A Bordadora de Sonhos

Transcrição

A Bordadora de Sonhos
bordados de Mumtaz para mostrar numa exposição que estavam a
organizar.
Mas tudo isto ainda contribuiu mais para a inveja de Kamru e
Mehru, que se perguntavam como haviam de impedir que Mumtaz se
tornasse famosa. Como todos os desenhos são gravados no tecido com
tinta lavável, e o tecido é lavado depois de o bordado estar feito para
remover os vestígios da tinta, as primas recusaram-se a arranjar tecido
gravado para Mumtaz. Mas isto não a deteve. A cabeça dela estava tão
cheia dos objectos bonitos que via nos sonhos que já nem precisava de
mais desenhos!
A Bordadora de Sonhos
Um dia, recebeu uma notícia maravilhosa! O chador que tinha
criado com o tecido branco ganhara um prémio e tinham convidado a
vencedora a ir receber o prémio à Câmara Municipal. Mumtaz pediu a
Em Lucknow, todos festejavam o Meethi Id, o festival que celebra o
Mehru e a Kamru que fossem com ela. As primas sentiram-se muito
fim do Ramadão. As pessoas do bazar vestiam roupas novas e as lojas
envergonhadas da sua maldade quando viram a alegria de Mumtaz.
estavam cheias de doces e salgados deliciosos. Aliás, o mercado era
Na cerimónia de entrega do prémio, Kamru e Mehru viram com
conhecido pelas suas lojas de comida, tecidos e joalharia de prata.
que respeito as pessoas tratavam Mumtaz. Algumas delas até as
Mehru, Kamru e o irmão de ambas, Azhar Mian, carregavam
felicitaram por terem uma prima tão talentosa. Depois de regressarem
pacotes de prendas e travessas cheias de doces e salgados. Todos se
a casa, Kamru perguntou a Mumtaz:
─ Onde encontraste todos aqueles desenhos maravilhosos?
sentiam orgulhosos das suas roupas novas bordadas, que tinham
Mumtaz ficou calada durante algum tempo. Depois, pensou que
devia partilhar a sua sorte e, sorrindo, convidou Kamru a pegar numa
recebido para marcar a ocasião. A kurta1 de Mehru tinha flores de um
rosa escuro e a de Kamru exibia motivos um pouco mais elaborados.
Azhar sentia-se particularmente feliz com o seu novo chapéu bordado.
das pontas do chador e a concentrar-se bem. Kamru assim fez, mas só
O pai dos três, Abbu, era empresário, e os comerciantes do
conseguiu ver Munia, Lakka e Lotan a fazerem as acrobacias do
mercado costumavam entregar-lhe tecidos que ele mandava bordar. Os
costume...
bordados eram executados por mulheres que trabalhavam nas suas
Jolly Rohatgi; Ram Soni
Mumtaz Embroiders Her Dreams
London, Puffin Books, 2005
(Tradução e adaptação)
próprias casas, e que eram pagas à peça. Abbu recebia uma comissão
por cada peça.
1
Uma kurta é uma espécie de túnica. (NT)
Uma vez que o pai ganhava dinheiro suficiente, a mãe, Ammi, não
escondeu todo o tecido colorido que tinha sido entregue a Mumtaz para
tinha de trabalhar como bordadora. Kamru e Mehru frequentavam a
bordar e deixou-a só com o tecido branco. Também lhe tirou os fios de
madrassa e Azhar ia à escola para rapazes. As raparigas executavam
cor, enquanto pensava: “Vamos ver se agora a elogiam!”
também alguns bordados e, uma vez que o pai era a pessoa que
No dia seguinte, Munnu encontrou Mumtaz sentada junto dos
conseguia trabalho para todas as mulheres das redondezas, eram muito
pássaros, com um semblante triste. A rapariga contou-lhe que só tinha
mais elogiadas do que mereciam.
pano branco para bordar e que o branco era considerado a cor mais
De repente, Azhar estacou.
─ Estamos a esquecer-nos da nossa terceira irmã, que está em casa
e que não tem nada novo para vestir hoje.
Mehru e Kamru disseram em coro:
─ Mumtaz não é nossa irmã, é nossa prima. E está em casa porque
não pode andar! Mas podemos levar-lhe alguns doces, claro.
difícil porque se sujava muito facilmente.
─ E que desenhos posso fazer sem fio de cor? ─ perguntou a
rapariga, desanimada.
─ Anima-te! ─ disse Munnu. ─ Pega no chador da tua avó e
concentra-te. Vê que terra mágica vais hoje visitar.
