Arte: o humano e o destino

Transcrição

Arte: o humano e o destino
Núcleo de Investigações Transdisciplinares-NIT – Departamento de Educação/UEFS
Ano XIII – Nº 27 – Set./Dez. 2013 – Feira de Santana-BA – ISSN 2179-1139
Arte: o humano e o destino
Não somos o ser, somos sempre e inevitavelmente um sendo
participial e finito [...] A essência
de todo ser humano, porém, é
ser uma dobra de finito e nãofinito, sendo e pensando.
Somos por estarmos no ser,
mas não somos o ser e nem o
ser reduz ao estar, embora não
haja estar sem ser.
O ser humano é ambíguo, é
ente e não-ente, está e nãoestá, tem limite e não-limite.
De imediato, a realidade não
cessa de estar sendo no aparecer e desaparecer. Portanto, não
há nem pode haver estar que
não implique posição e deposição [...].
A razão é a posição iluminada. As explicações causais da
razão só podem afirmar-se como possibilidades que o ser já
possibilitou, mas sem esgotarem
as possibilidades do ser e de
ser. Por isso, não basta conhecer. É necessário ser o que se
conhece [...].
Pensar não é raciocinar. É
medir-se pela medida do ser
auscultando-o em tudo que se
dá e nos provoca. Pensar é deixar-se tomar pelo provocar do
ser.
Há o ver que olha e vê o que
se dá no ver, e o ver que não
apenas olha, mas vê o nãovisto, na mesma possibilidade
de que sendo não somos apenas
sendo, mas sempre e já como
possibilidade de ser, não-ser,
não-ver, não-saber.
Mas já somos não-ser, pois
estamos sendo. O nada do não-
ser é nossa maior dádiva, pois
como nada criativo é a fonte, ou
seja, a proveniência de todas as
nossas possibilidades. Ser é nada. [...] A medida do nada é o
ser. A medida do ser é o nada:
fonte e proveniência de todas as
possibilidades de e para possibilidades. [...] Ser é amar. Amar é
sempre algo concreto, deixar vigorar Eros. [...] Eros
energia
irradiante e unidade de diferenças, é ser. Amar é ser.
Há, portanto, um entre vivo,
atuante, um vazio de que se nutrem o estar e o ser, um silêncio
que é um nada criativo, segundo o
pensador Platão. Esse entre, esse
pólemos, é o vigorar da unidade
de todas as diferenças.
Essa abertura de escuta e diálogo faz-se permanentemente
e nos lança, de uma maneira
radical e originária, no acolhimento das diferenças [...], pois
se aprende com o outro na medida em que mais aprofundamos
as fronteiras de nossos limites e
não-limites, em tudo aquilo que
somos e não-somos.
Aprender a pensar é aprender a questionar incessantemente não só aos outros, mas, sobretudo, a si mesmo. Aquilo que
se aprende só se
aprende
quando acontece dentro de nós.
Ser próprio é o aprender a
viver enquanto o saber de saber
-se como o a-ser-pensado. Só
sabendo renunciar a todo acúmulo de conhecimentos, pelo
aprender a pensar, é que poderemos saborear o nada, a plena
liberdade do sem limites.
E só se põe a caminho do ser
quem ama. Amar é mais, muito
mais, do que impulsos e sensações. O amar não as exclui, mas
as consuma no sentido que subjaz a todas as sensações que
nos advêm nos e com os sentidos.
Quem só pensa com a luz da
razão, não conhece a
energia
irradiante da fonte originária, a
luminosidade do vigorar do amar, acontecendo com e a partir
do coração.
Fragmentos extraídos do livro
“Arte: o humano e o destino”,
de Manuel Antonio de Castro
Suzart
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Setembro a dezembro de 2013
FUXICO Nº 27
expediente
Comissão Editorial
Catiane Santos da Silva
João Paulo dos Santos Silva
Miguel Almir L. de Araújo (Coord.)
Taizy Pereira da Conceição
Weslley Moreira de Almeida
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Dr. Miguel Almir L. de Araújo
(UEFS)
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(UNEB)
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(UEFS)
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
FEIRA DE SANTANA
Reitor
José Carlos Barreto de Santana
Diretor do Departamento de
Educação
Ana Maria Fontes dos Santos
Coordenador do NIT
Miguel Almir L. de Araújo
Site do NIT
www.uefs.br/nit
Orientações para
envio de material
- Recebemos artigos, poemas e
imagens com temáticas diversas
que sejam relevantes para a humanidade.
- Texto de até três páginas; espaço simples; fonte times new
roman 12; parágrafo com recuo;
colocar dados do autor após o
título.
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S um ário
Editorial
Informes
VI SETRANS - FLICA 2013 - 6ª Feira do livro - Bienal
do livro Bahia2013 - Lançamento do livro Sertania - p. 3
Sugestão de livros e filmes - p. 3
Artigos
Escola Família Agrícola de Valente: buscando caminhos para formação do
sujeito do campo no território do sisal - p. 4
O Mal é um problema de quadra(s) epocais - p. 6
Reflexão sobre o filme “Trainspotting” e a patologização da angústia no
mundo conteporâneo - p. 9
A velha novidade: caminhos da geografia cultural - p. 10
Mandingas e patuás, nuances do tempo... - p. 12
Crônicas e poemas
desaSSOSSEGO Lenon Sampaio Bíspo - p. 14 presença Edson Pielechovski - p. 15
Vinícus, “presente”! Petry Lordelo - p. 16 Infindo
Ronaldo da Paixão - p. 16 Nasceu em Música Ana Matos – p. 16 Tempos
Modernos Valdir Cavalcante de Matos – p. 16
editorial
Nesta edição nº27 caminhamos por trilhas que percorrem
entrecruzadamente os vãos da
educação, da geografia, da teologia, do existencial e do simbólico
presente nos ritos e objetos.
No artigo “O mal é um problema de quadra(s) epocais” o autor
propõe uma reflexão acerca da
origem do mal e o porquê de sua
existência, partindo da perspectiva de que o mal é quase inerente ao ser humano vivente e que
sem ele a realidade seria incompleta e discutindo as formas como o ser humano enfrenta o mal.
No texto “Reflexão sobre o filme ‘Trainspotting’ e a patologização da angústia no mundo contemporâneo” o autor questiona
os padrões de controle sociais e
aponta a angústia como espaço
de reflexão privilegiado sobre a
existência.
O texto “A velha novidade: caminhos da geografia cultural” apresenta nuances de uma geografia que se volta para aquilo
que comumente a racionalista
não valorizou. Entende fé, imagem e emoção como elementos
importantes para a investigação
do espaço geográfico.
No artigo “Escola Família Agrícola de Valente: buscando caminhos para formação do sujeito no
campo, no território do sisal”, a
autora traz algumas reflexões sobre a educação do campo, e usa
como exemplo a Escola Família
Agrícola Avani de Lima Cunha
(EFA Valente) descrevendo sucintamente suas experiências educacionais.
No texto “Mandingas, patuás,
nuances do tempo...” podemos
encontrar uma reflexão sobre esses elementos de proteção, suas
especificidades e diálogos que estabelecem entre si, assim como
suas reinvenções através do tempo.
As imagens presentes nesta edição do Fuxico figuram as relações eco-humanas, percepções do
mundo indígena e do sertão, inspiram música, sensações gritantes
e também ludicidade.
Os poemas trazem nos versos
nuances dos tempos modernos e
sua maquinização, musicalidade,
hierofanias e uma homenagem ao
poeta Vinícius de Moraes.
Há ainda uma crônica que narra
o dramático do humano na sua
relação consigo mesmo, com o
outro em sociedade e com a religião, pondo em xeque as percepções de normalidade e do espiritual.
Boas leituras e fruição!
Setembro a dezembro de 2013
FLICA
Foi realizada nos dias 23 a 27
de outubro, a 3ª edição da Feira
Literária Internacional de Cachoeira – FLICA. O evento contou
com diversas mesas, apresentações de música e poesia, contação de história e oficinas de quadrinhos e uma programação específica voltada para o público infantil. Artistas de ruas e protestos
também fizeram parte do mosaico da feira.
Bienal do livro Bahia 2013
Foi realizada de 8 a 17 de novembro, no centro de Convenções da Bahia, a Bienal do Livro
Bahia 2013, na qual o público
teve acesso a bate-papo com
personalidade culturais, autores,
jornalistas, além de atividades
recreativas e lúdicas.
