Editorial da Revista Diálogos Mediterrânicos 7
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Editorial da Revista Diálogos Mediterrânicos 7
Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 REVISTA DIÁLOGOS MEDITERRÂNICOS EQUIPE EDITORIAL EDITOR GERENTE Profa. Dra. Marcella Lopes Guimarães, Universidade Federal do Paraná, Brasil EDITOR ADJUNTO Prof. Me. André Luiz Leme, Universidade Federal do Paraná, Brasil CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Dennison de Oliveira, Universidade Federal do Paraná, Brasil Profa. Dra. Marcella Lopes Guimarães, Universidade Federal do Paraná, Brasil Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes, Universidade Federal do Paraná, Brasil Prof. Dr. Renan Frighetto, Universidade Federal do Paraná, Brasil CONSELHO CONSULTIVO Prof. Dr. Hans-Werner Goetz, Universität Hamburg, Alemanha Prof. Dr. Saul António Gomes, Universidade de Coimbra, Portugal Profa. Dra. Aline Dias da Silveira, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Prof. Dr. Stéphane Boissellier, Université de Poitiers, França Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves, Universidade Federal de Goiás, Brasil Profa. Dra. Renata Cristina Nascimento, Universidade Federal de Goiás, Brasil Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz, Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Prof. Dr. Gerardo Fabián Rodríguez, Universidad Nacional de Mar del Plata, Argentina Profa. Dra. Ana Paula Magalhães, Universidade de São Paulo, Brasil Profa. Dra. Maria Filomena Pinto Da Costa Coelho, Universidade de Brasília, Brasil Profa. Dra. Maria Cecilia Barreto Amorim Pilla, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil Prof. Dr. José Carlos Gimenez, Universidade Estadual de Maringá, Brasil Prof. Dr. Cássio da Silva Fernandes, Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil Profa. Dra. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Prof. Dr. Leandro Duarte Rust, Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Prof. Dr. Marcos Luis Ehrhardt, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva, Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Profa. Dra. Armênia Maria de Souza, Universidade Federal de Goiás, Brasil Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 2 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 FOCO E ESCOPO DA REVISTA A Revista Diálogos Mediterrânicos, vinculada ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos da Universidade Federal do Paraná, tem como principal missão à difusão do conhecimento historiográfico relativo a realidade do mundo mediterrânico na diacronia histórica, desde a Antiguidade até a contemporaneidade. Tal iniciativa é amparada por objetivos definidos, como o de incentivar a produção acadêmica – científica qualificada e, conseqüentemente, incrementar o debate e o intercâmbio entre especialistas nas áreas das Ciências Humanas que tenham como motor de suas investigações a História do mundo mediterrânico. Trata-se duma publicação vocacionada ao espaço científico, sendo destinada à divulgação de artigos e resenhas de mestrandos, mestres, doutorandos e doutores que devem ter como tema central a História na realidade mediterrânica. Todos os trabalhos deverão ser encaminhados pela página web http://www.dialogosmediterranicos.com.br, através do sistema Open Journal Systems que favorece a ocorrência duma avaliação criteriosa e séria por parte dos pareceristas e dos autores de artigos e resenhas. Para tanto é essencial que cada autor realize seu cadastro no sistema, seguindo os passos informados. Os trabalhos serão enviados para sessões específicas – Dossiê; Artigos Isolados; Resenhas; Entrevistas – e sua publicação será realizada conforme a avaliação dos pareceristas. CONTATO PRINCIPAL Núcleo de Estudos Mediterrânicos Universidade Federal do Paraná Endereço: Rua Gal. Carneiro, 460. Prédio D. Pedro I, 7º andar, sala 715. Centro - Curitiba - Paraná – Brasil CEP 80060-150 Telefone: 55 (41) 3360-5416 / 3360-5417 E-mail: [email protected] [email protected] Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 3 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 SUMÁRIO EDITORIAL Editorial Revista Diálogos Mediterrânicos 7 7 Marcella Lopes Guimarães DOSSIÊ “LEITURA E IDENTIDADE EM DISCUSSÃO: HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL” Apresentação ao Dossiê 10 Marcella Lopes Guimarães “Sem fazer nada, os homens fazem mal”: leituras e leitores de Catão na Roma Antiga 12 Marcos Luis Ehrhardt Um exemplo de gens na Hispania visigoda: Fructuoso de Braga e a sua origo preclara (século VII) 28 Renan Frighetto As representações dos Muçulmanos durante a tomada de Lisboa pelos Cristãos (1147) 53 José Carlos Gimenez A Trama da História na concepção de povo nas Siete Partidas 66 Aline Dias da Silveira Ideologia da guerra ou ideologia dos guerreiros? Mais algumas interpretações do relato da batalha do Salado (1340) no Livro de Linhagens do Conde Dom Pedro 84 Stéphane Boissellier As transformações na sociedade política e nas monarquias medievais e seus efeitos na mobilidade de facções nobiliárquicas entre Portugal e Castela 104 Fátima Regina Fernandes ARTIGOS Men of Sea. The making of an Identity David Álvarez Jimenez, Sergio Remedios Sánchez Revista Diálogos Mediterrânicos 128 ISSN 2237-6585 4 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Elementos Proféticos na Cronística Moçárabe (séculos VIII - XI) 141 António Rei O Intelectual na Idade Média: divergências historiográficas e proposta de análise 155 Igor Salomão Teixeira O que vale é a intenção… Texto, contexto, autor e linguagem na perspectiva de Quentin Skinner 174 Ana Crhistina Vanali, Monica Helena Harrich Silva Goulart RESENHAS GALLEGO, Julíán; GARCÍA MAC GAW, Carlos G. (comps.). La ciudad en el Mediterráneo Antiguo. Colección Razón Política/Estudios del Mediterráneo Antiguo – PEFSCEA N° 4. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires/Ediciones del Signo, 2007, 264p. 188 Horacio Miguel Hernán Zapata GUIMARÃES, Marcella Lopes (org.). Por São Jorge! Por São Tiago! Batalhas e narrativas ibéricas medievais. Curitiba: Editora UFPR, 2013, 195p. 194 Ana Luiza Mendes DOCUMENTOS HISTÓRICOS & TRADUÇÕES Bulas Inquisitoriais: "Ad Extirpanda" (1252) Leandro Duarte Rust NORMAS DE PUBLICAÇÃO Revista Diálogos Mediterrânicos 200 230 ISSN 2237-6585 5 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 EDITORIAL Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 6 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Editorial da Revista Diálogos Mediterrânicos 7 Marcella Lopes Guimarães Universidade Federal do Paraná NEMED - Núcleo de Estudos Mediterrânicos A revista Diálogos Mediterrânicos chega ao seu sétimo número com um dossiê intitulado Leitura e Identidade em discussão: História Antiga e Medieval. Ele reúne pesquisadores do NEMED que, em 2012, celebraram também 10 anos de criação desse grupo de pesquisa. No dossiê, os artigos de Marcos Luis Ehrhardt, José Carlos Gimenez e Stéphane Boissellier voltam-se às questões da leitura de textos, sua apropriação e ressignificação. Destaco os sentidos que só o ato de ler pode produzir em sociedades tão diversas quanto as que os colegas autores examinam. Já os textos de Renan Frighetto, Aline Dias da Silveira e Fátima Regina Fernandes voltam-se à discussão da identidade. Destaco o fato de Renan Frighetto e Aline Silveira analisarem na especificidade o que a semelhança dos termos gens e gentes poderia inadvertidamente aproximar. Convido os leitores à leitura da apresentação do dossiê para uma síntese mais pormenorizada. A Diálogos Mediterrânicos 7 também têm o prazer de publicar entre seus artigos livres uma rica diversidade. David Álvarez Jimenez Correio, da Universidade Internacional de La Rioja, e Sergio Remedios Sánchez Correio, da Universidade Complutense de Madrid trazem a identidade das gentes do mar na Antiguidade. António Rei, do Instituto de Estudos Medievais (IEM / FCSH–UNL), Lisboa, evoca os textos moçárabes de Al-Andaluz. Igor Salomão Teixeira, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), revisa o conceito de intelectual medieval e, finalmente, Ana Crhistina Vanali da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e Monica Helena Harrich Silva Goulart da (UTFPR) analisam as contribuições de Quentin Skinner para a história intelectual. A revista ainda publica duas resenhas, a primeira escrita por Horacio Miguel Hernán Zapata da Universidade Nacional del Nordeste (UNNE), Argentina, da obra La ciudad en el Mediterráneo Antiguo, publicada em 2007, e de Ana Luiza Mendes, da UFPR (Universidade Federal do Paraná) da obra Por São Jorge ! Por São Tiago! Batalhas e narrativas ibéricas medievais, organizada por mim e publicada em 2013. A revista Diálogos Mediterrânicos 7 está aberta à submissão de trabalhos acadêmicos de gêneros diversos e, neste número em especial, temos a satisfação de convidar o leitor à Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 7 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 leitura de uma tradução bilíngue, latim-português, de um documento medieval, a bula Ad extirpanda (1252), trabalho realizado por Leandro Rust da UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso). Que essa novidade mobilize os pesquisadores a apresentarem entrevistas, outras traduções, balanços de pesquisa, transcrição de documentos..., inspirados pela inventividade do conhecimento produzido nas Humanidades. Agradeço aos autores pela confiança, aos pareceristas a correção e agudeza e ao meu editor adjunto, Prof. Me. André Leme, pela parceria constante. Aos leitores, uma boa leitura! Marcella Lopes Guimarães. Em 17 de dezembro de 2014. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 8 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 DOSSIÊ LEITURA E IDENTIDADE EM DISCUSSÃO: HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 9 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Apresentação ao Dossiê “Leitura e Identidade em discussão: História Antiga e Medieval” No momento em que o primeiro escriba arranhou e murmurou as primeiras letras, o corpo humano já era capaz de executar os atos de escrever e ler que ainda estavam no futuro. (Alberto Manguel em Uma história da leitura) O dossiê leitura e identidade revela como revisitar a tradição fomenta ações e como tradições diversas, atualizadas por sociabilidades em constante movimento, mobilizam uma discussão sobre identidade entre a Antiguidade e o Medievo. O dossiê se abre com o texto do Professor Doutor Marcos Luis Ehrhardt, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, que “defende” o primeiro pilar do dossiê: “Leitores não são apenas herdeiros silenciosos, mas participantes críticos”. No artigo, o autor avalia como a retomada do pensamento dos dois Catões, o antigo e o seu bisneto, (entre os séculos III e I a. C.) opera histórica e literariamente a reabilitação do presente de leitores muito especiais, como Lucano, Pérsio e Sêneca. O segundo artigo, da autoria do Professor Doutor Renan Frighetto, da Universidade Federal do Paraná, entroniza a segunda discussão, ao refletir sobre o conceito de gens, na Antiguidade Tardia, fundamentalmente a partir da obra de Fructuoso de Braga, “verdadeiro modelo de integrante de uma das mais ínclitas gentes do reino hispanovisigodo no século VII”. Nesse texto, o professor esmiúça os elementos que constituem a construção ideológica do conceito. O Professor Doutor José Carlos Gimenez, da Universidade Estadual de Maringá, volta-se à leitura da carta de um clérigo inglês, conhecido como Osberno, escrita entre a segunda metade do século XII e a primeira metade do XIII, para resgatar “as aventuras e as adversidades transcorridas” durante a conquista de Lisboa, em campanha liderada por Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal (reinado: 1139-1185). A carta reporta fatos políticos baseados na afirmação da fé cristã, em oposição à presença moura. A discussão da identidade volta à cena, com o artigo da Professora Doutora Aline Dias da Silveira, da Universidade Federal de Santa Catarina. A partir da análise das Siete Partidas, realizadas sob os auspícios de Afonso X de Castela (reinado: 1252 a 1284), a autora discute o conceito de povo, que, segundo sua análise, “apoia-se na interdependência de seus membros com a terra e com o rei”, em uma rede de “convivência”. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 10 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 A leitura é a ambição do texto e o Professor Doutor Stéphane Boissellier, da Universidade de Poitiers, volta-se à interpretação de um “monumento destinado a celebrar e recordar a batalha do Salado” (1340), ou seja, à narrativa conservada no Livro de linhagens do Conde D. Pedro Afonso, inserida na segunda refundição da obra, no fim do século XIV. Sua análise centra-se no que o documento revela sobre a “atitude nobiliárquica para com a guerra, entre proeza pagã e cumprimento da vontade divina”. Encerra o dossiê Leitura e Identidade em discussão: História Antiga e Medieval o artigo da Professora Doutora Fátima Regina Fernandes, da Universidade Federal do Paraná, que a partir da observação “das idas e retornos de nobres entre os reinos de Portugal, Castela e Inglaterra”, busca mapear relações políticas na sociedade ibérica medieval, caracterizada por vínculos concorrentes que constroem identidades superpostas e complexas. Esse dossiê formado por pesquisadores de várias instituições – no Brasil e no exterior – celebra ainda o encontro entre companheiros do mesmo grupo de pesquisa, o NEMED, que em 2012, completou 10 anos de vida. Salve! Marcella Lopes Guimarães Em 17 de dezembro de 2014. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 11 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 “Sem fazer nada, os homens fazem mal”: leituras e leitores de Catão na Roma Antiga "By doing nothing, men learn to do poorly": reading and readers of Cato in Ancient Rome Marcos Luis Ehrhardt* Universidade Estadual do Oeste do Paraná Resumo Abstract Leitores de obras não são apenas herdeiros silenciosos, mas participantes críticos. A julgar pela quantidade de vezes que aparece nos textos antigos, em diversos autores de diferentes vinculações políticas, filosóficas e educacionais, percebemos que o nome de Catão, é recorrência constante e duradoura. Este trabalho objetiva perceber como ele é representado, lido e relido por diferentes autores como Sêneca, Lucano e Pérsio, sendo apontado inclusive como modelo de cidadão ideal na Roma Antiga. Readers works are not only silent inheritors, but critic participants. Considering how many times it appears in ancient texts, in various authors of different political, philosophical and educational affiliations, it is possible to notice that the name of Cato is frequent and longstanding. This paper aims to notice how he is represented, read and reread by different authors, like Seneca, Lucano and Persius, pointed out, inclusive, as a model of ideal citizen in Ancient Rome. Palavras-chave: Catão; Roma Antiga; Homem Keywords: Cato; Ancient Rome; Public man. Público. ● Enviado em: 03/11/2014 ● Aprovado em: 12/12/2014 * Professor Adjunto D do Colegiado do Curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná Unioeste – campus de Marechal Cândido Rondon/Pr. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 12 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Um texto clássico é, sempre, intertexto. Um tecido pontilhado de alusões ao mito, aos poetas “antigos”, a uma história comum ao escritor e ao leitor. Joaquim Brasil Fontes. Introdução e Metodologia de Análise Quando nos debruçamos sobre a literatura política e moral da sociedade greco-latina, é imperioso constatar a relação existente, em quase todas as épocas da Antiguidade, entre o governo e os pensadores, e mais especificamente ao que nos interessa, entre o governo imperial romano e os filósofos e/ou moralistas. Para exemplificar essas relações em diferentes épocas e lugares, há farta literatura que demonstra esse estreito diálogo entre saber e poder. O que nos interessa diretamente neste momento é entender a produção intelectual e/ou educacional de autores que viveram ou elegeram o primeiro século da era cristã. São inúmeras as referências a homens considerados modelares aos propósitos dos autores. Alguns nomes ganham um significativo destaque pela importância dada e pela recorrência aos mesmos. Vou me deter em dois deles: primeiramente Catão, o antigo ou o censor (235 – 149 a.C.), descendente de família obscura de Túsculo, que combateu contra Aníbal, foi cônsul em 195 e censor em 185. E além deste seu homónimo Catão, o Jovem ou Catão de Útica, bisneto de Catão o censor. Adversário de Caio Julio César durante a sua trajetória política, acabou participando do grupo liderado por Pompeu Magno na guerra civil contra os cesarianos (49 a.C./45 a.C.). Depois da derrota das forças de Pompeu na batalha da Pharsalia (48 a.C.), o jovem Catão retirou-se para a África e, ao saber que os partidários de Pompeu tinham sido vencidos na batalha de Tapso (46 a.C.), suicidou-se em Útica. Sua morte ficou célebre. Apesar de vencido Catão, o Jovem apareceu, na ótica de Salústio, como uma espécie de “campeão moral” do mundo republicano romano. Porque o nome de Catão é tão citado e alardeado nos autores tanto do período republicano quanto do período imperial? Uma primeira constatação é a de que aquele aparece como um exemplo, uma verdadeira personificação da austeridade, patriotismo e moralidade que definiriam os traços dominantes do homem público romano. Assim percebemos uma identificação, uma convergência de interesses para dois nomes que se transformaram em um verdadeiro paradigma. O tema da relação entre pensadores/autores com o poder sempre me interessou. A necessidade de atrelar tema/corpus documental e teoria me aproximou da História Intelectual. Gostaria de propor uma leitura que se inspira no conceito de geração. O conceito Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 13 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 de geração nos permite problematizar a ideia de legado e de transmissão. Também comporta as noções de mudança e de ruptura, e a possibilidade de perceber as continuidades e descontinuidades de pensamento. Porém só se torna válido quando estabelece um sistema de referências aceitas por um grupo, quer seja, o de identificação coletiva. 1 No que tange aos intelectuais ou pensadores, a ideia de herança é basilar. Os processos de transmissões culturais são fundamentais. Quer haja ruptura, quer não haja, o período anterior é quase sempre referência direta ou indiretamente. Pensamos aqui na ideia de Tradição, porém não devemos confundir com noções de conservação ou continuidade de valores imutáveis. O que se deve buscar são os atos de “ressignificação do texto”. É preciso desconstruir a ideia e/ou prática que considera a palavra anunciada ou o texto como uma posição de verdade absoluta. É imperioso constatar ainda o cuidado ao se utilizar de epistemologias modernas para o mundo antigo. Penso que o conceito de geração intelectual lançado aos autores antigos é válido e podemos utilizá-lo sem o tratarmos como um conceito fechado, classificador, pois como diz Paul Veyne, “todo conceito classificador é falso porque nenhum acontecimento se parece com outro e que a História não é a constante repetição dos mesmos fatos” 2. Lidamos com os chamados “textos clássicos”, mas que não se amarram em um repertório fixo, aprovado para sempre3. Assim, a utilização do conceito de geração intelectual nos auxilia para entendermos a presença de um nome, Catão, em um grupo de autores que criaram em um determinado período, uma identificação de grupo com objetivos convergentes. Para os Catões e para nossa perspectiva de análise consideramos também dois aspectos: a perspectiva sincrônica que nos permite entender o contexto intelectual (relação do sujeito biografado e seus engajamentos, escolhas, silêncios, entre outros) e a leitura diacrônica, quer seja, leituras em diversas épocas para entender as influências, permanências, contradições, enfim a fortuna crítica de um determinado nome4. Podemos também pensar a partir de uma perspectiva que considere a prosopografia como método de análise. Como nos ensina Fátima Fernandes, a prosopografia foi inicialmente utilizada para apresentar e destacar indivíduos ilustres formadores de uma consciência moral, com a tarefa de 1 2 3 4 Para tanto ver SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos de História Intelectual. Entre questionamentos e perspectivas. São Paulo: Papirus, 2002. VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Lisboa: Edições 70, 1983. Conforme LACERDA, Sonia; KIRSCHNER, Tereza. Tradição Intelectual e espaços historiográficos ou porque dar atenção aos textos clássicos. In: Textos de História. Brasília, v. 5, n. 2, 1997. Para um aprofundamento desta discussão destacamos a obra de SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos de História Intelectual. Entre questionamentos e perspectivas. São Paulo, Papirus, 2002. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 14 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 orientar os jovens em relação aos valores autorizados e reconhecidos em sua época, ou seja, como uma proposta de formação edificante que aparece nas obras onde o termo é aplicado.5 Ambos os Catões foram influenciados pelo estoicismo e suas ações mostram-nos indivíduos que se apresentavam como participantes efetivos nas instituições de poder e que colocavam seus conhecimentos ao serviço da res publica para referendar ou criticar determinados aspectos da sociedade na qual viviam e transitavam. Eram homens de letras e, em muitos casos, ocupantes de cargos públicos. Como diz Paul Veyne, (...) não são homens como os outros: tudo que diz é público e merece crédito; eles julgam os atos públicos e privados de seus pares. (...) E essa autoridade recaía sobre a moral privada como sobre a vida pública. (...) Sendo historiador, dirá o que se deve pensar do passado romano, para ilustrar as verdades políticas, morais e patrióticas de que o Senado era o conservatório ou a academia. (...) Sendo filósofo, terá o direito de dizer como se aplica a filosofia à política, para encontrar nos livros de sabedoria os velhos princípios de Roma, dos quais são guardiões6 Uma questão importante se impõe: O que os autores almejavam transmitir à posteridade a partir dos seus escritos? Entendemos que aqueles podiam contemplar tanto as formas de pensamento em vigor quanto às informações sobre um mundo em constante transformação. Temas que nos fazem refletir e que nos levam a uma segunda pergunta: os autores romanos do primeiro século da era cristã percebiam e aceitavam a ideia de que a sociedade romana passava por um momento de transformação? Penso que percebem, mas não aceitam, condenam e apresentam outros caminhos. O homem público romano deste período se sofistica. Propositadamente cria uma “cultura de ostentação” com banquetes e grandes festas. Alguns autores chamam isso de “luxo asiático” (novos produtos, novos hábitos, novas necessidades). Convém recordar uma passagem de Juvenal no livro I, sátira 16 quando aponta a sofisticação do paladar como uma característica do Império Romano. À medida que cresce espacialmente, mais complexa e mais sofisticada se torna a sociedade romana. Há uma diversificação dos gostos. A simplicidade está em segundo plano e se reflete na vida cotidiana 7. 5 6 7 FERNANDES, Fátima Regina. A metodologia prosopográfica aplicada às fontes medievais: reflexões estruturais. In: História da historiografia. Ouro Preto: abril, n. 8, 2012, p. 12. VEYNE, Paul. Censuras e Utopias. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges. História da Vida Privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 173. Referência importante para esta reflexão é o trabalha da historiadora chilena CUBILLOS POBLETE, Marcela. El otro poder. Vida cotidiana y control social en Roma. In: Instituições, Poderes e Jurisdições. I Seminário Argentina, Brasil, Chile de História Antiga e Medieval. Curitiba: Juruá, 2007. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 15 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Mas também devemos sempre considerar que o “discurso decadentista” é tradicional da literatura romana, uma tônica constante tanto dos autores republicanos quanto dos autores imperiais. Todos os autores dialogam com esta tradição. Assim, Catão, para os autores que pretendemos analisar é resignificado com interesses de cunho moral e político. Para Carlos Galvão, (...) qualquer interpretação do Principado que o defina como um sistema de imposições que se abatem sobre uma aristocracia submissa não se sustenta a partir da leitura das fontes. Para fins de análise, portanto, é preferível ver o regime político inaugurado por Augusto e perpetuado pelos seus sucessores não como um sistema fixo e engessado, mas como uma situação social, resultado, ao mesmo tempo, de um rearranjo das forças políticas em um determinado contexto histórico e da organização de um conjunto instável e dinâmico de restrições dos espaços de atuação tanto dos súditos mais privilegiados do regime como do príncipe8. Constatamos que autores do pensamento político, ou a ele vinculados, tencionam a intervenção. Mesmo o pensador que opta pelo otium escolhe, muitas vezes, um leitor ideal, parceiro que dará vida as suas páginas. É fundamental pensar: a quem os autores se dirigem, para evitar um enquadramento do texto e talvez realizar apenas uma contextualização de boa qualidade. Para o contexto do Principado, e por uma clara influência da filosofia estoica, há uma estreita aliança entre o pensamento filosófico e o pensamento político. Por esse motivo, devemos considerar a vida pública e a vida privada como interdependentes. Se a última é má e corrupta, a primeira não pode alcançar o seu fim. Por isso, visualizamos nas fontes esta dupla preocupação. Para os estoicos não existia quebra de continuidade entre a esfera individual e política. Dessa forma a realidade cotidiana, que envolvia os ambientes público e privado, constituía-se como uma grande res publica. Assim afirmou Sêneca na epístola 94 ao referir-se a função da filosofia estoica no mundo romano: “...Como se fosse possível alguém ministrar preceitos sobre uma questão particular sem ter em vista toda a complexidade da vida humana”.9 Catão e os Autores do Principado Neroniano Um rápido apanhado na literatura clássica romana demonstra a presença constante e recorrente ao nome dos Catões. Cícero utiliza-se amplamente de Catão, o censor para 8 9 GALVÃO, Carlos. Autocracia, Ressentimento e Engajamento Político no Principado Romano. In: Memória e (RE) Sentimento. BRESCINANI, S.; NAXARA, M. (Orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2004, p. 320. SENECA, Lucius Anneus. Ad Lucilium epistulae morales. Transl. Richard Gummere. London: Harvard University Press, 1989, p 234. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 16 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 demonstrar a importância da formação sólida dos homens das letras pelo seu exemplo. Plutarco, ao aproximar-se do ideal da educação e da humanitas do povo romano, inclina-se para Catão, o antigo. Em Plínio, o jovem, Catão torna-se um adjetivo. Contrariamos Marco Aurélio, nas suas Meditações, no Livro IV, 33 que diz que o tempo tudo apaga e também apagará Catão. Ao considerar sua influência e permanência, parece que o principe filósofo equivocou-se em sua assertiva. Temos que ter clareza que cada época e cada autor apresentam os nomes dos Catões de diferentes maneiras para diferentes propósitos. Para os nossos escolhemos um grupo de autores que, em nossa opinião, apresentam propósitos convergentes ao se utilizarem dos dois Catões para dialogar. A seguir, apresentaremos alguns exemplos de autores de uma mesma geração intelectual que se utilizam dos Catões para construir seus argumentos acerca do modelo ideal, prioritariamente, de homem romano. Lucano e Pérsio estão voltados de forma bastante clara para Catão, o jovem e, por fim, Sêneca, inclinado aos dois Catões, dependendo dos seus objetivos no texto. Lucano – 39 – 65 d. C. Lucano (Marco Aneu Lucano) era natural de Córdoba, sobrinho de Sêneca, viveu sob o principado neroniano. Sua principal obra, fundamental para a literatura latina do século I d.C., foi a Pharsalia. Qual é o momento da escrita de Lucano? No que tange à divisão da literatura latina, Lucano estaria na fase conhecida como “Idade de Prata”, tendo nascido cem anos depois de Virgílio. Enquanto o poeta de Mântua cantou os mitos de heróis e semideuses, o poeta cordobês cantava a guerra entre os mortais, pois não falava mais de deuses, mas de homens. A epopeia é uma narrativa de heróis que se perdem no tempo. Lucano faz uma epopeia que foge a essa estrutura. Assim, mudou a perspectiva desta e isso é uma representação histórica bastante importante. 10 Lucano é visto como um autor muito exagerado que usava máximas e frases de efeito o tempo todo ao longo do texto. Há pelo menos duas vertentes de análise da obra lucaniana: de um lado, o autor aparece como participante de uma espécie de cruzada política-literária, chamado de “o maior representante da literatura de combate”; de outro, um autor com graves falhas de construção, resultado de suas paixões políticas. “Se levantou contra César (...) o seu herói é o suicida Catão, o seu partido é o republicano. A Pharsalia é um poderoso sermão 10 Conforme CARVALHO, Aécio F. de. A Farsália de Lucano: importância na evolução do epos. In: Acta Scientiarum, Maringá, 23(1):93-101, 2001. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 17 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 político, a favor de uma causa já vencida, abandonada pelos deuses, mas por isso mesmo mantida pelo espírito do novo Catão”.11 Nos três primeiros livros da Pharsalia mostra-se um partidário do principado, nos sete últimos defende ardorosamente o velho espírito republicano, personificado em Catão. Ao romper com Nero, e não podendo atacá-lo diretamente, descarrega todo seu ódio sobre a pessoa de César, que ele descreve como ambicioso, egoísta, hipócrita e cruel. Lucano chamará a atenção para as atrocidades da guerra civil. Seus questionamentos filosóficos aparecem no verso 140 do livro I quando defende a liberdade de um povo oprimido pela tirania. Referência semelhante também aparece no Livro VI, verso 790, citando Catão, o velho, inimigo de Cartago e seu neto, Catão, o jovem, que não estava disposto a ser escravo. 12 No Canto II ou Livro Segundo, no verso 240, Lucano faz uma forte exortação de Catão, o jovem. Homem virtuoso e defensor das virtudes republicanas, afirma: “Da virtude, que todos, faz tempo, deixaram, só tu és garantia, e isso nem os giros da Sorte furtar-te-ão, minha alma vai sem rumo, conduz-me e fortalece com tuas certezas”. 13 Ao trazer a resposta de Catão, o jovem, a Brutus no verso 290 Lucano apresenta-nos a um Catão estoico por excelência, além da justificação do suicídio de Catão como algo grandioso e até necessário. No verso 375 do segundo livro, Lucano destacou as atitudes castas de Catão durante suas núpcias com Márcia: O severo Catão, resoluto, assim vivia e agia, esta é a sua moral: Guardar o meio termo, sempre impor limites, seguir a natureza, à pátria dar a vida, e crer que existe não para si, mas para o mundo. A Catão um banquete era matar a fome; grandioso lar, um teto para fugir do frio, roupa estupenda, a toga Quirinal, única utilidade do venerio enlace, procriação; à Urbe era um pai e um marido, defensor da justiça e da honra inflexível, afeito ao bem comum. Em ato algum Catão falhou, avesso a toda espécie de egoísmo 14 No que tange às suas vinculações ao poder vemos um autor, no canto I entre os versos 33 e 66 de sua Pharsalia, que exaltou e elogiou o advento do governo neroniano. Dadas as circunstâncias, podemos entender e levar aquele elogio muito a sério. Lucano pôde, na generosidade do seu idealismo de jovem, antes do rompimento com o imperador ter visto em Nero características extraordinárias, capazes de motivarem o elogio.15 Isso não seria nada 11 12 13 14 15 CARPEAUX, Otto M. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1959, p. 131/2. LUCANO, M. Anneu. Farsalia. Introducción, Traducción y notas de Antonio Helgado Redondo. Madrid: Editorial Gredos, 1984. LUCANO, op. Cit. p. 34. LUCANO, op. Cit, p. 78. LUCANO, M. Anneu. Farsalia. Introducción, Traducción y notas de Antonio Helgado Redondo. Madrid: Editorial Gredos, 1984, p. 102. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 18 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 estranho, ainda mais se lembrarmos que os historiadores se referem a um período - o quinquennium Neronis – no qual o imperador foi capaz de colocar a ambição a serviço do bem público, sendo possível à história destacar, nesse período, medidas de grande senso administrativo16. Ao final, quando condenado pelo despotismo neroniano, Lucano, tendo que cometer o suicídio, encarnou a liberdade perdida dos tempos ancestrais da Res publica romana, personificado em Catão, o jovem. Pérsio – 34 – 62 d. C. Pérsio (Aulus Persius Flaccus) foi cavaleiro romano, nascido em 4 de dezembro de 34 em Volterna, antiga cidade etrusca. Morreu em 24 de novembro de 62, vítima de uma doença do estômago. Pérsio, em suas sátiras, atacava o mau gosto dos homens, inclusive os das letras, a sordidez da população, o orgulho dos nobres e para muitos, a postura despótica do princeps. Suas sátiras aparecem como verdadeiros sermões; também contém anedotas, referências mitológicas, máximas e em muitos momentos, cartas dirigidas a pessoas conhecidas. A utilização da epistolografia foi um recurso amplamente utilizado por autores romanos, como uma maneira de dialogar com o leitor ou com um interlocutor que poderia ser, inclusive, imaginário. A literatura define-a como suasoriae onde o autor imagina que alguma das suas afirmações é objetada por alguém, objeção essa que lhe dará oportunidade para retomar a sua ideia inicial, comprová-la com novos argumentos ou ilustrá-la com nova exemplificação. Abundam nesse tipo de textos expressões como dicunt (dizem alguns), dicis ou dices (dizes ou dirás tu). Também se constata a intenção de atingir um tu mais direto e objetivo nesse tipo de recurso de escrita. Graças a Cornuto17, Pérsio pode se relacionar com distintos membros daquele grupo de estoicos que enfrentaram no final da vida o despotismo de Nero e conservaram viva a chama da doutrina de Crisipo e Creantes. Na mesma escola de Cornuto, Pérsio teve como colega Lucano, cinco anos mais jovem que Pérsio; um admirava o trabalho do outro. Suas sátiras, inspiradas em uma longa tradição foram, para muitos, direcionadas contra Nero. Seus biógrafos confirmam um conhecido episódio, segundo o qual no verso 121 a sátira 16 17 Para um aprofundamento de Lucano, ver VIEIRA, Brunno V.G. Farsália DE Lucano– Cantos de I a V, introdução, tradução e notas. São Paulo: Editora Unicamp, 2011. Lucius Annaeus Cornutus. Foi um escravo liberto de Sêneca. Abriu uma escola filosófica estoica, sendo Pérsio e Lucano alunos da referida escola. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 19 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 dizia: “o rei tem orelhas de asno”.18 Cornuto, temendo que o imperador interpretasse a frase como uma alusão direta a ele, convenceu o satírico a mudar a frase para: “quem não tem orelhas de asno”?19 Apesar do esforço de Cornuto, a interpretação corrente era a de que todos sabiam que os versos eram direcionados a Nero. Em 65, ordenado por Nero, Cornuto fora mandado para um forçado exílio, juntamente com seu colega, o também estoico Musonio Rufo. Como exemplo trazemos referências da sátira III (de um total de seis) que o poeta dirigiu contra todos aqueles que se descuidaram dos estudos da filosofia e cederam seu tempo e suas forças ao ócio, a indolência, principalmente os jovens. O poeta descreve os ardis de que se valia, desde a sua infância para se dedicar aos estudos. “da mesma maneira que devemos atacar o mal pela raiz com remédios adequados, assim devemos o quanto antes assimilar os estudos filosóficos para a nossa vida”. 20 Viver segundo regras de conduta ética, que nos colocarão ao abrigo da ignorância. Afirma na sátira III: “Quando criança, recordo, ficava a fazer exercícios a partir dos exemplos de Catão, e principalmente pelo seu suicídio”.21 A obra persiana é considerada tanto filosófica quanto didática, bastante convencional se consideramos que o período não cansou de detectar e constatar os excessos cometidos por Nero durante boa parte de seu principado. É imperioso constatar que com Lucano e Sêneca, principalmente, a filosofia estoica foi uma das armas de oposição aos príncipes que se utilizavam de atitudes consideradas despóticas. A presença de Pérsio aqui se deve ao fato de ser um autor que engrossará, com o passar do tempo, o grupo de estoicos que além de professar um sistema filosófico, transformar-se-á em uma espécie de bandeira de combate. Sêneca – 01 – 65 d.C. Sêneca (Lucius Anneus Seneca) natural de Córdoba, assim como seu sobrinho Lucano, nasceu por volta do ano 1 d.C. e sua morte se deu em 65 d.C. quando cometeu suicídio por ordens do imperador Nero. Escreveu muito e sobre muitos assuntos. Grande parte do conjunto de suas obras pode ser vista com uma função instrumental de educar a todos, elencando direitos e deveres, ou seja, o que era recomendável e o que não era recomendável fazer para governar e para viver em sociedade. De sua biografia e trajetória elencamos quatro momentos que consideramos relevantes: a primeira fase é da mocidade do autor, seus 18 19 20 21 PERSE. Satires. Texte établi et traduit par A. Cartanet. Paris: Les Belles Lettres, 1929, p. 21. PERSE, Op. Cit., p 32. PERSE, op. Cit. p. 33. Era prática comum das crianças e jovens fazer exercícios de eloquência. Os pais constantemente assistiam a esses exercícios, inclusive em diversos momentos convidavam os amigos para assistir. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 20 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 primeiros anos em Roma e sua rápida viagem ao Egito para tratar um problema de saúde; a segunda fase significativa foi a do seu exílio na Córsega por ordens do imperador Cláudio e que marcou profundamente seus escritos; a terceira, o período em que atuou como preceptor e conselheiro de Nero, quando escreveu textos importantes; a quarta e última fase, a da sua velhice, já afastado do poder, momento em que aparece um dos seus escritos mais significativos: Ad Lucilium epistulae morales.22 A defesa de uma vida dedicada aos estudos e presente nos textos redigidos na velhice explica sua posição e suas escolhas. Apesar de seu reconhecimento, Sêneca colheu muitas frustrações ao longo de sua trajetória política e pessoal. Foi exilado no ápice da sua vida e quando despontava como político e escritor em Roma. Tomou praticamente as rédeas do poder e viu suas pretensões de um governo de feição estoica desandar ao longo da administração de Nero. As referências a figura de Catão, o jovem no conjunto das obras senequianas são uma constante. É o autor mais citado no De Providentia, no De Constantia Sapientis, na Ad Marciam De consolatione e no De tranquilitate animi. Neste, os exemplos de vários nomes que são um exemplo a ser seguido: “Sócrates, Pompeu, Cícero e Catão... todos esses encontram a custo de um lapso insignificante de tempo, o modo pelo qual se fizessem eternos, e morrendo, alcançaram a imortalidade”23. No De vita beata Catão, o jovem, surge como um exemplo de homem de discernimento e a personificação do sábio. Nesse caso, vale a pena acentuarmos a preocupação senequiana da relação política entre a aristocracia senatorial e o princeps, bem como a função daqueles aristocratas como homens sábios atuantes na vida pública romana. O maior número de referências a Catão, o jovem – 45 no total – aparecem na última obra do filósofo cordobês, as Epístolas Morais já citadas neste texto. Dessas referências destacamos aquela na qual exaltou-se a dignidade com que Catão, o jovem, enfrentou a “bela morte” que transformou-o em um autêntico herói.24 Na epístola 24 Sêneca afirma: “Desembainhando a espada exclamou: Não combati até hoje pela minha própria liberdade, mas pela da pátria; todo o meu esforço tendeu, não a viver livre, mas a viver entre homens 22 23 24 SENECA, Lucius Anneus. Ad Lucilium epistulae morales. Transl. Richard Gummere. London: Harvard University Press, 1989. SENECA. Tratados Morales. Introducción, versión española y notas por José M. Gallegos Rocafull. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1944, p.78. Na epístola 13, a morte de Catão é um exemplo de glória. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 21 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 livres. E agora que já não há esperança para o gênero humano, Catão irá acolher-se a um lugar seguro”.25 Na epístola 95, a carta mais longa do conjunto das Epístolas, na morte de Catão, é a própria liberdade que exalou o seu último suspiro. Diz-nos Sêneca: Será útil não nos limitarmos a ver quais os traços, as características gerais que habitualmente identificam os homens de bem, mas antes expor em pormenor como eles de fato agiram: referir, por exemplo, a ferida mortal que Catão, como decisivo ato de coragem, infligiu a si mesmo, ferida por onde a liberdade republicana exalou o último suspiro26. Afirma o filósofo cordobês em trecho da epístola 104: toda a existência de Catão decorreu ou no meio da agitação social armada ou quando já estava em gestação a guerra civil declarada. Também de Catão se pode dizer, como de Sócrates, que se eximiu pela morte à servidão. (...) enquanto uns tomavam o partido de César e outros o de Pompeu, Catão foi o único que abraço o partido da república. 27 O modelo de sociedade que Sêneca almejava apresentar deveria ser buscado na história, romana prioritariamente, e no exemplo de homens considerados ilustres e, portanto, modelares. Podemos dizer que Sêneca sempre permaneceu coerente, ao longo dos seus escritos e da sua vida, aos valores políticos por ele defendidos e que reforçavam a defesa da liberdade pública como um ideal a ser mantido no principado. Possibilidades de Leituras e Considerações Finais A partir de agora, apontaremos algumas possibilidades de interpretação dos propósitos dos autores aqui analisados fazendo referência aos Catões. Uma primeira constatação: convém lembrarmos as reflexões feitas por Norberto Luiz Guarinello sobre aquilo que a historiografia chamou de círculo dos estoicos na época do principado romano. 28 25 26 27 28 SENECA, Op, cit., p. 67. Na epistola 67, outro exemplo de “bela morte“, quando Sêneca elenca o nome de importantes homens que morreram e se tornaram exemplos: Catão, Rutílio, Sócrates e Régulo. Nas epístolas 70, 82 e 104, Catão é o exemplo de homem que enfrenta a morte sem covardia, com virtude. SENECA, Op. Cit., p. 345. Nesta mesma carta ainda há referências a Catão, o antigo, com seus feitos de cunho tanto público quanto privado. Na carta 97, Sêneca afirma que todas as épocas produzem homens maus, mas nem todas as épocas podem produzir seus Catões. Na carta 104, os dois Catões podem te ensinar a morrer quando a necessidade se impuser. SENECA. Op. Cit., p. 389. Sêneca, na mesma carta cita Catão também para justificar um tempo em que Roma era mais digna – olhar voltado para a República. Nos diz: “gloriosos tempos em que um homem se contentava com apenas um cavalo”. Para tanto ver: GUARINELLO, Norberto Luiz. Nero, o estoicismo e a historiografia romana. In: Boletim do CPA. Campinas, n. 1, 1996. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 22 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Trata-se de autores que procuraram construir uma estreita relação entre os preceitos da filosofia estoica e a administração do principado romano. A partir de uma primeira aproximação com os textos, percebemos que os autores procuravam evidenciar mais o caráter pessoal e individual da ética estoica. Como diz Guarinello, tratava-se de uma ética centrada no “autocontrole de si” e para a qual a questão da liberdade se resolve individualmente, pelo caminho do suicídio, inclusive, se as circunstâncias se fizessem necessárias. Defende-se um rígido controle das paixões, aquilo que os gregos chamavam de sofrosine, ao mesmo tempo em que havia uma confiança absoluta na providência divina e no reconhecimento inelutável do destino. No entanto, como afirma Guarinello: Essa imagem, verdadeira em linhas gerais, não deve, contudo, fazer-nos esquecer que o estoicismo romano, possuía também uma forte dimensão política, estreitamente vinculada à sua adoção por parte significativa da elite política romana desde o final da República. No seio desta elite, o estoicismo atuava como fonte de uma ética ao mesmo tempo pessoal e coletiva, que dava sentido à sua participação na vida pública e permitia unificar, no universo de suas relações, sua vida privada com sua existência pública. 29 Os estoicos defendiam o ideal de um principado cuidadoso das liberdades públicas. No final da vida principalmente, Lucano, Sêneca e Pérsio, formavam o que podemos definir como uma espécie de estoicismo anti-neroniano. Segundo Paratore: “a própria poesia volta a ser instrumento de luta e, muitas vezes, os seus criadores mergulham na ação e desejam ardentemente a bela morte, no clima inflamado pelas suas paixões e pelo gosto teatral e barroco da época”.30. Os nossos autores almejavam, e nos propósitos deste texto, a partir das atitudes e do exemplo dos dois Catões, dirigirem-se à consciência moral de cada habitante do império, pois reconheciam a existência das redes clientelares e suas vicissitudes e estavam cientes de algumas desigualdades presentes na Roma de seu tempo. A constatação de que a condição moral das pessoas se mostrava quase sempre extremamente complexa e bastante ambígua, essa filosofia, que poderia ser considerada como “guardiã” de valores ideais e nobres, carregava a possibilidade de ser um depositário de virtudes para se aplicar, quando houvesse necessidade, ao universo político romano. A filosofia do estoicismo defendia claramente a participação dos seus iniciados na vida pública e, portanto, política da cidade. 29 30 GUARINELLO, op. Cit., p. 54. PARATORE, Ettore. História da Literatura Latina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 547. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 23 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Essa participação ativa e positiva, contudo, aparece ocultada pelas fortes distorções operadas, a partir da morte de Nero, na memória sobre os eventos de seu breve governo. Para os historiadores posteriores, Nero passou a representar o exemplo, por excelência, do tirano, do mau príncipe, lascivo, cruel, ambicioso, escravo do medo e da paixão. A memória sobre seu reinado e mesmo nosso acesso à realidade, eventos e expectativas deste período são determinados, em larga medida, pelo relato contido nos textos produzidos a posteriori. Houve, sim, um projeto que envolveu um grupo de estoicos, em particular o ativo grupo de senadores liderados por Thrasea Paetus.31 Uma segunda possibilidade de leitura que apresentamos está relacionada a utilização de Catão para um grande objetivo de uma literatura voltada as questões da educação romana preocupada pela construção do modelo almejado de homem romano ideal, um Catão exemplificado nas suas ações públicas e um Catão como exemplo a ser seguido nas escolhas da vida privada. Esta função pedagógica também está grandemente atrelada a um recurso retórico e estilístico presente na literatura clássica através dos exempla e da Historia Magistra Vitae. Ao longo dos textos, vemos desfilar inúmeros personagens, uns mais, outros menos conhecidos, mas a quase totalidade deles cumpre um papel, o de servir como exemplo ou como um contraexemplo para aquilo que os autores desejam demonstrar aos seus potenciais leitores. Tais exemplos fixam-se na memória por meio da repetição de eventos ou pela (re) memoração destes eventos e das personagens (novamente lembramo-nos do exemplo de Catão) trazidas à memória da sociedade do período em que os referidos pensadores se encontravam inseridos. Há, nas reflexões dos autores, inúmeros exemplos de ações, de acontecimentos e de personagens de épocas anteriores que podem e, para o autor, devem ser aprendidos e praticados (ou rejeitados) na vida pública e privada. Objetivava mostrar às pessoas que homens considerados especiais poderiam ter condições de instruir outros homens e outras épocas através do exemplo dos seus pensamentos e das suas ações. 32 O principado é considerado como uma resposta para os problemas decorrentes das crises e guerras civis do final do período republicano.33 Apesar de todo o esforço de Otávio Augusto para garantir uma legitimidade jurídica e administrativa, havia campos e espaços em que esta legitimidade não alcançava o efeito desejado. São aspectos que passavam pela esfera da ética e da moral e neste sentido, a intervenção destes autores na “alma” e no “coração” dos 31 32 33 Ver GUARINELLO, op. Cit. Sêneca na epístola 25 afirma: “quando já tiveres progredido a ponto de um grande respeito por ti mesmo, só então terás condições de dispensar um pedagogo. Até que isso aconteça, refugia-te na proteção de umas dessas autoridades: Catão, Cipião, Lélio”. BRAVO, G. Poder político y desarollo social en la Roma Antigua. Madri: Taurus, 1980. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 24 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 homens, mostrava-se bastante satisfatório. Segundo Pierre Grimal, “se for possível infletir o curso das coisas, isso pode ser feito tão bem ou melhor, agindo-se sobre os espíritos, fazendoos sentir a verdade, do que se coagindo o corpo pela violência e pela guerra, como, até então, a política se limitara a fazer”.34 A relação entre princeps e súditos era um dos cimentos do império. Perseguir e atingir o ideal ciceroniano de “afeto dos súditos” poderia ser alcançado com o exemplo catoniano. Convém lembrar que no contexto greco-romano, o termo “político” tem um significado mais amplo, pois significava desempenhar, além das questões políticas, todas as obrigações de um cidadão como casar e ter filhos, participar da vida pública, ser virtuoso e respeitador do mos maiorum. Os exemplos fornecidos pelos autores do que era correto e do errado, daquilo que denota uma vida virtuosa e de uma vida entregue aos vícios, demonstram suas inclinações para outra época. Afirma Sêneca na epístola 95: “Naquela época (antiga), os homens ainda não necessitavam de remédios fortes. A perversidade não havia atingido ainda a intensidade provada nos dias de hoje. Vícios simples necessitavam de remédios simples”. 35 Em Lucano, detectamos algo semelhante no Livro Primeiro da Pharsalia: De fato, conquistado o mundo, quando a Sorte trouxe riquezas mil, os usos bons cederam aos usos prósperos, e os bens ganhos do inimigo os luxos fomentaram, em ouro e edifícios não existia regra, e as mesas dos antigos a gula desdenhou; homens feitos trajaram vestes que a custo suas noivas usariam; aos heróis a pobreza fecunda se vai, e em todo orbe se busca tudo o que nações corrompe.36 Os autores reafirmam uma época de excessos, de mal-estar e, a partir dos textos, tentaram impedir o desmoronamento moral da sociedade romana. Para entender melhor esse aspecto, é preciso ter em mente que os primeiros séculos de desenvolvimento da civilização romana se mostravam de forma mais ou menos independente, pois inicialmente a influência grega fora pouco sentida. Em comparação com os gregos, voltados a uma educação citadina e aristocrática, percebe-se no mundo romano uma educação mais rudimentar, voltada ao âmbito rural. Jean-Noel Robert nos diz: “Para gerações de romano, Catão encarnou o homem típico incorruptível e sem fraquezas, originário do campo”37. Ou ainda: “Em sua origem, o 34 35 36 37 GRIMAL, Pierre. Virgílio, ou o segundo nascimento de Roma. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 32. SENECA, op. Cit, p. 389. LUCANO, M. Anneu. Farsalia. Introducción, Traducción y notas de Antonio Helgado Redondo. Madrid: Editorial Gredos, 1984, p. 22. NORBERT, Jean-Noel. Os Prazeres em Roma. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 18. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 25 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 romano é um soldado e um camponês. Trabalho obstinado, frugalidade e austeridade constituíam as três principais regras de vida desses homens”.38 Tal menção não é meramente gratuita, pois a terra adquirirá um lugar basilar na exploração econômica de Roma e da Itália como um todo. As consequências dessa escolha irão intervir em diversos aspectos da sua história, pois as questões políticas, já nos primórdios da República, são questões vinculadas à terra. Para Maria Helena da Rocha Pereira, “[...] estas tradições rústicas que, como notou Claude Nicolet, tão bem se coadunavam com a doutrina estoica, vão perseverar e, sobretudo ganhar novo alento na época de Augusto”.39 Muitos autores greco-romanos, ao se debruçarem sobre a política e o funcionamento do principado romano, construíram um discurso decadentista, denunciando excessos cometidos por imperadores e concidadãos. Defendemos aqui uma perspectiva de renovação. Elemento que ocorria constantemente no pensamento antigo ao se destacar um determinado período tendo outro como exemplo, com a retomada de um passado tornado exemplar e reabilitador de um presente considerado decadente e inferior. A Historia Magistra Vitae nos ensina que os exemplos bons trazidos a tona devem ser virtuosos, de antepassados ilustres personificados em grandes homens, como Catão, por exemplo. Além disso os autores, ao citarem grandes homens, afirmavam a autoridade de suas obras, pois se apresentavam como conhecedores de um passado importante e modelar. Imitar um modelo precedente era a oportunidade de dialogar com seus pares e provar vinculações e interesses. Era ainda valorizar a memória de um grupo ou ideia considerada influente e importante. Horácio, ao se dirigir a Augusto na Epistola I (versos 125 – 131) afirma: ainda que sem vigor e sem coragem no trato com as armas, o poeta é útil à cidade, se tu concorda que as pequenas coisas podem ajudar as grandes. O poeta modela a boca tenra e gaguejante das crianças, ele afasta desde então suas orelhas de propósitos desonestos; mais tarde ele forma também o seu coração por preceitos amigos, o curando da indocilidade, da inveja e da cólera. Ele narra as belas canções, supre de exemplos ilustres as gerações que chegam, consola a pobreza do pesar 40 Por fim, constatamos que na antiguidade greco-romano havia homens que encarnavam o modelo de homens sábios que colocavam seus conhecimentos a serviço da res publica. No contexto do principado romano, mais especificamente durante o principado neroniano, o 38 39 40 Idem, p. 23. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. Roma. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 457. SILVA, Gilvan V. da. Política, Ideologia e Arte Poética em Roma: Horácio e a criação do Principado. IN: Politéia. Hist. e Soc. Vitória da Conquista, v. 1, n. 1, 2001. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 26 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 estoicismo apareceu como uma possibilidade pessoal e coletiva. Objetivava estreitar as relações da esfera privada e da espera pública, como vimos. Um pequeno, mas significativo grupo de pensadores ligados aos ideais republicanos, tendo como referência um homem, ou melhor, dois homens que foram considerados como os verdadeiros representantes dos valores republicanos, personificação do homem sábio e verdadeiro político: o nome de Catão. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 27 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Um exemplo de gens na Hispania visigoda: Fructuoso de Braga e a sua origo preclara (século VII) An example of gens in the Visigoth Hispania: Fructuoso of Braga and his origo preclara (seventh century) Renan Frighetto* Universidade Federal do Paraná NEMED - Núcleo de Estudos Mediterrânicos Resumo Abstract A discussão sobre o conceito de identidade vem ganhando amplo espaço nos debates acadêmicos e científicos. No que se refere às Antiguidades – clássica, helenística e tardia – o tema da identidade vinculava-se diretamente com a noção de comunidade cívica que projetava outros importantes conceitos como o de patria e o de natio que nos demonstram a necessidade de pluralização dos mesmos. Apesar de relevantes acreditamos que o conceito de gens, vinculado à ideia de ancestralidade e de tradição, ganhou uma grande projeção na Antiguidade Tardia, em particular no reino hispanovisigodo de Toledo, destacando a importância dos grupos aristocráticos e nobiliárquicos e estabelecendo, desde uma perspectiva sociocultural, a constituição de uma identidade nobiliárquica que os unia. Dos vários exemplos que dispomos, destacamos o de Fructuoso de Braga, verdadeiro modelo de integrante de uma das mais ínclitas gentes do reino hispanovisigodo no século VII. A discussion of the concept of identity has gained ample space in the academic and scientific debates. Concerning the Antiquities - Classical, Hellenistic and Late Antiquity - the theme of identity is directly linked with the notion of civic community that designs other important concepts such as homeland and the natio we demonstrate the need for pluralization of them. Although we believe that the relevant concept of gens, linked to the idea of ancestry and tradition, gained a great projection in Late Antiquity, especially in the Hispanic Visigoth kingdom of Toledo, highlighting the importance of aristocratic and nobility groups and setting from a sociocultural perspective the formation of an nobility identity that united them. Of several examples that we have, we highlight the Fructuoso of Braga, true model of an important member of the gentes of the Hispanic Visigoth kingdom of Toledo in the seventh century. Palavras-chave: Antiguidade Tardia; Reino hispanovisigodo de Toledo; gens; gentes; Fructuoso de Braga. Keywords: Late Antiquity; Hispanic Visigoth kingdom of Toledo; gens; gentes; Fructuoso of Braga. ● Enviado em: 24/02/2014 ● Aprovado em: 30/11/2014 * Doutor em História Antiga pela Universidad de Salamanca; Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná; Bolsista ID do CNPq; pesquisador do Núcleo de Estudos Mediterrânicos da Universidade Federal do Paraná; e-mail: [email protected] Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 28 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Stirpis origo tue licet nobilissimo fulta (Ver.Fruc.,IV,2,3). Conceitos singulares, conceitos plurais: acerca de Identidade/Identidades e de Pátria/Pátrias. A frase apresentada como epígrafe do presente artigo revela plenamente o objeto que pretendemos abordar: nela encontramos a afirmação, feita pelo anônimo autor dos Versiculi Fructuosi, de que uma nobilíssima estirpe apoiava-se no direito da sua origem, estando, dessa forma, amparada pela importância adquirida, ao longo do tempo, por um grupo de indivíduos que legou a alguém a noção de pertencimento a um nomen1, uma estirpe2, uma linhagem 3. Segundo a tradição helenística romana o nomen, entendido como uma designação dada a uma comunidade formada à volta de um coletivo humano específico, era, de acordo com a interpretação de Patrick Le Roux, o termo que melhor aproximava-se da noção de identidade4. Porém acreditamos que antes da adoção de uma concepção identitária cívica e coletiva, elemento básico para compreendermos a constituição de uma comunidade cívica pautada na instituição da polis – ciuitas5, devemos analisar quais seriam as origens dos grupos familiares aristocráticos a ela vinculados que tinham como representantes máximos os patres e optimatibus6 que se apoiavam em tradições religiosas e nos costumes imputados aos 1 2 3 4 5 6 Isid.,De Diff.,355:...Nomen est uocabulum propriae appellationis (...). Proinde nomen a proprietate uenit... Isid.,Etym.,IX,5,13: Stirpis ex longa generis significatione vocatur...; Form.Visig.,XX,1: Insigni merito et Getice de stirpe senatus... Cic.,De Rep.,II,51:...quod quoniam nomen minus est adhuc tritum sermone nostro, saepiusque genus eius hominis erit in reliqua nobis oratione...; Isid.,Etym.,I,7,2: Nomen vocatum,quia notat genus...; IX,4,4: Genus aut a gignendo et progenerando dictum, aut a definitione certorum prognatorum (...) quae propriis cognationibus terminatae gentes appellantur. LE ROUX, P., “Identités civiques, identités provinciales dans l’Empire Romain”, in : Roma Generadora de Identidades. La experiencia hispana (Coord. Antonio Caballos Rufino y Sabine Lefebvre). Madrid: Casa de Velázquez/Universidad de Sevilla, 2011, p.9, “…C’est sans doute ce mot de nomen qui s’approcherait le mieux de la notion d’identité. Le fait de pouvoir être nommé ou de nommer incluait l’individu ou la collectivité dans une séquence ordonné à caractère politique et social...”. De acordo com HORSTER, M., “Priestly hierarchies in cities of the Western Roman Empire?”, in: Del Municipio a la Corte. La renovación de las elites romanas (Ed .Antonio F. Caballos Rufino). Sevilla: Ediciones Universidad de Sevilla, 2012, p.290, “…A city’s civic identity, that the collective identity of its citizen body, can be characterized, from the classical period right through to the imperial period, under three aspects: firstly, the political aspect, that is, the citizenry as a political unit, with its institutions and rituals; secondly, the religious aspect, i.e. the citizens as a community of shared worship and cult; and thirdly, the communicative aspect, that is, their shared history and narratives. This third aspect is manifested in stories, images and texts, in terminology and names, monuments and public spaces, in music and cuisine, but above all in rituals and practices…”; para Isid.,Etym.,XV,2,1: Civitas est hominum multitudo societatis vincula adunata, dicta a civibus, id est ab ipsis incolis urbis [pro eo quod plurimorum consciscat et contineat vitas]. Nam urbs ipsa moenia sunt, civitas autem non saxa, sed habitatores vocantur. Cic.,De Leg.,III,10: Omnes magistratus auspicium iudiciumque habento exque is senatus esto. Eius decreta rata sunto. Ast potestas par maiorue prohibessit (...). Creatio magistratuum, iudicia populi, iussa uetita cum suffragiis consciscentur, ea optimatibus nota, plebi libera sunto (…). Cum populo patribusque agendi ius esto consuli, praetori, magistro populi equitumque, eique quem patres produnt consulum rogandorum ergo... Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 29 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 ancestrais7 que serviam como elementos constituidores e definidores ideológicos da noção de gens8, fundamento do que denominamos como a identidade nobiliárquica9. Ou seja, parece-nos certo pluralizar o conceito na medida em que referimo-nos a diversas formas de identidades, embora, em termos discursivos, deparemo-nos com a singularização do mesmo tendo como objetivo a proposta de unidade sociopolítica voltada ao fortalecimento institucional, seja do imperium10, seja do regnum11. Consequentemente, devemos nos questionar sobre quais seriam os elementos constituidores de uma determinada identidade no contexto que queremos analisar, especialmente se aquela revelasse a existência de importantes grupos sociopolíticos, dotados de prestígio e de poder, tanto nos ambientes urbanos como nos espaços rurais das Antiguidades clássica, helenística e tardia. Indubitavelmente que nosso primeiro olhar, em virtude da abordagem mais ampla que podemos oferecer desde o ponto de vista da pesquisa histórica, deve ser projetado ao ambiente institucional da polis – ciuitas forjadora, na perspectiva greco-romana, das 7 8 9 10 11 Interessante a análise proposta por PERKINS, J., Roman Imperial Identities in the Early Christian era. London – New York: Routledge, 2009, p.18, “...Cultural identities are produced through difference (…). When amidst this array of choices, a group selects particular differences and stipulates that these are fundamental for establishing identity, this selection must be recognized as part of the group’s will to power, its strategy for acquiring and expanding its influence. In the early imperial period, a new cultural identity was under construction emphasizing high status as a crucial determinant; it was to be a transempire community of the elite…”; de acordo com Isid.,Etym.,XV,2,2: Tres autem sunt societates: familiarum, urbium, gentium. Cic.,De Leg.,II,3 : Marcus: Quia si verum dicimus, haec est mea et huius fratris mei germana patria. Hic enim orti stirpe antiquissima sumus, hic sacra, hic genus, hic maiorum multa vestigia. Quid plura? Hanc vides villam, ut nunc quidem est, lautius aedificatam patris nostri studio, qui cum esset infirma valetudine, hic fere aetatem egit in litteris...; II,30: Quod sequitur vero, non solum ad religionem pertinet sed etiam ad civitatis statum, ut sine iis, qui sacris publice praesint, religioni privatae satis facere non possint. Continet enim rem publicam, consilio et auctoritate optimatium semper populum indigere, discriptioque sacerdotum nullum iustae religionis genus praetermittit...; II,55:...Iam tanta religio est sepulcrorum, ut extra sacra et gentem inferri fas negent esse, idque apud maiores nostros A.Torquatus in gente Popillia iudicavit(...). Totaque huius iuris conpositio pontificalis magnam religionem caerimoniamque declarat, neque necesse est edisseri a nobis, quae finis funestae familiae, quod genus sacrificii Lari vervecibus fiat... Sobre este conceito, vide FRIGHETTO, R., “Considerações sobre o conceito de gens e a sua relação com a idéia de identidade nobiliárquica no pensamento de Isidoro de Sevilha (século VII)”, in: Imago Temporis. Medium Aevum, 6. Lerida: Universidad de Lerida, 2013, p.420-39. Para tanto, vide MATHISEN, R.W., “Peregrini, Barbari and Cives Romani: concepts of citizenship and the legal identity of barbarians in the Late Roman Empire”, in: The American Historical Review 111 – 4. Illinois: The American Historical Association, 2006, p.1011-40; outro interessante estudo é o de BANCALARI MOLINA, A., Orbe Romano e Imperio Global. La Romanización desde Augusto a Caracalla. Santiago de Chile: Universidad de Santiago, 2007, pp.122 e ss. De acordo com VELÁZQUEZ, I., “Pro Patriae Gentisqve Gothorvm statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633)”, in: Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early Medieval Peoples and kingdoms in the transformation of the Roman World (Org. H.-W.Goetz, J.Jarnut & W.Pohl). Leiden – Boston: Brill, 2003, p.174, “…But the fact that the expression used is Hispania (in the singular or the plural) at the 3rd Council of Toledo does not mean that gens Gothorum refers to all its inhabitants, that is, to the Hispani, as well as the Gothi. It also seems clear that it is the gens Gothorum, or at least their nobility, who have become the ruling class in Hispania. Although the constituent elements of power are not yet clearly defined…”. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 30 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 identidades cívicas e locais12 que revelariam a concepção de um orgulho cívico visto como autêntico fenômeno identitário13. De fato, utilizando como metáfora a própria ciuitas de Roma, Cicero revelou-nos tanto na sua Republica como em outros tratados, como no De Legibus, que a comunidade cívica romana representava o sistema político perfeito, ideal 14, sendo, por esse motivo, merecedora de ter alcançado a hegemonia em todo o mundo mediterrânico15. Tratava-se de um pensamento político que se manteve ideologicamente forte por longo tempo, estando ainda presente naquele mundo greco-romano marcado pelas transformações que caracterizaram a Antiguidade Tardia16. De fato, observamos que nos primórdios do século VIII, no momento em que o regnum gothorum desmoronava política e institucionalmente diante da onda berbere e islâmica e frente aos seus múltiplos problemas de ordem política interna17, a sobrevivência daquele orgulho cívico de origem romana que exaltava a existência de um senatus na mui patrícia ciuitas de Córdoba, derrotada e submetida aos novos senhores muçulmanos18 permanecia vívido no discurso do anônimo autor moçárabe da Crônica de 754. 12 13 14 15 16 17 18 Segundo PINA POLO, F., “Etnia, ciudad y provincia en la Hispania republicana”, in: Roma Generadora de Identidades…, p.51, “…Roma fomentó la ciudad como elemento autoidentificatorio de los indígenas como individuos. La ciudad constituía evidentemente un elemento consustancial a la civilización romana, y como tal Roma se esforzó tanto en fundar ciudades a través de sus representantes, de estatuto jurídico privilegiado o no, como en incentivar la creación de ciudades indígenas con organización y urbanismo romanos por parte de los mismos indígenas. Al mismo tiempo, allí donde fue posible, la ciudad fue promocionada por Romo como referencia en el mundo indígena…”. Cic.,De Rep.,VI,12 :...circuitu naturali summam tibi fatalem confecerint, in te unum atque in tuum nomen se tota convertet civitas; te senatus, te omnes boni, te socii, te Latini intuebuntur; tu eris unus, in quo nitatur civitatis salus...; Sid.,Ep.,I,5,2(ad Herenio): Egresso mihi Rhodanusiae nostrae moenibus publicus cursus usui fuit utpote sacris apicibus accito, et quidem domicilia sodalium propinquorumque… Cic.,De Leg.,III,28:... Nam ita se res habet, ut si senatus dominus sit publici consilii, quodque is creverit defendant omnes, et si ordines reliqui principis ordinis consilio rem publicam gubernari velint, possit ex temperatione iuris, cum potestas in populo, auctoritas in senatu sit, teneri ille moderatus et concors civitatis status, praesertim si proximae legi parebitur... ; Cic.,De Re Pub.,II,56 : Genuit igitur hoc in statu senatus rem publicam temporibus illis, ut in populo libero pauca per populum, pleraque senatus auctoritate et instituto ac more gererentur, atque uti consules potestatem haberent tempore dumtaxat annuam, genere ipso ac iure regiam, quodque erat ad obtinendam potentiam nobilium vel maximum, vehementer id retinebatur, populi comitia ne essent rata nisi ea patrum adprobavisset auctoritas... Para tanto, cf. o clássico estudo de MOMIGLIANO, A., “Políbio e Possidônio”, in: Os limites da helenização. A interação cultural das civilizações grega, romana, céltica, judaica e persa. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, pp.32-4; ver também GASCÓ LA CALLE, F., “La teoría de los cuatro imperios. Reiteración y adaptación ideológica. I Roma y griegos”, in: Habis 12. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1981, p.179-96; e GABBA, E., “Aspectos culturales del imperialismo romano”, in: Sociedad y política en la Roma Republicana (siglos III-I a.C.). Pisa: Pacini Editore, 2000, p.209-34. Sobre este período histórico, FRIGHETTO, R., A Antiguidade Tardia. Roma e as monarquias romanobárbaras numa época de transformações (séculos II – VIII). Curitiba: Juruá Editora, 2012, pp.19-33; idéia que pode ser observada, por exemplo, em Isid.,H.G., De Laude Spaniae.:...Iure itaque te iam pridem aurea Roma caput gentium concupiuit et licet te sibimet eadem Romulea uirtus primum uictrix desponderit... Para tanto, vide FRIGHETTO, R., “In eandem infelicem Spaniam, regnum efferum conlocant: las motivaciones de la fragmentación política del reino hispanovisigodo de Toledo (siglo VIII)”, in: Temas Medievales 19. Buenos Aires: Conicet/Saemed, 2012, p.137-64. Chron.Moz.,a.754,52:...Rudericus tumultuose regnum ortante senatu inuadit...; 54:...Adque in eandem infelicem Spaniam Cordoba in sede dudum Patricia, que semper extitit pre ceteras adiacentes ciuitates Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 31 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Porém, além dessa valorização do ambiente da ciuitas helenística e tardia como signo formador de uma identidade coletiva19 é certo, também, verificarmos que em um âmbito mais restrito ao mundo rural, por exemplo, no espaço das uillas20, encontraríamos igualmente aquela pátria natural, revelada pelo pensamento ciceroniano, e entendida como uma segunda identidade, particular, mais antiga e apoiada em vínculos ancestrais e aristocráticos21. Ou seja, seguindo a lógica discursiva característica das fontes helenísticas e tardo-antigas, teríamos duas possíveis identidades as quais o indivíduo poderia filiar-se, uma relacionada com aquela pátria cívica apresentada nos escritos do rhetor romano tardio Decimo Magno Ausonio22 e que na perspectiva do bispo hispanovisigodo Isidoro de Sevilha poderia ser denominada como a pátria comum23, outra vinculada à noção do que definiremos como a pátria familiar24 que, em nossa opinião, estava totalmente associada à idéia de pertencimento a pátria natural. Segundo o pensamento isidoriano, a noção de pertença a uma pátria comum vinculavase diretamente com o local de nascimento de um indivíduo ou até mesmo de um grupo revelando, dessa forma, a sua origem, a sua natio25. Essa argumentação foi utilizada nos escritos isidorianos para explicar a associação entre os godos e a Spania26 formulada a partir da hegemonia político-militar iniciada sobre a antiga Hispania romana no reinado de Leovigildo (569 – 586)27 e que a transformou na pátria comum dos godos28. Por esse motivo, 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 opulentissima...; ver também GARCIA MORENO, L. A., “Nobleza goda bajo el Islam: el ocaso de una elite”, in: Del Municipio a la Corte. La renovación de las elites romanas…, p.336 e ss. Isid.,Etym.,XV,2,1: Civitas est hominum multitudo societatis vinculo adunata, dicta a civibus...; 8: Civitas proprie dicitur, quam non advenae, sed eodem innati solo condiderunt... Isid.,Etym.,XV,13,2: Villa a vallo, id est aggere terrae, nuncupata, quod pro limite constitui solet. Cic.,De Leg.,II,5:...Ego mehercule et illi et omnibus municipibus duas esse censeo patrias, unam naturae, alteram civitatis... Aus.,Mos.:...Ausonius nomen Latium, patriaque domoque Gallorum extremos inter celsamque Pyrenen, Temperat ingenuos qua laeta Aquitanica mores...; Aus.,Ord.Urb.Nob.,XX:...Hic labor extremus celebres collegerit urbes. Unque caput numeri Roma ínclita, sic capite isto Burdigala ancipiti confirmet vertice sedem. Haec patria est, patrias sed Roma supervenit omnes... Isid.,Etym.,XIV,5,19:...Patria autem vocata quod communis sit omnium, qui in ea nati sunt. Isid.,Etym.,IX,4,3: Domus unius familiae habitaculum est, sicut urbs unius populi, sicut orbis domicilium totius generis humani. Est autem domus genus, familia, sive coniunctio viri et uxoris... Isid.,Etym.,IX,2,1:...sicut natio a nascendo; Isid.,De Uir.Ill.,31: Iohannes, Gerundensis ecclesiae episcopus (...) prouinciae Lusitaniae Scallabi natus... Isid.,H.G.,De Laude Spaniae: Omnium terrarum, quaeque sunt ab occiduo usque ad Indos, pulcherrima es, o sacra semperque felix principum gentiumque mater Spania: iure tu nunc omnium regnina prouinciarum (...) tu decus atque ornamentum orbis, inlustrior portio terrae, in qua gaudet multum ac largiter floret Geticae gentis gloriosa fecunditas (...) denuo tamen Gothorum florentissima gens post multiplices in orbe uictorias certatim rapit et amauit, fruiturque hactenus inter regias infulas et opes largas imperii felicitate securas. Ioan.Bicl.,Chron.,a.569,4:...Liuuigildus germanus Liuuani regis superstite fratre, in regnum citerioris Hispaniae constituitur...; Isid.,HG,48:...Liuua Narbonae Gothis praefitur regnans annis tribus. Qui secundo anno postquam adeptus est principatum, Leuuigildum fratrem non solum successorem, sed et participem regni sibi constituit Spaniaeque adminstrationi praefecit, ipse Galliae regno contentus… Isid.,HG,49:...Leuuigildus adepto Spaniae et Galliae principatu ampliare regnum bello et augere opes statuit (...) Spania magna ex parte potitus, nam antea gens Gothorum angustis finibus artabatur...; Conc. IV Tol.,a.633,c.75:...Quiquumque igitur a nobis vel totius Spaniae populis qualibet coniuratione vel studio Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 32 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 na História dos Godos escrita por Isidoro de Sevilha, a Hispania/Spania surge como patria e natio gothorum, pois de acordo com a lógica isidoriana as terras hispanas foram o local de nascimento de uma nova natio gothorum, surgida quase 70 anos depois da perda da Aquitania como solar da antiga natio gothorum 29. Contudo, apesar do tom unitário e aglutinador apresentado pelo hispalense na História dos Godos no que se refere à elaboração da idéia de uma natio gothorum uníssona e coesa30, encontramos reminiscências do pensamento político romano helenístico e tardio que assentava a natio individual em pátrias provinciais e citadinas31. O próprio Isidoro de Sevilha oferece-nos um exemplo dessa permanência ao informar-nos sobre o local de nascimento do seu irmão mais velho, Leandro, oriundo da província Cartaginense32, revelando-nos assim a idéia de uma natio provincial33. A mesma forma de pensamento é encontrada na autobiografia de Valério do Bierzo quando este indica-nos a província Asturicense como o local da sua natio provincial34. Podemos dizer que em ambos os casos a natio provincial ganhava uma conotação de pátria cívica na medida em que nos dois exemplos legados pelo hispalense e pelo bergidense a denominação provincial estava diretamente relacionada ao âmbito administrativo das ciuitates de Cartago Noua e Asturica Augusta35. 29 30 31 32 33 34 35 sacramentum fidei suae, quod patriae gentisque Gothorum statu vel observatione regiae salutis pollicitus est...; Conc.VII Tol.,a.646,c.1:...sive etiam quod gentem Gothorum vel patriam aut regem...; Conc.VIII Tol,a.653,Tomus:...in necem regiam excidiumque Gothorum gentis ac patriae detecta fuisset...; c.2:...Ceterum quaequumque iuramenta pro regiae potestatis salute vel contutatione gentis et patriae vel hactenus sunt exacta vel deinceps extiterint exigenda...; Conc.XVI Tol.,a.693,Tomus:...quicumque amodo ex palatinis cuiuslibet sit ordinis vel honoris persona in necem regiam vel excidium gentis ac patriae Gothorum...; Conc.XVII Tol.,a.694,Tomus:...quia satis longum est ea quae regni nostri utilitatibus seu genti et patriae nostrae necessaria... Isid.,HG,36:...Eurico mortuo Alaricus filius eius apud Tolosensem urbem princeps Gothorum efficitur (...) tandem prouocatus a Francis in regiones Pictauensis urbis proelio initio extinguitur eoque interfecto regnum Tolosanum occupantibus Francis destruitur. Para tanto, vide FRIGHETTO, R., “Identidade(s) e Fronteira(s) na Hispania visigoda, segundo o pensamento de Isidoro de Sevilha (século VII)”, in: Identidades e Fronteiras no Medievo Ibérico (Coord. Fátima Regina Fernandes). Curitiba: Juruá Editora, 2013, pp.105-16. Por exemplo, Plin.,HN,III,18: Citerioris Hispaniae sicut conplurium provinciarum aliquantum vetus formas mutata est, utpote cum Pompeius Magnus tropaeis suis, quae statuebat in Pyrenaeo, DCCCLXVI oppida ab Alpibus ad fines Hispaniae ulterioris in dicionem ab se redacta testatus sit. nunc universa provincia dividitur in conventus VII, Carthaginiensem, Tarraconensem, Caesaraugustanum, Cluniensem, Asturum, Lucensem, Bracarum. accedunt insulae, quarum mentione seposita civitates provincia ipsa praeter contributas aliis CCXCIII continet...; Isid.,De Uir.Ill.,28: Leander (...) Carthaginensis prouincia Hispaniae... Sobre este conceito, vide HAINZMANN, M., “Provinz-Identität und ‘nationale’-Identität”, in: : Roma Generadora de Identidades..., p.321-36. Val.,Ord.Querm.,1: Dum olim ego (...) Asturiensis prouinciae indigena... Para FATÁS CABEZA, G. et alii, Tabula Imperii Romani. Hoja k-30 Madrid. Caesaraugusta – Clunia. Madrid: CSIC, 1993, p.104-5, “...Conventus Asturum (...). División administrativa creada por Augusto en la organización del territorio que sigue a la conquista, con capital en Asturica Augusta. Comprende la totalidad de los pueblos astures (…). Conventus Carthaginensis (…). División administrativa de la provincia Citerior con capital en Cartago Noua…”. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 33 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Mas, para além desta denominação da natio por meio da pátria cívica, podemos encontrar referências vinculadas à ideia de pertencimento a uma pátria natural, onde o local de nascimento/origem do indivíduo aparece indicado de forma mais específica e pontual coligando-o com importantes elementos aristocráticos e ancestrais locais. Este seria o caso descrito na epistola encaminhada por Valério do Bierzo a Donadeo e na qual o bergidense afirma que na sua terra natal foi fundado o cenóbio de Compludo36, relacionando-o diretamente ao grupo aristocrático do fundador daquele cenóbio, Fructuoso de Braga37. Ora, a relação estabelecida entre a patria natural, entendida no âmbito do universo da propriedade rural e vinculada a um patrimônio familiar e ancestral 38, com as famílias aristocráticas portadoras de uma origem honrosa e detentoras de um prestígio sóciopolítico local e regional, leva-nos a uma terceira concepção identitária, apresentada pelo hispalense e amparada na família/nomen, na linhagem e na estirpe. Estes três elementos combinados e amparados em um discurso preservado pela memória39 e mantido de geração em geração 40, constituíam a base que sustentava a construção ideológica de uma gens. De fato, o pensamento expressado nos escritos isidorianos realçava que a gens se caracterizava pela ancestralidade das famílias41 onde o acento aristocrático recaía sobre o genus, a linhagem, que cada família nobilitada portava a gerações 42 e que se consubstanciava por meio das relações 36 37 38 39 40 41 42 Val.,Ad Don.,1:...Dum olim adhuc adulescentulus a terra natiuitatis meae, flama desiderii ac sacre religionis accensus, ad hisdem quietis loca festinans fuissem egressus, contigit, ut in quadam magne dispositionis eclesiam. In qua erat plerumque congregatio fratrum...; Val.,Ord.Querm.,1:...subito gratiae diuinae desiderio coactus pro adipiscenda sacrae religionis crepundia toto nisu mundiuagi saeculi fretum aggrediens, uelut nauigio uectans, ad Complutensis coenobii litus properans... VF,3:...Nam construens cenobium Conplutensem iuxta diuina praecepta nichil sibi reseruans...; Cf. Anexo I. Isid.,Etym.,XV,13,4: Fundus dictus quod eo fundatur vel stabiliatur patrimonium... Como indica INNES, M., “Introduction: using the past, interpreting the present, influencing the future”, in: The uses of the past in the Early Middle Ages (Ed. Y. Hen & M. Innes). Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p.6-7, “…Although the buzzword, memory, rests on an analogy between the ways in which societies construct their pasts and individual human remembrance, the study of social of collective memory is really the study of the common cultural pool which informed a vision of the collective past, explaining how and why present society came into being. For notions of memory to be meaningful, they must be specific: collective memory is by its very nature multivalent, with different memories being accessed by different groups in different situations…”. Isid.,Etym.,XI,1,12: Mens autem vocata, quod emineat in anima, vel quod meminit...; 13: Nam et memoria mens est, unde et inmemores amentes. Dum ergo vivificat corpus, anima est; dum vult, animus est: dum scit, mens est: dum recolit, memoria est...; sobre esta questão, vide FRIGHETTO, R.,“Memoriae conseruandae causa facit. A Memória e a História como veículos da construção das identidades no reino hispanovisigodo de Toledo (finais do século VI – primórdios do século VII)”, in: De Rebus Antiquis 2. Buenos Aires: Universidad Catolica Argentina, 2012,p.1-18. Isid.,Etym.,IX,2,1:...Gens autem apellata propter generationes familiarum, id est a gignendo...; Isid.,De Diff.,332:...Gentes autem familiae, ut Iuliae, Claudiae... Isid.,Etym.,IX,4,4: Genus aut a gignendo et progenerando dictum, aut a definitione certorum prognatorum (...) quae propriis cognationibus terminatae gentes appellantur; Isid.,Etym.,X,184: Nobilis, non vilis, cuius et nomen et genus scitur... Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 34 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 de parentesco 43 e da partilha de costumes, de ritos comuns e de uma formação própria, pautada nos princípios helenísticos da Paideia – Humanitas44 mas já transformados pela influência do cristianismo45, dos segmentos sociais superiores, aspectos que tornavam as gentes grupos aristocráticos – nobiliárquicos coesos desde a perspectiva sociocultural46. 43 44 45 46 Isid.,Etym.,IX,6,28: Stemmata dicuntur ramusculi, quos advocati faciunt in genere, cum gradus cognationum partiuntur... Aul.Gel.,Noc.Att.,XIII,17,1: Qui verba Latina fecerunt quique his probe usi sunt, "humanitatem" non id esse voluerunt, quod volgus existimat quodque a Graecis philanthropia dicitur et significat dexteritatem quandam benivolentiamque erga omnis homines promiscam, sed "humanitatem" appellaverunt id propemodum, quod Graeci paideian vocant, nos eruditionem institutionemque in bonas artis dicimus. Quas qui sinceriter cupiunt adpetuntque, hi sunt vel maxime humanissimi. Huius enim scientiae cura et disciplina ex universis animantibus uni homini datast idcircoque "humanitas" appellata est. Como indica TORRES PRIETO, J. Mª, Ars persuadendi: Estrategias retóricas en la polémica entre paganos y Cristianos al final de la Antigüedad. Santander: Ediciones Universidad de Cantabria, 2013, p.13-4, “…La comunidad científica acepta de forma unánime la idea de que todos los escritos cristianos, con independencia del género al que pertenezcan, presentan afinidades con las formas literarias paganas. Según eso, sus autores serían grandes deudores de la cultura clásica pues, a pesar de que la mayoría manifiestan explícitamente su rechazo al helenismo en todas las facetas, e insisten en la originalidad del cristianismo, en realidad utilizan todos los géneros literarios legados por la tradición (…). Los escritores cristianos cultivaron los diferentes géneros literarios, tanto los de tradición pagana como los de nueva creación (…). Además, gracias a su excelente formación retórica, compusieron obras de gran calidad literaria, que resultaron enormemente convincentes. En efecto, la mayoría de los autores cristianos de los primeros siglos recibieron una esmerada educación y concluyeron el ciclo formativo en las más prestigiosas escuelas de retórica de la época…”; segundo PRICOCO, S., “Il Vivario di Cassiodoro”, in: Monaci, Filosofi e Santi. Saggi di Storia della cultura tardoantica. Messina: Rubbettino Editore, 1992, p.192-3, “...L’interesse di Cassiodoro per la cultura cristiana fu costante, anche nel periodo anteriore alla c.d. conversione (...). Nella ratio studiorum che egli trácia nelle Institutiones la cultura cristiana è non solo fondamento del sapere, ma il sapere stesso; ai suoi disertissimi collaboratori egli commissiona solo scriti cristiani...”; ver também CAMERON, A., “On defining the Holy Man”, in: The cult of saints in Late Antiquity and the Early Middle Ages (Ed. J. Howard-Johnston & P. A. Hayward). Oxford: Oxford University Press, 1999, pp.30-1; exemplos dessa humanitas cristianizada podem ser observados em Isid.,Etym.,II,16,1-2: Iam vero in elocutionibus illud uti oportebit, ut res, locus, tempus, persona audientis efflagitat, ne profana religiosis, ne inverecunda castis, ne levia gravibus, ne lasciva seriis, ne ridícula tristibus misceantur. Latine autem et perspicue loquendum. Latine autem loquitur, qui verba rerum vera et naturalia persequitur, nec a sermone atque cultu praesentis temporis discrepat…; Isid.,De Eccl.Off.,II,5,17: Huius autem sermo debet esse purus simplex et apertus, plenus grauitatis et honestatis, plenus suauitatis et gratiae, tractans de mysterio legis, de doctrina fidei, de uirtute continentiae, de disciplina iustitiae, unumquemque diuersa ammonens exortatione iuxta professionis morumque qualitatem, uidelicet ut praenoscat quid cui quando uel quomodo proferat. Cuius prae ceteris speciale officium est sripturas legere, percurrere canones, exempla sanctorum imitare... Para PERKINS, J., Roman Imperial Identities..., p.22-3, “...The new classicizing Paideia contributed to forming precisely the ‘imperial’ subject and the group identity that Rome would utilize for managing its eastern empire. Rome was an innately hierarchical society. Legal distinctions of status based on property qualifications secured its political system, and social conventions, including distinctive clothing and specified seating on public occasions, routinized and reinforced status differences in Romans daily lives…”, p.25, “…The elite proclaimed their superiority through their Paideia and their civic beneficiations…” e p.27, “…The emphasis on education and culture, on Paideia and Humanitas, that inscribed the cultural identities of both elite Romans and Greeks, contributed to the formation of a transempire alliance, a cosmopolitan elite identity that incorporated the leading people across the empire…”; e HUMFRESS, C., Orthodoxy and the courts in Late Antiquity. Oxford: Oxford University Press, 2007, p.108, “…A formal training in rhetoric had a wider cultural function in both classical and post-classical antiquity; put simply, it shaped and reproduced an ethos for the literate elite. We should not solely think in terms of a shared high-level Paideia of an Ambrose, an Ausonius, or a Symmachus here (…). Rhetoric could function as a means of social control partly…”; como aponta DI SALVIO, L., “Élites dirigenti in trasformazione. La testimonianza di Libanio”, in: in: Le Trasformazioni delle Élites in età tardoantica (Cura di Rita Lizzi Testa). Roma: L’Erma di Bretscheneider, 2006, p.141-2, “...La classe che attira di più la Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 35 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Conduzidas pelos mais destacados personagens das cenas política, econômica, social e cultural do reino hispanovisigodo, denominados nas fontes como os próceres47, os maiores 48, os primates49, os potentes50 ou os ilustres51, líderes das famílias aristocráticas hispanovisigodas que se converteram ao catolicismo no III Concílio de Toledo de 589 52 e nas quais encontraríamos também integrantes do ambiente eclesiástico, as Gothicae Gentes eram a base de sustentação política do regnum gothorum e responsáveis pela escolha, eleição e 47 48 49 50 51 52 sua attenzione è quella, che può considerarsi unitaria, formando l’élite, costituita dai buleuti cittadini e dal funzionariato statale. Dunque gli honorati, funzionari in attività o in pensione e i potentiores cittadini, forti delle cariche ricoperte o del possesso delle terre, possono considerarsi come costituendi un’unica classe, quella que ho chiamato ‘dirigente’...”; também o interessantíssimo trabalho de BROWN, P. “Devotio: Autocracy and Elites”, in: Power and persuasion in Late Antiquity – Towards a Christian Empire. Madison: The University of Wisconsin Press, 1988, p.30, “…Far from being rendered unnecessary by the autocratic structure of the late Roman government, rhetoric positively throve in its many interstices. (…) It presented educated contemporaries with the potent image of a political world held together, not by force, collusion, and favoritism, but by logoi, by the sure-working of Greek words. Emperors and governors gave way, not because they were frequently unsure of themselves, ill-informed, or easily corrupted, rather, they had been moved by the sheer grace and wisdom of carefully composed speeches. Governors did not seek allies or respect vested interests out of fear of isolation or from collusion with the rich. They did so because their own high culture enabled them to see, in the local notables, men of paideia, their 'natural' friends and soul mates…”; um estudo interessante sobre as atividades de um rethor na Antiguidade Tardia VENTURA, G., “Os apuros de um professor: Libânio e o cotidiano escolar em Antioquia”, in: Revista Diálogos Mediterrânicos, 3. Curitiba: Núcleo de Estudos Mediterrânicos, 2012, p.91-117. Isid.,Etym.,IX,4,17: Proceres sunt principes civitatis, quasi procedes, quod ante omnes honore praecedant...; Conc.VIII Tol.,a.653,Item ex uiris inlustribus oficii palatini:...Babilo comes et procer; Astaldus comes et procer; (...) Euredus comes et procer (...); Froila comes et procer...; Conc.XIII Tol.,a.683,Item de uiris inlustribus officii palatini:...Trasimirus procer similiter; (...) Recaulfus procer similiter... Isid.,Etym.,X,171:Maximus, aut meritis, aut aetate, aut honore, aut facundia, aut virtute, aut omnibus magis eximius. Maior...; Conc.III Tol.,a.589,Tomus:...Praecipiente autem universo venerabili concilio atque iubente, unus episcoporum catholicorum ad episcopos et religiosos vel maiores natu (...).Tunc episcopi omnes uma cum clericis suis primoresque gentis Gothicae...; Conc.VIII Tol.,a.653,Tomus:...maioribusque personis...; L.V.,II,4,6 (Cintasvintus Rex):...si maioris persona est...; L.V.,IX,2,9 (Ervigius rex):...si maioris loci persona fuerit, id est dux, comes seu etiam gardingus... Fred.,Chron.,73: Eo anno quid partibus Spaniae, vel eorum regibus contigerit, non praetermittam (...) cum esset Sintela nimium in suis iniquus, et cum omnibus regni sui primatibus odium incurreret...; 82 :...Tandem unus ex primatibus, nomine Chintasindus (...). Fertur de primatibus Gotthorum hoc vitio reprimendo ducentos fuisse interfectos...; Conc.VI Tol.,a.638,c.13:...Qui primatuum dignitate atque reverentiae vel gratia ob meritum in palatio honorabiles...; L.V.,IX,2,9 (Ervigius rex):...et quidem si de primatibus palatii fuerit... Isid.,Etym.,X,208: Potens, rebus late patens: unde et potestas, quod pateat illi quaqua velit, et nemo intercludat, nullus obsistere valeat. Praeopimus, prae ceteris opibus copiosus. Isid.,Etym.,IX,4,12: Primi ordines senatorum dicuntur inlustres...; Conc.II Hisp.,a.619,c.1:...cum inlustribus viris Sisisclo rectore rerum publicarum atque Suanilane rectore rerum fisculium...; Conc.VIII Tol.,a.653,Tomus:...Vos etiam inlustres viros, quos ex officio palatino huic sanctae synodo interesse mos primaevus obtinuit ac non vilitas exspectabilis honoravit et experientia aequitatis plebium rectores exegit, quos in regimine socios, in adversitate fidos et in prosperis amplecturos strenuos...; Conc.X Tol.,a.656,Item aliud decretum:...per inlustrem virum Ubanbanen testamentum gloriosae memoriae sancti Martini ecclesiae Bracarensis episcopi, qui et Dumiense monasterium visus est construxisse...; Conc.XII Tol.,a.681,Tomus:...et vos illustres aulae regiae viros... Conc.III Tol.,a.589,Tomus:...Praecipiente autem universo venerabili concilio atque iubente, unus episcoporum catholicorum ad epíscopos et religiosos vel maiores natu ex haerese Arriana conversos (...). Tunc episcopi omnes uma cum clericis suis primoresque gentis Gothicae (...). Similiter et omnes seniores Gothorum subscribserunt. Post confessionem igitur subscribtionem omnium episcoporum et totius gentis Gothicae seniorum... Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 36 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 aclamação do rex gothorum53 e, ao lado deste, pela defesa da patria e do populus gothorum 54. Tais ações, apoiadas por princípios políticos e morais defensores da idéia de unidade do reino hispanovisigodo de Toledo, entendido como um corpo perfeito voltado à defesa da catholicam fidem55, serviram, em vários casos, como autêntico leitmotiv que culminou com a mudança abrupta e violenta da figura régia e dos grupos políticos a ela vinculados, demonstrando uma grande volatilidade política entre as Gothicae Gentes que acabou enfraquecendo a própria instituição régia hispanovisigoda ao longo da sétima centúria 56. Um destes movimentos, o da rebelião liderada pelo prócer e Dux, Sisenando57 contra o legítimo soberano Suinthila58 ocorrida entre os anos de 631 e 633 e que redundou na deposição deste e na assunção ao trono régio do líder rebelde, atos validados no IV Concílio de Toledo de 633 59, 53 54 55 56 57 58 59 Conc. IV Tol.,a.633,c.75:...sed defuncto in pace principe primatus totius gentis cum sacerdotibus successorem regni concilio conmuni constituant, ut dum unitatis concordia a nobis retinetur...; Conc.VIII Tol.,a.653,c.10:...Abhinc ergo deinceps ita erunt in regni gloriam perficiendi rectores, ut aut in urbe regia aut in loco ubi princeps decesserit cum pontificum maiorumque palatii omnimodo eligantur adsensu... Form.Visg.,IX,39-42:...Obtestamur etiam eos quibus post foelicissimis temporibus nostris regnum dabitur per aeterni regis imperium, sic Deus Gotorum gentem et regnum usque in finem seculi conseruare dignetur...; Conc.VII Tol.,a.646,c.1:...sive etiam quod gentem Gothorum vel patriam aut regem...; Conc.VIII Tol,a.653,Tomus:...in necem regiam excidiumque Gothorum gentis ac patriae detecta fuisset...; c.2:...Ceterum quaequumque iuramenta pro regiae potestatis salute vel contutatione gentis et patriae vel hactenus sunt exacta vel deinceps extiterint exigenda...; Conc.XVI Tol.,a.693,Tomus:...quicumque amodo ex palatinis cuiuslibet sit ordinis vel honoris persona in necem regiam vel excidium gentis ac patriae Gothorum...; Conc.XVII Tol.,a.694,Tomus:...quia satis longum est ea quae regni nostri utilitatibus seu genti et patriae nostrae necessaria... Isid.,HG,52:...Recaredus regno est coronatus, cultu praeditus religionis (...) hic fide pius et pace preaclarus (...) hic gloriosius eandem gentem fidei trophaeo sublimans. In ipsis enim regni sui exordiis catholicam fidem adeptus totius Gothicae gentis populos...; Conc.III Tol.,a.589,Homelia Leand.:...Qui ut notesceret quae uentura essent genti uel populo, quae ab unius ecclesiae communione recidissent, secutus est: “Gens enim et regnum quod non seruierit tibi peribit”. Alio denique loco similiter ait: “Ecce gentem quam nesciebas, uocabis, et gentes quae non cognouerunt te ad te current”. Unum enim est Christus Dominus, cuius est uma per totum mundum ecclesia sancta possessio. Ille igitur caput, et ista corpus...; Isid.,Sent.,III,51,4: Principes saeculi nonnunquam intra Ecclesiam potestatis adeptae culmina tenente, ut per eamdem potestatem disciplinam ecclesiasticam muniant...; L.V.,XII,2,14(Flavius Sisebutus Rex):...Universis populis ad regni nostri, provincias pertinentibus salutifera remedia nobis gentique nostre conquirimus, cum fidei nostrae coniunctos de infidorum manibus clementer eripimus. In hoc enim ortodoxa gloriatur fidei regula, cum nullam in christianis habuerit potestatem Ebreorum execranda perfidia... Para tanto, vide FRIGHETTO, R, “As limitações do poder régio no reino hispano-visigodo de Toledo (séculos VI – VII)”, in: Cuestiones de Historia Medieval (Dir.Gerardo Rodríguez). Buenos Aires: Universidad Catolica Argentina, 2011, v.1, pp.245-52. Sobre este acontecimento e seus personagens, vide FRIGHETTO, R., “A Hispania visigoda (séculos VI – VII) e a Antiguidade Tardia: algumas considerações”, in: Territórios e Fronteiras 6. Cuiabá: Programa de Pós-Graduação em História da UFMT, 2013, pp. 90-2; Cron.Moz.,a.754,17:...Sisenandus in aera DCLXVIIII (...), per tirannidem regno Gothorum inuaso... Isid.,HG,62: Aera DCLVIIII (...) gloriosissimus Suinthila gratia diuina regni suscepit sceptra...; 64: Praeter has militaris gloriae laudes plurima in eo regiae maiestatis uirtutes: fides, prudentia, industria, in iudiciis examinatio strenua, in regendo cura praecipua, circa omnes munificentia, largus erga indigentes et inopes misericordia satis promptus, ita ut non solum princeps populorum, sed etiam pater pauperum uocari sit dignus; Cron.Moz.,a.754,16:...Suintila in era DCLVIII (...), digne gubernacula in regno Gothorum suscepit regna... Uma análise recente da questão foi feita por DIAZ MARTINEZ, P.C., “La dinámica del poder y la defensa del territorio: para una comprensión del fin del reino visigodo de Toledo”, in: De Mahoma a Carlomagno. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 37 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 indubitavelmente deve ser enquadrado nesse perfil. O principal argumento para que tal ação usurpatória tenha sido validada pelo coletivo dos integrantes das gentes hispanovisigodas presentes na reunião conciliar, tanto seus representantes laicos como os eclesiásticos, estava centrado na acusação de que o deposto soberano, Suinthila, juntamente com sua mulher e filhos, havia atuado de forma iníqua contra o conjunto do populus gothorum60, provocando o ódio das gentes e a cisão interna61. A condenação política imputada pela assembleia conciliar recaiu, de forma paritária, sobre o conjunto dos integrantes da gens liderada por Suinthila com especial destaque ao irmão do soberano deposto, Geila, acusado pelos mesmos crimes e também, apontado no cânone conciliar com destacado agravante, de agir de maneira infiel contra seu irmão e de negar a sua fidelidade ao novo e legitimo soberano, Sisenando62. Por certo que o tema da fidelidade devida ao soberano pelos integrantes das gentes ganhou enorme projeção naquele contexto conturbado, na medida em que promessa de fidelidade jurada e sagrada feita por integrantes das gentes63, ao menos do ponto de vista teórico, reforçaria a legitimidade de um soberano que havia alcançado o poder pela via da confrontação abrindo, com isso, a possibilidade de novas atitudes similares no futuro 64. 60 61 62 63 64 Los primeros tempos (siglos VII – IX) – XXXIX Semana de Estudios Medievales de Estella. Estella: Gobierno de Navarra, 2013, pp.180-2. Conc.IV Tol.,a.633,c.75:...De Suintilane vero qui scelera propria metuens se ipsum regno privavit et potestatis fascibus exuit id quum gentis consultu decrevimus: Ut neque eumdem vel uxorem eius propter mala quae conmisserunt neque filios eorum unitati nostrae unquam consociemos, nec eos ad honores a quibus ob iniquitatem deiecti sunt aliquando provemus...; Isid.,Sent.,III,48,6: Qui intra saeculum bene temporaliter imperat, sine fine in perpetuum regnat; et de gloria saeculi huius ad aeternam transmeat gloriam...; 48,7:...Recte enim illi reges uocatur, qui tam semetipsos, quam subiectos, bene regendo modificare nouerunt; 49,3: Dedit Deus principibus praesulatum pro regimine populorum, illis eos praesse uoluit, cum quibus uma est eis nascendi moriendique conditio...; interpretação que também é oferecida por Taius, Sent.,V,9:…Hanc ergo primam ruinam principes timeant, qui privatam gloriam semetipsos diligere non formidant… Vide notas 49 e 60. Conc.IV Tol.,a.633,c.75:...Nam aliter et Geilanem memorati Suintilani et sanguine et scelere fratrem, qui nec in germanitatis foedere stabilis extitit nec fidem gloriosíssimo domno nostro pollicitam conservavit, hunc igitur cum coniuge sua, sicut antefatos, a societate gentis atque consortio nostro placuit separari... Form.Visg.,XXXIX: Conditiones sacramentorum (...): ‘Iuramus primum per Deum patrem omnipotentem et Ihesum Xpm filium eius Sanctumque Spiritum, qui est una et consubstantialis magestas; iuramus per sedes et benedictiones Domini (...); iuramus per sanctam communione, quae periuranti in damnatione maneat perpetua, quia nos iuste iurare et nihil falsum dicere (...). Quod si in falsum tantam diuinitatis magestatem ac deitatem taxare aut inuocare ausi fuerimus, maledicti efficiamur in aerternum...; a definição oferecida por Isidoro de Sevilha é esclarecedora, Isid.,Etym.,V,24,29: Conditiones proprie testium sunt, et dictae condiciones a condicendo, quasi condiciones, quia non ibi testis unus iurat, sed duo vel plures...; Isid.,Etym,V,24,31: Sacramentum est pignus sponsionis; vocatum autem sacramentum, quia violare quod quisque promittit perfidiae est. Conc.IV Tol.,a.633,c.75:...Quiquumque igitur a nobis vel totius Spaniae populis qualibet coniuratione vel studio sacramentum fidei suae, quod patriae gentisque Gothorum statu vel observatione regiae salutis pollicitus est, temtaverit aut regem nece adtrectaverit aut potestatem regni exuerit aut praesumptione tyrannica regni fastigium usurpaverit, anathema sit in conspectu Dei Patris et angelorum, atque ab ecclesia catholica quam periurio profanaverit efficiatur extraneus et ab omni coetu christianorum alienus cum omnibus inpietatis suae sociis, quia oportet ut una poena teneat obnoxios quos similis error invenerit implicatos...; um estudo mais amplo sobre o tema em FRIGHETTO, R., “Incauto et inevitabili conditionum Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 38 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Porém, um detalhe que chama a nossa atenção no cânone conciliar é o que reforça a relação de consanguinidade entre Geila e Suinthila65, denotando uma evidente vinculação parental e gentilícia que se coligava a uma determinada pátria natural, localizada, provavelmente, nas áreas do sul da Hispania66. Devemos entender tal informação como incremento da importância da gens no intrincado tabuleiro político do reino hispanovisigodo de Toledo, pois, em nossa opinião, o apoio e o interesse mútuos dos integrantes da gens aliado às vinculações matrimoniais e parentais com outras gentes hispanovisigodas reforçaria o sentido de pertença a um determinado grupo político mais amplo que teria como denominadores comuns o vínculo e a ligação a ancestrais coincidentes, portadores de virtudes, valores, costumes e uma formação compartilhados entre todos os seus membros. Fructuoso de Braga: sua linhagem, seu patrimônio e sua formação como signos de uma gens. Nessa linha de investigação encontramos, em algumas fontes hispanovisigodas, um interessante exemplo da constituição de um importante grupo político a partir da figura de Fructuoso de Braga. Monge67 e bispo68, fundador de diversas comunidades monásticas na 65 66 67 68 sacramento: juramento de fidelidad y limitación del poder regio en la Hispania visigoda en el reinado de Egica (688)”, in: Intus Legere Historia 1, 1-2. Viña del Mar: Universidad Adolfo Ibañez, 2007, p.67-79. Isid.,Etym.,IX,6,4: Consanguinei vocati, eo quod ex uno sanguine, id est ex uno patris semine sati sunt...; 9: Porro cognatione fratres vocantur, qui sunt de una família, id est patria... Para VALVERDE CASTRO,M.R., Ideología, simbolismo..., p.207, “...De hecho, tras haberse apoderado de la realeza, Sisenando tuvo que combatir la sublevación de Iudila, que estalló en el sur peninsular, la zona donde presumiblemente se concentraban los partidarios de Suintila...”; segundo GARCIA MORENO, L.A., “Prosopography, nomenclature, and royal succession in the Visigothic Kingdom of Toledo”, in: Journal of Late Antiquity 1 – 1. New York: The Johns Hopkins University Press, 2008, p.155, “…Sisenand was the last Visigothic king with origins in Septimania, which explains the strong opposition he faced in southern Spain. After Suinthila’s defeat, Sisenand was opposed by Iudila, who issued coins in Merida and Granada…”. VF,1:...praespicuae claritatis egregias diuina pietas duas inluminauit lucernas, Isidorum reuerentissimum scilicet uirum Spalensem episcopum atque beatissimum Fructuosum ab infantia inmaculatum et iustum. Ille autem oris nitore clarens, insginis industriae, sophistae artis indeptus praemicans dogmata reciprocauit Romanorum; hic uero in sacratissimo religionis propositu spiritus sancti flamma succensus ita in cunctis spiritalibus exercitiis omnibusque operibus sanctis perfectus emicuit ut ad patrum se facile quoaequaret meritis Thebaeorum…; Vers.Fruc.,IV,3: Cernite cuncti presens quod gestat pagina, sacris eloquiis quod profert ipsa sanctissimi uatis, Fructuosi namque, dulcis cuius ex ore loquella procedens iugiter suaui eufonia permulcet cunctorum pectora sistentium sibi deuota (...): sanctorum agmina beata cursu sequi alacri pernicique, artam incunctanter intrare protinus per uiam, paradisi trepudiando occius pertingere portis, angelicos illico potiri choros consortio dignos, martirum catheruis contubérnio mox adiungi beatis, regnum ethereum prosperiter frui per secula cuncta...; Braul.,Epist.,44(Ad Fructuoso):...Felix tu qui huius mundi contemnens, negotia prelegisti otia sancta! Ardorem tuum animumque, uigorem luminisue candorem Spiritu Sancto fulgentem intellego, delector, diligo, amplector et ut pro meis flagitiis facinoribusque ante Deum preualeat areditate bibula anelo. Felix illa eremus et uasta solitudo, que dudum tantum ferarum cônscia, nunc monacorum per te congregatorum laudes Deo precinentium habitaculis est referta... VF,18: Post haec videlicet, licet inuitus, contra uoluntatem suam langores merore depressus perniciter resistendo in sede metropolitana dono dei ordinatus est pontifex... Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 39 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Provincia Gallaecia69, participante do Concilio X de Toledo realizado no ano de 656 como episcopus bracarensis e metropolitano de toda a Gallaecia70, o bracarense surge como verdadeiro paradigma discursivo onde a grandeza aristocrática e nobiliárquica de sua família aparece refletida na sua figura. Portador de um sangue preclaro71, indicação que evidenciava a sua vinculação a antepassados de origem senatorial72, Fructuoso seria filho de Didacus, um clarissimus73 e Dux emparentado com a família régia74, especificamente com o soberano Sisenando e outros integrantes de sua gens, como Esclua de Narbona e Pedro de Beziers75, todos ilustres e amparados em uma própria ínclita estirpe76. Certamente que podemos dizer que a patria dos ancestrais de Fructuoso de Braga estava situada na Galia Narbonense, talvez no eixo entre Narbona e Beziers, área na qual Esclua e Pedro ocupavam importantes sedes episcopais, onde Sisenando aparecia como um dos próceres mais destacados sendo, por esse motivo, muito provável que detivesse o cargo de Dux Narbonensis, função que lhe propiciaria liderar a rebelião contra Suinthila e, também, de negociar apoio militar do rei franco Dagoberto a sua ação rebelde77. Apesar dessa vinculação gentilícia e territorial com um grupo político estabelecido na Galia Narbonense, observamos que o anônimo autor da Vida de Fructuoso projetou como a 69 70 71 72 73 74 75 76 77 Além da nota 37, VF,6: Post haec denique in uastissima et arta atque procul a saeculo remota solitudine in excelsorum montium sinibus extruens monasterium Rufianensem (...). Demum itaque egrediens, inter Bergidensis territorii et Gallaeciae prouinciae confinibus aedificauit monasterium Visuniensem; 7: Atque postmodum ex alia parte Galleciae in ora maris construit monasterium Peonensem...; Val.,Ord.Querm.,7:...In finibus enim Vergidensis territorii inter caetera monasteria juxta quodam castello cujus uetustus conditor nomen ediit Rufiana. Est hoc monasterius inter excelsorum alpium conuallia sancta memoriae beatissimo Fructuoso olim fundatus...; Val.,Repl.,9: In haec igitur rupe, huic monasterio subjacente, cum beatissimus Fructuosus orare...; Val.,Resd.,1:...Cum autem hinc per supra dicta serie fuissem perductus, intuens huic Rufianensis locum monasterii procul mundana conuersatione remotum...; Cf. Anexo II. Conc. X Tol.,a.656, Decr.Pot.:...Tunc venerabilem Fructuosum ecclesiae Dumiensis episcopum conmuni omnium nostrorum electione constituimus ecclesiae Bracarensis gubernacula continere, ita ut omnem metropolim provinciae Gallaecia cunctosque episcopos populosque ipsius omnemque curam animarum… Vers.Fruc.,IV,2:...eniteat preconio sanguineque preclaro... Vers.Fruc.,IV,1:...appares in cunctis preclarus ille triumphis (...). Leta quondam tibi series et origo preclara...; Isid.,Etym.,IX,4,12:...secundi spectabiles, tertii clarissimi... Vers.Fruc.,IV,1:...quibus clarissimus Didacus Britio natus obtinuit legali Iustam equitate matronam... VF,2: Hic uero beatus ex clarissima regali progenie exortus, sublimissimi culminis atque ducis exercitus Spaniae prolis... Vers.Fruc.,IV,1:...qua namque pontifex Sclua sortitus opimam rexit multifariter diuina dignatione Narbonam; sicque Beterrensem Petrus elimauerat urbem, deceat ut celicis talem conpulari falanges. Quid Sisenandum recolam gratia precipua regem, populos qui rite rexit cunctosque refouit...; tanto Esclua de Narbona como Pedro de Beziers aparecem confirmando as atas do IV Concílio de Toledo, Conc.IV Tol.,a.633,Subscr.:...Ego Ysclua in Christi nomine ecclesiae Narbonensis metropolitanus episcopus haec statuta subscribsi (...); Petrus ecclesiae Beterrensis episcopus subscripsi...; Cf. Anexo III. Vers.Fruc.,IV,1:...Illustrem si ex tam generoso fomite pompas, agnosces ipse proprias stirpis inclite uenas... Fred.,Chron.,73:...cum consilio caeterorum Sisenandus quidam ex proceribus ad Dagobertum expetit ut ei cum exercitu auxiliaretur, qualiter Sintellanem degradaret a regno (...). Quo audito, Dagobertus, ut erat cupidus, exercitum in auxilium Sisenandi de toto regno Burgundiae bannire praecepit. Cumque in Spania divulgatum fuisset exercitum Francorum in auxilium Sisenando aggredere, omnis Gotthorum exercitus se ditioni Sisenandi subegit... Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 40 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 patria natural do bracarense a região berciana onde seu pai detinha patrimônio fundiário78 e na qual, por volta do ano de 640, nosso personagem fundou o seu primeiro cenóbio, Compludo79. Logicamente que uma explicação plausível para entendermos essa mudança geográfica, da Narbonense à Gallaecia, seria, por um lado, a da criação contida na Vida de Fructuoso de um topos monástico a volta do personagem central da hagiografia sobre o qual se projetava a imagem de um uir sanctus80 que escolheu uma região inóspita e afastada do século para iniciar uma trajetória que o levou as mais altas hierarquias episcopais do regnum gothorum. Outro caminho igualmente possível estaria relacionado com a concessão patrimonial de terras que integravam o fisco régio dadas, de forma temporal, ao pai de Fructuoso, Didacus, na condição de Dux. Nesse caso aquelas terras do Bierzo seriam parte do patrimônio régio sem sê-lo de caráter familiar ou hereditário, algo bastante lógico se observarmos que aquelas áreas montanhosas da Gallaecia haviam sido recentemente conquistadas pela autoridade régia hispanovisigoda, sendo consideradas ao longo de todo o século VII como regiões de fronteira, instáveis e inseguras81. Uma hipótese que ganha argumentos ao recordarmos que mesmo após a fundação do cenóbio de Compludo o bracarense teve de fazer frente às tentativas de seu cunhado, Visinando82, de obter a concessão régia daquelas mesmas terras para a realização de uma expedição pública 83, informação que reforçaria a perspectiva de que aquelas terras que fariam parte do patrimônio de Didacus eram, de fato, terras pertencentes ao fisco régio hispanovisigodo que foram patrimonializadas por Fructuoso no momento em que este ergueu naquelas uma fundação monástica. Logo, podemos verificar a criação de uma patria natural para Fructuoso de Braga na região berciana a partir do relato hagiográfico, amparada em uma gens ancestral e nos 78 79 80 81 82 83 VF,2:...sub adhuc puerulus sub parentibus degerit, contigit ut quodam tempore pater eius eum secum habens inter montium conuallia Bergidensis territorii gregum suorum requireret rationes. Pater autem suus greges discribebat et pastorum rationes discutiebat; hic uero puerulus inspirante domino pro aedificatione monasterii apta loca pensabat et intra semetipsum retinens nemini manifestabat... Vide nota 37. Como indica FLORIO, R., “Waltharius, figuras heroicas, restauración literária, alusiones políticas”, in: Maia. Rivista di Letterature Classiche. Genova: Cappelli Editore, 2006, p.208, “...En el ámbito de la literatura y, específicamente, de la epopeya, el santo y el mártir se transformaron en los paradigmas heroicos. Esta labor de reconversión ideológica había comenzado con los apologistas cristianos de los primeros tiempos, Tertuliano, Minucio Félix y Lactancio…”. Para tanto vide FRIGHETTO, R., “Identidade(s) e Fronteira(s) na Hispania visigoda...”, p.118; idéia reforçada pela informação contida na L.V.,IX,2,8 (Wamba rex):...Nam et si quilibet infra fines Spanie, Gallie, Gallecie vel in cunctis provinciis, que ad ditionem nostri regiminis pertinent, scandalum in quacumque parte contra gentem vel patriam nostrumque regnum... Vers.Fruc.,IV,1:...Mihique videlicet extat única soror, unicum sortita pignus memorabile nobis, in quo retentans pii gaudia magna uiri Visinandi potitus fruitur prapagine nomen. VF,3:...iliquo uir iniquus sororis eius maritus, antiqui hostis stimulis instigatus, coram rege prostratus surgens subripuit animum eius isdem pars hereditatis a sancto monasterio auferretur et illi quase pro exercenda publica expeditione conferretur... Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 41 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 laços de seu pai com a família régia de Sisenando que possibilitaram a Didacus alcançar uma importante função na administração régia hispanovisigoda. Contudo, de uma forma bastante curiosa, observamos uma ação de patrimonialização de terras do fisco régio levada a cabo por Fructuoso no momento em que este criou e posteriormente teve o reconhecimento da fundação do cenóbio de Compludo, atitude que pode ter sido promovida pelo bracarense em outras fundações monásticas por ele erigidas no Bierzo, casos de Rufiana e Visonia 84. Ou seja, podemos dizer que o movimento monástico liderado por Fructuoso de Braga no território berciano teve, ao que tudo indica uma vertente patrimonialista importante estando relacionada tanto à condição sociopolítica da gens do bracarense como à difusão do cristianismo católico em terras de fronteiras políticas e culturais85. Ora, o movimento monástico fructuosiano deve ser inserido naquela proposta projetada desde o III Concílio de Toledo de 589 de busca pela unidade político-religiosa do regnum gothorum e que deveria ser conduzida pelos máximos representantes institucionais, o princeps christianus sacratissimus e os representantes laicos e eclesiásticos que integravam o universo das Gothicae gentes, para que se pudesse alcançar o consenso universal e a concórdia das ordens que melhor defenderiam a totalidade do populus e da patria/natio gothorum 86. Tratava-se de um movimento com duas vias, uma institucionalizada e calcada nas decisões tomadas pelo conjunto das hierarquias eclesiásticas 87, outra mais autônoma que poderia ter 84 85 86 87 Vide nota 68. Cf. FRIGHETTO, R., “Identidade(s) e Fronteira(s) na Hispania visigoda...”, pp.118-20; segundo WOOD, I., “Missionaries and the christian frontier”, in: The Transformation of Frontiers – From the Late Antiquity to the Carolingians (Ed. W.Pohl, I.Wood e H.Reimitz). Leiden-Boston: Brill, 2001, p.211-2, “…Certainly the crucial conceptual boundary that appears time and time again is not the boundary between pagan and christian, but that between the culturally familiar and the ‘other’. Within the Empire or later the successor states of the Visigoths and Franks, supposed pagan practices might be abhorrent, buy they were also familiar and they could, only too easily, be formed by nominal christians. Martin of Braga enumerated the problems of rustic beliefs in north-western Spain in the sixth century in his letter De Correctione Rusticorum addressed to Bishop Polemius. Beyond the old Roman frontiers, in eighty century Hesse, Thuringia and Bavaria, Boniface was faced not with fully-fledged paganism, but with the failure of christians to live up to his expectations, by celebrating nature cults, observing auguries, or by non-observance of the Church canons on marriage…”. Conc.IV Tol.,a.633,c.75:...sed fidem promissam erga gloriosissimum domnum nostrum Sisenandum regem custodientes ac sincera illi devotione famulantes, non solum divinae pietatis clementiam in nobis provocemus, sed etiam gratiam antefati principis percipere mereamur...; Isid.,Sent.,50,6: Reges vitam subditorum facile exemplis suis vel aedificant, vel subvertunt, ideoque principem non oportet delinquere, ne formam peccandi faciat peccati eius impunita licentia. Nam rex qui ruit in vitiis cito viam ostendit erroris (...). Illi namque ascribitur, quidquid exemplo eius a subditis perpetratur. Conc.IV Tol.,a.633,c.51:...monasteriis vindicent sacerdotes quod recipiunt canones: id est monachos ad conversationem sanctam praemonere, abbates aliaque officia instituere, atque extra regulam acta corrigere...; Conc.VII Tol.,a.646,c.5:...Deinceps autem quiquumque ad hoc sanctum propositum vinire disposuerit, non aliter illis id dabitur adsequi neque ante hoc poterunt adipisci, nisi prius in monasterio constituti, et secundum sanctas monasteriorum regulas plenius eruditi et dignitatem honestae vitae et notitiae potuerint santae promereri doctrina... Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 42 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 diversos matizes, desde a busca por uma conversão sincera 88 até a simples tentativa de se criar um mosteiro com fins de torna-lo patrimonialmente imune89, isenção concedida às fundações monásticas reconhecidas pelas autoridades eclesiástica 90 e régia91, ou mesmo para ampliar a arrecadação de bens materiais para as famílias fundadoras de mosteiros com pouca ou nenhuma vocação espiritual, ocupados por aqueles que Valério do Bierzo definiu como o sétimo tipo de monges, grupo que seria formado por dependentes daquelas famílias convertidos, de forma compulsória, a vida monástica sendo, por esse motivo, falsamente chamados de monges92. Apesar de encontrarmos similaridades da fundação de Compludo por Fructuoso com esta via monástica ilegítima, como a de lançar mão dos dependentes que 88 89 90 91 92 Conc.VII Tol.,a.646,c.5:...Ex hoc igitur iustae severitatis talia decernentes, opportuno tempore iudicio iubemus eos quos in cellulis propriis reclusos sanctae vitae ambitio tenet, quosque eiusdem sancti propositi et merita iuvant et probitas ornant, quietos Dei auxilio et nostro favore tutos existere... Conc.II Brac.,a.572,c.6:...ut nullus episcoporum tam abominabili voto consentiat, ut baselicam quae non pro sanctorum patrocínio sed magis sub tributaria conditione est condita, audeat consecrare; RC,1: Solent enim nonnulli ob metum gehennae in suis sibi domibus monasteria componere et cum uxoribus filiis et seruis atque uicinis cum sacramenti conditione in unum se copulare et in suis sibi ut diximus uillis et nomine martyrum ecclesias consecrare et eas tale nomine monasteria nuncupare. Nos tamen haec non dicimus monasteria sed animarum perditionem et ecclesiae subuersionem (...) et nil de propria substantia pauperibus erogant, sed adhuc aliena quase pauperes rapere festinant, ut cum uxoribus et filiis plus quam in saeculo erant lucra conquirant... Conc.III Tol.,a.589,c.3:...si quid vero quod utilitatem non gravet ecclesiae pro suffragio monachorum vel ecclesiis ad suam parochiam pertinentium dederint, firmum maneat...; Conc.IV Tol.,a.633,c.51: Nuntiatum est praesenti concilio eo quod monachi episcopali imperio servili opere mancipentur et iura monasteriorum contra instituta canonum inlicita praesumtione usurpentur (...). Quod si aliquid in monachis canonibus interdictum praesumserint aut usurpare quisppiam de monasterii rebus temtaverit...; Conc.IX Tol.,a.655,c.5:...Quisquis itaque episcoporum parochia sua monasterium construere forte voluerit, et hoc ex rebus ecclesiae cui praesidet ditare decreverit, non amplius ibidem quam quinquagesimam partem dare debebit, ut hac temperamenti aequitate servata et cui tribuit conpetens subsidium conferat, et cui tollit damna gravia non infligat... Form.Visig.,IX: Alia quam facit rex qui ecclesiam aedificans monasterium facere uoluerit. Domino glorioso ac triumphatori beatissimo ill. Martiri ill. rex (...). Ergo ut nobis et apud Deum et apud uestram dignationem sors beatitudinis commodetur, congregationem monachorum in eundem locum quo sacrosancti uestri corporis thesauri conquiescunt esse decreuimus, quibus iugiter Deo uestraeque memoriae condigne seruientibus, et iuxta patrum more, qui monachis normam uitae posuerunt, conuersantibus, sit uotum nostrum consumata mercede firmissimum et perpetuitate temporum propagatum. Offerimus ergo gloriae uestrae de patrimoniis nostris pro reparationem eiusdem ecclesiae (...). Quarum possessionum ius semper et usus pro nostrae perpetuitatis mercedem nostrisque abluendis (...). Hoc diuino testimonio per etates succiduas futuros praemonemus abbates, nec uotum hoc nostrum sua qualibet tépida conuersatione dissoluant...; L.V.,V,2,2 (Flavius Chindasvindus Rex): Donationes regie potestatis, que in quibuscumque personis conferuntur sive conlate sunt, in eorem iurem persistant; quia non oportet principum statuta convelli, que convellenda esse percipientis culpa non fecerit. Val.,De Gen.Mon.,3:...in quibus sacratissimis locis paucissimi tandem reperiuntur electi uiri qui de toto corde conuertuntur ad Dominum; et ne ipsa monasteria desolata desertaque remaneant, tolluntur ex familiis sibi pertinentibus subulci, de diuersisque gregibus dorseni, atque de possessionibus paruuli qui pro officio supplendo inuiti tondentur et nutriuntur per monasteria atque falso nomine monachi nuncupantur; 4:...non obedientie humilitate aut sincere caritatis dilectione fundantur, sed crescunt typo superbie turgidi, fastu elationis inflati...; RC,1:...Inde surrexit haeresis et schisma et grandis per monasteria controuersia. Et inde dicta haeresis eo quod unusquisque suo quod placuerit arbitrio eligat, et quod elegerit sanctum sibi hoc putet et uerbis mendacibus defendat. Hos tales ubi reperitis non monachos sed hypocritas et haereticos esse credatis...; o perigo da heresia é outro tema sempre recorrente, segundo Braul.,Epist.,44 (Ad Fructuoso):...Cauete autem dudum illius patrie uenenatum Priscilliani dogma, quae et Dictinum et multos alios (...). Nam ita peruersitatis sue studio sacras deprauauit scripturas... Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 43 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 integravam o seu patrimônio para residirem no mosteiro93, o certo é que aquela comunidade monástica passou a dispor de um estatuto legítimo no momento em que foi dotada com uma regra de vida em comunidade reconhecida pelas hierarquias eclesiásticas alçando à condição de cenóbio94, acentuando o caráter de renúncia dos integrantes da comunidade monástica aos contatos com o mundo secular95. Logo o movimento monástico promovido por Fructuoso ganhou reconhecimento por parte das instituições régia e eclesiástica hispanovisigoda inserindo-se, a partir de então, no ambiente dos costumes e ritos religiosos católicos validados pelos antepassados 96, destacando ainda os méritos e as virtudes possuídas por Fructuoso enquanto promotor de uma vida cenobítica santificada e voltada ao auxílio dos mais humildes97, colocando-o como legítimo continuador de sua gens preclara98. Mas para atingir esta condição legitimadora, Fructuoso recebeu após a morte de seus pais e ainda menino, uma formação voltada aos conhecimentos eclesiásticos, com especial acento ao estudo dos salmos99, sob a orientação de Conâncio, bispo de Palencia 100 e responsável pela escola episcopal palentina101. O conhecimento dos salmos envolvia o 93 94 95 96 97 98 99 100 101 VF,3:...eum locupletissime ditauit et tam ex família sua quam ex conuersi ex diuersis Spaniae partibus sedule concurrentibus eum agmine monachorum affluentissime compleuit... VF,4: Hic uero sanctissimus confirmans cunctum regularem ordinem constituensque cenobii patrem cum ingentem districtionis rigorem...; Isid.,Etym.,VII,13,2: Coenobitae, quos nos in commune viventes possumus appellare. Coenobium enim plurimorum est; Isid.,Etym.,XV,3,7: Coenaculum dictum a communione vescendi; unde et coenobium congregatio...; XV,4,6: Coenobium ex Graeco et Latino videtur esse conpositum. Est enim habitaculum plurimorum in commune viventium... RF,21:...Monachi in monasterio sancte et pudice adque honeste uiuentes persistant. Nihil foris sine abbatis uel praepositi mandato peragant, nec liceat monachum foris claustri coenobii proprii longius euagari, nisi in uicino dumtaxat hortulo, uel pomerio cum benedictione senioris. Ceterum uicos, uillasque circuire adque ad saecularem possesionem accedere non licebit... Vers.Fruc.,IV,2:...Optimi more unguenti redolens uirtutibus pectorisque alabastro pedibus dominicis pretiosum fundis nectar unguine catholico... Idéia apresentada no estudo de NERI, Cl., “Influenze monastiche e nuovi codici di comportamento per le élites laiche e le Gerarchie ecclesiastiche”, in: Le Trasformazioni delle Élites in età tardoantica, p.300, “...Intanto dobbiamo dire che, dalle fonti della letteratura monastica, si evince che è un dovere per i monaci aiutare, sotto ogni aspetto, i poveri o i bisognosi, stornando le offerte fatte alle loro comunità...”. Vers.Fruc.,IV,1:...sic te uita pia, sic mens te sepit honesta et merito radians honor in orbe Dei... Para Isid.,Sent.,III,7,31: Sicut orationibus regimur, ita psalmorum studiis detectamur. Psalendi enim utilitas tristia corda consolatur, gratiores mentes facit, fastidiosos oblectat, inertes exsuscitat, peccatores ad lamenta invitat... VF,2:...Post discessum igitur parentum abiecto saeculari habitu tonsoque capite, quum religionis initia suscepisset, tradidit se erudiendum spiritalibus disciplinis sanctissimo uiro Conantio episcopo...; Ild.,De Uir.Ill., 10: Conantius post Murilanem, ecclesiae Palentinae sedem adeptus. Vir tam pondere mentis quam habitudine speciei grauis, communi eloquio facundus et gratus, ecclesiasticorum officiorum ordinibus intentus et prouidus: nam melodias soni multas nobiliter edidit. Orationum quoque libellum de omnium decenter conscripsit proprietate psalmorum. Vixit in pontificatu amplius triginta annis, dignus habitus fuit ab ultimo tempore Vuitterici, per tempora Gundemari, Sisebuti, Suinthilanis, Sisenandi et Chintilae regum; Conc.IV Tol.,a.633,subscr.:...Conantius ecclesiae Palentinae episcopus subscripsi...; Conc.V Tol.,a.636,subscr.:...Ego Conantius ecclesiae Palentinae episcopo subscribsi...; Conc.VI Tol.,a.638, subscr.:...Conantius ecclesiae Palentinae episcopus subscribsi... Há uma referência a escola episcopal de Palencia na citação VF,2:...quum ei ad manendum hospitium praeparassent, quidam de sumptoribus scolae ipsius adueniens interrogauit...; ver também VSPE,II,612:...Quem ut uiderunt ebrium pueri paruuli, qui sub pedagogorum disciplinam in scolis litteris studebant...; Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 44 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 desenvolvimento da arte da impostação da voz e do canto102, sendo também utilizada a técnica da repetição e da memorização dos mesmos, muita usada no ambiente monástico fructuosiano103, com vistas ao aprimoramento espiritual e cultural dos monges104 que servia, igualmente, como signo de uma identidade monástica105. Parece-nos evidente que a formação inicial de Fructuoso foi baseada nesta forma de aprendizado, memorizando e aprendendo os salmos106. Interessa-nos aqui atentar para a estratégia formativa desenvolvida nos ambientes 102 103 104 105 106 Taius, Ep. ad Eugenium Toletanum:...inaestimabili accensus desiderio, tanquam unus ex collegio caurientium puerorum inediae coactus impulsis...; como indica DIAZ Y DIAZ, M.C., “La cultura de la España visigotica del siglo VII”, in: De Isidoro al siglo XI. Ocho estudios sobre la vida literaria peninsular. Barcelona: Ediciones El Albir, 1976, p.28, “...El tipo de escuela – si puede llamarse así, que más habría que denominar tipo de formación -, más frecuente es el del discipulado en torno a una gran figura, cuya altura, valores morales o prestigio personal atrae gentes que siguen con él unos años el camino de la iniciación en las materias eclesiásticas y profanas: así un visigodo de sangre real como Fructuoso se somete a la disciplina de Conancio de Palencia, junto con otros varios jóvenes…”. Isid.,Etym.,VI,19,11: Psalmus autem dicitur qui cantatur Psalterium, quod unum esse David profetam in magno mysterio prodit historia. Haec autem duo in quibusdam Psalmorum titulis iuxta musicam artem alternatim sibi adponuntur; Isid.,De Eccl.Off.,I,5,1-2:...Cuius psalterium idcirco cum melodia cantilenarum suauium ab ecclesia frequentatur, quo facilius animi ad conpunctionem flectantur. Primitiua autem ecclesia ita psallebat ut modico flexu uocis faceret resonare psallentem, ita ut pronuntianti uicinior esset quam canenti. Propter carnales autem in ecclesia, non propter spiritales, consuetudo cantandi est instituta ut, quia uerbis non conpunguntur, suauitate modulaminis moueantur (...). Nam in ipsis sanctis dictis religiosius et ardentius mouentur animi nostri ad flammam pietatis cum cantantur quam si non cantetur... RF,1:...unde et a monachis necesse est ne otiosa ducatur. Ideo constitutum est ut trino psalmorum obsequio frequentetur, que et primae consummet officium et subsequenter tertiae incipiat scandere gradum (...). Nocturno igitur tempore prima noctis hora sex orationibus celebranda est ; ac deinde decem psalmorum concentu cum laude ac benedictionibus consummanda in ecclesia est (...). Tunc demum pergentes ad cubilia adque in unum cuncti coneuntes ob perfectionem pacis et reorum absolutionem cantatis tribus psalmis iuxta morem (...), pergat ad lectum suum, ubi tacite orationi insistens, psalmosque recitans ultimo orationem suam... ; 3 : Quum hora nona ad uescendum conuenitur, dicto psalmo, sedentibus aliis unus in medio... Para PRICOCO, S., “Il Vivario di Cassiodoro”, p.194, “...Il Salterio, per Cassiodoro, non è soltanto il testo bíblico di più alta illuminazione divina, è anche il testo che sta a fondamento delle discipline liberali. Egli insiste nell’indicare nei Salmi il pieno dispiegarsi degli artifici retorici più accorti e sofisticati...”; segundo PRICE, R. M., “The holy man and Christianization from the apocryphal apostles to St. Stephen of Perm”, in: The cult of saints in Late Antiquity and the Early Middle Ages, p.233-4, “…The monastic movement of the fourth century (which had such a decisive influence on the Christianization of Egypt and Syria) was accompanied by heightened eschatological expectation: we read in the History of the Monks of Egypt that for the fathers in the desert ‘there is only the expectation of the coming of Christ in the singing of psalms’…”. De acordo com WILLIAMS, M. S., “Hymns as acclamations: the case of Ambrosius of Milan”, in: Journal of Late Antiquity, 6 – 1. New York: The Jonhs Hopkins University Press, 2013, p.113-4, “…Whether the text around which the participants united was a song, or a phrase from religious worship, or a line from a play, or a Christian hymn, the important aspect is that it conferred on the crowd a common identity and a common purpose…”. Muito interessante a informação contida em Val.,Repl.,6: Cum autem paruulum quendam pupillum litteris imbuerem, tantum dispensatio diuina dedit illi memoriae capacitatem et intra medium annum peragrans cum canticis uniuersum memoriae retineret psalterium..., coligada com as referências de RF,4:...Iuniores autem coram suis residentes decanis lectioni uel recitationi vacent...; e Val.,Ad Don.,1:...Inter quos erat quidam frater, nomine Maximus, librorum scribtor, psalmodie meditator, ualde prudens, et in omni sua actione conpositus...; de acordo com FONTAINE, J., Isidoro de Sevilla. Génesis y originalidad de la cultura hispánica en tiempos de los visigodos. Madrid: Ediciones Encuentro, 2002, p.259, “…En cabeza de las fuentes religiosas de esta estética debemos colocar las oraciones de la liturgia hispánica y, sobre todo, la práctica del canto de los Salmos. Esta doble práctica diaria marcó el aprendizaje y, por así decirlo, el mantenimiento ininterrumpido del latín de Isidoro…”; sobre esta prática diária, RI, 6:…Verum in uigiliis Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 45 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 eclesiásticos, da memorização e da repetição, que também contemplaria a evocação das tradicionais gestas ancestrais hispanovisigodas, como o Cantar de Valtario, que seriam constantemente rememoradas e validadas pela tradição para e pelos filhos das mais importantes gentes107, signo contundente da importância e da grandeza dos grupos aristocráticos e nobiliárquicos do reino hispanovisigodo108. A guisa de conclusão: Fructuoso de Braga, representante máximo de sua gens. Dessa forma, verificamos que os elementos básicos constitutivos de uma gens como o da vinculação a uma família detentora de uma ancestralidade, que era possuidora de um patrimônio fundiário e que oferecia aos seus integrantes uma formação amparada em princípios defendidos pelo conjunto da aristocracia – nobreza hispanovisigoda, são elementos que aparecem, de forma destacada, no exemplo de Fructuoso de Braga. Integrante de uma estirpe com estreitas ligações com a família régia, Fructuoso aparece como merecedor e continuador da grandeza de seus antepassados, na medida em que sua importância colocavao em um patamar superior aos seus ancestrais. De fato se seu pai foi Dux, detentor de um importantíssimo cargo na administração político-militar do regnum gothorum, Fructuoso alcançou a condição de bispo e metropolitano de toda a provincia Gallaecia, função eclesiástica tão ou mais destacada que aquela ocupada por seu ancestral imediato, equivalente àquela 107 108 recitandi aderit usus. In matutinis psallendi canendique consuetudo, ut utroque modo seruorum dei mentes diuersitatis oblectamento exerceantur et ad laudem dei sine fastidio ardentius excitentur… Isid.,Carm.,19:…Ecclesiae et Christi laudes hinc indecanentes. Et thalami memorat socios sociasque fideles. Ilas, rogo, mente tua, juvenis, mandare memento. Cantica sunt nimium falsi haec meliora Maronis. Haec tibi vera canunt vitae praecepta perennis...; Isid.,Etym.,I,39,9:...Heroicum enim carmen dictum, quod eorum virorum fortium res et facta narrantur. Nam heroes appellantur viri quasi aerii et caelo digni propter sapientiam et fortitudinem. Quod metrum auctoritate cetera metra praecedit ; unus ex omnibus tam maximis operibus aptus quam parvis, suavitatis et dulcedinis atque aeque capax. De acordo com AGUILAR ROS, P., “El cantar de Valtario, hipótesis para una nueva lectura”, in: De la Antigüedad al Medievo. Siglos IV – VIII. III Congreso de Estudios Medievales. Avila: Fundación SanchezAlbornoz, 1993, p.183, “…Por otra parte no debe extrañar que sea un monje el que componga la leyenda goda ya que sabemos que desde el siglo VII se cantaban en España los ‘carmina maiorum’ de origen godo y que el clero, lejos de oponerse a tales recuerdos, los preceptuaba para la educación de los jóvenes…”; igualmente interessante e válido é o estudo de POHL,W., “Memory, identity and power in Lombard Italy”, in: Using the past in the Early Middle Ages (Ed. Yitzahk Hen & Matthew Innes). Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p.13-4, “…Here, I would like to disentangle myself from the looming problem of orality versus written memory by proposing a simple hypothesis: this question is central only if you automatically associate oral tradition with archaic origin, authenticity and purely ‘Germanic’ character of this tradition in content and form; and identify literacy with classical (or clerical) erudition, manipulation and dilution of the original text, but also with its transplantation into a Latin culture. I do not think this bipolarity makes much sense. Latin and Germanic language, traditionalist and legislative rhetoric, and the attitudes and rituals of late Roman judicial and ‘Germanic’ warrior cultures were, by the middle of the seventh century, too entangled to understand them as fundamentally different ways of dealing with the past (…). Orality and literacy often seem to be quite inseparable on the basis of our evidence, and the ‘milieu of memory’ at the Lombard court certainly relied on both written and oral tradition…”. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 46 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 desempenhada por seu parente Esclua de Narbona, bispo e metropolitano da provincia Narbonense. A constituição de uma nova patria natural para Fructuoso, iniciada por seu pai que dispunha de parcelas do patrimônio régio no Bierzo integradas, do ponto de vista administrativo, a provincia Gallaecia, demonstra-nos a expansão territorial da gens do bracarense para outras áreas do regnum gothorum e que neste caso estaria relacionada com a cessão de terras do fisco régio entre familiares e aliados gentilícios que fariam parte do mesmo grupo político, como seriam Didacus e Sisenando. A partir da sua nova pátria natural, a propriedade fiscal onde foi fundado o cenóbio de Compludo, Fructuoso iniciou um processo de patrimonialização dos bens régios voltado, é certo, para o desenvolvimento de seu movimento monástico, mas que na realidade fazia parte de uma estratégia corriqueira e desenvolvida pelos integrantes das gentes hispanovisigodas de ampliarem suas propriedades à custa do patrimônio régio, sempre em benefício próprio dos integrantes do universo aristocrático – nobiliárquico e visando um incremento de seus poderes locais e regionais. Logo, o movimento monástico promovido por Fructuoso de Braga e apresentado como movimento espiritual deve ser, também, analisado a partir dessa dinâmica da patrimonialização feita tanto pelos agentes da administração régia como por integrantes da aristocracia – nobreza local, ou seus herdeiros, das propriedades do fisco régio, onde a subtração dos bens fiscais acabava por reduzir, efetivamente, o poder político-econômico da instituição régia hispanovisigoda. Seja como for, observamos que Fructuoso de Braga aparece, sempre de acordo com o anônimo autor da Vida de Fructuoso, como detentor de um patrimônio próprio que o colocaria na condição de continuador de sua gens ancestral e, mais ainda, como promotor de um movimento monástico inovador, posicionando-o espiritualmente acima de seus predecessores e vinculando-o com os ritos e costumes religiosos católicos defendidos por sua família e seu grupo político. A espiritualidade desenvolvida e imputada a Fructuoso tinha uma direta relação com a formação por ele adquirida desde a sua infância e que fazia parte dos princípios formativos passados aos jovens integrantes das gentes hispanovisigodas, ancorados especialmente sobre os preceitos morais e éticos contemplados pelo cristianismo católico. Encontramos desde a conversão dos godos ao catolicismo no ano de 589 uma imediata associação entre as Gothicae gentes como defensoras da unidade político-religiosa do regnum gothorum, defesa amparada em uma formação vocacionada aos elementos aristocráticos e nobiliárquicos com notório acento sobre as virtudes helenísticas e tardias comumente presentes no discurso das fontes eclesiásticas católicas, como a fidelidade, a justiça, a piedade, a religiosidade e no caso particular de Fructuoso a santidade que, ao lado de sua condição de bispo metropolitano da Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 47 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Gallaecia, o colocava em um patamar mais elevado que o detido por seus ancestrais. Signos de uma nova identidade que caracterizava, desde o III Concílio de Toledo, a Gens Gothorum e que conviviam, igualmente, com antigas tradições ancestrais que valorizavam as virtudes guerreiras, como a fortitudo, destacadas nas tradicionais gestas heroicas memorizadas e passadas, de geração em geração, entre os membros aristocráticos e nobiliárquicos hispanovisigodos. Talvez por esse motivo nos deparemos com a associação dirigida à figura de Fructuoso como uir sanctus portador de virtudes guerreiras que o levaram à confrontação e a vitória sobre o mais temido de todos os inimigos, o demônio. Enfim, Fructuoso surge, nas fontes hispanovisigodas que o referenciam, como legítimo herdeiro de sua ínclita gens e como protótipo aristocrático hispanovisigodo digno de ser analisado, interpretado e estudado com vistas a um maior conhecimento da realidade sociopolítica, econômica e cultural do reino hispanovisigodo de Toledo do século VII. ABREVIATURAS: . 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Renan FRIGHETTO, Noia: Editorial Toxosoutos, 2006. . Vers.Fruc. = ANONIMUS, Uersiculi Fructuosi, ed. A.MAYA SANCHEZ, Turnholti: Corpus Christianorum Series Latina 116 – Brepols, 1992. . VF = ANONIMUS, Vita Fructuosi, ed. M.C.DIAZ Y DIAZ, Braga: Camara Municipal, 1974. . VSPE = ANONIMUS, Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium, ed. A.MAYA SANCHEZ, Turnholti: Corpus Christianorum Series Latina 116 – Brepols, 1992. . Taius, Sent. = TAIONIS CAESARAUGUSTANI EPISCOPI, Sententiarum Libri Quinque, ed. J.P.MIGNE, Paris: Patrologia Latina LXXX, 1851. . Taius, Ep. ad Eugenium Toletanum = TAIONIS CAESARAUGUSTANI EPISCOPI, Epistola ad Eugenium Toletanum, Paris: Patrologia Latina LXXX, 1851. . Mapas feitos a partir da plataforma http://pelagios.dme.ait.ac.at/maps/grecoroman/?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 49 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 ANEXO I Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 50 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 ANEXO II Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 51 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 ANEXO III Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 52 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 As representações dos Muçulmanos durante a tomada de Lisboa pelos Cristãos (1147) The depiction of the Muslims during the siege of Lisbon by the Christians (1147) José Carlos Gimenez* Universidade Estadual de Maringá Resumo Abstract O objetivo deste trabalho é discutir as representações dos muçulmanos no contexto da tomada da cidade de Lisboa pelos cristãos no ano de 1147, mais especificamente, como uma narrativa sobre o cerco de uma cidade pode constituir-se em uma importante fonte para conhecermos o discurso e o emprego da violência na Idade Média. Para tal propósito, tomaremos como fonte principal uma carta escrita, provavelmente entre a segunda metade do século XII e a primeira metade do XIII, por um clérigo inglês, conhecido como Osberno, que acompanhava a expedição Cruzada que se dirigia a Jerusalém. Nessa carta, a construção de uma imagem negativa dos muçulmanos serviu, sobretudo, para exaltar a qualidade e a superioridade da fé cristã frente ao Islam. A carta revela ainda, as interfaces de uma batalha tipicamente medieval, com especial destaque para os aspectos relacionados ao mundo do sagrado e do profano, em que os desejos de realização de bens materiais entrelaçam-se com ideais de conquista e de expulsão dos inimigos da fé cristã. This work aims to present and debate the representation of the Muslims during the enclosure and conquest of Lisbon by the Christians in 1147, more specifically, to the fact that how its siege constitutes an important source to knowing the discourse and utilization of violence in the Middle Age. To present this purpose, the main source of information is a letter, probably written between the second half of the 12th century and first half of the 13th century, written by a churchman and English crusader, known as Osbern, who followed that expedition heading for Jerusalen. In this letter, the construction of the Muslims’ negative image served, above all, to praise the quality and superiority of Christian faith before the islams. Yet, the letter reveals the interfaces of a typically medieval battle, focusing on the details about the sacred and profane world, in which the desires of material fulfillment entangles with the ideals of conquering and expelling of the enemies of Christian faith. Palavras-chave: Conquista de Lisboa; Idade Média Ibérica; Reconquista Cristã. Cruzadas. Keywords: Lisbon Conquer; Iberic Medieval Age. Christian Reconquering; Crusades. ● Enviado em: 02/11/2014 ● Aprovado em: 12/12/2014 * Doutor em História pela UFPR, Professor de História Medieval na Universidade Estadual de Maringá, Líder do grupo de pesquisa Instituições Políticas e Religiosas Medievais na Península Ibérica, pesquisador do Núcleo de Estudos Mediterrânicos, NEMED-UFPR. [email protected] Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 53 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Introdução. Para muitos medievalistas o resultado da Primeira Cruzada foi favorável aos cristãos ocidentais, principalmente para a Igreja que, ao incorporar e empregar os valores bélicos a serviço de Deus no combate aos inimigos da fé cristã transformou a Santa Sé em um poder temporal forte e armado, com grande penetração nos assuntos políticos de reis e Imperadores. As Cruzadas também trouxeram grande benefício econômico para os mercadores, principalmente para os venezianos e genoveses que, ao transportarem peregrinos e cruzados, aumentaram os seus rendimentos, especialmente com a instalação de entrepostos comerciais em vários portos do mediterrâneo oriental e com a fundação de novas rotas comerciais entre o Ocidente e o Oriente. Para José Luiz Corral, a ideia de Cruzada igualmente serviu de atrativo para que os cristãos da Península Ibérica idealizassem não apenas enfrentar, mas também vencer o Islam em seus territórios. Ela, todavia, teve um significado maior ainda, já que o espírito de Cruzada foi incorporado como uma ideologia de enfrentamento contra os inimigos da fé cristã em toda a Cristandade Ocidental e marcou o período1. Em dezembro de 1144, a perda do Condado de Edessa, uma das primeiras cidades ocupadas pela Primeira Cruzada, para o governador de Monsul e Alepo, Zangi Imadad-Din (1127-1146), reavivou o espírito beligerante dos cristãos para uma nova convocação. Glorificada pelo Papa Eugênio III (1100-1153, Papa desde 1145) e estimulada pelo abade cisterciense Bernardo de Claraval (1090-1153), os cristãos rumaram para a Terra Santa em uma segunda Cruzada, então liderada pelo rei da França, Luís VII (1120-1180, rei desde 1137), e pelo Imperador germânico, Conrado III (1138-52). Ainda que conduzissem uma grande armada pela Ásia Menor, os exércitos cristãos foram praticamente destruídos pelos constantes ataques das hostes turcas. Além dos exércitos comandados pelo rei francês e pelo Imperador alemão, um terceiro contingente, saído da Inglaterra e formado por escoceses, flamengos, germanos, normandos e ingleses, também pretendia, por via marítima, alcançar a cidade de Jerusalém. A escolha desse caminho inevitavelmente obrigava os cruzados a passarem pela cidade de Lisboa, pois, naquele contexto, já era a maior e mais importante cidade da fração Ocidental da latinidade, o que lhe conferia o papel de um entreposto estratégico de abastecimento para viajantes que se deslocavam para o sul daquele continente e para a África. 1 CORRAL, J. L. En el origen de las Cruzadas (1095-1119), In: Breve historia de la Orden del Temple. Barcelona Edhasa, 2007, p. 23-42. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 54 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Ao passarem por Lisboa, os cruzados auxiliaram o monarca português, Afonso Henriques (1109-1185, rei desde 1139), a reconquistar aquela cidade, que estava sob o domínio muçulmano desde o ano de 719. As venturas e as adversidades transcorridas durante essa empreitada foram relatadas, em forma de carta, por um cruzado inglês conhecido como Osberno. Maria João Violante Branco, na introdução do livro A Conquista de Lisboa aos Mouros: relato de um cruzado2, traduzido e editado por Aires Augusto Nascimento, informa que o texto é conhecido somente por meio de uma única cópia preservada no Colégio Corpus Christi de Cambridge, e que foi incorporado àquela coleção na primeira metade do século XVI, por Mathew Parker (1504-1575), aluno e futuro vice-chanceler da própria Universidade e futuro Arcebispo de Cantuária. Ainda segundo ela, estudos de crítica textual e de análise paleográfica e diplomática do documento atestam que ele foi escrito entre a metade do século XII e primeira metade do século XIII, o que reforça a tese de que a narrativa foi produzida em um período muito próximo aos acontecimentos relatados3. Neste sentido pode-se afirmar que pelas informações apresentadas na fonte, trata-se igualmente de um autor que vivenciou plenamente o movimento e o espírito das Cruzadas 4. Las personas que vivieron en esa época sabían perfectamente lo que era una Cruzada. En los escritos de los cronistas, de los apologistas y los canonistas, así como en las expresiones empleadas por quienes redactaban cartas Papales, podemos identificar señales que informaban a los fieles de que se estaba predicando una Cruzada. En primer lugar, los participantes, o algunos de ellos, eran llamados a “aceptar la cruz”, lo cual quería decir que debían prestar juramento antes de incorporar a una expedición militar con objetivos concretos5. Na leitura do texto, é possível constatar também que o autor pertencia ao clero e que construiu a visão desse clero sobre a missão que cabe à Igreja, a um monarca cristão e às hostes cristãs, no combate aos infiéis. Embora esses três segmentos tenham interesses distintos, uma vez que Afonso Henriques buscava consolidar seu poder sobre um reino recém2 3 4 5 Essa obra para a qual a referida professora faz a introdução foi ditada e traduzida com notas por Aires Augusto Nascimento a partir do texto original De Expugnatione Lyxbonensi. Lisboa, Nova Vega, 2007, 2ª edição (Coleção Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, 96), edição que utilizamos para as nossas citações. Desse ponto em diante será usada a abreviação CLM como referência a fonte A Conquista de Lisboa aos Mouros: relato de um cruzado. BRANCO, M. J. V. Introdução. In: CLM, p. 9-51. O valor e a grandeza desse episódio, narrado no documento aqui analisado serviram de cenário para o escritor português José Saramago (1922-2010) escrever, em 1989, o romance História do Cerco de Lisboa. No livro o autor aborda de modo original e criativo a complexa relação entre os limites da história e da ficção. Sobre a contribuição dessa obra para a revitalização do romance histórico veja-se, MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. A Idade Média revis(it)ada: História(s) do cerco de Lisboa. In: IPOTESI: Revista de Estudos Literários. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, v. 15, n.1, p. 153-161, jan./jun. 2011. RILEY-SMITH, J. ¿Qué fueron las Cruzadas? Barcelona: Acantilado, 2012, p. 25. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 55 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 criado, a Igreja buscava substituir o Islam pelo Cristianismo e os soldados procuravam alcançar um expressivo espólio da guerra, o autor do relato construiu um discurso religioso com o objetivo de atender a diferentes objetivos. Neste sentido, somam-se aos ideais de Cruzada com os desejos de Reconquista, uma vez que, […] O cerco à Lisboa Muçulmana, desta maneira, assume-se como um microcosmo que contém todas as potencialidades dos movimentos presentes nessa época: a fragilidade do bloco muçulmano; o ímpeto crúzio que vem, neste caso, de Inglaterra, e o movimento de Reconquista, desta feita corporizado em Afonso Henriques6. Margarete Labarge afirma que a determinação que levava os homens a criarem e a participar das Cruzadas é ampla, pois a análise dos fatos é ao mesmo tempo mais complexa e mais interessante, porque são muitas as razões que moviam os cruzados. O autêntico idealismo e os fervores religiosos eram entrelaçados em sonhos mais que seculares de aventura; uma vez que a cavalaria medieval encontrou nas Cruzadas uma maneira de escapar da monotonia cotidiana por meio de combates vitoriosos, juntamente com motivações religiosas e a possibilidade de alcançar um rico espólio de guerra7. O texto A Conquista de Lisboa aos Mouros: relato de um cruzado, também revela as questões apontadas acima, uma vez que a realidade de conquistas políticas e de bens materiais somava-se aos ideais e às esperanças de recompensas espirituais. Trata-se, portanto, de um documento com informações preciosas sobre a importância da Península Ibérica medieval como espaço de lutas e de propagação das desavenças entre cristãos e mulçumanos. Devido a isso e à natureza desse evento, apresentaremos um corte temático que privilegiará uma análise sobre a maneira como esse documento propagava os ideais de Cristandade frente aos muçulmanos e, mais especificamente, como estes foram representados durante o cerco e a tomada da cidade de Lisboa pelos cristãos. É a tensão de um texto fundamentado na mentalidade cristã com explícitos desejos de propagar a superioridade da sua fé frente à religião muçulmana. Análise da narrativa. A narrativa tinha como finalidade lembrar aos cavaleiros reunidos para o assalto e a expulsão dos muçulmanos daquela cidade que a causa religiosa deveria ser posta acima das 6 7 MONTE, M. P. do. Cruzada e Reconquista: as duas faces da conquista de Lisboa em 1147. In: Medievalista online. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, ano 4, n. 5, 2008: http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA5 LABARGE, M. W. Viajeros medievales: Los ricos y los insatisfechos. Madrid, Editorial Nerea, 1992. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 56 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 cobiças materiais, o que revela que se trata de um documento de propaganda da milícia cristã, inspirada pelo pensamento de São Bernardo de Claraval. Todavia, para o medievalista espanhol Ayala Martinez, o abade de Claraval não inventou uma nova espiritualidade guerreira, nem justificou a harmonização da tradição monástica com a milícia armada. Tratouse de um propagandista de uma nova ética guerreira centrada na disciplina e no compromisso da cavalaria com a Igreja, que passava por um processo de renovação em torno da primeira centúria do século XII8. Nesse sentido, parece plausível, também, apreciar o texto sobre o Cerco de Lisboa como um desdobramento das ideias do abade de Claraval, aplicado à realidade da Península Ibérica, questão também abordada por Maria João Branco, ao afirmar que aquela narrativa não estaria fora do ambiente em que nasceu e das motivações que parecem secundar a campanha de “propaganda” da conquista de Lisboa, o que levou a tradição hispânica e Ocidental como um todo dos séculos XII, XIII e XIV a considerar o fato como um ponto determinante9. Com esse propósito, o autor, ao longo do texto, cria uma série de situações em que a única possibilidade de vencer os inimigos e de reconquistar aquela cidade seria a manutenção do espírito de união, baseado nos ensinamentos cristãos. Para tanto, desde a saída do porto de Dartmouth, Inglaterra, ele transforma cada nau em um microcosmo cristão e, nelas, homens de diferentes regiões e reinos da Europa deveriam fazer promessas de concórdia e de amizade, bem como respeitar as hierarquias, renunciar às vaidades pessoais e, acima tudo, que em cada navio se cumpra os ofícios religiosas com se ele fosse uma paróquia. Partir para a expulsão dos infiéis transformava-se em padecimento e peregrinação em direção ao desconhecido, em que sereias emitiam sons horripilantes, acompanhados por lamentos, risos e gargalhadas, como se fossem gritos de tropas em provocações aos opositores 10. La extensión creada se transforma en espacio sobrenatural. De forma deslumbrante, durante siglos, la peregrinación ha evidenciado la avidez con la que (sin duda en todo el mundo) lo sagrado se alimenta del espacio. El hombre se somete así a una prueba con el fin de alcanzar unos lugares saturados de símbolos engarzados – de tal do modo que la misma aproximación queda por anticipación santificada en virtud del objetivo al que tiende11. 8 9 10 11 AYALA MARTINEZ, C. La Orden del Cister y las órdenes militares. In: Actas - I Colóquio Internacional: Cister, os Templários e a Ordem de Cristo. (eds. José Albuquerque Carreiras e Giulia Rossi Vairo). Tomar: Laboratório de Tecnologia e Artes Gráficas, Instituto Politécnico de Tomar, 2012. BRANCO, M. J. V. Op.Cit., p.11. CLM, p. 57. ZUMPHOR, P. La medida del Mundo: representación del espacio en la Edad Media. Madrid: Ediciones Catedra, 1994, p. 182. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 57 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 A narrativa transita entre os fatos políticos, ou seja, a presença indesejável dos inimigos da fé e a necessidade de devolver àquela cidade as insígnias da verdadeira religião. Com isso, pode-se afirmar que a religiosidade cristã ibérica também se construiu em oposição aos paradigmas e à presença do Islam naquele território. Em diversas passagens, o texto insiste que somente por interferência divina as hostes cristãs poderiam vencem os obstáculos, recuperar a vida normal e se revigorar para vencer os infiéis. A presença de seres fantásticos como as sereias assume aqui, um caráter pedagógico, pois serve para mostrar aos soldados que os perigos são constates, e que precisam ser decifrados para se afastarem dos maus presságios. Com esse intuito, o autor descreveu os rios, as principais cidades, as fortalezas, as igrejas e os mosteiros, entre outras, como locais onde se cultivava uma fartura alimentar e onde a natureza gerava alimentos em abundância. Além disso, aponta alguns lugares, como a cidade do Porto, cujos areais curariam diversas doenças, inclusive a lepra12. Um dos pontos mais significativos do documento é a descrição que o autor faz do sermão pregado pelo bispo do Porto, D. Pedro de Pitões, informando que no dia anterior já estivera com o rei português D. Afonso Henriques e que desejava transmitir as determinações que recebera do monarca lusitano. Esse bispo fez um longo discurso sobre as razões e os procedimentos que os cruzados deveriam adotar para tomar a cidade de Lisboa e expulsar de forma definitiva os infiéis13. Trata-se de uma belíssima passagem que possibilita uma ampla análise sobre o significado da guerra em uma perspectiva da Cristandade medieval. Não obstante, destacaremos os principais pontos em que se exaspera o Cristianismo em contraposição à religião e ao modo de vida dos muçulmanos. A princípio, o autor exalta a excepcionalidade do cristão como povo escolhido por Deus, para, em um segundo momento, representar o muçulmano como seu oponente e, consequentemente, inferior. Em relação ao cristão, o texto os descreve como “gente bem aventurada e escolhida por Deus”, “privilegiados por Deus por entenderem os caminhos da disciplina”, “piedosos”, “filhos de uma terra feliz que nutre sentimento de unidade e santidade no seio da Igreja”, “vida de pureza religiosa”, “amparados por Cristo em nome de Deus”, “cumpridor e observante da lei”, “dignos”, “justos”, “sinceros”, “honrados”, “únicos filhos da primitiva Igreja”, “sementes de Deus”, “virtude e graça que agrada a Deus e aos homens”, entre outros predicados morais e religiosos14. 12 13 14 CLM, p. 59-61. CLM, p. 61-63. CLM, p. 63-65. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 58 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Para exaltar ainda mais os combatentes cristãos evidencia-se, mais uma vez, a influência do Tratado da Nova Milícia de São Bernardo quando o sermão adverte constantemente os combatentes para se não esquecerem de que nessa campanha haviam sido renascidos pelo batismo da penitência e novamente revestidos de Cristo, o que os tornava superiores aos inimigos. Nesta acepção somente o Catolicismo poderia oferecer armas para os homens lutarem contra a cobiça e a desarmonia. [...] Eliminai, pois, a inveja que deita a perder a caridade e alimenta a discórdia que corrói e mirra o corpo não lhe permitindo manter a saúde e o vigor, pois a peste da inveja enquanto dilacera a alma, consome o corpo e mata nele o que parece ter de bom [...] É necessária, pois, a prática do amor, coisa que entre os maus não diríamos propriamente amor, mas simultaneidade; na verdade, não há amor senão entre os bons, pois não há amor consistente a não ser que haja afecto de ambas as partes. A guarda deste amor ou caridade é a inocência que é considerada de tanta virtude e graça que agrada a Deus e aos homens [...] A inocência, na verdade, repele o ferro, embota o fio das espadas, detém os inimigos, repele as intenções dos maus, pois por maravilhoso juízo da Providência divina, sempre há alguém de mau espírito e consciência torpe é certo e seguro que um obstáculo o segue para não actuar contra a inocência 15. A passagem acima é apenas um exemplo do que se esperava de um verdadeiro guerreiro cristão para vencer os inimigos da fé, uma vez que abandonar estes e outros vícios era perpetrar uma guerra justa, principalmente porque ela possibilitava banir daquelas terras homens que provocavam ruínas, que geravam devastações, que fustigavam as Igrejas, que matavam religiosos. E acrescenta: Que há efetivamente no litoral hispânico que tenha surpreendido o vosso olhar e que não demonstre senão traços de memória da sua devastação e vestígios da derrocada? Quantos destroços de cidades e de igrejas percebestes nele pelo olhar ou pelas informações dos seus habitantes? Por vós chama a Madre Igreja, já quase de braços mutilados e de rosto disforme, reclamando o sangue de seus filhos e a vingança por vossas mãos. Clama, sim clama: ‘Executai a vingança nos estranhos, exorcizai os povos’16. A partir dessa exaltação, o texto emprega uma linguagem beligerante contra a presença dos muçulmanos na Península Ibérica, já que eles geravam ou eram “violentos”, “injuriosos”, “homicidas”, “salteadores”, “adúlteros”, “ímpios”, “parricidas”, entre outras características, de modo que era necessário eliminá-los. Para o autor, tal ação não consiste em atrocidade quando se castiga com retidão em nome de Deus, mas sim num ato piedoso e justo 17. 15 16 17 CLM, p. 65-67. CLM, p. 67-69. Sobre a formulação medieval de guerra justa, consultar GARCÍA FITZ, F. La justificación religiosa de la guerra: el concepto de la guerra santa. In: La edad media, guerra e ideología, justificaciones religiosas y jurídicas. Madrid: Silex, 2003. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 59 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 [...] Fazei guerra justa com o zelo da justiça, não com o fel da indignação. ‘A guerra justa, aliás, diz o nosso Isidoro, é a que se faz por declaração para reaver o que é nosso ou com o fim de expulsar os inimigos’; e porque é justa a causa de ‘punir homicidas, sacrílegos e envenenadores, a efusão de sangue não é homicídio’. Também ‘não é cruel quem elimina os cruéis’. Ou ‘quem elimina os maus, pelo facto mesmo de serem maus, e tem razões para os matar, é ministro do Senhor’18. Para que a viagem ganhasse ainda mais as dimensões sagradas em sinais prodigiosos, o autor transformou a extensão espacial a percorrer em um caminho de provações. Os cruzados se submeteriam, assim, a uma prova de superação, cuja finalidade primordial era alcançar os lugares que outrora pertenciam aos verdadeiros e únicos cristãos, mas que naquele momento estavam ocupados pelos inimigos da fé. Para exemplificar essa questão, o autor utilizou como metáfora uma disputa celestial entre duas grandes nuvens, uma branca e outra negra. A nuvem de cor branca representaria os cristãos, e a nuvem de cor negra os muçulmanos. Como desfecho da disputa, o relato mostra a cor branca como vencedora, ou seja, uma vitória dos seguidores de Cristo sobre os adeptos de Maomé. Com isso a narrativa projetava para os soldados cristãos uma expectativa de vitória predestinada e sem precedentes 19. [...] Foi o caso que umas nuvens grandes e resplandecentes que vinham connosco dos lados das Gálias nos apareceram a irem ao encontro de outras grandes nuvens de farrapos negros que vinham de terra firme; eram como fileiras em linha de batalha e juntando cada qual as suas alas esquerdas entraram em luta com ímpeto extraordinário, umas, a modos de infantaria ligeira, vindas da direita e da esquerda davam a impressão de saltarem para o combate, outras pareciam tornear as demais para encontrarem uma entrada, umas tantas pareciam penetrar noutras de modo e, depois de nelas entrarem, esvanecê-las como se fossem de vapor; umas levadas para cima outras para baixo, ora parecendo quase a tocar nas águas ora a perder-se do olhar nas alturas. Quando finalmente, a grande nuvem, que nos acompanhava desde as nossas terras, arrastou consigo toda a impureza do ar de tal modo que parecia ficar para além dela uma espécie de azul extremamente límpido, no seu movimento dominou todas as outras que vinham de terra, como que proclamando vitória dispôs as prisioneiras na sua frente e, só, assumiu o domínio do espaço celeste enquanto as outras todas se começaram a desvanecer ou, se alguma pequenita ficava, víamo-la refugiar-se junto da cidade, enquanto nós clamávamos: “Eia, a nossa nuvem venceu! Eia, Deus está conosco! Está em dispersão a força dos inimigos. Estão a ficar perturbados, pois o Senhor os dissolverá”20. 18 19 20 CLM, p. 69. Para uma leitura sobre a simbologia religiosa presente no Cerco de Lisboa e em outras guerras peninsulares durante a Idade Média, consultar COSTA, R. da. A Guerra na Idade Média: Um estudo da mentalidade de Cruzada na Península Ibérica. Rio de Janeiro, Edições Paratodos, 1998. CLM, p. 75. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 60 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 O autor conclui o sermão fazendo um paralelo entre o passado bíblico e realidade presente, pois pretendia justificar o uso da violência contra os muçulmanos a partir de experiências passadas, principalmente em situações em que, ao seguirem a vontade de Deus, os homens já tinham realizado guerras legítimas, como o homicida e parricida Abraão, o implacável Finéias, o rigoroso Elias, o zeloso Simão Cananeu, entre outros. Para ele, os cristãos deveriam seguir o exemplo de Abraão, que fez guerras contra idólatras, ou de Finéias, filho de Eleazar, que matou heréticos para livrar o povo de Israel de uma praga que o afligia, ou ainda de Elias, que defendeu Yahweh contra o culto a Baal. Nesse aspecto, o autor rememorava o passado e fundamentava a veracidade de seus argumentos numa tradição veterotestamentária muito usada na Península a fim de corrigir o presente ao comparar os muçulmanos aos idólatras, heréticos e adoradores de um falso Deus. Sobre a relação entre passado e presente como legitimador da história, Juan António Estrada afirma que […] Cualquier movimiento que surge en la Iglesia tiene que integrarse dentro de las estructuras e instituciones existentes. Por eso, retrospectivamente, cada teología buscó legitimar la vida religiosa, vinculándola a otros acontecimientos cristianos anteriores. Lo primero es la realidad histórica, luego viene la tematización teológica y a búsqueda precursores, influencias y antecesores 21. Para justificar, ainda mais, a necessidade de expulsão dos inimigos da fé cristã, o autor descreveu Lisboa como um local paradisíaco a ser conquistado. Com isso, mais uma vez, o mundo maravilhoso se revelava, e a cidade de Lisboa oferecia uma possibilidade de concretização material e espiritual de muitos dos anseios dos cristãos. Contudo, insiste a narrativa, ela estava ocupada pelos mouros, o que impossibilitava os soldados de aproveitar a abundância de seus recursos naturais, da fertilidade do seu solo, onde tudo que se plantasse se colheria, assim como do rico comércio que enriqueceria a todos. Não bastasse isso, a cidade oferecia águas com propriedades medicinais que podiam curar diversas doenças. E, o mais atrativo para a sociedade guerreira da época, éguas que se reproduziam apenas com o sopro do vento. [...] Tem ouro e prata e nunca faltam produtos de ferro. Predomina a oliveira. Nada fica nela por cultivar ou é improdutivo nem fica sem trazer uma messe ambulante. Não amanham o sal, mas escavam-no. [...] Até os terrenos áridos estão recobertos de pastos. É famosa por muitos gêneros de caça. [...] É saudável de ares. Tem, por outro lado, esta cidade banhos quentes. [...] Próximo fica o castelo de Sintra, a uma distância de umas oito milhas, local onde há uma fonte puríssima, cujas águas, segundo dizem, servem para curar a tosse e a tísica, pelo que quando os moradores ouvem alguém a tossir depreendem que não é natural dali [...]. Nos seus campos espinoteiam éguas 21 ESTRADA, J. A. La vida religiosa y el laicado. In: Religiosos en una sociedad secularizada: Por un cambio de modelo. Madrid: Editorial Trotta, 2008, p. 21. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 61 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 de surpreendente fecundidade, pois, ao serem bafejadas pelos favónios, concebem do vento e, depois, atacadas pelo cio copulam com os machos, assim se acasalando com o sopro das brisas22. Conquanto apresentasse a cidade com essas características, quando os cruzados cristãos começaram a entrar, encontraram uma realidade caótica, com ruas abarrotadas de pessoas vivendo em promiscuidade. Isso ocorria, segundo o autor, porque não havia entre eles forma alguma de limite e cada um impunha sua própria lei, o que atraía gente de toda parte do mundo, principalmente os mais viciados. De acordo com o relato, os muçulmanos transformaram Lisboa em um viveiro de toda a licenciosidade e imundície23. Antes que se iniciasse o cerco da cidade, que ocorreria em 1 de julho daquele ano, o autor descreveu uma série de eventos, tais como: a montagem dos acampamentos, as diversas tentativas de conciliação com os muçulmanos, a presença e as negociações do rei D. Afonso Henriques com os cruzados, os difíceis acordos e deliberações e, principalmente, a pressão dos cristãos sobre os seus oponentes para desocupar a cidade. Nesse episódio, o autor destaca a importância do Arcebispo de Braga e do bispo do Porto como negociadores e motivadores da batalha que se avizinhava. O Arcebispo de Braga iniciou o seu discurso afirmando que a religião dos seguidores de Maomé é um equívoco: “O Deus de paz e de amor retire dos vossos corações a venda do erro e vos converta a si” 24. Em diversas passagens a narrativa afirma que os cristãos vinham em nome da paz e desejavam a paz, porém reivindicavam a cidade como um direito natural e sagrado, tomada e conservada pelos muçulmanos por meio da pilhagem. [...] Fostes vós que viestes da terra dos mouros e dos moabitas e raptastes fraudulentamente o reino da Lusitânia a um rei vosso e nosso. São inúmeras as depredações que se fizeram e continuam ainda a fazer sobre as cidades e aldeias com suas igrejas desde esse tempo até hoje [...]25. O discurso do bispo foi concluído projetando que a violência que se praticaria durante a tomada da cidade era culpa dos próprios muçulmanos, pois se tratava de um povo que praticava uma religião doentia. [...] Tende em atenção o vosso dinheiro. Tende ao menos em atenção o vosso sangue. Aceitai a paz enquanto vos é favorável, pois é bem verdade que é mais útil uma paz nunca posta em causa que outra que se refaz com muito sangue; de facto, é mais agradável a saúde nunca alquebrada que a que foi recuperada depois de graves doenças e sob ameaças de medidas forçadas e exigências extremas pra ficar a salvo. É grave e fatal a doença que vos atinge; outra virá 22 23 24 25 CLM, p. 77-79. CLM, p. 79. CLM, p. 93. CLM, p. 95. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 62 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 se não tomardes uma resolução salutar: ou ela se extingue ou vós sereis extintos [...]26. A resposta supostamente dada por parte dos muçulmanos também expôs, entre outras possibilidades de leitura, uma visão negativa sobre aquela cultura e sobre aquela religião, já que foram considerados intransigentes nos acordos, provocadores, culpados pela violência, blasfemadores, conscientes de que cometiam pecados. [...] Quanto a esta cidade, ao que me parece, foi ela vossa em tempos; mas agora é nossa; no futuro talvez seja vossa. Isso, no entanto, será da vontade divina, enquanto Deus quis, tivemo-la nós; quando não quiser, não a teremos. [...] Seja-nos pois grato o que a Deus for grato, Ele que tantas vezes livrou o nosso sangue das vossas mãos; não deixamos de olhar para Ele e para as suas disposições, e com razão, por isto: porque Ele não pode ser vencido e porque tem sob o seu domínio todos os males e, por outro motivo, mais importante ainda, porque é Ele quem nos sujeita aos infortúnios e às dores ou às injurias. [...] Mas, para que hei-de demorar-vos mais? Fazei o que estiver ao vosso alcance. Nós, o que for da vontade de Deus27. Aqui, percebemos, portanto, que o uso da violência por parte dos cruzados já fazia parte da “lógica” da guerra cristã. Como afirma Riley-Smith, a violência não era um mal intrínseco, mas moralmente neutro, pois o seu valor moral derivava das intenções de seus perpetradores. Ainda segundo esse autor, a partir de um ponto de vista teórico, era possível conceber uma violência “boa”, e ações repressivas “justas”, ideia que constituía uma das bases do conceito medieval de guerra. Somando-se a isto, completa o autor, era a convicção de que Deus estava intimamente relacionado com as estruturas e os acontecimentos políticos, haja visto que este mundo seria o resultado da sua vontade e a violência servia para justificar uma reação imprescindível contra a injustiça ou a agressão 28. Como se pode perceber no relato do cruzado inglês, os mouros são descritos como obstinados a continuar nos seus erros. A essa teimosia, o bispo do Porto rebateu enquadrando-os como extremistas incorrigíveis: Vós, como é vosso hábito, fixais num ponto apenas o motivo e o objetivo da vossa obstinação e esperais pelo acontecer dos fatos e das desgraças. Ora, é frágil a esperança e débil a confiança que não procede do próprio valor, mas depende da miséria alheia [...] 29. Segundo o documento, antes de 21 de outubro de 1147, data em que a cidade foi efetivamente ocupada, os cristãos assediaram Lisboa e se dedicaram aos preparativos da 26 27 28 29 CLM, p. 95. CLM, p. 97-99. RILEY-SMITH, Op.Cit., p. 31. CLM, p. 99. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 63 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 batalha construindo máquinas de guerra, elaborando as melhores estratégias, organizando e dividindo os exercícios cruzados, tudo isso com dedicação e fé na vitória. Os muçulmanos, ao contrário, zombavam dos cristãos, ameaçando-os e os insultando, [...] cuspindo, urinando e fazendo gestos opróbios aos nossos 30. Segundo o relato, os maometanos, por meio desses abusos e dessas desonras, professaram contra Deus, motivo pelo qual haveriam de ser castigados. Desse modo, a narrativa transforma a vitória dos cristãos e, consequentemente, a derrota dos muçulmanos em um resultado previsível da própria vontade de Deus. Isso acontecia porque a justiça divina os mantinha obcecados. Quantas vezes por nós foram instados, quantas vezes lhes foram caucionados os seus direitos e bens, com a condição de saírem livremente da cidade para onde quisessem ou lhes foi admitido que ficassem em posse plena de tudo, desde que nos entregassem a fortaleza da cidade! Mas nunca o nosso Deus permitiu que a sua obstinação terminasse senão na pior e extrema desonra. Estava, efetivamente, nas previsões de Deus que sobretudo nestes tempos se daria o castigo aos adversários da Cruz através de homens de pouco valor, não importa quem eles fossem. De facto, tal como depois nos apercebemos, Deus tinha-os entregue a paixões de ignomínia31. Como uma espécie de balanço final da reconquista da cidade, a parte derradeira do texto é reservada para justificar a vitória cristã, assim como a maneira como ela foi reconstruída após a expulsão dos muçulmanos. O texto reforça a ideia de que o triunfo dos cruzados, ainda que muitos soldados cristãos insistissem em se afastar de uma guerra justa e desejada, também proporcionaria a reconciliação com o verdadeiro Deus e à obediência a Ele, caso contrário [...] sereis semelhantes aos que ultrajaram a Cristo com bofetadas e lhe cuspiram no rosto ou lhe bateram na cabeça e lhe colocaram em cima a coroa de espinhos 32. Assim, o verdadeiro cristão é aquele que não comete qualquer pecado e os fazem diferentes dos mouros que profanam a fé ao macular a cruz, ou como fizeram outrora os judeus, que martirizaram o corpo de Cristo. Ainda mais, o texto afirma que Deus, na sua sabedoria, havia criado e redimido os pecados dos homens enviando seu filho, o qual somente era possível reencontrar por meio da Igreja. Colocar a Igreja Católica como depositária da justiça e da guerra, como nos diz o fragmento abaixo, revela que o ensejo fundamental do verdadeiro cristão estaria na defesa e propaganda dos valores em que assenta a sua crença. Neste sentido, a fé vinculada à Igreja, apresenta-se como valor objetivo, ainda que para isso seja necessário praticar atos de 30 31 32 CLM, p. 105. CLM, p. 107. CLM, p. 119. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 64 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 violência contra aqueles que ela considera desprezíveis e imorais 33. Para fundamentar o emprego derradeiro da violência contra os muçulmanos, o relato do cruzado inglês afirma que os ocupantes da cidade de Lisboa são os seres mais ignominiosos do mundo. Para mais, afirma ainda, que eles concebem Cristo de forma errada, e que somente a Igreja de Roma sabe distinguir a verdadeira missão do filho de Deus. [...] Ora, o Filho de Deus, tal como a Igreja católica acredita e venera, assumiu a natureza humana para nela sofrer o que era próprio do homem. É este o remédio dos homens tão grande que nem se pode pensar quão grande seja. Ó remédio que a todos dá conforto, que elimina o que é supérfluo, que guarda o indispensável, repara o perdido, corrige o depravado! [...] 34. Embora em diversas partes da narrativa o autor Osberno assegure que a cidade seria tomada com o único objetivo de restabelecer a paz e a ordem sob os preceitos cristãos, mostra-nos que os juramentos feitos pelos cristãos não se concretizaram, uma vez que no assalto final foram cometidos saques e iniquidades contra todos os habitantes da cidade, independentemente da idade, do sexo ou da fé que eles professavam. Podemos considerar, portanto, que o texto sobre o cerco da cidade de Lisboa espelha os ideais cristãos que almejavam a libertação de Jerusalém. Lisboa figura muito mais que uma paragem necessária para o abastecimento, uma vez que nela habitam os “inimigos da fé” e, ao reconquistarem-na, revelaram, por meio de suas ações, o sentido e o espírito de uma verdadeira guerra santa. Outra questão importante para compreensão do texto, e não pode ser esquecido, o autor pertence ao universo mental das Cruzadas e, possivelmente, reunia funções sacerdotais e guerreiras. Adotou um ideal de guerra propalado por São Bernardo de Claraval, e por meio dele construiu uma narrativa que recuperava diferentes vozes com um desejo fervoroso de superação e de mudança, cujas expressões máximas traduzem-se em bens materiais e em conforto espiritual, ainda que para isso tenham lançado mão das armas e da violência contra os consideram inimigos da fé católica. 33 34 PIKAZA, Xabier. Violencia y religión en la Historia de Occidente. Valencia: Tirant lo Blanch, 2005, p. 189. CLM, p. 121. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 65 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 A Trama da História na concepção de povo nas Siete Partidas The weft of History in the concept about people in the Siete Partidas Aline Dias da Silveira* Universidade Federal de Santa Catarina Resumo Abstract O artigo a seguir pretende aplicar uma perspectiva de análise que tem como pressuposto o entrelaçamento de aspectos e conjunturas históricas. De acordo com a perspectiva apresentada, propõe-se analisar a concepção de povo na obra Siete Partidas, percebendo-a como um ponto de interconexão na trama maior da História. A análise desses fios da História demonstra que a construção da ideia de povo nas Siete Partidas – uma tentativa de construção identitária – não se configurou somente a partir da conjuntura histórica de Reconquista, repovoamento e disputas nobiliárquicas da Castela do século XIII. Para entender esta construção é necessário identificar e analisar também os fios e interconexões do entrelaçamento transcultural mediterrânico. This article aims to apply an analytical perspective that presupposes the intertwining of historical aspects and conjunctures. Some threads of a small part of the great historic fabric are reconstituted, demonstrating the interlacements that transcend themselves in weaving of an idea. According to the perspective presented, the concept of people is analyzed is studied as a point interconnected in the larger scheme of history. The analysis of these threads of history shows that the construction of the idea of people in the Siete Partidas was not configured solely from the historical conjuncture of Reconquista, repopulating and disputes nobiliary in the thirteenth-century of Castile. To understand this construction, it is also necessary to identify and analyze the threads and interconnects of the transcultural intertwining. Palavras-chave: entrelaçamentos da História; Siete partidas; povo; microcosmo; macrocosmo. Keywords: interlacements of History; Siete Partidas; people; microcosm; macrocosm. ● Enviado em: 18/10/2014 ● Aprovado em: 25/11/2014 * Professora Adjunta e coordenadora do curso de História da Universidade Federal de Santa Catarina, coordenadora o Núcleo Interdisciplinar de Estudos medievais – Meridianum CNPq/UFSC, é membro NEMED CNPq/UFPR. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 66 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 No tecido histórico, reconstituído pelo Historiador, os fios e os entrelaçamentos que originam os conceitos e definições não são propícios a delinear centros, mas sim pontos de intersecção. A definição de povo nas Siete Partidas1 constitui um bom exemplo destes entrelaçamentos, onde diversas concepções se interseccionam. Nessa exposição, a fontes serão percebidas como vórtices culturais, por representarem o cruzamento de diversas correntes do pensamento, transformadas pelo movimento e pelas circunstâncias históricas. No desenvolver do artigo, será demonstrado como as concepções de povo, terra e rei nas Siete Partidas foram intimamente construídas dentro da visão neoplatônica de reino. Essa relação foi construída e expressa de forma harmônica, com tons ontológicos, e em perfeita consonância com a percepção de mundo que faz da reunião entre micro e o macrocosmo a lei essencial do Universo. O artesão dos fios da trama a ser apresentada chamou-se Afonso X de Castela. O rei Dom Afonso foi poeta e amante do conhecimento, sua corte tornou-se conhecida pela reunião, convivência e colaboração de intelectuais de diferentes lugares e credos. Principalmente, nas traduções do árabe para o Castelhano, trabalhavam juntos judeus, mouros e cristãos2. Francisco Márquez Villanueva descreve o ambiente intelectual da Castela do século XIII, relacionando-o com a tradição da cultura Toledana: La vida española venía haciendo posibles en determinados ambientes unas condiciones únicas para la colaboración intelectual entre gentes de diversas religiones. El intercambio científico en que asienta la tarea alfonsí era en España un fenómeno decididamente urbano y centrado mayoritariamente sobre Toledo. Una tradición única y autóctona para la cual moros y judíos, y no ya clérigos, encarnaban el ideal de la más alta cultura profana. 3 Através de seu scriptorium4 e patrocínio de intelectuais, Afonso ficou conhecido na história com o epíteto de “o Sábio”. Nascido em 1221, era filho de Fernando III e Beatriz da 1 2 3 4 Neste artigo será utilizada a transcrição das Siete Partidas feita e glossada por Gregorio Lopez em 1555 e reeditada em 2004: ALFONSO EL SABIO. Las Siete Partidas. Gregório Lopez (org.). Salamanca, 1555. (edição renovada, Madrid, 2004). PROCTER, Evelyn. Alfonso X de Castilla Patrono de las Letras y del Saber. Manuel González Jiménez (trad.), Murcia, 2002. (Biblioteca de Estudios Regionales, Bd. 38). 132; ROTH, Norman. “Les collaborateurs juifs à l’oeuvre scientifique d’Alfonse X”. In: BARKAI, Ron. Chrétiens, musulmans et juifs dans l’Espagne médiéval: de la convergence à la expulsion. Paris, 1994, pp. 203-225; DÍES BRASA, Mariano. Alfonso X El Sabio y los Traductores españoles. Cuadernos Hispano-americanos, 410, 1984, pp. 21-33. MÁRQUES VILLANUEVA, Francisco. El Concepto Cultural Alfonsí. Madrid: Editorial Mapfre, 1995, p.69. Obras desenvolvidas na corte de Afonso X: Legislativas: Especulo (1254, 1255, depois de 1276), Fuero Real (1255), Siete Patidas (1276), Setenario; Históricas: Primera Crónica General de España, General Estoira; Traduções: Picatrix ou Gayat al-hakim, Lapidario, Libros de Astromagia, Liber Razielis (cabala), Libro de los secretos de la naturaleza, Libro de las formas y de las imagénes, Tetrabiblos ou Liber Quadripartitum (Ptolomeu), Cánones de Al–Battani, Libro conplido de los iudizios de las estrellas, Los quatro libros de la octava esfera y de sus cuarenta y ocho figuras con sus estrellas, Libro de la alcora o sea Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 67 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Suábia, neto de Alfonso IX de Leão e Bisneto de Afonso VIII de Castela. Teve um reinado que durou de 1252 a 1284, quando faleceu. Sua obra legislativa, bem como suas práticas, deixa descortinar as ambições de centralização de poder frente a uma forte nobreza de ricoshomens5. H. Salvador Martinez em sua biografia sobre Afonso X, fala de uma “era alfonsí” remetendo-se ao Prólogo das Tablas alsonsíes, as quais afirmam: Et este el reinado del Señor rey don Alfonso, que sobrepujó en saber, seso et entendimiento, ley, bondat, piedat et nobleza a todos los reyes sabios. Et por esto tovimos por bien de poner por comienzo de era ell año en que comenzó a reinar este noble rey, por cabsa que se use et manifieste esta era, ansí como se usaron te manifestaron las otras eras antes della, porque dure et quede la nombradía deste noble rey para siempre. Et posiemos el comienzo deste año sobre dicho 1252 ser comienzo desta era, et posiémosle nombre la ‘era alfonsí’.6 Salvador Martínez comenta que pela quantidade de Biografias de Afonso X que já foram escritas, “hay que reconocer que los científicos que trabajaron en las Tablas fueron de uma clarividência impresionante”7. Entre as biografias escritas nas últimas décadas estão: H. Salvador Martínez, Alfonso X, el Sabio, una Biografía, Madrid: Ediciones Polofemo, 2003; F. Perez Algar, Alfonso X, El Sabio, Biografía, Madrid: Studium Generalis, 1994; M. González Jiménez, Alfonso X, El Sábio: 1252-1284, Palência: Disputación Provincial, La Olmeda, 1993; J. F. O´Callaghan, The Learned King, The Reign of Alfonso X of Castile, Philadelphia: University of Pennsylvania,1993; A. Ballesteros Beretta, Alfonso X, El Sabio, 2ª ed., Barcelona: El Albir, 1984. Para o presente artigo serão consultadas as Biografias de H. Salvador Martinez e Joseph F. O’Callaghan, essa última na tradução para o espanhol (Universidad de Sevilla, 1999). Do material O material que constitui os fios deste artigo, ou seja, a fonte principal, é a obra Las Siete Partidas, a mais completa obra legislativa do scriptorium afonsino. As Partidas foram escritas 5 6 7 el globo celeste (construção de astrolábio); Libros del saber de astronomía, Tablas astronomicas, Libro de las Cruzes; Literárias: Cantigas de Escarnio, Cantigas de Amor, Cantigas de Santa Maria; Alguns colaboradores de Afonso X: Boaventura de Siena, Isaac ben Sid (el Rabbi Zag) e Jehuda ben Moses Cohen, Juan D’aspa, Bernardo el Arábigo, Johannes de Cremona, Egidio Teobaldi de Parma, Roberto Anglicus (Robert Scotus), Hermanus Alemanus e Juan Gil Zamora. SAVASTANO, Gladys I. Lizabe de. “El título XXI de la Segunda Partida y la frustración política de Alfonso X”. Bulletin of Hispanic Studies, n. 4, 1993, pp. 393-402. ALFONSO EL SABIO. Las Tablas de los movimientos de los cuerpos calestes del ilustrísimo rey Don Alonso de Castilla. J. Martinez Gázquez ed.. Murcia: Academia Alfonso X el Sabio, 1989, Prólogo. SALVADOR MARTÍNEZ, H. Alfonso X, el Sabio, una Biografía. Madrid: Ediciones Polofemo, 2003, p.11. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 68 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 em língua romance, o castelhano, baseadas em fontes de diferentes tradições e conhecimentos da Filosofia, do Direito, da História e da mística medieval, além de ser também um Speculum8, um Espelho de Príncipes, como o autor do prólogo da obra esclarece: (…) E por esta razõ fezimos señaladamente este libro: porque siempre los reys del nuestro señorio se catẽ enel ansi como en espejo: e vean las cosas que an en si de enmẽdar, e las enmiẽden, e segund aquesto que fagan en los suyos.(…)9 Para além dos tratados de filosofia, os Specula ou Espelhos de Príncipes transcendem as discussões entre o poder temporal e espiritual, para concentrar-se na vida prática, administrativa e legislativa do reino. O Speculum é um gênero, cuja função é aconselhar o “príncipe”, de como esse deveria proceder e de como deveria ser a estrutura do reino. Os Espelhos de Príncipes aparecem na Península Ibérica desde os primeiros séculos da ocupação omíada. Os governantes muçulmanos buscavam conselhos nestes livros, de acordo com os quais o dever essencial do “príncipe” seria a justiça. Os Specula foram buscados no legado persa, o qual o Islã adaptou, construindo uma unidade entre os valores religiosos e políticos 10 dentro do movimento do translatio studiorum 11 medieval, como será apresentado no decorrer deste trabalho. No século XIII, foi despertado o interesse por esse tipo de literatura entre os reinos cristãos da Península Ibérica, sendo que Jaime I de Aragão e Afonso X de Castela foram os precursores nas traduções destas obras para o idioma regional. Eles poderiam, dessa forma, encontrar conselhos de como governar e organizar um reino com grande diversidade cultural. O estudo recente de Irina Nanu, desenvolvido na tese defendida em 2013 na Universidade de Valência, trata da relação da Segunda Partida com a tradição dos Specula Principum12. A autora analisa as estratégias discursivas e conceituais, bem como os recursos retóricos e simbólicos, nos quais estariam sustentados o ideário político afonsino e as influências aristotélicas nas Siete Partidas. A respeito da obra de Aristóteles na corte de Afonso X, é 8 9 10 11 12 Ver NITSCHKE, August. Naturerkenntnis und politisches Handeln im Mittelalter: Körper, Bewegung, Raum. (Stuttgarter Beiträge zur Geschichte und Politik, Bd. 2.) Stuttgart 1967; ROSENTHAL, Erwin I. J.. “La filosofia política en la España musulmana”. Revista de Occidente, 78, 1969, pp. 259-280; SILVEIRA, Aline Dias da Silveira. “Relação, Corpo, Natureza e Organização Sociopolítica no Medievo: revelação, ordem e lei”. In: NORDARI, E. S.; KLUG, J.. História Ambiental e Migrações. São Leopóldo: Oikos, 2012, pp. 147-162. ALFONSO EL SABIO. Las Siete Partidas. Gregório Lopez (org.). Salamanca, 1555. (edição renovada, Madrid, 2004), Prólogo, p.4. ROSENTHAL, Ibem, p. 259. FLORIDO, F. Leon. “Translatio Studiorum: translado de los libros y diálogo de lãs civilizações en la Idade Média”. Revista General de Información y Documentación, 2005, v. 15, n. 2, 51-77. NANU, Irina. La Segunda Partida de Alfonso X el Sabio y la tradición de los Specula Principum. Universitat de València, 2013. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 69 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 importante observar, que o aristotelismo que chega à Península, através dos escritos árabes, já constitui uma mescla com obras neoplatônicas, seja na obra política de um PseudoAristóteles, como a Poridat de las Poridades13 (secretum secretorum), ou nas obras de astrologia, tão requisitadas por Afonso X: O universo de que astrólogo tem necessidade não é o de Aristóteles, é o do aristotelismo árabe no qual os elementos de astronomia e teologia natural e astral disseminados no livro lambda da metafísica foram retomados, trabalhados, repensados num quadro teórico distinto do aristotelismo de Aristóteles: o emanatismo neoplatônico.14 Nas Partidas, encontram-se também menções ao direito visigótico, Liber Iudiciorum (654), e ao canônico. A obra é constituída de sete partes, pois, de acordo com seu prólogo, todas as coisas no Universo são divididas em sete: o movimento (para cima, para baixo, direita, esquerda, frente, atrás e ao redor), os planetas, as esferas planetárias, as zonas climáticas, os metais e as ciências15. O fundamento para a base da divisão setenária jaz na relação simpática e harmônica entre a obra e o universo, típico pensamento medieval de raízes neoplatônicas, que percebe a relação entre a parte e do todo numa intrínseca e ontológica constituição16. As letras do nome de Afonso, ALFONSO em castelhano, aparecem no início de cada Partida: Primeira Partida, “A Seruicio de Dios...”; Segunda Partida: “La fé catholica de nuestro señor...”, e assim por diante até a Sétima Partida, “Oluidança e atreuimiento son...”. A e O também representam a primeira e a última letra do Alfabeto grego, Alfa e Omega. Ou seja, Afonso está presente na obra do princípio ao fim, uma simbiose construída entre obra e artífice. Autores como Kenneth H. Vanderford17, Lapesa18 e Craddock19 veem nas Siete Partidas a continuação da obra o Setenario, a qual segue o mesmo princípio desta relação setenária. No entanto, os estudos recentes de Georges Martin apontam para uma data de composição do Setenario dentro do último terço do reinado de Afonso: “La coincidencia entre nuestra obra y las últimas redacciones de la Primera partida (para no decir la 13 14 15 16 17 18 19 PSEUDO-ARISTOTELES. Poridat de las Poridades. Lloyd A. Kasten (org.). Madrid, 1957 LIBERA, Alain de. Pensar na Idade Média. Paulo Neves (trad.). São Paulo: Ed.34, 1999, pp.243-244. Ver também: LIBERA, Alan de. A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 2011, p. 83. ALFONSO X, Las Siete Partidas, Ibedem, Prólogo, p. 4. MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: Pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010, pp. 90-9.1 ALFONSO EL SABIO. Setenario. Kenneth H. Vanderford (ed.). Buenos Aires, 1945. LAPESA, Rafael. “Símbolos y palavras en el Setenario de Alfonso X”. Nueva Revista de Filologia Hispanica, 26, 2, 1980, 247-261. CRADDOCK, Jerry R. “El Setenario: última e inconclusa refundición alfonsina de la Primera partida”. Anuario de Historia del Derecho Español, 56 (1986), pp. 441-446. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 70 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 última) indican que la composición del Setenario debe situarse, no al principio, sino en la segunda mitad y muy probablemente en el último tercio del reinado de Alfonso X.” 20. A data da composição das Siete Partidas é controversa e ainda não encontrou um consenso. Para citar dois autores que discutem este tema, J. R. Craddock 21 considera a composição da obra entre 1256 e 1265 com uma refundição em 1272, já para Alfonso GarcíaGallo22 as Siete Partidas só teriam obtido sua identidade de tratado doutrinal em 1290 no governo de Sancho IV. A primeira publicação das Partidas foi feita em 1491 por Alfonso Díaz de Montalvo, a qual foi seguidamente impressa até ser superada pela edição de 1555 de Gregorio Lopez 23. As citações das Siete Partidas apresentadas neste artigo são transcritas da edição de 1555, reeditada em 2004 pelo Boletín Oficial Del Estado. Neste ponto, é necessário esclarecer o que significa a autoria do rei que manda fazer uma obra a partir do entendimento de Afonso e seus colaboradores, segundo os quais: “El Rey faze un libro, non por quel lo escriua com sus manos, mas por que compone las razones del, e las emiendas, et yegua, e enderesça, e muestra la manera de como se deuen fazer, e desi escriue las qui el manda, pero dezimos por esta razón que el rey faze o libro”24. De acordo com essa passagem da General Estoria , o rei faz uma obra não por que a escreve com suas próprias mãos, mas porque estabelece os objetivos e assuntos da obra, os reúne, os corrige e cuida para que sejam escritos na forma adequada. Dessa forma, apesar de as Siete Partidas serem escritas por diversas mãos anônimas, a obra exprime ainda a visão de mundo e o projeto político de Afonso X , ou seja, Afonso se percebe como o autor de suas obras legislativas, o rei é aquele que pode legislar (partida I, titulo I, ley XII). Do fio da Antiguidade ou do Translatio studiorum O fio da influência dos textos da Antiguidade é difícil de ser determinado exatamente. No entanto, esse pode ser vislumbrado pelas menções feitas nas Siete Partidas a Sêneca, 20 21 22 23 24 MARTIN, Georges. “De nuevo sobre la fecha del Setenario”. E-Spania : Revue électronique d’études médiévales, nº 2 (2006), disponível on-line: http://e-spania.revues.org/381?lang=pt, acessado em 20/08/2013. CRADDOCK , opus cit. GARCÍA-GALLO, Alfonso. “La obra legislativa de Alfonso X. Hecho e hipóteses”. Anuario de Historia de del Derecho Español. 54 (1984), pp. 97-161. PROCTER, 2002, opus cit., p.63 ALFONSO EL SABIO. General Estoria. Antonio Solalinde (ed.). 2 Tomos. Madrid, 1930, 477b. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 71 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Isidoro de Sevilla, Aristóteles, Cícero, Valério, Catão, Boécio, Agostinho de Hipona25, sendo Aristóteles o mais citados na segunda Partida. Os textos de Aristóteles chegam a Afonso e a seus colaboradores através, principalmente, das fontes muçulmanas, em sua maioria traduções e comentários de obras gregas e persas sob a luz do neoplatonismo. Francisco Márques Villanueva fala do pouco interesse de Afonso em mandar traduzir as obras latinas para o vernáculo, seu maior interesse estava nas traduções dos textos árabe para o castelhano. Como hijo de sus tiempos carecía de ojos y oídos para La tradición clásica, de que su vasto proyecto usó únicamente en un plano auxiliar y no como un objetivo o meta de cultura que para sus reinos deseaba. En un momento en que comienza a perfilarse una avidez inicial por traducciones de clásicos latinos, en torno a Alfonso X sólo se lanza traducciones del árabe. 26 No prólogo do Libro de las Cruzes, é possível perceber os motivos, pelos quais Afonso interessa-se principalmente pelos textos da ciência árabe: (…)Onde este nostro sennor sobredicho, qui tantos et diuersos dichos de sabios uiera, leyendo que dos cosas son en el mundo que mientre son escondidas son prestan nada, et es la una seso encerrado que non se amostra, et la otra thesoro escondido en tiera, el semeiando a Salamon en buscar et espaladinar los saberes, doliendo se de la perdida et la mengua que auian los ladino en las sciencias de las signifitiones sobredichas, fallo el Libro de las Cruzes que fizieron los sabios antigos que esplano Queydalla, et faula en las costellationes de las reuolutiones de las planetas et de sus ayuntamentos (..)27 De acordo com o prólogo do Libro de las Cruzes, em paralelismo com o rei bíblico Salomão, o rei sábio de Castela aprendeu que duas coisas muito importantes não valem de nada se escondidas: tesouro e conhecimento. Por isso, resolve revelar os saberes dos antigos, assim, lamentando a perda que os latinos tiveram da ciência, ele busca os árabes. A busca e tradução dos textos árabes na corte de Afonso X inserem-se na história do movimento do pensamento neoplatônico e peripatético na Idade Média. Nesse ambiente do scriptorium afonsino, foram traduzidas, organizadas e comentadas obras de várias correntes do pensamento filosófico, político e científico, herdeiras de uma genealogia que pode ser remetida à academia platônica de Atenas. Essa herdeira do neoplatonismo pagão 28 foi 25 26 27 28 ALFONSO EL SABIO. Las Siete Partidas – antologias. Francisco López Estrada ed. Madrid: Editorial Castalia, 1992. (Obres Nuevos), introdução, p.35. MÁRQUES VILLANUEVA, Francisco. El Concepto Cultural Alfonsí. Madrid: Editorial Mapfre, 1995, p.60. ALFONSO EL SABIO. Libro de las Cruzes. Lloyd A. Kasten; Lawrence B. Kiddle (orgs.). Madrid, 1961, Prólogo, p.1. LIBERA, Alan de. A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 2011, p.26; HAMEEN-ANTTILA, Jaakko, “Continuity of Pagan Religious Traditions in Tenth-Century Iraq” In: Antonio Panaino y Giovanni Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 72 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 transladada para o Império Persa, depois de fechada pelo imperador Justiniano no início do século VI. Em 532, os filósofos Damáscio, Simplício, Eulâmio, Prisciano da Lídia, Hérmias, Diógenes e Isidoro de Gaza estabeleceram um espaço para a filosofia pagã na cidade de Harram (Carrher dos romanos) no norte da Mesopotâmia. A filosofia grega e os estudos astronômicos/astrológicos Harrianos29, influenciaram a obra dos Irmãos da Pureza (século X) em Basra na organização de uma enciclopédia do saber Universal, a Ras’il Ikhwân al-Safâ30. É principalmente a partir do estudo da matéria dessa obra, que Maslama de Madrid compõe a obra Gayat al-Hakim, o “Objetivo dos Sábios”. Não é surpreendente que, três séculos depois, o rei Sábio mande traduzir essa obra em seu scriptorium sob o nome de Picatrix, ao lado de outras traduções do árabe para o castelhano, cujas matérias também expressam os conhecimentos sobre astrologia/astronomia e astromagia, como o Libro Razielis e o Libro de Astromagia. No capítulo “Em torno de Alfonso el Sabio” do livro El Pequeño Mundo del hombre. Varia Fortuna em la Cultura Española de Francisco Rico, o autor desenvolve a conexão da obra neoplatônica dos Irmãos da Pureza com o corpus literário afonsino, partindo do PseudoAristóteles Poridat de las Poridades e chegando ao Setenario e às Siete Partidas.31 Esse movimento do saber e seus desdobramentos inserem-se no fenômeno que Alain de Libera chama de translatio studii e/ou translatio studiorum32, os quais definem o movimento de textos e intelectuais, principalmente, da direção leste em direção ao oeste do globo. O espaço principal seria o mediterrâneo e o oriente médio, a delimitação cronológica seria entre século VI, com o fechamento da escola platônica em Atenas e sua migração para a Pérsia e, posteriormente, a mesopotâmia, e o século XVI 33, quando processos intelectuais e político levam o translatio studii desses séculos a um caráter marginal, processos que já 29 30 31 32 33 Pettinato (eds.). Ideologies as Intercultural Phenomena. Melammu Symposia III, Bologna, International Association for Intercultural Studies of the MELAMMU project, 2002, pp. 89-107 DOZY, Reinhart. “Nouveaux documents pour l’etude de la religion des Harraniens”. In: Michael Jan de Goeje (ed.), Actes du Sixième Congrès International des Orientalistes tenu en 1883 à Leide, Leiden, Brill, 1885, vol. 2, pp. 283-366; PINGREE, David. “The Sabians of Harran and the Classical Tradition”. International Journal of the Classical Tradition, 9 (2002), pp. 8-35. LIBERA, 2011, p.115; RICO, Francisco. El Pequeño mundo del hombre. Varia fortuna de una idea en la cultura española. Madrid: Alianza Editorial, 1986, pp.64-65. CALLATAŸ, Godefroid de. “Magia en alAndalus: Rasa’il ijwan al-Safa’, Rutbat al- akim y Gayat al-hakim (Picatrix)”. Revista Al-Qantara, n. 31, V 2, jul.-dez. 2013, pp. 97-344. RICO, Francisco. El Pequeño mundo del hombre. Varia fortuna de una idea en la cultura española. Madrid: Alianza Editorial, 1986, pp.59-80. LIBERA, Alan de. A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 2011, p. 17. FLORIDO, F. Leon. “Translatio Studiorum: translado de los libros y diálogo de lãs civilizações en la Idade Média”. Revista General de Información y Documentación, 2005, v. 15, n. 2, 51-77. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 73 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 iniciariam no século XIII34. No entanto, mesmo considerando essas definições, Alain de Libera ainda expressa a transcendência e complexidade das mesmas: Que nos desculpe Notker, o Alemão, mas nem todos os caminhos saem de Roma, nem de Atenas e, tampouco, todos levam a Paris. Há várias translationes studiorum nos confins da Antiguidade e da Idade Média: uma é feita de Atenas para a Pérsia e da Pérsia para Harran (a não ser que essas duas translações formem uma só); outras se fazem de Alexandria para os mosteiros sírios dos séculos VII e VIII; um terceiro movimento vai da cultura siríaca para a cultura árabe, de Alexandria a Bagdad .(...) Nessa mesma época, o Ocidente cristão é filosoficamente estéril. Só desperta do longo sono com uma nova translatio, que vem de Bagdad para Córdoba e, daí para Toledo, isto é: do Oriente muçulmano para o Ocidente muçulmano e, de lá, para o Ocidente cristão.35 Enfrentam-se na definição de translatio studiorum os mesmos problemas que em relação à definição e limites da Idade Média. Pois, a restrição de mil anos para entender os movimentos do pensamento é ainda mais complicada que os marcos encontrados para definir os limites do medievo, por ser o pensamento um elemento da longa duração histórica, ou como observou Fernand Braudel: “os quadros mentais também são prisões de longa duração”36. Por isso, o entendimento da percepção de mundo na obra de Afonso X precisa transcender geografias e temporalidades. Da natureza do rei, da terra e das gentes José Antonio Maravall salienta que nem o direito romano, que não necessariamente considera o território como um valor político, nem o pensamento aristotélico, do qual o conceito de território tem como base a polis, podem oferecer o entendimento que a obra jurídica e histórica de Afonso dão ao termo território37. De fato, na obra de Afonso, aparece uma descrição de território que, apesar de grande, está essencialmente relacionado com a vida e história das comunidades. Dessa percepção do espaço, desenvolve-se o sentido de terra como pátria nas Siete Partida. Na partida I, titulo I, ley II, sob o título “Del derecho natural, e delas gentes”, aparece a seguinte referência: 34 35 36 37 FLORIDO, Translatio Studiorum, 69. LIBERA, Alan de. A Filosofia Medieval, p. 17. BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 50. MARAVALL, José Antonio. Estudios de Historia del Pensamiento Español. 3.ed., Madrid: Ediciones Cultura Hispánica, 1983. (Serie Primeira - Edad Media), pp. 100-101. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 74 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 (..)E este fue hallado con razon, e otrosi por fuerça, porque los omes non podrian bien biuir entresi en concordia, e en paz si todos non usassem del. Ca por tal derecho como este cada vn ome conosce lo suyu apartadamente. E son departidos los campos, e los terminos de las villas. E otrosi son tenudos los omes de loar a Dios,e obdescer a sus padres, e a sus madres, e su tierra que dizen en latin patria (…). Podemos perceber, nessa passagem, significativa diferença de percepção do espaço em comparação com a forma feudal. Na circunstância do feudo, a relação dos grupos humanos com a terra não é a de naturalidade, mas de espaço de trabalho e domínio do Senhor, o qual não estava necessariamente ligado à terra por naturalidade. Por outro lado, o termo patria, nesta ley, evoca a naturalidade do direito e do dever de “loar a Dios, e obdescer a sus padres, e a sus madres, e su tierra”. Veremos, no decorre deste trabalho, que obedecer à terra significa, simbioticamente, na obra de Afonso, obedecer ao rei. Essa simbiose passa pelo próprio conceito de natureza nas Siete Partidas que poderia ser interpretado como a forma de ligação entre o rei, a terra e o povo. Nesse sentido, o amor entre ambos é um dever natural: “Natureza e vassallage son los mayores debdos que ome puede auer con su Señor. Ca la natureza le tiene siempre atado para amar lo e non yr contra El.” (partida II, titulo XVIII, ley XXXII). Antonio Maravall aponta para a questão de que Afonso ainda considera o caráter feudal da terra (partida IV, titulo XXV- “de los vassalos” - e XXVI – “de los feudos”), mas, ao mesmo tempo, é possível já perceber transformações, presentes, inclusive, nas exigências da nobreza da época. Um exemplo que Maravall nos oferece é o caso de uma entre tantas reivindicações dos nobres durante o governo de Afonso. Sabemos que foi costume na Península Ibérica medieval a doação de terras a nobres de outros reinos, principalmente, por dois motivos: atuação nas batalhas e por casamento. De forma que os laços de vassalagem entre os membros da nobreza não se restringia a um único e mesmo Senhor. No entanto, na Crónica Del Rey Don Alfonso El décimo é descrita a reivindicação dos vassalos para que Afonso entregasse terras apenas aos homens de Castela e Leão 38. Outro exemplo encontra-se no reinado de Afonso XI, nas Cortes de Carrión, onde a mesma reivindicação é colocada, ou seja, que as terras fossem exclusivamente concedidas aos “naturales” súditos do rei39. Aqui, a relação entre reino e natureza das gentes apresenta uma ligação identitária com o espaço. Esta percepção é expressa, muitas vezes, nas Siete Partidas, quando o direito e o 38 39 CRÓNICA Del Rey Don Alfonso El décimo. In: Crónicas de los reys de Castilla. Caetano Rossel (ed). Madrid, 1953, cap. LXVI. CORTES de los Antiguos Reinos de León y Castilla. Colmeiro Cortes (ed.). T.1, 1861, p. 326. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 75 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 dever de um grupo são evocados. Outro exemplo ilustrativo é a partida II, título XIX, ley III, que trata do dever do povo em defender sua terra: Como deue guardar el pueblo la tierra, e venir en hueste, contra los que se alçassen en ella (...)Mas de la que se leuãta de suyos mismo, desta nasce mayor deshõrra, como en querer los vassallos egualar se con el Señor, e contender cõ el, orgullosamente, e con soberuia. E es otrosi mayor peligro, por que tal leuãtamiẽto como este, siempre se mueue cõ grãd falsedad, señaladamẽte por fazer engaño e mal. (…)E porẽde, por todas estas razões, deuẽ todos venir, luego que lo sopierẽ, a tal hueste, nõ atẽdiẽdo mãdado del rey: ca tal leuãtamiẽto como este, por tã estraña cosa, lo touierõ los antiguos, que mãdaron, que ninguno, nõ se pudiesse escusar, por hõrra de linaje, ni por priuãça que ouiesse cõ el rey, nin por preuillegio, que touiesse del rey, ni por ser de ordẽ, si nõ fuesse ome encerrado, en claustra o los que fincassẽ para dezir las horas, que todos viniessen ende, para ayudar, cõ sus manos, o cõ sus cõpañas, o cõ sus aueres. E tan grãd sabor ouierõ de la vedar, que mãdarõ, que si todo lo al fallesciesse, las mugeres veniessen, para ayudar a destruyr el fecho, como este. Ca pues que el mal, e el daño, tañe a todos, nõ touieron por bien, nin por derecho, que ninguno se pudiesse escusar, que todos nõ veniessen a defraygallo. Mesmo que em outros titulos (partida II, titulo XXI -“ de los cavalleros, e de las cosas que les conuiene fazer” ) ainda possamos perceber o entendimento das três ordens sociais (os que oram, os que lavram a terra e os guerreiam), o dever e o direito do povo em defender sua terra transcende as ordens, já que, como entende Afonso, todos estão em perigo se a terra e o rei estão ameaçados. Segundo a ley citada acima, ninguém deveria ser excluído de defender sua terra, até mesmo as mulheres são exortadas a combater. O dever do povo de defender sua terra sobrepõe outros deveres de forma que ninguém necessitaria da convocação ou permissão real para exercê-lo. O projeto político de Afonso é cunhado por uma visão de mundo orgânica, a qual era compartilhada por seus contemporâneos. Segundo esta percepção, o espaço assume o sentido de elemento de ligação, de conexão entre os viventes do espaço (rei e seu povo) de maneira que esses formam uma unidade, o reino. E, a fusão do rei com a terra é a de um consorte, a exemplo da Partida II, titulo XI, ley I - “Como deue El Rey amar a su Tierra”: Tenudo es el Rey non tan solamente de amar, e honrrar e guardar a su pueblo, assi como dize enel titulo ante deste, mas aun a la tierra misma, de que es Señor. Ca pues que el e su gẽte, biuen de las cosas, que enella son. E han della, todo lo que les es menester, con que cũplen e fazen todos sus fechos derecho es la amen, e la honrren, e la guarden. No desenvolvimento de um sentimento de identidade regional, o povo seria gente da terra, “filhos” do rei. Uma explicação para o desenvolvimento de tal proposta régia se encontra no contexto de reconquista. A alta nobreza estaria mais ligada aos laços de sangue e Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 76 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 vassalagem que ao sentimento de pertencimento a um espaço. Dessa forma, mesmo com o aumento do território ao sul e as reivindicações por terras, essas antigas famílias não permaneciam no território conquistado, o que trouxe problemas ao processo de repovoamento de Andaluzia, empreendido mais de uma vez por Afonso X 40. Não só problemas para o repovoamento, mas, consequentemente, para as forças de defesa, havendo a necessidade de associação do rei com a pequena nobreza de privilégios (que receberam benefícios do rei por seus feitos). Afonso legitima esta nobreza, desprovida da fidalgia, na partida II titulo IX, ley VI: “nobles son llamados em dos maneras. O por linage, o por bondad, e como quier que el linage es noble cosa, la bondad la passa e a vence”. O rei e seus antepassados buscaram também a fidelidade das cidades, concedendo privilégios àqueles que pudessem se armar e manter cavalos para participarem das batalhas como seus caballeros villanos41. Em meio a este contexto de reconquista e a oposição da alta nobreza frente ao poder real, a ideia de um corpo do reino, onde o rei é a cabeça, o coração e a alma, toma maior relevância e sentido para o projeto da coroa castelhana de centralização de poder. Como podemos aferir na partida II, titulo I, ley V a seguir: Vicarios de Dios son los Reys cada vno en su reyno, poestos sobre las gentes, para mantener las en justicia e en verdad quando en lo temporal, bien assi como el Emperador en su imperio. Esto se muestra complidamente en dos maneras. La primera dellas, es espiritual, segund lo mostraron los profetas, e los santos aquien dio nuestro Señor gracia, de saberlas cosas ciertamente, e de fazer las entender. La outra es, segundo natura, assi como mostraron los omes sabios que fueron conoscedores delas cosas naturalmente. E los santos dixeron que el Rey es puesto en la tierra en lugar de Dios, para cõplir la justicia, e dar a cada vno su derecho. E porende lo llamarõ coraçon, e alma del pueblo. Ca assi como yase el alma enel coraçon del ome, e por ella biue el cuerpo, e se mantiene, assi enel Rey yaze la justicia que es vida e mãtenimiento del pueblo de su señorio. E biẽ otrosi como el coraçon es vno, e por el recibẽ todos los otros miembros vnidad, para ser un cuerpo, bien assi todos los del reyno maguer seã muchos (porque el Rey es e deve ser uvo) por esso deuẽ otrosi ser todos vnos conel, para servir le, e ayudar le, en las cosas, que el ha de fazer. E naturalmente dixerõ los sabios que el Rey es cabeça del reino, ca assi como dela cabeça nascen los sentidos, porque se mãdan todos los miembros del cuerpo, bien assi por el mandamiento que nasce del Rey, que es señor e cabeça de todos los del reyno, se deuen mandar e guiar e auer vn acuerdo conel para obedescer le e amparar e guardar e acrescentar el reyno. Onde el es alma e cabeça e ellos miembros. 40 41 GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel. Entorno a los origines de Andalucia. La repoblación del siglo XIII. 2ª edição. Sevilha, 1988. (Colección de Bolsillo, Bd. 83), p. 26. O’CALLAGHAM, Joseph F. El Rey Sabio. El reinado de Alfonso X de Castella. Manuel González Jiménez (trad.). Sevilla: Universidad de Sevilla, 1999, pp. 127-130. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 77 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Pela representação organicista do reino, a partir da qual o rei é a cabeça, o coração e a alma, podemos perceber a compatibilidade deste pensamento associativo com as ambições e práticas políticas de Afonso pela centralização de poder. Política que lhe trouxe problemas perante a nobreza. Gladys Lizabe Savastano identifica na segunda partida a frustração política de Afonso perante a nobreza, pois a maioria das leis parece estar a serviço do projeto de centralização política de Afonso42. De fato, a alta nobreza castelhana revoltou-se contra o rei Afonso X em 127243, alegando que esse não seguia os antigos costumes, pois Afonso pretendia terminar com o julgamento especial dos nobres, deixando este julgamento para seus alcaldes44, além de introduzir mudanças inspiradas no direito romano, o qual fundamentaria o caráter centralizador da lei. Em harmonia com a metáfora do corpo, temos a definição de povo na partida II, titulo X, ley I: Cvydã algunos, que el pueblo es llamado la gẽte menuda, assi como menestrales, e labradores. E esto nõ es ansi. Ca ãtiguamẽte en Babylonia e en Troia e en Roma, que fuerõ logares muy señalados, ordenarõ todas estas cosas, cõ razõ, e pusierõ nome acada vna segund que cõuiene. Pueblo llamã el ayuntamẽto de todos los omes comunalmẽte, e de los mayores, e de los medianos, e de los menores. Ca todos son menester: e nõ se puedẽ escusar, porque se hã de ayudar, vnos a otros, por que puedã bien biuir e ser guardados, e mantenidos. O povo não seria apenas a “gente miúda”, mas todos os que chegaram àquela terra e convivem em uma comunidade. Sejam grandes, médios ou pequenos, todos são importantes. A peculiaridade desta definição de povo é que a naturalidade, não passa, necessariamente, pela origem, mas pela forma de convivência e a interdependência entre os membros daquela sociedade, bem como daqueles com a terra, da qual vivem. Na partida II, titulo I, ley V, citada mais acima, aparece a palavra natura como “maneira” e a palavra naturalmente como algo que parece pertencer a uma lei essencial, primordial, enquanto necessária, no entanto, não original. Georges Martin desenvolve um interessante estudo sobre os conceitos natureza, natura e natural presentes nas Siete Partidas, indicando um sentido vertical para o conceito de natureza, quando relacionado à ligação entre o rei e o povo, e horizontal, quando relacionado 42 43 44 SAVASTANO, Gladys I. Lizabe de. “El título XXI de la Segunda Partida y la frustración política de Alfonso X”. Bulletin of Hispanic Studies, n. 4, 1993, pp. 393-402. O’CALLAGHAN, 1999, opus cit., pp. 231-280; SALVADOR MARTÍNEZ, 2003, opus cit,. pp. 317-356. Alcalde deriva da palavra árabe andaluz alqádi, que corresponde no governo de Afonso X aos seus juízes nomeados. Ver Diccionario Medieval Español. Desde las Glosas Emilianenses y Silenses (s.X) hasta el siglo XV. Martin ALOSO PEDRAZ (ed).. 2 T., Salamanca, 1986. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 78 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 à ligação entre as pessoas que vivem em um mesmo território45. Eu não concordo com o autor no que toca a verticalidade do conceito. Pois, apesar de algumas passagens poderem indicar certa verticalidade na forma como a palavra natureza é empregada nas Siete Partidas, o sentido que prevalece é o do dever de amar e, aqui, não há verticalidade. O rei é o coração e a alma do reino (terra+povo). Dessa forma, dentro da linha política e da visão de mundo que marcam as Siete Partidas é possível identificar funções relacionais entre terra, rei e povo: 1. Partida 2.10.2 : “Como el Rey deue amar e honrrar e guardar a su pueblo”; 2. Partida 2.13 “Qual deue el pueblo ser en conoscer en honrrar, e en guardar al Rey”; 3. Partida 2.11.3 “Como el Rey deue guardar su Tierra”; 4. partida 2.19.3 “Como deue guardar el pueblo la tierra, e venir en hueste, contra los que se alçassen en ella”. A partir dessas relações, identificamos um triângulo de proteção e imbricações: rei, povo, terra. O entendimento do projeto político de Afonso X, exige buscar outros fios deste entrelaçamento histórico, para além das reivindicações da nobreza e das circunstâncias das Reconquistas que formaram esta nobreza tal como ela atua no século XIII. Para nos aprofundarmos na busca dos mecanismos do pensamento fundamentador da proposta política de Afonso, faz-se necessário compreender o desenvolvimento do entendimento sobre a função de rei na relação simpática entre micro e macrocosmo, a qual também emerge nas Siete Partidas: Aristoteles en el libro que fizo a Alexandro, de como auia de ordenar su casa e su señorio, diole semejança del ome al mundo: e dixo assi como el cielo, e la tierra, e las cosas que enellos son, fazen vn mũdo, que es llamado mayor, Otrosi, el cuerpo del ome, con todos sus miembros faze otro que es dicho menor. Ca bien assí como el mundo mayor hay moebda, e entendimiento, e obra, e aconcordança e departimiento, otrosi lo ha el ome segund natureza. E deste mundo menor, de que el tomo semejança, al ome, fizo ende otra, que a semejo ende al rey e al reino, e en qual guisa deue ser cada vno ordenado, e mostro que assi como Dios puso el entendimiento en la cabeça del ome, que es sobre todo el corpo, el mas noble lugar, e lo fizo como rey, e quiso que todos los sentidos, e los miembros, tambien los que son de dentro, que nõ parecen: como las de fuera, que son vistos, le obedesciesen, e le siruiessen, a si como señor. (partida II, titulo IX, ley I) 45 MARTIN, Georges. “Le concept de ‘naturalité’ (naturaleza) dans les ‘Sept parties’, d’Alphonse X le Sage”. E-Spania : Revue électronique d’études médiévales, nº 5 (2008), disponível on-line : http://espania.revues.org/10753, acessado em 20/08/2013. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 79 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Na ley transcrita acima, o cerne do pensamento de Afonso e os modelos de sua visão de mundo esclarecem a relação entre terra, povo, rei e, consequentemente, a construção de uma identidade do reino a partir da terra que tem um rei, ou uma “cabeça”, como diria Afonso. Por esse fio, aproximando e articulando os trechos aqui apresentados, povo seria a reunião de todos os homens em comunidade, dos maiores, dos medianos e dos menores, pois todos seriam importantes, não se devendo excluir alguém, porque eles hão de se ajudar uns aos outros, para que possam bem viver, serem protegidos e mantidos, como os membros de um corpo, o mundo menor (microcosmo), cuja cabeça é o rei. Bem como o céu, a terra e as coisas que neles estão formam um mundo chamado de maior (macrocosmo) que possui movimento, entendimento, concordância e partes, assim, se constituem o mundo menor, o corpo humano, e o reino - dentro do esquema associativo do pensamento medieval 46. Do fio do Micro e do Macrocosmo Na Idade Média, de acordo com o sistema associativo de compreensão do mundo natural, o ser humano foi percebido como um pequeno mundo, o microcosmo. Os olhos, por exemplo, entendidos como iluminadores da percepção, foram associados ao sol e à lua nas esferas fixas dos céus47. Assim, todos os membros do corpo humano foram relacionados em tal sistema, no qual o paralelo cósmico-antropológico apresenta o ser em fina sintonia com o universo, percebido como um todo de relações simpáticas 48. Sobre este sistema de percepção da natureza e do próprio ser humano, Aaron Gurjewitsch49 afirma que a relação do ser humano com a natureza na Idade Média não consistiria na relação entre sujeito e objeto, mas do encontrar a si mesmo no mundo externo e na percepção do cosmo como sujeito. O ser humano encontrou na natureza sua continuação e, em si mesmo, a descoberta do universo. O corpo humano, chamado na Antiguidade de microcosmo, foi percebido, então, não apenas como uma pequena parte do todo, mas também como sua pequena réplica, o pequeno mundo. 46 47 48 49 FRANCO, Hilário Jr.. “Modelo e Imagem: o pensamento analógico medieval”. In: Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais. Belo Horizonte, 2003, p.39-58. Esta imagem aparece sob a influência do neoplatonismo a partir de seu entendimento sobre emanação e simpatia entre os corpos sub e supralunares. Sobre o neoplatonismo: REALE, Giovanni. Plotino e o neoplatonismo. São Paulo, Loyola, 2008. PIERRE, Marie-Joseph. “Le chant entre terre et ciel. Corps et membres dans les Odes de Salomon” . In: GIGNOUX, Philippe (org.). Ressembler au Monde: Nouveaux documents sur la théorie du macromicrocosme dans l’antiquité orientale. Brepols, 1999, pp. 55-78. (Bibliothèque de l’École des Hautes Études Section des Sciences Religieuses, Bd. 106). P.55. GURJEWITSCH, Aaron J.. Das Weltbild des mittelalterlichen Menschen. Gabriela Lossack (trad.). München: C.H.Beck, 1997. (Beck’s historische Bibliothek, Bd. 5), p.57. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 80 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 As obras filosóficas e políticas do medievo esclarecem o microcosmo como completo em si mesmo, assim como, o macrocosmo foi entendido no sistema associativo entre pequeno e grande mundo. Na alta Idade Média, a imagem do universo da cristandade latina era, em essência, o modelo platônico. Isso, não porque as ideias de Platão combinariam com o pensamento cristão melhor que outras da Antiguidade, mas porque os textos desta época foram fundamentados a partir das obras de autores neoplatônicos como Agostinho (354-430), Macrobios (entorno de 400) e Martinus Capella (em atividade cerca 410-429)50. A considerar esse contexto medieval neoplatônico e peripatético, retornemos à ley I do titulo IX da Partida II: “Ca bien assí como el mundo mayor hay moebda, e entendimiento, e obra, e aconcordança e departimiento, otrosi lo ha el ome segund natureza”. As três primeiras características do mundo mayor podem ser entendidas melhor à luz de uma passagem do Setenario que explica a quinta “manera” da Metafísica: La quinta llaman intellectus, que quiere tanto dezir commo entendimiento obrador que obra ssobre todas las cosas, em cada vna segunt ssu natura, e es assí commo el spíritu em el cuerpo del omne quel ffaze beuir e mouer e obrar. Et por esso lo llamaron los philósophos alma del mundo. 51 Ou seja, o entendimento opera (obra), dando movimento às coisas, segundo sua natureza. Dessa forma, o rei, a cabeça do reino, à semelhança do corpo, recebe de Deus o entendimento obrador e alma del mundo . “Et acordanza et departimiento” expressam o princípio fundamental de ambas as obras: unidade na variedade, harmonia na pluralidade. O entendimento, além de dar movimento, principalmente, unifica a múltipla diversidade das coisas. Essa é a função do rei. Na corte afonsina, a expressão da percepção simpática entre ser humano e universo, reunidos pela alma do mundo, apresenta-se nos Specula, então, da seguinte forma: como produtos exemplares do entrelaçamento transcultural em um contexto de translatio studiorum. Nesse entrelaçamento, a partida II, titulo IX, ley I, tem como base também o texto Poridat de las Poridades 52, do qual a versão latina ficou conhecida como Secretum Secretorum. Poridat de las Poridades é uma tradução do texto árabe Sirr al-asra, cuja autoria foi, na época, atribuída a Aristóteles, mas, atualmente, entende-se que é um texto de síntese, que expressa muito mais a interpretação tardo-antiga e medieval de uma percepção neoplatônica a partir 50 51 52 ENDRESS, Gerhard. Der arabische Aristoteles und sein Leser. Physik und Theologie im Weltbild Alberts des Großen. (Lectio Albertina, Bd. 6.) Munster, 2004, p. 21. ALFONSO EL SABIO. Setenario. Kenneth H. Vanderford (ed.). Buenos Aires, 1945, p. 39. PSEUDO-ARISTOTELES. Poridat de las Poridades. Lloyd A. Kasten (org.). Madrid, 1957. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 81 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 das traduções árabes53. O texto foi construído em forma de cartas de Aristóteles a Alexandre, quando esse se encontrava no oriente. O livro ocupa-se de conselhos sobre o exercício de reinar, as boas maneiras do rei, a justiça, funcionários, estratégia de guerra e organização do exército54. Poridat de las Poridades utiliza ainda a metáfora do corpo para explicar como o rei deveria entender a responsabilidade de seus funcionários: Sepades que la primera cosa que Dios fizo una cosa simple spiritual et mui conplida cosa, et figuro en ella todas las cosas del mundo, et pusol nonbre seso. Et del salio otra cosa non tan noble quel dizen alma, et pusolos Dios con su uirtud en el cuerpo del omne; et pues el cuerpo es commo cipdad, et el seso es commo el rey de la cipdad, et alma es como el su aguazil quel sirue et quel ordena todas sus cosas; et fizo morar el seso en el mas alto logar et en el mas noble della, et es la cabeça del omne. Et fizo morar el alma en todas las partidas del cuerpo de fuera et de dentro, et siruel et ordenal el seso. Et quando conteçe alguna cosa al seso, esfuerçal el alma et finca el cuerpo bivo fata que quiera Dios que uenga la fin. 55 Nessa passagem, identifica-se a influência da analogia micro-macrocosmo da obra de um Pseudo-Aristóteles56 na esfera política. Em comparação com outras fontes da época, percebe-se que a compreensão da relação entre micro e macrocosmo não foi puramente científica, filosófica ou política. O neoplatonismo que fundamenta a emanação e relação simpática dos cosmos é a chave que aproxima as diversas vertentes do pensamento medieval, como observa Carlos Escudé na obra “Neoplatonismo e Pluralismo Filosófico Medieval: um enfoque politológico”: Nuestra travesía filosófica inter-confesional nos ha permitido identificar numerosas paradojas. Hemos comprobado que el neoplatonismo, de origen pagano, fue un fértil punto de encuentro para eminentes pensadores de los tres monoteísmos abrahámicos. Sus sistemas filosóficos se basaron en un emanatismo cuyo origen remoto se encuentra en la filosofía estoica, pero que en manos de Plotino y sus seguidores neoplatónicos fue adaptándose a las necesidades del monoteísmo.57 Se o emanatismo neoplatônico se faz presente nas três religiões abraâmicas em seus desdobramentos medievais, podemos concluir que a expressão do mesmo na obra e na multicultural corte afonsina é uma consequência “natural” do movimento do saber. 53 54 55 56 57 LIBERA, Alain de. Pensar na Idade Média. São Paulo: Editora 34, 1999, pp. 108, 245-248. RICO. Francisco. El Pequeño mundo del hombre. Varia fortuna de una idea en la cultura española. Madrid: Alianza Editorial: 1986, pp.64-73. PSEUDO-ARISTÓTELES, opus cit. p. 47. SILVEIRA, Aline Dias da. Relação corpo, natureza e organização sociopolítica no Medievo: revelação, ordem e lei. In: NODARI, Eunice; KLUG, João. História Ambiental e Migrações. São Leopoldo: Oikos, 2012, pp. 151-166. ESCUDÉ, Carlos. Neoplatonismo e Pluralismo Filosófico Medieval: um enfoque politológico. Buenos Aires: Universidad del CEMA, 2011, p. 61. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 82 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Do Entrelaçamento transcultural De acordo com a trama maior da História, se quisermos compreender o entendimento afonsino sobre o termo pueblo nas Siete Partidas, não poderemos dissociar o que está organicamente representado em sua obra: a identidade do povo construída nas Siete Partidas apoia-se na interdependência de seus membros com a terra e com o rei, independente da origem das “gentes”. A análise desses fios da história demonstra que a construção da ideia de povo nas Siete Partidas - uma tentativa de construção identitária dentro de um projeto político – não se configurou somente a partir da conjuntura de reconquista, repovoamento, disputas nobiliárquicas da Castela do século XIII. Para entender esta construção é necessário identificar e analisar também os fios e interconexões do entrelaçamento trascultural expresso na concepção neoplatônica medieval. Esses Fios perpassam diversas conexões na rede que constituiu o traslatio studiorum na Idade Média. A considerar que a própria expressão traslatio studiorum não dá conta das transformações, desdobramentos e caminhos que assume o movimento do saber na perspectiva da longa duração. As fontes de Afonso e seus colaboradores foram textos provenientes, principalmente, de um passado entrelaçado com a cultura mediterrânica, seja através da vinculação dos bispos visigodos com bizâncio58 ou da corte omíadas de Córdoba e dos reinos Taifas 59. No entanto, a percepção de mundo expressa nas Siete Partidas representa um entendimento que conecta diversas expressões do saber, transcendendo o espaço ibérico, europeu e mediterrânico. A perspectiva apresentada aqui demonstra a importância de aumentar o foco temporal e espacial sobre o medievo: um corpus vórtice, como o do Scriptorum afonsino, precisa ser entendido também pelos cruzamentos e conexões que transcendem as definições de oriente e ocidente. Ao longo dos séculos, são tantos os entrelaçamentos na trama da História que as origens culturais dos pensamentos não são mais possíveis de identificar de forma exata e definitiva. Por outro lado, os mecanismos e as articulações dos desfechos são identificáveis e podem ser analisados e interpretados. Dessa forma, Afonso X e sua obra não estão no centro de origem da ideia de povo na Castela do século XIII - a proposta deste artigo, desde o início, foi a de romper com a ideia de centro e origem – são apenas pontos de intersecção na trama histórica. 58 59 RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, pp. 34-39). RICO, 1986, opus cit., pp.59-80. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 83 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Ideologia da guerra ou ideologia dos guerreiros? Mais algumas interpretações do relato da batalha do Salado (1340) no Livro de Linhagens do Conde Dom Pedro Ideology of the war or ideology of the warriors? Some more interpretations on the account of the battle of Salado (1340) in the Livro de Linhagens of the Count Dom Pedro Stéphane Boissellier* Universidade de Poitiers Resumo Abstract O texto que vou analisar é apenas um dos diversos monumentos destinados a celebrar e recordar a batalha do Salado, ganha pelos exércitos castelhano e português contra o sultão merinida do Marrocos, Abû l-Hassan, e o rei nasrida de Granada, Yusuf. Este texto é conservado, levemente mutilado, enquanto inserção na grande compilação genealógica dita “Livro de linhagens do Conde D. Pedro”; foi inserido na segunda refundição, cerca de 13801383, e parece ter sido redigido de propósito. O seu papel, portanto, é a glorificação da linhagem dos Pereira, através de Álvaro Gonçalves, prior da Ordem do Hospital em Portugal; isso implica que a narrativa da batalha não seja um objetivo em si, mas antes um pretexto a uma escrita épica. A minha análise restringir-se-á à atitude nobiliárquica para com a guerra, entre proeza pagã e cumprimento da vontade divina. The text I’m going to analyze is just one of the several monuments designed to celebrate and remember the battle of Salado, won by the Castilian and Portuguese armies against the Marinid sultan of Morocco, Abu l-Hassan, and the Nasrid King of Granada, Yusuf. This text is preserved, slightly mutilated, while insertion in the large genealogical compilation called “Livro de linhagens do Conde D. Pedro”; it was inserted in the second recasting, about 1380-1383, and appears to have been written on purpose. Their role, therefore, is the glorification of the lineage of the Pereira, through Álvaro Gonçalves, prior of the Hospitalller Order in Portugal; this implies that the narrative of the battle may not be an objective by itself, but rather a pretext for an epic writing. My analysis will be restricted to the nobility attitude toward the war, between pagan achievement and fulfillment of the divine will. Palavras-chave: Batalha do Salado; Livro de linhagens; Conde D. Pedro. Keywords: Battle of Salado; Livro de linhagens; Count D. Pedro. ● Enviado em: 06/06/2014 ● Aprovado em: 07/11/2014 * Possui Doutorado em História Medieval pela Universidade de Nantes, França (1996). Atualmente é professor de História na Universidade de Poitiers, França. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 84 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Apresentação O texto que vou analisar é apenas um dos diversos monumentos destinados a celebrar e recordar a batalha do Salado, ganha pelos exércitos castelhano e português contra o sultão merinida do Marrocos, Abû l-Hassan, e o rei nasrida de Granada, Yusuf 1. Este texto é conservado, levemente mutilado, enquanto inserção na grande compilação genealógica dita “Livro de linhagens do Conde D. Pedro”2 ; foi inserido na segunda refundição, cerca de 13801383, e parece ter sido redigido de propósito. O seu papel, portanto, é a glorificação da linhagem dos Pereira, através de Álvaro Gonçalves, prior da Ordem do Hospital em Portugal; isso implica que a narrativa da batalha não seja um objetivo em si, mas antes um pretexto a uma escrita épica. Do ponto de vista literário, este relato épico é certamente o mais rico e mais “monumental”, colocando nomeadamente o problema, técnico, da introdução do providencialismo clerical no gênero da epopeia profana. Sobretudo, este texto reflete muito evidentemente a versão aristocrática do acontecimento. A minha análise restringir-se-á, portanto, à atitude nobiliárquica para com a guerra3, entre proeza pagã e cumprimento da vontade divina; neste sentido, J. Flori tem sugerido que nunca existiu, depois do século XI, uma teoria da guerra « puramente » teológica, isto é sem qualquer influência da cultura cavalheiresca4. 1 2 3 4 Um inventário comentado destes monumentos é elaborado excelentemente por Bernardo VASCONCELOS e SOUSA, “O sangue, a cruz e a coroa - a memória do Salado em Portugal”, Penélope. Fazer e desfazer a história 2 (1989), p. 26-48. Livro de linhagens do Conde D. Pedro (Portugaliae Monumenta Historica. Nova série, vol. II), ed. de José Mattoso, Lisboa, 1980 (2 vol.), p. 242-257 ; a maior parte deste texto encontra-se no mais antigo fragmento manuscrito da obra – que contém gralhas e adjunções altamente significativas –, que foi editado por si em Livro de linhagens do Conde D. Pedro. Edição do fragmento manuscrito da Biblioteca da Ajuda (século XIV) (Filologia portuguesa), ed. de Teresa Brocardo, Lisboa, 2006 (nas páginas 41-53). A antiga (re)edição anotada de Alfredo PIMENTA, Fontes medievais da história de Portugal I Anais e crónicas (Colecção de clássicos Sá da Costa), Lisboa, 1982 (1e ed. 1948), pp. 211-256 oferece notas filológicas e fatuais. Existe uma boa tradução francesa por Robert RICARD, « La relation portugaise de la bataille du Salado (1340) », Hespéris 43 (1956), pp. 7-27. Algumas das minhas análises seguem largamente Bernardo VASCONCELOS e SOUSA, “Vencer ou morrer. A batalha do Salado (1340)”, em F. Bethencourt e D. Ramada Curto (org.), A memória da nação, Lisboa, 1991, p. 505-514 ; ver também uma excelente contextualização em Fátima R. Fernandes, « O poder do relato na Idade Média portuguesa : a batalha do Salado de 1340 » em Marcella Lopes Guimarães (org.), Por São Jorge ! Por São Tiago ! Batalhas e narrativas ibéricas medievais. Ed. Juruá: Curitiba, 2013, p. 87120. Jean FLORI, « La formation des concepts de guerre sainte et de croisade aux XIe et XIIe siècles : prédication papale et motivations chevaleresques », em Daniel Baloup e Philippe Josserand (éd.), Regards croisés sur la guerre sainte. Guerre, idéologie et religion dans l’espace méditerranéen latin (XIeXIIIe siècle). Actes du colloque international tenu à la Casa de Velázquez (Madrid) du 11 au 13 avril 2005 (Méridiennes, Etudes médiévales ibériques), Toulouse, 2006, p. 133-157. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 85 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Considerações metodológicas prévias “Ideologia da guerra" é uma proposta cuja formulação pode parecer contraditória no seu funcionamento concreto; os que fazem a guerra são "homens de mão", que têm com certeza representações mentais, mas estas nos escapam; os que elaboram esquemas ideológicos complexos são, no mundo cristão, clérigos, canonicamente constrangidos ao pacifismo pessoal e, por conseguinte, bastante ignorantes (pelo menos por experiência pessoal) dos combates. Ao limite, tem-se a impressão de que coexistem práticas guerreiras e uma ética sem relações. Admitindo que as representações do mundo circulam da parte superior para baixo (dos inteletuais para os illitterati) – ideia que é objeto de debates –, é evidente que os clérigos fornecem elementos ideológicos aos guerreiros, mas de maneira bastante desviada, por duas razões. Por um lado, a época feudal forjou um sistema de valores cavalheirescos bastante coerente (proeza pessoal, agressividade e competicão no grupo, lucro material, generosidade…) mas em nítido desfasamento com as orientações da Igreja, até no significado das guerras legalizadas e justificadas pela Igreja, o que põe obstáculos à assimilação dos esquemas clericais relativos à guerra ; por outro lado, a guerra é efetuada num quadro coletivo de obrigações políticas e serviços recíprocos que não necessitam necessariamente justificações transcendentais para os atores: contrariamente ao que induzem as noções de "ferramenta" mental e de "fundamentos" ideológicos, o exercício das armas não precisa de justificações éticas para ter sentido. São os monarcas que podem constituir os mais eficazes propagandistas dos esquemas eclesiásticos junto dos guerreiros. A definição dos discursos sobre a guerra como uma "ideologia" coloca outros problemas; implica nomeadamente uma dimensão agonística, dado que o próprio das ideologias é constituir sistemas, necessariamente fechados, “totalitários” e exclusivos; outro obstáculo conceptual, numa abordagem que permanece fortemente psicológica, é a focalização sobre a violência como dimensão mais problemática (e, por conseguinte, que necessita mais justificação) para os moralistas medievais, enquanto a violência é onipresente nas sociedades tradicionais e contribui mesmo para a ordem do mundo, de acordo com os antropólogos - com efeito, a sua legitimação tem sido realizada muito cedo pelos Pais da Igreja; por último e, sobretudo, o estudo das ideologias é levado a cabo mais pela disciplina filosófica do que pela história sociocultural, portanto sem tomar em conta suficientemente as condições sociais da formação, da circulação e do uso dos motivos ideológicos. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 86 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Na Península Ibérica, pensa-se espontaneamente que a guerra que mais precisa de reforço ideológico é a efetuada contra al-Andalus, dado que parece opôr religiões que reivindicam a exclusividade da verdade. Não se dá atenção suficiente aos conflitos entre reinos cristãos, que se combinam com a Reconquista. Ora, como mostra o discurso pontifical, que os proíbe, são as guerras entre cristãos que mais necessitam justificações morais, no sistema de valores. Por conseguinte, procurou-se, na tradição de Carl Erdmann5, relacionar os discursos da Reconquista com o "espírito de Cruzada" e muito menos com os escritos redigidos aquando das guerras entre cristãos ibéricos – é verdadeiro que estes últimos não são objeto de construções doutas, o que coloca um problema do "efeito de fonte". Uma abordagem antropológica deveria também levar-nos a comparar (apesar da forte divergência formal e funcional das fontes) os relatos de guerra com os textos judiciais de resolução dos conflitos nas sociedades cristãs hispânicas, minorando a ideia segundo a qual o antagonismo é gerado ou pelo menos modulado pela alteridade do inimigo. Os medievalistas refletiram sobre a penetração da noção de guerra santa em Portugal fundando-se, sobretudo, nos escritos clericais, considerando, portanto, não sem razões, que a maior parte das ideias medievais sobre este tema emana de focos culturais estrangeiros ao país; mas a maior parte destes estudos, mesmo recentes, baseia-se nas concepções da guerra santa que foram desenvolvidas nos anos 1930-60 (aquelas de Michel Villey, Alphonse Dupront ou Paul Rousset, para além do próprio C. Erdmann) 6, e visa confrontar as Cruzadas orientais e a Reconquista ibérica. As evoluções recentes da investigação europeia a este respeito (Jean Flori, Pierre A. Bronisch) permitem retomar o problema em termos, ligeiramente diferentes, de interiorização da norma pelos atores das guerras. A noção de "sistema" ideológico chama a atenção para os discursos mais doutos, emanando das autoridades mais influentes, porque são os que constituem um corpus coerente e uma verdadeira doutrina. Ora, a consideração de numerosas outras fontes mostra que não existe, para a quase totalidade dos atores, uma ideologia monolítica da guerra contra o infiel. Esta atenção emprestada às fontes, para evitar reconstituir ficticiamente um sistema ideológico global, que nunca funcionou para o conjunto dos atores sociais, parece-me ser um dos poucos méritos metodológicos do meu primeiro artigo, escrito há mais de 15 anos7… Com 5 6 7 Carl ERDMANN, A ideia de Cruzada em Portugal, Coimbra, 1940. Encontrar-se-á, além de uma análise do léxico medieval, uma presentação clara da evolução historiográfica em Thomas DESWARTE , « La ‘guerre sainte’ en Occident : expression et signification », em M. Aurell et T. Deswarte (éds.), Famille, violence et christianisation au Moyen Âge. Mélanges offerts à Michel Rouche (Cultures et civilisations médiévales, 31), Paris, 2005, pp. 331-349. Stéphane BOISSELLIER, « Réflexions sur l'idéologie portugaise de la Reconquête XIIe-XIVe siècles », Mélanges de la Casa de Velazquez. Antiquité et Moyen Age, XXX-1 (1994), pp. 139-165. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 87 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 efeito, quereria-se que os fragmentos de valores morais presentes nas fontes mais vulgares que são as crônicas sejam fragmentos de um conjunto coerente, que é transmitido da parte superior para baixo. É, por conseguinte, de bom método isolar uma região, um tipo de escrita e um grupo social, para situar-se na boa escala, a da informação realmente utilizada pelos letrados e eventualmente difundida junto do público. Em qualquer caso, para delimitar a articulação entre o concreto da guerra e as representações de que é objeto, parece-me que as fontes mais relevantes são as que utilizam o imaginário dos guerreiros para orientá-lo, dado que revelam indiretamente qual é este imaginário (de acordo com a noção, literária, de "efeito de real", que postula que os motivos propostos devem ser acreditáveis); isto não impede, certamente, que sejam, até a uma data tardia em Portugal, os clérigos a ter a pena. O principal problema é que o desenvolvimento de uma historiografia real e nobiliárquica (tipo que fornece as fontes procuradas) é muito posterior ao fim da Reconquista, em Portugal: ora, os métodos testados sobre os relatos dos combates dos séculos XIV e XV contra os mouros não são aplicáveis às outras fontes, anteriores e oriundas de uma outra tipologia. Na fonte que privilegiei (tardomedieval), alguns elementos compõem uma bricolagem ideológica suficiente para dar sentido à guerra: a motivação da participação no combate, a representação do inimigo, a justificação que autoriza a transgredir o tabu universal do homicídio, o objetivo do conflito; mas não devemos esquecer que estes elementos integram-se num discurso que é de legitimação ou, mais globalmente, de interpretação do mundo, tal como é ou como deveria ser para o comanditário da obra – em outros termos, a justificação é sobretudo uma defesa e ilustração do papel social da nobreza ou da monarquia, e a guerra é apenas objeto que serve a esta intenção. Certamente, existem canais mais específicos para relatar um combate, ou mesmo uma guerra, do tipo das cartas e crônicas das Cruzadas, nas quais o conflito é objeto em si de um discurso; até as crônicas "magrebinas" de Zurara servem para legitimar a nova dinastia de Avis e a sua ambição imperial. A principal dificuldade, contra a qual se chocaram muitos medievalistas, é a personalização da história na cronística medieval, o que faz deste tipo de fontes um material delicado a manipular. De fato, não se devem confundir as atitudes individuais, que podem ser fundamentadas diretamente pela pesquisa da salvação, ou mesmo pela detestação do inimigo, e as dinâmicas sociais (coletivas), que se articulam em redor da guerra, mas sem atribuir-lhe um valor moral específico. E até a noção de "motivação", que é pessoal e psicológica, é também criticável. Os medievalistas, persuadidos de que o dogma cristão é onipresente nos medievais, valorizam, entre as motivações do empenho guerreiro, a busca da salvação, que, contrariamente às doações piedosas, é individual; em realidade, são os constrangimentos Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 88 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 sociais, coletivos, que movem o essencial das ações dos medievais, enviando os guerreiros ao combate sem precisar de "motivação" (= convicção psicológica íntima; podemos supôr que o valor mais fortemente interiorizado é a pressão social, o dever para cumprir para com os outros, vivos e mortos, em outros termos a solidariedade (ou até o "habitus", no sentido de P. Bourdieu, ou seja, uma conformidade inconsciente aos valores). Além disso, do ponto de vista meramente literário, a personalização dos fatos orienta os próprios relatos medievais para a psicologia e torna difícil a exposição pelos autores de uma doutrina ideológica geral e abstracta (por exemplo, o conceito de infidelidade religiosa), para além de incisos éticos pontuais. O contexto e as funções da fonte A confrontação direta com os Mouros termina em 1250 em Portugal, e é necessário esperar quase um século para que aconteça um novo empenho militar maciço de Portugueses contra adversários muçulmanos, aquando da batalha do Salado (1340). Tem-se, por conseguinte, a impressão de certo hiato ideológico e até histórico, mas, dada a estrutura da historiografia portuguesa, as principais crônicas da Reconquista constituem uma redação tardia, muito posterior aos acontecimentos. Portanto, há precedentes bastante próximos do nosso relato, como a passagem da Crónica da conquista do Algarve relativa aos "sete mártires de Tavira" (cavaleiros santiaguistas mortos em emboscada contra os mouros no início dos anos 1240)8. Além disso, os acontecimentos posteriores à Reconquista são a ocasião de uma reescrita da história ; assim, no relato da ocupação de Ceuta, em 1415, a longa exposição histórica, posta na boca do Conde D. Pedro de Meneses para galvanizar a guarnição desencorajada de permanecer em Ceuta, associa à aventura marroquina o passado militar ibérico (visigótico, reconquistador e a lembrança da batalha do Salado) e lembra a especificidade portuguesa (a independência do reino e as figuras reconquistadoras do primeiro rei, Afonso Henriques, e do mestre "português" de Santiago, Paio Peres Correia)9. Mas não devemos esquecer que este texto tem outras funções que inculcar uma ideia nova; ele também confirma a aristocracia nas suas crenças sociais, e, consequentemente, leva 8 9 Cf. Pedro PICOITO, "Os sete cavaleiros de Tavira. História de um culto local", em V jornadas de história Tavira, Tavira, 2006, p. 51-71; mas esta crônica, redigida provavelmente nos anos 1340 (talvez sob a influência da vitória do Salado) para celebrar a ação na Reconquista de um antigo Mestre da Ordem de Santiago, Paio Peres Correia, permaneceu em uso interno da Ordem, e é conhecida só através da sua utilização pela crônica do reino de 1419. Gomes Eanes de ZURARA, Crónica do conde D. Pedro de Meneses (ed. Maria Teresa Brocardo) (coll. « Textos universitários de ciências sociais e humanas »). Fundação Calouste Gulbenkian / JNICT. Lisboa. 1997, cap. 12. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 89 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 uma mensagem que se dirige indiretamente ao conjunto da sociedade e mais diretamente à monarquia – e a introdução da ideia de guerra santa serve antes para reforçar a demonstração da diferença aristocrática. No que concerne ao público imediato, basta confortá-lo nas suas certezas; mas, para o público indireto, que é a Corte e os oficiais régios, é necessário ser persuasivo. Para esse efeito, o artifício literário é duplo: uso de um discurso para inserir a justificação explícita da utilidade social dos nobres, e atribuição deste discurso ao monarca. Além disso, o autor faz proclamar explicitamente aos combatentes que defendem toda a nação contra um grave perigo10, em outros termos enunciam a sua utilidade social – sem dissimular, contudo, que o seu altruísmo dirige-se, sobretudo, aos seus parentes. Mais ainda que para introduzir a ideia de santidade da guerra, uma tarefa tão difícil como a legitimação de um grupo social extremamente díspar, tanto mais com argumentos um tanto capciosos neste caso (o monopólio da guerra), requer de recorrer a um núcleo de representações “conformistas”, simples e fundamentais, que podem ser admitidas até pelos que não as interiorizaram já totalmente. Isto explica o lugar reservado no relato às peripécias militares, que se impõem tecnicamente (na economia narrativa), mas que são também argumentos; demonstram as virtudes “por natureza” dos cavaleiros: proeza, solidariedade e fé. Esta empresa de legitimação de um grupo pelo seu comportamento necessita de um artifício literário, que é a depersonalização dos cavaleiros, permitindo posicionar o seu comportamento como um protótipo social. Este anonimato passa pelo emprego de um qualificativo único, os fidalgos, e pela ausência de qualquer referência precisa aos indivíduos – contrariamente ao que fará, algumas décadas atrás, um cronista como Fernão Lopes, que fornece o seu homérico “catálogo dos heróis” que têm participado na batalha de Aljubarrota. O uso de representações mentais é o principal método dialético. Ora, a psicologia social e as ciências cognitivas podem apoiar a crítica histórica, ajudando-nos a precisar este conceito afinal tão aviltado quanto o seu antecessor, as “mentalidades”; pode-se deduzir dos seus trabalhos que: a) as representações são uma construção tanto social como individual; b) são ativas (orientam a ação) e não são “imagens fixas”; c) têm uma forte resistência à mudança dos dados objetivos; d) são redutoras; 10 P. 246, os cristãos esperam “hoje ser salvos por nós e os nobres cavaleiros de Castela”. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 90 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 e) alteram-se pela sua transmissão. Após ter visto sucessivamente as representações como propostas analíticas e protótipos referenciais, as investigações recentes pensam que funcionam como pequenos “núcleos de sentido” (patterns) que formatam as informações recebidas; consequentemente, funcionam ao mesmo tempo como esquemas cognitivos (conceitos), como explicações do mundo (representações sociais) e como símbolos. Esta abordagem, que vai para além da tradicional “história do pensamento”, permite encarar a recepção dos discursos doutos, fora mesmo do círculo dos intelectuais. Neste relato, redigido cerca de 1380, a concorrência simbólica entre monarquia e aristocracia para instrumentalizar a guerra santa utiliza evidentemente o passado, fonte de qualquer autoridade, o que coloca o problema, inevitável, da “tradição” da Reconquista11. Para o Portugal medieval, que apresenta a originalidade de ter desenvolvido uma expansão ultramarina logo no início do século XV, o problema foi colocado em termos de continuidade. Os medievalistas da época do Estado Novo, retomando o continuismo aparecido nos cronistas logo no início do século XVI12, foram tentados, para fazer do colonialismo português uma missão civilizadora católica, de interpretar as guerras contra os mouros como uma empresa única de defesa da fé desde o nascimento do reino13, empresa na qual a batalha do Salado vem naturalmente constituir o “elo em falta”. Se certas inflexões do discurso são observadas nos textos de propaganda, aquilo reflete talvez mais a evolução dos tipos documentais do que das concepções doutas e, mais ainda, populares da guerra. Se quer-se vincular as correntes ideológicas à conjuntura politicomilitar, pode-se notar que a confrontação, desde 1275, para o controlo do estreito de Gibraltar, nomeadamente entre os Mérinidas de Marrocos e os Castelhanos14, constitui uma 11 12 13 14 A reivindicação anacrônica da Reconquista pela totalidade da aristocracia - da qual uma parte recusou realmente implicar-se - é uma tradição já antiga para 1380, dado que já visível no prologo do mais antigo LL (“o livro velho”), datando de circa 1290, onde o autor afirma que são os nobres que “conquistaram o reino”, em contradição com os relatos contidos neste mesmo livro ; o assunto foi estudado por vários artigos de L. Krus, em especial Luis Filipe Llach KRUS, “O discurso sobre o passado na legitimação do senhorialismo português dos finais do século XIII”, em Idem, Passado, memória e poder na sociedade medieval portuguesa. Estudos (Patrimonia histórica), Redondo, 1994, p. 197-207. Mas trata-se, no fim do século XIV, de reinventar a própria natureza deste combate. É o caso de Duarte Galvão na sua “Crónica de D. Afonso Henriques” (citado por Carla Serapico SILVÉRIO, Representações da realeza na cronística medieval portuguesa. A dinastia de Borgonha (Estudos da FCSHUNL, 16), Lisboa, 2004, p. 85). É a ideia desenvolvida particularmente por António Dias DINIS, “Precedentes da expansão ultramarina portuguesa. Os diplomas pontifícios dos séculos XII a XV”, Revista portuguesa de história, 10 (1962), p. 1-118, mas já tem integrada por autores como A. Pimenta. A “batalha do estreito” é detalhada por P. Guichard, numa análise bem atualizada, em J.-C. Garcin (dir.), Etats, sociétés et cultures du monde musulman médiéval Xe-XVe siècle. Tome I L’évolution politique et sociale (Nouvelle Clio), Paris, 1995, pp. 296-299. Para um bom desenvolvimento sobre as implicações portuguesas neste desafio, ver Bernardo Vasconcelos e SOUSA, D. Afonso IV (1291-1357) (Reis de Portugal, vol. 7), Lisboa, 2006, chap. X (“A batalha do Salado”). Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 91 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 série de conflitos antes que de uma confrontação contínua, dado que os acontecimentos têm pouco relacionamento estratégico entre si; os motivos ideológicos empregados nestas ocasiões para legitimar a ação e animar os combatentes não podem por conseguinte constituir uma construção ad hoc. A ideologia que aparece no relato deve então sair de várias fontes: quer das representações tradicionais procedentes da Reconquista ibérica, quer dos esquemas clássicos da Cruzada de Duzentos, quer das evoluções recentes do “espírito de Cruzada” geradas pela perda da Terra Santa e pela luta contra a heresia. Mas não é certo que se poderá identificar claramente correntes ideológicas com base na nossa fonte; com efeito, as sutilezas e o rigor dos teólogos e dos canonistas são empobrecidos por um discurso produzido em meios bastante pouco letrados e cujo destinatário direto é incontestavelmente a pequena e média nobreza. Temos a sorte que, em Portugal, a nobreza não se tornou, mesmo na baixa Idade Média, um simples elo da monarquia na produção cultural. Certamente, a maioria da aristocracia, sobretudo a que é encenada no relato, toma a sua legitimidade simbólica e a sua força real no serviço do rei; mas a estabilidade das representações mentais perpetua os esquemas globalmente antimonárquicos das velhas linhagens feudais, aquelas que reivindicam uma ascendência fictícia na antiga nobreza condal asturleonesa, portanto anterior à própria monarquia portuguesa – e os LL servem precisamente para forjar as genealogias que integram até a nobreza mais recente, numa espécie de nova redação passadista e fundamentalista. Portanto, aparecem no nosso texto, como em todos os LL, traços da concorrência entre a monarquia e a aristocracia15. Para além desta posição “política”, importante mas talvez não central, o relato tem a função de legitimar a posição eminente do grupo nobiliárquico em relação à toda a sociedade ; isto leva a tomar este grupo como uma globalidade (os fidalgos), o que tem duas consequências diretas : por um lado, o ponto de vista expresso ultrapassa os destinatários diretos do discurso, por outro lado, é em relação à toda a estrutura social – e não somente em relação à monarquia – que o autor deve sublinhar as especificidades da aristocracia. A própria escolha do acontecimento narrado pelo autor revela uma concepção estrutural da sociedade: é um relato de batalha, o que faz da guerra o principal fator da identidade nobiliárquica; mais ainda, é um prélio em campo aberto, com carga de cavalaria, o nec plus ultra do combate cuja 15 Ver a este respeito Stéphane BOISSELLIER, « Les rois, la guerre, les Maures. La (re-)construction de l’idéologie de Reconquête dans une source portugaise généalogico-narrative tardive, les ‘livres de lignages’ », dans C. Carozzi et H. Taviani-Carozzi (dir.), Le pouvoir au Moyen Âge. Idéologies, pratiques, représentations (Le temps de l’histoire), Aix en Provence, 2005, pp. 123-145. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 92 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 aristocracia pretende ter o monopólio16. No entanto, é difícil, na Península Ibérica, apresentar uma relação privilegiada entre a guerra e a aristocracia como um esquema fundador, já que as milícias municipais desempenharam um papel bem sabido na Reconquista. Não é de resto antes da primeira metade século XV que se enraiza em Portugal (na grande compilação jurídica das “Ordenações afonsinas”) a ideologia trifuncional que assimila os aristocratas aos defensores. A ideia que a guerra é fonte de santidade, por conseguinte de legitimação social, não parece ainda muito presente nas mentalidades comuns em Portugal, e não corresponde, portanto, com as convições mais íntimas do público da obra. Mais do que uma inaptidão ou uma contradição entre o autor e os seus comanditários, é necessário ver na escolha do tema da guerra santa uma intenção deliberada; a escolha mostra que este tema é promovido às expensas do resto – e não se encontra, de resto, na principal fonte castelhana relativa ao acontecimento (apesar de ser uma crônica real, de Alfonso XI), texto que permanece muito “laico”. Tem-se, por conseguinte, aqui um verdadeiro escrito de propaganda, que deve inserir ideias novas numa trama bastante clássica, de modo que o conjunto seja aceitável. Promover a guerra santa é inovador em Portugal, mas é tambem um arcaismo à escala europeia, numa época onde a instituição que a encarna, a Cruzada, começa, factual e doutrinariamente, a ser contestada. Isso implica apresentar a Cruzada do Salado como uma expedição defensiva, critério tradicional da guerra legítima, mas cuja importância vai crescendo no direito romano-canónico da Baixa Idade Média 17. A razão da escolha da guerra santa pelo comanditário do texto é o apego dos cavaleiros do Hospital a esta ideologia; mas, sobretudo, permite ao grupo nobiliárquico de diferenciar-se, senão do clero e da monarquia, pelo menos dos plebeus, que nunca acreditaram que a guerra contra os Mouros fosse mais do que um modo de obter novas terras. É o que explica o rápido êxito na nobreza, no século XV, desta ideologia obsoleta, que é doravante uma verdadeira estratégia de distinção, levando numerosos aristocratas na defesa das praças marroquinas. Como a adoção dos códigos cavalheirescos foi, no século XII, um meio para distinguir-se dos “cavaleiros vilãos”, na época da sua concorrência direta nos exércitos da Reconquista, a guerra sagrada acrescenta uma camada de legitimidade para uma classe mal definida juridicamente, e, sobretudo, para a 16 17 Nos anos que seguem imediatamente à redação do nosso relato, as guerras de João I contra a Castela opõem o rei e o seu condestável, o afamado Nuno Álvares Pereira, aquando da sede Coria, o segundo afirmando que bater-se contra muros não é conforme com o ideal da Mesa Redonda (citado por Manual Rodrigues LAPA, Lições literatura de portuguesa. Época medieval, Lisboa, 1934, p. 198). Este último ponto é essencial; como mostra-o a argumentação do chanceler João das Regras, aquando da eleição de João I, em 1385, a doutrina escolástica da legitimidade do poder (sintetizada por Thomas de Aquin) impregna então os letrados portugueses, e implica até a legitimidade dos reinos infiéis ; não sendo a guerra legitimada pela única infidelidade do inimigo, o seu caráter defensivo torna-se crucial. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 93 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 nobreza de serviço, cujas origens recentes podem ser plebeias 18. Além disso, apresentar uma atitude religiosa na guerra permite responder às críticas de teólogos, como o “português” Álvaro Pais, contra a perversão da função cavalheiresca 19. Se pode-se falar de propaganda para este texto, é também (e sobretudo ?) porque situa-se no âmbito ideológico de uma “concorrência memorial”. Com efeito, a adoção aristocrática do discurso da guerra santa é igualmente uma resposta à política real, para evitar que a monarquia se arrogue o monopólio deste tema. Os soberanos portugueses da fase final da Reconquista (1217-1249) têm, com alguma razão e em contraste com os dois primeiros reis da dinastia, uma imagem pouco guerreira, até nos anais régios 20; a historiografia posterior corrigiu paulatinamente, dado que a Crônica de 1344 é ainda discreta sobre as atividades bélicas fora das de Afonso I, e é apenas a Crônica de 1419 que sistematiza o tema do rei guerreiro, na sua versão cristianizada, ou seja em associação com a proteção divina21. Quanto aos soberanos posteriores à Reconquista (Afonso III, Dinis e Afonso IV), as suas proezas militares pessoais não são nem numerosas nem sagradas, e inscrevem-se na continuidade de uma dinastia que perdeu rapidamente as suas virtudes marciais. É precisamente este défice, bem como o desejo mais global de sacralizar a “religião régia”, que levam Afonso IV e os seus sucessores a pedir regularmente bulas de Cruzada para as expedições que projetam 22 e a “recuperar” a batalha do Salado para dar a interpretação de uma guerra santa. Pela escolha e o uso de um tema, o nosso texto reflete, por conseguinte, um conflito simbólico entre realeza e aristocracia, mais do que a sua concorrência real 23. Mais do que a função laudativa do texto, é o público visado que guia a escolha narrativa do autor, isto é a natureza literária da nossa fonte : para recordar e glorificar uma batalha, e 18 19 20 21 22 23 Nos anos que seguem à redação, a passagem da dinastia da Borgonha a uma nova dinastia provoca uma renovação profunda das elites aristocráticas, e a sua necessidade urgente de legitimar a sua posição social explica o sucesso brutal da ideologia de guerra santa no século XV. Com efeito, os casos precisos citados na soma deste autor referem-se a todo o Ocidente ; embora foi bispo de Silves, em Portugal, o que parece mais tipicamente ibérico na sua acusação em 31 pontos refere-se aos bandos nobiliárquicos da Galiza, a sua região de origem (Álvaro PAIS, Estado e pranto da Igreja (Status et planctus Ecclesiae), ed. e trad. de Miguel Pinto de Meneses, Lisboa, 1988 sq. (4 vol.), livro II, título 32) ; este texto é resumido em Philippe CONTAMINE, La guerre au Moyen-Age (Nouvelle Clio, 24), Paris, 1980, p. 440-441. Cf. Armando de Sousa PEREIRA, Representações da guerra no Portugal da Reconquista (séculos XI-XIII), Lisboa, 2003. C. S. SILVÉRIO, Representações da realeza..., p. 85-86. A bula Gaudemus et exaltamus é renovada em 1345, 1355, 1375 e 1377 ; a partir de 1320, o rei Dinis chama Cruzada o seu projeto de expedição marítima contra os corsários do Estreito (textos coligidos comodamente nos Monumenta Henricina. Vol. I: 1143-1411, Coimbra, 1960). Certamente, a obtenção das vantagens materiais ligadas a esta qualificação jurídica, nomeadamente a decima, não é alheia a este zelo. Ver a concorrência entre o rei Afonso IV e o prior do Hospitalários, analisada em seguida, nos discursos e as cerimônias preparatórias que dão o seu sentido à batalha. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 94 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 para demonstrar o seu caráter santificador a uma aristocracia impregnada de literatura cavalheiresca, que chama as suas crianças Gauvain (Galvão) ou Lancelot (Lançarote), e que se empenha na demanda de Ilhas fabulosas (as Canárias), um canto épico será mais eficaz do que um relato cronístico que procura a precisão e a exaustividade 24. Assim, a estrutura global da parte narrativa, em três tempos, abertura terrível da batalha, perigo e desânimo seguidos finalmente por uma vitória esmagadora, é evidentemente uma figura de estilo, que não visa nenhuma exatidão cronológica. Certamente, como em qualquer narrativa dirigida aos leigos, considerados incapazes de abstração, o público deve poder identificar-se nos pormenores e no espírito geral; a verosimilhança das atitudes mentais e o realismo dos elementos materiais (o famoso “efeito de realidade”) são, por conseguinte, obrigatórios25. Em contrapartida, o tema da guerra santa não é objeto de passagens didáticas, porque não faz parte do vivido dos ouvintes, e o autor deve recorrer ao artifício dos discursos para torná-lo verossímil: são os próprios atores que proclamam esta nova etapa do dogma. Do ponto de vista literário, o autor emprega alternativamente mecanismos dramáticos do tipo das canções de gesta (desânimo no combate, esquecimento inexplicável) e do tipo da hagiografia (a fé abalada) ; mas isso, que nos aparece como uma carência tipológica, talvez permita ao público reconhecer mais facilmente ideias familiares. O tamanho mesmo do relato dilui a continuidade necessária a um raciocínio rigoroso e explícito. Em contrapartida, parece que a estrutura dramática, complexa, pode servir para introduzir e, sobretudo, demonstrar a santidade da guerra. A primeira sequência do texto é uma descrição meticulosa da luta, quer técnica, quer épica 26 ; as notações morais são quase excluídas, porque a tonalidade geral é fatual, e o campo lexical é o da violência (armas quebradas, ondas de sangue, ou imagens ainda mais universais como as flechas que escurecem o sol, p. 245, e barulho a fazer desabar-se as montanhas, p. 246) e o da valentia (“proeza e honra de cavalaria”). A segunda sequência, que dá a “visão dos vencidos”, é construída de maneira complexa do ponto de vista dramático; os diálogos entre chefes mouros e seus arengas às tropas servem ao mesmo tempo para precisar peripécias do 24 25 26 A inexistência de uma tradição épica portuguesa, em oposição com a Castela, foi muito controvertida (ver o artigo de José MATTOSO, « Épica (temas épicos) », in G. Lanciani, G. Tavani (coord.), Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa, Lisboa, 1993, pp. 237-238), mas o seu verdadeiro assunto é a criatividade literária, que pouco nos importa aqui: que as canções de gesta sejam traduções ou composições originais, é certo que o público aristocrático português gosta delas. À data presumida de redação do texto, muitos veteranos que participaram na batalha podiam não estar vivos, mas a preocupação de conformidade às suas lembranças (até por causa de um possível uso dos seus testemunhos pelo autor) pode animar o autor do relato. O combate enquanto tal começa p. 245. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 95 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 combate, para esclarecer pesadamente o caráter prodigioso da vitória cristã27 e ainda para elogiar a valentia dos cavaleiros portugueses. A moralidade da história, longamente trazida pela segunda parte, é começada habilmente logo no fim da primeira parte, por uma curta reflexão emprestada aos Mouros sobre a impotência “do seu Mahomet”, aquando da mudança de favor das armas (p. 249). Mas até o implícito pode constituir também uma espécie de conivência entre o narrador e um público que compartilha os mesmos valores. Assim, a ausência de qualquer legitimação ao empenho dos cavaleiros portugueses contra um inimigo que não ameaça o seu reino, assim como a fraqueza da justificação moral do emprego da violência contra os Infieis, resultam do espírito cavalheiresco, que tende a codificar mais o jus in bello do que o jus ad bellum. Mas pode-se considerar o silêncio como um método retórico eficaz? Afinal, permanece difícil de determinar se o público percebe uma demonstração além do suspense narrativo. Certamente, não há contradição absoluta entre a forma e o fundo: qualquer conto de cavalaria, mesmo aparentemente vão, visa comunicar um ensino; mas, do nosso ponto de vista, a forma, que se dirige para as emoções, dissimula ou veste a ideia, num domínio tão complexo como a teologia28. O papel e a natureza da guerra santa Toda a dificuldade consiste para o narrador em construir um esquema ideológico, com o que isso implica de abstração, através de representações mentais, que são unidades semânticas simplistas e que não se articulam num sistema coerente de interpretação dos problemas complexos. Além disso, num discurso pouco retórico, podem ser combinados os estereótipos – que reforçam uma opinião mais do que a suscitam – de forma a fazer evoluir as crenças do público? Vamos, portanto, colocar o problema nestes termos: mais do que encarar uma impermeabilidade ou antes uma diferença de natureza entre o sistema de valores nobiliárquico e a ideologia de sacralização da guerra29, interrogar-nos-emos que representações ancoradas nos cavaleiros podem ser utilizadas para persuadi-los de que a sua guerra é uma obra religiosa. 27 28 29 Por exemplo, p. 253, a cruz resplandece como o sol, a vitória cristã é “contra natureza”. É o problema do exemplum e do teatro medieval, de que se pode interrogar-se qual eficácia tinham para “fazer crer”. É a posição defendida por António José SARAIVA, A cultura em Portugal. Teoria e história. vol. II Primeira época: formação (Obras de António José Saraiva, 5), Lisboa, 1991, p. 91-96, talvez influenciado pela tradição inteletual que remonta até aos reformadores gregorianos. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 96 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Num texto que é propagandístico, que necessita, portanto, de ser explícito ou pelo menos, se ouso dizer, “claramente sugestivo”, e que visa um público pouco familiar das subtilezas teológicas, o historiador não precisa procurar raciocínios dogmáticos em filigrana ou na forma de alusões voluntariamente herméticas porque destinadas a um público de peritos30 ; se há sinais de conivência, será antes no universo mental do público. A legitimação da guerra pela natureza do inimigo é um processo dialético tradicional da literatura profana, e os simples fiéis podem conhecer também o que pensam os clérigos através das suas pregações; pode-se, portanto, interrogar-se em primeiro lugar qual é a imagem dos mouros no relato31. A partir do momento em que a vitória se desenha para os cristãos, é ao inimigo que a palavra é dada; a sua função é pois muito importante no relato, mas é enquanto agente da demonstração que o autor quer desenvolver. Com esta instrumentalização, espera-se o conjunto dos lugares comuns, tanto os que arrastam na literatura profana como os procedentes da propaganda religiosa, dado que o autor deveria dar aqui ao público o que este espera, isto é mouros de canções de gesta e não mouros reais. Certo é que vários nomes não são identificáveis e que certos personagens parecem inventados; além disso, os diálogos entre mouros são uma convenção literária. O principal problema é a personagem de Alcarac, que, designado como “Turco” e apresentado como chefe de tropas árabes vindo da Ásia, não pode ser identificado a nenhuma personagem histórica conhecida – e não se pode tratar de um reforço enviado pelos Mamelucos – ; estamos induzidos a ver nele uma ficção literária inspirada diretamente pelas canções de Cruzada32, que devem ser familiares ao comanditário do texto, o prior dos cavaleiros Hospitalares (Ordem que vai participar, alguns anos depois, em 1396, na desastrosa Cruzada de Nicopolis). A imagem dos mouros é ambígua no domínio cultural : “são grandes astrólogos” 33 ; isso é visto antes do lado da magia negra que da ciência, mas é ao mesmo tempo um elemento do fascínio ocidental para o Oriente sabedor de segredos. Sua valentia guerreira, várias vezes 30 31 32 33 O pano de fundo inteletual do nosso texto, isto é a ideologia dos letrados, é bem resumido no artigo de Luis Filipe THOMAZ, “Cruzada”, em C. Moreira Azevedo (dir.), Dicionário de história religiosa de Portugal, Lisboa, 2000 (4 vol.), vol. II, p. 31-38. O quadro geral desta reflexão é fornecido por Stéphane BOISSELLIER, « Une tolérance chrétienne dans l’historiographie portugaise de la Reconquête (XII-XIIIe siècles) ? », em Guy Saupin e.a. (dir.), La tolérance. Colloque international de Nantes (mai 1998). Quatrième centenaire de l’édit de Nantes, Rennes, 1999, p. 371-383 e Armando de Sousa PEREIRA, “Cristãos e muçulmanos no Ocidente peninsular medieval. As representações de um confronto”, Cultura: história e filosofia VII (1997), p. 89-112. Sobre o eventual protótipo arturiano desta personagem (na Estoire del Santo Graal), Evalac de Sarras, ver Martin AURELL, La légende du roi Arthur 550-1250, Paris, 2007, p. 417. Certo é que, historicamente, há tropas de mercenários turcos (Ghuzz) no exército merinida, mas não podem ser identificadas com os combatentes do relato. P. 242 ; ver depois uma explicação sobre o curso fasto e nefasto dos astros (p. 250). Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 97 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 assinalada34, é uma conotação indubitavelmente positiva num sistema de valores cavalheirescos, ainda que matizada pela esmagadora superioridade numérica dos mouros. Sobretudo, certos códigos da literatura épica, dentro dos mais importantes, como a crueldade e a monstruosidade física dos mouros35, não são empregues pelo autor. Com efeito, os chefes muçulmanos são apresentados aqui como cavaleiros (obcecados pela honra, nomeadamente36), sábios, bons estrategistas e valentes; falta afinal uma dimensão cultural essencial, o caráter abominável do inimigo: numa lógica que provem do direito natural mais do que do direito canônico (focalizado, ele, sobre a ortodoxia), esta lacuna impede a detestação ontológica do inimigo, que nunca é exprimida explicitamente – o vocabulário clerical de diabolização da infidelidade (do tipo “inimigos do nome cristão” ou “blasfemadores”) é totalmente ausente. Isto explica a ausência de um dos elementos mais simbólicos da prática da guerra santa, presente principalmente nas fontes narrativas 37 : a destruição do infiel – que, de resto, é justificada pela doutrina jurídica romana da “guerra mortal”, e não necessariamente por um ódio ontológico para com o inimigo – ; neste relato, mata-se muito, mas é dentro do combate38 e não por execução dos sobreviventes – ao contrário do que sugere a inscrição comemorativa da batalha na Sé de Évora. Com efeito, para os mouros como para os cristãos, há uma personalização extrema do acontecimento; a ação é focalizada sobre o misterioso Alcarac – este exclusivamente como ator da batalha – e sobre o sultão merinida Abû l-Hassan. É este último, como instigador da invasão da Península e principal vencido da batalha, que incarna o sentido providencial da história, com o seu discurso explicitador em forma literária de pranto (p 254) : seguro da sua superioridade militar, ao topo da glória e da potência, invicto até là39), simboliza a desgraça absoluta; a última parte do texto, narrando em pormenor suas peripécias no Magrebe, que se poderia intitular “as desgraças de Abû l-Hassan”, é uma longa exemplificação da lógica de degradação inevitável para cada infiel. Pode-se considerar que toda a segunda metade do relato serve, na perspectiva de promoção da guerra santa, para trazer a moralidade, que 34 35 36 37 38 39 Por exemplo, p. 245, “os Mouros eram muito esforçados e feridores de todas partes”. Pelo contrário, é Alcarac quem descreve os cavaleiros portugueses como gigantes (p. 254). P. 250, “nom percades as famas de bondades de cavalaria que sempre houvestes”. Ver o resumo da historiografia do assunto em Pascal BURESI, « Captifs et rachat de captifs. Du miracle à l’institution », Cahiers de civilisation médiévale, 50 (fasc. 198) (2007), p. 113-129. As menções do tipo “a batalha tornou-se… muito destrutiva e muito cruel e sem piedade” (p. 245) introduzem descrições épicas, e não são uma alusão à guerra romana. Mas não é apresentado explicitamente como um orgulhoso nem como inimigo do cristianismo : a palavra injuriosa atribuida ao sultão “cães de cristãos”, quando evoca a Reconquista da Península (p. 250), parece antes destinada a motivar o seu exército. O autor insiste antes na sua descrença, quando espantase que um mero pedaço de pau (a Vera Cruz) possa dar a vitória ao inimigo, apesar da sua inferioridade numérica (p. 253). Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 98 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 reside numa frase: “assim Jesus manifesta os seus milagres contra os que querem ir contra a sua fé” (p 256)40. Isto conduz ao problema da identidade: contra um inimigo muçulmano, mesmo devidamente “regionalizado” (reinos de Granada ou de Marrocos), é mais fácil identificar-se como cristão do que como cidadão de tal ou tal comunidade política local (um reino). Então, é a identificação social religiosa ou étnica? Em outros termos, intitulam-se os protagonistas “cristãos” ou “Portugueses” ? Várias vezes, vê-se que os reis português e castelhano, quando juntos, são ditos “reis cristãos” (p 243) e que os exércitos são designados do mesmo modo (p 246-8, várias ocorrências), embora os beligerantes sejam às vezes qualificados de Portugueses ou Castelhanos (p 249), aparentemente logo que o autor tiver necessidade de distingui-los um para com o outro, por conseguinte por necessidade narrativa. Esta globalização lexical, que se encontra também na ausência de qualquer distinção entre magrebinos merinidas e andaluzes nasridas 41, permite identificar apenas dois campos, cristão e mouro; esse dualismo é endurecido pelo critério, religioso, distinguindo estes campos. É uma ideia relativamente nova em Portugal, segundo a qual a fronteira ibérica contra alAndalus representa a fronteira de toda a Cristandade contra todo o Islão. Se nos colocarmos a posteriori, nos discursos de justificação retrospetiva da ação, uma das principais motivações íntimas apresentadas é a pressão social, formalizada na noção do dever, noção particularmente sensível na nobreza, cuja ética cavalheiresca coloca o dever à cimeira dos valores morais (embora concebendo-o cada vez mais, na baixa Idade Média, como a obediência militar ao chefe). A esse respeito, a noção de “serviço de Deus”, central para os leigos implicados nestas guerras, não é clara: é realmente dupla, associando numa clara discriminação a obra piadosa e o dever para com o suzerano? Ou a “religião vassálica” (ou mesmo a “religião régia”) impregnou suficientemente os espíritos de modo que o serviço do rei seja assimilado ao serviço de Deus, através do cumprimento da Ordem? É verdadeiro que, entre as consequências possíveis do combate, seja atribuída aos atores a esperança de ganhar a palma do mártire – sem empregar a palavra, de resto – e de ir diretamente ao lado do Pai, porque essa morte é uma nova Paixão; várias vezes reiterado 40 41 Pode-se notar, no plano literário, que a moralidade é sugerida, através dos discursos do rei Albofacem, pelos próprios parceiros da ação, o que é um método familiar aos ouvintes de novelas cavalheirescas, como nos romances arturianos (com o eremita que explica ao cavaleiro o sentido escondido das suas aventuras) ; mas a enunciação explícita desta moral é feita pelo próprio autor. A única distinção feita no inimigo opõe os mouros (do Ocidente) e “os árabes” de Alcarac (que são aparentemente Orientais), cf. por exemplo, p. 247, os cavaleiros árabes “X mil cavaleiros d’aláraves”. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 99 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 pelos próprios combatentes durante a batalha42, este motivo de origem romano-franca, introduzida na Península pelos clérigos gregorianos mas integrada apenas a partir do século XII nos discursos clericais hispanos, é o principal elemento dogmático que faz do combate uma guerra “que justifica” : a certeza da salvação (pelo dom da sua vida para uma justa causa) mostra que a guerra contra o infiel é percebida pelo autor como um combate de Deus. É, por conseguinte, uma motivação estritamente espiritual que é proposta ao público, mas que se confunde certamente para os ouvintes com a ideia mais global da glória conferida pela morte no combate ; de resto, de maneira bastante arcaica, no discurso do rei como no dos cavaleiros, a salvação sempre é associada só à morte para a fé, enquanto a glória mundana é reservada aos sobreviventes – o que é uma concessão aos valores cavalheirescos. Notem que a enunciação mais precisa do valor penitencial da guerra fica num discurso do rei – “pensava que Deus o fizera uma grande graça ao conduzi-lo ao momento onde poderia redimir os seus pecados para salvação da sua alma e receber a morte para Jesus Cristo” (p. 243) – , e a estrutura do texto induz que é nesta perspetiva que dirige a sua arenga aos seus homens. Se o discurso que lhe é atribuído fala principalmente da legitimação da aristocracia em relação à monarquia, a sua conclusão é principalmente religiosa : “os que morrerão e viverão aqui serão salvos e célebres para sempre” (p. 244), o que coloca o monarca, mais uma vez, como o que professa o valor sagrado do combate43. No entanto, antes desta afirmação abstrata, as motivações concretas propostas pelo rei ao público estão claramente ad usum militum: a defesa do território, a reprodução das virtudes ancestrais e a seguridade física dos parentes. De resto, a resposta dos cavaleiros é mais laica, dado que é uma simples promessa de vencer ou morrer. Além disso, num dos discursos atribuídos aos cavaleiros durante a luta, produzido para incentivo mútuo, o sentido da vitória é definido por uma série de qualificativos, cuja natureza e ordem são significativas e retomam em parte o discurso real : glória pessoal, honra de grupo, salvação física das famílias, reprodução das virtudes ancestrais e por último salvação pessoal da alma (p. 245). Há no relato um objeto, onipresente, que é um fragmento da Vera Cruz conservado num mosteiro Hospitalário do sul de Portugal, em Marmelar, cujo papel na economia do relato coloca o problema do uso do milagre, necessário para manifestar explicitamente o favor 42 43 “este é o dia da salvaçom das nossas almas” (p. 245), “os que morrêremos hoje seeremos com el no seu reino celestial, u ha moradas tam nobres que se nom podem dizer por linguas” (p. 246). No entanto, na verdadeira liturgia que é a ostensão da Vera Cruz antes do combate (p. 244), é o prior do Hospital que desempenha o primeiro papel, pregando ao rei (este como responsável do combate) a devoção para com ela, o que restabelece a aristocracia na vanguarda da sacralização do combate. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 100 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 divino e, portanto, clássico na literatura de Cruzada44. Aqui, a intervenção não tem nada de sobrenatural, dado que é uma ostensão litúrgica de uma relíquia trazida pelos combatentes ; não é um aparecimento prodigioso, como o quer um topos hagiográfico frequente. Além disso, o seu poder não se manifesta através de um prodígio realmente contra natureza, mas ao dar novas forças aos combatentes abatidos e cansados. Tudo permanece subordinado à valentia e à ação dos guerreiros. Certamente, pode-se ver lá uma espiritualização da ação das relíquias, ao contrário do pensamento mágico que fez o seu sucesso popular ; mas nunca é enunciada explicitamente a moralidade que se deveria deduzir logicamente, isto é que é a fé e não o objeto que atua. Um outro fator esperado de milagre é o número infinito de inimigos, mencionado no princípio do relato, fácil de utilizar para sugerir o caráter sobrenatural do sucesso, e o autor atribui ao rei Albofacem, no fim do relato, palavras que retomam pesadamente aquele aspecto ; mas é um método literário que não tem nada de especificamente clerical. A ideia geral, providencialista, que os cavaleiros foram o instrumento de Deus, ideia que é provavelmente a mais evidente para o público, parece-me para interpretar no contexto de concorrência simbólica com a monarquia; é necessário tomar um dos fundamentos do poder real para atrair um pouco desta sagralidade doravante indispensável para legitimar qualquer superioridade social. Fora deste uso de uma relíquia bem específica, o autor não acha útil conferir ao acontecimento qualquer aparato ritual, que seja sobrenatural (aparecimento celestial, milagre, intervenção dos santos) ou temporal (pregação clerical, bendições, votos e missa); o que procura fazer crer, é que esta guerra é pelo melhor santificadora mas não sagrada (isto é uma guerra na qual Deus luta “pessoalmente”). As interpretações de tipo teológico, como a dimensão escatológica do combate e a sua qualificação de “santo” ou “sagrado” (sem falar do qualificativo “Cruzada”, que é totalmente ausente), e as justificações canônicas, como a menção da bula de Cruzada, faltam igualmente. Parece-me, por conseguinte, difícil apresentar este relato, como o fez C. Erdmann, como o apogeu da ideologia de guerra santa em Portugal, mesmo na perspetiva do mero conteúdo moral. Podemos explicar esta ausência de sagrado antes por uma impermeabilidade dos tipos literários: o sobrenatural cristão, apesar da sua dimensão patética potencial, é demasiado associado à retórica clerical para ser utilizado num texto épico. O uso direto de imagens visuais violentas (o jogo letal das espadas, o sangue que se espalha, o número aterrorizante de mortos), nas passagens que nos parecem precisamente 44 É a partir dos anos 1410 que o mito fundador da nação portuguesa, a batalha de Ourique, é narrado como um milagre. Algumas décadas atrás, o cronista Zurara faz preceder a expedição “fundadora” de Ceuta (1415) de um aparecimento milagroso ao rei João I. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 101 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 mais lúdicos e menos propagandísticos, não compensa a ausência de referências sagradas ; mas pelo menos sugere, pelo exemplo, a necessidade de exterminar este tipo de inimigo. Além disso, a mera vitória sob a bandeira e pela virtude da Vera Cruz é a imagem que se forma a partir da organização dramática, elemento de religiosidade simplista, mas que se interioriza precisamente graças à sua simpleza. Enfim, uma última representação, menos nítida, mas felizmente colocada ao fim para uma melhor memorização, é a condenação dos infieis à desgraça. Obtém-se, por conseguinte, a associação procurada entre a ideia de eleição divina e a imagem da vitória militar. ******** Em conclusão, é necessário recordar obstinadamente que o uso social de um documento importa tanto como o seu conteúdo, porque um escrito é redigido mais como “instrumento” do que como “monumento” – e deve em primeiro lugar cumprir as esperas do público visado (o Erwartungshorizont teorizado por Hans Robert Jauss). A noção de defesa armada da fé que confere salvação, no que tem de mais espiritual e dogmático, não é ausente nem mesmo ocultada pelos valores cavalheirescos, como se se tratasse de dois sistemas incompatíveis, mas é literariamente mediatizada pelo próprio combate, na forma destes feitos de armas que tanto agradam à nobreza média e pequena. Enquanto inteletuais que somos, os historiadores, recusamos a superioridade da sugestão poética em relação à capacidade de convencer da retórica. A relativa liberdade do narrador no uso de gêneros literários (incluido no uso de exempla pelo pregador), os “efeitos de realidade” e o uso intensivo dos estereótipos geram discursos “a dimensão argumentativa” que não devemos duvidar em classificar na literatura de propaganda. A fraqueza dos elementos dogmáticos e litúrgicos na dinâmica deste texto não deve induzir a inexistência ou a ineficácia da propaganda em prol da guerra santa. Com efeito, para além dos pormenores, o significado do acontecimento faz confluir a tradição guerreira pagã (amansada pela Igreja em ética cavalheiresca) e o sentido sagrado da violência45: trata-se de uma batalha ordenada, acontecimento invulgar que não se pode assimilar à guerra comum, e que é, portanto, interpretado por todos, tanto pelos atores laicos como pelos clérigos que lhe deram este sentido, como uma ordália – mas é necessário sublinhar que, fora da arenga preliminar e da Vera Cruz, o autor omite qualquer “teatralização do risco”, pelas quais as 45 René Girard mostrou em La violence et le sacré que a violência coletiva tem uma dimensão sacrificial fundadora, que subsiste no seio da definição, mais jurídica, do sagrado pelo cristianismo. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 102 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 liturgias (pagãs ou cristãs) atenuam a iminência da morte e relacionam a violência e o sagrado. Além disso, por uma espécie de bricolagem literária, o autor obtém uma associação de ideias entre a guerra, a superioridade do cristianismo e a salvação46. Mas devemos reconhecer que as articulações entre estas ideias não são nem finas nem explícitas; esta prudência dialética, que não parece ser uma inaptidão técnica, poderia explicar-se pelo fato de o autor conhecer a ignorância do público para com estas ideias. Se foi interpretado este relato como um ponto de chegada, é porque as práticas e as noções da guerra santa desenvolveram-se fortemente algumas décadas atrás, na expansão em Marrocos, e porque se quer ver naquelas um fato de “mentalidades”, necessitando, portanto, uma longa maturação – para além do desejo dos historiadores de estabelecer uma continuidade com a Reconquista, em nome de uma concepção linear do “progresso”. Propomos antes de considerar este texto como um ponto de partida no longo caminho pelo qual se passou do sacrifício ao sagrado e do sagrado ao sacramento. 46 É de resto uma leitura rápida e principalmente semântica do texto que levou os medievalistas a considerá-lo como a expressão perfeita de um “espírito de Cruzada” em Portugal. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 103 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 As transformações na sociedade política e nas monarquias medievais e seus efeitos na mobilidade de facções nobiliárquicas entre Portugal e Castela The transformations in political society in the medieval monarchies and their effects on the mobility of nobiliary factions between Portugal and Castile Fátima Regina Fernandes* Universidade Federal do Paraná NEMED - Núcleo de Estudos Mediterrânicos Resumo Abstract Este estudo propõe-se a analisar as relações políticas na sociedade ibérica medieval no nível das elites definidas a partir das vinculações de natureza linhagística e vassálica, uma rede sócio-política cuja estrutura é constituinte da sociedade política medieval. Esta teia de acordos e vínculos interpessoais interferia e por vezes mesmo definia as políticas régias e marcava um perfil de ação nobre marcado pela extraterritorialidad de que nos fala Salvador de Moxó, principalmente nos vários contextos de guerra que se desenrolam na Península Ibérica tardo-medieval, palco de nossos estudos. A crise dinástica de Borgonha e ascensão de Avis em Portugal são vistos pela historiografia como um momento-chave de recomposição destas estruturas tanto em Portugal como em Castela, no entanto, preconiza-se a ampliação desta análise a outros vetores geo-políticos que envolvam a participação portuguesa na Guerra dos Cem Anos, assim como a importância dos processos de regeneração nobiliárquica e centralização régia nestas movimentações. Elementos que ampliam a tradicional abordagem limitada ao eixo Avis/Trastâmara e buscam promover uma problematização mais estrutural dos exílios que permeiam este cenário a fim de extrair-se um perfil deste movimento, além das verdadeiras motivações de ida e retorno destes nobres entre os This study proposes to examine the political relations in medieval Iberian society at an elite level defined from bindings of lineage and vassalic nature, a socio-political network whose structure constitutes medieval political society. This web of agreements and interpersonal bonds interfered and sometimes even defined the royal policies and marked a profile of noble action marked by the extraterritorialidad mentioned by Salvador Moxó, especially in the various contexts of war unfolding in late medieval Iberian Peninsula, in which we place our studies. The dynastic crisis of Burgundy and the rise of Avis in Portugal are seen by historiography as a key moment of restoration of these structures both in Portugal and Castile, however, it is recommended to expand this analysis to other geo-political vectors involving Portuguese involvement in the Hundred Years War, as well as the importance of the processes of nobiliary regeneration and royal centralization in these movements. Such elements expand the traditional approach limited to the Avis / Trastámara axis and seek to promote a more structural problematization of the exiles that permeate this scenario in order to draw up a profile of this movement, in addition to the true motivations behind the comings and goings of the nobles between these kingdoms. Thus, the * Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes é Doutora em História Medieval pela Universidade do Porto em Portugal, Professora Associada IV da UFPR, pesquisadora PQ II do CNPq e Coordenadora do Núcleo de Estudos Mediterrânicos (NEMED) da UFPR. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 104 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 reinos. Assim, a mobilidade destes grupos caracteriza em boa parte este contexto de crise e transformação, além de promover uma verdadeira atualização dos perfis de atuação nobiliárquicos do grupo em si e frente à monarquia nestes séculos finais da medievalidade. mobility of these groups largely characterizes this crisis and transformation context, and promotes a true updating of nobiliary action profiles of the group itself and in relation to the monarchy in these final centuries of medieval times Palavras-chave: Exílios tardomedievais; Regeneração nobiliárquica tardomedieval; Monarquia tardo medieval portuguesa. Keywords: Late medieval exiles; late medieval nobiliary regeneration; late medieval Portuguese monarchy. ● Enviado em: 24/02/2014 ● Aprovado em: 07/11/2014 Introdução Este estudo propõe-se a observar as relações políticas na sociedade ibérica medieval cuja natureza envolve as vinculações linhagísticas, e as vinculações vassálicas, as quais podem funcionar independentes ou complementarmente como estrutura constituinte da sociedade política medieval. Esta teia de acordos e vínculos interpessoais interferia e por vezes mesmo definia as políticas régias, movendo igualmente grupos nobiliárquicos segundo interesses coletivos e por vezes servindo de suporte a interesses individuais. Um perfil de ação marcado pela extraterritorialidad de que nos fala Salvador de Moxó 1 cujas condições de movimentação e estabelecimento aceleram-se nos vários contextos de guerra que se desenrolam na Península Ibérica nos séculos XIV e XV, palco de nossos estudos. A luz desta perspectiva o nosso estudo centra-se no fenômeno dos exílios que se realizam entre 1369 e 1398 a fim de extrairmos um perfil deste movimento, motivações de ida e retorno destes nobres entre os reinos de Portugal, Castela e Inglaterra, descortinando os grupos a que se vinculam vassalicamente e o peso destes interesses na sua decisão de partir, assim como o uso que fazem de uma causa em função de seus interesses pessoais de estabelecimento e projeção. Trata-se, assim, de uma proposta de pesquisa em início de desenvolvimento que apresenta resultados iniciais que passamos a apresentar. 1 MOXÓ ORTIZ DE VILLAJOS, S, “De la nobleza vieja a la nobleza nueva”. In: Cuadernos de História (anexos da Revista Hispânia), Madrid: Instituto Jerónimo Zurita, 1969, 3, pp.1-210. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 105 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 As transferências de um reino a outro são uma constante para grupos de representantes da nobreza que dispõem de uma rede de suporte linhagística, portanto familiar, complementada por vinculações vassálicas, condição que facilita as deslocações e condições de estabelecimento em qualquer reino peninsular e mesmo além-Pirinéus e permite a relativização dos conceitos de naturalidade para seus representantes. Na verdade observamos deslocações de coletividades mais que de indivíduos, grupos que constituem pequenas sociedades políticas privadas dos nobres que se transferem a outros espaços acompanhados de seus fiéis de menor condição partilhantes das benesses, mas também das experiências de confisco e mobilidade. Assim, nossa proposta parte da observação nos documentos medievais portugueses de um movimento, uma clara mobilidade de grupos nobiliárquicos potencialmente justificados em sua capacidade de integração independentemente das fronteiras dos reinos. No entanto, nas fontes relativas ao recorte proposto não aparece o termo exílio, este tem de ser entendido a partir do cenário contextual e desdobramentos das trajetórias destes indivíduos e por nós, historiadores do século XXI compreendidos como um fenômeno de exílio. Em geral este movimento está ligado a um deserviço ao rei, uma consequência natural e posterior a um ato entendido como traição, uma reação a um ato consumado e uma forma eficiente de escapar à ira ou desfavor régio; trata-se assim, em geral de um auto-exílio. Apresenta-se, portanto, segundo estas fontes, como um movimento mais que um conceito definido, visto que os vestígios mais confirmadores da condição de exílio são o confisco dos bens e sua transferência a outrem. Não identificamos documentos intitulados em sua natureza ou fins como cartas de exílio e mesmo considerando-se as filtragens documentais realizadas ao longo da medievalidade seria improvável não haver sobrado nenhuma carta deste tipo 2. Apenas nas cartas de doação é que se identifica complementarmente à condição de confiscado, aquela de quem caíra em deserviço, o qual estando fora do reino teria os seus bens transferidos a outrem. Propomo-nos, assim, com este projeto definir em moldes medievais esta condição de exilado escapando a anacronismos interpretativos que contaminem a análise. Acompanhando em parte esta discussão, chegamos às cartas de seguros, outro tipo de materiais a que Quintanilla Raso dedicou estudos iniciantes3 e que constituíam, em suas palavras “pilares básicos de la vida social” transformados em política régia no sentido de manter o bem comum, a paz e estabilidade interna dos reinos. O seguro, a proteção declarada 2 3 FERNANDES,F.R. “As Crônicas e as Chancelarias régias: a natureza e os problemas de aplicação das fontes medievais portuguesas”. In:,Revista Ágora, Vitória, UFES, 2012, 16, pp. 77-94. QUINTANILLA RASO, M.C. “Pactos nobiliários y seguros régios em la Castilla de finales del siglo XV”. In: Cuadernos de Historia de España, Buenos Aires, Instituto de Historia de España, 2012, 85-86, pp. 567-79. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 106 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 entre o rei e nobres, de caráter particular manifestaria uma outra forma de justiça maior do rei, capaz de garantir conjuntural ou circunstancialmente a integridade das pessoas e bens envolvidos. Pouco estudados pela historiografia espanhola, conforme balanço da pesquisadora, constata-se igual ou menor interesse da parte da historiografia portuguesa além dos estudos de Manuela Mendonça para o princípio da modernidade. Trazemos esta reflexão por entendermos tratar-se de elemento adicional e frequentemente constatável nos movimentos de mobilidade dos grupos ou de individualidades nobiliárquicas no reino português no contexto proposto por esta pesquisa. Os pedidos de proteção ao rei se sucedem nas Chancelarias portuguesas, quase sempre entendidos como movimentos isolados, esporádicos quando do retorno ao reino por parte de um nobre auto-exilado no reinado anterior, como seria o caso de Diogo Lopes Pacheco em 13674 ou quando o rei Pedro, o Cruel de Castela pede salvo-conduto a seu tio, o rei Pedro I, de Portugal contra as intenções de seu filho, Infante Fernando em 13665 ou mesmo o pacto que envolve o rei Fernando aos emperegilados em 13696. Situações que devem ser compreendidas estruturalmente como sintomas, partes constituintes de uma política régia de concentração na instituição monárquica das estratégias reguladoras da ordem social, fonte em última instância da paz e proteção individual e coletiva, intervindo, autorizando, garantindo a integridade daqueles que optassem por voltar ou vir para o seu reino. Ações que não devem ser entendidas, segundo nossa perspectiva, num caráter de excepcionalidade e que se constituem como parte de uma política concertada de intervenção legitimadora destes fenômenos de mobilidade sócio-política revisando interpretações historiográficas que justificam as recomposições nobiliárquicas medievais à luz apenas de mudanças dinásticas. Questões derivadas do tema dos exilados na medievalidade e que nos arrastam ainda a outros aspectos desta realidade estudada que 4 5 6 LOPES, Lopes. Crónica de D. Pedro I. Damião PERES (ed.), Porto, Ed. Civilização, 1965, cap. IV, p.20 e LOPES, Lopes. Crónica de D. Fernando. Salvador Dias ARNAUT (ed.), Porto, Ed. Civilização, 1966 cap.1, pp.10-11 e cap.81, p.212. Consegue a confirmação do perdão e a restituição da sua honra e bens, situação confirmada por duas cartas régias datadas de 08 e 09 de Março de 1367 (Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo, Chancelaria de D. Fernando, l.I, f.2). Nas cartas de restituição dos seus bens, percebe-se a amplitude do patrimônio de Diogo Lopes Pacheco em Portugal, sendo referidos bens em vários almoxarifados: Lisboa, Coimbra, Viseu, Guarda e Lamego, além do senhorio de Ferreira de Aves, na Beira (Id, ibid, livro I, f.2 e f.66). Mesmo a comitiva escolhida para a acompanhar o rei Pedro, o Cruel até à fronteira com Castela teme ao Infante Fernando que os mandara ameaçar, pelo que deixam o rei castelhano na Guarda apesar das propostas de pagamento extra se o levassem até a Galiza. (LOPES, Crónica de D. Pedro I, cap. 39, pp. 1801). LOPES, Crónica de D. Fernando, cap. 27, pp. 79-81. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 107 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 respeita ao conceito de fronteira física7, sua delimitação e concepções por parte dos vários segmentos da ordem nobiliárquica em atualização. Podemos refletir ainda, relativamente ao conceito de fronteira que nos é trazido a propósito da temática dos exílios no recorte desta proposta que nossa discussão perpassa uma problemática mais centrada nos efeitos da cristalização de uma identidade monárquica identificada como a do reino. As transformações dos séculos XIV e XV e o esgotamento do processo de Reconquista cristã na Península Ibérica8 promovem uma atualização dos critérios definidores do conceito de fronteira em outros moldes. Os projetos universalistas cristãos, imperiais teriam de ser restritos a unidades políticas menores onde cada rei seria Imperador em seu reino, desafio proposto aos juristas e à Universidade em apoio às motivações monárquicas. Os interesses dinásticos ganham, assim, uma dimensão de legitimidade equivalente à dos interesses coletivos de um reino gerando uma secularização da ideia de fronteira agravada pela falência do projeto de unidade da Cristandade latina pontifícia manifesta no Exílio de Avignon e Cisma do Ocidente9. Outra inflexão importante neste conceito de fronteira num contexto baixo-medieval peninsular estaria ligada à passagem de uma ideia de fronteira móvel à de uma fronteira estática 10. Uma discussão que se encaminha para a compreensão de elementos complementares como a existência de uma identidade fronteiriça que pouco a pouco seria dissolvida nas elaborações monárquicas onde as 7 8 9 10 Os materiais documentais envolvem desde o conjunto das Siete Partidas, cuja primeira edição completa manuscrita caberia a Afonso XI de Castela na primeira metade do século XIV, assim como as glosas e comentários posteriores que do ponto-de-vista jurídico e político atualizariam seu conteúdo acompanhando as transformações do conteúdo e dinâmica sócio-política do contexto analisado. Neste sentido terá importância ainda, a análise do conteúdo das Ordenações Afonsinas que teriam a função de selecionar e sistematizar as matérias e cânones ainda válidos na legislação portuguesa do século XV. As atas dos capítulos gerais e particulares das Assembleias de Cortes Gerais dos reinados de Fernando e João I de Avis permitem identificar os pontos de desacordo entre esta política monárquica no decurso de uma crise dinástica e a base municipal e nobiliárquica do reino português. A documentação chancelar fornece um panorama administrativo e político amplo e alimenta a metodologia prosopográfica permitindo desenhar o perfil desta nobreza regenerada, seus grupos de apoio, satélites, critérios de ascensão e ofuscamento em relação ao poder central. PAZ ESTEVEZ, M. de la. “La conquista de Toledo en 1085. Génesis y desarrollo de una frontera a través de sus fuentes”. In: NEYRA e RODRÍGUEZ (dirs), ¿Qué implica ser medievalista? Prácticas y reflexiones en torno al oficio del historiador, Mar del Plata, Universidad de Mar del Plata, Sociedad Argentina de Estudios Medievales, 2012, v. 2, pp. 23-43; AYALA MARTÍNEZ, C, “Definición de cruzada: estado de la cuestión”. In: Clio & Crimen, Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango, Durango, 2009, 6, pp.216-42; RUIZ-DOMENEC, J.E. “La frontera en la España medieval. Una historia cultural”. In: Id, Entre Historias en la Edad Media, Granada, Editorial Universidad de Granada, 2011, pp. 61-70 e GARCÍA FITZ, F. “La Reconquista: un estado de la cuestión”. In: Clio & Crimen, 6, 2009, pp.142-215 FERNANDES, F.R. “A monarquia portuguesa e o Cisma do Ocidente ( 1378-85)”. In: Instituições, poderes e jurisdições, Renan FRIGHETTO e Marcella L. GUIMARÃES (Coords.), Curitiba, Juruá, 2007, pp.137-55 e FERNANDES, F.R. “Nem Roma, nem Avinhão, mas Pisa”. In: SOUZA, J. A. de (org). As relações de poder: do Cisma do Ocidente a Nicolau de Cusa, Porto Alegre, Edições EST, 2011, pp. 69-87. MITRE FERNÁNDEZ, E. “La Cristiandad medieval y las formulaciones fronterizas”. In: MITRE FERNÁNDEZ et alii (org), Fronteras y fronterizos en la Historia. Valladolid, Universidad de Valladolid, 1997, pp. 10-62. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 108 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 competências frente ao outro passariam a ser focadas a partir da criação de uma consciência territorial e sua equivalente alteridade entre cristãos de reinos vizinhos. 11 Um processo mais espontâneo e de rápida assimilação nos territórios fronteiriços e especialmente em momentos de guerra constante, transformando os Concelhos de fronteira em espaços privilegiados de observação desta transformação especialmente no contexto da Guerra dos Cem Anos na Península, a partir, portanto, de 1369. A problemática que nos motiva seria, então, a de saber como as elites reagem a este processo quase natural, concebendo-se como válidas e pertinentes as transformações estruturais em curso, tanto dos estratos nobiliárquicos quanto da instituição monárquica. Parece-nos que os reis seriam os principais agentes oficializadores destas concepções políticas, aproveitando-se da crise de identidade da nobreza para estabelecerem modelos de validade geral influenciados por estas concepções de predomínio do valor da naturalidade sobre a fidelidade vassálica extraterritorial. Modelos de signo centralizador cujos efeitos a base municipal também sofria sendo lesada a todo o momento em suas competências, prerrogativas e direitos consuetudinários e foralengos. No panorama sócio-político medieval português, quiçá, ibérico, observam-se sintomas de reações de voluntária incorporação e também de resistência a este processo recompositor da sociedade política que cerca os reis. Fenômeno que provoca importantes mudanças de alguns conceitos como natural, estrangeiro, domicílio, vizinho, fidelidade, traição ou deserviço, bastardia, exílios e mobilidades à luz de discussões desenvolvidas pelos Doutores em Leis que cercavam como letrados, os reis tardo-medievais12. Discussões, glosas e comentários de códigos legislativos e jurídicos que promovem uma compreensão, usos e combinações trecentistas e quatrocentistas para conceitos antigos como os de ius sanguinis e ius solis. Assim como a adesão de vários critérios definidores e reguladores do conceito de natureza como o de domicílio efetivo, tempo de residência, vontade verbalmente explicitada, traslado/ residência efetiva por uma década, filiação materna e paterna ou apenas a última que constituem aquilo que Strayer bem definiu como uma “territorialización empírica del 11 12 FERNANDES, F.R.” A fronteira luso-castelhana medieval, os homens que nela vivem e o seu papel na construção de uma identidade portuguesa”. In: FERNANDES, F.R. (org), Identidades e fronteiras no medievo ibérico. Curitiba, Juruá, 2013, pp.13-47; PAZ ESTEVEZ, M. de la. “La conquista de Toledo en 1085. Génesis y desarrollo de una frontera a través de sus fuentes”, pp. 23-43. QUINTANILLA RASO, M.C. “La renovación nobiliária em la Castilla bajomedieval: entre el debate y la propuesta”. In: La Nobleza Medieval en la Edad Media. Actas Del Congreso de Estudios Medievales, Leon, Fundación Sánchez-Alborñoz, 1999, pp.255-96. MOXÓ ORTIZ DE VILLAJOS, S. de. “De la nobleza vieja a la nobleza nueva”, pp.1-210. VITERBO, Fr. J. de Santa Rosa de, Elucidário das Palavras, Termos e Frases que em Portugal antigamente se Usaram e que Hoje regularmente se Ignoram. ed. Mário FIÚZA, Porto, Civilização, 1962-65, 2 v. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 109 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 derecho”13. A sistematização de formas linguísticas oficiais e de vocábulos acompanham este processo e promovem a associação da designação do reino a um espaço territorial definido como demonstra, por exemplo, a titulatura rei de Portugal e do Algarve. Enfim, um universo conceitual de forte cariz jurídico que defende o predomínio do Ius Commune ou Direito Comum que se impõe nas últimas décadas do século XIV e estará completo em meados do século XVI prenunciando a chegada dos Estados modernos. Assim, os exílios, movimentos que aparentemente refletem desagrados pontuais entre instâncias representativas de níveis centrais ou locais de autoridade, tomam, a partir destas reflexões uma dimensão mais estrutural e menos casuística. Uma proposta que constitui, assim, uma perspectiva de análise que busca promover uma revisão historiográfica ampla sobre o sentido da centralização monárquica, a regeneração nobiliárquica e as construções identitárias que acompanham estes movimentos, assim como apoios, resistências e acomodações a estas transformações. As razões que motivam estas deslocações são várias e merecem análise, mas importa reter antes de mais que a nobreza no recorte por nós proposto passa por importantes transformações estruturais internas com alcance nas relações de poder por elas praticadas. Toda a medievalidade é marcada pela dialética entre renovação e manutenção de alguns elementos, própria da concepção de tradição válida à época, a qual tem um sentido de inovação que encobre sob o manto da repetição, dos comentários e citação das fórmulas autorizadas, o recurso às vozes de autoridade, mas glosadas, comentadas, no fundo atualizadas. A tradição era entendida como fonte de autoridade e legitimidade o que não significava o congelamento de valores, tratava-se na verdade de um conceito intrinsecamente dinâmico que buscava contornar, assim, o medo escolástico da contradição e da originalidade associada ao pecado do orgulho14. Monarquia e nobreza em atualização. Observamos assim, na segunda metade do século XIV e XV de um modo geral em todos os reinos da Cristandade latina os reflexos de uma dinâmica de redefinição e atualização dos critérios definidores da monarquia e da nobreza. O processo de acirramento da centralização 13 14 STRAYER, J. apud MITRE FERNÁNDEZ, E. “La Cristiandad medieval y las formulaciones fronterizas”, p. 43. Ver ainda PÉREZ COLLADOS, J.M, Una aproximación histórica al concepto jurídico de nacionalidad. Zaragoza, Institución “Fernando el Catolico”, 1993; HESPANHA, A. M, História das Instituições; épocas medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina, 1982 e SILVA, N.E.G. da, História do Direito Português : IV. - Fontes de Direito. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian , 1985. ECO, U. Arte e beleza na estética medieval. SP/RJ: Record, 2010. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 110 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 monárquica avançava paralelamente ao de renovação dos modelos e perfis definidores da nobreza numa relação de provocação biunívoca. A tradição era o discurso legitimador de transformações que se impunham resultantes de um contexto instável que gerava guerras, crise dinástica, disputas internas e exílios, fenômenos que manifestavam o desgaste de modelos ultrapassados que tentavam resistir e a decorrente necessidade de reconstruir em bases ligeiramente diferentes as condições de restabelecimento de uma nova ordo. Um processo de readaptação e atualização transformadora que se desenrola no interior da própria diacronia histórica medieval abalando condições e status quo consagrados desde o século XI até os fins da Reconquista em Portugal e que nos séculos XIV e XV teriam de se reinventar para não desaparecer totalmente. Uma regeneração, como nos fala Quintanilla Raso 15 aprovada pelo poder régio cujos contornos são assumidamente de feição cavaleiresca resultado de uma incorporação dos valores nobiliárquicos pela instituição monárquica. Os reis a partir do século XIII utilizam-se dos mesmos argumentos, imagens mentais, ritos e atitudes da cavalaria medieval absorvendo uma das mais importantes forças de resistência ao seu processo de afirmação, a nobreza. Teria, no entanto, o cuidado de garantir a sua preeminência neste esquema colocandose como a fonte da atribuição e reconhecimento da virtus cavaleiresca fundamentado na sua própria escolha divina. A prerrogativa régia de ordenação de cavaleiros mesmo que o próprio rei não tivesse sido ainda ordenado é disso um bom exemplo16. O leque de atribuições exclusivas dos reis se ampliava exponencialmente: a guerra justa era a do rei, a justicia mayor do rei, a quebra-de-moeda ou monetágio e a cunhagem de moeda, dentre muitos outros exemplos possíveis. Num momento em que o corpus nobiliárquico, heterogêneo, de feição por vezes indefinida ou mesmo híbrida enfrentava uma crise de identidade a monarquia apresentava-se como o agente regulador das disputas e fonte de atribuição da nobilitude legítima acelerando mesmo que inconscientemente o processo de atualização/regeneração da nobreza. Mas como vínhamos discutindo até aqui, esta dialética entre renovação e manutenção de alguns elementos seria própria da concepção de tradição na Idade Média. Assim, por 15 16 QUINTANILLA RASO, M.C. “La renovación nobiliária en la Castilla bajomedieval: entre el debate y la propuesta”, pp. 255-95, vide ainda GONZÁLEZ MÍNGUEZ, César. “Las luchas por el poder en la Corona de Castilla: nobleza vs. Monarquía (1252-1369)”. IN: Clio & Crimen, 2009, 6, pp. 36-51. “De esta forma se rompía la autonomía del proceso feudal de transmisión de los valores caballerescos, que establecía que todo caballero debía ser armado por otro caballero, y se consolidaba la imagem del rey soberan, que se situaba por encima de ellos, como fuente y origen de su valor y excelencia. Lo que no quiere decir , por otra parte, que la caballería medieval aceptase sin rechistar tales planteamientos.”PALACIOS MARTIN, B,. “La recepción de los valores caballerescos por la monarquia castellano-leonesa”. In: Codex Aquilarensis: Cuadernos de Investigación del Monasterio de Santa Maria la Real, Aguilar de Campoo , Palencia, 1998, 13, p. 100. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 111 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 exemplo, a nobreza nova que cercaria os reis peninsulares na tardo-medievalidade manifestaria alguns elementos simbólicos e estratégias perpetuadoras de sua imagem que nestas representações de poder os aproximariam de modelos reconhecidos e estáveis da época da Reconquista. No entanto, tratava-se de indivíduos novos com experiência de ascensão sócio-política promovida em boa parte a partir de sua capacidade de ter iniciativas por vezes inusitadas, inovadoras diante de situações de perigo ou de negociação diplomática. Libertos da carga de expectativas que oprimia os ricos-homens estariam mais à vontade para inclusive improvisar estratégias nas quais os resultados começariam a ser mais considerados que os meios para alcançá-los. Atitudes modernas que garantiriam o acesso à indispensável fonte de estabelecimento régio especialmente no contexto dos séculos XIV-XV. No reino português encontramos assim, um sentido de transformações apontadas para um crescente afã de ordenação, codificação, sistematização e precisão de modelos, fórmulas e procedimentos. Multiplicam-se as ordenações, regimentos de armas e não só, procedimentos que tentam limitar uma natural diversidade própria de identidades de grupos, locais, consuetudinárias que deveriam espelhar-se nos modelos centrais e oficiais, no entanto, observa-se por parte da sociedade política como um todo certa resistência a estas medidas oficializantes. As relações régio-nobiliárquicas nos séculos XIV e XV dão-nos conta desta dialética de apoios e resistências à formatação de uma identidade portuguesa especialmente na dinastia avisina. Identificam-se nesta construção instrumentos ideológicos como o aproveitamento do fenômeno de regeneração nobiliárquica, atualizador e ao mesmo tempo plasmador de modelos de nobreza variantes. Um contexto onde se manifestam importantes movimentos e transformações ocorridas no bojo da medievalidade portuguesa seguindo tendências experimentadas em toda a Península Ibérica, quiçá no restante da Cristandade latina preconizando-se, portanto, uma abordagem que privilegie o estudo dos processos de construção ideológica monárquica mais que o reconhecimento basal dos modelos daí resultantes. Diante deste perfil atualizado da nobreza tardo-medieval válido para o reino português interessa, assim, compreender como seria entendido o exílio, em suas várias modalidades num contexto de predomínio de uma nobreza de serviço. Aplicação no recorte contextual português. Ao nível contextual seria com o assassinato de Pedro I, o Cruel, rei de Castela em 1369, por seu meio-irmão Enrique Trastâmara o que definiria a inserção da Península Ibérica no confronto anglo-francês da Guerra dos Cem Anos. As partidarizações acionadas após este Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 112 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 episódio que promoveria a quebra dinástica alfonsina em Castela trariam ao ambiente sóciopolítico peninsular um grau de instabilidade e hostilidade duradoura entre os reinos cristãos. O equilíbrio de forças sócio-políticas estabelecido desde a estabilização da Reconquista em fins do século XIII teria de ser reavaliado e reconstituído em bases distintas. Em Castela, o modelo clássico de resistência nobiliárquica frente às pretensões exageradas dos monarcas esgotaria-se com a morte em 1354 de João Afonso de Albuquerque representante de um jogo político que envolvera Portugal e os exílios e extermínio dos filhos bastardos do rei Dinis por seu filho reinante Afonso IV. Este teceria para si e seus descendentes uma política de vinculações que demonstram algumas inflexões na tradicional política luso-castelhana e o casamento do Infante Pedro de Portugal com uma filha de Juan Manuel manifesta bem esta inflexão 17. Os Manuéis representavam em Castela uma via direta de legitimidade que recuava a Fernando III ultrapassando a mácula usurpatória de Sancho IV de cujo ramo descendia Pedro, I, o Cruel. Assim, Afonso IV ao consorciar seu filho em 1339 com uma descendente legítima dos Manuéis libertava-se do tradicional jogo de associações diretas dos Infantes castelhanos com Infantas portuguesas recuando ao ramo secundogênito da Casa régia vizinha para construir estruturalmente as bases de um protagonismo português frente a um frágil ramo régio castelhano. Os excedentes deste jogo, como por exemplo, o Conde João Afonso de Albuquerque, filho do meio-irmão de Afonso IV que se exilara em Castela, defenderia o rei castelhano Afonso XI até a sua morte em 1350 quando passaria a ser hostilizado pelo Infante Pedro de Castela até o seu desaparecimento em 1354. Já em Portugal, a linhagem dos Castro seria afastada do poder por Afonso IV e também por Pedro, o Cruel de Castela, mas reabilitados após a ascensão de Pedro I de Portugal gerariam expectativas de ascensão do ramo ilegítimo da linhagem castelhana no reino português. Assim, podemos concluir que a partir de meados do século XIV estão postas as condições de destaque do reino português na península frente ao reino castelhano em seguida imerso numa guerra civil que oporia os filhos de Afonso XI e apostando num discurso que ainda pautava suas argumentações numa base de legitimidade sanguínea dos descendentes das Casas régias peninsulares. A partir daí a sucessão de quebras dinásticas seja por razões naturais ou provocadas obrigaria a uma reformatação das estratégias de aliança político-matrimonial. Se o pai de Fernando conservara traços de pouca disposição para alterar um jogo tradicional de alianças, 17 FERNANDES,F.R. “A dimensão política do reino português na segunda metade do século XIV, os matrimônios régios e o ocaso de uma dinastia”. In: Cuadernos de Historia de España, 2011-2, LXXXVLXXXVI, pp.199-214. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 113 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 o jovem Infante em 1366 já manifestaria sintomas de uma orientação de alianças de outro signo. Quando em 1366, o rei castelhano Pedro, o Cruel resolve forçar a concretização da aliança com Portugal e entra no reino recebe apenas a indiferença de seu tio e volta sem qualquer esperança de hostes ou apoio frente a seus oponentes. É neste momento que começa a surgir a voz indireta do Infante Fernando jovem herdeiro de 21 anos a quem as fontes portuguesas reconhecem que o rei castelhano teme a ponto de pedir salvo-conduto a seu tio para sair do reino português, (...) e esto fazia elle temendosse do Iffamte Dom Fernamdo de Purtugal, por seer sobrinho da molher delRei DomHemrrique18, Juana Manuel. Estava feita a opção do Infante Fernando, ou seja, fazer valer as amplas potencialidades que seu avô lhe deixara e honrar a sua vinculação familiar direta aos Manuéis em detrimento de uma aliança com os descendentes de Sancho IV19. Pedro, o Cruel percebe a opção de Fernando e busca a aproximação aos ingleses com quem casa suas filhas, opção estratégica da qual lhe advém a vitória em Nájera em 1367, ano a partir do qual Fernando ascende ao trono português tecendo de motu próprio os seus projetos de aliança política e usando até o infinito o seu potencial matrimonial intacto à data de sua ascensão. A partir de 1369, após o assassinato de Pedro, o Cruel, os nobres castelhanos própetristas, os chamados emperegilados, liderados por Fernando Peres de Castro passam ao reino português e oferecem o trono de Castela a Fernando, legítimo descendente da Casa régia castelhana na linha de Fernando III frente às pretensões do bastardo Enrique Trastâmara que tomara as mesmas pretensões e consorciar-se-ia com este fim, com outra Manuel na vã esperança de legitimar suas pretensões. Mas, ainda teria de lutar contra a carga pejorativa do argumento de sua bastardia, seu defeito de nascimento, de sangue, mal de que não padecia o rei português Fernando. Os Castro lideram, portanto, em 1369 o primeiro movimento coletivo de exilados, deixando suas casas e status na busca pelo apoio no reino vizinho. Cerca de quarenta e cinco nobres de várias extrações seguidos de suas famílias e dependentes que se instalam no reino compondo boa parte da sociedade política fernandina pelo menos até 1372 quando cerca da metade mais influente seria expulsa por conta de um tratado de paz estabelecido com Castela. 18 19 Mesmo a comitiva escolhida para acompanhar o rei Pedro, o Cruel até à fronteira com Castela teme ao Infante Fernando que os mandara ameaçar, pelo que deixam o rei castelhano na Guarda apesar das propostas de pagamento extra se o levassem até a Galiza. (LOPES, F.Crónica de D. Pedro I. Cap. 39, pp. 180-1). FERNANDES, F.R. “A dimensão política do reino português na segunda metade do século XIV, os matrimônios régios e o ocaso de uma dinastia”, pp.199-214. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 114 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Passariam em boa parte ao reino de Inglaterra onde constituiríam uma companhia de mercenários a serviço do Duque de Lancaster contra o reino francês. Este seria o primeiro grupo a ser analisado em suas expectativas, motivações e realizações durante o seu exílio em Portugal, assim como no impacto dos nobres naturais do reino e também dos já estabelecidos há mais tempo como João Afonso Teles e Álvaro Peres de Castro 20. Para além da expressiva quantidade de indivíduos em movimento chama aqui a atenção o fato de serem nobres apoiantes das estratégias políticas mais tradicionais, representantes da nobleza vieja e seus vassalos, que se instalam no poder até os fins da Reconquista e vêem-se ameaçados pelas novidades que traz o pretenso herdeiro Trastâmara ao trono. A aliança com o reino da França e o apoio a Avignon, a proposta de um modelo político atualizador, inclusive, a partir da tolerância e desconsideração em relação ao entrave da bastardia por conta de sua própria condição e da disposição ilimitada de buscar aliados que legitimassem a sua causa, afastaria estes nobres galegos e leoneses; inclusive porque agora se tratava de uma causa, a causa Trastâmara mais do que um casuísmo político. Os emperegilados em Portugal engrossariam os quadros nobiliárquicos de um reino no qual o rei seria identificado em Crônica régia posteriormente escrita como quem:"(...) Amava justiça, e era prestador, e graado mujto liberal a todos, e gramde agasalhador dos estramgeiros. Fez mujtas doaçoöes de terras aos fidallgos de seu reino, tantas e mujtas mais que nenhuum Rei que antelle fosse"21. Um conjunto de nobres e seus vassalos disponíveis e dispostos a cumprir várias funções no reino português como procuradores e embaixadores de D. Fernando e recebendo, inclusive, a responsabilidade militar como alcaides de muitos castelos fronteiriços apesar das fortes críticas dos súditos vilãos manifestas especialmente nas Cortes de 1371-222 . Além disso, fomentariam duas guerras de Portugal contra o usurpador castelhano em nome da defesa da legitimidade do rei português ao trono de Castela; uma potencialidade que D. Fernando só dispunha em função das escolhas que seu avô concretizara ao casar seu pai com uma representante da linhagem dos Manuéis. Estes nobres tinham testemunhado a morte do seu rei e senhor jurado e reconhecido em Castela, Pedro I, o Cruel e recusando-se a refazer o voto ao seu substituto tinham preferido tornarem-se fiéis vassalos do rei português. Uma condição perfeitamente estabelecida e válida mesmo para os padrões mais arcaicos de vinculação 20 21 22 FERNANDES,F.R. Sociedade e Poder na Baixa Idade Média Portuguesa. Curitiba, Ed. UFPR, 2000, cap. IV, pp. 267-318.. LOPES, F. Crónica de D. Fernando. Prólogo, p. 3. Nas Cortes de Lisboa de 1371 há mesmo um artigo onde o Povo pede-lhe que não conceda alcaidarias do reino a estrangeiros (Cortes Portuguesas. Reinado de D. Fernando (1367-1383). A. H. de Oliveira MARQUES e Nuno José Pizarro Pinto DIAS (eds.), Lisboa, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa INIC/ JNICT,1990-3,v.I, art.744, p.51). Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 115 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 vassálica ordenadora das relações de poder da elite e que relativizava conceitos como o de naturalidade daí que estes homens não seriam vistos como traidores do reino castelhano. Situação que mudaria quando promovessem guerra ao seu reino de origem linhagística segundo as condições de desnaturamento previstas por Juan Manuel no século XIII passando à condição de deserviço ao rei e ao reino também de nascimento atualizando e ampliando, neste século XIV, o conceito de natural e, por conseguinte de desnaturamento23. Mas, em breve esta causa Trastâmara faria valer suas pretensões num mundo em que a nobreza de serviço seria de fundamental apoio às pretensões de bastardos à Casa régia. Os emperegilados seriam expulsos de Portugal em 1373 e esta seria uma condição nova, a obrigação vergonhosa determinada em cláusula do Tratado de Santarém de que o rei português deveria expulsar os seus apoiantes em seu reino por conta da derrota frente ao vencedor castelhano. O poder de Enrique Trastâmara estendia-se, assim, ainda que momentaneamente sobre castelhanos acoutados no reino português, obrigados a deixar as terras do reino de D. Fernando e de sua proteção. O rei português dera-se conta muito tardiamente que tentara usar estas forças de vassalos recentemente aceites a favor de sua projeção, mas fora igualmente usado por alianças que se foram tecendo entre Fernando Peres de Castro, o líder dos emperegilados e o Duque de Lancaster casado com a filha e herdeira de Pedro I, o Cruel manifestando pretensões semelhantes à do rei português por direito de casamento. A resistência e demora no atendimento aos termos do tratado de Santarém agravara ainda mais a pressão castelhana sobre a soberania do rei português que termina por desabafar: “(...) eu nom fui bem avisado em tal feito, nem isso mesmo os de meu comselho, em cometer tal guerra qual fui começar; por que seu aa primeira bem cuidara como se o duque Dallamcastro chamava Rei de Castella, e sua molher Rainha, dissera a vos outros que vos forees todos pera ele, e que el vehesse demandar o reino, se lhe per dereito perteemçia; e em isto fezera melhor siso, que gastar meus reinos e gente como gastei, e comprar omezio de que me nom veho proveito, mas mui gramde perda(...)”24. Da condição de vassalos, recebidos voluntariamente pelo rei em Portugal, os emperegilados passavam, quatro anos depois a omézios, um estorvo político com nenhum ganho concreto para o reino que os recebera tão prodigamente, condição que nos dá conta o testemunho de João Afonso de Moxica que após a diáspora acabaria instalado em 1379 na Corte Trastâmara de onde falaria saudosamente da prodigalidade fernandina. 23 24 PÉREZ COLLADOS, J.M. Una aproximación histórica al concepto jurídico de nacionalidad. 1993. LOPES, F. Crónica de D. Fernando. Cap. 86, pp. 227-8. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 116 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 "(...) Eu nom ei razom de saber todallas graadezas que elRei Dom Fernando mostrou contra aquelles senhores e fidallgos que se pera sua terra forom, sei porem que reçebiam delle todos mujta homrra e gramdes gasalhados, e a mujtos que nomear poderia, deu villas e terras de jur e derdade, e gramdes dadivas de dinheiros e bestas e outras cousas. E de mim vos digo que estamdo huuma vez na çidade Devora, que el me mandou huum dia trimta cavallos, e trinta mullas, e trimta arneses, e trimta mil livras em dinheiros, que eram mil e çento e tantos marcos de prata, e quatro azemellas, as duas dellas com duas camas, e as outras duas com roupa destrado, e mais me deu de jur e derdade huuma sua villa que chamam Torres vedras; e per aqui poderees veer que daria aos outros senhores e fidallgos de moor estado e condiçom que eu"25. De fato, daí em diante os expulsos, não mais auto-exilados como da primeira vez visto que o rei português que os acolhera como vassalos considera-os agora, daninhos, rompendo o vínculo de fidelidade devido ao deserviço que eles causaram ao reino usando-o em função de interesses primários e particulares. Estariam à deriva temporária num universo sócio-político estruturalmente vinculativo vagando por Aragão até chegarem à Inglaterra onde um dos própetristas, João Fernandes Andeiro que já servia ao Infante inglês passaria a polarizar boa parte destas forças ainda que numa dimensão de companhia mercenária26 convertidos em vassalos com fraca dimensão política especialmente após a morte de seu líder original, Fernando Peres de Castro em 1377. Seriam usados mais como força militar qualificada e retornariam em 1381 ao reino português acompanhando o Duque de Lancaster que por força do Cisma do Ocidente e do andamento da guerra contra o eixo-franco-castelhano precisava manifestar seu apoio ao reino português mais uma vez frente à Castela Trastâmara e seus aliados. Manifestava-se aqui, claramente um processo de atualização do perfil da nobreza desta segunda metade do século XIV a partir deste episódio que convertera representantes da nobreza de sangue, pelo menos seus líderes mais expoentes em uma nobreza de serviço, num exílio forçado, transformados em criminosos de guerra. Haviam sido empurrados a esta condição por motivações tradicionais, o questionamento à legitimidade de um bastardo que provocara uma quebra dinástica que seria biologicamente quase inevitável, mas sem encontrarem um apoio durável em reino vizinho ou mesmo nos representantes da linhagem líder dos Castro no reino português veriam-se obrigados a improvisar estratégias de sobrevivência mais modernas. Ao adaptarem-se á realidade transformada por uma guerra global, a Guerra dos Cem Anos e a crise do feudalismo27, encontrariam seu novo lugar a partir do critério da privança em primeiro lugar 25 26 27 LOPES, F. Crónica de D. Fernando. Cap.27, p.80. Russell refere-o em Inglaterra, em consonância com documentos ingleses como: "(...)Andeiro and his fellowcountrymen" (RUSSELL,P. “João Fernandes Andeiro at the Court of John of Lancaster, 1371-1381”. In: Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1940, vol. XIV , pp.28-9). BOIS, G. La grande depresión medieval, siglos XIV-XV: el precedente de una crisis sistémica. Valencia, Biblioteca Nueva, Universitat de Valencia, 2001. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 117 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 o que dava-lhes a feição da nobleza nueva que Salvador de Moxó identifica para os castelhanos a partir da dinastia Trastâmara. Uma constatação mais estrutural que episódica e que manifesta uma transformação subterrânea, interna da nobreza nestes séculos cujos sintomas se tornam mais visíveis nos momentos de crise dinástica e guerras. Em pazes novamente com o reino vizinho D. Fernando ao casar-se com Leonor Teles em 137228 rejeitava, no entanto, a Infanta Leonor de Trastâmara, filha de seu opositor, com a qual, pelos termos do acordo de Alcoutim de 1371 deveria se casar. Escapava, assim, de legitimar o projeto trastamarista e de boicotar as pretensões inglesas ao trono castelhano e simultaneamente evitava a diluição de sua projeção num eixo franco-castelhano onde o reino português seria um elemento secundário. De certa forma seguia, em grandes linhas o projeto de seu avô, Afonso IV, recusando-se a secundarizar o projeto do usurpador Trastâmara que, por sua vez, pelo tratado de Tuy de 1372 relativizava a desfeita portuguesa e refazia os termos das pazes indispensáveis para a frágil dinastia castelhana nascente29. Muito em breve, o reino português passaria por um fenômeno semelhante devido à quebra dinástica gerada após a morte do rei Fernando sem descendência varonil, agravada pelos termos do Tratado de Salvaterra de Magos de 1383 e pela ambição de Juan I Trastâmara casado com a Infanta portuguesa, filha do falecido rei. A ascensão do Mestre de Avis, primeiro à condição de Regente do reino e finalmente a rei de Portugal nas Cortes de Coimbra de 138530 seria francamente questionada pelo rei Juan I Trastâmara, nos mesmos termos em que seu pai fora questionado. Enrique Trastâmara, bastardo de Afonso XI fora questionado em suas pretensões devido à sua condição de bastardia e também por haver uma alternativa viva e legítima na época, seu meio-irmão, Pedro I, o Cruel; fora acusado, portanto, de usurpação. João I de Avis, por sua vez, seria questionado internamente pela nobreza por conta de sua ilegitimidade e por haver também uma alternativa, o Infante João de Castro, o qual, no entanto, era tão ilegítimo quanto o Mestre e, além disso, encontrava-se na condição de desnaturado por ter feito guerra contra Portugal e ausente do reino por cuidados do rei castelhano que o mandara prender logo após a morte do rei Fernando. O povo, no entanto, não pedia arraial pela Infanta Beatriz, pelo Infante Castro nem pelo Mestre de Avis, mas sim, por Portugal, pelo seu direito 28 29 30 FERNANDES,F.R. “A dimensão política do reino português na segunda metade do século XIV, os matrimônios régios e o ocaso de uma dinastia”, pp. 199-214. Uma mesma desfeita ocorreria frente a Aragão em 1371-2. CAETANO, M. “As Cortes de Coimbra de 1385”. In: separata da Revista Portuguesa de História, Coimbra: Faculdade de Letras, 1951, vol. V. e Id. História do Direito Português: fontes –Direito Público (1140-1495). 2 ª ed., Lisboa/ São Paulo, Editorial Verbo, 1985. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 118 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 soberano de escolher o monarca que reinaria sobre Portugal 31. A questão da naturalidade precoce nos meios municipais burgueses dava seus primeiros vagidos pleiteando uma governação soberana, livre de interferências externas que cláusulas tratadísticas ou relações de poder ancestrais tentavam legitimar. Do ponto-de-vista externo os argumentos de questionamento à causa de Avis podem ser colhidos nos relatos da Crônica régia atribuídos ao Dr. João das Regras. A estratégia é o rebaixamento de todos os candidatos a uma condição de ilegitimidade jurídica de nascimento ou da natureza de suas pretensões e ou ações nivelando os candidatos a partir de uma perspectiva favorável ao Mestre de Avis. A Infanta Beatriz padeceria da ilegitimidade de nascimento visto que sua mãe ainda estaria casada com João Lourenço da Cunha quando se consorciara com seu pai, o rei Fernando. Além disso, seu casamento com o rei castelhano, de quem era sobrinha, seria igualmente inválido por não dispor de dispensa matrimonial por consanguinidade. O rei castelhano, por sua vez, seria acusado de ilegitimidade na dimensão espiritual de seu poder régio devido ao reconhecimento dado ao Papa de Avignon o que o tornava aos olhos dos apoiantes de Roma, cismático e herege, descumpridor das funções de defensor da Igreja e dos fiéis. Os Infantes Castro seriam ilegítimos pelo sangue, filhos de uma união nunca plenamente reconhecida apesar dos esforços de seu pai, Pedro I de Portugal junto ao Papa, além do fato dos progenitores serem compadres o que impedia legalmente o reconhecimento do matrimônio. Um agravante da ilegitimidade das pretensões dos Infantes Castro seria o fato de sendo homens criados, terem feito guerra e destruição ao reino português desnaturando sua origem. Apresentado este panorama, o jurista português discípulo de Baldo defendia a tese de não haverem candidatos legítimos à sucessão do rei Fernando I e que deveriam eleger um rei do qual começa a traçar o perfil.32 “ E digo brevemente segumdo os saibos rrecomtam, que amtre as outras cousas que em ell ha daver, deve de seer de boom linhagem, e de grãde coraçom pera deffemder a terra; desi que haja amor aos súbditos; e com isto bomdade e devaçom. Hora que estas comdiçoões sejam achadas no Meestre, nosso senhor, que teemos e voomtade pera emlleger, assaz he visto claramente como todos bem sabees” 33. Assim, diante da inexistência de candidatos legítimos à sucessão hereditária de Fernando, fundava-se uma nova dinastia pela eleição de um rei reconhecido pela sua sociedade política 31 32 33 FERNANDES, F.R. “A fronteira luso-castelhana medieval, os homens que nela vivem e o seu papel na construção de uma identidade portuguesa”. In: FERNANDES, F.R. (org). Identidades e fronteiras no medievo ibérico. Curitiba, Juruá, 2013, pp. 13-47. LOPES, F. Crónica de D. João I. 1ª p., introd. Humberto Baquero MORENO e prefácio de António SÉRGIO, Barcelos-Porto, Civilização, 1991, caps. 183-192, pp. 393-424. LOPES, F. Crónica de D. João I. 1ª p, cap. 191, p. 420. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 119 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 como detentor das melhores qualificações: filho de rei, defensor do reino na guerra, condição já comprovada desde 1383 e de bom coração. Atributos funcionais de monarca que longe de pretender usurpar o trono, tal como Enrique Trastâmara, receberia de seus súditos e pela eleição a tarefa de pôr ordem no reino. Uma causa, mais que uma dinastia se inaugurava e mesmo que seu governo não chegasse a atender à maioria das expectativas originais, inaugurava uma nova realidade institucional no reino português que assustaria a nobreza mais tradicional. Os nobres portugueses que lutaram contra o reino de Castela Trastâmara, usurpadora e ilegítima não aceitariam João de Avis como seu rei e passariam paulatinamente ao reino vizinho, a mesma Castela, em busca de exílio temporário até que as coisas voltassem à velha ordem em seu reino inaugurando uma nova vaga de exílios voluntários. Muitos deles morreriam no campo de Aljubarrota neste mesmo ano de 1385 confirmando uma condição permanente de lacuna, vazio na sociedade política de Avis facilitando a implantação de um modelo monárquico mais centralizador e eficiente do ponto-de-vista administrativo em Portugal. A sua feição institucional originariamente modernizadora não seria sinônimo de popularização do poder, muito pelo contrário, caminharia no sentido de uma crescente institucionalização do poder régio reduzindo espaços de diálogo e dependência do consenso em suas decisões e tarefas legislativas e administrativas em geral. Um processo facilitado pelo predomínio à sua volta de uma nobreza em franco processo de regeneração, receptiva às medidas ordenadoras do rei. As causas de Avis e a Trastâmara, especialmente depois de instalada e reconhecida, refletiam movimentos de atualização, transformação, mas não no sentido de uma popularização do poder. Encaminhavam-se mais num sentido de eficiência administrativa, limites à corrupção, reflexão sobre a validade das guerras, privilégios e prerrogativas exageradas, enfim, uma modernização da monarquia, manifesta e anteriormente demandada em Cortes pelo Povo. Argumentos e discursos legitimadores consonantes com as expectativas da burguesia que transformam as crises dinásticas dos séculos XIV e XV em causas de apelo, inclusive, popular, assim como dos estratos excedentes da elite. Os grupos nobiliárquicos resistentes tanto às novas dinastias como às novas estratégias governativas, cada vez mais centralizadoras e pautadas na eficiência do apoio mais que na fidelidade a um voto vassálico acabariam por ser incorporados pelas novas dinastias. Inicialmente estas frágeis linhagens monárquicas mostram-se absolutamente permeáveis à adesão de qualquer indivíduo ou grupo que reforce a sua frágil legitimidade e apenas quando sentirem-se minimamente seguras no poder manifestarão um modelo governativo recuperador de poder e crescentemente concentrador das decisões e rumos políticos de suas monarquias. A Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 120 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 nobreza de serviço seria menos reticente a este modelo governativo, adequando-se melhor aos critérios de reconhecimento e ascensão que passavam cada vez mais pelo mérito, iniciativa individual e serviço ao rei, suserano dos suseranos que acumulava em sua instância central as atribuições e as contrapartidas sem prever concorrência à sua centralização de poderes e à prerrogativa de criar novos vassalos. E será através do fenômeno dos exílios que buscamos avaliar este diálogo entre um modelo régio modernizador cada vez menos disposto a partilhar seu poder com nobres de sangue, seus potenciais concorrentes e as possíveis resistências provocadas por este movimento. Além disso, no esteio de uma redefinição da natureza das relações de poder destes séculos da tardo-medievalidade entre a nobreza de serviço ou privilégio e seus reis, observamos tratar-se de forças em movimento e transformação atualizadora que ainda que conservem elementos de uma tradição ancestral, seu caráter personalista, por exemplo, manifestam sintomas de novidade em seus critérios de reconhecimento e validade; além das estratégias mantenedoras de sua condição legítima disfarçados num invólucro de tradição legitimadora. Com esta perspectiva de análise pretende-se ainda promover uma revisão historiográfica sobre este tema das quebras dinásticas e seu impacto na recomposição da sociedade política explicados a partir de critérios válidos apenas até o século XIII sem considerar estes movimentos de transformação estrutural que atravessam os séculos finais da medievalidade e que provocam atualizações dos modelos e lógicas de relacionamento político originais e plenamente válidos à época da Reconquista, mas não mais depois. Esta nobreza de privilégio tendo alcançado a privança régia urgia em seguida tecer estratégias que perpetuassem a sua condição, seja através de matrimônios seja através de instrumentos ideológicos mais elaborados. Assim, observamos que as Crônicas constituíam-se como textos cristalizadores por excelência de sua imagem idealizada de nobre garantindo a individualidade fundadora de uma legitimidade que deveria ser estendida hierarquicamente ao coletivo de seus descendentes na linhagem. Com isso buscava-se assegurar a fração de continuidade dos valores mais conservadores e legitimadores ainda que em textos fundadores de uma tradição nova à volta de uma linhagem. Estratégias que se estenderiam até mesmo à inserção apócrifa de suas existências e façanhas nos Livros de Linhagens como o do Conde D. Pedro, nos fins do século XIV e inícios do XV. Assim, esta nobreza nova diante de um panorama de fragilidade de sua identidade original, inseria-se à força dentro dos próprios instrumentos de resistência da nobreza de sangue como a literatura genealógica. Percebe-se, também aqui uma convivência entre o reconhecimento dos protagonismos individuais e os valores historicamente reconhecidos das solidariedades coletivas linhagísticas manifestando Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 121 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 a mesma dinâmica própria do conceito de tradição acima referido. Tal movimento promove, no entanto, uma crescente indefinição entre os estratos da nobreza e também entre a nobreza de serviço e a burguesia municipal, especialmente os cavaleiros-vilãos que serviam de força militar e apoio sócio-político à ascensão desta nobreza nova.34 Nos inícios da década de ’90 do século XIV, João I de Avis, representante de uma monarquia nova em todos os sentidos, mas de feição centralizadora que tinha feito grandes concessões de benefícios à nobreza criada e estabelecida à sua volta e por seu beneplácito precisaria recuperar parte de suas atribuições e conter as resistências à sua preeminência. O indubitável protagonismo e eficiência bélica do Condestável Nuno Alvares Pereira geraria disputas com outros nobres que pretendiam igualmente ascender fosse à privança régia, fosse ao patrimônio concedido pelo rei. No entanto, seriam ofuscados em parte pela ambição de exclusividade e epigonismo manifesta por Nuno Alvares, modelo de nobre de serviço, apesar disto, os murmúrios contra o Condestável continuariam a difundir-se35. Era chegada a hora de o rei português colocar limites às extensões indevidas ou exageradas de poder da sua nobreza e começaria pela recuperação de patrimônio para a monarquia, política que causaria outro momento importante de fração de seus apoios no reino36. O estopim da iniciativa régia assentaria em dois episódios, o primeiro seriam as pazes estabelecidas com Juan I Trastâmara em fins de 1389, as quais em Castela pressionariam o rei a ponto de ele pensar em renunciar ao seu trono, situação agravada pelo vazio de poder gerado por sua morte em outubro de 139037. Um momento de fraqueza do oponente tradicional, cujo reino esgotaria-se em questões internas ligadas às disputas e dissensões entre os tutores do herdeiro em sua menoridade. Mesmo após sua ascensão, a política castelhana de Enrique III em relação a Portugal passaria naturalmente a um nível de prerrogativa periférica e D. João I de Avis com tréguas acertadas de quinze anos após 1393, teria condições políticas de voltar-se para a organização interna do reino e de sua sociedade política. 34 35 36 37 FERNANDES,F.R. “A fronteira luso-castelhana medieval, os homens que nela vivem e o seu papel na construção de uma identidade portuguesa”. In: FERNANDES (org), Identidades e fronteiras no medievo ibérico. P. 13-47. LOPES, F. Crónica de D. João I. 2ª p, ed. M. Lopes de ALMEIDA e A. de Magalhães BASTO, Barcelos-Porto, Civilização, 1990, cap. 131, pp. 289-92. FERNANDES, F.R. “Os exílios da linhagem dos Pacheco e sua relação com a natureza de suas vinculações aos Castro (segunda metade do século XIV)”. In: Cuadernos de Historia de España, 2008, vol. 82, pp.3154; FRANCO SILVA y GARCIA LUJAN, Los Pacheco. “La imagen Mítica de um Linaje Português em Tierras de Castilla”. In: Actas das II Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, Porto, Comissão Organizadora do Congresso / INIC, 1989, vol.III, pp. 969-74 e BAQUERO MORENO, Contestação e oposição da nobreza portuguesa ao poder político nos finais da Idade Média, Revista da Faculdade de Letras, Porto, FLUP, 1987, v. IV. Crónica del Rey Don Juan, primero de Castilla e de Leon. Madrid, Biblioteca de Autores Españoles, Ediciones Atlas, 1953, vol. 2, caps. I-II, pp. 125-9. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 122 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 O segundo episódio, decorrente do primeiro foi a distribuição de bens promovida pelo Condestável entre seus vassalos devido à pacificação anunciada do reino. Daria-lhes rendas de lugares que ele tinha recebido em préstamo do rei e que repassava na mesma condição a seus fiéis, os quais em troca manteriam escudeiros para serviço do rei e do nobre Nuno Álvares Pereira38. Este, senhor de sua própria sociedade política afrontaria o rei com esta iniciativa e aguçaria a ambição dos outros nobres que passariam a defender uma emergencial recolha patrimonial régia dos bens doados ao Condestável para fazer frente às necessidades inerentes aos três descendentes de D. João I já nascidos. O rei resolve-se por um chamamento régio que na verdade, atingiria o Condestável 39, mas também outros beneficiados, obrigados a devolver ou vender as terras recebidas em préstamo ao rei dentre eles os Cunha e Pacheco e contribuiria juntamente com outros elementos conjunturais para seus respectivos exílios em Castela a partir de 139740. Já Nuno Álvares, após este episódio começa imediatamente a organizar seu exílio, disposto a partir acompanhado voluntariamente de muitos dos seus, desgostoso com a postura de força do rei. Uma ameaça para D. João I preso à necessidade de manter o equilíbrio na distribuição dos benefícios entre a sua nobreza, mas ao mesmo tempo 38 39 40 LOPES,F. Crónica de D. João I. 2ªp, cap. 151, p. 331. Considerando-se que em carta emitida em Lisboa a 30 de março de 1389 D. João I confirmava a seu Condestável todas as doações feitas enquanto era apenas Regedor do reino (AN/TT. Chancelaria de D. João I. l. II, f.15) e a 2 de julho de 1390 desde Santarém o rei confirmaria ainda as doações feitas ao Condestável pelo rei D. Fernando com suas jurisdições e direitos correspondentes (Idem, ibidem, l. IV, f. 49v) podemos considerar que a dita devolução de benefícios ao rei seria em data posterior à destas cartas. Ainda em carta de 15 de novembro de 1389 emitida em Braga o rei confirma doação do Condestável a um seu escudeiro (Idem, ibidem, l. II, f. 38 e v). Na Chancelaria as confirmações régias de doações feitas pelo Condestável a terceiros permanecem e a partir de 1391 encontramos cartas de escambo como a de 30 de outubro de 1391 emitida nos Paços do Conde em Barcelos, na qual o Condestável troca com seu primo João Rodrigues Pereira, a terra de Basto que recebera do rei pela terra de Baltar que seu primo herdara de seu pai ( AN/ TT. Chancelaria de D. João I. l. IV, f. 88-90). Ainda em carta de 11 de maio de 1392 o rei confirma o escambo descrito na carta anterior de 1391 e inclui o reconhecimento régio a escambo do Condestável com Lopo Dias de Azevedo. Este dá-lhe Vila Nova de Anços, Pereira, Nouras e o reguengo de Alviela em troca da terra de Pena e Bouças do Condestável (Idem, ibidem, l. II, f. 67v) . Já em outra carta de 11 de maio de 1392, o rei em Coimbra escamba com o Condestável a juridição cível e crime da terra de Baltar em troca do mesmo direito sobre a Vila Nova de Anços (Idem, ibidem, l. II, f. 67 e v). Aventamos a hipótese de que nesta forma tão freqüente de escambo do Conde com seus vassalos e a intervenção talvez forçada do rei nesta troca se fariam os ensaios à referida recuperação de patrimônio régio que deve ter ocorrido entre 1392 e 1398 quando novamente encontramos cartas de doação régia ao Condestável (Idem, ibidem, l. II, f. 148). A 1 de setembro de 1398 o Condestável receberia a maioria dos bens fruto de doação régia que Gil Vasques da Cunha tinha no reino devido a seu exílio em Castela (Idem, ibidem, l. II, f. 180v). LOPES, F. Crônica de D. João I. 2ªp, cap. 152, p. 332, MITRE FERNANDEZ, E.” La emigracion de nobles portugueses a Castilla a fines deI siglo XIV”. In: Hispânia: Revista Espanhola de Historia, Madrid, CSIC Instituto Jerónimo Zurita, 1966,vol.104, pp.513-25 e BAQUERO MORENO, H. “ Exilados portugueses em Castela durante a crise dos finais do século XIV (1384-88)”. In: II Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, Porto, Centro de História da Universidade do Porto/ INIC, 1987-1990, vol. 2, 1989, pp. 69-101. Martim Vasques da Cunha a 2 de maio de 1394 vê-se obrigado a vender as terras de Sul, Gulfar, Seia, Penalva, Çatam, Rio de Moinhos, Aguiar da Beira e Lousada que tinha recebido a 21 de maio de 1384 devido ao deserviço de Henrique Manuel de Vilhena, seu possessor, para a constituição do patrimônio dos Infantes ( AN/TT. Chancelaria de D. João I. l. I, f.19v e l. II, f.94v-95). Para períodos anteriores vide ainda, PIZARRO, J.A.de S.M. “De e para Portugal. A circulação de nobres na Hispânia medieval (séculos XII a XV)”. In: Anuario de Estudios Medievales, Madrid, CSIC, 2010, 40/2, pp. 889-924. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 123 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 consciente de sua dependência em relação a Nuno Álvares, um epígono, mas totalmente fiel ao seu rei. São vários os emissários enviados ao Conde até que o convencem a permanecer apesar da manutenção das restrições de criação de vassalos por parte da nobreza, prerrogativa estritamente régia. Os bens distribuídos seriam retomados por D. João I, assim como os vassalos feitos pelos nobres41. Todos os esforços de centralização de recursos e poder simbólico e político seriam empregues a partir daqui ao serviço da monarquia de Avis e uma estratégia eficiente seria limitar as fontes de recursos disponíveis por parte de sua nobreza. Claro que tal estratégia régia de reduzir as fontes de recursos nobiliárquicos coibiria intencionalmente iniciativas pessoais da sua nobreza, as de potencial confrontação em primeiro lugar, mas também as de apoio. No entanto, a guerra justa e legítima era cada vez mais a do rei e não seriam mais aceitas assuadas entre nobres, especialmente com recursos da monarquia. O fato é que as forças do Condestável não encontrariam oposição em Castela por onde vaguearia por quinze dias pilhando e queimando as terras aos olhos do Mestre de Santiago e nem mesmo o Infante Dinis ousaria confrontá-lo em batalha42. Nuno Álvares acharia no botim a fonte de recursos que a monarquia lhe negava. Era um homem de ação, mais que argumentador ou negociador e aparece como protótipo do nobre deste período de transição que progredia por suas ações e vitórias e deixava aos letrados e Doutores em Leis o encargo de negociar termos e legislação. As Crônicas o apresentam como bom ouvinte de seu Conselho, no entanto, quando se vê na obrigação de ouvir as argumentações de seus homens insatisfeitos com as ordens de expulsão das mulheres das suas companhias, destaca-se a disposição do Condestável em trocar tal situação de explicação das razões por uma boa batalha43. A mesma inquietude manifesta diante dos debates subjacentes às Cortes de Coimbra de 1385 onde era o cabeça do partido do Mestre44 ou mesmo no Conselho sobre a batalha de Aljubarrota seriam ainda sua marca registrada nas negociações das pazes de 1398. Nestas, que decidiriam sobre a devolução a Castela de Tuy e Badajoz interviriam com a ajuda de quadros qualificados em Direito, no entanto, não dispensaria os seus homens armados durante os dez meses que duraram as 41 42 43 44 LOPES, F. Crónica de D. João I. 2ª p, cap. 153, pp. 335-6. LOPES, F. Crónica de D. João I. 2ªp, caps. 166-172, pp.363-379. LOPES, F. Crónica de D. João I. 2ªp, cap. 69, pp. 176-7. Além de deixar o recinto esbravejando ao perceber que os votos tendem ao outro partido, intimida Martim Vasques da Cunha ao invadir com suas forças o Paço onde este iria falar ao então Mestre de Avis (SANTOS, M. dos. Monarquia Lusitana. Ed. A. da Silva REGO, A. Dias FARINHA e Eduardo dos SANTOS, 3 ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1988, parte VIII, cap. XXIX, pp. 648-54). Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 124 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 inúteis negociações.45 Em 1401 preparava-se novamente o confronto onde Nuno Álvares seria requisitado, mas onde teria um papel menos efetivo, respondendo pelo controle da devolução dos reféns castelhanos e dos equivalentes castelos portugueses 46. Iniciava-se o período de pazes sucessivas até chegar-se às pazes de 1411, as quais seriam confirmadas em 1431, ano da morte do Condestável, momento em que Fernão Lopes interrompe o relato da Crônica régia e insere uma Crônica abreviada deste personagem a partir de uma perspectiva dicotômica: o nobre em tempos de guerra e em tempos de paz 47. Aqui, sumariavam-se todos os elementos até então dispersos no relato da História do reino e traçava-se um perfil idealizado do nobre e vassalo ideal, cuja trajetória alicerçadora dos ideais de Avis estaria definitivamente inserida na construção do passado português. Restava ao Cronista mostrar a transcendência desta vida nos destinos futuros do reino e no penúltimo capítulo da segunda parte da Crônica de D. João I, fala da união do filho legitimado do rei, Infante Afonso com a sua filha, Beatriz. A junção do sangue e do patrimônio destes dois paradigmas da História portuguesa selaria o futuro da monarquia de Avis 48. A singularidade do Condestável posta a serviço do reino seria definitivamente recompensada e definiria um perfil de nobreza regenerada em cujas ações os fins seriam mais determinantes que os meios. Reflexões finais Ao encerrarmos estas reflexões pretendemos ter promovido um desafio de investigação que privilegie um enfoque mais atual e revisionista do ponto-de-vista historiográfico sobre o tema dos exílios luso-castelhanos tardo-medievais ao incluir na problemática de análise um debate acerca dos discursos identitários e do conceito de fronteira na medievalidade ibérica. Uma proposta que procura ampliar a perspectiva de análise da casuística de cada mobilidade 45 46 47 48 Além do Condestável também seria escolhido juiz da parte portuguesa D. João, Bispo de Coimbra, assessorado pelo Bacharel Rui Lourenço e pelo escolar Álvaro Peres (LOPES,F. Crónica de D. João I. 2ªp, caps. 176-82, pp. 390-402). Nuno Álvares receberia a 1 de setembro de 1398 em carta de morgado as terras de Paiva, Tendães e Lousada com as jurisdições cível e crime (AN/TT. Chancelaria de D. João I. l. II, f.148) retomando as concessões régias ao Condestável após o referido chamamento régio de patrimônio. LOPES, F. Crônica de D. João I. 2ªp, cap. 183, pp.403-5. LOPES, F. Crónica de D. João I,. 2ªp, caps. 198-9, pp. 447-54. LOPES, F. Crónica de D. João I. 2ªp, cap. 202, p. 460. O Condestável daria a sua filha em 1 de novembro de 1399 em arras por seu casamento com o Conde de Barcelos na forma de morgado a vila e castelo de Chaves, o julgado de Montenegro, castelo e fortaleza de Montalegre, a terra de Barroso, Baltar, Paços no Entre-Douro-e-Minho e Trás-ós-Montes, quintas da Carvalhosa, Covas, Canedo, Sarraços, Gondinhães, São Felix da Temporã, casais de Bostelo, quintas da Moreira e Pousada (AN/TT. Chancelaria de D. João I. l. II, f. 175v) completando o patrimônio da Casa de Barcelos: doação confirmada a 8 de novembro por D. João I. Entendemos, portanto, que estes bens continuaram em mãos do Condestável mesmo após o chamamento régio. Por outro lado, esta união constituiria uma forma mais eficaz e duradoura de reincorporação de patrimônio régio cedido ao Condestável pela monarquia de Avis. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 125 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 nobiliárquica analisada para um fenômeno estrutural que envolve as estruturas régionobiliárquicas em atualização, na continuidade dos estudos de Salvador de Moxó sobre o surgimento de uma nobleza nueva ibérica a partir do século XIV, mas ampliando o eixo de análise e compreensão de seu objeto. A Baixa Idade Média portuguesa compreendida como um período de transformação dos modelos e estruturas válidos até o fim da Reconquista apresenta-se como um campo de investigação profícuo em especial no que se refere ao tema dos exílios e suas implicações relativamente à fronteira. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 126 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 ARTIGOS Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 127 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Men of Sea. The making of an Identity Los hombres del mar. La creación de una identidad David Álvarez Jimenez Correio* Universidad Internacional de La Rioja Sergio Remedios Sánchez Correio** Universidad Complutense de Madrid Abstract Resumen This paper pretends to deal with the identity of the people who sailed the sea –specifically professional sailors– in Antiquity. Although we don’t deny singularities into the different Men of Sea who lived in this period, there are some aspects that are common to every sailor concerning their conditions of life and work regardless of their very different origins. In fact, their life-style clashed directly with the earth based society. These features shaped an identity that is more evident to recognize when we use ancient sources, which writers always came from the highest hierarchies of their societies or acted as speakers of these, that usually scorned the sailors because of the terrible fear that sea aroused on them, the nature of their economic activities, their different customs and the liberty that enjoyed Men of Sea because they could pollute the established order. In fact, we can speak of a mariner identity in opposition to the earthly-based society. Este artículo tiene como objeto la identificación de las gentes que navegaban el mar en la Antigüedad, en particular de los marinos profesionales. Aunque no se niegan las singularidades de los diferentes hombres del mar que vivieron durante este período se pueden observa diversos aspectos comunes a cualquier marino con respecto a sus condiciones laborales y vitales y a pesar de sus diferentes orígenes. De hecho, su estilo de vida chocaba directamente con la sociedad basada en la tierra. Estos rasgos conformaron una identidad que es más fácil reconocer en las fuentes antiguas, siempre escritas por portavoces de las élites antiguas, debido a que los escritores así lo estimaban al despreciar a los marinos debido al terrible miedo que el mar implicaba, la libertad que disfrutaban, la naturaleza de sus actividades económicas, sus costumbres diversas y en especial la libertad que encarnaban y que podía contaminar al orden establecido. De hecho, se insiste en una identidad del marino opuesta a la de la sociedad terrestre. Keywords: navigation; sailors; identity. Palabras clave: navegación; marinos; identidad. ● Enviado em: 28/04/2014 ● Aprovado em: 20/11/2014 * ** Doctor en Historia Antigua por la Universidad Complutense, con una tesis titulada "La Piratería en la Antigüedad Tardía" bajo la dirección de la catedrática Rosa Sanz Serrano. Tiene en su CV diversas publicaciones, incluída la edición de "El Espejismo del Bárbaro. Ciudadanos y extranjeros al final de la Antigüedad" (Anejo 1 de la revista Potestas, Universidad Jaume I de Castellón, 2013). En la actualidad es profesor asistente de la Universidad Internacional de La Rioja (UNIR). Sergio Remedios Sánchez es doctorando de la Universidad Complutense de Madrid. Su tesis versa sobre economía y sociedad en la colonización fenicia temprana de la Península Iberica y está siendo dirigido por el catedrático Carlos González Wagner. Tiene en su haber un buen número de publicaciones. Asimismo, es el director de la revista electrónica Herakleion especializada en la historia y arqueología del Mediterráneo antiguo (www.herakleion.es). Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 128 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 The origins of the navigation are as remote as the rising of mankind. Since the great Paleolithical migrations, the dominion of sea or at least a basic knowledge of seafaring was a necessity for many peoples. The early Mediterranean societies were not excluded of this reality. The early Neolithic Cyprus’ colonization (VIIth mill. BC) can be considered a first example, but this use was extended to every Mediterranean coastal population from this moment onwards with a very precise turning point. We can consider the Bronze Age as the time where both archaeological records and texts confirm the beginning of the maritime specialization, that is, the appearance of sailors as distinctive professionals. The fluvial shipping in Mesopotamia and Egypt1 and the early Cananean and Aegean naval activities – mainly Minoan and Mycenaean–, are some of the most important first examples of this reality. We can ascertain the existence at the IIIrd mill. BC, and especially for the IInd mill. BC, of established commercial waterways as it’s evidenced through the Ulu Burun2 and Cape Gelidonya3 wrecks4. The disappearance or extreme weakening of most of the Oriental empires as a result of the terrible irruption of the enigmatic Sea Peoples around 1200 BC marked a new direction. Afterwards Phoenicians rose as the most important seafaring power. As the heirs of previous traditions, the Phoenicians sailed through the whole Mediterranean and for the first time they connected in a steady and lasting way both Mediterranean edges into a single seafaring network on a regular basis5. This intense naval activity allowed them to deal with some peoples as Tartessians, Etrurians, Egyptians, Greeks and many others through commerce, knowledge and colonisation. One of the more important consequences of their labour of colonisation was the creation of the then colony of Carthage that continued their labour in Occident after Phoenician city-states fell in the VIth century BC. While this happened 1 2 3 4 5 On Egypt, see JONES, D. Ancient Egyptian boats. Texas University Press: Austin, 1995; and on Mesopotamian navigation POTTS, D. T. 1997: Mesopotamian Civilization: The material foundations. Cornell University Press: Ithaca, 1997, pp. 122-137. BASS, G. F. “A Bronze Age Shipwreck at Ulu Burun (KAS): 1984 Campaign”. In American Journal of Archaeology, 90, 1986, pp. 269-296; BASS, G. F. “The Bronze Age Shipwreck at Ulu Burun, Turkey: 1985 Campaign”. In American Journal of Archaeology, 92, 1988, pp. 1-37; BASS, G. F. “The Bronze Age Shipwreck at Ulu Burun: 1986 Campaign”. In American Journal of Archaeology, 93, 1989, pp. 1-29. PULAK, C. 1997: “The Uluburun Shipwreck”. In: SWINY, S., HOHLFELDER, R. L. & SWINY, H. W. (Ed.). Res Maritimae. Cyprus and the Eastern Mediterranean from Prehistory to Late Antiquity. Proceedings of the Second International Symposium Cities on the Sea (Nicosia, October 18-22, 1994. Atlanta: American Schools of Oriental Research, pp. 71-81. BASS, G. F. et al: Cape Gelidonya: A Bronze Age Shipwreck. Philadelphia: American Philosophical Society, 1967. On Bronze Age navigation, see KNAPP, A. B. “Thalassocracies in Bronze Age Eastern Mediterranean trade: making and breaking a myth”. In: World Archaeology, Vol. 24, N. 3, 1993, pp. 332-347. AUBET, M. E.: The Phoenicians and the West: Politics, Colonies and Trade. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. On the Greek and Roman voyages to the Iberian Peninsula, see the introductory paper of DE HOZ, J. “Viajeros griegos y romanos en la Península Ibérica. Del comercio marítimo y la curiosidad intelectual”. In: ARCAZ POZO, J. L. & MONTERO MONTERO, M. (Ed.) Mare nostrum. Viajeros griegos y latinos por el Mediterráneo. Madrid: SEEC, 2012. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 129 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 in the West, in the Oriental basin the leading role on the dominium of sea was taken on by democratic Athens during the so-called Athenian Thalassocracy which lasted until the Peloponnesian war. Later, Punic power was halted because they were confronted by the most improbable seafaring people, the Romans. The traditional Roman refusal for navigation didn’t prevent them for unifying for the first time the whole Mediterranean Sea, which became the Mare Nostrum, under a single command. During seven centuries they didn't just control these waters but they developed internal maritime waterways that articulated their territories from a military and a tributary point of view and built up a massive exchange network which can be considered both private and public; in fact, we can say that their most impressive naval development was the imperial annona6. Unfortunately, sea activities don’t let enough remains as terrestrial movements do, as vehemently Donald Moore said 7, but we can rely on increasing underwater archaeology evidence as long as epigraphy and iconography. Ancient sources are sometimes pretty discouraging because of the usual distrust that Sea, navigation and sailors meant to the normative society’s speakers –especially during Roman supremacy– but they still offer fundamental data to interpret the maritime world. Sailors were never fully appreciated by the earth-based population because of several reasons as we can see in the Graeco-Roman sources: the particular conditions of their work, the irrational fear provoked by the sea into their fellows and the perennial bad consideration that commerce aroused on Antiquity, in spite of the impressive revenues obtained by sea trade8. About this last preconception, Homer provides an early proof when Odysseus is scorned by the Pheaecian Euryalus with these words: Nay, verily, stranger, for I do not liken thee to a man that is skilled in contests, such as abound among men, but to one who, faring to and fro with his benched ship, is a captain of sailors who are merchantmen, one who is mindful of his freight and has charge of a home-borne cargo, and the gains of his greed. Thou dost not look like an athlete (Od. VIII, 159-164). 6 7 8 Some worthy introductions to naval history in Antiquity are STARR, C. G. The influence of Sea Power on Ancient History. New York: Oxford University Press; DE SOUZA, P. Seafaring and Civilization. Maritime perspectives on world history. London: Profile Press, 2002 and ABULAFIA, D. The Great Sea: A human history of the Mediterranean. Oxford: Oxford University Press, 2011. MOORE, D. “Maritime aspects of Roman Wales”. In: Studien zu den Militärgrenzen Roms II. Vortrage des 10. Internationalen Limeskrongresses in der Germania Inferior. Köln: Rheinland Verlag, p. 31. In Roman times this idea was very alive and even senators were forbidden to use maritime commerce as a way of increasing their wealth. Of course, a lot of senators broke the law. D'ARMS, J. H. Commerce and social standing in ancient Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. About denigration of commerce, see some other examples as Hesiod Op. 236-237 and 682-694, Cicero Verr. II, 5, 167 or Jerome Ep 14.9. On this subject, ROUGE, J. 1966 Recherches sur l’organisation du commerce maritime en Méditerranée sous l’Empire Romain. Paris: S.E.V.P.E.N., pp. 19-21. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 130 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 In a later date, the closeness of cities to sea was considered by some of the elite main thinkers as a moral disadvantage, so Aristotle said that “the visits of persons brought up under others institutions are detrimental to law and order, and so is a swollen population, which grows out of sending out abroad and receiving in a number of traders, but is unfavourable to good government” (Pol. VII, 5, 3), and Cicero said about Rome foundation that He [Romulus] made an incredibly wise choice. For he did not build it down by he sea, thought it would have been very easy for him… because maritime cities are exposed to dangers which are both manifold and impossible to foresee… maritime cities also suffer a certain corruption and degeneration of morals; for they receive a mixture of strange languages and customs, and import foreign ways as well as foreign merchandise, so that none of their ancestral institutions can possibly remain unchanged. Even their inhabitants do not cling to their dwelling places, but are constantly being tempted. Far from home by soaring hopes and dreams (De rep. II, 3-4)9. According to these texts, the sailors were considered as rootless because of their constant movement and contact with different kinds of societies, so they could behave as bearers of destabilizing news regarding the established hierarchy and their political system 10. There are more examples in later times. So, the sophist Claudius Aelianus in one of his letters addressed to a farmer he affirmed this dichotomy between land and see when he referred to a fellow farmer who had decided to leave land aside in search of benefit by the sea: Keeping an eye out for juicy profits and thinking of striking it rich all at once, he said good-bye to those little goats and his former pastoral life… the profit of a voyage out and back inflames and fires up his imagination, and he does not think of storms, opposing winds, the ever-changing sea, or unseasonable weather. As for us—even if we work hard for little gain, nevertheless the land is much steadier than the sea, and since it is more trustworthy, it offers more certain prospects (ep. 18). In this way, in the Later Roman Empire, Synesius of Cirene paraphrased Homer when affirmed that: I do not live near the sea, and I rarely come to the harbour. I have moved up country to the southern extremity of the Cyrenaica, and my neighbours are such men as Odysseus was in quest of, when he steered from Ithaca, to 9 10 On this perception prolonged during a long, long time see HORDEN, P & PURCELL, N. The Corrupting Sea. A study of Mediterranean History. Oxford: Oxford University Press, 2001. RAUH, N. K. Merchants, sailors and pirates in the Roman world. Brimscombe Port Stroud: Tempus, 2003. RAUH, N. K., DILLON, M. J. & MCCLAIN, T. D. “Ochlos Náuticos: leisure culture and underclass discontent in the Roman maritime world”. In: HOHLFELDER, R. L. (Ed.) The Maritime World of Ancient Rome. Proceedings of ‘The Maritime World of Ancient Rome’. Conference held at the American Academy in Rome 27-29 march 2003. Michigan: Ann Harbor), 2008, pp. 197-242. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 131 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 appease the wrath of Poseidon, in obedience of the oracle: Men, who know not of the sea, nor eat food mixed with salt (Ep. 148) 11. Earth-bounded society usually didn’t appreciate at all the sailor environment and this reality was reflected in the perception of the sea workers. The sea was terribly feared because the certain risk of death. So, e.g., the Christian author Tertullian defined it as sic et mari fides infamis (De Pall. 2), and even Roman laws encouraged the writing of a testament before travelling by sea12. The references about this topic are innumerable, but let's finish with an eloquent sentence of Lucretius that refers to the lack of empathy that sea work aroused into their fellows: “It is sweet, when, down the mighty main, the winds roll up its waste of waters, from the land to watch another's labouring anguish far, not that we joyously delight that man thus be smitten, but because it is sweet to mark what evils we ourselves be spared” (De rer. Nat. II, 1-5)13. To die at sea because a shipwreck was a straight disgrace, as a result of the certain possibility of not finding the corpse with the metaphysical implications this fact arose because it was thought that the soul perished when someone got drowned 14. This dichotomy was emphasized by the nature of sailors’ work, far different and more specific than earth-based occupations. The knowledge required to navigate was hardworked15. Their labour was conditioned by the basic tool they used: the vessel, which undoubtedly represented one of the highest technological achievements of Antiquity16 and in consequence required a very specific knowledge to be able to handle it rightly as it is observed in the particular vocabulary utilized by them 17 that was clearly out of reach and comprehension by the landlubber population. Analogous to this particular knowledge, the learning of all the orographic and nautical fundamentals was basic to make possible not only the success in their works but also their survival. The currents, the dangerous and calm 11 12 13 14 15 16 17 Upon Homer Od. XI, 119-125. Dig. XXVIII, 1, 24. Impressive testimonies of troubled maritime voyages in Antiquity are found, for example, in Synesius of Cirene Ep. 5 and Gregory of Nazianzus Orat. 18.31. On this see, Homer (Od. IV, 497-506) and Synesius of Cirene (Ep. 108-118). LINDENLAUF, A. “The Sea as a place of no return in Ancient Greece”. In: World Archaeology, 35, 3, 2003, pp. 416-433. FERNÁNDEZ NIETO, F. J. “Morir en el agua, morir en el mar. Creencias, conductas y formas morales en la Grecia antigua”. In: FERRER ALBELDA, E., MARÍN CEBALLOS, M. C. & PEREIRA DELGADO, Á. (Ed.) La religión del mar. Dioses y ritos de navegación en el Mediterráneo antiguo. Sevilla: Universidad de Sevilla, pp. 91-106. Definitively the best recent work on ancient navigation is MEDAS, S. De Rebus Nautica. L’Arte della navigazione nel mondo antico. Rome: L’Erma di Bretschneider, 2004. On the relationship between sea and the Romans, see the recent book of MALISSARD, A. Les romains et la mer. Paris: Les Belles Lettres, 2012. Above this, see PRYOR, J. H. Geography, technology and war. Studies in the maritime history of the Mediterranean 649-1571. Cambridge: Cambridge University Press, 1988 and more specifically, MCGRAIL, S. Boats of the World. From the Stone Age to Medieval Times. Oxford: Oxford University Press, 2001. MEDAS, De Rebus… p. 32. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 132 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 waterways, in brief, the appropriate routes18 required a very specific familiarity that was transmitted from generations to generations of sea workers. The precise abilities developed for doing this work possible were associated with the peril implicit that certainly separated earthly population from sailors and helped to shape an identity. In fact, navigation’s season was rigidly established since an early date because of this uncertainty. Hesiodus19 was the first author to talk about chronological limits fit to sail, from the end of spring till the beginning of autumn, and even if these limits were extended later, Roman law did not allow sailing during winter time20. Of course, there were exceptions because in some areas favourable maritime conditions permitted to navigate, as Ahiqar Palimpsest (475 BC) demonstrated concerning Egypt under the domination of the Persian Empire. This tributary document records all the vessel entries in an unknown Egyptian port where navigation was just stopped during the months of January and February 21. On the other hand fishermen could work during this period and it was also encouraged travelling by sea during these months in case of food shortages22 or military needs23. Because of these uncertainties, religiosity and superstition were commonly linked with sailors and navigation in Antiquity and, as in later times happened, these features constitute a part of their identity24. We can observe that some superstitious rituals began even before of navigation itself. Shipbuilders tried to attract good luck on the vessels through some practices as putting some coins inside the hole where the mainmast was going to be fitted onto, or 18 19 20 21 22 23 24 On ancient maritime routes see ARNAUD, P. Les routes de la navigation antique. Itinéraires en Méditerranee. Paris: Éditions Errance, 2005. Hesiodus Op. 663-665. CTh XIII, 9, 3, 3 and CJ XI, 6, 3, and see also Vegetius IV, 38. On this, see ROUGE, J. “La navigation hivernale sous l'empire romain”. In: Revue de Études Anciennes 54, 1952, pp. 316-325 and MEDAS, De Rebus… pp. 34-40. On maritime dangerousness, see HOLLAND ROSE, J. The Mediterranean in the Ancient World, Cambridge: Cambridge University Press, 1933, pp. 153-154 and 177-180; THIEL, J. H. Studies on the History of Roman sea-power in republican times, Amsterdam: North-Holland publishing company, 1946, pp. 1-31; REDDÉ, M., GOLVIN, J. C. & GASSEND, J. M. Voyages sur le Méditerranée romaine, Paris: Éditions Errance, 2005, pp. 5-7 and 11-43; PITTIA, S. “Circulation maritime et transmission de l’information dans la correspondance de Cicéron”. In: ANDREAU, J. & VIRLOUVET, C. (Ed.) L’information et la mer dans le monde antique, Rome: École Française de Rome, 2002, pp. 199-203. YARDENI, A. “Maritime trade and royal accountancy in an erased customs account from 475 BCE on the Ahiqar scroll of Elephantine”. In: Bulletin of the American School of Oriental Research 293, pp. 67-78. STAGER, L. 2004: “Dos pecios fenicios en alta mar de la costa norte del Sinai”. In: PEÑA, V., MEDEROS, A. & WAGNER, C. G. (Ed.) La navegación fenicia. Tecnología naval y derroteros. Madrid: Cefyp, pp. 188 and 191. Some examples: Suetonius Claud. 18 on the time of the emperor Claudius and Paulinus of Nola Ep. 49.1 at the beginning of the fifth century. E.g. Libanius Or. 59.137 praised the emperor Constans because of his travel to Britain in the middle of the winter of the year 343 to suffocate grave barbarian raids. IGLESIAS GIL, J. M. “La inseguridad en la navegación: de los fenómenos naturales a las supersticiones y creencias religiosas”. In: FERRER ALBELDA, E., MARÍN CEBALLOS, M. C. & PEREIRA DELGADO, Á. (ed.) La religión del mar. Dioses y ritos de navegación en el Mediterráneo antiguo. Sevilla: Universidad de Sevilla, pp. 133-139. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 133 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 laying some propitiatory ornaments in the prows as ox horns, painted eyes, or divine statues or caducei in the case of Punic vessels25. Even the very name of the ships reflected this search for good omen as epigraphy proves, for instance, in the case of Roman navy ships, although this custom was known from older as it is shown by the mythical Argo ship crewed by the Argonauts. To provide names of gods to the Roman warships as Pollux, Minerva, Fortuna, Neptunus or Vesta was not uncommon, as also to name ships after favourable abstract concepts as Providentia, Victoria, Salus or Spes26. When navigation season was going to be initiated, it was opened by special overture ceremonies with the same objective of assuring Gods’ favour. A very good example of this is provided by Apuleius when he describes a ceremony of this kind in Cenchreas and conducted by Caeres’ Pastophores: And calling together their whole assembly, from his high pulpit began to readout of a book, praying for good fortune to the great Prince, the Senate, to the noble order of Chivalry, and generally to all the Roman people, and to all the sailors and ships such as be under the puissance and jurisdiction of Rome, and he pronounced to them in the Grecian tongue and manner this word following, ‘Ploiaphesia’, which signified that it was now lawful for the ships to depart ; whereat all the people gave a great shout, and then replenished with much joy, bare all kind of leafy branches and herbs and garlands of flowers home to their houses, kissing and embracing the feet of a silver image of the goddess upon the steps of the temple (Apul. Met. XI, 17)27 Every sea travel was accompanied by some rituals that were rigidly observed whenever it was possible. Dr. Luis Ruiz Cabrero has gathered a good collection of literary, textual and archaeological references from the Phoenician, Greek and Roman worlds about such ceremonies that can be divided into three important phases: embaterion or embarkation; 25 26 27 BELTRAME, C. Vita di bordo in età romana. Rome: Istituto Poligrafico dello Stato, 2002, pp. 70-81 on Roman examples while RUIZ CABRERO, L. “La marina de los fenicios, de la creencia en la vida a las naves de la muerte”. In: MORENO ARRASTIO, F., PLACIDO SUÁREZ, D. & RUIZ CABRERO, L. (Ed.) Necedad, sabiduría y verdad: el legado de Juan Cascajero. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, p. 100 gives Greek and especially Phoenician and Carthaginian examples. See also LÓPEZ-BERTRAN, M.; AGNÈS GARCIA-VENTURA, A. & KRUEGER, M. “Could you take a picture of my boat, please? The use and significance of Mediterranean ship representations”. In: Oxford Journal of Archaeology, 27, 4, 2008, pp. 341–357. A very complete list of Roman navy ships’ names appears in SPAUL, J. Classes Imperii Romani. An epigraphic examination of the men of the Imperial Roman Navy. Andover: Nectoreca Press, 2007, pp.7483. Of course, as Spaul show there were also other names related with geography (Syria, Rhenum or Tigris) or different concepts (Pax, Pietas, Clementia), but they have been found in lesser numbers. About Roman navy, see STARR, C. G. Roman Imperial Navy 31 B. C. – A. D. 324. Ithaca: Cornell University Press, 1993 and REDDE, M. Mare Nostrum. Les infrastructures, le dispositif et l’histoire de la marine militaire sous l’empire romain. Rome: L’École Française de Rome, 1986. See also Virgil Aen. V, 770-776. Beltrame, Vita… pp. 74-77 offers abundant archaeological and textual data of this kind of ceremonies for the Roman times. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 134 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 during the voyage and finally aprobaterion, the disembarkation 28. An instance of the first group is found on Thucydides (VI, 32, 1-2), when he narrates a prayer recited by the captain of a fleet and sung by every sailor and harbour worker. It has been corroborated by a Phoenician-Cypriote votive cow scapula found in Tel Dor (Israel) 29. During travel, it was common use to make libations to revere Gods as, e.g. Telemachus did in the Odyssey to honour Athena (Od. XV, 257-258), and container used for libations like this one have been found in such an early date as the XIV th BC as shown in the Cape Gelidonya shipwreck 30. During navigation, this ritualism continued alongside with certain superstitious practices as avoiding sex or cutting the hair aboard. A death happened during the voyage was a terrible omen which only could be purged by the expulsion of the corpse off the vessel 31. At the moment of disembark, it was almost compulsory to present as signs of gratitude offerings to the sanctuaries as exvoti like anchors or ships’ prows, boat’s miniatures, fishing hooks or foodstuff for sacrifices or libations to grateful deities because of their assist in some dangerous circumstances32. An additional proof of specific ritualism related with sailors is found at the funerary level. For instance, the existence of anchors and ships’ replicas inside the tombs or represented graphically outside33, the use of ships as burial places or as coffins 34, or the find of beach sand covering sailors’ graves placed far away from the coasts –as it probably happens in the graves found in the necropolis of La Joya and Las Cumbres in South West Spain 28 29 30 31 32 33 34 In the Greek case before proper navigation, it was usual to make an appeal to oracles to get favourable omens. DOMÍNGUEZ MONEDERO, A. “Los oráculos, guía de la navegación y la colonización”. In: FERRER ALBELDA, E., MARÍN CEBALLOS, M. C. & PEREIRA DELGADO, Á. (Ed.) La religión del mar. Dioses y ritos de navegación en el Mediterráneo antiguo. Sevilla: Universidad de Sevilla, pp. 67-90. Ruiz Cabrero, La marina… pp. 101-104 Ruiz Cabrero, La marina… pp. 105-109. Some other examples in a later date are the decanters found in the Phoenician wrecks Tanit and Elissa found in the Sinai waters, Stager, Dos pecios…, pp. 183-184 and the bronze Kyathoi found in the Greek wreck in Cala Sant Vicenç (Pollença, Majorca), although the excavators just suppose it was used for symposiums in the ship. NIETO, X., SANTOS, M. & TARONGI, F “Un barco griego del s. VI aC en Cala Sant Vicenç (Pollença, Mallorca)”. In: PEÑA, V., MEDEROS, A. & GONZÁLEZ WAGNER, C. (Ed.) La navegación fenicia. Tecnología naval y derroteros. Madrid: CEFYP, p. 209. For Roman times, see Beltrame, Vita…, pp. 75-76. Beltrame, Vita… p. 73. Ruiz Cabrero, La marina… pp. 100, 102, 104, 107-109 and 111-112; REMEDIOS SÁNCHEZ, S. “El papel del templo y la aristocracia en la estructura social de los yacimientos fenicios peninsulares en la época arcaica”. In: ECHEVERRÍA REY, F. & MONTES MIRALLES, M. Y. (Ed.) Actas del V Encuentro de Jóvenes Investigadores. Ideología, estrategias de definición y formas de relación social en el mundo antiguo. Madrid: Cirsa, pp. 115-116; ROMERO RECIO, M. “Recetas para tratar el miedo al mar: las ofrendas a los dioses”. In: FERRER ALBELDA, E., MARÍN CEBALLOS, M. C. & PEREIRA DELGADO, Á. (Ed.) La religión del mar. Dioses y ritos de navegación en el Mediterráneo antiguo. Sevilla: Universidad de Sevilla, pp. 107-118.. As seen in some Carthaginian funerary inscriptions: CIS I, 3140, 3189, 3 and 4901-4902. Ruiz Cabrero, La marina… p. 115. ADAMS, J. “Ships and Boats as Archaeological Source Material”. In: World Archaeology 32, 3, 2001, p. 294. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 135 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 and dated at the VIth century BC–35 are clear proofs of self-recognition. We can add some textual testimonies. One of most impressive appears in the Bible by the prophet Ezekiel who personifies the fall of Tyre in a single sailor through a touchy lament for the death of one of the men of sea (Ez. XXVII, 28-36). For the Roman Age, the Anthologia Graeca provides very interesting testimonies about tombs of sailors or fishermen remembering disgraced deaths at sea. Although most of the poems reflect a sinister view of their fate 36, there is a very interesting kind of verses that reflects the proud custom of some of these sea workers of being incinerated with their vessels so that they could be carried rightly to Hades. One of the most fascinating is the following one: Glaucus, brought up on the shores of Thasus, he who conducted those crossing by ferry to the island, skilled ploughman of the sea, who even when he was dozing guided the rudder with no uncertain hand, the old man of countless years, the battered remnant of a seafarer, not even when he was on the point of death quitted his old tub. They burn his shell on the top of him, that the old man might sail to Hades in his own boat” (AG IX, 242) 37. Of course, during Roman Age besides this emotive testimonies there were also frequent funerary inscriptions of merchants, navicularii and sailors, whatever military, classiarii or related with commerce or fishing, nautae and piscatori, which, in general, were far more prosaic than Glaucus’ epigram. In spite of traditional distrust from terrestrial society 38, the men of sea showed a true satisfaction and pride that can be interpreted as a conscience of membership to a particular group. Certainly, sailors’ life conditions supposed a vivid contrast with the earth based population. The permanent errant lives of the ships’ crews involved an evident physical and social isolation, where vessels were conformed as miniature societies in themselves where, in spite of the quarrelsome and troublesome sailors’ character –perceptible through their foul- 35 36 37 38 RUIZ MATA, D. & PÉREZ, C. J. “Aspectos funerarios en el mundo orientalizante y colonial de la Andalucía occidental”. In: FÁBREGAS, R., PÉREZ, F. & FERNÁNDEZ, C. (Ed.) Arqueoloxia da morte na Peninsula Iberica desde as orixes ata o Medievo. Xinzo de Limia: Biblioteca Arqueohistórica Limiá, 1996, pp. 171221. Some selected examples are AG VII 294, 382, 532, 693; IX 82 Similar poems are AG VII, 305, 381, 505 and 635. Homer (Od. XI, 75-78, and XII, 10-15) and Virgil (Aen. VI, 162-174 and 212-235) also gives us additional references to similar practices as sailors’ burials with ships’ oars For example, Roman navy was always considered of second class in comparison with the army, Thiel Studies…, pp. 11-16), Starr, Roman…, pp. 67-68) and GARLAN, Y. La Guerra en la Antigüedad. Madrid: Aldebarán, 2003, pp. 137-138). Likewise, see a particular study on identity and Dalmatian sailors in Roman fleet: DZINO, D. “Aspects of identity. Construction and cultural mimicry among Dalmatian sailors in the Roman Navy”. In Antichthon, 44, 2010, pp. 96-110, and especially pp. 101-103. But not only was applied this category of though to the Roman world, Plato affirmed the same in Laws 4.707a. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 136 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 mouthed and dirty language well attested by the sources–39, there was a clear hierarchy and a discipline according to the extreme harshness of their labour, the changing weather or any misfortune, whatever technical or human as endemic Mediterranean piracy was 40. A comic example of the supreme command of the captain is found in Synesius of Cirene when he describes his gloomy voyage to Alexandria in the vessel of the Jewish captain Amarantus. His authority was so inflexible and respected by his crew –most of them Jewish–, that when he decided to celebrate Sabbath in a moment when the ship was almost going to wreck, and even after an Arab soldier threatened to killed him, he showed no inclination to yield his beliefs till the danger became absolutely manifest (Synesius Ep. V, 74-103). The captain’s authority was not at all petty, it was bestowed because he was judged as the most experienced person at the ship and he was absolutely essential to guarantee the success of the navigation and the mere survival of the crew. His leading role can be discerned also through the transmission of knowledge to the younger sailors as Plato (Rep. 488b) said 41. In fact this responsibility sometimes provided great opportunities to ambitious and capable men as the Egyptian Ahmose who began as an apprentice repairing rigging on a ship and after becoming captain he finished his life as admiral of the Pharaonic fleet in the XVIIIth Dinasty as his autobiography alleged42. Their isolation had its psychological counterpart. When sailors disembarked on their destination or when they had to look for a shelter during winter, they tended to cause a lot of trouble as a way of relieving tensions and especially on their particular haven: the taverns 43. In fact, harbours were considered from Antiquity onwards as disreputable areas, where the sailor colluded with criminals, runaway slaves, prostitutes and most of the vilest elements of the society. A satire of Juvenal provides the most perfect statement. It concerns the Consul Plaucius, who lived under Nero's rule. This man got lost at Ostia in his way to the province of Iliricum. There he enjoyed a rude experience, which is pretty illuminating about harbours consideration: 39 40 41 42 43 Rauh Merchants…, pp. 163-166 On this topic, see ORMEROD, H. A. Piracy in the Ancient World. An essay in Mediterranean History. Baltimore: The John Hopkins Press, 1997; DE SOUZA, P. Piracy in the Graeco-Roman World. Cambridge: Cambridge University Press, 2002; ÁLVAREZ-OSSORIO RIVAS, A.: Los piratas contra Roma. Écija: Gráficas Sol, 2008; ÁLVAREZ JIMÉNEZ, D. La piratería en la Antigüedad Tardía. Madrid: Universidad Complutense and ÁLVAREZ-OSSORIO RIVAS, A.; FERRER ALBELDA, E. & GARCÍA VARGAS, E. (Eds.) Piratería y seguridad marítima en el Mediterráneo antiguo. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2013. MEDAS, De Rebus… p. 31. MCCOY, R. A. Admiral Ahmose. The autobiography of an ancient naval commander: hyerogliphic text from his tomb at El-Kab with a translation and notes. Ft. Lauderdale: Enchiridion Publications, 1999. A satisfactory example is provided by Heliodorus Aeth. V, 18, 3. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 137 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Send your Legate to Ostia, O Caesar, but search for him in some big cookshop! There you will find him, lying cheek-by jowl beside a cut-throat, in the company of bargees, thieves, and runaway slaves, beside hangmen and coffinmakers, or some eunuch priest laying drunk. Here is Liberty Hall! One cup serves for everybody; no one has a bed for himself, nor a table apart from the rest (Sat. VIII, 171-178). As Juvenal implied, sailor environment was a mixture between lust and violence overlapped through the lowest stratus of ancient world. On the other hand, this identification among underground society and sailors was even used in the controversy aroused between Paganism and Christianity as the pagan Celsus termed Jesus Christ's apostles as ‘the very wickedest of tax-gatherers and sailors’ to look down on the humble Christian beginnings (C. Celsum I, 62). Nicholas K. Rauh was right when he assumed that this aggressive behaviour served as a medium for sailors to vindicate and distinguish themselves with respect to earthbased society and so they could extend their sociological isolation as a group when they disembarked 44. In an interesting anthropological paper Michael Seltzer dealt with the historical linking of sailors with taverns and alcohol. As he said “the sailor’s life thus swings pendulum-like between spells at sea and stays on land” and “given the deprivations of life and work at sea, newly discharged sailors may use their stores of cash to obtain what has been denied them aboard the ship”45. In these places, sailors felt a “sense of community”46 in a closed space that resembled in a way the ship were sailors came from. Violence, alcohol and sailors’ need of self-expression were all united. In consequence, all these peculiarities fit into an identity that in its basic features remained like that almost at our time and made possible what the very Nicholas K. Rauh denominated maritime “community and culture”47 or in an even more diachronic approach Keith Muckelroy48 and Jonathan Adams49 named respectively as a “closed community” and as a “ship society”. Regardless of this traditional suspicion, the Sea, the sailor and the commerce were reluctantly weighed up positively as an innate part of the ancient world. We can reinforce the celebrated Pompeius’ aphorism navigare necesse est (Plutarchus Pomp. L, 2) by a vehement speech of Tiberius addressed to the Senate: ‘¡Hercules’ sake!, not a man points out in a motion that Italy depends on external supplies, and that the life of the Roman nation is tossed day 44 45 46 47 48 49 RAUH, Merchants…, pp. 163-166; RAUH, DILLON & MCCLAIN, Ochlos… A general view about Greek and Roman underground society is found in SALLES, C. Les bas-fonds de l’Antiquité. Paris: Payot, 2004. SELTZER, M. “Haven in a Heartless Sea: The Sailors' Tavern in History and Anthropology”. In. The Social History of Alcohol and Drugs: An Interdisciplinary Journal, 19, 2004, p. 65. SELTZER, Haven…, p. 80 RAUH, Merchants…, pp. 135-168. MUCKELROY, K. Maritime archaeology. Cambridge: Cambridge University Press, 1978, pp. 221-225. ADAMS, Ships…, pp. 304-306. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 138 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 after day at the uncertain mercy of wave and wind’ (Ann. III, 54)50. One century later, Aelius Aristides (Or. XXVI, 11-13) considered Rome as the centre of the world because of the affluence of commodities from all parts around the globe. The navigation was necessary to connect the different coasts and to control politically, economically, fiscally and militarily the territories subjected and it's not a fortunate chance that diverse concepts as the State, in a later date the Christian Church and the mere metaphysical existence were metaphorically assimilated in the ancient sources as a ship or a sailing experience. The fact that ships, sailors and merchants played an important role in the Ancient World is obvious, even thou the sailor as a historical figure was scorned by the dominant culture. For instance, Phoenician sailors provided the necessary interconnectivity between colonies, markets and their metropolis and likewise in a later date sailors were fundamental to achieve Greek oukomene51 or pax Romana –and make feasible what Bryan Ward-Perkins defined as the Roman economic sophistication52. Conclusions As it happens with every interpretation of the past, there are some difficulties. The main problem is that there is not a single ancient text written by a sailor. In fact, it's a problem of alterity. Fortunately the increasing underwater and earthly excavations allow knowing more and more about the ancient life of the Men of Sea and so to confirm, counter or qualify the ideas reflected by the ancient sources. The identity of the ancient sailors or men of sea according to our research is based on an open opposition to earth-based society and it is recognizable through the extremely dangerous conditions of their work and their isolation, their particular customs and their deep religiosity and superstitious attitudes, obviously encouraged because of the evident risks of their activities. These basic features were basically shared for every sailor from Antiquity onwards. Nevertheless, the seafarer was a consubstantial part of the ancient life, even if their way of living turned them into a necessary evil for the established powers. They were brave men who dared to affront the storms and the wreckages that scared most of the people, they crossed the seas and knew different customs and populations, and therefore enjoying through the waters of a kind of freedom in their 50 51 52 See also a positive view in Juvenal Sat. XIV, 275-283. ROUGE, J. La marine dans l’antiquité. Paris: Vendôme, p. 212. WARD-PERKINS, B. The Fall of the Roman Empire. Oxford: Oxford University Press, 2005. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 139 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 maritime isolation just limited by the necessary internal discipline that got broken when they disembarked. They were easily recognisable in Antiquity as a community in spite of their differences and they were treated like that by the earthly inhabitants. Acknowledgements We want to dedicate this paper to the late Fernando López Pardo, lecturer of Ancient History at Universidad Complutense because of his invaluable help to make possible the former poster that inspired this paper. He will always be remembered as a great researcher and as a magnificent person. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 140 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Elementos Proféticos na Cronística Moçárabe (séculos VIII-VI) Prophetic Elements in the Mozarabic Chronicles (VIII-VI centuries) António Rei* IEM /FCSH – Universidade Nova de Lisboa Resumo Abstract Os textos moçárabes escritos em al-Andalus entre os séculos VIII e XI proporcionam-nos informações, não apenas acerca do que trazem escrito em si mesmos, mas também acerca do período ou períodos nos quais eles foram escritos ou reescritos. O espírito de resistência moçárabe tomou diferentes discursos, de acordo aos diferentes objectivos que tinham em cada momento. Mozarabic texts wrote in the al-Andalus between the VIIIth and XIth centuries provide us with information, not only about what they have in the text itself, but also about the period or periods in what they were wrote or re-wrote. The spirit of mozarabic resistance assumes different kinds of speech in accordance to the different aims it had in every moment. Palavras-chave: Moçárabes; Hispânia; Profecia; Resistência; Identidade. Keywords: Mozarabic; Hispania; Prophecy; Resistance; Identity. ● Enviado em: 05/09/2014 ● Aprovado em: 31/10/2014 * Doutor em História Cultural e das Mentalidades Medievais, pela Faculdade de Ciências Sociais eHumanas–Universidade Nova de Lisboa ; Investigador Integrado do Instituto de Estudos Medievais (IEM / FCSH–UNL);[email protected] Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 141 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 I. CONTEXTOS I.1. A presença islâmica na Península Ibérica No ano de 711 ocorreu uma mudança radical no panorama politico-militar da Península Ibérica. Nessa data terminava o Reino Visigodo, que acabara por unificar o espaço peninsular, e começava a presença de um novo poder, islamo-árabe, que iria permanecer, ainda que sob vários formatos, espaciais e político-institucionais, até 1492, quando Granada se rendeu aos Reis Católicos. I.2. Produção literária cristã entre os séculos VIII e XI Entre a produção literária que teve início nos meios cristãos peninsulares ao longo do século VIII, vamos observar, muito em especial, alguma daquela que abordou a problemática da situação e condição dos cristãos na Hispânia, quer eles estivessem a viver autonomamente, dando origem aos reinos cristãos do Norte peninsular, Astúrias e Navarra; quer fossem cristãos a viver diretamente sob a autoridade islâmica, e aos quais se costuma designar genericamente por “moçárabes”. Embora, tanto quanto sabemos, foram, de início, os moçárabes, do sul, a escrever, a produzir e a influir nas comunidades cristãs do norte, e não o contrário, pois não houve qualquer obra surgida nos meios asturianos até ao surgimento da Crónica de Afonso III, nos finais do século IX - inícios do X1. Aquela dinâmica de produção letrada, que se foi elaborando ao longo de vários séculos, teve o seu início logo no mesmo século VIII, e pode considerar-se que manteve um discurso ideológico, mais ou menos inalterado até ao século XI. Constata-se, ao longo daquele período de mais de três séculos, alguma sincronia nas ações, mesmo uma certa univocidade, ou no mínimo, uma semelhança no discurso produzido pelos dois meios letrados. Estabelecemos o século XI como ponto de chegada, pelo facto de, no início do último quartel daquele século, ter tido lugar um acontecimento que acabou alterando aquela relação entre os dois meios letrados cristãos, os quais, em alguns casos, curiosamente, já coexistiam sob a autoridade dos reis cristãos “reconquistadores”. O facto em causa foi a adoção oficial, 1 Sobre as produções literárias no âmbito da monarquia asturiana, v. António REI, O Louvor da Hispânia na Cultura Letrada Peninsular Medieval. Das suas origens discursivas ao Apartado geográfico da Crónica de 1344, Tese de Doutoramento, FCSH-UNL, 2007, policop., capítulo II.6 ; e também Manuel DÍAZ Y DÍAZ, “La historiografía hispana desde la invasión árabe hasta el año 1000”, in De Isidoro al siglo XI, Barcelona, El Albir, 1976, pp.203-234, pp.212-229. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 142 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 pela monarquia castelhano-leonesa, do rito romano, divulgado por Cluny, e o abandono definitivo do rito visigótico ou moçárabe. Tudo isto por volta do ano 1080, durante o reinado do rei Afonso VI2. A partir de então alteraram-se as relações entre as comunidades moçárabes e o poder ou poderes régios, pois essas alterações, por vezes alterosas, mesmo violentas, ocorreram não só em Leão e Castela, mas também em Portugal3. Mas voltando ao nosso tema, é em função daquelas duas diferentes origens literárias e dos respetivos meios sociais e culturais que terão estado na sua génese, que as resolvemos designar genericamente como “profetismo moçárabe”, quando oriundas dos meios propriamente moçárabes; ou como “ideologia prospetiva neo-goda” no caso em que são produtos literários dos reinos cristãos do norte. I.3 A laude e o dolo Aquelas literaturas procuraram criar, e difundir, uma mensagem, um discurso com características algo similares e em que os principais elementos articulantes do discurso foram dois elementos literários, designadamente a laude e o dolo4. Estes dois essenciais elementos discursivos foram uma presença constante na cronística hispânica cristã, desde a CM754 até à Crónica General de España de Afonso X, ou seja durante mais de meio milénio5. 