Desta vez, Munnu e Mumtaz viajaram até um país sem cor. Era
Os irmãos chegaram finalmente à
uma terra antiga, cheia de pessoas que viajavam em belas carruagens.
feira, situada nas margens do rio
Mas havia algo de curioso naquele país: todas as pessoas se vestiam de
Gomti. Havia muitas tentações à venda:
branco – um branco suave e radioso – e as roupas tinham bordados
pulseiras de vidro cintilante, fitas
belíssimos.
coloridas, colares, pássaros de barro,
Debaixo de uma amargoseira, junto a uma estrada larga, Mumtaz
animais, soldadinhos e bonecas. Em
viu a avó. Gritando de alegria, correu para ela. A avó abraçou e beijou
suma, mercadorias para todos os
gostos. Cheios de excitação, os três em
Mumtaz e perguntou-lhe:
─ Porque estás triste? O pano de cor não foi feito para bordados de
breve se esqueceram completamente
chikan. O tecido tradicional sempre foi branco, porque era feito para
da prima.
ser usado apenas pelos homens. Agora, uma vez que as mulheres
Mumtaz tinha ficado sozinha em casa de Abida, a tia das crianças.
também o usam, as pessoas bordam todo o tipo de tecidos. Mas o mais
As suas muletas estavam pousadas a um canto. Mumtaz segurava nas
bonito é sempre feito em tecido branco e com fio branco. É essa a prova
mãos um bordado, mas a sua mente estava longe dali. Mais
do talento da verdadeira bordadora.
precisamente em Hardoi, onde a mãe e as irmãs viviam. Será que
Quando Mumtaz regressou a Lucknow, começou a bordar flores
tinham tantas saudades suas quanto ela as tinha delas? Depois da
com fio branco. As flores pareciam-se com as mangas de Hardoi e com
morte do pai, a família ficara quase sem dinheiro. Um dia, a tia Abida
as amêndoas de Caxemira. No meio de arbustos a florir, Mumtaz
viera pedir à mãe de Mumtaz que juntasse todas as mulheres da região
bordou um belo pavão. Era um chador mágico!
para bordarem juntas.
A partir de então, as mulheres reuniam-se todos os dias num pátio,
sentadas em esteiras ou em camas de rede, a ouvir canções na rádio,
Todos ficaram maravilhados com a criação da rapariga. Todos os
comerciantes e bordadoras falavam dos finos bordados da jovem de
Hardoi. Algumas senhoras ricas vieram a casa de Abida e pediram os
rapariga.
enquanto bordavam em conjunto. O trabalho de Mumtaz consistia em
Khurshid mostrou-lhe o xaile que estava a bordar.
─ Ora vê só: consegui pôr todos
servir chá às mulheres mais jovens, enquanto as mais velhas tinham
sempre as caixas de folhas de bétele à mão. Os mexericos escaldavam
os pássaros e flores de Caxemira no
mais do que o chá, mas o trabalho só cessava à noite, quando as
meu xaile. E, tal como o bulbul
mulheres enrolavam os bordados e iam para casa fazer o jantar para os
consegue ver para todos os lados,
homens que, em breve, voltariam do trabalho.
este ponto parece igual, quer o
olhemos do avesso ou do direito.
Com a ajuda do velho, os dedos
ágeis
da
rapariga
aprenderam
Entretanto, os tecidos que tinham bordado eram recolhidos por
Abida, que os enviava ao pai de Kamru e de Mehru. Este, por sua vez,
enviava de volta o dinheiro correspondente ao pagamento e mais
tecido para bordar.
depressa o novo ponto. Khurshid
Pouco tempo antes, Mumtaz tinha sido mandada para Lucknow
ofereceu-lhes chá quente e pão
com a tia Abida, para aprender um novo tipo de bordado que depois
fresco e contou-lhes que, há muitos anos, os artesãos de Caxemira
ensinaria às mulheres em Hardoi. Embora Lucknow fosse longe de casa,
tinham ido para as cortes dos nobres de Lucknow aprender o bordado
Mumtaz não se sentia infeliz, porque tinha levado consigo o seu
chikankar.
papagaio, Munia, e dois pombos, Lakka e Lotan.
Algum tempo depois, os pombos regressaram e todos voaram de
Os três pássaros eram todos muito habilidosos. Lakka conseguia
volta para Lucknow. Antes de se darem conta, estavam de novo em casa
voar muito alto, Lotan era um dançarino e acrobata fabuloso, e Munia
da tia Abida. Ao ouvir o pai chamar, Munnu foi a correr. Mumtaz, com a
conseguia imitar vozes de pessoas. Mumtaz estava sempre a aliciar
mente cheia de novos padrões, ocupou-se de novo dos seus bordados.
Munia para que a imitasse. Enquanto a rapariga trabalhava, os pombos
Em poucos dias, criou uma kurta maravilhosa cheia de pássaros, flores
faziam acrobacias e comiam o milho que ela lhes dava. Depois, voavam
e plantas. No centro de cada desenho, aparecia um bulbul.
dali para fora e só voltavam para pedir mais.
Quando as outras mulheres viram a peça, ficaram espantadas com
Mumtaz fez novos amigos em Lucknow. Um deles era Munnu, um
a beleza do bordado e a imaginação dos desenhos. Mas, em vez de
rapaz de oito anos, filho do vendedor de legumes. Mumtaz partilhava a
ficaram contentes com o facto de a prima conseguir criar coisas tão
comida com ele todos os dias e sentavam-se ambos a ver Lakka e Lotan
bonitas, Mehru e Kamru ficaram cheias de ciúmes. Mehru queixou-se:
─ Como é que ela conhece aqueles desenhos tão bonitos? Nunca
a brincar. No dia do festival, enquanto estavam ambos sentados a
vai a lado nenhum, nunca vê nada, e consegue bordar motivos
maravilhosos com cores deslumbrantes.