6ª Feira do livro
Aconteceu nos dias 10 a 15 de
setembro a 6ª Feira do Livro:
Festival Literário e Cultural de
Feira de Santana. O evento oportunizou ao público a participação
em lançamentos de livros, palestras interativas, mesas-redondas,
recitais poéticos, apresentação
de teatro, música e muito mais.
FUXICO Nº 27
informes
diversidade – os desafios do intercultural.”
O evento teve momentos de
discussões e inquietações como
mesa-redonda, duas conferências e as sessões de comunicação, contando também com fruições corpoéticas para apreciarmos apresentações de teatro,
dança recital de cordel e músicas.
Lançamento do livro
“Sertania: sabenças de
uma saga agridoce”
Está sendo lançado, em diversas localidades, o livro “Sertania: sabenças de uma saga agridoce”, do Prof. Miguel Almir Lima de Araújo (UEFS). O livro é
editado pela UEFS Editora.
O livro “Sertania...” se descortina como desdobramento de
uma ampla pesquisa realizada
VI Setrans
Os dias 29 e 30 de outubro foram agitados pela realização do
VI SETRANS organizado pelo NIT/DEDU. O seminário discutiu
propostas do campo da interculturalidade abordando o tema “A
complexidade da teia da/s cultura/s: tradição, pertencimento e
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nos Sertões de 5 estados do Nordeste (Sergipe, Piauí, Pernambuco, Alagoas e Bahia) e Norte de
Minas Gerais. Nesta pesquisa foram sedimentados repertórios
bastante expressivos acerca dos
modos de vida, dos saberes e
sentires
–
das
sabedorias/
sabenças – que constituem a vida
cotidiana, as pelejas e celebrações dos povos dos Sertões no
destinar de suas sagas agridoces.
A pesquisa contou com o apoio da
UEFS e da FAPESB.
Nesses repertórios fica bastante acentuada a presença do espírito e das posturas de solidariedade, de compartilhamento, de honestidade, de respeito, de fé, de
luta e de resistência dos/as sertanejos/as nos desafios das intempéries que os/as assolam. Apesar
das tantas agruras que os/as afetam, estes/as celebram suas vidas através das folias de suas
manifestações culturais como o
São João, o Reisado, o Bumba
meu boi, dos festejos religiosos,
dos mutirões etc.
O livro apresenta as intensidades do viver cotidiano desses povos que se configuram numa saga
agridoce em que a tristeza, as
dores, o sofrimento causado pelas
secas, pelos descasos políticos
etc. são desafiados e entrecruzados com momentos de alegria e
contenteza mediante o vigor de
suas tradições culturais, de suas
resistências e labutas. A palavra
Sertania se traduz como o
“estado d’alma dos povos dos
Sertões”, como expressão dos
“cafundós dos sentimentos, crenças e valores que perfazem os
estados mais fundos e vastos do
ser dessa gente sertânica”, afirma
o autor do livro.
Sugestão de livros
Sugestão de filmes
Livro do Desassossego – Fernando Pessoa
O malabarista – Alessandro Pitombo
Uni duni tê – Ângela Lagos
Gramática expositiva do chão – Manoel de Barros
As três ecologias – Félix Guatari
A busca – dir. Luciano Moura
The First Grader – dir. Justin Chadwick
Trampolim do Forte – dir. João Rodrigo Mattos
Tatuagem – dir. Hilton Lacerda
Hannah Arendt – dir. Margarethe Von Trotta
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artigos
Escola Família Agrícola de Valente: buscando caminhos
para formação do sujeito do campo no território do sisal
Alessandra Alexandre Freixo
Professora da UEFS
A questão da Educação no Brasil tem sido alvo de grandes debates, em grande variedade de
fóruns, desde as reuniões científicas sobre o tema, no interior
das escolas, até no cotidiano dos
nossos lares, quando percebemos que a escola não vem cumprindo seu papel na formação
dos sujeitos. Quando tal temática
se estende ao meio rural, atinge
um nível de complexidade ainda
maior e são frequentes as críticas
ao modelo de escola vigente:
uma escola ideal, com alunos
ideais, construindo um currículo
ideal.
O universo cultural no meio
rural apesar de ser, indubitavelmente, diferente daquele do
mundo urbano, é frequentemente desconsiderado nas propostas
curriculares das escolas rurais,
que seguem um modelo urbanizador de escola e de sociedade.
É importante ainda que a escola
do campo resgate, valorize e respeite a sua cultura; incentive a
preservação do meio ambiente;
aproveite os conhecimentos e
experiências do homem e da mulher do campo, valorizando o seu
trabalho e seu viver.
Experiências locais de contextualização da educação no campo
tem inspirado políticas educacionais, que culminaram no estabelecimento de diretrizes operacionais para a educação do campo
(BRASIL, 2003), além de iniciativas governamentais, em parceria
com toda sociedade civil, para a
ampliação do debate sobre a
educação rural e sua ressignificação no contexto educacional brasileiro.
É nessa perspectiva da conquista de uma educação do campo emancipatória que se inserem
as experiências educativas baseadas na Pedagogia da Alternância, a exemplo das Escolas
Família Agrícola (EFA).
No Brasil, as Escolas Família
Agrícola (EFAs) surgem inspiradas nas experiências e nos princípios educacionais das denominadas “Maison Familial Rural”,
ou Casas Familiares Rurais, que
tiveram início na França na década de 30, num contexto de
grave crise agrícola na Europa,
desencadeada pelo processo de
mecanização da agricultura. Es-
Suzart
ta experiência se tornou, com o
passar dos anos, uma alternativa para os filhos dos camponeses que antes não viam possibilidades de oferecer um ensino
formal aos seus filhos.
As EFAs surgiram no Brasil
em 1969, inicialmente no estado do Espírito Santo e, na década de 1980, expandiu-se por
todo o país. Atualmente, existem cerca de 114 Escolas Famí-
lias Agrícolas no país, sendo a
Bahia o estado mais representativo em número de EFAs, contabilizando cerca de 33 escolas, em
sua grande maioria localizadas
no semiárido (UNEFAB, 2011).
Em que pesem as singularidades de cada EFA algumas características são comuns entre elas,
quais sejam: a) as famílias dos
pequenos agricultores, particularmente seus filhos(as), são os
sujeitos do processo educativo e
participam da gestão através da
Associação mantenedora, estimulando o associativismo; b) o
compromisso com uma formação
escolar, como parte de uma formação integral, partindo da realidade e das necessidades dessas
famílias; c) a busca da interação
entre processo formativo, a família e a comunidade; d) a valorização das atividades em grupo
em que as crianças e jovens assumem responsabilidades; e) a
presença constante de uma equipe de formadores; e, f) a adoção
da Pedagogia da Alternância como a base do projeto educativo.
É nesse quadro, em que homem e mulher do campo buscam
estratégias para consolidação de
uma experiência educativa emancipatória, que a experiência
pedagógica da Escola Família Agrícola Avani de Lima Cunha
(EFA Valente) emerge como objeto de pesquisa, cujas experiências educacionais buscarei apresentar sucintamente a seguir.
A EFA Avani de Lima Cunha e
sua experiência de apropriação da educação pelo homem
do Campo
A história da EFA tem seu ponto de partida no início dos anos
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de 1990, mais precisamente em
1992, quando as atividades de
caprinocultura e piscicultura foram iniciadas na Fazenda Madeira (APAEB, 1992), que abriga a
sede da Escola até os dias atuais.
Em 1995, os encaminhamentos
em torno do Projeto se intensificam com a criação do Conselho
Educacional formado por representantes da Empresa Baiana de
Desenvolvimento
Agrícola
(EBDA), Secretaria de Educação
do Estado (SEC), Igreja Católica,
Igreja Batista, Movimento de Mulheres Rurais, Associação dos
Professores Licenciados da Bahia
(APLB), Departamento Educativo
da APAEB, monitores e pais dos
futuros alunos. O Projeto de implantação da EFA contou ainda
com o apoio da ONG alemã MISEREOR.
A pedagogia da alternância é
então adotada como referência
fundamental para o trabalho a
ser desenvolvido, o que exigiu a
qualificação de dois monitores
durante cerca de 8 meses junto à
equipe de Piúma (Espírito Santo),
que atuaram como multiplicadores junto a educadores da região.
