntou-lhe:
─ Porque estás triste? Tens saudades de Hardoi? Há lá muitas aves?
─ Não, não há ─ respondeu Mumtaz. ─ Mas a minha mãe e as minhas irmãs, Rehana e
Salma, estão lá.
E pegou de novo no bordado.
─ Quem te ensinou esse tipo de bordado? ─ perguntou o rapaz.
─ O chikankari2 já está na nossa família há três gerações. Aprendi com a minha mãe,
que aprendeu com a mãe dela. A minha avó nasceu numa terra famosa por este tipo de
bordados, e contava-me muitas histórias sobre homens e mulheres poderosos e sobre o
palácio das doze portas. Costumava cozinhar refeições deliciosas e usava sempre um
chador3 branco. Ainda o tenho. Sempre vi a minha mãe a bordar o dia todo, desde que
tenho memória.
A cara de Mumtaz alegrava-se, à medida que falava destas recordações.
─ A tua mãe nunca saía? ─ admirou-se Munnu.
─ Só às vezes, para ir à mercearia ou para visitar familiares. Mesmo as minhas irmãs
não saem com frequência e, quando o fazem, usam sempre um lenço. A minha mãe usa
uma burqa4. As minhas irmãs nunca foram à escola, mas eu pude estudar até ao oitavo ano.
Depois, fiquei em casa, a aprender a bordar com a minha mãe e as minhas irmãs.
─ Então, foste à escola! ─ admirou-se Munnu, que nunca tinha frequentado a escola,
porque o pai precisava da sua ajuda.
─ É verdade, sou uma das poucas bordadoras que foram à escola. A minha mãe nunca
aprendeu a ler e a escrever e nunca conseguiu calcular quanto lhe deviam pagar pelos
bordados. A princípio, eu ajudava-a nas contas; depois, como precisávamos de mais
dinheiro, comecei a bordar também.
Mumtaz parou de falar e disse baixinho:
─ Tenho tantas saudades dela. Às vezes, choro a noite inteira.
Munnu queria alegrar a amiga e, por isso, mudou de assunto:
─ Costumas sonhar à noite?
─ Sonho, pois. Sonho que voo, tal como os meus pombos, e que viajo para muitos
sítios. Talvez um dia consiga encontrar a minha avó…
─ Vai depressa buscar o chador da tua avó, que eu mostro-te um truque ─ disse
Munnu com determinação.
O rapaz falou-lhe de um mágico que tinha encontrado nas suas andanças com o pai.
Embora velho e doente, Chand Pasha tinha ensinado a Munnu um truque fabuloso que ele
queria partilhar com a amiga para a animar. Mumtaz foi buscar o chador, a última prenda
que recebera da avó, e que esta bordara com as próprias mãos. Era uma peça belíssima, na
qual até os pontos mais minúsculos eram perfeitos.
Munnu disse:
─ Fecha os olhos e agarra uma das pontas do
chador, que eu agarro a outra. Depois respira fundo e
formula um desejo.
Mumtaz desejou voar bem alto para poder visitar
terras novas e ver pessoas diferentes. Lotan e Lakka
também pegaram cada um na sua ponta do chador, de
forma a que todos pudessem levantar voo. Voaram até
O chikankari é um tipo de bordado que consiste em bordar tecidos brancos com fio branco. (NT)
Um pano quadrado de tecido que pode ser usado como xaile ou vestido pelas mulheres indianas. (NT)
4 A burqa é uma versão radical do chador; trata-se de uma peça de vestuário feminino que cobre o corpo todo,
incluindo o rosto e os olhos. (NT)
2
3
uma terra bem distante, onde as montanhas e os céus eram azuis e estavam cheios de
pássaros. Em baixo, a paisagem desenhava um vale verde, cheio de árvores de fruto e de
jardins floridos. Lotan e Lakka aterraram perto de um lago de águas cor de turquesa.
Junto do lago, um grupo de homens vestidos com túnicas quentes estava ocupado a
bordar xailes de lã com agulhas finas. Os desenhos eram baseados na paisagem que os
rodeava: flores coloridas, folhas e pássaros. O mais velho de entre eles, Khurshid,
cumprimentou Mumtaz e perguntou-lhe de onde vinha.
─ Venho de Lucknow e sou bordadora de chikankar ─ respondeu a rapariga.
Khurshid mostrou-lhe o xaile que estava a bordar.
─ Ora vê só: consegui pôr todos os pássaros e
flores de Caxemira no meu xaile. E, tal como o bulbul
consegue ver para todos os lados, este ponto parece
igual, quer o olhemos do avesso ou do direito.
Com a ajuda do velho, os dedos ágeis da rapariga
aprenderam depressa o novo ponto. Khurshid ofereceulhes chá quente e pão fresco e contou-lhes que, há
muitos anos, os artesãos de Caxemira tinham ido para
as cortes dos nobres de Lucknow aprender o bordado
chikankar.
Algum tempo depois, os pombos regressaram e todos voaram de volta para Lucknow.
