16p rainha santa isabel, rainha de portugal, peregrina jacobeia

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16p rainha santa isabel, rainha de portugal, peregrina jacobeia
16P RAINHA SANTA ISABEL, RAINHA DE PORTUGAL,
PEREGRINA JACOBEIA
by albertosolana
Tradução por Paulo Santos
Um grande amigo e simultaneamente um
destacadíssimo especialista no assunto
jacobeu. Autor, historiador e pesquisador
com quem tenho tido a sorte de colaborar
em diferentes projetos e atividades,
comissário de exposições e participante
assíduo em congressos jacobeus, cedeume um artigo sobre uma personagem de
grande
interesse
no
mundo
das
peregrinações a Santiago de Compostela:
Santa Isabel de Aragón, Rainha de Portugal, que possuí, ontem e hoje, grande
carinho no país irmão, e de quem se conserva este belíssimo texto de canção
menestrel galaico-português que nos dá uma ideia do valor singular:
Vai a romeira a Santiago
Dona Isabel de Aragón
Rainha de Portugal.
Em vez de vestes reais,
Trás um hábito de freira
Com os olhos cheios e humilde
Pedindo esmola na estrada.
O trabalho do meu amigo Francisco Singul contribui também
com alguns dados interessantes sobre tradição jacobeia,
tradição que era conhecida e admirada pela Rainha Santa.
Santa Isabel de Aragón, Rainha de Portugal, peregrina
jacobeia.
Francisco Singul
O culto jacobeu em terras lusas é um fenómeno, com
origem no período alto medieval, com início próximo dos
anos imediatamente posteriores à descoberta do corpo de
Santiago, o Maior, e continuou a desenvolver-se ao longo
da Idade Média, como no resto do Ocidente. Os
portugueses peregrinaram a Compostela, inclusive numa
época tão difícil como no século XIV, um tempo pródigo
em guerras, pestes, sendo a mais célebre de 1348, não
sendo a única desencadeada no continente, fome,
insegurança e crise de pensamentos. Assim, durante o
período medieval foi muito intensa a devoção jacobeia do
povo luso e dos seus nobres, do clero e ainda dos seus
soberanos, chegando a criar-se sete caminhos de
peregrinação no território português, historicamente mais
unido a Galiza, as terras compreendidas entre o Douto e o Minho.
Importa recordar que, após a conquista islâmica da Península, esta região norte
Lusitana manteve-se unida à Galiza e que se integrou de modo natural no reino de
Astúrias e depois no de León. A evolução da reconquista favoreceu esta ligação,
ampliando-se o reino leonês até o vale do Mondego, depois da conquista de
Coimbra em 1064 por Fernando I, feito de armas que está associado à tradição de
Santiago como cavaleiro equestre, com a participação de milhares de cristãos em
apoio das hostes cristãs, segundo consta em dois conhecidos textos do século XII,
a História Silense (1115) e o capítulo 19 do Livro II – dedicado aos milagres do
Apóstolo- do “Códice Calixtino” (ca. 1140-50).
Este Portugal primogénito, convertido em condado
Portucalense por Afonso VI, ao casar Dª Teresa, sua
filha natural, com o nobre Borgonha Henrique de
Chalôns, a devoção ao Apóstolo tornou-se realidade,
bem como as peregrinações lusas a Compostela desde
finais do século XI. Em 1097 os condes D. Enrique e Dª
Teresa deram o exemplo e viajaram piedosamente até o
altar de Santiago, que à época ainda estava conservado
no interior da edícula (nicho) sepulcral que Teodomiro
de Iria tinha encontrado no bosque Libredón. Em 1114,
D. Afonso Henriques herda dos seus pais o Condado
Portucalense que, depois da batalha de S. Mamede,
Guimarães (1128), se separa da Galiza e da coroa de
Castela e León, nessa época reinava Afonso VII, rei
coroado por Gelmírez na Catedral de Santiago e, que gostava do cognome
“imperador”. Longe de abandonar a tradição jacobeia, o condado independente,
continua peregrinando, como se depreende de uma doação de D. Afonso Henriques
em 1141 ao Mosteiro de Paderne, com a indicação de que a comunidade ofereça
hospitalidade a pobres e peregrinos. Com a vitória de Ourique sobre os
muçulmanos (1138) e a celebração das cortes de Lamego (1143), D. Afonso
Henriques é reconhecido primeiro rei do país. É de recordar que em 1147 uma
armada de cruzados que navegava para Terra Santa, composta por flamencos,
alemães e britânicos, ajudaram o primeiro rei português na tomada de Lisboa, após
passagem por Compostela, onde pediram como peregrinos, auxílio a Santiago.