Em 1996 a EFA Avani de Lima
Cunha – escola de Ensino Fundamental – é inaugurada na Fazenda Madeira, oferecendo cerca de
40 vagas de 5ª a 8ª série para
filhos de pequenos agricultores,
sendo a única até então a oferecer esse tipo de ensino na região.
A partir da Pedagogia da Alternância a orientação do trabalho
no EFA tem se organizado basicamente em cinco eixos que visam o enraizamento da população jovem na região trazendo
para a dinâmica da Escola a realidade cotidiana das famílias de
pequenos agricultores num movimento de formação crítica que
incorpora os nexos entre o localregional-global. Os eixos estão
assim estruturados: a) um primeiro eixo está no Planejamento
Pedagógico Temático que permite articular o programa oficial da
Secretaria de Educação e Cultura
com as questões relacionadas à
realidade regional seja nas atividades teóricas seja nas atividades práticas; b) a definição dos
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Temas de Estudo embasa um
segundo eixo do trabalho pedagógico que são os Planos de Estudo (PE).
Esses Planos orientam as atividades que o aluno deve desenvolver durante os intervalos
em que permanece na comunidade e atuam como elemento
que contribui para uma maior
interação entre comunidade e
escola. Os Planos estimulam os
alunos à observação e intervenção sobre a realidade de suas
comunidades a partir da reflexão realizada na EFA sendo acompanhados do registro escrito
individual que servirá de fundamento para a discussão da turma e para construção da Síntese Temática que fica à cargo do
Professor; c) um terceiro eixo
são as Viagens de Estudo precedidas de pesquisa exploratória
que viabiliza uma maior articulação entre teoria e prática; d)
um quarto eixo está nos Serões,
aqui entendidos como tempo
livre ao final do dia quando alunos e monitores se encontram
no salão para conversas informais, brincadeiras, assistir a
filmes, etc; e) o quinto eixo se
refere às Assembleias com os
pais dos alunos onde o desen-
Nadja Pitombo
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volvimento e os resultados do
trabalho são discutidos e avaliados.
Os Planos de Estudo (PE),
constituem-se no principal instrumento pedagógico da EFA e
baseiam-se num método de pesquisa participativa, que possibilita analisar os vários aspectos da
realidade do aluno promovendo
uma relação direta entre a vida e
a escola (EFA Valente, 2009).
Através do Plano de Estudo as
potencialidades da alternância se
viabilizam, tornando-se atos concretos de ponto de reflexão. Os
Planos são orientados por temas
geradores centrais, desenvolvidos ao longo do ano letivo, e variam de acordo com a série, o
contexto e a demanda dos alunos
e de suas comunidades, sendo
estes escolhidos e debatidos por
toda comunidade escolar, incluindo-se aí os pais dos educandos.
Atualmente, os temas elencados
pela EFA de Valente são: Escola,
família
e
comunidade
(desenvolvido no 6º ano); Sustentabilidade (7º ano); Convivência com o semiárido (8º ano)
e Política (9º ano).
Atualmente, a EFA de Valente
é mantida pela Associação de
Pais e Amigos da Escola Família
Agrícola Avani de Lima CunhaAPAEFA, inaugurada em 2007. A
APAEFA, instituição parceira, é
composta por doze pessoas entre
pais, ex-alunos e lideranças comunitárias, que buscam defender
os interesses da escola e contribuir para seu funcionamento.
A operacionalização dos princípios pedagógicos na dinâmica
cotidiana da Escola envolve um
conjunto de atividades em que
os alunos aprendem técnicas e
estratégias de convivência no semiárido visando fortalecer o sentimento de pertencimento dos
jovens ao semiárido em contraposição à ideia de que os centros
urbanos seriam a única alternativa para “sucesso” social e profissional desses jovens.
É nesse cotidiano que os alunos estão continuamente envolvidos em pesquisar e implementar atividades econômicas compatíveis com as condições que
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caracterizam o semiárido, avaliando sua viabilidade e rentabilidade. Assim, em sala de aula
questões como a escassez de água, os cuidados no manejo do
solo, as tecnologias para construção de cisterna e aguadas, os
cuidados com o meio ambiente
se complementam com o acompanhamento direto da criação de
bodes, cabras, porcos, galinhas,
garantindo parte do orçamento
da EFA no item alimentação.
Por outro lado, é importante
enfatizar que o trabalho e a presença da EFA-Valente junto às
diferentes comunidades só podem ser avaliados sob a perspectiva de uma ligação profunda entre a vida na escola, a dinâmica
social em que seus sujeitos estão
inseridos e o processo de afirmação e conquistas do sujeito no/do
campo. Esse é o terreno fértil em
que se inserem os avanços, as
contradições e as possibilidades
da experiência de EFA-Valente.
A partir da experiência aqui
descrita, é possível identificar a
relevância, a abrangência e contribuição da Escola Família Agrícola neste contexto de grande
exclusão social que se constitui a
região sisaleira da Bahia. A EFAValente, com sua experiência acumulada de mais de 15 anos,
revela-se como um projeto educativo ímpar, no qual a Pedagogia da Alternância assume papel
primordial na contextualização da
educação local e uma proposta
viável de educação do campo,
uma educação humanista, que
visa a formação integral do cidadão do campo.
A EFA representa, acima de
tudo, um movimento contrahegemônico, transformador, que
visa romper com o círculo vicioso
da educação rural urbanizante,
comprometida com o capital financeiro. Certamente, seu compromisso, ao contrário é com a
constituição e fortalecimento de
capital social, cultural e humano
locais, buscando alternativas de
desenvolvimento rural sustentável e visando a redução da pobreza e exclusão social tão comuns no semiárido.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação.
Conselho Nacional de Educação.
Diretrizes Operacionais para a
Educação Básica nas Escolas do
Campo. Resolução 1. 2003.
EFA-VALENTE. Projeto Político
Pedagógico. 2009 (mimeo)
UNEFAB. União Nacional de Escolas Famílias Agrícolas do Brasil.
2011. Disponível em: <http://
www.unefab.org.br/>. Acesso
em: 14 nov. 2011.
Lucas Santos
O Mal é um problema de
quadra(s) epocais
Ir. José Conceição S. Araujo
PUC - Santiago, Chile
Ao introduzir sua obra Deus
para pensar, sobre o Mal e o
homem, Adolphe Gesche dispara: “Não cabe dúvida de que o
mal é o mais irritante que há no
mundo. Perturba o coração e a
razão, pondo-os frente aos últimos interrogantes” (GESCHE,
1995, p. 15). E ao dissertar sobre o tema, o autor concorda
que tratar do tema do mal nos
leva ao mesmo tempo a falar de
Deus, pois não se trata de coisas distintas. Pois ou se parte
da denúncia de Deus (Contra
Deum); da sua defesa (Pro Deo); ou plantea desde o ponto de
vista de que passa por Deus de
alguma forma (In Deo); ou ainda faz do mal uma pergunta em
relação a Deus (Ad Deum) ou
então se afirma que o mal é
uma questão que corresponde a
Deus e ele é quem tem que resolver (Cum Deo) (GESCHE,
1995).
O fato de estar estudando Teologia tem me levado várias reflexões. E passei a racionar sobre
essa antiga: a questão do mal.
De onde vem e porque ele existe? Nestas poucas linhas articuladas aponto sorrateiramente e de
relance algumas concepções do
mal na visão de alguns autores
em determinadas épocas e áreas
do conhecimento como a filosofia, a teologia, a antropologia e a
sociologia. A ideia é dar indício
de leituras e vias de investigação
em relação ao tema.
Desde a infância no interior
baiano ouvi diversas teorias acerca da origem do mal. De mi-
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nha avó paterna vinha a explicação baseada na história do Exu;
de minhas tias-avós beatas, a
história de Adão e Eva e Caim e
Abel; minha mãe corroborava as
tias e meu pai a sua mãe a qual
era do “povo de santo”. Como
um bom seguidor dos costumes
eu sempre acreditei nas duas e
nunca me fez mal. Hoje, já adulto em idade e também na fé
(suponho), vejo-me na responsabilidade de pensar mais racionalmente sobre isso com a ajuda de
outros que já pensaram antes de
mim.
Lendo o dicionário de filosofia
de MORA (1982), ele apresenta
alguns pontos de vista sem se
aprofundar em nenhum. Em sua
concepção o mal é metafísico e
incorpora todos os valores negativos pois é o último grau do ser.