Antes de se darem conta, estavam de novo em casa da tia Abida. Ao ouvir o pai chamar,
Munnu foi a correr. Mumtaz, com a mente cheia de novos padrões, ocupou-se de novo dos
seus bordados. Em poucos dias, criou uma kurta maravilhosa cheia de pássaros, flores e
plantas. No centro de cada desenho, aparecia um bulbul.
Quando as outras mulheres viram a peça, ficaram espantadas com a beleza do
bordado e a imaginação dos desenhos. Mas, em vez de ficaram contentes com o facto de a
prima conseguir criar coisas tão bonitas, Mehru e Kamru ficaram cheias de ciúmes. Mehru
queixou-se:
─ Como é que ela conhece aqueles desenhos tão bonitos? Nunca vai a lado nenhum,
nunca vê nada, e consegue bordar motivos maravilhosos com cores deslumbrantes.
─ Deve haver uma forma de a impedir de receber tantos elogios ─ disse Kamru.
Ambas as irmãs tentaram então encontrar uma solução. Uma noite, quando Mumtaz
tinha ido buscar comida para Lakka e Lotan, Mehru escondeu todo o tecido colorido que
tinha sido entregue a Mumtaz para bordar e deixou-a só com o tecido branco. Também lhe
tirou os fios de cor, enquanto pensava: “Vamos ver se agora a elogiam!”
No dia seguinte, Munnu encontrou Mumtaz sentada junto dos pássaros, com um
semblante triste. A rapariga contou-lhe que só tinha pano branco para bordar e que o
branco era considerado a cor mais difícil porque se sujava muito facilmente.
─ E que desenhos posso fazer sem fio de cor? ─ perguntou a rapariga, desanimada.
─ Anima-te! ─ disse Munnu. ─ Pega no chador da tua avó e concentra-te. Vê que terra
mágica vais hoje visitar.
Desta vez, Munnu e Mumtaz viajaram até um país sem cor. Era uma terra antiga, cheia
de pessoas que viajavam em belas carruagens. Mas havia algo de curioso naquele país:
todas as pessoas se vestiam de branco – um branco suave e radioso – e as roupas
rou
tinham
bordados belíssimos.
Debaixo de uma amargoseira, junto a uma estrada
estrada larga, Mumtaz viu a avó. Gritando
de alegria, correu para ela. A avó abraçou e beijou Mumtaz e perguntou-lhe:
perguntou lhe:
─ Porque estás triste? O pano de cor não foi feito para bordados de chikan. O tecido
tradicional sempre foi branco, porque era feito para ser usado apenas pelos homens.
Agora, uma vez que as mulheres também o usam, as pessoas bordam todo o tipo de
tecidos. Mas o mais bonito é sempre feito em tecido branco e com fio branco. É essa a
prova do talento
alento da verdadeira bordadora.
Quando Mumtaz regressou a Lucknow, começou a bordar flores com fio branco. As
flores pareciam-se
se com as mangas de Hardoi e com as amêndoas
amêndoas de Caxemira. No meio de
arbustos a florir, Mumtaz bordou um belo pavão. Era um chador mágico!
Todos ficaram maravilhados com a criação da rapariga. Todos os comerciantes e
bordadoras falavam dos finos
fino bordados da jovem de Hardoi. Algumas senhoras ricas
vieram a casa de Abida e pediram os bordados de Mumtaz para mostrar numa exposição
exp
que estavam a organizar.
Mas tudo isto ainda contribuiu mais para a inveja de Kamru e Mehru, que se
perguntavam como haviam de impedir que Mumtaz se tornasse famosa. Como todos os
desenhos são gravados no tecido
ecido com tinta lavável, e o tecido é lavado depois de o bordado
estar feito para remover os vestígios da tinta, as primas recusaram-se
recusaram se a arranjar tecido
gravado para Mumtaz. Mas isto não a deteve. A cabeça dela estava tão cheia dos objectos
bonitos que viaa nos sonhos que já nem precisava de mais desenhos!
Um dia, recebeu uma notícia maravilhosa! O chador que tinha criado com o tecido
branco ganhara um prémio e tinham convidado a vencedora a ir receber o prémio à
Câmara Municipal. Mumtaz pediu a Mehru e a Kamru
Kamru que fossem com ela. As primas
sentiram-se
se muito envergonhadas da sua maldade quando viram a alegria
alegria de Mumtaz.
Na cerimónia de entrega do prémio, Kamru e Mehru viram com que respeito as
pessoas tratavam Mumtaz. Algumas delas até as felicitaram por terem
terem uma prima tão
talentosa. Depois de regressarem a casa, Kamru perguntou a Mumtaz:
─ Onde encontraste todos aqueles desenhos maravilhosos?
Mumtaz ficou calada durante algum tempo. Depois, pensou que devia partilhar a sua
sorte e, sorrindo, convidou Kamru a pegar numa das pontas do chador e a concentrar-se
concentrar
bem. Kamru assim fez, mas só conseguiu ver Munia, Lakka e Lotan a fazerem
fazer
as acrobacias
do costume...
Jolly Rohatgi; Ram Soni
Mumtaz Embroiders Her Dreams
London, Puffin Books, 2005
(Tradução e adaptação)
adaptação

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