No difícil contexto do século XIV, destaca-se entre os
peregrinos jacobeus a Dª Isabel de Aragón (1270-1336), filha
do soberano aragonês D. Pedro III e de Dª Constanza de
Nápoles, e neta do célebre D. Jaime I, o Conquistador. Foi
Rainha de Portugal, pelo casamento com D. Dinis, com quem
teve dois filhos, Afonso, futuro Rei de Portugal, e Constanza,
futura Rainha de Castela. A vida da Rainha Dª Isabel é
pródiga em factos piedosos dirigidos ao serviço dos pobres e
necessitados, à Igreja e ao povo, devendo-se à sua
beneficência a fundação de numerosos hospícios, albergues,
leprosarias, hospitais e conventos, sendo o mais célebre, o
de Santa Clara-a-Velha de Coimbra.
[Aqui, solicito permissão aos autores para a abertura de um
parênteses. O Mosteiro de Santa Clara de Coimbra, popularmente conhecido como
Mosteiro de Santa Clara-a-Velha teve licença de construção em 1283, concedida a
Dª Mor Dias, com a primeira pedra a ser lançada em 1286. Mas a edificação havia
de ficar parada por incompatibilidade com o Convento Franciscano, situado nas
imediações do Mosteiro, que se oponha à mesma, tendo desistido do projeto.
Entretanto, em 1307, a Rainha Santa Isabel, interessou-se pelo mesmo, e após
mediação do conflito, a construção foi iniciada em 1316 e terminado em 1327.
Nessa data, a Rainha já se havia retirado para o Mosteiro em questão, após a morte
do Rei D. Dinis, vindo a falecer em Estremoz a 4 de julho de 1336. As constantes
inundações do Mosteiro e a deterioração, fizeram com que Dº João IV tivesse a
iniciativa da construção do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, e as freiras
abandonado o velho Mosteiro em 1677.]
[o Mosteiro e Santa Clara-a-Velha e ao fundo é possível ser observado o Mosteiro
de Santa Clara-a-Nova]
O melhor serviço prestado à coroa e ao povo reside na sua capacidade
negociadora, pois vários foram os violentos desencontros entre o Rei D. Dinis e seu
filho primogénito, o príncipe Afonso, motivados pelo
ciúme que este teria dos filhos bastardos do Rei, em
especial de seu meio-irmão Afonso Sanches, a quem o
Rei dava mostras de preferência. Perante o perigo de
não ser coroado, o primogénito e os seus nobres fiéis
tomaram a senda da guerra contra o pai durante o
período 1320-24. Neste conflito civil tomou parte Dª
Isabel, com ânimo mediador e pacificador, e sem dúvida
o momento mais falado, foi quando se dirigiu, montada
numa mula para o campo de batalha de Alvalade,
Lisboa, para implorar a paz entre pai e filho. Este
serviço de pacificadora já tinha praticado a soberana
anos anteriores, durante os conflitos tidos entre castelhanos e portugueses, e
alcançado a paz entre ambos os reinos em 1296, depois de ter dialogado Dª Maria
de Molina, Rainha de Castela e León, e combinar o casamento da sua filha
Constanza com Fernando, herdeiro da coroa castelhana. Para além das fronteiras
peninsulares também brilharam os seus sucessos diplomatas, ao conseguir a
reconciliação do Papa com Portugal, através da assinatura de uma Concordata para
a fundação da Universidade de Coimbra.
Se em vida foi uma Rainha bondosa e muito preocupada com os
desfavorecidos, após a sua morte, a história multiplicou os seus
atos piedosos, pois o povo cedo atribuiu-lhe factos milagrosos. O
rei D. Manuel I solicitou ao papa León X a sua beatificação,
ratificada por bula pontifícia assinada a 15 de abril de 1516. O
facto de que Dª Isabel fosse mãe de reis peninsulares, Dª
Constanza de Castela e Dª Afonso IV de Portugal, ascendente
por dupla via de D. Felipe II, Rei de Espanha e de Portugal, foi
decisivo para que o monarca hispano, em cujo império o sol nunca se punha,
começou a promover a sua canonização, no período de 1583-1591, assim
solenizando a devoção popular que a rainha conhecia em Portugal desde princípios
do século XVI. D. Felipe III apoiou decisivamente o processo de canonização, que
teria de culminar com sucesso pelo papa Urbano VIII, a 25 de maio de 1625, sendo
rei de Espanha D. Felipe IV.