Em segundo lugar, esse autor
ainda aponta um outro ponto de
vista onde o mal representa uma
privação do ser, uma privação
determinada. É uma mentalidade
agostiniana e outros escolásticos
onde abarca a metafísica, mas o
vê também sob o ângulo religioso-moral. “...porque não sabia
que o mal é apenas a privação
cujo último termo é o nada.” (AGOSTINHO, 1948: Conf.
III,7).
Segundo uma visão mais teológica, o Dicionário Crítico de Teologia (p.1075-1081) anuncia:
“Mais ainda em Agostinho, admitir a realidade do mal se mostra como uma concessão feita ao
dualismo. [...] O mal de fato não
é; ele não possui outra posição
senão a de ‘privação do bem’,
privativo boni; ele é a ausência
do que deveria ser; e, do nãoser, Deus não poderia ser a causa” (LACOSTE, 2004).
Tal ideia vem de encontro ao
terceiro ponto apresentado por
MORA no qual o mal procede, em
última análise, de Deus ou da
causa primeira. Esta mentalidade
está, segundo ele, fundada na
inexistência de Deus ou no combate a alguma ideia de Deus. Porém, “Deus deve ser absolvido do
processo que lhe movem os homens, responde Leibniz, porque
o mundo tal como é constitui o
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melhor dos mundos possíveis; nele, o mal não é irreal, seja como metafísico,
físico ou moral, mas é aí
necessário à promoção do
maior bem criado possível.” (LACOSTE, 2004).
Assim, o mal não é inerente a Deus mas sua razão é a existência do mundo (MORA, 1982).
Lacoste (2004, p.1079)
afirma que “ao recorrer-se
ao conceito de pecado, reconhece-se que o mal é
inerente à própria ação má
e não é imputável a condições ou circunstâncias”,
assim ele corrobora com
Mora quando cita que a origem do mal está no homem e nas suas atividades.
Tal concepção é compartilhada pela Igreja Católica
no seu magistério expresso
no catecismo:
“Se Deus Pai todo-poderoso,
Criador do mundo ordenado e
bom, cuida de todas as suas criaturas, por que então existe o
mal? [...] Mas por que Deus não
criou um mundo tão perfeito
que nele não possa existir mal
algum? [...]Todavia, na sua sabedoria e bondade infinitas,
Deus quis livremente criar um
mundo
‘em
estado
de
caminhada’ para a sua perfeição
última” (CIgC, nn. 309-310).
Desde uma perspectiva teoantropológica vemos que a realidade do mal é quase que inerente ao ser humano vivente.
Como diz o próprio Lacoste
(2004, p.1080): “Por outro lado,
a ideia de uma raiz do mal é
precisada pela especificação de
todas as corrupções de que o
homem é capaz” e é um problema histórico encarnado que advém desde a pré-história onde a
natureza, a princípio sempre
apareceu ao homem como uma
mescla confusa de bens e males
e o mal ali não passava de uma
noção demasiada abstrata. Evoluindo, passando pela cultura
assírio-babilônica com a personificação de todos os males; pela sapiência egípcia que atribuía
a potencias malignas todo tipo
7
Suzart
de sofrimento; ou ainda pelos
persas com sua ideia de homem
como resumo do universo onde
se dá o combate entre o bem e o
mal; pela Índia que identifica o
bem com a justiça e a felicidade
e tudo que vem contra é designado como mal; passando pela
civilização grega com as perguntas sobre a personalidade, o
Princípio abstrato, o Destino anônimo desde os pré-socráticos até
Epicuro; pelos Estoicos; Platão
com sua ideia de dualismo até
chegar aos primeiros séculos do
cristianismo com Orígenes e
Agostinho. Anos mais tarde a escolástica de Tomás de Aquino
com a sua sistematização teológica em forma de suma e os pensadores reformados. Já na “idade
da razão” encontramos nos no
século XVIII com Voltaire e sua
ideia de conciliação do mal com a
necessidade de um primeiro princípio; com Rousseau que enfrenta o mal de maneira muito sentimental; com Diderot fugindo da
doutrina e Condorcet com a teoria do progresso. Depois dessa
fase no obstante nos deparamos
com as ideias idealistas alemãs
tendo em Kant seu expoente,
que interpretava o mal radical da
natureza humana como um prin-
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Abraão Batista
cípio que alicerça o comportamento de todos os seres racionais finitos, sem circunstâncias
atenuantes. Pulando grandes nomes e feitos de época chegamos
à época dos chamados dualismos
recentes (não platônicos) e ao
existencialismo de Kierkegaard
com suas fases estética, ética e
religiosa e à negação de todos os
valores vitais do pessimismo radical de Sartre; chegando até os
nossos dias. Tudo isso para dizer
que a dose do bem e do mal na
história varia com as civilizações,
e também o sentimento que deles se tem.
As teorias acerca da natureza
do mal, a grosso modo, nos dizem que o mal não é uma realidade separada ou separável,
mais bem forma parte da única
realidade existencial; sem ele tal
realidade seria incompleta. Sua
pobreza ontológica advém da atribuição que lhe é dada de todos
os valores negativos que existem
e possam vir a existir. O mal é
ainda segundo esse agrupamento
de teorias o sacrifício que executa uma parte em benefício do todo, é pura e simplesmente o não
ser, uma aparência, uma ilusão,
um véu que impede a visão do
bem, identificado com o ser
(MORA, 1994). Como se pode
apreender algumas dessas teori-
as são de índole monista, outras
implicam um certo dualismo que
pode ser classificado de moderado e outras até de dualismo
radical.
Numa discussão pré-filosófica
costuma-se estabelecer uma
discussão ainda sobre o mal físico e o mal moral. O primeiro
entendido como o sofrimento, a
dor e o segundo como um tipo
de padecimento que não se identifica com o físico ainda que
de alguma maneira esse possa
sofrer certas alterações. A esse
respeito grande parte depende
da maneira como se enfrenta tal
realidade, como o homem enfrenta esse grande inconveniente que é o mal. Mora sugere algumas formas: para ele existe
aquele tipo de comportamento
de aceitação alegre onde se pode perceber até algum tipo de
satisfação, é o que se chama de
algofilia. Há também a aceitação resignada e por tal resignação os males podem ser reduzidos. Mas há também o desespero,
a
fuga,
a
adesão
(maniqueístas) e a ação que pode ser individual ou coletiva
(MORA, 1994).
Na Filosofia do fim do século
XX, é recorrente a ideia inicial
de Gesche de não poder separar
a reflexão sobre o mal da sua
relação com Deus. “As soluções
principais são as de H. Jonas, segundo a qual Deus, sendo bom
mas não onipotente, não tem
condições de impedir o mal, e a
de L. Pareyson, segundo a qual
Deus contém em si mesmo, nem
que a título de possibilidade já
sempre vencida, traços de mal
(ABBAGNANO, 2012; p. 738).
Outra figura que se deve reconsiderar diante da problemática do
mal e da sua re-dogmatização é
a imagem do Demônio, a qual
deve ser estudada com a atenção
de não cair em categorias fantasmagóricas. Mas isso deixaremos
para uma outra oportunidade.
Não tendo essas poucas linhas
a pretensão de esgotar a temática do mal e nem sei se tal empreitada seria possível diante da
perplexidade de tal tema, encerro por aqui a discussão com mais
perguntas que respostas, mas
repleto de luzes indicadoras de
passagens por onde devo percorrer em caso de querer apreender
mais afundado o que é e de onde
vem essa ideia abstrata que se
materializa no íntimo do ser de
cada homem e que apelidamos
de mal.
Referências
CATECISMO
DA
IGREJA
CATÓLICA. Petrópolis, Editora
Vozes,1993.
GESCHE, A. Dios para pensar I.
El mal. El hombre. Salamanca:
Ediciones Sigueme, 1995
LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário
Crítico de teologia. São Paulo:
Paulinas: Edições Loyola,2004.
MORA, J. F. Diccionario de
Filosofía. Tomo III. Barcelona>
Editorial Ariel, S.A., 1994.
______, José Ferrater. Dicionário
de Filosofia. Publicações Dom
Quixote, Lisboa, 1982.
SANTO AGOSTINHO. Confissões.
[Ed. 14° milhar] – Porto: Livraria
Apostolado da Imprensa,1948. –
(Trad. do original latino de
J.Oliveira Santos, sj e A.