─ Deve haver uma forma de a impedir de receber tantos elogios ─
disse Kamru.
Ambas as irmãs tentaram então encontrar uma solução. Uma noite,
quando Mumtaz tinha ido buscar comida para Lakka e Lotan, Mehru
observar os pássaros, Munnu reparou que Mumtaz estava com vontade
de chorar e perguntou-lhe:
─ Porque estás triste? Tens saudades de Hardoi? Há lá muitas
aves?
─ Não, não há ─ respondeu Mumtaz. ─ Mas a minha mãe e as
minhas irmãs, Rehana e Salma, estão lá.
E pegou de novo no bordado.
─ Quem te ensinou esse tipo de bordado? ─ perguntou o rapaz.
─ Costumas sonhar à noite?
já está na nossa família há três gerações. Aprendi
─ Sonho, pois. Sonho que voo, tal como os meus pombos, e que
com a minha mãe, que aprendeu com a mãe dela. A minha avó nasceu
numa terra famosa por este tipo de bordados, e contava-me muitas
viajo para muitos sítios. Talvez um dia consiga encontrar a minha avó…
─ Vai depressa buscar o chador da tua avó, que eu mostro-te um
histórias sobre homens e mulheres poderosos e sobre o palácio das
truque ─ disse Munnu com determinação.
─O
chikankari2
doze portas. Costumava cozinhar refeições deliciosas e usava sempre
um
chador3
branco. Ainda o tenho. Sempre vi a minha mãe a bordar o
dia todo, desde que tenho memória.
A cara de Mumtaz alegrava-se, à medida que falava destas
recordações.
─ A tua mãe nunca saía? ─ admirou-se Munnu.
─ Só às vezes, para ir à mercearia ou para visitar familiares.
O rapaz falou-lhe de um mágico que tinha encontrado nas suas
andanças com o pai. Embora velho e doente, Chand Pasha tinha
ensinado a Munnu um truque fabuloso que ele queria partilhar com a
amiga para a animar. Mumtaz foi buscar o chador, a última prenda que
recebera da avó, e que esta bordara com as próprias mãos. Era uma
peça belíssima, na qual até os pontos mais minúsculos eram perfeitos.
Mesmo as minhas irmãs não saem com frequência e, quando o fazem,
Munnu disse:
─ Fecha os olhos e agarra uma
usam sempre um lenço. A minha mãe usa uma burqa4. As minhas irmãs
das pontas do chador, que eu agarro
nunca foram à escola, mas eu pude estudar até ao oitavo ano. Depois,
a outra. Depois respira fundo e
fiquei em casa, a aprender a bordar com a minha mãe e as minhas
formula um desejo.
irmãs.
─ Então, foste à escola! ─ admirou-se Munnu, que nunca tinha
Mumtaz desejou voar bem alto
para poder visitar terras novas e ver
frequentado a escola, porque o pai precisava da sua ajuda.
─ É verdade, sou uma das poucas bordadoras que foram à escola. A
pessoas diferentes. Lotan e Lakka
minha mãe nunca aprendeu a ler e a escrever e nunca conseguiu
ponta do chador, de forma a que
calcular quanto lhe deviam pagar pelos bordados. A princípio, eu
todos pudessem levantar voo. Voaram até uma terra bem distante,
ajudava-a nas contas; depois, como precisávamos de mais dinheiro,
onde as montanhas e os céus eram azuis e estavam cheios de pássaros.
comecei a bordar também.
Em baixo, a paisagem desenhava um vale verde, cheio de árvores de
também pegaram cada um na sua
Mumtaz parou de falar e disse baixinho:
fruto e de jardins floridos. Lotan e Lakka aterraram perto de um lago de
─ Tenho tantas saudades dela. Às vezes, choro a noite inteira.
águas cor de turquesa.
Munnu queria alegrar a amiga e, por isso, mudou de assunto:
Junto do lago, um grupo de homens vestidos com túnicas quentes
estava ocupado a bordar xailes de lã com agulhas finas. Os desenhos
O chikankari é um tipo de bordado que consiste em bordar tecidos brancos com fio
branco. (NT)
3 Um pano quadrado de tecido que pode ser usado como xaile ou vestido pelas
mulheres indianas. (NT)
4 A burqa é uma versão radical do chador; trata-se de uma peça de vestuário feminino
que cobre o corpo todo, incluindo o rosto e os olhos. (NT)
2
eram baseados na paisagem que os rodeava: flores coloridas, folhas e
pássaros. O mais velho de entre eles, Khurshid, cumprimentou Mumtaz
e perguntou-lhe de onde vinha.
─ Venho de Lucknow e sou bordadora de chikankar ─ respondeu a

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