2 3 4 5 Em 1080 Afonso VI de Leão e Castela adoptara oficialmente o rito romano e abandonara o rito visigótico, comprometendo-se assim com Cluny e com Roma (A. RUCQUOI, História Medieval da Península Ibérica, Lisboa, Estampa, 1995, pp. 161-162). M. DÍAZ Y DÍAZ, diz que essa adopção e abandono simultâneos se teriam dado ainda com Fernando I, pai de Afonso VI, portanto em data anterior a 1065 (v. IDEM, “Isidoro en la Edad Media Hispana”, in De Isidoro al siglo XI, pp.141-201, p.184 n.121). Sobre influências cluniacenses na Hispânia do século XI, v. José MATTOSO, “O Monaquismo Ibérico e Cluny”, in Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa, Lisboa, INCM, 1982, pp. 55-72. Sobre estas confrontações e resistência, v. PICOITO, Pedro, “Identidade e Resistência. São Vicente e os Moçárabes de Lisboa”, Xarajîb, 7: Actas do I Colóquio Internacional sobre Moçárabes [IEM/CELAS] (2009), Silves, pp. 21- 34; e GOUVEIA, Mário de, “Os Moçárabes de Coimbra na frente de resistência à Monarquia Leonesa (sécs. XI-XII)”, idem, pp. 35-48. Sobre a “laude” e o “dolo” como elementos discursivos, e da sua importância na construção e consolidação do discurso da “Reconquista”, v. António REI, “Da Crónica Moçárabe de 754 à Crónica General de Afonso X: a ‘laude’ e o ‘dolo’, os cimentos do discurso da Reconquista”, in Luis GARCÍA MORENO e Esther SÁNCHEZ MEDINA (eds.), Del Nilo al Guadalquivir – II Estudios sobre las fuentes de la conquista islámica. Homenaje al Profesor Yves Modéran, Real Academia de la Historia, Madrid, 2013, pp. 83-96. O ‘Dolo’ constata-se ainda, como elemento exortativo, e sempre justaposto à ‘Laude’ no De Rebus Hispaniae de Rodrigo Ximénez de RADA (“Deploratio Hispanie”, in De Rebus Hispaniae sive Historia Gothica [ed. e estudo Juan FERNÁNDEZ VALVERDE], Turnholt, Brepols Ed., 1987, pp.106-109) e na Primera Crónica General, de Afonso X (“Del duello de los godos de Espanna” in Primera Crónica General de España [ed. Ramón MENÉNDEZ PIDAL], II ts., Madrid, Ed. Gredos, 1977, t.I, pp. 312-314). Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 143 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 A laude (o louvor, o panegírico), remontava, pelo menos, a Isidoro de Sevilha, e à sua famosa Laude Spaniae (O Louvor da Hispânia), se é que não viria mesmo, enquanto género literário, de mais atrás no tempo, da própria cultura imperial latina 6. O dolo (o dó, o lamento) era coetâneo, tendo surgido naquele mesmo século VIII, pela mão dos letrados moçárabes, e no qual era chorada a perda da Hispânia nas mãos dos árabes, como castigo pelas faltas dos Visigodos. Faltas que recaíam, quer sobre os próprios monarcas, que não teriam sido bons reis; mas também sobre os súbditos, em especial sobre os magnates visigodos, que, insubmissos ao seu rei ungido e sacralizado, se rebelavam quase continuamente e traziam o reino num constante clima de insegurança e de violência, quando não chegavam ao ponto de assassinar o próprio monarca; ou quando, no mínimo, o prendiam e deixavam incapaz de governar, geralmente privando-o da visão. O que tem sido designado como ‘Dolo’ ou ‘Dó da Hispânia’ é um discurso lamentoso, uma narração triste e dolorosa em que se relata que, em consequência do desaparecimento do Reino Visigodo e da instalação do poder islâmico na Hispânia, se tinham abatido sobre este extremo do mundo todas as desgraças e inclemências 7. É o pranto pelo ‘Paraíso Perdido’, que urgia recuperar8. I.4. O discurso da redenção da Hispânia Impunha-se, pois, portanto a redenção da Hispânia, já que a presença islâmica na Península Ibérica era, e passou a ser entendida e divulgada como tratando-se de um castigo divino. Castigo que, se entendia, ou pretendia, temporário, e que tornava, pois, necessário aos cristãos hispânicos, estivessem eles dentro ou fora dos limites de al-Andalus, a procura ativa daquela mesma redenção. Este ‘dó’ tinha uma função semelhante à da ‘laude’, ambos produzindo um efeito de exortação. No caso em que ambos se conjugam e complementam, o efeito ganha um muito maior impacto emotivo. A diferença essencial entre ambos é que a ‘laude’ exorta através da criação de uma exaltação positiva resultante de uma evocação da unicidade espaço - temporal da memória hispânica; enquanto o ‘dó’ busca fazer surgir um sentimento negativo, resultante 6 7 8 REI, António, O Louvor da Hispânia na Cultura Letrada Peninsular Medieval…, pp. 35-36. Além das referências da nota anterior, v. “Spania miserrima” in CM 754 (ed. J.E. LÓPEZ PEREIRA), pp. 6975. Elisa ESTEVES, A Crónica Geral de Espanha de 1344: estudo estético-literário, Évora, Pendor, 1997, p. 91. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 144 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 da evocação da diferença, do ‘outro’, e da condição ‘estrangeira’ do último e mais recente dos possessores da Hispânia, os muçulmanos, apresentando assim a sua ilegitimidade para nela continuarem9. O ‘dó’ ou ‘dolo’ terá sido o elemento emocional, o motor de arranque, da chamada ‘Reconquista’ que se foi elaborando posteriormente, em forma argumentativa, e enquanto discurso legitimador10. Dessa forma deveriam, pois, os cristãos procurar, devota e devotadamente, os sinais que indicariam ou, ao menos, indiciariam um momento, ou talvez mais exatamente “o momento” em que a misericórdia divina se manifestaria, por fim, generosamente, através de uma inequívoca vitória que lhes devolveria, em definitivo, o domínio da Hispânia. A vitória seria assim a marca evidente de que aquela velha falta já se encontrava, finalmente, expiada. A literatura cristã e / ou moçárabe, por coincidência, ou sincronia, ganhava alento e recrudescia de atividade, produzindo ou reproduzindo textos, nos períodos de maior debilidade do poder islâmico andalusi, assumindo o papel de arauto daquelas esperanças profundas, procurando apontar prognósticos para determinados momentos que se entendiam estarem tocados pela graça divina. A ação conjunta ou isolada de ambas as comunidades cristãs é que nos leva a colocar as duas possibilidades atrás enunciadas: ou se trataria essencialmente de divulgação de textos de caracter profético, com origem nos meios letrados moçárabes, e que produziriam reflexo nos meios cristãos do norte; ou, pelo contrário, se se tratariam de textos do que poderemos designar como “ideologia prospetiva neo-goda”, os quais acabariam por produzir ondas de choque nas comunas cristãs sob poder islâmico. Estamos em crer que terão sido dois movimentos, com origens e dinamismos autónomos, embora mais ou menos sincrónicos em determinados momentos de visibilidade e ação socio-política e cultural. Em ambos os meios cristãos acabaram por se impor, ao menos, duas atitudes, ambas a exigir estudo e especial atenção: o estudo dos textos bíblicos, procurando, através de fórmulas 9 10 Sobre o ‘Dó’ ou ‘Dolo’ pela Hispânia, diz-nos Luís KRUS: «As lamentações pela perda da Hispânia visavam um apelo à unidade cristã, o reforçar da resistência religiosa e cultural face aos novos poderes.» (“Tempo de Godos e Tempo de Mouros. As Memórias da Reconquista”, p.108). Ainda sobre este tópico literário, v. v. António REI, “Da Crónica Moçárabe de 754 à Crónica General de Afonso X: a ‘laude’ e o ‘dolo’, os cimentos do discurso da Reconquista”, passim. Sobre o conceito de ‘Reconquista’ e a sua difusão nos reinos cristãos peninsulares, v. J. MARAVALL, El concepto de España en la Edad Media, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1981; Luís KRUS, “Tempo de Godos e tempo de Mouros. As Memórias da Reconquista”, in Passado, Memória e Poder na sociedade medieval portuguesa, Patrimónia, Redondo, 1994, pp.102-127; e IDEM, “Os Heróis da Reconquista e a Realeza Sagrada Medieval Peninsular: Afonso X e a Primeira Crónica Geral de Espanha”, in idem, pp.129-142; e v. António REI, “Da Crónica Moçárabe de 754 à Crónica General de Afonso X: a ‘laude’ e o ‘dolo’, os cimentos do discurso da Reconquista”, passim. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 145 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 de tipo numerológico, conseguir identificar o momento, a altura, o ano, em que irromperia o restauro do domínio cristão da Hispânia; e, simultaneamente, estar vigilantes aos momentos de força, mas, e principalmente, aos momentos de debilidade do poder islâmico em alAndalus, pois um desses momentos de fraqueza entre os muçulmanos poderia ser “o momento” esperado, essa poderia ser a conjuntura, que poderia dar origem ao movimento reconquistador e restaurador. A própria noção de “Reconquista”, de recuperação do espaço perdido, procura afirmar e reiterar, ad aeternum, o pressuposto de que os cristãos visigodos e depois os neo-godos, não teriam perdido o direito à terra hispânica, que lhes fora entregue por Deus. A associação da monarquia visigoda com o cristianismo romano, através da conversão do rei Recaredo, visto como um verdadeiro sucessor do Cristianíssimo e Hispânico Imperador Teodósio, fazia daquele momento da conversão o ápice da História para estas terras e gentes 11. Escolhidos e tocados pela Divindade, já nada, nem ninguém, poderia posteriormente vir retirar-lhes o que lhes fora dado para todo o sempre12. I.5. O cálamo e a espada Um exemplo de todo aquele modus operandi é o estudo numerológico que, baseando-se em premissas cronológicas como as que estruturam a Crónica Moçárabe de 754, calculou que o ano de 798 d.C. seria o ano 6000 da Criação do Mundo. Data redonda, e marcando uma evidente mudança de ciclo numérico, foi considerada como de prognóstico favorável. Poderia ser o ano em que tudo mudaria, em especial o relativo ao domínio político-militar na Península. Todo aquele conjunto de dados e conclusões foram comunicados ao rei Afonso II das Astúrias, em função dos quais resolveu colocar a sua espada ao serviço do Destino; do que assim se entendia que seria o Plano Divino. E o rei asturiano encabeçou, naquele ano, todo um movimento de razia, em direção ao Gharb, precisamente a região onde havia mais comunidades moçárabes e que, simultaneamente, estavam mais próximas das fronteiras cristãs. Depois desta irrupção dos asturianos, a qual chegou a ameaçar, senão mesmo a ocupar momentaneamente Lisboa, durante cerca de um decénio, entre 798 e 809, os moçárabes do 11 12 REI, António, O Louvor da Hispânia … p. 90, n.10 António REI, “Da Crónica Moçárabe de 754 à Crónica General de Afonso X: a ‘laude’ e o ‘dolo’, os cimentos do discurso da Reconquista”, passim. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 146 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Gharb estiveram em estado de sublevação, até serem submetidos pelas forças islâmicas e, no final, perderem definitivamente as suas autonomias, que se mantinham desde há cerca de um século. Curiosamente aquelas ações guerreiras levadas a cabo por Afonso II foram seguidas de perto pelos meios carolíngios e o rei asturiano chegou mesmo a enviar a Carlos Magno por intermédio de uma embaixada encabeçada por dois dignitários da corte asturiana, Basílio e Froila, algumas prendas, e até mesmo prisioneiros de guerra, tudo obtido a partir dos botins conseguidos nas razias a sul13. Por outro lado, e tendo em conta aqueles contextos numerológicos, é de considerar que a própria coroação de Carlos Magno em Roma, no ano de 800, possa estar, também ela, enquadrada no que se entenderia ser o início do sétimo milénio do Mundo. Importa ainda referir dentro do contexto moçárabe / neogodo, a evidente articulação entre os exegetas cristãos e o poder político-militar; e a noção de que a política, e principalmente a guerra, eram manifestações da vontade de Deus. O verdadeiro veículo da ação redentora cristã, mais do que o letrado, que divulgava pela letra aquela mensagem, passava a ser o guerreiro, e as vitórias militares seriam o sinal evidente daquele regresso à graça de Deus. Assim, esta condição quase sacerdotal do guerreiro hispânico, que se constata desde cedo, fez com que os monarcas cristãos da Hispânia, como chefes guerreiros e de guerreiros, com muito poucas exceções, não tivessem necessidade de ser sagrados pela Igreja, ao contrário dos monarcas de além-Pirenéus. II. TEXTOS II.1. Crónica Profética Arábico-Bizantina de 741 É possivelmente a primeira obra escrita em ambiente moçárabe, e apenas três décadas após a chegada dos muçulmanos. É, portanto, pela datação que surge no título, contemporânea da crise que na Península se prolongou pela década de 40, com a instabilidade político-militar a tomar conta do espaço hispânico sob a autoridade islâmica, com as revoltas berberes, que aqui secundavam outras revoltas similares que já tinham começado no Norte de África. Esta obra, composta em meios letrados moçárabes, teve, entre as suas fontes, a Crónica de João de Santarém, mais conhecido como Biclarense, pelo facto de o autor, scalabitano de 13 Luís Saavedra MACHADO, “O primeiro assalto cristão à Lisboa muçulmana (798?)”, in Revista Palestra nº 4, Liceu nacional Pedro Nunes, Lisboa, 1959, pp. 20-33, pp. 23 e 32. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 147 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 origem, ter sido Bispo de Bíclaro. Esta mesma Crónica do Bispo de Bíclaro, muito possivelmente já dentro deste contexto de readaptação literária, foi retocada e deu origem a uma versão, que poderemos chamar de “moçárabe”, datável de 742, ou seja do mesmo período em que a Crónica Profética estava também a ser composta14. E ela mesma foi fonte para a Crónica Moçárabe de 754, cuja descrição segue. Crónica Moçárabe de 754 (CM 754) A chamada Crónica Moçárabe de 754 (também conhecida como Continuatio Hispana)15 é uma obra que terá sido composta em meados do século VIII16. Digamos que esta obra acompanhou, desde terras da Hispânia, os ecos da trágica mudança da dinastia califal no oriente, quando os Abássidas destronaram e massacraram os depostos Omíadas, mas também da luta que grassava entre as principais elites árabes assentes em al-Andalus, visto já não se sentirem comprometidos com o novo poder abássida. Coincidentemente, no ano seguinte, de 755, o príncipe omíada ‘Abd al-Rahmân entrou em AlAndalus para lutar pelo poder17. 14 15 16 17 Sobre estes textos, o de 741 e o de 742, v. o excelente estudo de César DUBLER, “Sobre la Crónica Arabigo-Bizantina de 741 y la influencia bizantina en la Península Ibérica”, Al-Andalus XI (1946), pp. 283-349, sobretudo pp. 298-321; e ainda M. DÍAZ Y DÍAZ, “Transmisión…”, pp.130-135. Cármen HARTMANN, no estudo que acompanha a edição da Crónica de João de Santarém, diz ser a Crónica Arabigo-Bizantina de 741 um texto moçárabe (João de Santarém (Biclarense), Crónica [ed. e introd. C.C.HARTMANN], p.80, n.143). A designação de ‘Continuatio Hispana’ ou ‘Continuatio Isidoriana Hispana’ ficou a dever-se a T. Mommsen (v. Crónica Mozarabe de 754 [ed. crít. e trad. cast. de José Eduardo LÓPEZ PEREIRA), Anúbar Ed., Saragoça, 1980, p.19; Cláudio SANCHÉZ-ALBORNOZ, “La Crónica del Moro Rasis y la Continuatio Hispana”, Anales de la Univ. de Madrid, Letras, III, 3 [1934]; e CMR, ed. CATALÁN e ANDRES, p. XXXV). Sobre edições e questões textuais relacionadas com esta Crónica, v. Crónica Mozarabe de 754 (ed. crít. e trad. cast. José Eduardo LÓPEZ PEREIRA), Anúbar Ed., Saragoça, 1980, em especial pp. 7-21; e M. DÍAZ y DÍAZ, “La historiografia hispana desde la invasión árabe hasta el año 1000” in, De Isidoro al siglo XI, Barcelona, Ed. El Albir, 1976, pp. 203-234, pp. 207-210; e IDEM, “La transmisión del Biclarense”, in De Isidoro al siglo XI, pp. 117-140; pp. 135-140; José Eduardo LÓPEZ, “La cultura del mundo árabe en textos latinos hispanos del siglo VIII”, in Islão e Arabismo na Península Ibérica. Actas do XI Congresso da UEAI, Universidade de Évora, 1986, pp. 253-271, pp.267-269; B. SANCHÉZ ALONSO, Historia de la historiografia española: ensayo de un examen de conjunto. 1) hasta la publicación de la Crónica de Ocampo (… - 1543), 2ª 3d.rev., Madrid, CSIC, 1941, pp. 105-108. Historicamente a CM 754 é um dos poucos, e por isso tão importantes, textos cristãos peninsulares que se conhecem, e que foram compostos no período que medeia entre o reinado do monarca visigodo Wamba e o reinado do rei Afonso III das Astúrias, ou seja durante um lapso temporal de, pelo menos, dois séculos. Entre o reinado de Wamba (672-680) [A.RUCQUOI, ob.cit., p.321] e o de Afonso III (866909) [IDEM, p.326], correram cerca de dois séculos, nos quais a produção literária foi muito escassa. Sobre este período problemático na Hispânia islâmica em meados do século VIII, e os reflexos e consequências da mudança dinástica em Damasco, v. A. RUCQUOI, ob.cit., pp.69-70. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 148 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Aquele contexto de instabilidade política fez surgir, ou ao menos recrudescer, nos meios cristãos, a circulação e divulgação de textos pseudo-proféticos, com cariz mais ou menos esotérico, e que prognosticariam o fim breve do domínio islâmico na Península. Esta Crónica, de autor desconhecido, tem sido vista como produto de um círculo letrado moçárabe, sem que, no entanto, os investigadores tenham chegado a algum consenso quanto à sua origem. Já lhe foi atribuída origem cordovesa18, toledana19 e até eventualmente murciana20. Entre as fontes utilizadas para a sua redação contam-se a Crónica de João de Santarém ou de Bíclaro, já na sua versão de 742, e a chamada Crónica Profética Arábico-Bizantina de 741; textos, que como já vimos atrás, são textos irmãos. A utilização posterior da CM 754, constatar-se-á, mais tarde, como fonte da Crónica Pseudo-Isidoriana, numa última redação desta última, ainda efetuada em meios moçárabes toledanos ou conimbricenses21; mas ela figurou ainda, já no período da ‘reconquista’ castelhano-leonesa, como fonte utilizada por Rodrigo Ximénez de Rada, chanceler do rei Fernando III, o Rei Santo. 18 19 20 21 O partidário da origem cordovesa do autor é R. Dozy (apud M. DÍAZ Y DÍAZ, “Transmisión…”, p. 135, n.44). M. DÍAZ Y DÍAZ, e já anteriormente MOMMSEN, entendiam ser o autor um toledano (ibidem). LÓPEZ PEREIRA entende ser alguém do sudeste peninsular, possivelmente murciano, o autor da CM754 (CM754, ed. LÓPEZ PEREIRA, p.17). Estamos em crer que a ultima redação/versão da CPs-I, ainda em árabe, terá ocorrido em meio cultural moçárabe, e poderá ter sido uma peça instrumental importante na resistência cultural e identitária dos mesmos moçárabes, ante o avanço das influências borgonho-cluniacenses. Pomos mesmo a possibilidade de que aquela redação pode não ter sido algo de todo estranho a Sisnando Davidis, o homem que governou Coimbra e Toledo, entre 1065 e 1091 (sobre Sisnando Davidis, figura a pedir um novo estudo, ver a síntese, com 60 anos (!) mas ainda excelente, de Ramón MENÉNDEZ PIDAL e Emilio GARCÍA GÓMEZ, “El conde mozárabe Sisnando Davídiz y la política de Alfonso VI com los Taifas”, AA XII (1947), pp.27-41), e grande defensor da causa moçárabe, pois constata-se a presença da CM 754 em Coimbra, tendo sido fonte dos Annales Portugalenses Veteres (ainda sobre esta relação textual entre a CM 754 e os APV, v. Damião PERES, “A propósito do «Chronicon Alcobacense»”, Rev. Portuguesa de História, I (1941), Univ. Coimbra, pp.148-150 + 1 extratex.; José Eduardo LÓPEZ PEREIRA, “El elemento godo en los Annales Portugalenses Veteres: un problema de critica textual y de fuentes”, Rev. Portuguesa de História, XVI (1976), Univ. Coimbra, pp.223-226), os quais foram redigidos até 1093 (João de Santarém (Biclarense), Crónica [ed. e introd. C.C.HARTMANN], p.85) ou seja, durante o governo de Sisnando e de seu genro e sucessor, Martim Moniz. Curiosamente, o arquétipo textual da CM 754, que hoje conhecemos em vários testemunhos, parece remontar precisamente a Coimbra como ponto de origem (Idem, pp. 8486; e António BENITO VIDAL, Crónica Seudo Isidoriana, Valência, Anúbar Ed., 1961, p.18), com exceção do chamado ‘Complutense’, que seria de Toledo (Idem, p. 86); mas Sisnando também governou Toledo. Se acrescentarmos a este quadro que Diego Catalán e Ramón Menéndez Pidal falam na redação da CPs-I em Toledo (v.infra n.49), e que na sua composição os excertos de obras hispânicas são claramente privilegiados em relação a outros que o não são (CMR, ed. CATALÁN e ANDRES, p. XXXVII), o cenário de uma afirmação de cristianismo ‘nacionalista’, leia-se ‘moçárabe’, não parece descabido, nem toda esta conjetura de proximidade entre aquele magnate moçárabe, Sisnando, e este esforço cronístico com origem nos meios letrados do cristianismo hispânico. Sobre esta questão e período v. ainda Pierre DAVID, “L’abolition du rite hispanique”, Études Historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIIe siècle, 1947, pp. 391-405. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 149 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 II.3. Kitâb Hurûshyûsh (KH) [O Livro de Orósio] (Sécs. IX-X) As Histórias contra os pagãos, de Orósio, cerca de meio milénio depois da sua redação, pois fora redigida nos inícios do século V, continuavam sendo uma referência-base de importância basilar para a construção da memória hispânica. O Kitâb Hûrûshyûsh (O Livro de Orósio) foi a ‘ponte’ através da qual muitos dos conceitos e memórias da Antiguidade Tardia relativamente à Hispânia, acabaram entroncando na cultura hispano-árabe. Trata-se, na sua origem, de uma tradução do latim para árabe das Histórias de Orósio22, obra considerada como uma matriz da historiografia medieval 23 e de grande importância para esta Finisterra, por ser o autor da mesma um hispânico e a obra em causa dar um lugar especial à Hispânia 24. Até há pouco tempo esta tradução da obra orosiana era entendida como fruto de um trabalho de equipa, equipa essa dirigida, pelo Qādī (juiz) muçulmano Qāsim ibn al-Asbagh e constituída também pelo “Juiz dos cristãos”, um moçárabe ainda não identificado com segurança25. O texto latino em causa teria chegado a Córdova como oferta do Basileus de Constantinopla durante uma embaixada bizantina a al-Andalus26. No entanto, mais recentemente, mercê de profundo estudo levado a cabo por Mayte Pénelas, provou-se ser uma tradução levada a cabo por Hafs ibn Albar, filho de Álvaro de Córdova, e então juiz ou conde (kumis) dos cristãos da capital omíada. Pela sua condição de interlocutor privilegiado junto da corte, em nome dos cristãos cordoveses, Hafs ibn Albar seria um homem já culturalmente bilingue, pois falaria e escreveria o latim mas também o árabe, e a prova desse seu domínio da língua arábica seria, de forma patente, esta mesma tradução. 22 23 24 25 26 Acerca do conhecimento da existência desta tradução entre letrados dos séculos X e XI, v. Mayte PÉNELAS, (ed. e estudo), Kitâb Hurûshyûsh (Traducción Árabe de las Historiae adversus Paganos de Orosio), Madrid, CSIC, 2001, p.17. C.ORCÁSTEGUI e E. SARASA, ob.cit., pp. 37-38. Sobre a popularidade desta obra na Idade Média, bastará dizer que se lhe conhecem cerca de 275 mss. (Orósio, História Apologética, pp. 34-43). V. António REI, O Louvor da Hispânia …, II.2. Esta tese, de uma equipa chefiada por Ibn al-Asbagh, tem sido geralmente aceite (embora M. DÍAZ Y DÍAZ já tivesse colocado anteriormente, em 1970 e em reedição de 1976 [IDEM, “La Historiografia Hispana…”, p.205], como data e local da redacção do KH, respectivamente, por volta de 930 e em Toledo [Idem, p.211]) até à muito recente investigação e edição que Mayte PÉNELAS levou a cabo, e onde foi formulada esta nova tese, quanto a nós bastante plausível. A anterior apresentava algumas debilidades cronológicas, quer relativamente ao monarca que hipoteticamente teria oferecido a obra a ‘Abd alRahmān III (Mayte PÉNELAS, ob.cit., p.28); quer, e principalmente, no respeitante ao papel que o Qādī Qāsim ibn al-Asbaġ teria desempenhado na empresa em causa, atendendo à sua idade e à sua sanidade mental no final da vida (Ibidem). O aspecto, até então acessório, que relacionava a tradução com os moçárabes passou agora a ser o aspecto principal e único (Idem, pp.30-42). A hipótese colocada por M. DÍAZ Y DÍAZ situa aquela compilação ainda no ambiente da resistência toledana à política hegemónica de ‘Abd al-Rahmān III. V. nota supra. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 150 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 De forma semelhante às que identificámos supra, também aqui encontramos uma paralela época de crise política em al-Andalus, coincidindo com o bastante mais longo período das autonomias muladis, que durante mais de meio século27, em especial no ocidente e no sul da Hispânia islâmica, eram a prova evidente da debilidade da autoridade política e militar dos emires de Córdova. Tratar-se-ia, pois, de mais um contributo para o espírito de resistência e de sobrevivência cultural das comunidades moçárabes. No entanto aquela resistência já assumia formas aculturadas, pois apesar de haver a transmissão de uma memória cristã, a que acrescia o facto de ter origem hispânica, aquela transmissão já não se podia fazer em latim, mas sim em árabe, pois o grau de ‘arabização’ entre os cristãos peninsulares, estava já muito avançada, em especial entre aqueles que residiam nos meios urbanos28. O KH veio a ser uma das fontes utilizadas por Ahmad al-Râzî para a sua obra perdida Akhbâr Mulûk al-Andalus (Notícias acerca dos Monarcas de al-Andalus), certamente usada no apartado geográfico do seu trabalho. O mesmo KH veio a ser usado mais tarde, no séc. XI, por al-Bakrî na sua obra geográfica Al-Masâlik wa-l-Mamâlik (As Vias e os Reinos)29. A utilização do KH quer por al-Râzî quer por al-Bakrî levanta importantes questões textuais, as quais já foram abordadas por nós em momento anterior30. 27 28 29 30 No extremo ocidente as revoltas muladis prolongaram-se de 866 (quando se deram as primeiras revoltas em Mérida; v. Maria Ángeles PÉREZ ÁLVAREZ, Fuentes Árabes de Extremadura, Cáceres, Univ.Extremadura, 1992, p.106) a 930 (quando Badajoz se rendeu a ‘Abd al-Rahmân III; Idem, p.124) embora só com a rendição de Toledo, em 932, se tenha dado a pacificação de al-Andalus sob a autoridade do seu primeiro califa (v. António Borges COELHO, Portugal na Espanha Árabe (PEA), 2ªed. II vols., Lisboa, Caminho, 1989, vol.II, p.36). Sobre o grau de arabização dos moçárabes que teria levado Hafs ibn Albar a traduzir Orósio de latim para árabe, v. Mayte PÉNELAS, ob.cit., pp. 40-42. Outros sinais do alto grau de arabização das elites moçárabes no século X são o facto de Recemundo de Córdova ter escrito o seu ‘Calendário’ em árabe, e tê-lo dedicado a al-Hakam II; segundo M. DÍAZ Y DÍAZ também a CM 754 ou Continuatio Hispana (Bibl.Nac., Madrid, ms. 4879 [Gg. 132]) teria sido traduzida para árabe; e também Isidoro de Sevilha teria sido traduzido para árabe, e posteriormente utilizado por al-Râzî (v. M. DÍAZ Y DÍAZ, “Isidoro en la Edad Media Hispana”, p. 174); também Mayte PÉNELAS refere as muitas anotações árabes que acompanham os mss. das Etimologias, e que fazem supor terem sido extraídas de uma tradução árabe (IDEM, ob.cit., pp. 56-57 e n.172). Aquela mesma listagem encontra-se quase literalmente em A. RUCQUOI, ob.cit., p.101. Os próprios Evangelhos foram traduzidos para árabe, acompanhados de apontamentos litúrgicos, o que nos fala do grau de aculturação entre os moçárabes, pelo menos os de meios urbanos, em especial Córdova. (Mª. Jesus VIGUERA, «¿Existe una identidad mozárabe? A modo de conclusión» in ¿Existe una identidad mozárabe? Historia, lengua y cultura de los cristianos de al-Andalus (siglos IX-XII), Estudios reunidos por Cyrille Aillet, Mayte Penelas y Philippe Roisse, Madrid, Casa de Velázquez, 2008, pp. 299314. Relativamente à utilização que al-Bakrî fez do KH, v. Mayte PÉNELAS, ob.cit., pp. 73-74; e António REI, Memória de Espaços e Espaços de Memória. De Al-Razi a D. Pedro de Barcelos, E. Colibri, Lisboa, 2008, p.130, n.5. Sobre a relação de Al-Himyarî com o KH, v. Mayte PÉNELAS, ob.cit., pp.74-76. V. A. REI, O Louvor da Hispânia…, em especial no capítulo II.5. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 151 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 II.4. Crónica Pseudo-Isidoriana (CPs-I) (Séc. X-XI) Obra que levanta vários problemas, em virtude de não se lhe conhecer o autor, o qual, sendo conhecido, ajudaria, com certeza, a datar, por aproximação, o período em que surgiu a obra em causa e a situar espacialmente o seu aparecimento. Assim, relativamente a esta obra, quer a sua datação aproximada, quer a região da sua elaboração são questões importantes e ainda não sanadas31. Tendo sido entendida como uma continuação da obra de Isidoro de Sevilha, tal facto deu origem à designação que surge no ms. de Paris: Cronica Gothorum a sancto Isidoro edita 32. Mais recentemente, veio a fixar-se a sua denominação em Chronica Gothorum Pseudo Isidoriana 33 ou simplesmente Crónica Pseudo Isidoriana (CPs-I) 34. Diversos autores que trataram esta Crónica e tema têm feito diferentes propostas no que toca à época da sua redação 35. Ramón Menéndez Pidal num primeiro momento entendeu tratar-se de uma obra compilada na primeira metade do século XI36, seguindo Mommsen e Cláudio Sanchez-Albornoz37, para depois se fixar na primeira metade do século X38. Levi Della Vida apontou, como possível época de redação, o final do século XI39. 31 32 33 34 35 36 37 38 39 Um ponto de situação relativamente recente, de 1996, sobre a obra e sobre os autores que a ela se têm dedicado, em Helena DE CARLOS VILLAMARÍN, Las Antigüedades de Hispania, Spoleto, 1996, pp. 241249. Dando uma ideia geral das problemáticas, não dispensa, nalguns casos a consulta da obra ou obras referidas, como a antiga mas não dispensável obra de B. SANCHÉZ ALONSO, Historia de la historiografia…, pp. 115-116. O ms. nº 6113 da Biblioteca Nacional de Paris, único exemplar da CPs-I começa daquela maneira (apud P.GAUTIER-DALCHÉ, “Notes sur la «Chronica Pseudo-Isidoriana», Annuario de Estudios Medievales 14 (1984), pp.13-32, p. 14). Edições desta Crónica: T. MOMMSEN, Monumenta Germaniae Historica, Auctores Antiquissimi XI, Chronica Minora II, pp.372-388; edição castelhana da CPs-I, da autoria de Antonio BENITO VIDAL, Crónica Seudo Isidoriana, Valência, Anúbar Ed., 1961. A mais recente edição, tradução e estudo deste ms. é: La chronica gothorum pseudo-isidoriana (ms. Paris BN 6113), ed. crítica, trad. y estudio de Fernando GONZÁLEZ MUÑOZ, A Coruña, Toxosoutos, 2000. Ramón MENÉNDEZ PIDAL, “Sobre la Crónica Pseudo Isidoriana”, Cuadernos de Historia de España XXIXXII (1954), pp. 5-15, onde assim a designa, apesar do título apresentar outra forma. Também Cláudio SANCHÉZ-ALBORNOZ a designa daquela forma no seu longo estudo “San Isidoro, «Rasis» y la Pseudo Isidoriana”, CHE IV (1946), pp. 73-113. Esta designação, hoje a mais comum, encontramo-la, entre outras, no título do trabalho de MENÉNDEZ PIDAL (v. nota supra); no trabalho de P. GAUTIER-DALCHÉ, ob.cit., passim; M. DÍAZ Y DÍAZ, “La Historiografia Hispana…”, pp. 211-212; e na edição castelhana da CPs-I, de Antonio BENITO VIDAL, Crónica Seudo Isidoriana. Diego CATALÁN, a partir de Menéndez Pidal, coloca a redacção da CPs-I a acontecer em Toledo, do punho de um murciano (v. CMR, ed. CATALÁN e ANDRES, p. XXXII). Ramón MENÉNDEZ PIDAL, “Sobre la Crónica Pseudo Isidoriana”, p.5. Cláudio SANCHÉZ-ALBORNOZ, “San Isidro, ‘Rasis’ y la Pseudo-Isidoriana”, p.74; Mayte PÉNELAS, ob.cit., 68, n. 227. Ramón MENÉNDEZ PIDAL, “Sobre la Crónica Pseudo Isidoriana”, p.13. Apud Antonio BENITO VIDAL, que afirma que Levi della Vida coloca a redacção da CPs-I no século XII (IDEM, ed. Crónica Seudo Isidoriana, p.7). Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 152 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Pela nossa parte, cremos que todos têm uma parte de razão nas propostas que fazem. Assim, quanto a nós, a CPs-I será o resultado final de uma evolução textual que se foi processando ao longo dos séculos IX a XI, com momentos de maior visibilidade quando se deram as autonomias muladis (sécs. IX-X); quando o califado entrou em colapso e surgiram as Taifas (princípio do séc. XI) 40; e, por último, e num cenário e numa lógica completamente diferentes, durante o período de resistência cultural que os moçárabes hispânicos protagonizaram no final do século XI41 e no início do século XII, contra o cada vez maior predomínio do cristianismo romano e cluniacense, o qual acabou por vencer e levar, por parte das monarquias cristãs hispânicas, ao abandono do rito visigótico-moçárabe. Atendendo ao cada vez maior grau de arabização dos moçárabes, a sua língua literária passou a ser o árabe, e nesse idioma terá sido ainda redigida a última versão da CPs-I, a mesma que acabou mais tarde por ser traduzida para latim 42. Compilada a CPs-I em ambiente moçárabe, usou entre as suas fontes a CM 754, a Historia Gothorum de Isidoro de Sevilha43, e também se constatam passagens de João de Santarém e de Orósio, entre os autores hispânicos44. Usou ainda os códices moçárabes das Nomina Sedium45. Trata-se, esta obra, no seu conjunto, de uma síntese da História Hispânica, desde Noé até à invasão árabe, sendo introduzida por uma descrição geográfica da península46. III . Conclusão A literatura moçárabe, foi, enquanto existiu, produto da herança cultural hispanovisigoda em contínua relação e consequente aculturação com a cultura islamo-árabe que se instalou na Península Ibérica. Uma das principais razões da sua existência e, eventualmente, o principal valor da sua identidade, foi o da resistência aos poderes hegemónicos que se lhe foram impondo (islâmicos e cristãos romanos), procurando no estudo dos textos bíblicos 40 41 42 43 44 45 46 Relativamente à constituição e estruturação do texto da CPs-I, e à época em que começou a sua circulação entre as comunidades moçárabes, M. DÍAZ Y DÍAZ, “La Historiografia Hispana desde la invasión árabe hasta el año 1000”, pp.211-212. Chegou a existir um pleito judiciário, em 1077, entre os partidários de ambas as liturgias, a romana e a hispano-visigótica (v. L.KRUS, A Concepção Nobiliárquica do Espaço Ibérico (1280-1380), p.72, n.70). P. GAUTIER-DALCHÉ, ob.cit., pp.23-26. P.GAUTIER-DALCHÉ, ob.cit., p.25. Crónica Seudo Isidoriana, (ed. Antonio BENITO VIDAL), p.7. V. A. REI, O Louvor da Hispânia…: II.4.4. As Nomina Sedium moçárabes, pp. 114-116. Crónica Seudo Isidoriana, (ed. A. BENITO VIDAL), p.7. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 153 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 sinais que indicassem o momento em que se produziria a redenção da Hispânia, e em que eles, os verdadeiros neo-godos, reassumiriam o poder que, por mal usado, lhes fora retirado em 711. Os Moçárabes foram, portanto, os herdeiros e continuadores de uma cultura e de uma vivência cristã intrinsecamente hispânicas, que surgira e atingira o seu auge politicamente, com a ação unificadora da monarquia visigótica, pela espada de Leovigildo; e, culturalmente, pelo cálamo do cunhado de Leovigildo, Isidoro de Sevilha, foi elevada a hino laudatório. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 154 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 O Intelectual na Idade Média: divergências historiográficas e proposta de análise L’intellectuel au Moyen Âge: débats historiographiques et proposition d’analyse Igor Salomão Teixeira* Universidade Federal do Rio Grande do Sul Resumo Résumé Este artigo é sobre a problemática historiográfica do termo “intelectual” para definir pensadores na Idade Média. Trata-se de uma análise bibliográfica a partir do estudo de Jacques Le Goff, Os intelectuais na Idade Média (1957), dos estudos de Jacques Verger, como Homens e Saber na Idade Média (1997) e Cultura, Ensino e Sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII (1999). O objetivo é sistematizar pontos divergentes sobre definições de Intelectuais e Homens de saber. Ao final, apresentamos características gerais da Antropologia Escolástica como um campo propício para análises que consideram a “consciência de si” de pensadores dos séculos XII a XIV. Concluímos que essa problemática é uma reflexão que assume tanto a possibilidade de se propor uma análise de história social (séries documentais), ou de história intelectual (a atuação dos mesmos a partir de suas produções). Notre texte c’est sur les discussions historiographiques autour du terme “intelectuel” pour les penseurs du Moyen Âge. Dans une analyse bibliographique a partir de l’oeuvre Les Intellectuels au Moyen Âge, de Jacques Le Goff, publié en 1957, et des études de Jacques Verger, comme Les gens de savoir dans l'Europe de la fin du Moyen Age (1997) et Culture, enseignement et société en Occident aux XIIe et XIIIe siècles (1999) l’objectif s’est systématiser les différences entre les concepts Intellectuels et Gens du Savoir. À la fin du texte il y a une présentation de l’Anthropologie Scolastique comme un domaine qui posibilite l’analyse de la “conscience de soi” des penseurs entre le XIIème et le XIVème siècles. La conclusion: analyser cette problématique a partir de l’Anthropologie Scolastique peut indiquer un chemin vers l’histoire sociale (histoire serielle) ou vers l’histoire intellectuel (l’atuaction des penseurs et leurs productions). Palavras-chave: Universidades Medievais; Tomás de Aquino; Intelectuais. Mots-clés: Universités Médiévales – Tomas d’Aquin - Intellectuels. ● Enviado em: 08/04/2014 ● Aprovado em: 10/11/2014 * Dr. em História. Professor no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Esse texto faz parte de uma série de reflexões teóricometodológicas a partir do projeto Os Tempos da Santidade: Processos de Canonização e Relatos Hagiográficos dos santos mendicantes (séculos XIII e XIV). Pesquisa financiada pela FAPERGS. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 155 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Introdução: Entre tantas palavras: eruditos, doutos, clérigos, pensadores (a terminologia do mundo do pensamento sempre foi vaga), essa designa um meio de contornos bem definidos: o dos mestres das escolas. Anuncia-se na Alta Idade Média, desenvolve-se nas escolas urbanas do século XII, desabrocha a partir do século XIII nas universidades. Designa aquele cujo ofício é pensar e ensinar seu pensamento. Essa aliança da reflexão pessoal e de sua difusão num ensino caracteriza o intelectual.1 Com essas palavras Jacques Le Goff iniciou seu ensaio sobre Os Intelectuais na Idade Média. O texto publicado em 1957 serviu como referência para muitos historiadores que enveredaram pelas análises da produção teológico-filosófica ou, sem anacronismos, científica durante o período medieval. Sintetizando: mestres das escolas que tem como ofício pensar e ensinar seu pensamento a partir do ensino. Vinte e sete anos após a publicação da primeira edição, em 1984, o autor escreveu um prefácio à segunda edição, que sairia no ano seguinte. Sua preocupação foi justificar o porquê de reeditar o livro sem alterações significativas após os debates em torno da noção de intelectual. Seria anacrônico para a Idade Média? Ao que responde categoricamente: não. Para Le Goff, o uso do termo foi inicialmente pensado para “deslocar a atenção das instituições para os homens, das ideias para as estruturas sociais, as práticas e as mentalidades, de situar o fenômeno universitário medieval numa longa duração”.2 Sobre este aspecto, então, poderíamos perguntar: a que se refere Jacques Le Goff como modificações e avanços no trato do tema do “intelectual” entre a publicação do livro em 1957 e o prefácio de 1984? Com os estudos mais recentes a questão ganha ainda mais fôlego, o que faz com que a análise da historiografia dos anos 1960-1970 não necessariamente responda satisfatoriamente o que pretendemos com este texto, a saber, uma análise sobre os intelectuais na Idade Média. Consideraremos textos e reflexões dos últimos anos do século XX e o início do século XXI, na historiografia francesa, para responder a essas perguntas. Tratamos de um percurso historiográfico que se inicia nos anos 1950-1960 – com os textos de Jacques Le Goff – passamos pelos textos de Jacques Verger, principalmente os do final dos anos 1990, e chegamos à fundação e atuação do Grupo de Antropologia Escolástica, a partir de 1993. 1 2 LE GOFF, J. Os Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. p. 23. IDEM. Ibidem. p. 07. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 156 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 O intelectual segundo Jacques Le Goff: A obra Os Intelectuais na Idade Média foi publicada originalmente em 1957, em francês. Em Portugal foi lançada uma edição nos anos 1970 e, no Brasil, o texto foi publicado nos anos 1990 e, mais recentemente, em 2003. O autor caracteriza o texto como um ensaio. O texto está dividido em três partes bem demarcadas: o século XII, o século XIII e os séculos XIV e XV. Considerando: nascimento, maturidade e declínio, respectivamente. Partes precedidas por uma breve introdução na qual Le Goff apresenta as características citadas anteriormente e complementa: “erudito e professor, pensador por ofício”, “argumentador”, “científico” e “crítico”.3 Além dessas características um traço não pode ser negligenciado na ora de Jacques Le Goff sobre os intelectuais: sua relação com as cidades. O autor estabelece uma ligação direta entre o aparecimento e a atuação desses personagens ao desenvolvimento urbano a partir do século XII. Isso não significa que Le Goff exclua as cidades do mundo medieval na Alta Idade Média. O que o autor defende é que o fenômeno urbano do século XII “modificou então, profundamente, as estruturas econômicas e sociais do Ocidente”, além de “sacudir as estruturas políticas” a partir do movimento comunal.4 A atuação dos intelectuais deve ser observada nas cidades. Na primeira parte do ensaio, o autor desenvolve esse argumento e procura, a partir dos mestres da Escola de Chartres, “traços do intelectual nascente”. 5 A escola da catedral de Chartres foi fundada por Fulbert de Chartres (960-1028) e tornou-se um importante local de estudos sobre textos platônicos e das artes liberais, principalmente o Quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). Pode-se, então, caracterizar essa “escola” como um importante centro de estudo das “coisas”, ou da parte “prática” das artes liberais. Afinal, o Trivium (gramática, retórica e lógica) centrava-se nos estudos sobre as “palavras”. É importante ressaltar que prática, neste caso, significa observar. Le Goff destaca que, entre os chartrianos, as tentativas de equação entre Natureza – como mater generationi – e Deus, onipotente, geraram debates e controvérsias na medida em que a primeira era considerada perfeita e fecundante. Para alguns, isso entrava em choque com a onipotência e onisciência de Deus, para outros, não. Outro elemento que caracterizou o pensamento chartriano, para Le Goff, foi a preocupação e o interesse no homem como ser racional. A esse interesse o autor definiu que o “humanismo chartriano” sintetizou que: “o 3 4 5 IDEM. Ibidem. pp. 25-26. IDEM. Ibidem. p. 31. IDEM. Ibidem. p. 74. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 157 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 homem que é natureza, que pode compreender a natureza segundo a razão, também pode transformá-la por sua atividade”.6 Nesse processo de identificação e percepção do homem como natureza e sua atividade transformadora os intelectuais (para manter a nomenclatura dada pelo autor) vão reivindicar, também, sua atividade de ensinar como um ofício, uma arte: O intelectual urbano do século XII se sente como um artesão, como um homem de ofício comparado aos outros das cidades. Sua função é o estudo e o ensino das artes liberais. Mas o que é uma arte? Não é uma ciência, é uma técnica. Ars é techné. É tanto a especialidade do professor como a do carpinteiro ou do ferreiro. 7 Ao identificar-se como artesão o intelectual vai reivindicar direitos de atuação e autonomia profissional. Nesse processo de identificação está a chave para o entendimento e/ou discussão sobre a (im)pertinência do uso da noção de intelectual para o período medieval. Esse processo vai se estruturar de forma significativa no século XIII e levará à identificação de um estatuto jurídico-profissional, a universitas, um espaço específico de atuação do intelectual, a universidade. Na segunda parte da obra, Le Goff, então, apresenta o que foi definido como “a maturidade e seus problemas”. A primeira frase corrobora com a citação anterior: “O século XIII é o século das universidades porque é o século das corporações”.8 Para expor a “institucionalização” dessas corporações universitárias e a constante necessidade de reivindicação por autonomia o autor considera dois polos de conflito: os poderes eclesiásticos e os poderes leigos. Essa institucionalização conflituosa assim o é por motivos como a definição do próprio ofício e suas responsabilidades: a quem caberia o ensino? O autor responde que ensinar caberia aos clérigos e esses são tratados pelos bispos como súditos. No texto percebemos um processo de hierarquização das responsabilidades sobre o ensino a partir da autoridade que os bispos tinham de delegar a um de seus oficiais o poder de chefiar as escolas, os scolasticus. Esse delegado será chamado de chanceler, que, dentre outras funções no século XII, tinha a autoridade para conceder a licença docente. Autoridade esta que é perdida progressivamente no século seguinte com a atribuição da função aos mestres das Universidades, como acontece em Paris em 1213. Essa perda de autoridade do chanceler também constitui a diminuição do poder clerical sobre o ensino.9 Em relação aos poderes leigos, as universitas vão ser de 6 7 8 9 IDEM. Ibidem. p. 83 IDEM. Ibidem. p. 88. IDEM. Ibidem. p. 93. IDEM. Ibidem. p. 95 Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 158 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 interesse dos reis na medida em que são fornecedoras em potencial de mão de obra, riqueza e prestígio. Há uma tentativa de incorporação dos membros dessas corporações aos quadros oficiais do reino e de enquadramento dos mesmos à autoridade real. 10 Essas disputas vão ocasionar intervenções diversas de Papas e Reis, proporcionarão eventos violentos, como assassinatos, e movimentações coletivas, como as greves. No entanto, veio de um pontífice o que muitos consideram como o reconhecimento da autonomia universitária no século XIII: a Parens scientiarum, de Gregório IX. Datada de 1231 e ocasionada pela interrupção dos cursos na Universidade de Paris desde 1229 essa bula autoriza os mestres nos seguintes termos: Nós concedemos o poder de estabelecer sábias constituições ou regulamentos sobre os métodos e horários das aulas, das discussões […] sobre as cerimônias fúnebres, sobre os bacharelados: quem deve dar as aulas, em qual hora e qual autor escolher; sobre a taxação dos aluguéis e interdição de algumas casas; o poder de castigar aqueles que se rebelarem contra essas constituições ou regulamentos excluindo-os.11 Ao autorizar, nesses termos, a organização dos mestres da Universidade o papa lhes conferia, de fato, autonomia? Le Goff responde que as intervenções não foram desinteressadas e que se trata, de fato, tutelar, controlar a Universidade nas jurisdições eclesiásticas. Pois, pelo mesmo documento, os estudantes que cometam crimes deviam ter suas penas cumpridas na prisão do bispo, ficando o chanceler proibido de possuir uma prisão particular. Também era vedada a prisão de estudantes por dívidas e também que o chanceler cobre submissão aos docentes que recebem a licença docente. 12 A definição dessas corporações foi também elemento de disputas internas. Disputas estas que, segundo Le Goff, contribuem para dificultar o entendimento inicial sobre o que seriam as corporações universitárias: Trata-se, em primeiro lugar, de uma corporação eclesiástica. Ainda que seus interesses estejam longe de pertencer todos às ordens; ainda que, cada vez mais, ela vá abrigar em suas fileiras puros leigos, os universitários passam todos por clérigos, estão ligados às jurisdições eclesiásticas, mais ainda: à jurisdição de Roma. Nascidos de um movimento que caminhava para o laicismo, integram-se à Igreja, mesmo quando buscam, institucionalmente, dela sair.13 10 11 12 13 IDEM. Ibidem. p. 96. Essa exclusão poderia ser a excomunhão. DENIFLE, H; CHATELAIN, E. Chartularium Universitatis Parisiensis, t.1, Paris, 1889. pp. 136-139. A análise da Parens scientiarum foi tema de conferência “As greves nas universidades medievais” ministrada pelo Dr. Sylvain Piron (EHESS/Paris) em Porto Alegre no II Encontro Estadual de Estudos Medievais do Rio Grande do Sul. O evento foi realizado em setembro de 2012. Texto inédito. LE GOFF. Os Intelectuais…op. cit. p. 100. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 159 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Institucionalmente, a busca pela saída da Igreja, considerando os termos desse historiador, levou à organização das corporações universitárias. Os estatutos das Universidades são importantes portas de acesso para os usos feitos pelos mestres da autorização explicitada na Parens scientiarum e, principalmente, para a organização administrativa e escolar/pedagógica. Isso significa que os conflitos não se encerraram com o posicionamento pontifício. Podem ser listadas algumas outras controvérsias que foram fundamentais para o processo de constituição das Universidades como corporações. Conflitos que duraram cerca de um século se considerarmos os embates ocorridos a partir de 1250. Jacques Le Goff menciona essas controvérsias ao tratar das críticas dos clérigos seculares em relação à ocupação de espaços nas Universidades por clérigos regulares e membros de ordens mendicantes, principalmente dominicanos e franciscanos. As incompatibilidades denunciadas: a obtenção da licença docente para lecionar teologia fora da faculdade de teologia e a ocupação de mais de uma cátedra na Universidade, quando os estatutos regulamentavam que poderiam ter apenas uma. Mas a principal queixa era a quebra e violação dos estatutos nos casos das greves, pois, os mendicantes não interromperam os cursos quando da paralisação das atividades, principalmente, em 1253. Isso é importante na medida em que, de acordo com o que foi outorgado por Gregório IX em 1231, essa desobediência poderia gerar a excomunhão. Entre 1253 e 1256 os Papas alternaram entre a condenação da atuação dos mendicantes e a condenação da postura dos mestres da faculdade de artes.14 Outro elemento foi detonador de conflito: qual era a relação desses mestres com o dinheiro? Como sobreviver? Salário, esmola ou benefício? A garantia da gratuidade do ensino – conforme determinação do III Concílio de Latrão (1179) – e a concessão de benefício aos professores criava um vínculo e uma dependência material dos professores à Igreja. Com a expansão do número de professores e da demanda gerada pelo número de alunos o benefício da Igreja não foi mais suficiente e, no século XIII, foram diversificadas as formas de manutenção do ensino: mecenas, bolsas, doações, pagamento dos salários dos professores pelos alunos etc.15 A segunda parte do ensaio Os Intelectuais na Idade Média é também dedicada à organização pedagógica das/nas universidades, por exemplo: programas de estudos, métodos, exames, vocabulários, equipamentos. Os programas e os exames atendiam as 14 15 FORTES, Carolina C. “A Querela contra os mendicantes e os estudos na Ordem dos Pregadores (12501260)”. IN: MATTOS, C. M. F.; CRUXEN, E. B. e TEIXEIRA, I. S. (Orgs). Reflexões sobre o medievo II: Práticas e Saberes no Ocidente Medieval. São Leopoldo: Oikos, 2012. pp. 131-142. LE GOFF. Os Intelectuais…op. cit. pp. 124-135. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 160 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 especificidades de cada tipo de curso e licença conseguida, além das formações direcionadas. Sendo assim, o curriculum da faculdade de Artes era diferente do curriculum da faculdade de Teologia, de Medicina e Direito. Os exames e o tempo de preparação para os mesmos idem. Podem ser destacados, no entanto, dois princípios: o uso da dialética e as Questões. Para tentar aplicar o que Le Goff escreveu sobre esses elementos apresentamos uma sugestão de registro e sistematização para textos da escolástica a partir da Suma Teológica (12501270) especificamente da Questão 1 da Primeira Parte: TABELA 1: Leitura e Sistematização do conteúdo da Suma Teológica. PARTE I SEÇÃO: A Teologia como ciência PRÓLOGO: “Nos propusemos nesta obra expor o que se refere à religião cristã do modo mais apropriado à formação de iniciantes.” (p.136.) QUESTÃO 1 : A DOUTRINA SAGRADA O QUE É? ARTIGO 1: É NECESSÁRIA OUTRA DOUTRINA ALÉM DAS QUAL SEU ALCANCE? DISCIPLINAS FILOSÓFICAS? COMEÇO DO ARTIGO: PARECE QUE NÃO É NECESSÁRIA OUTRA DOUTRINA OBJEÇÃO 1: “o homem não deve esforçar-se para alcançar RÉPLICA 1: “o que é revelado por Deus, deve-se acolher na aquilo que está acima da razão humana ... o que se encontra fé” (p.139) à altura da razão é ensinado suficientemente nas disciplinas filosóficas.” (p.136) OBJEÇÃO 2: “nas disciplinas filosóficas se trata de todos os entes, e mesmo de Deus; eis por que uma parte da filosofia é chamada de teologia, ou ciência divina, como mostra o Filósofo, no livro VI da Metafísica.” (p.138) RÉPLICA 2: “a diversidade de razões no conhecer determina a diversidade das ciências ... A teologia, portanto, que pertence à doutrina sagrada difere em gênero daquela que é considerada parte da filosofia.” (p.139) ARG. S.C.: “uma Escritura inspirada por Deus não faz parte das disciplinas filosóficas, obras da razão humana. Portanto, é útil que além das disciplinas filosóficas, haja outra ciência inspirada por Deus.” (p.1378) RESPOSTA: “Era necessário existir para a salvação do homem...uma doutrina fundada na revelação divina. Primeiro, porque o homem está ordenado para Deus, como para um fim que ultrapassa a compreensão da razão...a verdade sobre Deus pesquisada pela razão humana chegaria a apenas um pequeno número, depois de muito tempo chegaria em erros...do conhecimento desta verdade depende a salvação do homem, que se encontra em Deus.” (p.138) Temos acima, então, um texto produzido no contexto universitário do século XIII e herdeiro de uma prática de exposição e argumentação: a dialética. Entre os pensadores do período medieval, é de Pedro Abelardo em sua obra Sic et Non (1122) que essa sistematização adquire uso e se expande. Como explicar, então, uma Quaestio? Há a exposição de um tema – a teologia como ciência – e uma questão – se é necessária outra doutrina além das disciplinas filosóficas. A interrogação é propositiva para a etapa seguinte: a da exposição do argumento inicial e suas objeções. Neste caso, o teólogo inicia negando a necessidade de outra doutrina. Essa primeira afirmação poderíamos chamar de tese. A isso seguem dois argumentos. Na segunda objeção encontramos também um recurso praticado em demasia: a auctoritas. No caso, Aristóteles. A autoridade é sinal de reconhecimento da tradição e do conhecimento cumulativo sobre o Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 161 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 tema. Na obra de Tomás de Aquino encontramos diversos recursos a esse instrumento, seja para citar um autor não cristão, como Aristóteles, seja para reverenciar a tradição cristã, citando Agostinho, Gregório Magno e outros. Em seguida, expõe-se o argumento em sentido contrário, o que poderíamos chamar de antítese. Passagem que é seguida pela solução da questão (resposta/síntese) e finalizada pelas réplicas às objeções. Ou seja, temos um argumento defendido a partir da análise de elementos favoráveis e contrários. É importante ressaltar que apresentamos apenas a forma como Tomás de Aquino desenvolveu o primeiro artigo da Questão. Além desse, outros 9 são elaborados para definir, discutir e caracterizar a Teologia como ciência. Desses todos, acreditamos que é significativo para o entendimento da relação palavra/coisa, disciplinas mais teóricas (trivium) e práticas (quadrivium) a forma como o teólogo define que a teologia é superior às outras ciências por ser especulativa e prática simultaneamente. Especulativa pois seus princípios são revelados por Deus; prática por visar a “bem-aventurança eterna”.16 A partir do que foi apresentado até o momento podemos sintetizar o que Jacques Le Goff considera como maturidade e seus problemas nessa segunda parte da obra: temos um grupo de homens pensando sobre uma prática específica e que gera um produto. Daí sua reivindicação como uma corporação e sua autonomia. Para a conquista desses objetivos os intelectuais envolveram-se em problemas externos (com a Igreja e com os Reis) e internos (seculares e regulares). Ao mesmo tempo, elaboraram formas específicas de expressão: a Quaestio, a dialética, o recurso às autoridades etc são exemplares nesse sentido. Segundo Le Goff, “o intelectual universitário nasce a partir do momento em que põe em questão o texto, que não é mais do que uma base, e então de passivo se torna ativo. O mestre […] Dá suas soluções, cria. Sua conclusão [...] é obra de seu pensamento”. 17 A última parte do ensaio, intitulada “Do universitário ao humanista”, finaliza a concepção, digamos, “orgânica” que Le Goff atribui a seu ensaio (nascimento, maturidade e declínio). O autor considera que as indefinições e conflitos do período da maturidade levaram 16 17 I, Q.1, a.5, sol., vol. 1, p.144. Nesta citação outra especificidade: como os textos estão divididos em Questões, artigos, objeções e réplicas, convencionou-se citá-los como nesta situação onde se lê: I – primeira parte (da Suma Teológica), Q. 1 (primeira Questão), a.5 (artigo 5), sol. (solução à Questão). Volume e página são secundários na medida em que variam as edições usadas pelos pesquisadores, mas a numeração das Questões a disposição dos artigos não. Pelo que foi explicado é importante o leitor ter em mente essa estrutura, pois, ao citar uma passagem de uma Questão é importante situar essa passagem na sequência dos argumentos, afinal, eles podem assumir um “sentido contrário” ao final do mesmo texto. É comum encontrarmos em textos de não especialistas citações nas quais temos acesso apenas à página e volume das edições usadas. Isso inviabiliza a compreensão do argumento na medida em que o leitor não tem acesso ao “lugar” da citação na estrutura do texto. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2001-2006. 9vols. LE GOFF, J. Os Intelectuais…op. cit. p. 120. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 162 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 a uma, digamos, progressiva elitização dos universitários (o que vai culminar, por exemplo, com a formação de uma aristocracia hereditária nos séculos XIV e XV). Também, em tempos de crise, serão reduzidos os benefícios e a cobrança de taxas e pagamentos pelos alunos variou de acordo com as vicissitudes locais. Outro elemento importante e que merece destaque nas conclusões de Le Goff é a multiplicação das Universidades e sua “nacionalização” – Universidades na Península Ibérica, na Península Itálica, regiões da atual Bélgica, Alemanha etc. Mas, talvez, a explicação mais impactante seja a que sintetiza o primeiro impacto do “fim das universidades medievais”: o isolamento do intelectual. Segundo Le Goff, os Renascentistas fecharam-se em si mesmos, o que provocou, de início, uma maior separação entre o intelectual e o não letrado. Isto porque a função de ensinar foi cada vez mais desvinculada do ato de pensar. Para o historiador francês a invenção da imprensa modifica, em parte, esse quadro, pois segue favorecendo um grupo restrito. A Contrarreforma alterou um pouco esse quadro, mas a principal modificação se deu na percepção do intelectual sobre si mesmo ao separar ciência do ensino: “De um lado, o tumulto das escolas, a poeira das salas de aula, a indiferença quanto ao cenário do trabalho coletivo, do outro, tudo é ordem, formosura, é luxo, é calma, e é volúpia pura”.18 Outras abordagens: a obra de Jacques Verger Diferentemente de Jacques Le Goff, que publicou seu principal estudo sobre o tema das universidades e intelectuais no final da década de 1950, Jacques Verger produziu de 1973 a 2006 inúmeros textos sobre o tema. Seu primeiro livro foi As Universidades na Idade Média (1990) e o mais recente foi Des nains sur des épaules de géants: Maîtres et éléves au Moyen Âge, com Pierre Riché. (2006) De sua autoria, em língua portuguesa, também foram publicados: História das Universidades, com Christophe Charle, (1996); Homens e Saber na Idade Média (1999) e Cultura, Ensino e Sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII (2001).19 Os trabalhos, em geral, abordam os mesmos conteúdos tratados por Jacques Le Goff. As diferenças, no entanto, concentram-se no fato de Verger considerar a importância do século XII e legar ao século XIII mais à questão das Universidades do que propriamente um “apogeu” ou “maturidade”. O livro Homens e Saber na Idade Média foi publicado originalmente em 1997 na França. Isso já nos possibilita apontar o curto intervalo entre a publicação em francês e a tradução 18 19 LE GOFF. Os Intelectuais…op. cit. pp. 197. Os títulos que estão em português e as respectivas datas são referentes às traduções brasileiras. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 163 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 brasileira. Diferentemente dos quase 30 anos em relação à obra de Jacques Le Goff, temos apenas 2 anos. A obra é dividida em três partes e tem como principal objetivo “na descrição, por uma perspectiva comparada, de um fenômeno observável em escala europeia”.20 O autor classifica como “perspectiva comparada” a possibilidade de abordar o tema não só na França – embora admita que esta seja predominante em relação às demais regiões – mas também na Inglaterra, Itália, Alemanha, “reinos ibéricos”. Frisamos os “reinos ibéricos” entre aspas, pois é uma aparente contradição: considerando que Portugal e Espanha tornam-se Estados antes que muitos desses outros países, como Itália e Alemanha, o autor não usa – ao menos na tradução brasileira – Portugal e Espanha. Outro elemento reforça essa contradição e alerta também para a modificação do título no Brasil. No original: Les Gens de Savoir dans l’Europe de la fin du Moyen Âge. Em tradução literal: As Gentes de Saber na Europa do final da Idade Média. Na tradução publicada: Homens e Saber na Idade Média. Há uma modificação explícita do principal elemento que caracteriza a obra: os Homens (ou as gentes) DE Saber e não separadamente Homens e Saber. Além disso, há uma generalização no título publicado em português que não só não existe no título original como a introdução do livro explica o sentido de e para “final da Idade Média”: Por “final da Idade Média” nós compreendemos essencialmente os séculos XIV e XV, considerando que essa época foi precisamente marcada pela emergência, ou, de qualquer modo, pela afirmação do grupo social que nós desejamos estudar, e ao mesmo tempo pelo surgimento de uma documentação que torna possível esse gênero de estudos.21 Sobre esta passagem é importante destacar, além da evidente modificação do sentido do título do texto, atribuindo-lhe uma generalização de mil anos, dois termos: “grupo social” e “documentação”. Neste sentido, o autor também aponta como principal problema do título (no original): a expressão gens de savoir. Algumas constatações, segundo Verger: 1. A expressão não existia na Idade Média. Termos equivalentes: vir litteratus, clericus, magister, philosophus. Termos considerados limitados e por isso não usados; 2. Sobre a palavra “intelectuais”: “anacronismo outrora voluntária e brilhantemente assumido por Jacques Le Goff… não seria suficientemente apropriada para designar o conjunto de homens” estudados na obra;22 20 21 22 VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Trad. Carlota Boto. Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 14. IDEM. Ibidem. IDEM. Ibidem. p. 15. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 164 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 3. Outros termos, como: diplomados, graduados. Também considerados restritivos por excluir os letrados que não necessariamente tiveram instrução escolar associada a títulos acadêmicos. A posição de Verger em relação à definição/conceituação para gens de savoir corresponde a um duplo atendimento de critérios: a. Dominar um tipo e em certo nível de conhecimento; b. Reivindicar competências práticas fundadas no conhecimento adquirido. Desta forma, considerando os recortes propostos pelo título do livro (séculos finais da Idade Média, leia-se: XIV e XV) e o duplo critério, conclui-se que, para Verger, o “grupo social” que lhe interessa só adquiriu uma forma e consistência (identidade?) de grupo após um longo percurso de controvérsias e querelas nos séculos precedentes. A partir dessas definições e exposições de limitações para termos contemporâneos aos sujeitos históricos estudados, Verger defende que a expressão gens de savoir é a mais “neutra” e menos “problemática”. Nas três partes da obra são apresentadas e “descritas” – como é objetivo do autor – as características que dão forma aos dois critérios: dominar saberes específicos e a reivindicação das competências oriundas desse domínio. Interessa, portanto, a última parte do livro, pois é nos capítulos finais que Verger expõe como se deu esse processo no final da Idade Média. O título é sugestivo: “Realidades sociais e imagem de si”. E, no capítulo que abre a parte, o autor revela o outro tópico que destacamos na longínqua citação: “documentação”. Em outras palavras: nesta terceira parte Verger está interessado em analisar como esses homens DE saber produziram registros que permitam que hoje possamos estudá-los como tais, e principalmente, como tinham consciência de suas características específicas. A documentação mais propícia para a identificação desse grupo, segundo o texto, é a que permite estabelecer elos de parentescos: contratos, inventários e testamentos (fontes notariais); cartas, súplicas pontificais e arquivos judiciários. Para Verger, essa diversidade favorece a constituição dos “dicionários prosopográficos”, mas é limitada. A principal questão que pode surgir dessas séries opacas construídas é a consideração das estruturas familiares e suas ramificações. Essas estruturas e ramificações, no entanto, isoladamente não explicam suficientemente a tomada de consciência e/ou a constituição de um grupo se não colocadas em perspectivas cruzadas e em redes. 23 23 IDEM. Ibidem. pp. 223-228. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 165 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 O autor aponta, a partir dessa postura e forma de ler a documentação, dois possíveis caminhos para a constituição de um grupo de elite no final da Idade Média: a origem no “mercado” e o recrutamento no interior da “nobreza”. As duas situações são fluidas e de difícil percepção, mas Verger considera que, no primeiro caso, trata-se do filho do mercador que teve seus estudos financiados pelo próprio pai. O objetivo é conseguir “um nível de fortuna mais elevado, pelo menos uma situação mais estável e honrada, eventualmente ela mesma uma etapa em direção à nobilitação”.24 A segunda situação compreende uma complexa “progressiva e global adaptação das elites sociais às mudanças da cultura do Estado pela conjunção da antiga ideia de nobreza e da valorização das novas formas, civis ou eruditas de serviço do príncipe ou da Igreja”.25 Homens de saber recrutados nas elites – econômicas e aristocráticas – mas que permitiam, em certa medida, mais mobilidade e possibilidade de ascensão se comparadas às questões feudais e de atribuição de funções, como a cavalaria e a guerra por exemplo.26 O autor propõe uma lista de 4 elementos que caracterizam os homens de saber: 1. Aspecto urbano; 2. Profissionalização; 3. Politização; 4. Cultura e relação dos homens de saber com esse saber. Acreditamos que Verger expôs seu entendimento sobre a questão ao afirmar que: Se, de fato, o mundo dos homens de saber, que era, no final das contas, bastante diferente de um país para outro, foi, até o final da Idade Média, um dos meios mais flexíveis e mais abertos na sociedade medieval, ele, entretanto, teve tendência, como todos os grupos constitutivos das elites de seu tempo, a se fechar sobre si próprio e a tornar-se uma casta hereditária. […] Ao tempo dos colegas, sucedeu-se aquele dos herdeiros, o espírito de família vinha driblar o espírito de corporação.27 O processo indicado na citação acima, de transformação de uma corporação em uma casta hereditária passa, portanto, pela tomada de consciência sobre as especificidades desse 24 25 26 27 IDEM. Ibidem. p. 237. IDEM. Ibidem. p. 241. Jacques Verger propõe o levantamento de documentação que possibilite a construção de séries documentais e trata da transformação das corporações de ofício em castas hereditárias a partir da prosopografia. Sobre essa questão indicamos alguns textos: ALMEIDA, C. C. de . “Poder e sociedade: as relações entre a universidade e o Conselho da cidade de Colônia em fins da Idade Média e começo da Idade Moderna”. Notandum (USP), v. 18, p. 07-24, 2008. BULST, N.; GENET, J-P. (dirs). Medieval lives and the historian: Studies in Medieval Prosopography. Kalamazoo: Western Michigan University, 1986. VERGER, J. Homens e saber…op. cit. p. 237. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 166 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 grupo. Para o autor, essa conscientização não faz com que os homens de saber se separem de outros grupos de elite que compõem, ou seja: do clero e da nobreza. 28 Na obra Cultura, Ensino e Sociedade… o autor confirma a expressão usada na obra anterior. O texto restringe-se à chamada cultura escolar ou como uma história da escola e do ensino, considerando políticas de organização da escola enquanto instituição e dos métodos e programas de ensino. Sendo assim, Verger discorre sobre temas como a importância de Abelardo, os programas nas diferentes universidades e os métodos, como a escolástica, a dialética e a quaestio. Nesta obra destacamos a parte final, na qual o autor aborda os conflitos institucionais e, principalmente, a breve reflexão sobre “a consciência de si” dos homens de saber ao final do século XIII. É importante ressaltar que a tomada de consciência perpassa e é perpassada pelos conflitos.29 Em relação aos conflitos, Verger afirma que eles giraram em torno das referências bíblicas, a gramática latina e Aristóteles. Mas o conflito não é necessariamente algo nocivo à Universidade na Idade Média. Afinal, como afirma o autor, o debate e o antagonismo estavam no cotidiano dos exercícios: a dialética, a quaestio e a disputatio. A reivindicação por autonomia – inicialmente como corporação – também implicava na autonomia e autoridade daqueles que “disputavam” em estabelecer os conteúdos e desenvolver suas teses. Para Verger, Tomás de Aquino e sua trajetória são elementos significativos desse processo, tanto de constituição de um grupo, quanto da tomada de consciência desse grupo sobre si mesmo: desde sua posição em relação à querela dos anos 1250, passando pelo posicionamento contra os averroístas, na década de 1270 e, mesmo após sua morte, no evento das condenações de 1277.30 “Consciência de si” e a Antropologia Escolástica para entender os “intelectuais” na Idade Média A preocupação com a “consciência de si” não é um tema que se deve exclusivamente a Jacques Verger. Jacques Le Goff, anos antes, também se interessou pela questão ao se perguntar “Qual consciência de si teve a universidade medieval?”. Sua reflexão e proposta de resposta são diferentes das oferecidas por Jacques Verger. Para Le Goff, um caminho possível é analisar obras e personagens em espaço localizado. O autor analisou obras e 28 29 30 IDEM. Ibidem. p. 258. IDEM. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente: nos séc. XII e XIII. Bauru, SP: EDUSC, 2001. pp. 277-316. IDEM. Ibidem. pp. 277-295. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 167 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 personagens/mestres da universidade de Paris, os conflitos doutrinários e corporativos. A conclusão de Le Goff não é diferente da proposta contida em seu ensaio Os intelectuais…: a visão orgânica de nascimento, maturidade e declínio permanece.31 Mesmo não concordando com a proposição que Jacques Le Goff aponta para a abordagem da temática, é importante considerar suas contribuições em relação ao desenvolvimento de um conjunto de estudos que culminou com a criação de dois grupos de pesquisa: o Group d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval (1978) e, a partir dos estudos de um de seus orientandos – Alain Boureau – o Group d’Anthropologie Scolastique (1993). Interessa-nos apresentar algumas características de novas possibilidades de abordagem dos homens de saber e/ou intelectuais da Idade Média. Abordagem esta que foi definida por Sylvain Piron nos seguintes termos: considerar a produção dos sábios como acesso principal para entender acontecimentos e “os termos nos quais os indivíduos podiam compreender a si mesmos”.32 Dessa breve citação podemos definir, então, a antropologia escolástica como uma perspectiva de análise que considera as reflexões sobre “o homem” a partir de um local específico, ou seja, o âmbito universitário europeu, entre 1150-1350. A obra Satan Hérétique, de Alain Boureau, pode ser útil para tentar entender os usos de uma história intelectual para o entendimento do que os intelectuais podiam pensar sobre si mesmos, e, também, sobre o homem, de forma mais ampla. A história intelectual, no livro Satan Hérétique, é um princípio de investigação que assume duas trilhas: uma que percorre a formação intelectual dos autores estudados (teólogos e mestres das universidades medievais) e outra, que analisa possíveis facetas para a definição de um mesmo fenômeno (as possessões demoníacas, magia, milagres). Nos sete capítulos da obra percebemos esses dois caminhos quando identificamos, por exemplo, o interesse de Alain Boureau nas investigações “jurídicas” sobre os demônios (inquisição – suspeitas de pactos e bruxarias – e canonização – milagres de cura de possessões demoníacas), tema dos capítulos um e cinco. Além disso, a análise, em todos os capítulos, dos diferentes usos e significados para os pactos demoníacos e das crenças nas possessões. É importante ressaltar como Alain Boureau identifica a problemática escolástica da demonologia não apenas como um conjunto de reflexões de teólogos sobre o 31 32 LE GOFF. Pour une autre Moyen Âge: Tems, travail et culture en Occident (18 essais). Paris: Gallimard, 1977. Pp. 181-197. PIRON, S. “Démonologie et anthropologie scolastique”. Cahiers du Centre de recherches historique, n.37, avr/2006, pp. 173-179. Acesso em 01 de abril de 2014. Disponível em : http://halshs.archivesouvertes.fr/docs/00/44/99/57/PDF/Demonologie_et_anthropologie.pdf. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 168 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 tema. O autor analisa, também, as consultas realizadas por Papas, como que João XXII faz em 1320 sobre a magia e o tratamento jurídico nos processos de canonização. 33 Essa forma de abordar um objeto – a crença na possibilidade de atuação/pacto entre homens e demônios – a partir da produção intelectual pode ser observada também em outros trabalhos desse autor. Em um artigo no qual se propõe a analisar a monumental obra de Alexander Murray sobre o suicídio34 e o estimulante estudo de Peter Biller sobre o controle da natalidade na Idade Média35, Boureau oferece elementos mais precisos sobre como a história intelectual pode contribuir significativamente para o estudo das populações na Idade Média. E sobre a produção, nas palavras de Piron, das categorias que os sujeitos tinham para compreender a si mesmos. Trata-se do texto “Uma história intelectual das populações medievais”, publicado nos Annales em 2006.36 O historiador francês faz uma leitura sobre a metodologia de trabalho de Murray e Biller e identifica dois caminhos profícuos: ao analisar o difícil objeto “suicídio”, Murray elaborou um método de análise que mescla o uso de crônicas, documentação jurídica e hagiográfica. Para Boureau, os interditos em relação ao suicídio mascaram os casos e o número de quantas pessoas tiraram a própria vida será sempre impreciso. A contribuição do historiador britânico, então, foi mostrar como questões, como o suicídio, sobre as quais são impostos interditos e, por isso, não se exprimem diretamente, aparecem em textos que tem, dentre outras funções, “registrar o que aconteceu” – seja no âmbito cronístico, jurídico ou escatológico.37 O segundo caminho, a partir da obra de Biller, parte do seguinte princípio: o interesse clerical em regulamentar o celibato para os padres e o casamento para os fiéis produziu uma quantidade de reflexões e reflexos variados sobre temas como procriação e contracepção. 38 Biller centra sua análise nos textos teológicos e considera, segundo Alain Boureau, que 33 34 35 36 37 38 BOUREAU, A. Satan Hérétique: Histoire de la Démonologie (1280-1330). Paris: Odile Jacob, 2004. p. 128. Obra que tivemos a oportunidade de traduzir para o português. Publicação pela editora da UNICAMP prevista para 2014. MURRAY, A. Suicide in the Middle Ages. 2vols. Oxford: Oxford University Press, 1998-2000. Há a indicação de um terceiro volume, ainda inédito. BILLER, P. The measurement of multitude: Populations in Medieval thought. Oxford: Oxford University Press, 2000. IDEM. “Une histoire intellectuelle des populations médiévales”. Annales HSS, janeiro-fevereiro, 2006, n.1 pp. 233-244. IDEM. Ibidem. p. 242. Por reflexões entendemos o conjunto de tratados jurídicos e teológicos abundantes, principalmente, a partir do século XIII. Por reflexos entendemos o conjunto de textos para “exames de consciência”, que ganharam força a partir da obrigatoriedade da confissão auricular a partir do século XIII. Muitos manuais “ensinando” o exame de consciência e avaliação sobre o mesmo também oferecem inúmeras situações passíveis de abordagem daqueles temas. É importante deixar evidente que não pensamos em graus de importância aqui, como se as reflexões fossem superiores aos reflexos. Trata-se de um uso/ocorrência simultânea entre aqueles séculos sem necessariamente hierarquias. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 169 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 …ces faits de population, en tant qu’ils traduisent une tendance jugée bonne ou nécessaire, s’accompagnent nécessairement de justifications, de théories spontanées, dont certains textes savants fournissent un analogue, cause et/ou conséquence de la tendance considerée. 39 Essa afirmação é reveladora de uma abordagem epistemológica precisa: os textos estão relacionados aos seus contextos e podem ser usados para definir, justificar uma tendência ou surgir por causa de uma tendência. Nesse aspecto, então: a preocupação com o celibato/casamento tornou-se uma tendência. Portanto, as reflexões eruditas sobre esses elementos podem ser consideradas como indícios ou “sinais” importantes para entender o processo histórico daquela preocupação. Nestes indícios que Biller encontrou a oportunidade para analisar perspectivas sobre controle de natalidade na Idade Média. A essas reflexões inserimos um estudo de Emanuele Coccia e Sylvain Piron sobre “uma geração de intelectuais italianos” entre o final do século XIII e o início do século XIV. Os autores deixam claro que excluíram das análises a “Itália religiosa” e o “componente feminino”. O foco é na atuação de personagens definidos como “intelectuais leigos”. A pergunta inicial do texto é: “Como podemos descrever Dante nos últimos anos de vida (1320-1321)?”.40 Esse questionamento é revelador de vários aspectos e, talvez, o principal – que marca uma diferença significativa em relação aos “intelectuais” dos nossos tempos: os eruditos, homens de saber, intelectuais não estavam restritos a um único espaço de atuação. Dante tem tratados de retórica, política e, inclusive, alquimia. Dessa constatação os autores concluem que a melhor forma para analisar personagens como Dante não é escolher uma faceta, e sim, saber como articular todas elas e como elas se articulavam em seu tempo. A proposta de Coccia e Piron, portanto, é estudar na sincronia diferentes manifestações, como “a prática poética dos eruditos, as comunicações entre as disciplinas universitárias e o engajamento na vida política, que, em geral, acontece junto às atividades cultas e literárias”. 41 Os autores identificam uma série de pensadores que atuaram de forma diversificada em centros urbanos italianos entre 1290-1330. Consideraram a proeminência de Bolonha nesse período. Identificaram que, a partir do século XIII, nessa cidade, há linhagens de 39 40 41 IDEM. Ibidem. p. 238. COCCIA, E. e PIRON, S. “Poesia, ciência e política: uma geração de intelectuais italianos (1290-1330)”. In: PEREIRA, N. M. ; ALMEIDA, C. C.; e TEIXEIRA, I. S.(Orgs). Reflexões sobre o medievo. São Leopoldo: Oikos, 2009. p.60. IDEM. Ibidem. p. 63. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 170 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 médicos e juristas que transmitiam para os filhos a clientela. 42 Também identificaram uma predominância de leigos em relação a clérigos. O que faz da situação italiana bastante diferente em relação a Paris, por exemplo. Mas o mais importante, nessa reflexão é: para Coccia e Piron o modelo de “rede” é o mais adequado para pensar esse fenômeno, pois “significa que ele [o fenômeno] é caracterizado pela prática do diálogo e pela circulação dos homens entre diferentes vilas e de diversas maneiras”. 43 Esse texto difere da abordagem de Peter Biller na medida em que a identificação do objeto não aconteceu necessariamente na produção erudita, em tratados de teologia, por exemplo. Coccia e Piron identificam na documentação epistolar as redes e as reflexões sobre inúmeros temas e, principalmente, sobre a criação de categorias que pudessem mostrar como aqueles indivíduos se percebiam e percebiam seu tempo. Percebemos, então, que para esses autores a identificação de um grupo de pensadores que viveu no mesmo período é um ponto significativo para a abordagem dos intelectuais na Idade Média. Considerações finais: No decorrer dessas páginas propusemos um olhar sobre uma temática e uma problemática que se confundem: como abordar as obras produzidas por pensadores no período medieval? Como definir/conceituar esses pensadores: professores, mestres, doutores, homens de saber, intelectuais? Para responder a essas perguntas analisamos duas teses divergentes e um conjunto de publicações que dão a dimensão atual da questão, em uma perspectiva. Expliquemos. A trajetória iniciou com a obra de Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média, publicada em francês em 1957. Para este historiador, recentemente falecido, a condição principal para entender os intelectuais: um grupo de homens – majoritariamente clérigos – que refletia sobre sua atuação profissional e que reivindicava que o resultado de seu trabalho fosse entendido como um produto. Por isso a questão da relação com o termo universitas, por exemplo, acabou virando, tempos depois, sinônimo de Universidade. Destaca-se a relação desses intelectuais com a Igreja e, portanto, com um “engajamento”. Também podemos 42 43 IDEM. Ibidem. p. 70. Recentemente foi publicado em português um interessante estudo de Patrick Gilli. GILLI, P. “Dignidade e nobreza dos juristas : lugar e formação da ciência legal na Idade Média, especialmente na Itália (séculos XII a XV)”. In: ALMEIDA, N. de B. e CANDIDO DA SILVA, M. (Orgs). Poder e construção social na Idade Média: História e Historiografia. Goiânia: UFG, 2011. pp. 63-91. COCCIA, E. e PIRON, S. “Poesia, ciência e política…op. cit. p. 72. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 171 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 afirmar que a concepção de Le Goff é analisar obras e personagens em um espaço localizado. Uma crítica: o autor realiza sua abordagem a partir de uma perspectiva que podemos chamar de “organicista”: nascimento, maturidade, declínio dos intelectuais. Diferentemente, Jacques Verger – em produção datada do final dos anos 1980, e durante toda a década de 1990 – define a perspectiva de Jacques Le Goff como “anacrônica” na medida em que a concepção de intelectual usada por esse autor não existia na Idade Média. Para oferecer algo mais apropriado, Verger sintetiza quatro características: o aspecto urbano, politizado e profissionalizado dos homens de saber. Além disso, a importância do entendimento da relação da cultura produzida por esses homens e a vida desses homens. Essa perspectiva, por exemplo, dá mais importância aos conflitos institucionais (internos e externos) vivenciados no século XIII. É importante ressaltar que, embora distintos, os posicionamentos de Jacques Le Goff e Jacques Verger reconhecem que a produção e a expressão desse saber por meio de instrumentos específicos – tratados, sumas, Questões, uso da dialética, da retórica etc –, de fato, produziu uma categoria profissional específica. Ao final do texto apresentamos características gerais da chamada Antropologia Escolástica e a forma como autores como Alain Boureau e Sylvain Piron servem-se de propósitos da chamada história intelectual para analisar fenômenos, como a demonologia, por exemplo. Além disso, apresentamos brevemente a leitura que Boureau fez das obras de Alexander Murray e Peter Biller, sobre o suicídio e o controle de natalidade na Idade Média, respectivamente. A Antropologia Escolástica podemos caracterizar como um domínio que nasceu da Antropologia Histórica e que visa entender os homens e as categorias que esses homens criaram para entender o mundo em que viviam a partir da produção erudita, universitária, teológica, filosófica e jurídica, principalmente. Neste aspecto, apontam-se duas perspectivas: 1) A análise de um tema específico em autores contemporâneos para entender como um determinado fenômeno foi pensado e/ou refletiu nas teses e sentenças elaboradas pelos eruditos de diferentes domínios (juristas, cronistas, teólogos etc); 2) A análise de uma geração, ou, da atuação diversificada de pessoas em um determinado período para compreender como eram articulados saberes médicos, teológicos, filosóficos, juristas e literários na criação de categorias e doutrinas que explicavam e/ou justificavam relações de poder, de dominação e de resistência. Neste aspecto, vale ressaltar o caminho diferenciado que propuseram Coccia e Piron ao tratar especificamente dos “intelectuais leigos”. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 172 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Não são caminhos opostos ou excludentes. E ambos são igualmente estimulantes, importantes e que, de fato, tendem a ampliar a compreensão que podemos ter sobre o mundo medieval em suas diferentes facetas. Sobre o uso do termo “intelectual”, ao que indicam as palavras usadas por Alain Boureau e Sylvain Piron, esse não é mais um problema. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 173 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 O que vale é a intenção… Texto, contexto, autor e linguagem na perspectiva de Quentin Skinner The most important is the intention ... Text, context, author and language of Quentin Skinner’s perspective Ana Crhistina Vanali* Doutoranda em Sociologia Universidade Federal do Paraná Monica Helena Harrich Silva Goulart** Universidade Tecnológica Federal do Paraná Resumo Abstract Esse artigo elabora uma análise das contribuições teóricas do historiador Quentin Skinner para se pensar a prática da história intelectual. A partir da leitura de alguns de seus principais textos procura-se compreender as questões centrais que fundamentam o programa de estudo conhecido como “Contextualismo Linguístico”. O foco da análise é centrado no desenvolvimento de alguns dos pressupostos teóricos elaborados por Quentin Skinner. Sem se ocupar com a exposição de “modelos alternativos” de interpretação de textos ou com a análise das críticas dirigidas ao contextualismo linguístico, passa-se em revista apenas os elementos que compõem o cerne da teoria interpretativa de textos. Nesse sentido, discute-se os pressupostos que para o autor são úteis àqueles que se ocupam em perceber, as diferenças e as singularidades dos vocabulários normativos. This article presents an analysis of the theoretical contributions of the historian Quentin Skinner to think about the practice of intellectual history. From reading some of his main texts seek to understand the core issues underlying the program of study known as "Contextualism Language". The focus of the analysis is focused on the development of some of the theoretical assumptions prepared by Quentin Skinner. Is not concerned with the exhibition of "alternative models" of text interpretation or analysis of the criticism of the linguistic contextualism, one passes in review only the elements that make up the core of interpretive theory texts. In this sense, we discuss the assumptions to the author are useful to those who are engaged in realizing the differences and particularities of normative vocabulary. Palavras-chave: Quentin Skinner; Contextualismo Linguístico; História das Ideias. Keywords: Quentin Skinner; Linguistic Contextualism; History of Ideas. ● Enviado em: 29/04/2014 ● Aprovado em: 30/11/2014 * ** Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Paraná. Bolsista CAPES/PDSE na Universidade Nova de Lisboa. Professora Doutora Adjunta da UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná). Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 174 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 “Quando tentamos situar (…) um texto em seu contexto adequado, não nos limitamos a fornecer ‘um quadro’ histórico para nossa interpretação: ingressamos já no próprio ato de interpretar”1. INTRODUÇÃO As discussões teóricas e metodológicas em torno do debate da história intelectual desenvolvida a partir da década de 1960 propiciaram que este novo domínio historiográfico se transformasse em um estimulante objeto de investigação. Como um campo de estudo vasto e recente, a história intelectual transita ainda na fronteira de várias disciplinas, como a tradicional história das ideias, a história social das ideias, a história dos intelectuais, a história cultural, a crítica literária e a filosofia da linguagem, não possuindo uma problemática norteadora ou temas consensuais. No centro destes debates encontra-se uma série de questionamentos referentes às perspectivas de análise empregadas pela história intelectual para interpretar um texto histórico e também o questionamento quanto à indefinição e à validade de seus próprios objetos.2 De maneira geral, a principal divergência reside na ideia da interpretação histórica e na relação texto, autor e contexto, ou ainda na ênfase que se atribuí a um ou outro destes elementos para alcançar a compreensão dos significados contidos numa determinada obra ou num conjunto de ideias. Uma das propostas para se enfrentar essas questões é desenvolvida pelo historiador britânico Quentin Skinner, a partir de uma série de textos publicados desde o final dos anos 1960. Em “Meaning and understanding in the history of ideas” 3, Skinner apresenta de modo sistemático o método do “contextualismo linguístico” para o estudo da história das ideias. Nesse artigo, Skinner procurou demonstrar que tantos os procedimentos analíticos textualistas quanto os contextualistas empregados naquele momento eram inadequados à prática da interpretação de textos, destacando que uma nova abordagem contextualista e sensitivamente histórica precisaria ser construída. O argumento central de Skinner enfatiza que só é possível compreender os significados de um dado texto, ou mesmo de um enunciado ou de uma ideia qualquer, recuperando as intenções do autor no ato da escrita e 1 2 3 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. SP: Companhia das Letras, 1996,p.13. Devido a esta indefinição Helenice Silva entende “que a história intelectual oscila, por um lado, entre uma sociologia, uma história e até mesmo uma biografia dos intelectuais e, por outro, entre uma análise das obras e das ideias como, por exemplo, uma versão da história da filosofia.” SILVA, Helenice Rodrigues da. “A história intelectual em questão”. IN: LOPES, Marcos Antonio (org). Grandes nomes da história intelectual. SP: Editora Contexto, 2003, p.16. Artigo publicado na Revista History and Theory em 1969. Depois foi republicado na íntegra, na coletânea de textos organizada por James Tully, em 1988 (versão utilizada nesse artigo). Cf: TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 175 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 reconstruindo o contexto das convenções linguísticas disponíveis num determinado tempo histórico. Embora ao longo dos anos Skinner tenha revisto algumas de suas concepções, pode-se dizer que o núcleo de sua perspectiva teórica e metodológica sofreu poucas alterações. A despeito das críticas que seguidamente são endereçadas à sua abordagem, especialmente pelos adeptos da nova crítica literária, Skinner é considerado hoje uma das referências mais influentes nos estudos da história intelectual, assim como na história do pensamento político moderno. Uma de suas principais obras é As fundações do pensamento político moderno 4, na qual realiza um estudo sobre a formação das ideologias políticas desde o Medievo Tardio até o período da Reforma Religiosa durante o século XVI. Nesta obra, como em Maquiavel 5, e Razão e Retórica na obra de Hobbes6, o autor faz uma leitura apurada tanto dos autores canônicos, quanto das obras marginais, compondo uma interessante análise sobre as mentalidades que constituiram a linguagem e o vocabulário político moderno7. Assim, procura-se analisar as contribuições teóricas e metodológicas de Skinner para se pensar a prática da história intelectual. Parte-se da leitura de seus principais textos metodológicos e busca-se compreender as questões centrais que fundamentam sua proposta de estudo conhecida como contextualismo linguístico que procura problematizar a dimensão da interpretação dos significados contidos em textos passados, procurando compreender em que termos autores, textos, contextos e linguagem devem ser articulados pelo pesquisador ao investigar uma obra histórica, um conjunto de ideias, um enunciado ou o pensamento de um determinado autor. A TRADICIONAL HISTÓRIA DAS IDEIAS Segundo Skinner8, durante os anos 1960 duas tendências dominavam o estudo da história das ideias: o modelo contextualista, para o qual o contexto dos fatores religiosos, políticos e econômicos é que determina o significado de qualquer texto dado, constituindo-se 4 5 6 7 8 Publicada em 1978. A versão em português é de 1996 da Editora Companhia das Letras. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. SP: Companhia das Letras, 1996. Publicada em 1981. Utilizamos a edição em português de 2012 da Editora LP&M. SKINNER, Quentin. Maquiavel. Porto Alegre: L&PM, 2012. Publicada em 1995. Utilizamos a edição de 1996 da Editora da UNESP. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na obra de Hobbes. SP: Editora Unesp, 1996. TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988, pp.7-28. SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas. IN: TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988, pp.29-57. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 176 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 assim como algo que deveria prover a estrutura última para qualquer esforço de compreensão das ideias; e o modelo textualista, para o qual a autonomia do texto em si mesmo era a única chave necessária para a interpretação do seu próprio significado, dispensando qualquer recorrência à informações contextuais, consideradas como externas ao texto. Para Skinner, estas duas tendências se apresentavam como modelos metodológicos inadequados à compreensão de qualquer texto literário ou filosófico, já que ambas seriam responsáveis pela produção de um conjunto de mitologias históricas que conduziriam a conclusões equivocadas e a uma infinidade de confusões intelectuais. Em relação à abordagem textual, a principal crítica de Skinner se dirige ao pressuposto de que as ideias possuem valor universal e atemporal, como se fosse possível comparar enunciados e textos em busca de verdades essenciais ou de um sentido que ligasse determinados conceitos numa linha do tempo, como ‘unidades-ideias’ desencarnadas. Segundo Skinner, abordagens como estas fatalmente incorreriam numa série de anacronismos, especialmente o de atribuir à autores e textos considerações, intenções e significados que, em contextos históricos originais, jamais reconheceriam como sendo seus; ou então, o de cair no equívoco, tão comum nestes estudos, de julgar a genialidade de determinados autores pelo fato destes terem antecipado como numa clarividência, o argumento desenvolvido posteriormente por outros autores. Quanto à perspectiva contextual, Skinner destaca que é conceitualmente impróprio concentrar-se simplesmente numa dada ideia ou num texto em si, talvez a melhor abordagem consista “em reconhecer na verdade que nossas ideias constituem uma resposta para circunstâncias imediatas, e que nós deveríamos, em consequência, estudar não o texto em si, mas de preferência o contexto de outros acontecimentos que os explicam” 9. De acordo com Skinner, a alternativa metodológica empregada pelos contextualistas vem enfrentando resistência dos pesquisadores que insistem na autonomia do estudo textual e que os autores e textos canônicos devem ser estudados em termos de sabedoria atemporais, como verdades imutáveis que transcenderiam a dimensão histórica. Skinner entende que o conhecimento do contexto social10 de um texto pode, embora de modo incompleto, ser uma ferramenta útil. Compreende, no entanto, que esse modelo 9 10 Tradução livre das autoras do texto original “... to recognize the fact that our ideas are a response to immediate circumstances, and that we should therefore not study the text itself, but rather the context of other events that explain them”. SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas. IN: TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988, p.57. A crença de que a leitura contextual proporciona uma metodologia apropriada para a história intelectual é comum entre os historiadores e certos cientistas sociais. Para estes, é usual na análise de textos históricos considerar o conhecimento do contexto social e das condições políticas e econômicas nas quais os textos são produzidos. Segundo Skinner, o trabalho de Max Weber sobre a ética protestante e o Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 177 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 metodológico também apresenta sérias inadequações ao estudo da história intelectual. A principal delas, diz respeito ao pressuposto da causalidade social, à afirmação de que o contexto social ajuda a causar a formação e a mudança das ideias, e que, de maneira semelhante, as ideias sucessivamente ajudam a causar a formação e a mudança do contexto social, como se uma estrutura ou outra funcionasse o tempo todo, e de modo mecânico, como um reflexo. O efeito dessa perspectiva é que o pesquisador das ideias termina por presentearse com o antigo enigma: quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha? A leitura contextual conduziria, assim, a um equívoco fundamental sobre a natureza da relação entre ação e circunstância, uma vez que parte do princípio de que para toda e qualquer forma de ação deve haver um conjunto de condições causais antecendentes. Por esse motivo, Skinner conclui que a despeito da possibilidade que o estudo do contexto social apresenta para ajudar no entendimento de um dado texto: … a fundamental pressuposição da metodologia contextual … pode parecer enganosa e servir em consequência não como um guia para o entendimento, mas como uma fonte de promoção de confusões muito predominantes na história das ideias11. Diante disso, Skinner entende que um novo programa metodológico seria necessário para estudar a produção de significados nos autores e textos históricos, sejam eles canônicos ou não. Ele procura desenvolver o que denominou de contextualismo linguístico, ou seja, a análise do texto em si incorre em uma infinidade de anacronismos históricos, e que mesmo a tradicional perspectiva contextual apresenta-se como inadequada. Uma abordagem contextualista mais atenta aos jogos de linguagem precisaria ser elaborada. O CONTEXTUALISMO LINGUÍSTICO E UMA NOVA METODOLOGIA PARA A HISTÓRIA DAS IDEIAS De acordo com Skinner, a questão central da história das ideias consiste em compreender a produção de significado através do uso da linguagem. Partindo de uma das premissas da filosofia da linguagem de Wittgenstein, a qual afirma que ‘palavras são atos’, 11 espírito do capitalismo, assim como o de Robert Merton sobre o pensamento científico inglês no século XVII, podem ser vistos nessa direção, onde o contexto social mais amplo é acionado para explicar, respectivamente, o desenvolvimento do pensamento econômico e científico. SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas. IN: TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988, pp. 58-59. SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas. IN: TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988, p.59. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 178 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Skinner argumenta que para interpretar o significado dos textos, respeitando os contextos linguísticos originais de sua produção, o pesquisador deve procurar compreender quais eram as intenções e motivações dos autores ao pronunciarem uma determinada palavra, frase ou enunciado. O entendimento de um dado texto não depende estritamente da compreensão de seus significados, mas das intenções do autor no momento da escrita. Em seu ponto de vista, mesmo que pudéssemos decodificar, através do estudo de seu contexto social, o que uma sentença significa, ainda assim: … ficaríamos sem compreender a intenção de sua força ilocucionária, e, portanto, sem um entendimento real da sentença. A questão é, em suma, que uma lacuna inevitável permaneceria: mesmo se o estudo do contexto social dos textos pudesse servir para explicá-los, este não serviria como um meio para entendê-los12. Essa força ilocucionária intencional seria compreendida como uma força imposta pelo autor, no ato da fala, com a intenção de comunicar o significado de um enunciado. Neste sentido, para compreender um enunciado proferido por um determinado autor seria preciso, de um lado, ter o domínio sobre as complexas intenções deste ao proferí-lo e, por outro, saber qual era a audiência que visava ele atingir no momento da escrita. O conhecimento das intenções do autor ao escrever é equivalente ao conhecimento do significado do que o autor de fato escreveu. Em suma, entender as intenções e motivações de um autor equivale a entender a natureza e a extensão dos atos ilocucionários que o escritor poderia ter desenvolvido no momento em que escrevia ou enunciava suas ideias. Seguindo essa orientação, Skinner compreende que é possível caracterizar o que um determinado autor pretendia fazer, por exemplo, ao atacar ou defender uma linha particular de argumento, ao criticar ou contribuir com uma tradição particular de discurso, e assim por diante. Para compreender um ato de fala como uma ação política, para recuperar as intenções de um autor ao enunciar determinada ideia, é necessário traçar a relação entre o dado enunciado e o amplo contexto linguístico disponível e utilizado naquele momento, ou seja, o repertório de ideias com o qual ele dialogou. Deste modo, Skinner está preocupado com os atos ilocucionários e com a autoridade que o autor apresenta em relação ao significado do texto, já que é possível perceber a importância que ele atribui à análise do contexto linguístico como um elemento importante na metodologia empregada na história das ideias. Alguns de 12 SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas. IN: TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988, p.61. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 179 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 seus críticos13 apontam, que a compreensão em relação as intenções e motivações do autor, advém menos dos atos ilocucionários do que do conhecimento das convenções linguísticas que historicamente contextualizam o texto, uma vez que a análise dos atos ilocucionários parecia se ater mais às condições formais da linguagem. Skinner se defende dos críticos que o atacavam por ter atribuído demasiada atenção às intencionalidades dos autores argumentando que entre as tarefas de interpretar estaria também o exercício de recuperar as motivações e as intenções políticas e sociais dos autores no ato da escrita. O autor continua sustentando que recuperar o significado histórico de qualquer texto e do que os autores intencionavam ao escrever são condições necessárias ao seu entendimento, e que este processo nunca pode ser concluído simplesmente pelo estudo do texto em si. A abordagem de Skinner dirige a atenção para o modo como o conhecimento das convenções sociais em torno da linguagem (como as ideologias, o repertório intelectual e o vocabulário conceitual existente) ganha importância na prática de interpretação de textos. Duas regras devem ser consideradas pelo pesquisador caso queira interpretar adequadamente um texto: primeiro deve-se considerar não apenas o texto a ser interpretado, mas também as convenções prevalecentes que governam as ideologias em uso, uma vez que os autores são limitados, em suas intenções, durante a escrita, pelo estoque de conceitos disponíveis que ele poderia empregar. Segundo, o pesquisador das ideias só atingirá uma compreensão de seu objeto se enfocar o mundo mental do escritor, suas crenças empíricas, suas percepções, seus sentimentos, seus valores morais e políticos, assim como suas ideologias compartilhadas, trocadas com seus pares, com sua audiência. Deslocando a atenção do texto para o contexto e, ainda, para o criador do texto, Skinner se esforça para demonstrar que são nos atos de fala dos autores, em seu mundo mental e no repertório linguístico de sua época que o pesquisador das ideias deve buscar a interpretação de textos. Ao contrário da tradicional visão contextualista empregada na historiografia, a qual reduz o significado das ideias ao contexto social e suas causalidades, Skinner destaca que os significados de um texto ou de um dado enunciado devem ser procurados em contextos linguísticos específicos, nos jogos de linguagens que governam o mundo mental e o vocabulário conceitual empregados pelos autores num dado tempo histórico. Situar o texto em seu contexto linguístico significa, portanto, compreender os valores ideológicos compartilhados pelos agentes num mesmo período e obedecendo a um certo número de 13 FERES JUNIOR, João. “De Cambridge para o mundo, historicamente: revendo a contribuição metodológica de Quentin Skinner”. IN: DADOS – Revista de Ciências Sociais. RJ, volume 48, n°2, 2005, p.670. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 180 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 convenções sobre o que é possível a um autor dizer ou não num dado tempo, sobre o que é ou não legitimamente aceito por seus pares. Para James Tully, um dos intérpretes de Quentin Skinner, o termo convenção linguística é empregado por ele para se referir a uma linguagem comum que une um número de textos, como o vocabulário compartilhado, princípios, assuntos, problemas, critérios para testar o conhecimento, distinção conceitual e assim por diante. Dessa maneira: … a justificação para empregar o texto em seu contexto convencional é que a ação linguística, semelhante a outras formas de ação social, é convencional e, assim, o seu significado pode ser entendido somente acompanhando as convenções em torno do desenvolvimento de um dado tipo de ação social em uma dada situação social14. No livro As fundações do pensamento político moderno, Skinner procura desfazer uma série de mitologias e de anacronismos que a historiografia tradicional havia formulado em torno dos principais textos de transição entre o pensamento político medieval e o moderno, sobretudo de autores como Maquiavel, Erasmo, Lutero e Calvino, ou mesmo em relação a matriz ideológica e o vocabulário que orientou outros pensadores considerados marginais no período entre o século XIII e XVI. Desta maneira o interesse de Skinner é ilustrar um certo modo de proceder ao estudo e interpretação dos textos históricos, realizando para isso uma história das ideias na qual fosse possível enfocar a matriz social e intelectual, o contexto linguístico, as ideologias e o vocabulário normativo em que foram concebidos tanto os textos canônicos quanto as contribuições mais efêmeras ao pensamento social e político15. Uma dimensão importante desta obra, conforme é destacado na introdução, diz respeito também à atenção que Skinner lança para a relação entre as intenções do autor e o vocabulário normativo disponível, entre a ideologia e ação política, uma vez que ao proferir um enunciado o autor tem em mente legitimar um projeto político entre os grupos de indivíduos que constituem a sua audiência. Em detrimento disso, Skinner argumenta que o problema de um agente que pretenda legitimar o que está fazendo ao mesmo tempo que obtém o que deseja não se reduz à questão, simplesmente instrumental, de recortar sua linguagem normativa a fim de adequá-la à linguagem normativa que dispõe. Skinner enfatiza a existência de uma certa margem limite de liberdade que um autor encontra ao formular seus 14 15 TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988, p.9. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. SP: Companhia das Letras, 1996, pp.10-11. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 181 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 projetos ideológicos, visto que sua ação intelectual e política está intrinsecamente ligada ao repertório de ideias compartilhadas pela sua audiência. É por esse motivo que Skinner sugere que a compreensão das intenções e as motivações de um autor, bem como do seu comportamento político, depende do estudo do próprio contexto que constitui o pensamento ideológico com o qual ele dialoga. Skinner enfatiza que estudar o contexto linguístico de qualquer obra não deve ser tomado pelo pesquisador apenas como um meio de se obter uma informação adicional sobre a sua etiologia, deve ser também um meio de lançar maior visão interna do que seu autor queria dizer e o que ele estava fazendo quando escrevia. Empregando esse método à análise da história das ideias, Skinner conclui: Podemos começar assim a ver não apenas que argumentos eles (os autores) apresentavam, mas também as questões que formulavam e tentavam responder, e em que medida aceitavam e endossavam, ou contextavam e repeliam, ou às vezes até ignoravam, as ideias e convenções então predominantes no debate político. Não podemos esperar atingir esse nível de compreensão estudando tão somente os próprios textos. A fim de percebê-los como respostas a questões específicas, precisamos saber algo da sociedade na qual foram escritos. E, a fim de reconhecer a direção e a força exata de seu argumento, necessitamos ter alguma apreciação do vocabulário político mais amplo de sua época16. Portanto, o contextualismo linguístico de Skinner assume um caráter historicista radical, uma vez que a interpretação possível de um dado texto só ganha sentido se analisado nos próprios termos de sua produção e no diálogo com as ideias, enunciados e conceitos compartilhados. Além do mais, Skinner faz questão de ressaltar que situar um texto em seu contexto adequado não significa fornecer um quadro histórico para nossa interpretação, pois conhecer o contexto de produção de um texto qualquer já é, em si mesmo, um modo de ingressar no próprio ato de interpretar. Ou seja, o contexto não ganha a forma de uma moldura que dá sentido ao objeto, pois é ele constitutivo do próprio objeto que pretendemos analisar. Para Skinner, na verdade, a dicotomia entre texto e contexto não faz sentido algum, na medida que conhecer o contexto é adentrar no mundo dos significados textuais e das intenções que movem os autores. Enquanto em seu texto de 1969, Meaning and understanding, Skinner está preocupado em compreender as intenções de autores a partir de atos ilocucionários de força, seus textos posteriores cada vez mais expandem sua compreensão em compreender como as intenções 16 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. SP: Companhia das Letras, 1996, p.13. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 182 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 dos autores, suas questões e suas respostas à determinados problemas, estão conectadas às convenções sociais em torno do uso da linguagem numa determinada época. Conforme Feres destacou, Skinner parece ter chegado à conclusão que sua tese sobre atos de fala não se sustentava, uma vez que faltava dizer como era possível acessar as intenções do autor 17. Posteriormente, portanto, ao assumir o contexto linguístico como convenções sociais, ou expressões ideológicas, do que enquanto conteúdo semântico, Skinner alcançou um modelo metodológico interpretativo bastante relevante ao estudo da história intelectual e da história das ideias. CONCLUSÃO Conforme alguns de seus críticos têm ressaltado, a perspectiva contextualista proposta por Skinner foi fortemente influenciada pela Escola Histórica Inglesa, representada pelos trabalhos de Collingwood (1889-1943) na primeira metade do século XX.18 De acordo com o próprio Skinner, o historicismo de Collingwood foi um referencial importante tanto na formulação de sua metodologia quanto na de seus colegas historiadores da Escola de Cambridge, sobretudo de John Pocock, que ao lado de Skinner foi responsável por um amplo debate metodológico que renovou a história do pensamento político e da história intelectual, especialmente em relação à afirmação de que os historiadores deveriam prestar mais atenção a função, ao contexto e à aplicação das linguagens conceituais encontradas em sociedades particulares e em momentos particulares. Empregando essa abordagem, foi possível a Skinner e a Pocock perceber que o estudo atento da linguagem conceitual permite ao pesquisador compreender que os homens só são capazes de fazer o que a linguagem os possibilita pensar ou dizer. Assim, a melhor maneira de evitar mitologias anacrônicas é perceber as dimensões histórica e contextual que envolve o uso dos utensílios linguísticos disponíveis a uma dada sociedade. Vale destacar que o vocabulário disponível num dado tempo histórico organiza o mundo mental dos indivíduos de tal modo que este acaba por definir os limites coletivos do que era possível pensar ou fazer. Por esse motivo Skinner sugere que conhecer o contexto linguístico de uma dada obra significa, de fato, ingressar já no próprio ato de interpretar as 17 18 FERES JUNIOR, João. “De Cambridge para o mundo, historicamente: revendo a contribuição metodológica de Quentin Skinner”. IN: DADOS – Revista de Ciências Sociais. RJ, volume 48, n°2, 2005, pp.665-680. TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988, pp.7-28. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 183 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 intenções e motivações de seu autor ao defender uma ideia, um enunciado ou um conceito qualquer. De outro lado, Skinner apreende os usos da linguagem enquanto convenções sociais. É a partir desse ponto de vista que se torna possível, como faz Jasmim 19, aproximar o contextualismo linguístico de Skinner à história dos conceitos tal qual propõe o historiador alemão Reinhart Koselleck.20 De acordo com Koselleck, só é possível compreender o uso dos conceitos ao longo da história lançando mão do conhecimento sobre os usos sociais da linguagem, uma vez que a compreensão de um conceito depende do conhecimento semântico e da comumicação das palavras empregadas num determinado período histórico. Jasmim explica que, assim como o método histórico proposto por Skinner, a história conceitual de Koselleck parte do princípio de que: … os conflitos políticos e sociais do passado devem ser descobertos e interpretados através do horizonte conceitual que lhes é coetâneo e em termos dos usos linguísticos, mutuamente compartilhados e desempenhados pelos atores que participam desses conflitos21. Outra convergência interessante que envolve as perspectivas de Skinner e Koselleck é o fato de ambos construírem uma metodologia de estudo a partir da rejeição à tradicional história das ideias. Enquanto o contextualismo linguístico de Skinner e de Pocock foi formulado em oposição a história das ideias atemporais propostas por historiadores da filosofia como Leo Strauss e Arthur Lovejoy, a história conceitual de Koselleck dirigiu-se contra a história das ideias imutáveis tal qual apresentavam, por exemplo, na obra de Friedrich Meinecke. Jasmin destaca outro ponto importante que diferencia o projeto de estudo desses historiadores22. O historicismo metodológico de Skinner é elaborado sobre uma perspectiva sincrônica, tendo em vista que sua abordagem parte do princípio de que é possível ao historiador recuperar as intenções originais dos autores no momento mesmo da escrita, atravessando as camadas de interpretação que se põem entre o texto estudado e o mundo 19 20 21 22 JASMIN, Marcelo Gantus. “História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares”. IN: RBCS, volume 20, n° 57, fevereiro de 2005, pp. 27-39. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. RJ: Editora Contraponto, 2006, pp.97-118; e KOSELLECK, Reinhart. “Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos.” IN: Revista Estudos Históricos, RJ, volume 5, n° 10, 1992, pp.134-146. JASMIN, Marcelo Gantus. “História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares”. IN: RBCS, volume 20, n° 57, fevereiro de 2005, pp. 31-32. JASMIN, Marcelo Gantus. “História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares”. IN: RBCS, volume 20, n° 57, fevereiro de 2005, pp. 27-39. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 184 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 mental do historiador. Por esse motivo alguns de seus críticos chegaram a atribuir-lhe o rótulo de positivista, como alguém que pretende retomar a hermenêutica romântica empregada durante o século XIX, através da qual pensava-se ser possível compreender as intenções dos autores em seus próprios termos, e não nos termos peculiares às suas próprias situações e experiências. Skinner insiste que a primeira responsabilidade do pesquisador é reconstituir as intenções primárias de um autor, onde a mensagem real do texto será encontrada, embora considere ultrajante pensar na ideia de que seja possível recuperar uma verdade histórica. Por outro lado, a história dos conceitos de Koselleck assume uma dimensão diacrônica, uma vez que os significados da linguagem são interpretados como dependentes das experiências históricas não de quem as formulou, mas de quem as recebeu em diferentes períodos da história. Para Koselleck a história conceitual interessa-se pelos modos como as gerações e os intérpretes posteriores leram e se apropriaram de maneiras diversas dos textos passados. Ou seja, enquanto Skinner procura interpretar os significados atribuídos pelos autores no momento mesmo da fala, Koselleck apreende os diferentes modos em que os conceitos, as ideias e os enunciados são dados a ler em diferentes momentos da história. Koselleck, ao contrário de Skinner, entende que a pergunta que se deve fazer a um texto não pode mais inserir-se em seu horizonte original, pois este é sempre abarcado pela experiência que envolve a leitura e a recepção. Skinner recupera o papel do autor como agente fundamental no processo de produção de ideias. De acordo com o contextualismo linguístico proposto por ele, textos não falam, somente autores, o que significa dizer que estes não são meramente prisioneiros dos discursos no interior dos quais os significados são construídos. Autores tem intenções, motivações e, ainda, uma certa consciência das condições e possibilidades no campo de ação no qual se movem. Skinner entende, desta maneira, que os atos de fala devem ser tomados como atos sociais intersubjetivos, e não intertextuais, e que ocorrem em situações históricas concretas, onde a linguagem é manipulada conscientemente com vistas a realização de determinadas ações e interesses sociais e políticos. Neste sentido, Skinner opõem-se a proclamação da morte do autor, pois essa ideia não leva em consideração a historicidade da linguagem e as motivações sociais e políticas que mobilizam os autores no momento mesmo em que escrevem e manifestam suas ideias. Skinner reafirma a ideia da interpretação histórica empregada como explicação do que os autores pretendiam ao escrever, tendo em vista que seus atos linguísticos são concebidos enquanto atos sociais auto-conscientes. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 185 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Apesar das muitas críticas formuladas contra o contextualismo linguístico de Skinner, sua proposta teórica e metodológica tem contribuído para renovar os estudos de história intelectual ou mesmo do pensamento político moderno. De um lado, sua abordagem possibilita empregar um método no qual o texto apareça como um genuíno documento histórico, passível de uma leitura objetiva, e onde a dicotomia entre autor, texto, contexto e linguagem é eliminada em função de um contextualismo linguístico mais performático e sensivelmente histórico, onde as ideias são tratadas dentro das tradições intelectuais e do repertório normativo disponível numa dada sociedade ou num grupo de indivíduos. De outro lado, Skinner lançou uma filosofia analítica e restituiu o lugar do autor no processo da produção e difusão das ideias, defendendo a autonomia do pensamento e invocando uma história de indivíduos que pensam, agem e escrevem a partir de intenções conscientes. Para ele, o sentido da história não deve ser buscado nas estruturas do texto escrito, mas na relação do ator-escritor com a linguagem e a experiência social historicamente compartilhada. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 186 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 RESENHAS Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 187 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 GALLEGO, Julíán; GARCÍA MAC GAW, Carlos G. (comps.). La ciudad en el Mediterráneo Antiguo. Colección Razón Política/Estudios del Mediterráneo Antiguo – PEFSCEA N° 4. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires/Ediciones del Signo, 2007, 264p. Horacio Miguel Hernán Zapata* Universidad Nacional del Nordeste (UNNE), Argentina ● Enviado em: 27/07/2014 ● Aprovado em: 07/11/2014 Las ciudades han sufrido una transformación radical al calor de los diferentes procesos políticos y económicos globales, los constantes avances científicos y tecnológicos y las alteraciones en el mapa demográfico, sociológico, cultural y étnico. A su vez, las nociones que definían lo urbano, como el centro, el componente o los límites de la ciudad, han cambiado su significado. Como consecuencia, es difícil de percibir en las actuales estructuras urbanas aquel modelo clásico de ciudad en tanto lugar de sociabilidad y civilidad, esto es, como centro – pólis– y espacio público –res publica– donde nacieron la democracia y la ciudadanía, ya que estos ámbitos que habitamos se han convertido en lugares complejos, fragmentados y contradictorios, representando el progreso humano y civilizacional pero también cargando la amenaza del desastre social y ecológico. Bajo estas condiciones, la percepción espontánea de cualquier individuo podría identificar que la ciudad, con su cotidiana multitud de gentes, su complejo entramado relacional y su dendrítica materialidad urbana, es un dato “natural”, algo que ha estado allí desde siempre. En un lenguaje poético, nadie ha expresado de mejor forma esa supuesta inmortalidad de la ciudad que el escritor argentino Jorge Luis Borges, cuando en su delicioso poema Fundación mítica de Buenos Aires proclamaba que “la juzgo tan eterna como el agua y el aire”. Así, no es de extrañar que este cúmulo de problemáticas del mundo contemporáneo se refleje en los trabajos que –desde hace algún tiempo– realizan investigadores interesados en analizar algunas de estas transformaciones en su profundidad * Departamento de Historia, Facultad de Humanidades, Universidad Nacional del Nordeste (UNNE) / Centro Interdisciplinario de Estudios Sociales (CIESo), Facultad de Humanidades y Artes, Universidad Nacional de Rosario (UNNE) Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 188 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 histórica y conceptual y que buscan proponer nuevas perspectivas y contribuir, desde el campo de las ciencias sociales, a la mejora del conocimiento sobre los sistemas urbanos y las condiciones de vida en las ciudades. Desde el campo de la historia antigua, el estudio de la ciudad es un tema con una amplia tradición, contándose entre los hitos más representativos de los primeros esfuerzos libros como La ciudad antigua (1864) de Fustel de Coulange, obra dedicada a explicar la estructura urbana interna en Grecia y Roma, con especial atención al ámbito político, social y religioso; La ciudad griega (1929) del historiador C. Glotz, volumen cuyo objetivo central era analizar de forma minuciosa la relación entre la familia, la urbe y el individuo; o Los orígenes de la civilización (1936), ese magnífico estudio del arqueólogo Vere Gordon Childe en el que identificaba con el nombre de “revolución urbana” a los diversos procesos históricos de cambio que conducían al urbanismo y a la aparición de las primeras ciudades –y concomitantemente del Estado –en el Próximo Oriente Antiguo. Incluso, desde mediados del siglo XX hasta la actualidad, es posible encontrar numerosas monografías e investigaciones que procuran revisar el concepto de “ciudad antigua”, no sólo desde una mirada tradicional enfocada en las estructuras materiales, sino abordando el complejo entramado de relaciones sociales que tienen lugar en esos centros localizados a lo largo y ancho de un ámbito de encuentros culturales e intercambios materiales e inmateriales como era –y aún es– el Mediterráneo y durante una extensión temporal que se prolonga incluso hasta la época temprano-medieval. Es precisamente en esta apuesta intelectual donde se ubica el libro que hoy reseñamos, La ciudad en el Mediterráneo Antiguo, una compilación a cargo de los historiadores argentinos Julián Gallego y Carlos G. García Mac Gaw, ya que como éstos confiesan en la introducción, el libro es el resultado específico, en primer lugar, de las distintas líneas de investigación que fueron desarrolladas dentro del proyecto “La ciudad en el mundo greco-romano: organización política, estructuras sociales y el control de los recursos agrarios” bajo la dirección del antiquista Julián Gallego y en el marco de la Secretaría de Ciencia y Técnica de la Universidad de Buenos Aires. El objetivo principal de tal proyecto –plasmado plenamente en el libro– consistió en pesquisar la organización política e institucional y la arquitectura social de la ciudad antigua a través de sus diferentes expresiones (ciudad-estado, pólis, apoikía, civitas, colonia, municipium, etc.), analizando las múltiples articulaciones existentes entre los integrantes de la ciudad y los recursos rurales (economía campesina, agricultura esclavista, relación rentística entre terratenientes y campesinos, recaudación tributaria estatal, etc.). Partiendo del supuesto de que en el mundo antiguo la inclusión en la esfera política e Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 189 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 institucional de la ciudad se encontraba íntimamente conectada con el acceso a los recursos agrarios, un vínculo que no sólo implicaba el plano de la “materialidad” de las relaciones sociales sino también el de las representaciones simbólicas, las intervenciones de la compilación demuestran claramente que las instituciones políticas y jurídicas de la ciudadestado constituyen elementos nodales en el análisis de las sociedades antiguas, aun cuando dicha importancia deba ser relativizada de acuerdo a los aspectos históricos considerados en cada estudio puntual del volumen. En concreto, el volumen transita las transformaciones que sufre el modelo de ciudad como organizador de las relaciones sociales, iniciando su recorrido desde el Cercano Oriente, cuando emergen los primeros centros urbanos, pasando por el universo de las póleis de la Grecia arcaica y clásica y de las civitas de la Roma tardorrepublicana y altoimperial, llegando incluso a la Antigüedad Tardía, cuando los monasterios comenzaron a asumir el rol de las elites urbanas, volviéndose agentes intermediarios entre el Estado y los campesinos y compitiendo con los centros urbanos como núcleos principales de patronazgo social. La hipótesis general tomada por los compiladores como hilo conductor para la obra es que la ciudad supone una comunidad que se gobierna a sí misma y que reside en un centro urbano y su territorio circundante, hecho que a su vez posibilita pensar la configuración de una colectividad política con poderes delimitados y definida por la participación directa de los ciudadanos de pleno derecho en las cuestiones del ámbito público y la inexistencia de una burocracia. Es este mismo orden institucional el que dará lugar, además, a las múltiples modalidades de vinculación social y a los diversos modos de utilización de los recursos agrarios. Conforme a este conjunto de perspectivas y temáticas, la obra se encuentra dividida en tres secciones bien delimitadas y que procuran reflejar, de forma clara y ordenada aunque no esquemática, las líneas de investigación que hemos subrayado. Bajo el título “Organizaciones urbanas, estructuras estatales y recursos agrarios”, la primera sección plantea, a través de tres trabajos, una aproximación a la ciudad en la Antigüedad en tanto escenario propio del funcionamiento del Estado, examinando sus dimensiones institucionales y determinantes rurales. El primero de los trabajos, de autoría de Marcelo Campagno, se detiene en el problema de la revolución urbana y el surgimiento del Estado en el Próximo Oriente. A partir de un análisis comparativo, el autor demuestra con claridad cómo este proceso, ocurrido en los contextos urbanos de Mesopotamia y Egipto a fines del IV milenio a. C., fue el producto de la emergencia de una elite (asociada al mundo de las divinidades) que puso en funcionamiento una compleja estructura burocrática, construyendo su poder por encima de Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 190 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 un conjunto de comunidades aldeanas (con fuerte base campesina) que terminarían convirtiéndose en poblaciones dependientes que se vieron obligadas a entregar regularmente excedentes a dicha elite a través de distintos mecanismos de tributación estatal. El segundo capítulo de la sección, de la pluma de Julián Gallego, aborda la cuestión de la aparición de la pólis y el rol del campesinado en la Grecia antigua, subrayando que la configuración política de la ciudad durante los siglos VIII a V a. C. no supuso una formación jerárquica en la que una elite edificó su poder sobre un campesinado sometido, sino una organización segmentaria en la que las aldeas rurales tendieron a incluirse dentro de un Estado a través de un proceso político, espacial, social y religioso (denominado sinecismo), donde las comunas rurales siguieron constituyendo los núcleos básicos del sistema socioeconómico, institucional y militar del Estado griego. Y el tercer capítulo de la sección, a cargo de Carlos García Mac Gaw, estudia la problemática del esclavismo y las distintas formas en que se organiza la explotación de la fuerza de trabajo en la historia de Roma, tanto en la república tardía como en el alto imperio. Conjugando aspectos económicos y jurídico-políticos, presenta la evidencia de un paisaje complejo y plural caracterizado por las diferentes maneras que asume la explotación del trabajo –que van desde modalidades varias del colonato hasta formas múltiples de explotación del trabajo servil, que pueden aparecer conectadas entre sí y con la pervivencia de la unidad doméstica campesina del pequeño propietario, coexistiendo todas ellas en el tiempo y espacio–, reconstrucción que permite afirmar que dicho paisaje no puede ser sencillamente definido a partir de una única categoría conceptual y, de este modo, discutir la concepción historiográfica –aún vigente en ciertos ámbitos académicos y recursos bibliográficos– de que el esclavismo es el principal modo de producción que explica la particularidad de la economía romana. La segunda sección, titulada “Representaciones de la ciudad y el mundo rural”, se ocupa del examen de los imaginarios sociales que circulan sobre la ciudad y las actividades conectadas a la economía rural a partir de las producciones teatrales de la Atenas clásica, problemática que es abordada en dos trabajos con novedosos abordajes. En su artículo, María José Coscolla despliega un significativo análisis filológico de los objetos rurales y su relevancia contextual en las comedias de Aristófanes junto con la aplicación de la teoría de los juegos para identificar en los modos de intercambio social y los mecanismos de endeudamiento en el mundo rural ateniense la presencia de matices en los comportamientos de los agentes en el plano de la producción, por lo que el producto agrario y su rentabilidad fijarían diferentes estrategias de inversión así como lazos de sociabilidad distintivos. Seguidamente, el trabajo de Elsa Rodríguez Cidre nos conduce al universo de las representaciones simbólicas que, en esa Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 191 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 misma sociedad ateniense y a través de los discursos de despedida de Hécuba y el coro en la tragedia Troyanas de Eurípides, se pergeñaban en torno a la centralidad de la pólis, no sólo como forma de Estado sino –y sobre todo– como un modo de convivencia que los propios contemporáneos concebían como el modo de vida en sociedad, más allá del cual sobreviene la catástrofe. Considerando la relevancia que el teatro de la ciudad poseía en el diseño de la identidad cívica, la autora puntualiza que esta obra pone en escena la cuestión de la destrucción de la pólis, un tópico que en realidad resulta irrepresentable dentro del imaginario político de la Atenas clásica, cuyos efectos simultáneos no sólo son los trastocamientos de los cánones formales que pueden identificarse en la tragedia sino también la propia manera en que finaliza dicha obra. Finalmente, la tercera sección del libro titulada “La Ciudad, la Iglesia y los campesinos en la Antigüedad Tardía”, reúne diferentes contribuciones sobre las transformaciones del modelo clásico de la ciudad en los siglos IV al VI d.C., una etapa en la que es posible observar el redimensionamiento de los vínculos de patronazgo y el surgimiento de poderes locales con formas propias ante la pérdida de unidad e influencia del Estado romano imperial, aun cuando en este nuevo contexto sociopolítico la Iglesia aparece como el agente que heredaba o se apropiaba del antiguo andamiaje institucional romano o como la depositaria de un orden ecuménico universalista. Los autores de esta sección coinciden en la idea de que la cristalización de nuevas formas de organización social a partir de la crisis del marco citadino no operó de forma lineal y tales transformaciones deben ser estudiadas en las particularidades que adquieren en los espacios locales. En esta senda, Diego Santos estudia los realineamientos políticos de la población local en la Galia durante la decadencia imperial, presentando alternativamente los momentos de identificación de los galos con Roma, como un orden social y político, y con el lugar de origen, como un marco de integración social más cercano y propio, dejando asentado al mismo tiempo que la función episcopal, cuyo espacio era el de la civitas romana, a pesar de su notable influencia en la región, no alteró esta lógica. Por su parte, Héctor Francisco se ocupa de desentrañar las características de los liderazgos rurales en la Siria tardorromana, subrayando la vitalidad de los pequeños campesinos independientes centrados en aldeas como aspecto específico de la expansión económica del siglo IV en el Imperio oriental. Apoyado en diversos relatos de la intervención de los monjes en los conflictos entre el campo y la ciudad contenidos en fuentes hagiográficas sirias de los siglos V y VI d.C., el autor revela la progresiva pérdida del ascendiente de las clases curiales sobre estos sectores campesinos y, como contracara, el crecimiento de la figura del obispo en el nuevo paisaje social y político oriental, el cual comienza a posicionarse como bisagra entre Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 192 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 la ciudad y el Estado, mientras que el monasterio operará como canal entre las áreas rurales y las urbanas, relevando las bases del poder de los aristócratas locales construidas sobre las funciones patronales. Por último, Eleonora Dell'Elicine se ocupa específicamente de la fragmentación del mundo rural en la península ibérica y discutir desde allí la tesis que sostiene que, entre los siglos IV y VIII, los campesinos de la región se hallaban insertos en el sistema de villa aristocrática, buscando proponer una imagen del mundo rural mucho más acertada y compleja. Tomando como caso de estudio el reino visigodo, la autora afirma que la presencia y reproducción de los diferentes grupos de campesinos se organiza atendiendo al anclaje sobre el terreno, la relación con el derecho, el vínculo con la ciudad, la inscripción étnica y la adhesión religiosa, un cuadro que no sólo estaría hablando de la coexistencia de diferentes factores de poder detrás de tales realidades, que ocupan el espacio que antes mantenía la civitas en su relación con la corte imperial, sino del propio y nuevo diseño de un paisaje rural que se aparta de las formas antiguas de organización social. Llegados a este punto, es posible afirmar que La ciudad en el Mediterráneo Antiguo nos da una muestra acabada de la confluencia de novedosas miradas sobre la historia antigua que portan un alto valor académico. No sólo porque corporizan múltiples debates historiográficos actuales, porque problematicen de forma constante los procesos históricos en base a marcos teóricos renovados o porque pongan en juego diversos enfoques metodológicos, sino porque también –y sobre todo– representan largos períodos de investigación rigurosa que llevan a cabo investigadores-docentes en universidades públicas argentinas, siendo una de sus tantas preocupaciones académicas dilucidar nuevas maneras de explicar las diversas formas en las cuales se organizaban las sociedades, describir sus múltiples modalidades de configuración espacial y comprender las distintas formas en que los integrantes de esas mismas sociedades se hacen presentes, convergen y conviven como comunidad en un espacio común a la vez que diverso. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 193 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 GUIMARÃES, Marcella Lopes (org.). Por São Jorge! Por São Tiago! Batalhas e narrativas ibéricas medievais. Curitiba: Editora UFPR, 2013, 195p. Ana Luiza Mendes* Doutoranda em História Universidade Federal do Paraná ● Enviado em: 28/08/2014 ● Aprovado em: 30/10/2014 O livro Por São Jorge! Por São Tiago! Batalhas e narrativas ibéricas medievais é composto por cinco capítulos que trazem à tona o exame de cinco batalhas compreendidas entre os séculos VIII e XV na Península Ibérica e em África. Contudo, a obra não nos oferece simples narrativas dessas batalhas – Batalha do Guadalete (711), Batalha de Las Navas de Tolosa (1212), Batalha do Salado (1340), Batalha de Aljubarrota (1385), Tomada de Ceuta (1415) – mas coloca sob o escopo de análise as narrativas que foram produzidas sobre esses eventos a fim de compreender o seu significado dentro de uma conjuntura complexa de fatos, que envolve forças gestadas por indivíduos e fatos entrelaçados em uma rede de acontecimentos, circunstâncias e enredos, assim como o significado desses eventos foram perpetuados, reutilizados e ressignificados posteriormente. Para compreender, portanto, essa complexa rede de relações que contribuíram para a formação da Península Ibérica, também se faz necessária a discussão sobre os conceitos pertinentes a esse contexto. Esta é proposta da análise do primeiro capítulo, em que Renan Frighetto expõe a necessidade de esclarecimento de conceitos sobre a antiguidade e o medievo, assim como a abertura para novas ideias que nos levam à flexibilização dos parâmetros cronológicos e didáticos do tempo histórico. A revisão de conceitos é, portanto, de suma importância para a compreensão do período e, consequentemente da batalha estudada, que, para o autor, deve ser compreendido a partir do conceito de transformação, pois compreende certas continuidades ou lentas mudanças que constituem a identidade própria do período denominado Antiguidade Tardia. * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 194 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Após situar o leitor no contexto, ele parte para a análise da Batalha do Guadalete que opôs o reino hispano-visigodo de Toledo e os mauri, convertidos ao islamismo, culminando no fim da dominação goda na Hispania. O autor compreende a Batalha do Guadalete e seus desdobramentos como o início da Alta Idade Média na Península Ibérica, porém, não compreende a batalha em si como o mote dessa transformação. A batalha encontra-se em meio a uma conjuntura de contínua fragmentação e enfraquecimento político do reino hispano-visigodo, constituindo-se como o ápice dessa desestruturação que culmina efetivamente em mudanças nas estruturas do poder que, a partir de então, passa a ser islamizado. O segundo capítulo também aborda um confronto que opõe cristãos e muçulmanos que, segundo José Rivair Macedo, foi uma das batalhas que contribuíram para a definição de territórios da Península. Diferentemente da Batalha do Guadalete, a Batalha de Las Navas de Tolosa findou com a vitória dos cristãos ibéricos, com o recuo dos muçulmanos e com a aceleração do processo de hegemonia dos reinos cristãos peninsulares. Tal vitória nessa batalha foi, portanto, a consagração da Reconquista. Assim, compreende-se que a Batalha de Las Navas de Tolosa insere-se num processo de amplos embates políticos e militares cujos objetivos eram a ampliação da fronteira cristã face ao domínio dos muçulmanos que eram retratados como demônios nas canções de gesta, mas, como aponta o autor, nem sempre foram tratados com rejeição. As relações entre cristãos e mouros oscilavam entre a animosidade, a concorrência e a aliança. Sobre a narrativa da batalha, o autor aponta que nas crônicas muçulmanas o evento é minorizado, ou ainda, silenciado, o que possibilita a análise das diferentes perspectivas de memória a que esses eventos estão sujeitos, assim como a variações dos indivíduos idealizados na sua descrição, conforme o foco narrativo do cronista. Assim, é possível visualizar elementos ideológicos que convergem para a cristalização dos ideais da Cristandade, conferindo à batalha uma dimensão sagrada, concomitante com a ideologia da Reconquista que, entre outros valores, transmitia a ideia da ilegitimidade da religião e do poder islâmico. A análise do relato da batalha também é o viés escolhido por Fátima Regina Fernandes que no terceiro capítulo aborda a Batalha do Salado ou, mais especificamente, a utilização do relato da batalha enquanto um instrumento ideológico. A autora dialoga com o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, com a Crônica Geral de Espanha e com a Crônica de D. Afonso IV para analisar as diversas formas de apreensão que a batalha recebe nas diferentes fontes. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 195 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Assim, no Livro de Linhagens é possível verificar, segundo a autora, a construção do perfil do vassalo ideal, personificado em Álvaro Gonçalves Pereira, além de justificar e legitimar a ação dos monges-guerreiros como modelos, uma vez que estes seriam imprescindíveis para a defesa do reino. Por sua vez, a Crônica Geral de Espanha, escrita logo após o Livro de Linhagens, num momento de exílio imposto ao conde D. Pedro por seu irmão, D. Afonso IV, é possível verificar o lado castelhano da batalha, mais especificamente os preparativos de Castela para o embate, além de apontar as negociações de apoio do rei português ao castelhano. Já a Crônica de D. Afonso IV, contida na Crônica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, sem autoria reconhecida, é escrita no século XV, quando os atores do evento já não existem mais. Dessa forma, o relato da batalha é menos detalhado, mas dá ênfase à ideia de uma guerra justa, sendo que a guerra justa é a do rei. Só ao rei caberia o poder de deflagrar ou encerrar uma guerra justa. Diante disso, a autora consegue visualizar nas fontes diferentes formas de narrativa sobre a batalha que seguem um objetivo específico, ou seja, cada uma tem um foco, uma intenção ideológica concomitante com a necessidade de legitimação de um único personagem, como o rei, ou um grupo específico, a nobreza que é destacada na Crônica Geral de Espanha a partir da sua importância enquanto apoio do rei. Dessa forma percebe-se que a narrativa é um tema extremamente frutífero para a discussão histórica, visto as conexões que elas promovem entre o passado e suas reutilizações. É nessa perspectiva que se desenvolve o quarto capítulo, o qual aborda a evocação da Batalha de Aljubarrota. Marcella Lopes Guimarães compreende a evocação de Aljubarrota como uma forma de não só dialogar com a atual reflexão historiográfica, mas também como forma de analisar a cultura portuguesa com a qual se relaciona e pela qual é retomada e ressignificada. É possível verificar, segundo a autora, que a retomada desta batalha está inserida num contexto de afirmação da identidade portuguesa como um país europeu, frente a sua inserção na comunidade cultural europeia. Diante disso, a autora salienta que as fontes devem ser analisadas para além do registro dos acontecimentos, abordando não só o sentido da batalha, mas também o sentido da sua lembrança. Para tanto, a autora utiliza quatro crônicas, escritas por Pero Lopez de Ayala, Fernão Lopes, Jean Froissart e a Crônica do Condestabre. Cada uma dessas crônicas tem um foco distinto que se relaciona a um objetivo determinado e diferente das demais. Assim, no que diz respeito à primeira crônica, Ayala, castelhano, define D. João como um aventureiro que se Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 196 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 chamava rei de Portugal. O Mestre de Avis também ganha destaque na crônica de Froissart, o qual deixa claro que Aljubarrota é a prova de D. João. A crônica de Fernão Lopes nos oferece um diferente viés. Escrevendo posteriormente à batalha, Lopes compõe uma obra que celebra a nova dinastia, batizada na batalha. “Diferentemente de Ayala ou Froissart, Fernão Lopes interpreta os eventos que narra via providencialismo, pintando o Mestre de Avis com as cores de um messias [...].” (p.142). Como a autora salienta, a escrita de Lopes é coerente com o contexto da qual emerge, no qual as correntes messiânicas estão presentes, diferente do contexto de Ayala e Froissart. Por sua vez, a Crônica do Condestabre, diferente das acima citadas, não é uma crônica régia, mas uma crônica biográfica senhorial. Diante disso, é possível deduzir que seu foco não será a exaltação dos feitos do rei, mas sim de um homem de armas. Nesta crônica o cavaleiro é protagonista e ela é escrita para que seus feitos não sejam esquecidos. Apesar dos diferentes matizes pelos quais a Batalha de Aljubarrota é abordada nas crônicas, o fato é que podemos identificar um objetivo comum na sua escrita: a da lembrança. Lembrança não necessariamente do evento em si, mas de uma excepcionalidade, a do rei ou a do cavaleiro, que deverão ser rememoradas como um exemplo. Desta feita, podemos compreender que as batalhas ou os feitos jacentes a elas são utilizadas como monumentos de memória e também de simbolismo. Segundo Daniel Augusto Arpelau Orta1, “a concepção de escrita da História na sociedade portuguesa do século XV parece ter sido a eleição de temas considerados notáveis para a configuração política e exaltação de qualidades morais”. (p.160) Tal perspectiva parece coerente com a abordagem das fontes pertinentes às batalhas ibéricas, assim como também o é para a análise perpetrada por Orta em torno da Tomada de Ceuta, cujos estudos modernos dão a esse evento a monumentalidade de uma mudança de eras: com ela a Idade Média é superada pela Modernidade. Diante disso, o próprio passado torna-se monumental e como tal é resgatado, sobretudo quando se busca fundamentar uma identidade através de primazias econômicas e de conquistas. No que diz respeito às fontes, o autor aponta para o caráter ideológico da sua escrita. No Livro dos Arautos, de autoria desconhecida, D. João teve a intenção de atacar Ceuta para diminuir a ajuda africana ao reino de Granada. Porém, para o cronista Gomes Eanes de Zurara, 1 Daniel era Doutorando em História na UFPR e veio a falecer em junho de 2013. Em abril de 2014 recebeu do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR o título de Doutor post-mortem. A Revista Diálogos Mediterrânicos, vinculada ao Nemed, um dos grupos de pesquisa do curso de História da UFPR, do qual Daniel fazia parte, lhe dedicou seu quarto volume. Vide: http://www.dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM/article/view/78/85. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 197 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 a escolha de Ceuta resulta da paz com Castela e da possibilidade de atacar Granada. As fontes, portanto, mostram-se diferentes ao apontarem a intenção régia diante do embate. Por sua vez, Mateus de Pisano, proveniente da Península Itálica, escreve o Livro da Guerra de Ceuta dez anos após Zurara, o que o coloca numa situação de possível leitura deste, com o objetivo de divulgação da obra e do evento às demais regiões do continente através do latim. Percebe-se, portanto, que em todos os capítulos do livro os autores se preocuparam em analisar as diferenças de narrativa que as fontes oferecem de um mesmo evento. Dessa maneira, a obra insere-se num debate profícuo sobre o estudo de batalhas e narrativas que por certo período foi rechaçado e condenado. Na verdade, a proposta desta produção não é a análise do evento em si, mas suscitar a reflexão sobre a complexidade na qual esse evento está inserido e a complexidade também dos seus discursos que nunca são neutros. As narrativas não são simples narrativas, mas revelam, como podemos verificar, formas de divulgação de valores morais, de conduta e de legitimidade. Em algumas das fontes analisadas podemos verificar, inclusive, o explícito desejo de que o passado seja relembrado. E, de fato, ele é relembrado como forma de legitimar, identificar, ou ainda, restituir uma identidade seja nos séculos do medievo ou da atualidade. Dessa forma, além de explicitar a importância histórica do estudo das batalhas e narrativas, os autores também situam o papel do historiador que, além de estudar o passado, também percebe como este é utilizado no presente. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 198 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 DOCUMENTOS HISTÓRICOS & TRADUÇÕES Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 199 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Bulas Inquisitoriais: Ad Extirpanda (1252)* Inquisitorial Bulls: Ad Extirpanda (1252) Leandro Duarte Rust** Universidade Federal de Mato Grosso Resumo Abstract Neste trabalho apresentamos uma tradução bilíngue, latim-português, de um importante documento medieval, a bula Ad extirpanda (1252). Usualmente qualificada como um dos “textos fundadores da Inquisição”, essa bula é um documento valioso do cenário político de meados do século XIII. A tradução, inédita em língua portuguesa, é acompanhada de breve texto introdutório. We present here an important medieval document, the papal bull Ad extirpanda (1252), in a bilingual translation, Latin-Portuguese. Usually described as one of “the founding texts of the Inquisition”, that bull recorded the political scene at the middle of the 13th century. Unpublished in Portuguese, the translation comes to public with a brief introductory text. Palavras-chave: Documentos Medievais; Bulas Inquisitoriais; História Política. Keywords: Medieval Documents; Inquisitorial Bulls; Political History. ● Enviado em: 19/07/2014 ● Aprovado em: 31/10/2014 * ** Prezado leitor: todas as citações que emergem no texto desacompanhadas de referências integram o documento traduzido ao final. Agradeço ao professor José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza pela paciente revisão desta tradução documental e a Carolina Akie Ochiai Seixas Lima pela leitura final do texto. Graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2002), Mestre em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2005), Doutor em História Social (setor História Medieval) pela Universidade Federal Fluminense (2010); Pós-Doutor em História pela Universidade de São Paulo (2012). Pesquisador-fundador do "Vivarium - Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo" e professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, na Universidade Federal de Mato Grosso. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 200 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Prólogo O sol estava quase a pino, banhando o dia com uma claridade quente e ofuscante, quando a voz finalmente surgiu. Ela ecoou vagarosa, longínqua, como o sussurro de uma árvore, pois ventava muito na floresta de Barlassina. Era o sinal pelo qual Alberto e Carino esperavam há horas. Ambos fizeram silêncio. Suspenderam a respiração e menearam as cabeças para ouvir com atenção. O som chegou fosco, sem contornos claros, misturado com o farfalhar da folhagem. Porém, foi o bastante. Eles se entreolharam e viram no rosto do outro a mesma certeza: era a voz do inquisidor. Ele vinha pela estrada, tagarelando aos ouvidos de um acompanhante enquanto caminhava naquela direção. Com o coração disparado e os olhos esbugalhados pelo nervosismo, Alberto perguntou ao companheiro como agiriam. A resposta o fez estremecer. Embora participasse da emboscada, não estava preparado para ouvir que ele atacaria o inquisidor. A notícia percorreu sua espinha como um calafrio. Sua mente então começou a formigar: como seria depois? O que seria dele quando os dois fossem capturados e todos descobrissem quem atacou o homem forte do papa?1 Pois isto era certo: eles não escapariam. Um ato como o que estavam prestes a cometer não ficaria impune. Eles seriam caçados, capturados e entregues a um julgamento implacável. Enquanto o suor molhava as palmas das mãos, a imaginação de Alberto foi encharcada pelo medo de ser torturado, decapitado e ter seu corpo exposto como uma carcaça infame. Ele entrou em pânico. Largou o falcastrum – uma longa faca curva usada na poda de árvores – e se pôs a correr. Embora surpreendido pela deserção, Carino reagiu com uma calma glacial. Baixou os olhos e apanhou o falcastrum. Deu uma longa tragada no ar quente, ergueu um olhar fixo para a borda da floresta e esperou. Enquanto aguardou, imobilizado pelo silêncio de caçador, repetiu para si mesmo: mataria o inquisidor sozinho. Era sábado. Quase meio-dia. Pedro, um célebre inquisidor, viajava a pé com Domenico, seu irmão na ordem religiosa fundada por São Domingos. Retornavam de Como, cidade onde 1 O inquisidor em questão havia sido designado diretamente pelo papa Inocêncio IV para atuar na Lombardia, notadamente nas regiões de Cremona e Milão: RIPOLL, Thomas (Ed.). Bullarium Ordinis ff. Praedicatorum. Roma: Typ. Hieronymi Mainardi, 1729, tomus I, p. 192 [Daqui em diante, nos referiremos a esta coletânea documental através da sigla BOP]. Ver ainda: BENEDETTI, Marina. Inquisitori a Milano dalla metà del XIII secolo. ACME: Annali della facoltà di lettere e filosofia dell’Università degli Studi di Milano, vol. 58, fasc. 3, 2005, 175-238 (Disponível em: http://dialnet. unirioja.es/servlet/revista?codigo=9431); PRUDLO, Donald. The Martyred Inquisitor: the life and cult of Peter of Verona (†1252). Aldershot: Ashgate Publ., 2008, p. 5-70; SULLIVAN, Karen. The Inner Lives of Medieval Inquisitors. Chicago: University of Chicago Press, 2011, p. 99-124. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 201 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Pedro pelejava com as responsabilidades de prior dos dominicanos da localidade. 2 Era uma rota habitual. Há meses, quando encontrava uma pequena trégua no combate à heresia ou por ocasião de alguma festividade, o inquisidor deslocava-se por aquela estrada para instruir, edificar, investigar e punir a comunidade confiada à sua autoridade. Por isso ele caminhava sossegado quando Carino irrompeu de trás das árvores, como uma aparição medonha. De arma em punho, o agressor avançou sobre o inquisidor. Foi certeiro, como um bote. Alertado pelo susto, Pedro anteviu o primeiro golpe. Ergueu os braços e impediu que a lâmina descesse sobre sua cabeça. Não foi suficiente. Comparado a uma espada, o falcastrum era um instrumento rude, pouco afiado. Usá-lo como arma requeria mais dos músculos que da destreza. Mas, no momento fatal, a ferramenta rudimentar se revelou vantajosa. A força aplicada sobre o ataque foi descomunal e colocou Pedro de joelhos. Antes mesmo que ele tomasse consciência do ferimento no braço, outro golpe o atingiu no ombro e o abateu. Domenico mal teve chance de reagir. Com o alvo derrubado, Carino aprumou o corpo e deu dois passos largos na direção do dominicano. Bramiu o falcastrum e o fez trovejar sobre a segunda vítima. Enquanto o atacante desferia os golpes brutais sobre seu companheiro de viagem, Pedro, já sentindo o calor deixando o corpo juntamente com o sangue que tingia o chão, balbuciou no ouvido da morte: in manus tuas, Domine, comendo spiritum meum (“em tuas mãos, Senhor, entrego meu espírito”). Após derrubar Domenico, Carino se virou. Retornou ao alvo. Agachou-se sobre o ferido. Impassível, sem desviar o olhar um instante sequer, começou a rasgá-lo, abrindo feridas em várias partes do corpo. Por fim, Carino esmagou a cabeça do inquisidor.3 Tensões sociais e disputas pela autoridade No dia 6 de abril de 1252, o inquisidor Pedro de Verona (1206-1252) foi assassinado. Para o historiador, essa morte é um episódio emblemático. O assassinato conferiu uma trágica visibilidade aos muitos reveses sofridos pelo combate às heresias no norte da península 2 3 DONDAINE, Antoine. Saint Pierre Martyr: Études. Archivum Fratrum Praedicatorum, vol. 23, 1953, p. 69107; MERLO, Giovanni Grado. “Pietro da Verona, Pietro Martire: difficoltà e proposte per lo studio di un inquisitore beatificato”. In: BOESCH-GAJANO, Sofia & SEBASTIANI, Lucia (Dir.). Culti dei santi, istituzioni e classi sociali in età pre-industriale. Roma: L’Aquila, 1984, p. 471-488; VAUCHEZ, André. “Pierre martyr”. In: Histoire des saints et de la sainteté chrétienne. Paris: Hachette, 1986, tomo 6, p. 224-228. A versão narrativa deste prólogo foi fundamentada sobre as seguintes bases documentais: BALME, François (Ed.). Lettre de frère Roderic de Atencia a Saint-Raymond de Pennafort sur le martyre de S. Pierre de Vérone, de l Ordre des Frères-Pr cheurs: document inedit (annee 1252). Paris: X. Jevain, 1886, 22 p.; AMBROGIO TAEGIO. Vita Sancti Petri Martyris Ordinis Praedicatorum. Acta Sanctorum, vol. 12, p. 705706. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 202 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 italiana. Durante os anos 1240, as ações inquisitoriais enfrentaram diversos obstáculos. Em primeiro lugar estava o acirrado conflito entre o papa Inocêncio IV (1195-1254) e o imperador Frederico II (1194-1250). Tratava-se de uma disputa herdada. Quando a coroa pontifícia foi colocada sobre a cabeça de Inocêncio, ele pôde sentir o peso da obrigação deixada por seus antecessores. Ele devia levar o governante a responder por numerosas denúncias. As queixas contra o imperador se empilhavam no interior da Cúria. Frederico era acusado de violar a liberdade da Igreja, perseguir os membros do clero, atentar contra a autoridade espiritual, invadir os territórios papais, descumprir os votos de cruzado.4 Enquanto a Igreja romana calculava as penas espirituais cabíveis, Frederico contra-atacava. Agentes imperiais se espalharam pela península, imiscuindo-se nos assuntos dos governos locais como um enxame de vozes influentes. Interferindo nos concelhos urbanos ou ocupando os títulos de nobreza, os partidários de Frederico estimularam a oposição ao papa. Mas o cenário era confuso. Em muitas cidades o nome Hohenstaufen – carregado pela linhagem imperial – era pronunciado com ódio entre os lábios. As lembranças das invasões, dos cercos e das humilhações impostas pela família reinante desde o século XII eram feridas profundas e ainda abertas nas consciências citadinas.5 Empurradas para a encruzilhada de interesses papais e imperiais, muitas cidades tornaram-se palco de drásticas alternâncias entre os grupos no poder. As revoltas se multiplicaram. O espectro da insurreição se alastrou e pairou sobre a própria Roma. Vendo-se em uma situação insustentável, Inocêncio partiu em busca de refúgio na Gália. Lá, em julho de 1245, diante de um concílio reunido na cidade de Lyon, ele condenou Frederico, afirmando: desgraçados os que acatassem as ordens do imperador, pois ninguém poderia obedecer a um 4 5 Ver: ABULAFIA, David. Frederick II: a medieval emperor. Oxford: Oxford University Press, 1988, p. 375438; BERTRAM, Martin. “Gregorio IX, Innocenzo IV e Federico II. Tre legislatori a confronto”. In: ROMANO, Andrea (Org.). “...colendo iustitiam et iura condendo...”. Federico II, legislatore del Regno di Sicilia nell'Europa del Duecento: per una storia comparata delle codificazioni (Atti del convegno internazionale). Roma: Edizioni De Luca, 1997, p. 11-27; BRESSLER, Richard. Frederick II: the wonder of the World. Yardley: Westholme Pub., 2010; KANTOROWICZ, Ernst. Frederick the Second: 1194-1250. Londres: Constable & Co., 1957, p. 441-518. A.A.V.V. Popolo e Stato in Italia nell'età di Federico Barbarossa: Alessandria e la Lega lombarda. Relazioni e communicazioni al XXXIII Congresso storico subalpino. Alessandria 6-9 ott. 1968. Torino: Deputazione Subalpina di Storia Patria, 1970; GUYOT-JEANNIN, Olivier. I podestà imperiali nell'italia centrosettentrionale (1237-1250). Palermo: Sellerio, 1995; RACCAGNI, Gian Luca. Tra Lega Lombarda e pars Ecclesie. L’evoluzione della seconda Lega Lombarda e la leadership dei legati papali negli anni a cavallo della morte di Federico II (1239-1259). Società e Storia, n. 136, 2012, p. 249-275; STARN, Randolph. Contrary Commonwealth: The Theme of Exile in Medieval and Renaissance Italy. Berkeley: University of California Press, 1982, p. 31-59. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 203 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 homem degenerado, “de costumes sarracenos”, um “herege” obstinado,6 o “anticristo” em pessoa. A condenação não foi um triunfo, tampouco fez os conflitos cessarem. A península seguiu fervilhando em tensões e conflitos, que se renovavam à medida que as elites locais se declaravam guelfas – aliadas ao papa – ou gibelinas – leais ao imperador. Em localidades da Lombardia e na Toscana, sobretudo nas grandes cidades como Florença, certos círculos poderosos pareciam preferir a influência do imperador. Afinal, era melhor lidar com um governante cujo palácio estava fincado na distante terra da Sicília do que com o papa, cujas reivindicações de submissão universal ecoavam de perto, do próprio coração da península. 7 As ausências de um suserano remoto poderiam ser mais facilmente convertidas em brechas para a autonomia e o autogoverno. Quer tenham embarcado em tal cálculo político ou porque temiam novas derrotas pelas mãos dos agentes e parentes imperiais, muitos magistrados demonstravam crescente hostilidade a tudo que chegava de Roma. Esse cenário de dissidência abriu espaço para a instalação de grupos então reprimidos pelo papado, como foi o caso dos cátaros.8 Desde o final da década de 1230, quando as principais fortalezas do Languedoc sucumbiram ao domínio dos guerreiros convocados pelo papado para erradicar o mal daquela região infestada de heresia, muitos simpatizantes e acusados de catarismo migraram para o norte da península italiana. Eles se deslocaram atraídos pela notícia de que encontrariam abrigo sob a oposição política que os governos citadinos ofereciam à autoridade apostólica. 6 7 8 MANSI, Giovanni Dominico (Ed.). Sacrorum Conciliorum Nova et Amplissima Collectio. Veneza: Antonio Zatta, 1798, tomo 23, col. 613-619. Ver igualmente: POUZET, Philippe. Le pape Innocent IV à Lyon. Le concile de 1245. Revue d'Histoire de l'Église de France, vol. 15, n. 68, 1929, p. 281-318 (Disponível através do portal: http://www.persee.fr/); WOLTER, Hans & HOLSTEIN, Henri. Lyon I et Lyon II. Paris: Éditions de l’Orante, 1966. PRUDLO, Donald, The Martyred Inquisitor… op. cit., p. 39-40. Como lembrou Lorenzo Paolini, durante muito tempo os historiadores evitaram o termo “catarismo” quando tratavam da história da península italiana durante o século XIII. A rejeição era justificada pelo fato da palavra induzir a uma série de imprecisões metodológicas. Neste caso, falava mais alto a constatação de que o emprego de “catarismo” levava o pesquisador a reproduzir generalizações historiográficas, as quais, por sua vez, perpetuavam os efeitos ideológicos e os discursos pretendidos pelas fontes eclesiásticas medievais. No entanto, a pertinência dessa revisão conceitual não implica descartar o termo. Aqui, o empregamos com base na seguinte definição: catarismo consistiu em um movimento religioso caracterizado pela combinação de (1) visões de mundo dominadas por elementos dualistas, (2) atividade missionária itinerante, (3) diferentes formas de piedade laica, (4) formalizações teológicas singulares (5) oposição à hegemonia eclesiástica vigente através da mobilização da cultura escrita e de extratos da elite letrada. Trata-se, por conseguinte, de um movimento religioso multifacetado, socialmente diversificado e com significativas variações locais, que, ainda assim, possui aspectos comuns e recorrentes. PAOLNI, Lorenzo. “Italian Catharism and written culture”. In: BILLER, Peter & HUDSON, Anne (Ed.). Heresy and literacy (1000-1530). Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 83-103. Ver ainda: MERLO, Grado Giovanni. Eretici del medioevo: temi e paradossi di storia e storiografia. Brescia: Morcellaina, 2001; TAYLOR, Faye. “Catharism and heresy in Milan”. In: ROACH, Andrew & SIMPSON, James (Ed.). Heresy and the Making of European Culture: medieval and modern perspectives. Aldershot: Ashgate Publ., 2013, p. 383-402. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 204 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Ali, dentro das muralhas urbanas, estariam a salvo dos inquisidores recrutados pelo pontífice. Em poucos anos, a tolerância aos hereges ganhou corpo. Suas pregações podiam ser ouvidas nas praças; suas reuniões eram comentadas nas ruas. Sua presença entre a população citadina tornou-se mais explícita, pública, incluindo as elites. Dizia-se que figuras abastadas de Florença, Milão, Gênova e Como se tornaram credentes. Isto é, embora não imitassem o modo de vida dos líderes heréticos, muitos nobres teriam abraçado ideias condenadas pela Igreja romana.9 Por mais que o papado se mobilizasse, as elites obstinavam-se na oposição. E a mobilização era crescente. Em junho de 1247, Inocêncio atribuiu ao frade Giovanni de Vicenza (1200?-1265?) a função de inquisidor da Lombardia. Giovanni era uma aposta alta. Carismático, teatral, precedido pela fama de milagreiro, o novo inquisidor preferia persuadir a punir, pacificar a reprimir. Ele era um pregador habilidoso, que há quinze anos arrebatava multidões.10 Em junho de 1251, encorajado pela morte do imperador Frederico, o pontífice passou à ofensiva. Como as estratégias de persuasão não produziam os efeitos esperados, novos inquisidores foram destacados para “caçar os hereges”. Foi então que Pedro de Verona e Viviano de Bergamo (?-?) receberam suas missões na Lombardia. Em primeiro lugar, eles deveriam se dirigir a Cremona, considerada pelo papado um covil de incrédulos; depois foram imbuídos de extirpar a “peste herética” em Milão.11 Os meses se revezavam e com o passar do tempo outros frades dominicanos foram despachados para as regiões da Lombardia, de Veneza e da Marca Trevisana, onde deveriam encurralar os suspeitos de renegar a fé católica e seus protetores, ministrando a justiça divina contra o “contágio dos culpados pela depravação herética”.12 Em Roma, o clero acreditava que a desobediência era uma infestação que se espalhava rapidamente. As ações punitivas deveriam seguir o mesmo ritmo, agora que Frederico, o grande antagonista, havia saído de cena. 9 10 11 12 ANDREWS, Francis; PINCELLI, Maria Agata (Ed.). Churchmen and Urban Government in Late Medieval Italy, c.1200-c.1450: Cases and contexts. Cambridge: Cambridge University Press, 2013; DAMERON, George Williamson. Episcopal Power and Florentine Society, 1000-1320. Cambridge: Harvard University Press, 1991; GIVEN, James Buchanan. Inquisition and Medieval Society: Power, Discipline, and Resistance in Languedoc. Ithaca: Cornell University Press, 1997, p. 104. Sobre a designação de Giovanni de Vicenza: BOP, vol. I, p. 174-175. Sobre as pregações do frade dominicano e sua habilidade retórica: GERARDO MAURÍSIO. Cronica Dominorum Ecelini et Alberici fratrum de Romano (aa. 1183-1237). Ed. Giovanni Soranzo. In: MURATORI, Ludovico (Ed.). Rerum Italicarum Scriptores. Città di Castello: Casa editrice S. Lapi, 1914, tomo 8, pt. 4, p. 31-34; THOMPSON, Augustine. Revival Preachers and Politics in Thirteenth-Century Italy: the Great Devotion of 1233. Oxford: Clarendon Press, 1992; VAUCHEZ, André. Une campagne de pacification en Lombardie autour de 1233. In: Mélanges d'Archéologie et d'Histoire de l'École Française de Rome, t. 78, 1966, p. 503-549. BOP, vol. I, p. 192-193, BERGER, Elie (Ed.). Les Registres d’Innocence IV: publiés ou analysés d’aprés les manuscrits originaux du Vatican et de la Bibliothéque Nationale. Paris: Librarie Thorin & Fils, 1897, t. III, n. 5345. Ver ainda: TILATTI, Andrea. Eretici in friuli nel duecento? Ce Fastu? Rivista della Società filologica friulana, vol. 73, n. 1, 1997, p. 45-70. BOP, vol. I, p. 199-200. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 205 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Mas consumar a vitória inquisitorial permanecia um feito distante, negado ao papado pelas fortes tensões sociais. Anos antes, a própria Igreja acusara os cátaros de incendiar um convento em Viterbo.13 Talvez a denúncia fosse um exagero, uma forma de engrandecer um inimigo e justificar o apelo a ações mais duras. Uma força maléfica capaz de tal ataque só seria combatida com medidas severas, extremas. O remédio deveria estar à altura da doença. Seja como for, retórica ou literal, a incriminação registrou algo notável: a Igreja de Roma acreditava que sua autoridade era afrontada, desafiada à luz do dia por dissidentes. Provavelmente esse temor era alimentado pelas notícias que chegavam à Cúria, dando conta de armadilhas preparadas contra os homens encarregados de aplicar a justiça inquisitorial. Em 1239, um grupo de cátaros irrompeu pelas portas do convento dominicano em Orvieto e investiu contra os frades com espadas à mão. Seu objetivo era matar o inquisidor Ruggiero Calcagni (1200?-1274?), que mal escapou com vida. Por um triz o homem escolhido por Gregório IX (1160-1241) para organizar os tribunais inquisitoriais de Orvieto e Florença não terminou esfolado por um herege. O episódio ganhou imenso vulto e suas repercussões pareciam não ter fim. Dez anos depois, os rumores sobre o ataque ainda zuniam sobre a paisagem do norte peninsular: Ruggiero seguia no encalço de seus algozes, denunciando-os e submetendo-os a interrogatório. Aos olhos do inquisidor o crime jamais prescreveria 14. O ataque a Pedro de Verona, portanto, não foi um acontecimento excepcional. Talvez nosso hábito romântico de conceber as heresias como “religiosidades populares” nos embarace diante do fato do assassinato ter sido planejado por nobres milaneses, figuras da elite rodeadas pela fama de notórios credentes: Stefano Confanonerio, Guidoto de Sachella, Jacobo della Clusa.15 O círculo de conspiradores se fechou com a contratação daqueles que deveriam fazer Pedro Verona sangrar: Manfredo Chrono, Carino da Balsamo e Albertino Porro.16 Desses últimos, dois compareceram ao local da ação. Somente um levou o plano adiante. A maquinação contra o inquisidor não parece ter sido o revide de uma espiritualidade popular acuada por instituições eclesiásticas. Foi uma ação deflagrada por altas esferas de poder. Neste caso, o historiador poderia cogitar a hipótese de uma instrumentalização política 13 14 15 16 FUMI, Luigi. I Paterini in Orvieto Archivio storico italiano, series 3, vol. 22, 1892, p. 64; PRUDLO, Donald, The Martyred Inquisitor… op. cit., p. 40. LANSING, Carol. Power and purity: cathar heresy in medieval Italy. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 57. AMES, Christine Caldwell. Peter Martyr: the inquisitor as saint. Comitatus: a Journal of Medieval and Renaissance Studies, vol. 31, n. 1., 2000, p. 137-174; AMES, Christine Caldwell. Righteous Persecution: Inquisition, Dominicans, and Christianity in the Middle Ages. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2009, p. 62. PRUDLO, Donald. The assassin-saint: the life and cult of Carino of Balsamo. The Catholic Historical Review, vol. 94, 2008, p. 1-21. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 206 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 da luta herética, raciocínio que a converteria em um meio para a defesa de certas posições no governo citadino.17 Porém, não nos deixemos hipnotizar por desventuras pessoais. A morte de Pedro de Verona expressa muito mais que tragédias individuais. Ela condensa as tensões sociais da pujante sociedade urbana do século XIII. Explicá-la é uma tarefa que implica compreender rivalidades aristocráticas multifacetadas, disputas que tinham na oposição “guelfos versus gibelinos” apenas uma de suas muitas modalidade de expressão. A designação de um inquisidor movia uma importante peça no complexo tabuleiro de xadrez da política urbana. As poderosas famílias deveriam lidar com o homem cerimoniosamente enviado pelo papa para caçar os hereges. A postura assumida pelas linhagens afetava sua posição de poder. Aliar-se ou opor-se ao recém-chegado era uma decisão importante, muitas vezes crucial, pois poderia fortalecer ou estremecer algumas colunas que sustentavam a influência de uma estirpe sobre o governo local. O modo de se relacionar com o novo juiz poderia reabrir a disputa pela habilidade de apelar à tradição católica, pela possibilidade de abrigar os interesses sob a proteção das normas eclesiásticas ou ainda por ostentar a marca da boa fé para os patrimônios familiares. 18 E mais. Aproximar-se ou distanciar-se do inquisidor era algo que calava fundo nos corações e mentes do popolo minuto. A expressão nomeia uma multidão de homens e mulheres pobres, mas juridicamente livres; iletrados, entretanto, politicamente ativos. Tratava-se dos grupos sociais mais expostos ao sobe-e-desce da prosperidade e das crises urbanas e que, por isso, gangorreavam sobre a linha divisória entre a miséria e a chance de trabalhar nas oficinas ou corporações. 17 18 Sobre as controvérsias e temas historiográficos desta perspectiva, ver: SIMPSON, James & ROACH, Andrew (Ed.). Heresy and the Making of European Culture: Medieval and Modern Perspectives. Leiden: Ashgate Publishing, 2013. Não se trata, aqui, de retornar ao modelo explicativo criado pela historiografia do século XIX. Nele, as cidades do norte italiano eram apresentadas como nichos da heterodoxia, verdadeiros redutos do pensamento herético. Tracejada numa época de anticlericalismo nacionalista, esta perspectiva fixava a imagem de que as concepções de poder existentes à época eram incompatíveis com o processo de urbanização da península que, por assim dizer, teria produzido novas formas de consciência coletiva. A conclusão, sob este prisma, se impõe: um dos principais indicadores históricos de que as cidades italianas não tinham lugar na velha ordem social encimada pelo Imperador e pelo Papado estaria no fato de abrigarem uma consciência religiosa nova que, alheia e oposta àquela defendida pelos poderes universais, foi condenada como “herética”. A perspectiva que adotamos neste texto é outra: as formas de expressão e crenças chamadas heréticas permeavam os conflitos aristocráticos travados dentro da cidade. Não vislumbramos, por conseguinte, “uma nova consciência religiosa coletiva” ou uma “identidade religiosa comunitária”; mas um quadro mais indefinido, complexo e contraditório: o de práticas religiosas segmentadas, imbuídas nas disputas nobiliárquicas. Ver: BRUSCHI, Caterina. Familia inquisitionis: a study on the inquisitors’ entourage (XIII-XIV centuries). Mélanges de l’École française de Rome - Moyen Âge, vol. 125, n.2, 2013 ( Disponível em: http://mefrm.revues.org/1519); LASING, Carol. Passion and Order: Restraint of Grief in the Medieval Italian Communes. Ithaca: Cornell University Press, 2008. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 207 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Para essas pessoas, a voz de um homem da Igreja tinha grande peso. Não que o popolo fosse um rebanho dócil, já domesticado pela autoridade eclesial. Numeroso, ele abrangia parcelas sociais muito diferentes, mas sempre irrequietas, castigadas por taxações e propensas a estourar em revoltas e insurreições. 19 Essa multidão encontrava na religião publicamente praticada o centro nervoso de suas identidades. As festividades que celebravam a coesão comunitária, as edificações e os cultos consagrados à cidade, os rituais e as práticas que reforçavam a solidariedade e a proteção coletivas: tudo isto tocava no cerne dos diversos interesses abrigados no interior do popolo. Portanto, acolher ou rechaçar o inquisidor eram opções a ser levadas em conta segundo as reações desses grupos. A morte de Pedro de Verona pode indicar que uma parcela da elite milanesa via o popolo como uma ovelha religiosa desgarrada do rebanho controlado pelo papa e seus pastores dominicanos. Talvez os conspiradores esperassem ser acolhidos como protetores da cidade e, por isso, foram adiante.20 Há muito mais a ser mencionado. As missões inquisitoriais colocavam a Igreja em um face a face com diversas transformações sociais. Entretanto, nas décadas que antecederam o assassinato na floresta de Barlassina, as missões reiteradamente saíram em desvantagem desta acareação. Como afirmou Donald Prudlo, Roma liderava: “many uncoordinated efforts tried to root the Cathars out, some communal, some episcopal, and still others papal. These were disconnected however and failed to expose the heretical presence, much less eradicate it”21. Os fracassos da ação inquisitorial atingiram um clímax com o assassinato de Pedro de Verona. Por este motivo, a notícia do atentado aparentemente foi recebida pelo papado e a nascente ordem dos dominicanos como a evidência que faltava para confirmar a suspeita: eles viviam uma época de perseguição da fé católica. Era preciso revidar. 19 20 21 CASAGRANDE, Giovanna. “Religious in the service of the commune: the case of thirteenth- and fourteenth-century Perugia”. In: ANDREWS, Francis (Ed.). Churchmen and Urban Government in Late Medieval Italy, c.1200–c.1450: cases and contexts. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 181200; COHN JR., Samuel Kline. Lust for Liberty: the politics of social revolt in Medieval Europe, 1200-1425. Cambridge/London: Harvard University Press, 2008; HENDERSON, John. Piety and charity in late medieval Florence. Oxford: Clarendon Press, 1994; NAJEMY, John M. A History of Florence 1200-1575. Oxford: Blackwell Publishing, 2006, p. 35-95; POLONI, Alma. Il commune di popolo e le sue istituzione tra Due e Trecento. Alcune riflessioni a partire dalla storiografia dell’ultimo quindicennio. Reti Medievali Rivista, n. 13, vol. 1, 2012, p. 1-25. KAEPPELI, Thomas. Une somme contre les hérétiques de S. Pierre Martyr (?). Archivum Fratrum Praedicatorum, vol. 17, 1947, p. 295-335. Há discordância acerca dessa afirmação, ver: WATERS, W.G. The five italian shires: an account of the monumental tombs of S. Augustine at Pavia, S. Dominic at Bologna, S. Peter Martyr at Milan, S. Donato at Arezzo and of Orcagna’s Tabernacolo at Florence. Londres: John Murray, 1906, p. 103-107. Sobre as divergências das interpretações oitocentistas, são igualmente representativos: CANTÚ, Cesare. Les hérétique d'Italie. Paris: Librarie Saint-Germain-desPrés, 1869, vol.1, p. 203-207; PERRENS, F.-T. Saint Pierre martyr et l'hérésie des patarins à Florence. Revue Historique, t. 2, fasc. 2, 1876, pp. 337-366. PRUDLO, Donald, The Martyred Inquisitor… op. cit., p. 40. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 208 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 O primeiro contragolpe sobre a chamada audácia herética teria sido perpetrado diretamente dos céus. Deus decidiu intervir sobre os rumos da guerra espiritual – apregoavam os aliados papais. Sua versão dos acontecimentos dizia o que segue. Tão logo os frades resgataram o corpo de Pedro e o sepultaram em um sarcófago de mármore na Igreja de São Simpliciano, notícias de milagres começaram a fermentar pelas ruas de Milão. A morte não impedira o inquisidor de travar o combate contra as heresias. Intercedendo do além, da “feliz pátria para a qual havia retornado o peregrino celestial”,22 ele curava enfermos desacreditados e libertava pobres criaturas possuídas pelo diabo. Já na noite do sepultamento, os restos mortais tornaram-se um symbolum fidei e o assassinado ganhou outro nome: “Pedro Mártir”, afinal, ele sacrificara a vida pela verdade da fé assim como havia feito Pedro, o príncipe dos apóstolos, a rocha fundamental que sustentava toda Igreja. 23 O martírio fizera do ataque ao inquisidor um acontecimento apostólico. Ou seja, aquela morte já não deveria ser vista como uma fatalidade local, mas como episódio de uma história universal, encabeçada, desde a Antiguidade, pelo poder papal. A emboscada foi acrescida à lista de eventos que contavam uma história do primado da autoridade petrina, justificando-o.24 O “tempo dos mártires” não havia terminado. A fé ainda era fecundada por sangue. Sangue derramado em nome do papa. Com a verdade reluzindo da outra margem do Além, os cátaros teriam caído em desespero. Em poucas semanas, parentes dos conspiradores teriam abjurado ao catarismo e ingressado na ordem dominicana. A paixão sofrida pelo inquisidor teria despertado as consciências para a fé autêntica. Outra prova disso teria sido o comportamento do popolo minuto, supostamente tomado por alvoroço quando a notícia do assassinato começou a saltitar de boca em boca. Ainda segundo essa versão, na manhã seguinte ao ataque, a cidade inteira teria saído às ruas, atendendo aos apelos de Leão de Perego (?-1257), arcebispo de Milão. Primeiro franciscano a ocupar o prestigioso posto de arcebispo ambrosiano, Leão teria agitado a população. Todos teriam sido comovidos por sua pregação exaltada, que via no 22 23 24 AMBROGIO TAEGIO. Vita Sancti Petri Martyris Ordinis Praedicatorum. Acta Sanctorum, vol. 12, p. 706. Idem, p. 707. Neste sentido, a hagiografia de Pedro de Mártir poderia ser considerada um dos textos fundamentais do processo de formação da autoconsciência eclesiológica do papado como cardo ecclesia, princípio que alcançou grande expressão artística e historiográfica entre os séculos XIII e XV. Ver: BAGLIANI, Agostino Paravicini. Le chiavi e la tiara: immagini e simboli del papato medievale. Roma: Viella, 2005; MACCARRONE, Michele.Vicatius Christi: storia del titolo papale. Roma: Facultas Theologica Pontificii Athenaei Lateranensis, 1952; La Teologia del Primato Romano del Secolo XI. Milão: Vita e Pensiero, 1971; I fondamenti “petrini” del primado romano in Gregório VII. Studi Gregoriani, 1989, vol. 13, p. 55-96; ZERBI, Pietro. Romana Ecclesia, cathedra Petri: studi e documenti di storia ecclesiastica. Roma: Herder Editrice e Libreria, 1991, 2 vol.; RUSCONI, Roberto. Santo Padre: la santità del papa da San Pietro a Giovanni Paolo II. Roma: Viella, 2010. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 209 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 martírio uma santificação selada pelos céus. Liderada por ele, a multidão teria corrido para encontrar os dominicanos e implorar-lhes que o bem-aventurado cadáver fosse sepultado na basílica de Santo Eustórgio, principal edifício religioso da cidade. Levar as pessoas a acreditar em tais imagens miraculosas e arrebatadoras era, precisamente, o que pretendia a narrativa hagiográfica que então passou a ditar a maneira de lembrar o inquisidor. As cenas descritas acima receberam as pinceladas fundamentais quando Jacopo de Varezze (1230?-1298) as incluiu na Legenda Aurea, em meados de 1260;25 e foram emolduradas em 1276, quando a “Vida de São Pedro Mártir” concluída por Tommaso Agni (1205?-1277), patriarca de Jerusalém e legado papal na Terra Santa, foi declarada a versão oficial.26 A narrativa era parte da mobilização realizado pela ordem dominicana e pelo papado para elaborar uma memória triunfal, que ocultasse contradições e fracassos: a morte do inquisidor deveria ser recordada como ação de desesperados, como prova de que os hereges, já sem opções para onde fugir e sem lugares para se esconder, só poderiam recorrer a medidas pusilânimes, traiçoeiras, como emboscadas armadas nas sombras, em grotões rurais, longe da vista de todos. Visto sob este prisma, o martírio demonstra que os espaços públicos urbanos, teatros da autoridade legítima, eram inteiramente católicos. Donde a comovente cena da multidão unida pela devoção ao mártir. Tal sentimento seria o mais novo símbolo de um inebriante predomínio da autoridade eclesiástica – segundo a narrativa hagiográfica. Aos hereges teria restado lançar mão da brutalidade dos párias e se esgueirar para os espaços ocultos, rurais.27 Porém, enquanto o culto ao novo mártir tomava forma, Inocêncio IV redobrou as iniciativas institucionais. Sua reação veio em questão de dias. Em 27 de abril, ele recorreu aos magistrados das cidades do norte. Para restabelecer a ordem abalada pelo assassinato, os homens à frente do governo urbano deveriam auxiliar os frades pregadores em tudo 25 26 27 JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução: Hilário Franco Júnior. São Paulo: Cia. Das Letras, 2003, p. 387-400. ORLANDI, Stefano (Ed.). S. Pietro Martire da Verona: leggenda di fra Tommaso Agni da Lentini nel volgare trecentesco. Florença: Il Rosario, 1952. Como parte dos esforços de propaganda elaborados em redor do martírio, em 1253, Inocêncio IV inscreveu Pedro no rol dos santos da religião católica. Pedro foi transformado em segundo santo dominicano – o primeiro havia sido o próprio fundador da Ordem – através de um processo de canonização que permanece um dos mais rápidos da história. Ver: FESTA, Gianni (Ed.). Martire per la fede: San Pietro da Verona, domenicano e inquisitore. Bolonha: Edizioni Studio Domenicano, 2007; GÓMEZ-CHACÓN, Diana Lucía. San Pedro Mártir de Verona. Revista Digital de Iconografía Medieval, vol. 6, n. 11, 2014, p. 79-96; IMPROTA, Andrea. Dal pulpito al sepolcro: contributo per l’iconografia di San Pietro Martire da Verona tra XIII e XIV secolo. Porticvm: revista d’estudis medievals, n. 1, vol.1, 2011, p. 105-119; MALÉ, Gemma. El retaule de sant Pere Màrtir de Verona: un instrument de propaganda dominica, Porticvm: revista d’estudis medievals, n. 2, 2011, p. 52-67; MONTGOMERY, Scott. Il Cavaliere di Cristo: Peter Martyr as dominican role model in the fresco cycle of the Spanish chapel in Florence. Aurora, vol. 1, 2000, p. 1-28. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 210 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 necessário para erradicar a “pestilência dos hereges”. O primeiro passo nessa direção – e um claro sinal da obediência esperada pela autoridade apostólica – seria cumprir, integralmente, as leis anti-heréticas promulgadas pelo falecido Frederico II.28 Quando se viu no olho da tormenta, o pontífice se abrigou sob a força das legislações imperiais – promulgadas por seu maior adversário. O direito canônico não bastava. Em questões envolvendo punição secular, era preciso exigir dos magistrados o rigor devido aos assuntos do imperador.29 Dias depois, Inocêncio investiu o provincial da Lombardia com poderes para apontar novos inquisidores e remover quem julgasse inadequado.30 Mas não era suficiente. A ousadia dos hereges exigia uma resposta mais firme. Se eles não temiam as consequências de realizar uma tocaia contra um inquisidor designado pela autoridade apostólica, era porque, provavelmente, estavam em grande número e contavam com a proteção e os favores de muitos. Era necessário instruir os governantes verdadeiramente cristãos a agir de modo sistemático e abrangente. Aos olhos do clero pontifício, apenas leis severas e metódicas impediriam que as cidades do norte se transformassem em antros da heresia. Nas semanas seguintes ao assassinato de Pedro de Verona, trinta e oito leis deste tipo foram redigidas no interior da Cúria romana. Com a redação concluída no dia 15 de maio de 1252, cópias foram enviadas para a Lombardia, a Romanha e a Marca Trevisana. Os historiadores se referem a estas constituições com “bula Ad extirpanda”. A Ad extirpanda Há muito tempo os historiadores são enfáticos quanto à Ad extirpanda. Antes que concluísse sua famosa A History of the Inquisition of the Middle Ages, em 1888, Charles Henry Lea qualificou o texto formulado por Inocêncio IV como “a carefully considered and elaborate law which should establish machinery for systematic persecution as an integral part of social edifice in every city and every state, though the uncertain way in which bishop, inquisitor, and friar are alternately referred to in it shows how indefinite were still their respective relations 28 29 30 Neste caso, trata-se, das medidas decretadas contra as heresias no bojo das Constituições de Melfi, de 1231 – notadamente as que integram o primeiro livro: STÜRNER, Wolfgang (Ed.) Die Konstitutionen Friedrichs II. für das Königreich Sizilien, MGH Const. 2, supp, 1996; POWELL, James (Ed.) The Liber Augustalis ; or, Constitutions of Melfi, promulgated by the Emperor Frederick II for the Kingdom of Sicily in 1231. New York: Syracuse University Press, 1971. Ver ainda: SACKVILLE, L. J. Heresy and Heretics in the Thirteenth Century: The Textual Representations. Woodbridge: The Boydell Press, 2011, p. 88-113. BOP, vol. I, p. 205. BOP, vol. VII, p. 28. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 211 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 and duties in the matter.”31 O ponto de vista se manteve ao longo do século XX. As trinta e oito leis inocencianas são, frequentemente, mencionadas como uma declaração de instalação de um regime penal gestado desde primórdios do século XII. Através delas a transformação do ocidente em uma sociedade repressora32 teria chegado a seu termo. Em outras palavras, elas constituiriam o marco documental do advento da Inquisição: “the papal bull Ad extirpanda established the Inquisition which had been worked out between 1227 and 1241”.33 Envolvidas neste espectro, as leis de maio de 1252 quase sempre arrancam superlativos dos estudiosos. E o fazem de tal modo que enxergá-las como medidas repressoras costuma ser pouco. Elas deveriam ser vistas como atos de afirmação da soberania papal sobre toda a cristandade. Não poderíamos estudá-las como capítulos de história local, enraizada numa região do norte peninsular italiano. A Ad extirpanda teria sido maior, um evento civilizacional: o longo tentáculo com o qual uma monarquia poderosíssima, a Corte papal, teria envolvido e estrangulado a vida em sociedade. Exagero? Basta ler conclusões como esta: “com a bula promulgada por Inocêncio IV, a Inquisição [...] foi oficializada [...]. Com esse novo poder, que se difundiu na Europa germânica, na França meridional, na Itália setentrional e na parte cristã da Espanha, o papado passou a controlar todas as esferas da vida”.34 Com uma fisionomia supostamente totalitária, o poderio do papado teria sido declarado de maneira apoteótica, suprema. As leis inocencianas teriam sido uma prova de que as ambições temporais do papado chegavam aos pináculos da política. Mesmo após a autoridade papal entrar em declínio, atingida pelas rajadas da “crise do século XIV” 35, a magnitude da Ad extirpanda teria vingado por séculos, sustentando um reino de medo transatlântico, que castigava bruxas no México, sodomitas no Brasil, cristãos-novos em Goa.36 31 32 33 34 35 36 LEA, Charles Henry. A History of the Inquisition of the Middle Ages. New York: Macmillan Co., 1906, vol.1, p. 337. Caracterização que obedece à periodização consagrada no final da década de 1980 através de uma obra que goza de uma formidável reputação de “clássica”: MOORE, Robert Ian. The Formation of a Persecuting Society: Authority and Deviance in Western Europe 950-1250. Oxford: Wiley Publ., 2007. Para a crítica historiográfica a essa abordagem, ver: LAURSEN, John Christian & NEDERMAN, Cary (Ed.). Beyond the Persecuting Society: religious toleration before the Enlightenment. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1998. INNIS, Harold Adams. Empire and Communications. Lanham: Rowman & Littlefield, 2007, p. 154. NAZÁRIO, Luís. Autos-de-fé como espetáculos de massa. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 41. Apesar de ser uma referência historiográfica consolidade, a ideia de uma “crise do século XIV” se presta a revisões e debates. Sobre isso, ver: CAMPBELL, Bruce. (Ed.) Before the Black Death: studies in the "crisis" of the Early Fourteenth Century. Manchester: Manchester University Press, 1991. Sobre a associação histórica entre Inquisição e Totalitarismo: GREEN, Toby. Inquisition: the reign of fear. New York: Macmillan, 2009; MURPHY, Cullen. God’s Jury: the Inquisition and the making of the Modern World. Boston: Mariner Books, 2012, p. 52-55; PÉREZ, Joseph. The Spanish Inquisition. Londres: Profile Books, 2006, p. 175; PRESTON, Paul. The Spanish Holocaust: Inquisition and extermination in TwentiethCentury Spain. London, Harper Press, 2012; SCIOLINO, Anthony. The Holocaust, the Church, and the law of unintended consequences. Bloomington: iUniverse, 2012, p. 1-62. Sobre a década de 1250 – e com ela, da Ad extirpanda – como ápice da monarquia papal, ver: MORRIS, Colin. The Papal Monarchy: The Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 212 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Mas devemos ter cautela. Para isso, não é preciso enveredar pelos acalorados debates sobre a validade da associação entre inquisição e regimes totalitários, como o nazismo. Basta lembrar que a bula não foi promulgada como uma iniciativa de triunfo, mas como uma reação a uma atmosfera política em que os inquisidores e seus partidários respiravam adversidades e perigos mortais. Se as linhas da Ad extirpanda estão tomadas por uma linguagem dura, severa, que transmite ao leitor a impressão de testemunhar uma intervenção avassaladora; suas entrelinhas estão repletas de tensões, reveses e fracassos. É necessário estar atento aos interstícios do discurso. A principal razão para o vulto histórico atribuído à bula repousa em outro aspecto: através da lei vinte e cinco, Inocêncio IV autorizou o uso da tortura nas investigações. O governante deveria “coagir todos os hereges aprisionados, sem chegar à amputação dos membros e ao risco de morte”. Há quem tenha visto nesta medida uma prova inequívoca de que a Igreja romana foi um organismo político soberano durante o século XIII. Isto é, ela teria exercido prerrogativas típicas de um estado moderno.37 Porém, outra leitura pode ser feita. Ao autorizar a aplicação da tortura, o papa vinculou competências inquisitoriais a jurisdições seculares. Aquela não era uma matéria sujeita às decisões eclesiásticas. Os próprios clérigos não poderiam aplicar a tortura. Os hereges poderiam ser expostos ao uso da força porque tinham cometido delitos semelhantes aos que eram punidos pelos governos temporais. Eles deveriam ser tratados com violência “tal como os ladrões e os assaltantes dos bens temporais”. Neste ponto, o papa, provavelmente, oferecia uma demonstração de sua identificação com o nome “Inocêncio”. Meio século antes, seu mais ilustre antecessor, chamado Inocêncio III (1160?-1216), afirmou sem titubear: os heréticos eram culpados de suprema traição. Quando desertavam da fé, eles apunhalavam pelas costas a mais alta dignidade, a majestade de Cristo, instância à qual todos os imperadores e reis prestariam contas. Em 1199, o papado declarou os hereges culpados do crime de lesa-majestade.38 Um jurista calejado como o cardeal Sinibaldo Fieschi sabia que a lei romana autorizava a tortura de traidores, por, entre outras 37 38 Western Church from 1050 to 1250: The Western Church from 1050 to 1250. Oxford: Oxford University Press, 1989, p. 474-476. Sobre a magnitude histórica atribuída à bula: ESCUDERO, José Antonio. Intolerancia e Inquisición. Madrid: Soc. Estatal de Conmemoraciones Culturales, 2006, vol. 2, p. 206. Esta foi a opinião consagrada por: MAITLAND, Frederic William. Roman Canon Law in the Church of England. Six Essays. London: Methuen & Co., 1898; posteriormente retomada por: SAYERS, Jane. Innocent III: leader of Europe (1198-1216). New York: Logman, 1994. RUST, Leandro Duarte. Bulas inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199). Revista de História, São Paulo, n. 166, 2012, p. 129-161. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 213 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 razões, negarem a autoridade imperial.39 Quando se tornou o papa e escolheu ser chamado de “Inocêncio IV”, o cardeal Fieschi uniu as peças dos quebra-cabeças. Ele completou o raciocínio de seu predecessor: já que os heréticos são traidores da majestade do Altíssimo, então, conforme assegurava o direito romano, poderiam ser legalmente submetidos à dor. Os flagelos, no entanto, não poderiam ser infligidos por clérigos. A tortura era questão mundana, espúria, que mergulhava em pecado o encarregado de cumpri-la. Era um assunto de César, não de Cristo. Se a Ad extirpanda assegurou o lugar da tortura como procedimento inquisitorial, conforme sugeriu Edward Peters, 40 ela o fez reafirmando tal procedimento como um assunto eclesiástico e, ao mesmo tempo, secular. Se a inquisição surgiu como um “maquinário para perseguição sistemática” – segundo a célebre definição de C. H. Lea –, então é necessário reconhecer que bispos diocesanos, frades mendicantes e potentados citadinos acionavam as alavancas lado a lado. Os papéis cabíveis a cada um eram desiguais; porém, exercidos conjuntamente. Os potentados deveriam jurar obediência aos inquisidores e ao dignitário episcopal. Quem se recusasse a fazê-lo deveria ser considerado um inepto, despojado de toda autoridade: suas palavras seriam ocas; suas decisões, nulas. Além disso, caso falhassem no cumprimento das leis elaboradas pela Igreja para “extirpar a praga herética”, eles deveriam ser punidos. Após a excomunhão cair sobre seus ombros e suas terras serem lançadas sob interdito, esperava-se que fossem tratados como infames, multados e removidos do ofício. Embora drásticas, as prescrições papais não ocultavam algo evidente em todo documento: a execução das medidas de combate à heresia dependia inteiramente da mobilização secular. Desde as acusações do delito de heresia até a destruição da “casa na qual o herético ou a herética tiver sido descoberto”, passando pela busca, captura e pelo aprisionamento dos denunciados, tudo dependia dos recursos e agentes dos governos urbanos. Os espaços das ações inquisitoriais eram demarcados a partir da “jurisdição e dos distritos pertencentes ao ofício” citadino. O corpo de oficiais e notários necessários para realizar os procedimentos previstos era mantido pelo erário urbano, o qual deveria arcava com os pagamentos e as recompensas devidas. Preservar a custódia dos bens dos capturados; encontrar uma prisão adequada para os detidos por heresia; despachar soldados e ajudantes 39 40 Ver: BERNSTEIN, Neil W. Ethics, Identity, and Community in Later Roman Declamation. Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 44-56; HARRIES, Jill. Law and Empire in Late Antiquity. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 123-135; PETERS, Edward. Inquisition. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1989, p. 11-74; PÖLÖNEN, Janne. Plebeians and repression of crime in the Roman Empire: from torture to convicts to torture of suspects. Revue Internationale de Droits de l’Antiquité, vol. 51, 2004, p. 217-257; TRACY, Larissa. Torture and Brutality in Medieval Literature: Negotiations of National Identity. Woodbridge: Boydell & Brewer, 2012. PETERS, Edward. Torture. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999, p. 65. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 214 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 capazes garantir a ordem e a proteção dos inquisidores; fabricar e arquivar os livros que registrariam para sempre a perfídia dos condenados: estas e outras tarefas fundamentais só eram possíveis à custa dos poderes seculares. Para concretizar um espaço de manobras inquisitoriais, a Igreja romana dependia das comunas italianas. Inocêncio IV mantinha-se fiel à linha de atuação delineada por dois antecessores, Lúcio III (1097-1185) e Inocêncio III: os procedimentos inquisitoriais eram, simultaneamente, eclesiásticos e seculares, pois envolviam questões tanto canônicas quanto civis. 41 A bula Ad extirpanda, cujo texto reivindicou a força da lei imperial, ampliou o rol das operações de combate à heresia, entrelaçando ainda mais atribuições dos governos citadinos e prerrogativas da autoridade eclesial. Neste sentido, ela manteve aceso um foco de tensões: separar os papéis e as competências de cada esfera envolvida continuou um desafio prático. Não era incomum que certos casos convertessem o entrelaçamento em emaranhado jurídico. Relações que haviam sido idealizadas para transcorrer como cooperações hierarquizadas e bem entrosadas, ganhavam outro temperamento, o de concorrências acirradas. Os atritos permaneceram comuns nas décadas seguintes, com magistrados, reis, inquisidores e bispos trocando farpas para determinar quem detinha poder sobre os hereges. Separar as jurisdições com clareza é um desafio legado aos séculos seguintes pelo documento de maio de 1252.42 Nó górdio do pluralismo jurídico medieval, registro das represálias papais aos fracassos das ações inquisitoriais, produto de tensões e disputas pela autoridade, a Ad extirpanda é um texto com muitas faces. Torná-la mais acessível ao público brasileiro e auxiliar outros leitores a tomar parte do desafio de descobrir outros enfoques foi o propósito que motivou a tradução apresentada a seguir, em versão bilíngue, latim-português. 41 42 Ver: RUST, Leandro Duarte. Bulas inquisitoriais... op.cit. FOSI, Irene. Papal Justice: Subjects and Courts in the Papal State, 1500-1750. Washington: The Catholic University of America Press, 2011, p. 105-125; KIECKHEFER, Richard. The office of Inquisition and medieval heresy: the transition from personal to institutional jurisdiction. The Journal of Ecclesiastical History, vol. 46, n. 1, 1995, p. 36-61; MUNIZ, Patricia Gouveia Mendonça. Cruz e Coroa: Igreja, Estado e conflito de jurisdições no Maranhão colonial. Revista Brasileira de História, v. 32, n. 63, 2012, p. 39-58. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 215 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 1252, maii 15. Perusii. Innocentius IV PP, Promulgatio Legum et Constitutum contra haereticos 15 de maio de 1252, Perugia. Papa Inocêncio IV, Promulgação de leis e constituições contra heréticos Bula Ad Extirpanda Bula Ad Extirpanda Bullarium ordinis fratrum praedicatorum. Ed.: Thomas Ripoll e Antonino Bremond. Paris: Typographia Hieronimy Mainardi, 1729, tomo I, p. 209-211. Bullarum, diplomatum et privilegiorum sanctorum Romanorum Pontificum Taurinensis. Ed.: Aloysius Tomassetti. Augustae Taurinorum: 1858, tomo III, p. 552-558. [1] Innocentius Episcopus Servus Servorum Dei. Dilectis filiis Potestatibus, sive Rectoribus, Consiliis, & Communitatibus Civitatum, aliorumque Locorum per Lombardiam, Romaniolam, & Marchiam Tervisinam constitutis, salutem, & Apostolicam Benedictionem. [2] Ad extirpanda de medio Populi Christiani haereticae pravitatis zizania, quae abundantius solito succreverunt, superseminante illa licentius his diebus hominis inimico tanto studiosius, juxta commissam nobis sollucitudinem insudare proponimus, quanto perniciosius negligeremus eadem in necem catholici seminis pervagari. Volentes autem, ut adversus hujusmodi nequitiae operarios consurgant, stentque nobiscum Ecclesiae filii, ac Orthodoxae fidei zelatores, Constitutiones quasdam extirpationem haereticae pestis edidimus, a vobis ut fidelibus ejusdem Fidei defensoribus exacta diligentia observandas, quae seriatim inferius continentur. [3] Quo circa Universitati vestrae per Apostolica scripta mandamus, quatenus singuli Constitutiones easdem conscribi vestris Capitularibus facientes, nullis inde 43 [1] Inocêncio, bispo, servo dos servos de Deus, aos amados filhos potentados ou governantes instituídos, aos concelhos e às comunas das cidades localizados na Lombardia, na Romanha, na Marca Trevisana e em outros lugares, saudação e benção apostólica. [2] Tendo em vista a solicitude [pelo rebanho] 43 que nos foi confiado, nos propomos a extirpar do meio do povo cristão a cizânia da depravação herética, que em nosso tempo, se espalhou amplamente, semeando a licenciosidade em nome do Inimigo dos homens, tanto mais intensa quanto perniciosamente, à medida que negligenciarmos como ela causa a ruína dos princípios católicos. Desejosos, pois, que os filhos da Igreja e os defensores da fé ortodoxa se ergam e conosco se oponham aos artífices dessa perversidade, infra nós decretamos determinadas leis, com o fito de extirpar a praga herética, e [determinamos que] venham a ser observadas por vós e pelos fiéis defensores da Fé, com diligente cuidado. [3] Portanto, mediante este decreto apostólico, nós ordenamos que sejam cumpridas em toda vossa comunidade, cada uma destas leis redigidas para vós; que nunca venham a ser Os vocábulos e marcadores acrescidos ao texto em português por decisão de tradução estão destacados entre colchetes. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 216 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 temporibus abolendas, secundum eas contra omnem haeresim, se adversus hanc sanctam Ecclesiam extollentem, sine omissione aliqua procedatis. Alioquin dilectis filiis Priori, Provinciali, & Fratribus Inquisitoribus haereticae pravitatis Ordinis Praedicatorum in Lombardia, Marchia Tervisina, & Romaniola, damus nostris litteris in mandatis, ut singulos vestrum ad id per excommunicationem in personas, & interdictum in terram appellatione remota compellant. abolidas e que, sem qualquer omissão, de acordo com o que elas estipulam, procedais contra toda heresia que se insurge contra esta santa Igreja. Além disso, enviamos nossa carta aos amados filhos da Ordem dos Pregadores, a saber, aos superiores, ao provincial e aos frades inquisidores da depravação herética na Lombardia, na Marca Trevisana e Romanha, ordenando a cada um de vós que, sob pena de excomunhão pessoal e interdito nesses lugares, sem haver a possibilidade remota de apelação, obriguem [todos] a cumprir tais leis. Leges, & Constitutiones autem sunt hae. Portanto, as leis e os decretos são os seguintes: Lex 1. [4] Statuimus, ut Potestas, seu Rector, qui Civitati praeest, vel loco alii ad praesens, aut pro tempore praefuerit in futurum, in Lombardia, Romaniola, vel Marchia Tervisina, juret praecise, et sine timore aliquo, attendere inviolabiliter, & servare, et facere ab omnibus observari toto tempore sui regiminis, tam in Civitate, vel loco sui regiminis, quam in Terris suae ditioni subjectis, omnes, & singulas tam infrascriptas, quam alias Constitutiones, & Leges, tam canonicas, quam civiles, editas contra haereticam pravitatem. Et super his praecise observandis recipiant a quibuslibet sibi in Potestaria, vel regimine succedentibus, iuramenta. Quae qui praestare noluerint, pro Potestatibus, vel Rectoribus nullatenus habeantur. Et quae ut Potestates, vel Rectores fecerint, nullam penitus habeant firmitatem. Nec ullus teneatur, aut debeat sequi eos, etiamsi de sequela praestanda eis exhibuerint iuramentum. Quod si Potestas, vel Rector aliquis haec omnia, & singula servare noluerit, vel neglexerit, praeter notam periurii, & perpetuae iacturam infamiae, ducentarum marcharum poenam incurrat, quae irremissibiliter exigantur ab eo, & in utilitatem Communis integra convertantur, & nihilominus ut perjurus, & infamis, & tamquam haereticorum fautor, de fide suspectus, officio, & honore sui regiminis spolietur; nec ulterius Potestas, seu Rector in aliquo habeatur, & de Lei 1. [4] Decretamos que o potentado ou o governante que atualmente governa ou que no futuro vier a governar a cidade ou outro lugar na Lombardia, na Romanha e na Marca Trevisana, durante todo o tempo que governar, sem temor algum, jure inequivocamente cumprir, observar e fazer com que venham a ser inviolavelmente observados por todos, tanto na cidade e no lugar em que governa, quanto nas terras que estão sob a sua jurisdição, cada um e todos os decretos e leis infra escritos, tanto civis quanto canônicos, decretados contra a depravação herética. Que os juramentos referentes à observância precisa destes [decretos e leis] sejam prestados por qualquer um na sede do governo ou àqueles que sucederem no governo. Quanto aos que não quiserem prestar [tal juramento], que, de modo algum não sejam mantidos como potentados ou governantes e, os que agirem assim, percam toda autoridade. Nem ninguém se mantenha nem seja obrigado a manter-se leal a eles, ainda que lhes tenham prestado um juramento, na condição de membro de seu séquito. Se algum potentado ou governante se recusar a cumprir ou negligenciar o cumprimento de um ou de todos estes decretos ou leis, para além de ter de suportar a ignomínia do perjuro e da infâmia perpétua, incorrerá na pena de duzentos marcos que, irremissivelmente, serão dele exigidos, os quais serão integralmente convertidos para o proveito da comuna e, ademais, na condição de perjuro, infame, partidário de hereges e suspeito da fé, que seja destituído do cargo e da honra inerente ao mesmo, nem, de modo algum, ulteriormente Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 217 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 caetero ad aliquam dignitatem, vel venha a exercer o cargo de potentado ou de officium publicum nullatenus assumatur. governante, nem tampouco venha a assumir outra dignidade ou um cargo público. Lex 2. [5] Idem quoque Potestas, seu Rector cujuslibet Civitatis, vel loci, in principio sui regiminis, in publica concione more solito congregata, banno Civitatis, vel loci supponat tamquam pro maleficio, omnes haereticos utriusque sexus, quocumque nomine censeantur. Et teneatur bannum hujusmodi a suis praedecessoribus positum confirmare. Praecipue autem, quod nullus haereticus, vel haeretica de caetero habitet, vel moretur, aut subsistat in Civitate, seu aliquo modo jurisdictionis, aut districtus ejusdem, & quicumque ipsum, vel ipsam invenerit, libere capiat, & capere possit impune, & omnes res ipsius, vel ipsorum eis licenter auferre, quae sint auferentium pleno jure, nisi auferentes hujusmodi sint in officio constituti. Lei 2 [5] De igual modo, o potentado ou o governante de qualquer cidade ou lugar, no começo de seu governo, em uma assembleia pública reunida segundo o costume, sob o banum44 da cidade ou do lugar, deve acusar de delito todos os hereges de ambos os sexos, qualquer que seja o nome pelo qual são conhecidos. E terá o dever de confirmar tal banum recebido de seus predecessores. Além disso, que nenhum herege, homem ou mulher, habite, more ou permaneça na cidade ou no termo ou distrito do mesmo; e quem os descobrir, poderá livre e impunemente se apoderar de todos os bens dele ou deles e, licitamente, levá-los, consigo, pois lhes pertencerão de pleno direito, exceto se esta forma de apropriação estiver reservada aos que exercem um cargo público. Lex 3. [6] Idem quoque Potestas, seu Rector infra tertium diem post introitum regiminis sui, duodecim viros probos, & catholicos, & duos Notarios, & duos Servitores, vel quotquot fuerint necessarii, instituere teneatur, quos Dioecesanus, si praesens extiterit, & interesse voluerit, & duo Fratres Praedicatores, & duo Minores ad hoc a suis Prioribus, si Conventus ibi fuerint eorumdem Ordinem, deputati, duxerint eligendos. Lei 3 [6] Semelhantemente, antes do terceiro dia, após ter assumido o governo, o potentado ou o governante deverá nomear doze homens probos e católicos, dois notários e dois auxiliares, ou quantos forem necessários; se aí houver um bispo diocesano e ele quiser participar da indicação, poderá fazê-lo e, se aí houver um convento dos Pregadores e dos Menores, dois frades daquelas referidas Ordens serão indicados por seus superiores para participar disto. Lex 4. [7] Instituti autem hujusmodi, & electi possint, & debeant haereticos, & haereticas capere, & eorum bona illis auferre, & facere auferre per alios, & procurare haec tam in Civitate, quam in tota ejus jurisdictione, atque districtu, plenarie Lei 4 [7] Aqueles, pois, que forem designados e eleitos poderão e deverão capturar os hereges, homens e mulheres e retirar-lhes os seus bens ou tomar as providências para que lhes sejam retirados por outros e levá-los ou fazer com que sejam levados à presença do bispo diocesano ou de 44 Optamos por não traduzir o vocábulo Bannus – aqui, banum. Isto em razão de acreditamos que não há equivalente em português capaz de abarcar, simultaneamente, os vários significados do termo. O vocábulo Bannus condensa os significados materiais e retóricos de “conjunto de leis”, “penas”, “governo”, “jurisdição”, “foro” e “símbolos públicos” como flâmulas, estandartes e até edificações e cerimônias. Optar por um destes termos mutilaria a formidável abrangência da palavra. Ver: NIERMEYER, J. F. Mediae Latinitatis Lexicon Minus. Leiden: Brill, 1976, t. 1, p. 81-84. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 218 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 adimpleri, & eos ducere, & duci facere in seus vigários e cuidar para que estas medidas potestatem Dioecesani, vel Vicariorum sejam plenamente cumpridas tanto na cidade, eiusdem. como em todo o seu termo e no distrito. Lex 5. [8] Teneatur autem potestas, seu rector quilibet in expensis Communis, cui praeest, facere duci eosdem haereticos ita captos, quocumque dioecesanus, vel eius vicarii in iurisdictione vel districtu dioecesani episcopi, seu civitatis, vel loci voluerint illos duci. Lei 5 [8] Qualquer potentado ou governante mantido às expensas da comuna que governa deve se assegurar de que os hereges que forem assim aprisionados sejam levados à presença ou à cúria do bispo diocesano ou do vigário dele, ou à cidade ou ao lugar que ele quiser que sejam levados. Lex 6. [9] Officialibus vero praedictis plena fides de his omnibus habeatur, quae ad eorum officium pertinere noscuntur, aliquo specialiter praestito iuramento, probatione aliqua in contratium non admissa, ubi duo, vel tres, vel plures praesentes fuerint ex eisdem. Lei 6 [9] Quanto aos mencionados oficiais, todos lhes devem obedecer plenamente naquilo que sabidamente concerne ao seu ofício, sobretudo em relação ao juramento mencionado; qualquer objeção contrária não será aceita, onde estiverem presentes dois, três, ou mais dos referidos oficiais. Lex 7. [10] Porro cum officiales huiusmodi eliguntur, iurent haec omnia exequi fideliter, et pro posse, ac super his semper meram dicere veritatem, quibus ab omnibus, in his, quae ad officium eorum pertinente, plenius pareatur. Lei 7 [10] Além disso, uma vez eleitos, que tais oficiais jurem que, com todo empenho pessoal, irão fazer cumprir fielmente todas estas leis; e que sempre irão dizer a verdade, no tocante às atribuições que têm de fazer plenamente e que competem ao seu ofício. Lex 8. [11] Et tam dicti duodecim, quam servitores et notarii praetaxati, simul, vel divisim, plenariam praecipiendi sub poena et banno, quae ad officium suum pertinent, habeant potestatem. Lei 8 [11] E tanto os doze homens que vierem a ser indicados, quanto os seus mencionados auxiliares e notários, quer atuem conjunta ou individualmente, possuem pleno poder para estipular um castigo e banum com respeito àquilo que compete ao seu ofício. Lex 9. [12] Potestas autem, vel rector teneatur habere firma et rata omnia praecepta, quae occasione offici sui fecerint, et poenas exigere non servantium. Lei 9 [12] O potentado ou o governante deve manter firmes e inalteráveis todos os deveres relacionados com o exercício de seu cargo e estipular castigos àqueles que não os cumprirem. Lex 10. [13] Quod dictis Officialibus aliquo tempore aliquod damnum contigerit, in personis, vel rebus, pro suis officiis exequendis, a communi Civitatis, vel loci, Lei 10 [13] Se, em alguma ocasião, devido ao desempenho de seus deveres, vier a ocorrer algum dano aos referidos oficiais, ou neles próprios ou em seus bens, eles deverão ser Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 219 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 per restitutionem plenariam serventur plenamente ressarcidos pela comuna da cidade indemnes. ou do lugar. Lex 11. [14] Nec ipsi officiales, vel eorum haeredes possint aliquo tempore conveniri, de his quae fecerint, vel pertinent ad eorum officium, nisi secundum quod eidem dioecesano et fratribus videbitur expedire. Lei 11 [14] Nem tampouco, em momento algum, será permitido a estes oficiais ou aos seus sucessores fazer uma reunião para tratar a respeito daquilo que tiverem feito ou sobre o que é inerente ao seu ofício, a não ser que tal reunião pareça oportuna ao bispo diocesano e aos frades. Lex 12. [15] Ipsorum autem officium duret tantummodo per sex menses, quibus completis, potestas teneatur totidem subrogare officiales secundum formam praescriptam, qui praedictum officium secundum formam eamdem, in aliis sex mensibus sequentibus exequantur. Lei 12 [15] A incumbência dos referidos [oficiais] durará somente seis meses, os quais, uma vez completados, indicarão o momento em que o potentado deverá substituí-los, segundo a forma prescrita; os novos oficiais exercerão o mencionado ofício, de acordo com a mesma forma, durante os seis meses seguintes. Lex 13. [16] Sane ipsis Officialibus dentur de Camera communis Civitatis, vel loci, quando exeunt Civitatem, aut locum pro hoc officio exequendo, unicuique pro qualibet decem & octo Imperiales in pecunia numerata, quos Potestas, vel Rector teneatur eis dare, vel dari facere infra diem tertium, postquam ad eamdem redierint Civitatem, vel locum. Lei 13 [16] É razoável que quando estes mesmos oficiais deixarem a cidade ou o lugar, a fim de desempenhar esta incumbência, seja dado a cada um deles pela Câmara da comuna da cidade ou do lugar dezoito moedas imperiais em dinheiro contado, as quais o potentado ou o governante deverá dar-lhes ou fazer com que lhes sejam dadas, três dias após seu retorno à mesma cidade ou ao lugar. Lex 14. [17] Et insuper habeant tertiam partem bonorum haereticorum quae occupaverunt, & mulctarum, ad quas fuerunt condemnati, secundum quod inferius continetur, & hoc salario sint contenti. Lei 14. [17] E, além disso, eles devem se apoderar da terça parte dos bens dos hereges; [a terça parte] das multas às quais [os hereges] forem condenados a pagar deve ser entregue aos subalternos, os quais devem se contentar com este salário. Lex 15. [18] Sed ad nullum aliud, quod istud officium impediat, vel impedire possit, ullo modo officium, vel etiam exercitium, compelleantur. Lei 15 [18] Mas, de maneira alguma, eles devem ser compelidos a fazer algo que impeça, ou que possa impedir de algum modo, o exercício de sua incumbência. Lex 16. [19] Nullum etiam statutum, conditum vel condendum, eorum officium ullo modo valeat impedire. Lei 16 [19] Igualmente, nenhum estatuto, já promulgado ou que venha a ser decretado, de modo nenhum poderá vir a impedir o cumprimento da incumbência deles. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 220 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Lex 17. [20] Et si quis horum officialium propter ineptitudinem, vel inertiam, vel occupationem aliquam, vel excessum, dioecesano et fratribus supradictis visus fuerit amovendus, ipsum ad mandatum vel dictum eorum teneatur amovere potestas, aut rector, et alium secundum formam praescriptam substituere loco eius. Lei 17 [20] E, se algum desses oficiais, por causa da inaptidão, da indolência ou de outra ocupação ou de excesso em suas atribuições, for declarado afastado pelo bispo diocesano e pelos mencionados frades, o potentado ou o governante será obrigado a afastá-lo, por meio de uma ordem ou determinação e o substituir, de acordo com a forma prescrita, indicando um outro no lugar dele. Lex 18. [21] Quod si quis eorum contra fidem et sinceritatem offici sui in favorem haeresis deprehensus fuerit excessisse, praeter notam infamiae perpetuae, quam tamquam fautor haereticorum incurrat, per potestatem, vel rectorem ad dioecesani loci, et dictorum fratrum arbitrium puniatur. Lei 18 [21] Se algum desses oficiais, procedendo contra o juramento prestado e a integridade de seu cargo, for apanhado favorecendo a heresia, além de incorrer na mancha da perpétua infâmia, na condição de protetor dos hereges, há de ser levado à presença do bispo diocesano e dos mencionados frades para ser julgado e, depois, por ordem do potentado ou do governante do local, será punido. Lex 19. [22] Potestas praeterea Militem suum, vel alium Assessorem, si Dioecesanus, vel ejus Vicarius, aut Inquisitores a Sede Apostolica deputati, seu dicti Officiales petiverint, cum ipsis Officialibus mittere teneatur, & cum ipsis eorum officium fideliter exercere. Quilibet etiam si praesens in terra, vel requisitis fuerit, teneatur tam in Civitate, quam in jurisdictione, vel districtu quolibet, dare ipsis Officialibus, vel eorum sociis consilium, & juvamen, quando voluerint haereticum, vel haereticam capere, vel spoliare aut inquirere: seu domum, vel locum, aut aditum aliquem introire pro haereticis capiendis, sub vigintiquinque librarum Imperialium poena, vel banno. Universitas autem burgi, sub poena & banno librarum centum, villa vero librarum quinquaginta Imperialium pro qualibet vice solvenda in pecunia numerata. Lei 19 [22] Se o bispo diocesano, ou seu vigário, ou os inquisidores enviados pela Sé Apostólica ou os mencionados oficiais solicitarem [outros], além de seu soldado ou de um outro assessor, o potentado deve enviá-los e, com os mesmos, exercer fielmente o cargo deles. Igualmente também, qualquer um que vive no lugar, tanto na cidade quanto no termo dela ou em algum distrito da mesma, ou que for requisitado, deve aconselhar e prestar auxílio aos mencionados oficiais, ou aos seus colaboradores, quando eles quiserem capturar, espoliar ou inquirir qualquer herege, homem ou mulher; entrar em uma casa, ou num lugar ou nas proximidades do mesmo a fim de capturar os hereges, e o farão isso sob pena de pagar vinte e cinco libras imperiais ou banum. Por outro lado, a fim de quitar qualquer dívida e no lugar dela, a totalidade do burgo, sob banum e pena, terá de pagar cem libras, a vila sob banum e pena terá de pagar cinquenta libras imperiais em dinheiro contado. Lex 20. [23] Qui cumque autem haereticum, vel haereticam, captum, vel captam auferre de manibus capientium, vel capientis ausus Lei 20 [23] Entretanto, todo aquele que ousar libertar um herege, homem ou mulher, de quem o capturou ou de quem os capturou, ou defender Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 221 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 fuerit, vel defendere ne capiatur: seu prohibere aliquem intrare domum aliquam, vel turrim, seu locum aliquem ne capiatur, & inquiratur ibidem, juxta Legem Paduae promulgatam per Fridericum tunc Imperatorem, publicatis bonis omnibus in perpetuum relegetur, & domus illa, a qua prohibiti fuerint sine spe reaedificandi funditus destruatur, & bona, quae ibi reperta fuerint, fiant capientium, ac si haeretici fuissent ibidem inventi, & tunc propter hanc prohibitionem, vel impeditionem specialem, Burgus componat Communi librarum ducentarum, & Villa librarum centum, & vicinia tam Burgi, quam Civitatis librarum quinquaginta Imperialium, nisi infra tertium diem ipsos defensores, vel defensorem haereticorum Potestati captos duxerint personaliter praesentandos. tal pessoa, a fim de que não seja capturada, ou impedir que algum oficial entre em uma casa, ou numa torre ou num lugar qualquer, de maneira a impedir que essa pessoa venha a ser capturada ou inquirida, saiba que, conforme a lei de Pádua, promulgada pelo então imperador Frederico [II], terá perpetuamente todos os seus bens confiscados e tornados públicos; aquela casa na qual a entrada dos oficiais foi proibida será destruída até suas fundações, sem a esperança de ser reedificada; os bens, que aí forem encontrados, deverão ser capturados; se aí forem encontrados hereges, então, por causa desta proibição ou impedimento específico, o burgo entregará duzentas libras à comuna, a vila entregará cem libras e a vizinhança do burgo quanto da cidade entregará cinquenta libras imperiais, exceto se, antes de transcorridos três dias, os referidos defensores ou o defensor dos hereges forem capturados e levados pessoalmente para serem apresentados ao potentado. Lex 21. [24] Teneatur insuper potestas, seu rector quilibet omnes haereticos vel haereticas, qui capti amodo fuerint, per viros catholicos ad hoc electos a dioecesano, si fuerit praesens, et fratribus supradictis, in aliquo speciali carcere tuto et securo, in quo ipsi soli detineantur, seorsum a latronibus et bannitis, donec de ipsis fuerit definitum, sub expensis Communis civitatis vel loci sui facere custodiri. Lei 21 [24] Ademais, a partir deste momento, qualquer potentado ou governante deve manter todos os hereges, homens ou mulheres, que foram capturados, sob a custódia de homens católicos, designados para isto pelo bispo diocesano, se aí houver um, e pelos mencionados frades, os quais deverão ser exclusivamente reclusos em um cárcere específico, indicado para tal, seguro e guarnecido, distantes dos ladrões e dos transgressores da lei civil, às expensas da comuna da cidade ou do lugar. Lex 22. [25] Si quandoque aliqui, vel aliquae non haeretici pro captis haereticis, ipsis non contradicentibus, fuerint assignati vel si forsitan assignaverint, praedicti suppositi perpetuo carceri mancipentur, et haeretici nihilominus reddi, et assignari cogantur, et qui hunc dolum fecerint, iuxta legem praedictam, bonis omnibus publicatis, in perpetuum relegentur. Lei 22 [25] Se, acontecer que algumas pessoas, homens ou mulheres, não hereges, declararem que os capturados como hereges, os quais não contestaram as acusações, não são hereges ou que, talvez, não o sejam e devem ser libertados do cárcere perpétuo, embora tenham sido reconhecidos como hereges ou devam ser considerados como tal, todavia, conforme a mencionada lei, os que mentirem terão todos os seus bens perpetuamente confiscados e tornados públicos. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 222 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Lex 23. [26] Teneatur insuper potestas et rector quilibet omnes haereticos et haereticas, quocumque nomine censeantur, infra quindecim dies postquam fuerint capti, dioecesano, vel eius speciali vicario, seu haereticorum inquisitoribus praesentare, pro examinatione de ipsis, et eorum haeresi facienda. Lei 23 [26] Além disso, qualquer potentado ou governante está obrigado, quinze dias após a captura, a apresentar todos os hereges, homens e mulheres, acusados sob qualquer designação, ao bispo diocesano ou ao vigário particular ou aos inquisidores dos hereges, a fim de que sejam examinados e declarada a heresia que professam. Lex 24. [27] Damnatos vero de haeresi per dioecesanum, vel eius vicarium, seu per inquisitores praedictos, potestas, vel rector, vel eius nuncius specialis eos sibi relictos recipiat, statim, vel infra quinque dies ad minus, circa eos constitutiones contra tales editas servaturus. Lei 24 [27] Quanto aos condenados por heresia pelo bispo diocesano ou por seu vigário ou pelos mencionados inquisidores, entregues ao potentado, ao governante ou ao seu legado particular, deve recebê-los e, imediatamente, ou, no mais tardar, em cinco dias, aplicar os decretos promulgados a respeito e contra tais pessoas. Lex 25. [28] Teneatur praeterea potestas, seu rector omnes haereticos, quos captos habuerit, cogere citra membri diminutionem, et mortis periculum, tamquam vere latrones, et homicides animarum, et fures sacramentorum Dei, et fidei christianae, errores suos expresse fateri, et accusare alios haereticos, quos sciunt, et bona eorum, et credentes, et receptatores, et defensores eorum, sicut coguntur fures et latrones rerum temporalium, accusare suos complices, et fateri maleficia, quae fecerunt. Lei 25 [28] Ademais, o potentado ou o governante deve coagir todos os hereges aprisionados, sem chegar à amputação dos membros e ao risco de morte, a se considerarem verdadeiramente como ladrões, assassinos das almas e assaltantes dos sacramentos de Deus e da fé cristã, a reconhecerem expressamente seus erros e a acusar outros hereges que conhecerem, e identificarem os bens deles, os partidários, os acolhedores e os defensores dos mesmos, tal como os ladrões e os assaltantes dos bens temporais são obrigados a acusar seus cúmplices e a reconhecer os crimes que cometeram. Lex 26. [29] Domus autem, in qua repertus fuerit aliquis haereticus, vel haeretica, sine ulla spe reaedificandi funditus destruatur; nisi dominus domus eos ibidem procuraverit reperiri. Et si dominus illius domus, alias domos habuerit contiguas illi domui, omnes illae domus similiter destruantur, et bona, quae fuerint inventa in domo illa, et in domibus illis adhaerentibus, publicentur, et fiant auferentium, nisi auferentes fuerint in officio constituti. Et insuper dominus domus illius, praeter notam infamiae perpetuae, quam incurrat, componat Communi civitatis vel loci quinquaginta libras imperiales in pecunia Lei 26 [29] Por outro lado, a casa, na qual algum herege, homem ou mulher, tiver sido encontrado, deve ser destruída até às fundações sem haver a esperança de que venha a ser reconstruída, a não ser que o dono da casa tenha sido aquele que contribuiu para que fossem encontrados. E se o dono daquela casa possuir outras casas contíguas à mesma, de igual modo, todas elas devem ser destruídas; os bens que forem encontrados no interior daquela casa e das demais casas vizinhas deverão se tornar públicos e passarão a pertencer aos que puderem levá-los, a não ser que essas pessoas exerçam um cargo. E, ademais, o dono daquela casa, além de incorrer na marca da infâmia perpétua, deverá pagar cinquenta Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 223 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 numerata, quam si no solverit, in perpetuo carcere detrudatur. Burgus autem ille, in quo haeretici capti fuerint, vel inventi, componat Communi civitatis libras centum: et villa libras quinquaginta, et vicina tam burgi, quam civitatis libras quinquaginta imperialium in pecunia numerata. libras imperiais em dinheiro contado à comuna da cidade ou do lugar; se for incapaz de pagar, deverá ser lançado em cárcere perpétuo. Aquele burgo no qual os hereges foram encontrados pagará cem libras à comuna da cidade; a vila pagará cinquenta, assim como a vizinhança tanto do burgo quanto da cidade pagará cinquenta libras imperiais em dinheiro contado. Lex 27. [30] Quicumque vero fuerit deprehensus dare alicui haeretico, vel haereticae, consilium, vel auxilium, seu favorem, praeter aliam poenam superius, & inferius praetaxatam, ex tunc ipso iure in perpetuum sit factus infamis, nec in publica officia, seu consilia, vel ad eligendos aliquos ad hujusmodi, nec ad testimonium admittatur, sit etiam intestabilis, ut nec testamenti liberam habeat factionem, nec ad haereditatis successionem accedat. Nullus praeterea ei super quocumque negotio, sed ipse alii respondere cogatur. Quod si forte Judex extiterit, ejus sententia nullam obtineat firmitatem, nec causae aliquae ad ejus audientiam perferantur. Si fuerit Advocatus, ejus patrocinium nullatenus admittatur. Si Tabellio instrumenta confecta per ipsum, nullius penitus sint momenti. Credentes quoque erroribus haereticorum tamquam haeretici puniantur. Lei 27 [30] Todo aquele que tiver sido surpreendido aconselhando, auxiliando ou favorecendo um herege, homem ou mulher, além da outra pena acima e abaixo fixada, com base nas mesmas leis, desde então, será perpetuamente declarado infame, não será admitido a exercer cargos públicos, ou nos concelhos ou nas designações para estes; tampouco será aceito como testemunha e, igualmente será inapto a testar, a fim de que não possa livremente ter os diretos de fazer testamento nem de suceder na herança. Para mais, ninguém será obrigado a responder sobre nenhum negócio dele, mas ele próprio será coagido a responder por outros. Se, por acaso for um juiz, sua sentença será nula, nem causa alguma será levada ao seu tribunal. Se for um advogado, sua defesa de modo algum será aceita. Se for um tabelião, os instrumentos legais chancelados por ele serão considerados completamente nulos. Igualmente, os adeptos dos erros dos hereges serão punidos tal como eles próprios. Lex 28. [31] Teneatur insuper Potestas, seu Rector, nomina Virorum omnium, qui de haeresi fuerint infamati, vel banniti, in quatuor libellis unius tenoris facere annotari: quorum unum commune Civitatis, vel Loci habeat, & alium Dioecesanus, & tertium Fratres Praedicatores, & quartum Fratres Minores, & ipsorum nomina ter in anno, & in concione publica solemniter faciat recitari. Lei 28 [31] Além disso, o potentado ou governante deve fazer com que os nomes de todos os homens transformados em infames ou banidos por causa da heresia sejam escritos em quatro libelos do mesmo teor, um dos quais será mantido pela comuna da cidade ou do lugar, um outro pelo bispo diocesano, o terceiro pelos frades Pregadores, o quarto pelos frades Menores; os nomes deles devem ser solenemente lidos em voz alta na assembleia pública três vezes ao ano. Lex 29. [32] Tenatur quoque potestas, seu rector, filios et nepotes haereticorum et receptatorum, defensorum et fautorum Lei 29 [32] Igualmente também, o potentado ou o governante deve investigar, cuidadosamente, os filhos e sobrinhos dos hereges e de quem os Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 224 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 diligenter investigare, eosque ad aliquod acolheu, defendeu e auxiliou, a fim de que, no officium publicum, seu consilium futuro, eles de modo algum venham a ser nullatenus admittere in futurum. admitidos em cargo público ou ao concelho. Lex 30. [33] Teneatur praeterea potestas, seu rector, unum de assessoribus suis, quem elegerit dioecesanus si fuerit praesens, et inquisitores praedicti ab Apostolicae Sede dati, mittere cum eis quandocumque voluerint, et in iurisdictione civitatis, atque districtu. Qui assessor, secundum quod praedictis inquisitoribus visum fuerit, ibi tres, aut plures boni testimonii viros, vel totam viciniam, si eis videbitur, iurare compellat; quod si quos ibidem haereticos sciverint, vel bona eorum, quod si quos occulta conventicula celebrantes, seu a communi conversatione fidelium vita et moribus dissidentes, vel credentes, aut defensores, seu receptatores, vel fautores haereticorum, eos dictis inquisitoribus studeant indicare. Ipse autem potestas contra accusatos procedat secundum leges quondam Friderici tunc imperatoris Paduae promulgatas. Lei 30 [33] Além disso, o potentado ou o governante deve enviar um de seus assessores, a quem o bispo diocesano escolher, se aí houver, juntamente com os mencionados inquisidores designados pela Sé Apostólica, sempre que eles assim o desejarem, à câmara da cidade e distrito. O referido assessor, segundo o que parecer aos mencionados inquisidores, aí compelirá três ou mais homens fidedignos ou, se lhes parecer necessário, toda vizinhança, a jurar perante os mencionados inquisidores se conhecem quaisquer hereges e se sabe onde estão seus bens, se fazem reuniões secretas ou se tentam afastar os fiéis da convivência rotineira e dos costumes, transformando-os em dissidentes e crentes [em sua heresia] ou, ainda, se conhecem quem crê, defende, acolhe ou auxilia os hereges. Por outro lado, o potentado deve proceder contra os acusados, conforme as leis promulgadas pelo, então, imperador Frederico, [II] em Pádua. Lex 31. [34] Teneatur insuper potestas, seu rector, in destructionem domorum, et condemnationibus faciendis, et in rebus inventis, vel occupatis consignandis et dividendis, de quibus superius dicitur, infra decem dies postquam accusatio facta fuerit, haec omnia exequi cum effectu; et condemnationes omnes in pecunia numerata infra tres menses exigere et dividere illas, sicut inferius continetur, et eos qui solvere non poterint, banno maleficii supponere, et donec solvant, in carcere detinere; alioquin pro his omnibus, et singulis syndicetur, sicut inferius continetur, et insuper teneatur unum de assessoribus, quemcumque dioecesanus, vel eius vicarius, et dicti inquisitores haereticorum voluerint, ad haec peragenda fideliter assignare, et mutare pro tempore, si eis visum fuerit opportunum. Lei 31 [34] Ademais, no prazo de dez dias após a acusação tiver sido feita, o potentado ou o governante deve levar a efeito todas as obrigações, já mencionadas acima: a destruição das casas, a imposição das condenações, a divisão e a atribuição dos bens encontrados e apropriados. Ele deve exigir que, no prazo de três meses, todos castigos pecuniários sejam pagos em dinheiro contado e, dividi-los conforme o estipulado mais adiante e os que não puderem saldá-las, devem ser condenados pelo crime contra o banum e mantidos no cárcere até que possam pagar. Todavia, ele deve submeter cada uma e todas essas questões à investigação, conforme infra será descrito, e designar um de seus assessores, escolhido pelo bispo diocesano ou por seu vigário ou pelos mencionados inquisidores dos hereges, para executar tudo cuidadosamente; e se lhes parecer adequado, esse assessor poderá vir a ser oportunamente substituído. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 225 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Lex 32. [35] Omnes autem condemnationes vel poenae, quae occasione haeresis factae fuerint, neque per concionem, neque per consilium, neque ad vocem Populi ullo modo, aut ingenio, aliquo tempore valeant relaxari. Lei 32 [35] Entretanto, todas estas condenações ou penas, impostas por motivo de heresia, de modo algum, jamais, poderão ser atenuadas, nem por decisão de assembleia, nem do concelho, nem por aclamação popular, ou por outra qualquer ação desta natureza. Lex 33. [36] Teneatur insuper potestas, seu rector, omnia bona haereticorum, quae per dictos officiales fuerint occupata seu inventa, et condemnationes pro his exactas dividere tali modo: uma pars deveniat in Commune civitatis vel loci, secunda in favorem et expeditionem offici detur officialibus, qui tunc negotia ipsa peregerint, tertia ponatur in aliquo tuto loco, secundum quod dictis dioecesano et inquisitoribus videbitur reservanda et expendenda per consilium eorumdem in favorem fidei, et ad haereticos extirpandos, non obstante huiusmodi divisioni statuto aliquo, condito aut condendo. Lei 33 [36] Além disso, o potentado ou o governante deve repartir todos os bens dos hereges que tiverem sido encontrados e apossados pelos mencionados oficiais, bem como as condenações por eles obtidas, do seguinte modo: uma parte deve ser entregue à comuna da cidade ou do lugar; a segunda deve ser entregue como recompensa ao empenho demonstrado pelos oficiais que, no cumprimento de sua incumbência tiverem lidado com o caso; a terceira parte deve ser guardada em algum local seguro, conforme o parecer do prelado diocesano e dos inquisidores, a ser reservada e utilizada, conforme conselho dos mesmos, em favor da fé e para promover a extirpação dos hereges, não obstante semelhante divisão estar estipulada ou vir a ser determinada por algum outro estatuto. Lex 34. [37] Si quis autem de caetero aliquod istorum statutorum, aut constitutionum attentaverit delere, diminuere, vel mutare, sine auctoritate Sedis Apostolicae speciali, potestas seu rector, qui pro tempore fuerit in illa civitate vel loco, teneatur eum tanquam defensorem haereticorum publicum et fautorem, secundum formam praescriptam perpetuo publice infamare atque punire in libris quinquaginta imperialium in pecunia numerata, quam si exigere non potuerit, eum maleficii banno supponat, de quo eximi no valeat, nisi solverit duplam dictae pecuniae quantitatem. Lei 34 [37] Entretanto, se alguém tentar abolir, reduzir ou alterar qualquer um destes decretos ou estatutos, sem a autorização específica da Sé Apostólica, o potentado ou o governante que, naquela ocasião, estiver a governar aquela cidade ou lugar, de acordo com a forma prescrita, deve publicamente declarar tal pessoa perpetuamente infame, na condição de defensora e fautora pública dos hereges, e puni-la em cinquenta libras imperiais em dinheiro contado e caso não possa exigir-lhe isso, então, o potentado deverá condená-la mediante o prejuízo do banum, da qual não possa ficar isenta, a não ser que venha a saldar com uma soma duas vezes maior em dinheiro. Lex 35. [38] Teneatur sane potestas, seu rector, infra decem dies sui regiminis syndicare praecedentem proxime potestatem, vel rectorem, et eius etiam assessores, per tres viros catholicos et fideles electos ad hoc Lei 35 [38] Na verdade, durante os dez primeiros dias de seu governo, o potentado ou governante deve recorrer a três homens católicos e confiáveis, escolhidos pelo bispo diocesano, se houver um, pelos frades Pregadores e Menores para Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 226 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 per dioecesanum, si fuerit praesens, et per fratres Praedicatores et Minores de omnibus his, quae in statutis istis, seu constitutionibus et legibus contra haereticos et eorum complices editis continentur, et punire ipsos si excesserint in omnibus et singulis, quae omiserint, & cogere restituere de propria facultate; non obstante si per aliquam licentiam consilii, vel alterius cujuslibet a syndicatione fuerint absoluti. investigar o último e potentado ou o governante precedente e seus assessores, em relação a tudo o que foi estabelecido por estes estatutos, decretos e leis contra os hereges e seus cúmplices e, puni-los se tiverem se excedido em cada uma e em todas as situações, inclusive, no tocante às que tiverem sido negligenciadas e, obrigá-los a restituir [o que tiverem se apropriado] às próprias expensas, não obstante, mesmo que, por acaso, tenham sido isentos de serem investigados, por ordem do concelho ou de qualquer outro. Lex 36. [39] Jurabunt autem praedicti tres Viri bona fide syndicare praefatos de omnibus supradictis. Lei 36 [39] Os três mencionados homens devem jurar que agirão de boa fé, ao investigar a conduta dos referidos governantes acerca de tudo que foi acima citado. Lex 37. [40] Caeterum teneatur Potestas, seu Rector cujuslibet Civitatis, vel Loci, delere, seu abradere penitus de Statutis, vel Capitularibus communis, quodcumque Statutum, conditum vel condendum, inveniatur contradicere istis Constitutionibus, seu Statutis, & Legibus quomodolibet obviare: & in principio, & in medio sui regiminis, haec Statuta, seu Constitutiones, & Leges in publica concione solemniter facere recitari; & etiam in aliis locis extra Civitatem suam, vel Locum, sicut Dioecesano, seu Inquisitoribus, & Fratribus supradictis visum fuerit expedire. Lei 37 [40] Em acréscimo, o potentado ou o governante de qualquer cidade ou lugar deve excluir ou apagar integralmente dos estatutos e das capitulares da comuna ou de qualquer outro texto legal, já outorgado ou que venha a sê-lo, tudo o que se opuser ou contradiga o que está estabelecido nestes decretos, estatutos e leis; além disso, no princípio e na metade do tempo de seu governo, ele deve tomar providência para que estes decretos, estatutos e leis sejam solenemente lidos em uma assembleia pública, o que também deve ser feito em outros locais fora da sua cidade ou lugar; o bispo diocesano, os inquisidores e os mencionados frades se lhes parecer conveniente, também farão isso. Lex 38. [41] Porro haec omnia Statuta, seu Constitutiones, & Leges, & si quae aliae contra haereticos, & eorum complices, tempore aliquo auctoritate Sedis Apostolicae conderentur, in quatuor voluminibus unius tenoris debeant contineri: quorum unum sit in Statuario communis cujuslibet Civitatis, secundum apud Dioecesanum, tertium Fratres Praedicatores, quartum apud Fratres Minores, cum omni sinceritate serventur, ne possint per falsarios in aliquo violari. Lei 38 [41] Finalmente, todos estes estatutos, decretos e leis, bem como quaisquer outros que tenham sido ordenados, noutras ocasiões pela autoridade da Sé Apostólica contra os hereges e seus cúmplices, devem ser registrados em quatro volumes de igual teor, cujo primeiro deve ser depositado no arquivo da comuna da cidade, o segundo na residência do bispo diocesano, o terceiro no convento dos frades Pregadores e o quarto no convento dos frades Menores, os quais devem ser cuidadosamente guardados, a fim de que não venham a ser adulterados em algo por falsificadores. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 227 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 Datum Perusii Idibus Maii, Pontificatus Dado em Perugia, nos idos de maio, nono ano de nostri anno nono. nosso pontificado. Dat. die 15 maii 1252, pontif. Anno IX. Dado no dia 15 de maio de 1215, nono ano do pontificado. Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 228 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 NORMAS DE PUBLICAÇÃO Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 229 Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 7 – Dezembro/2014 A Revista Diálogos Mediterrânicos, publicação acadêmica vinculada ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos da Universidade Federal do Paraná, se estrutura em dossiê, artigos isolados, resenhas e entrevistas. Os trabalhos enviados devem obedecer à seguinte normativa: SEÇÃO Dossiê Artigos Resenhas TITULAÇÃO Doutores; Doutores com co-autoria de Doutorandos. Doutores; Doutores com co-autoria de Doutorandos. Doutores; Doutorandos; Mestres; Mestrandos. 1. Extensão: os artigos devem ter no máximo 20 páginas e as resenhas (de livros publicados nos últimos 07 [sete] anos) devem ter até 5 páginas. 2. Todos os textos devem ser digitados em Word for Windows. Margens: 2 cm. Fonte e espaçamento: Times New Roman, tamanho 12, com entrelinhas 1 ½. Para citações com mais de 3 linhas, destacar o texto e utilizar recuo de 4 cm, fonte tamanho 11, espaçamento entre linhas simples. 3. Resumo e palavras-chave: os artigos devem apresentar obrigatoriamente um resumo com, no máximo, 250 palavras, acompanhado de sua versão em Inglês (Abstract), ou em Francês (Résumé), ou em Espanhol (Resumen) ou Italiano (Sintesi) e de três palavras-chave, em Português e na língua escolhida para a tradução do resumo. Nos casos de artigos não escritos em Português, os resumos e palavras-chaves devem ser escritos em uma das opções de língua citadas, diferente da utilizada no artigo. Só serão aceitas resenhas escritas em Português. 4. Título: também traduzido para o Inglês, ou Francês, Italiano ou Espanhol. Centralizado, fonte tamanho 16, em negrito. 5. Caso a pesquisa tenha apoio financeiro de alguma instituição, esta deve ser mencionada em nota de rodapé. 6. Citações e notas de rodapé: devem ser apresentadas em fonte Times New Roman corpo 10 e de acordo com as normas seguintes e em rodapé: Citação de Livros: SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico. Edição. Cidade, Editora, ano, p. ou pp. Citação de artigos de revistas ou capítulos de livros: SOBRENOME, Nome. “Título do Artigo” In Título do Periódico em itálico. Cidade, Editora, Ano, Vol., nº, p. ou pp. A primeira nota deverá conter informações sobre o autor do texto, para conhecimento do editor, sendo suprimida na versão para os avaliadores. 7. Não serão aceitas bibliografias. 8. Os trabalhos deverão, obrigatoriamente, apresentar todos os itens acima. 9. Toda correspondência referente à Revista Diálogos Mediterrânicos deve ser encaminhada de forma eletrônica, pelo seguinte email: [email protected] Revista Diálogos Mediterrânicos ISSN 2237-6585 230
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