Ambrósio de Pina, sj)
SERTILLANGES, A.D. El problema
del mal
(história). Madrid:
E.P.S.A., 1951. 489p.
Setembro a dezembro de 2013
9
FUXICO Nº 27
Reflexão sobre o filme “Trainspotting” e a patologização
da angústia no mundo contemporâneo
Marcelo Vinicius
Estudante de Psicologia da UEFS
"Trainspotting - Sem Limites" é
um filme britânico de 1996, do
gênero drama, dirigido por Danny
Boyle e com roteiro baseado em
livro homônimo do escritor Irvine
Welsh. O filme conta a vida de
um grupo de jovens viciados em
heroína em Edimburgo, na Escócia. Num subúrbio de Edimburgo,
quatro jovens sem perspectivas
mergulham no submundo para
manter seu vício pela heroína.
"Amigos", que são ladrões e viciados, caminham inexoravelmente
para o fim desta amizade e, simultaneamente (com exceção de
um do bando), marcham para a
auto-destruição.
Logo no início do filme
“Trainspotting”, apresenta-se a
fala de um personagem que diz:
"Escolha viver. Escolha um emprego. Escolha uma carreira, uma
família. Escolha uma televisão enorme. Escolha lavadora, carro,
CD Player e abridor de latas elétrico. Escolha saúde, colesterol
baixo e plano dentário. Escolha
viver. Mas por que eu iria querer
isso? Escolhi não viver. Escolhi
outra coisa. Os motivos? Não há
motivos. Quem precisa de motivos quando tem heroína?”.
É com esse discurso inicial no
filme que podemos perceber,
também, a ideia da procura de
controle e de algo padronizado
sobre a vida. O costume de escolher carreira, família, carro etc.,
no discurso desse personagem,
nos remete ao conceito de uma
vida segura, estabilizada e previsível, onde tudo está no seu lugar. Fugir deste controle é entrar
na angústia. Então, se faz necessário criar um sentido para a nossa existência para se combater o
sem-sentido que gera a angústia.
Nem que este sentido seja escolher um carro ou se tornar um
consumidor alienado (DANTAS;
SÁ; CARRETEIRO, 2009).
Através da ciência, no mundo
contemporâneo, o homem procura dominar as circunstâncias
da vida. Mas há um preço a se
pagar por essas ilusões de controle e previsão, que é administrar a angústia no seu modo patológico de expressão, como as
fobias, compulsões, estados de
pânico e depressão. Então, o ser
humano, na sua ilusão de controle sobre o devir, não aceita a
angústia como sinalizadora da
limitação da ciência e dos padrões sociais de uma vida, que
tenta explicar os fenômenos da
vida perdendo a angústia como
espaço de reflexão privilegiado
sobre a existência (DANTAS; SÁ;
CARRETEIRO, 2009).
Assim, “em nosso contexto
histórico, a angústia é, em geral,
considerada uma condição patológica que deve ser ‘aliviada’ por
terapias ou medicamentos. O
bem-estar humano encontra-se,
cada vez mais, dependente de
saberes técnicos especializados” (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, pag. 7, 2009).
Mas o personagem do filme
evidencia, desde o início, essa
não-necessidade de viver uma
vida padrão que tenta ter o controle sobre o devir, no entanto,
para compensar a sua angústia
de um mundo fora do modelo padrão, ele se envolve com as drogas, quando o mesmo diz: “[...]
não há motivos. Quem precisa de
motivos quando tem heroína?”. A
heroína se torna uma fuga. O que
reafirma também a angústia como algo patológico. Assim, se a
vida do ser humano perde o sentido, e a segurança sobre o devir
se desfaz, ou seja, não há ninguém que lhe diga sobre o que
seria a referência para viver, se
tem então a necessidade de curar
a angústia através de especialistas, combatê-la pelo envolvimento com as ocupações úteis ou se
entregar as drogas. A angústia
aponta para a dimensão trágica
da existência, a fragilidade, vulnerabilidade e a finitude perante
a vida, e isso as pessoas tendem
em não reconhecer (DANTAS; SÁ;
CARRETEIRO, 2009).
O sujeito que rompe com as
familiaridades cotidianas, com os
padrões, com as respostas cientí-
Abraão Batista
10
Setembro a dezembro de 2013
FUXICO Nº 27
ficas que passam segurança sobre
o devir, mostra que o território da
angústia é exatamente esta insuficiência de qualquer território antecipadamente formado ou explicado (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO,
2009).
Se a proliferação de respostas
científicas, religiosas, moralizantes e a padronização de uma vida
segura não podem deter a devastação do mundo enquanto habitação existencial; se em algum momento o sujeito pode fugir destas
respostas, dando a entender que
elas não são o suficiente para suprir a falta que ele tem, é perceptível que a angústia é algo que
nos é essencial e, sendo assim,
assumirmos nossa singularidade é
fundamental para que existam
outros modos de experiência da
angústia, outras formas de desvelamento do real (DANTAS; SÁ;
CARRETEIRO, 2009).
Desse modo, o personagem do
filme tenta sair dessa patologização da angústia como marcas recorrentes dos modos de produção
de subjetividade na época contemporânea, mas, ao invés de
saber lidar com a nova demanda,
que é conseqüência de uma vida
sem sentido por não ter mais aquela sociedade atual que lhe fornecia este sentido, o personagem
se envolve com as drogas para
suprir o seu sem-sentido da vida.
Isso mostra o quanto a sociedade
do consumo, da ciência e da moral padronizou a subjetividade humana, lhe ensinando como ser
feliz, ao invés do próprio sujeito
aprender a lidar com a sua singularidade e ser feliz ao seu modo
(DANTAS; SÁ; CARRETEIRO,
2009).
Assim, percebe-se o papel essencial da angústia na dinâmica
da singularização da existência
humana e a importância da ciência apropria-se desta questão não
como uma reforçadora de patologias, mas abrir espaço para os
processos de singularização que a
angústia pode propiciar, pois é
preciso que se aproprie de outras
possibilidades, para além das dadas pela ideia de patologizar a
angústia (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).
A angústia não pode ser vista
como mero transtorno neuroquímico ou subjetivo a ser sanado
por algum tratamento farmacológico ou psicoterápico adequado, mas como um espaço para
uma nova formação do ser, já
que a angústia pode ser uma
possibilidade de uma experiência
mais própria do existir enquanto
ser-no-mundo. Aprender a lidar
com ela é aprender a lidar com
nosso existir e com tudo o que,
a partir dele, nos vem ao encontro (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO,
2009).
O que pode ser compreendido
nesse contexto é que a vida é
insegurança. A cada momento
nos dirigimos para uma insegu-
rança maior. É um apostar. Nunca
se sabe o que vai acontecer. E é
belo que nunca se saiba. Se fosse
previsível, não valeria a pena viver a vida. Se tudo fosse como se
gostaria que fosse e se tudo fosse
uma certeza, não seriamos seres
humanos, seriamos uma máquina. Só existem certezas e seguranças para as máquinas.
Referência
DANTAS, B. J; SÁ, N. R; CARRETEIRO, C. O. C. T. A patologização da angústia no mundo contemporâneo. Arquivos Brasileiros
de Psicologia, v. 61, n. 2, 2009.
Abraão Batista
A velha novidade: caminhos da
geografia cultural
Onildo Araujo da Silva
Professor da UEFS
A novidade veio dar a praia
Na qualidade rara de sereia
Metade o busto de uma deusa maia
Metade um grande rabo de baleia
A novidade era o máximo
Um paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia
Gilberto Gil
Setembro a dezembro de 2013
A presença do novo normalmente anima e entusiasma. É
comum que seja percebido como a expressão da roda moderna baseada na ideia de
progresso, da qual um conjunto significativo de cientistas
também faz parte. No entanto,
esse “novo” - geografia cultural - já nasce, paradoxalmente, questionando a primazia
dessa razão que pretende gerar o novo.
Entender a geografia cultural é um exercício para além
da própria geografia, pois esse
movimento propõe um repensar da geografia de base racionalista, um repensar da primazia da razão como forma única
de análise do real. O sentimento, a emoção, a fé, não
tem explicação, pois não se
explica a partir do encadeamento lógico, seja que tipo de
lógica utilize.