Não há dúvida que este processo teve
influência importante dos atos de
caridade que adornaram a caridosa
biografia da Rainha Santa, entregue a
uma vida cristã exemplar, com relevo
à educação dos seus filhos (inclusive
dos filhos bastardos de Dº Dinis), a
fundação de obras pias e a busca da
paz, conseguindo frustrar conflitos que
ameaçavam a vida da sua família e
dos povos peninsulares, bem como a
estabilidade dos reinos. Após a morte
do seu
marido,
Rei Dº Dinis, em 7 de janeiro de 1325, retirou-se
para o Mosteiro de Santa Clara de Coimbra, que
tinha fundado e cujas obras vigiou de perto, vestindo
o hábito das clarissas, que não deixou de usar até
ao final da sua vida. Mas sem fazer voto de pobreza,
pois desta forma manteve o seu património para
continuar a exercer a sua caridade.
Por motivos de vocação, para orar pelo bem da sua
alma e do Rei Dº Dinis, supostamente no purgatório,
Dª Isabel empreendeu a senda peregrina e jacobeia,
e numa ou duas ocasiões,
embora sem confirmação,
com apelo devido à sua piedade e pela fama internacional
que havia alcançado no santuário jacobeu. De acordo
com alguns autores, a primeira vez e única, que decidiu
viajar até Santiago foi em 1325, alguns meses após a
morte do rei. Iniciou a peregrinação em junho, com a
intenção de rezar pela alma do seu marido perante o altar
de Santiago no dia 25 de julho daquele ano e solicitar
indulgências que resultassem em benefícios espirituais a
favor do Rei falecido. Dom Dinis não tinha tido ocasião de
peregrinar a Compostela, mas demonstrou a sua devoção
por Santiago doando ao Cabido da Catedral 300
maravedis (moeda da época) por ocasião da
comemoração do seu aniversário. A Rainha Dª Isabel, era conhecedora, dado
tratar-se de uma pessoa espiritual, que maior seria o benefício para a alma do rei,
se a entrega ao Apóstolo, fosse em resultado de um sacrifício pessoal,
acompanhado de uma generosa doação de valor simbólico, mas significativo.
Nessa ocasião, Dª Isabel de Portugal
passou por Padrón, com o propósito de
visitar
os
lugares
tradicionalmente
associados com a pregação do Apóstolo
na Galiza, como por exemplo “Santiaguiño
do Monte”, e com o translado dos seus
restos desde a Terra Santa. Em concreto
observou o célebre “pedrón”, que está
guardado na igreja de Padrón, dedicada a
Santiago, em que naquele tempo era existente um templo românico, construído por
Gelmírez. E a “pedra amaciada”, que parecia ter a marca do corpo do Zebedeu,
ligada ao momento em que os discípulos
depuseram em terra o corpo do seu mestre, tendo
a rocha acolhido carinhosamente a sua forma.
Esta pedra foi venerada pelos peregrinos durante
séculos, até que a piedade popular provocou a
erosão em demasia, pois os devotos raspavam a
relíquia com facas e outros objetos cortantes para
levarem uma recordação. Os padronenses
optaram por a jogar ao Rio Sar, para proteger tão
precioso objeto, permitindo que os peregrinos
vissem a rocha com a forma de Santiago, sobre o
leito fluvial desde um embarcadouro construído
com tal efeito. Dessa forma imersa, foi observado
em 1467 pelo nobre da Bohemia León de
Rosmithal, em 1494 por Hyeronimu Munzer e os seus companheiros de viagem, e
em 1550 pelo graduado Molina. Depois perdeu-se a memória desta peça,
possivelmente um sepulcro antropomorfo do século VI, como os que abundam na
Necrópole de Iria Flávia, unida à tradição da trasladação jacobeia.
Ao chegar a Milladoiro e ver por fim
as torres da Catedral compostelana,
a Rainha Santa desceu do cavalo em
que viajava e continuou a pé. Em
Santiago,
assistiu
à
solene
celebração de 25 de julho e doou ao
Apóstolo a sua coroa de soberana, o seu manto real, bordado com fios de ouro e
prata, tapeçarias com as armas de Aragón e Portugal e
outros presentes de valor. Recebeu vários presentes do
arcebispo Berenguel de Landoria, entre eles uma
escarcela enfeitada com uma concha, e um bastão ou
bordão enfeitado com vieiras gravadas sobre placas de
prata, com a forma de tau, de pedra e com leões de
prata nos extremos, igual ao que empunha a imagem
de Santiago no Pórtico da Glória. A Rainha Santa foi
enterrada com as referidas peças no Mosteiro de Santa
Clara-a-Velha, pois ambos apareceram em 1612 no
interior do sepulcro, aquando do reconhecimento
efetuado do corpo da soberana.