A geografia cultural, como
conjunto de pressupostos,
nasce sem uma unidade, ou
seja, ao contrário da geografia de
base racionalista, como a crítica,
por exemplo, não propõe um método (mas vários), um tema central (mas um grande e diverso
conjunto de abordagens relacionadas às questões culturais), uma
escola (mas a valorização de múltiplas perspectivas que tem em
comum discordarem da primazia
da razão).
Sempre existiram vozes discordantes que enfatizaram as questões que hoje relacionamos à geografia cultural. Assim, o que é,
às vezes, apresentado como a
grande novidade não passa de
uma releitura ou de uma valorização de pressupostos que no passado foram deixados de lado.
O importante é que, concordando com Claval (2002), a geografia cultural não se opõe a geografia funcionalista, muito menos
se opõe a qualquer outra forma
de fazer geografia, logo não se
preocupa em criar mais uma falsa
dicotomia, das quais a história do
pensamento geográfico está recheada.
A geografia cultural valoriza a
leitura do espaço, pela via da paisagem, do lugar e do território,
FUXICO Nº 27
11
ferenciais da geografia cultural
são tão antigos quanto os das
“outras geografias” e é comum
creditarmos a pensadores como
Paul Vidal de La Blache, por
exemplo, argumentos precursores para esse momento que
se apresenta como novo.
De fato, concordam com Correa
e Rosendhal (2003), existe em
curso um movimento de renovação da geografia cultural que
relêem clássicos como Carl
Sauer, Eric Dardel, Paul Vidal
de La Blache, entre outros, e
propõem novos enfoques, novas abordagens.
Essa renovação valoriza o uso
de métodos como a fenomenologia e a hermenêutica, por exemplo, mas deixa um vasto
campo para outras referências.
Além disso, esse movimento de
renovação valoriza a leitura do
espaço pela via da cultura, não
como forma de oposição às leituras que valorizam o econômico e o social, mas como forma
Suzart
de contribuir com respostas
principalmente, mas não exclusique essas leituras não foram cavamente, mas volta-se para a
pazes de produzir.
investigação daquilo que a geoEnfim, a novidade estendida na
grafia racionalista não valorizou:
nossa praia é mesmo paradoxal,
o sentimento, a fé, a imagem, a
metade busto de uma deusa geoemoção. Entender as relações
gráfica que reclama seu espaço
espaciais a partir desses elecomo novo e metade grande rabo
mentos é tão importante quando
que finca pé nos clássicos referealizar uma investigação sobre
renciais da nossa disciplina. Poo espaço e suas funcionalidades.
rém, importa destacar que ela
De acordo com Gomes
forma um corpo capaz de nos for(1996), na historia da geografia,
necer consistência científica para
a partir da sistematização dos
fazer geografia.
conhecimentos geográficos por
Ritter e Humboltd, podemos iReferências
dentificar geógrafos que defenderam argumentos centrados em
CLAVAL, P. A revolução pósprincípios que permitem subdivifuncionalista e as concepções atudi-los em dois grades grupos:
ais da geografia. In: MENDONÇA,
um de base racionalista que enF; KOZEL, S. (Orgs) Elementos de
globa as escolas que acostumaEpistemologia da Geografia Conmos a chamar de tradicional,
temporânea. Curitiba: UFPR,
teorética e crítica; e um outro
2002 p. 11-43.
base anti-racionalista, que nos
CLAVAL, P. Geografia Cultural. 2ª
acostumamos a chamar de hued. Florianópolis: UFSC, 2001.
manista, de percepção cultural.
CORRÊA, R. L. e ROSENDAHL, Z.
A questão é que a escola de
Introdução à geografia cultural.
base racional foi hegemônica e
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
somente nos anos de 1990 idei2003.
as anti-racionalista começaram a
GOMES, P. C. da C. Geografia e
ser ouvidas com muito crédito e
Modernidade. Bertrand Brasil: Rio
aparecerem como sendo a mais
de Janeiro, 1996.
nova novidade. Pois bem, os re-
12
Setembro a dezembro de 2013
FUXICO Nº 27
Mandingas e patuás, nuances do tempo...
Felipe Augusto Barreto Rangel
Mestrando em História – UEFS
Encruzilhadas à parte, no desenrolar de uma das conferências do VI SETRANS: Seminário
Transdisciplinar, cujo tema central foi A complexidade da teia
das culturas: tradição, pertencimento e diversidade – os desafios do intercultural, realizado
na UEFS, nos deparamos com
uma bela canção, que soprava
poesia sobre as questões gerais
do referido seminário, e em
especial sobre nossa proposta
de comunicação oral.
A música – Oração ao Tempo, de Caetano Veloso – expunha com grande maestria um
ponto de suma importância para as perspectivas do seminário. Cultura, tradição, pertencimento, diversidade, entrelaçamentos, no sentido maior do
termo, entre tantas outras, tiveram justamente o tempo como âncora especial. Como o
espaço é relativamente curto, e
este pequeno texto objetiva
apenas expor algumas reflexões rápidas, traremos apenas
um trecho da dita canção. Diz
ele, “Por seres tão inventivo / E
pareceres contínuo / Tempo
tempo tempo tempo / És um
dos deuses mais lindos / Tempo
tempo tempo tempo...”.
Inventivo e contínuo, dois polos basilares para pensarmos o
tempo, em especial para o ofício
do historiador, campo ao qual
fazemos parte. Como disse Marc
Bloch, historiador medievalista
francês, em obra bastante significativa para as atuais perspectivas históricas, a história é o estudo do homem no tempo
(BLOCH, 2001, p. 55). Espaço
que não está congelado, engessado, mas que se ressignifica
constantemente, entre rupturas
e continuidades, renovando tradições e perpetuando minudências do cotidiano. Ornando-os e
dourando-os ao sabor do desenrolar dos tempos.
Para dar maior consistência a
estes levantamentos, partindo
de nossas inquietações iniciais,
lembramo-nos que, durante a
apresentação de nossa comunicação oral, uma das perguntas
de um de nossos colegas de apresentação foi: “Você acha que
os patuás utilizados hoje em dia
são continuidades das bolsas de
mandinga?” A colocação foi extremamente pertinente, a nosso
ver, pois traçava uma interessante analogia entre termos e
usos em temporalidades distintas, respeitando, é claro, as
fronteiras dos anacronismos.
Vale dizer, que a colocação não
ordenou as palavras literalmente desta forma, mas lembramonos que a ideia foi esta, sem
muitas variações.
As “bolsas de mandinga”,
nosso objeto de estudo, eram
um tipo de amuleto de proteção
corporal, utilizado em todo o
Império português. Consistia
em um pequeno recipiente, de
couro ou pano, no qual diversos
ingredientes eram combinados
em seu interior - pequenos ossos, fragmentos de vegetais,
grãos minerais, entre outros.
Com o tempo, após os processos de evangelização dos terrenos de além-mar, objetos da
ritualística cristã, como hóstias
e/ou fragmentos de Círio Pascal,
passaram a integrar estas combinações mágicas, em especial
no século XVIII. Os relatos temporalmente mais longínquos do
porte destes talismãs nos remetem à costa ocidental africana,
sendo disseminados por todas
as possessões portuguesas
(SANTOS, 2008; CALAINHO,
2008). Segundo Laura de Mello
e Souza, historiadora brasileira,
pioneira nos estudos sobre religiosidade e feitiçaria na América
portuguesa, as bolsas de mandinga setecentistas eram a expressão mais sincrética de todas
as práticas mágicas conhecidas,
congregando em sua feitura elementos de cunho europeu, africano e indígena (SOUZA, 2009,
p. 279).
Com os desbravamentos atlânticos, a circulação de pessoas
possibilitou um intenso contato
de povos com culturas diversas,
gerando uma imensa rede de saberes. Alguns autores atribuem o
uso de amuletos de proteção,
chamados de mandinga, a um
grupo específico de africanos islamizados – os malinkê ou mandingas (CALAINHO, 2008, p.
173). No entanto, no Atlântico
português os usos de magias de
proteção, chamadas também de
mandingas, fossem feitas ou portadas por africanos, crioulos ou
mesmo brancos, não estavam
necessariamente ligadas aos africanos mandingas do outro lado
do Atlântico, e sim a questões
relacionadas ao universo religioso (SANTOS, 2012). Na dimensão das circularidades atlânticas,
inúmeros indivíduos foram processados pela jurisdição inquisitorial por portarem e/ou comercializarem as ditas bolsas de mandinga.