Não faltam autores em assegurar, particularmente Ruy de
Pina (1440-1522), na sua Crónica do Rei D. Afonso IV,
que antes do seu falecimento, no Castelo de Estremoz a
4 de julho de 1336, Dª Isabel regressou como peregrina a
Santiago, em 1335, numa viajem, piedosa a favor da sua
alma. Segundo a Crónica de Ruy de Pina, realizou
inteiramente a pé, sem ser reconhecida, e só
acompanhada por um séquito muito reduzido. A verdade
é que sobre esta suposta segunda peregrinação não se
têm mais dados. Corresponde à realidade histórica ou é
fruto da hagiografia popular da rainha?
Também não se conhecem as etapas da viagem ou
viagens da Santa Isabel. É possível reconstruir a rota de
peregrinação Coimbra - Compostela a partir de dois itinerários conhecidos: o
empreendido no final de 1494 por Hyeronimus Münzer, e o do Rei D. Manuel I,
peregrino jacobeu em 1502. Münzer era um médico de Nurenberg empregado como
embaixador ao serviço do imperador Maximiliano I Habsburgo (Alemanha). Depois
de ter iniciado em Lisboa, passando por Alverca, Santarém, onde residiam os
hospitalários, Tomar, cidade onde se encontra a casa mãe da Ordem de Cristo
(templários), Münzer chegou a Coimbra, cruzou o rio Mondego e continuou por terra
para o norte, passando por Porto, Barcelos, Ponte de Lima, Paredes de Coura e
Valença do Minho. O alemão cruzou o Minho, surpreendeu-se gratamente com a
Catedral de Tuí, pernoitou em Redondela, seguiu até Pontevedra, para depois
continuar até Caldas e Padrón, e chegou a Santiago de Compostela a 13 de
dezembro de 1494.
A rota seguida em 1502 pelo Rei D. Manuel I foi algo
diferente, e sem dúvida mais cómoda. O soberano e
a sua comitiva partiram de Lisboa em barco,
navegaram pelo rio Tejo até Tancos e continuaram
por terra até Tomar, para depois seguir até Coimbra.
Foi optado efetuar a rota pela costa, passando pelo
Castelo de Montemor-o-Velho e Aveiro. Depois de
passar pelo Porto, a viagem do monarca leva-o até
Dume (Braga), em lugar de tomar uma rota mais
curta para norte. O motivo foi de visitar os sepulcros
de S. Martinho de Dume e S. Frutuoso de Montélios.
O grupo saiu de Braga em direção a Ponte de Lima,
para depois continuar para Valença, Tuí, Pontevedra
e Santiago.
É possível que em 1325 Dª Isabel e o seu séquito viajassem de Coimbra até
Montemor-o-Velho, ali tomassem um barco para o norte, com destino ao Porto, ou
inclusive a Padrón. Mas será especular, dado não se ter a certeza de nada, pois
desde um destes portos poderiam ter seguido peregrinando a cavalo, como era
habitual entre os nobres e reis medievais, pouco dados a longas caminhadas, pois
viajar sobre arreio já lhes parecia bastante sacrifício, sobretudo se tinham idade
avançada. A Rainha Santa em 1325 teria cerca de 55 anos (faleceu com 66 anos),
uma esperança de vida média-alta para sua época, tendo em conta que havia
casado com 12 anos. Outra possibilidade, é que o cortejo da Rainha tenha realizado
o itinerário a cavalo desde Coimbra, e entrando na Galiza por Tuí.
A estátua que enfeita o sepulcro da Rainha Isabel, obramestra da escultura gótica portuguesa, mostra os
rasgos finos do rosto, possível retrato da soberana,
ornamentada no hábito das clarissas. Mestre Pêro, que
foi o escultor que realizou em 1330, a peça num único
bloco de pedra calcária de Ançã, Coimbra, ajustando as
têmporas da rainha à sua coroa, não se esqueceu de
lhe colocar na cintura a escarcela com a concha e nas
suas mãos o bordão em tau que tinha obtido em
Compostela. Deste modo, reforçando o papel de devota
peregrina de Santiago, que subsiste como recordação
das gerações, da única Rainha Santa de Portugal.

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