A ideia de mandinga, associada à feitiçaria, foi construída pelos mecanismos de repressão das
expressões espirituais populares,
em especial as inquisições ibéricas, que vasculharam delitos durante toda a Época Moderna. No
que concerne à feitiçaria, genericamente falando, compreendia
muitas vezes a uma caracterização estereotipada das variações
da religiosidade aflorada nas possessões coloniais portuguesas,
assim como na própria metrópole. Os ritos e devoções que discrepavam da cartilha católica
eram demonizados pelos religiosos e classificados como feitiçarias.
Retornando a nossa questão
inicial, sobre a possível ligação
Setembro a dezembro de 2013
entre as mandingas coloniais e
os nossos conhecidos ‘patuás’,
devemos dizer que não encontramos, entre as documentações
inquisitoriais exploradas, nenhuma menção ao referido termo.
No entanto, a pesquisadora Vanicléia Santos mostra que o uso do
termo mandinga aparece enquanto um ‘guarda chuva’ para
tratar dos amuletos utilizados em
diversas partes do Atlântico, inclusive os chamados de patuás.
A autora utiliza elementos documentais, produzidos ainda no século XVIII por Oliveira Mendes,
baiano que se deslocou em estudos para Lisboa; ele presenciou a
visita de comitivas de africanos,
vindos do Daomé, e aproximouse com o intuito de coletar informações sobre os costumes africanos. Sabemos da natureza dos
discursos produzidos sobre os
africanos, balizados pelos estereótipos característicos da época –
feiticeiros, supersticiosos e bárbaros; o cronista baiano não fugiu a esta regra. Interessa-nos
que esta é a primeira referência
nominal encontrada, dentre nossos estudos, acerca das bolsas
de mandinga associadas aos ditos patuás. Segundo a autora,
Oliveira Mendes explica a origem
dos patuás utilizando o termo
“mandinga” justamente pela sua
circulação pelo Atlântico associado a práticas mágicas (SANTOS,
2012; SILVA, 2002, p. 262).
Nesta perspectiva, mesmo
considerando todas as especificidades destes complexos mágicos, é possível perceber um grau
de aproximação entre as lógicas
que sustentavam a feitura e o
porte de bolsas de mandinga e
patuás. Ambos voltados para a
proteção de quem os carregassem, com um imenso leque de
variações de uso, dependendo da
necessidade de seu portador.
O que nos chama mais atenção nestes processos é a plasticidade cultural, a capacidade de
ressignificação com o desenrolar
dos tempos, transformando determinadas instâncias, mas mantendo parte significativa de sua
essência. Um complexo movimento, dotado de rupturas e
FUXICO Nº 27
continuidades. Segundo o antropólogo Roque Laraia, as mudanças culturais compreendem
a dois movimentos: um que é
interno, resultante da dinâmica
do próprio sistema cultural, e
outro que corresponde aos contatos entre sistemas culturais
distintos (LARAIA, 2007, p. 96).
O autor acrescenta ainda que o
segundo tipo é o mais estudado
e o mais presente na maioria
das sociedades humanas. Os
13
to de sua essência. De forma externa incorporou as novas demandas, as especificidades do
mundo colonial, questões de uma
sociedade em constante incerteza, assombrada pelos instrumentos de controle social e religioso.
Os patuás contemporâneos,
considerando que a pergunta de
meu colega tinha este como o
outro polo temporal, talvez possam ser lidos como uma variação
das mandingas. Em qualquer feira livre é possível encontrar bolsinhas de proteção, chamadas de
patuás e, pelas prescrições de
seus vendedores, nos é permitido equiparar o processo de manufatura com as descrições dos
processos inquisitoriais setecentistas, em que as bolsas de mandinga eram abertas e seu conteúdo registrado. O que interessanos, acima de tudo, é tentar entender este movimento de continuidades e rupturas. A junção de
elementos protetores, nuançados
entre mandingas e patuás, talvez
promovam uma boa metáfora
para pensar estas dimensões
temporais, que, segundo Caetano, são contínuas e inventivas...
Referências
Eduarda Tuxá
dois tipos de mudança se complementam, já que não existem
sociedades completamente isoladas.
A bolsa de mandinga, enquanto a materialização de uma
cultura de proteção, fruto da
diáspora, transformou-se, desde
as suas origens na África, até a
disseminação nas Américas. Inúmeros documentos inquisitoriais, e de cronistas que passaram pelas franjas atlânticas, revelaram em suas anotações
parte do caminho percorrido por
este complexo mágico, em dinâmicas de modificação internas e
externas. Internamente, a
“dimensão islâmica” cedeu lugar
para outras lógicas, como a inserção de ingredientes de cunho
cristão, mas não perdendo mui-
BLOCH, Marc Leopold Benjamin.
Apologia da história, ou, O ofício
do historiador. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001.
CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das Mandingas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no antigo regime. Rio de
Janeiro: Garamond, 2008.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico.
21º Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico: século XVIII. São Paulo,
2008. (Tese de doutoramento
apresentada ao programa de pós
-graduação em História Social da
FFLCH – USP)
______. Mandingueiro não é
Mandinga: o debate entre nação,
etnia e outras denominações atribuídas aos africanos no contexto do tráfico. In: PAIVA, Eduardo França; SANTOS, Vanicléia
14
Setembro a dezembro de 2013
FUXICO Nº 27
Silva. (org) África e Brasil no
Mundo Moderno. São Paulo: Annablume, pp. 11-27, 2012.
SILVA, Alberto da Costa e. A memória histórica sobre os costumes particulares dos povos africanos, com relação privativa ao
Reino da Guiné, e nele com respeito ao rei de Daomé, de Luis
Antonio de Oliveira Mendes. AfroÁsia, no 28, pp. 251 - 292, 2002.
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Crônica e
poemas
desaSSOSSEGO!
desaSSOSSEGO! Era deste
modo que sentado ao quintal, à
sombra de um coqueiro com folhas mortas, Zé Pedra Alta, balbuciava, ora palavras de raiva,
ora gargalhadas e rosnos incompreensíveis. Carregava sempre
um chapéu de couro sobre a cabeça e fumo de corda no bolso
esquerdo da camisa. Não aparentava a idade que tinha, apesar dos cabelos prateados conquistados dia a dia.
Não morava nem perto nem
longe de onde lhe conto esta estória, Calixto. Antes que prossiga, tome tento, eu ouvi estória
do meu cumpade, Doca Olho de
Cobra – Permita lhe dizer, o melhor atirador e poeta que já vi
por estas bandas do norte. Só
enxergava de um olho e mesmo
assim era capaz de acertar qualquer asa ou patas em velocidade
de fuga, qualquer coisa que se
mexesse; mas se atenha no que
vou falar. Minha intenção não é
reproduzir estória do meu cumpade Doca Olho de Cobra, mas
sim de seu Zé Pedra Alta. Só
mencionei meu cumpade pra dar
mais apresso de verdade.
Seu Zé era cumpade de Doca,
ambos vaqueiros e poetas. Seu
Zé tinha sete filhos, todos já
bem crescidos e alimentados,
Nadja Pitombo
soube até pouco tempo que um
dos menino virou padre, fez
esses cursos de teólogo, teologia. O mais velho é advogado
na capital; menino de posses.
O restante tomou rumo pra Son
Paulo e nunca mais se arribou
por aqui. Só a menina, Beatriz,
que morava com seu Zé e Dona
Maria – Mulheres direitas, que
cuidavam do Zé parecendo que
cuidando de uma criança.
Sem arrodeios! Num destes
dias, de muito calor e pouca
nuvem no céu, seu Zé não despertou para atividades na roça;
Dona Maria o balançou, e ele
disse – Me deixa mulher. Acordou ao meio dia, lavou a cara,
pôs a camisa, e se sentou no
tamborete dos pés mancos que
ficava na cozinha; não ligou o
rádio e não reclamou do café
que fumegava, embaçando aos
poucos as lentes dos seus óculos. Dona Maria o olhava sem
pronunciar única palavra, mas
pensava no íntimo – será que o
Zé desatinou, meu Jesus Cristo? Até o instante que ela rompeu o mormaço e silêncio que
os arrodeavam por ali – Homi,
o que foi, o café não tá bom? –
seu Zé baixou a cabeça e murmurou baixinho – venha cá
Maria, mais perto, mais... Do-
na Maria perguntou – o que é
que te apoquenta tanto, homi?
Eu descobri Maria, eu descobri;
Deus não existe! Maria no mesmo espaço de tempo reagiu –
não diga uma blasfêmia dessas
Zé. Tu fala isto porque teu passarinho, velho e despenado morreu. – Mas eu ouvi seu último
canto, não sei, não sei te explicar Maria, mas eu pude entender o que ele disse, ele disse
que Deus não existia! – E foi assim, Calixto, que o tal do Zé Pedra Alta começou o seu desatino.
Duas semanas depois chegou
o advogado da capital e na outra
semana o padre. Maria explicou
aos filhos que o pai já não fazia
as atividades da roça, acordava
sempre tarde, passou a beber e
comer a comida dos passarinhos, brincar e rolar no chiqueiro, falar coisas sem sentido;
queimou a única bíblia que havia
em casa, além de começar amizade com a menininha de fitas
alaranjadas no cabelo; ela devia
ter uns nove anos; morava na
casinha sem cerca do outro lado
do roçado. A menininha das fitas
alaranjadas talvez chamasse Carolina, Adelina, não lembro bem,
lembro que Doca sempre se referia a ela como a menina das
fitas alaranjadas no cabelo. Pedra Alta passou a brincar todas
as tardezinhas com ela; ensinava-lhe noções sobre poesia, cores, gostos, desgostos, sobre as
plantas e terminavam quase
sempre o dia brincando com os
animais do roçado. Logo depois
da chegada dos filhos, o advogado atinou que aquilo poderia ser
um caso de esquizofrenia. O
padre não tinha dúvida que era
espiritual.
Pouco tempo depois, seu Zé
P.A. foi internado em manicômio
na capital. Passou apenas quatro
meses. Quando voltou para roça
passou a falar pouco, quase nada. Não comentava mais nada
sobre a existência de Deus, bebia o café, sempre calado, ouvia
rádio sem ao menos dizer um
por menor. A menina da fita alaranjada não apareceu mais. O
Setembro a dezembro de 2013
pai havia proibido de ir à casa
do Zé, depois que a menina começou a ter um comportamento
estranho, dizem que eram falas
arrevesadas e profanas.
Dias depois, do retorno de
seu Zé do hospital psiquiátrico, a
menina dos laços alaranjados
morreu. Dizem que morreu de
tristeza; parou de frequentar a
escola, não comia nem falava.
Passou a ter febre alta todas às
noites e, ao final de duas semanas morreu. Faleceu com um
terço mastigado entre as mãos.
Dizem que mastigava o terço
porque sentia dores terríveis,
outros, falavam que estava possuída pelo espírito mal. Mas ninguém soube explicar.
Seu Zé naquele dia parecia
que sabia de algo. Estava agitado, não conseguiu dormir. Ficou
três dias e duas noites sem dormir. Quando enfim conseguiu
dormir, dormiu por dois dias
consecutivos. Tome muito tento
agora Calixto.
Quando Zé acordou, procurou
a alpercata, mas os pés já não
cabiam nelas, sentia pés, mãos
e sua cabeça maiores; perguntou a Maria quem era ela e o
que ele estava fazendo ali naquela casa. Maria com doçura e
paciência tentou explicar-lhe –
Sou tua mulher homi, teu amor,
tua rainha, lembra não? Zé,
meio confuso foi até o quarto
pegou lençol enrolou sobre o
pescoço, buscou facão, foi ao
roseiral, e como o nazareno, fez
uma coroa de espinho. Assim
como um rei, partiu correndo
pelas veredas até chegar à praça principal do vilarejo, não conseguiu reconhecer ninguém. Alguns o cumprimentavam, outros
apontavam e zombavam, mas
ele só enxergava corpos sem
forma definida, eram todos mistura de bicho e gente, as veredas pareciam andar sozinhas,
sem se precisar caminhar. Bastante agitado Zé circulava pela
praça como se fosse rei. Gritava
palavras de ordem – O Deus de
vocês não existe! – É o rei que
vos fala!
15
FUXICO Nº 27
Começaram a se ajuntar
pessoas ao redor, num ímpeto de medo e coragem,
Zé tentou sair da grande
multidão que o cercava,
mas foi empurrado de volta,
por jagunços, com corpos
de jiboia, que ali riam e se
divertiam com todo o espetáculo. Tomado de medo,
arribou o facão, e tentou
abrir caminho de novo, desta vez o homem com rabo e
patas de escorpião o segurou, acertando o ferrão na
barriga do Pedra Alta. Sangrando no chão, viu todos
aqueles corpos ali, mistura
de gente e bicho. Deu o último suspiro, mistura quase
incompreensível de som e
sangue pronunciou - desaSSOSSEGO!
Lenon Sampaio Bispo
Salvador-BA
Ana Matos
presença
s
s
s
s
Só palhaços brincariam com aqueles balões
só dragões
sorteando valentias
v e n d o
a embalagem da razão
num convite à trapaça
em respeito ao ar
em respeito ao ar
dum enterro que racha
de algum sono rente ao chão
v o g a i s
sonâmbulas
não se ofertam
Não animam nenhum clã do circo de amores
não
não
não
Não
Edson Pielechovski
São Paulo-SP
16
Setembro a dezembro de 2013
FUXICO Nº 27
Vinícius, “presente”!
(Ao centenário de Vinícius
de Moraes)
O corpo que afago
o cigarro que apago
o fogo que trago
o copo que agarro...
Vinícius,
só vi nisso:
souvenirs,
Seus vinis,
nossos versos,
“ócios”, vícios...
Petry Lordelo
Cruz das Almas - BA
Infindo
Eu vi um deus ventando.
Ele ventava tanto tanto tanto...
Tanto que se confundia:
com o dia que o atravessava.
com a praça que o atravessa.
com a aroeira que o atravessava.
com a chuva que o atravessava.
com o arco-íris que o atravessava.
com o mormaço que o atravessava.
com o colibri que o atravessava.
com o pasto que o atravessava.
com o zero a zero que o interrogava.
Até que esse deus esbarrou em mim:
e a mim, me assoviou ...
... me assoviou mesmo!
Até que o vento que há no
seu ventre,
se embaraçou em mim
feito um liame de ninho e
de outras prerrogativas!
Tempos Modernos
Ô seu doutor mim perdoe
Essa minha gonorança
É qu’eu sou um caba veio
Cheio de discunfiança
Veja só, num mim aprumo
Eu nunca mim acustumo
Quesse proguesso qui avança
Mais nesse mundo de hoje
Apareceu tanto invento
Cas nutiça tá correndo
Ligero, iguá pensamento
Qui eu fico assim, parado
Cum cara de bestaiado
Bestão que nem um jumento
Botaro a vida de nóis
Dentro dum tale disqueta
Mete num cumpuntador
E mostar a ficha cumpreta
Pa cabar de interar
Só se vê gente falar
Num’a tale de intreneta
Nóis que é apusentado
É quem se lasca premeiro
Dero um cartão magnésio
Qui é de nóis o tempo inteiro
Nóis põe num caxa eletronco
Fais uns baruio e uns ronco
O bicho cospe o dinheiro
Num supermercado grande
Chamado de shop cente
Tinha um’a escada volante
A bicha cheia de dente
Aquilo era o satanás
Só mim puxava pa traz
E eu querendo ir pa frente
Tem um tale celular
Que inventaro pra nóis
Pode ta no meio da rua
De longe se iscuta a vóis
É do povo sispantar
Todo besta quer usar
Um pindurado no cóis
Os doutor das medicinas
Fizero tanta invenção
Conhece o corpo do home
Que nem a Parma da mão
Dum morto sarva um duente
Arranca inquanto tá quente
Figo, rim e coração
Eu fui fazer uns inzame
E vi uns parece feio
É gente de tanto lado
Um’as luis e uns ispeio
Da gente eles tira uns taco
E im tudo que é buraco
Eles infinha apareio
Ronaldo da Paixão
Feira de Santana-BA
Nasceu em música
Já quere até fazer gente
Fazer home copiado
O home já criou tanto
Qu’esqueceu que foi criado
Vai querer imitar Deus
Só que esse passo seu
Tá difice de ser dado
Do fluxo que é vida e morte
Da sonora sinfônica dos sentidos
O estrépito falatório linguístico
Decadencadeia a música dos
silfos
As vias das luas e sóis anunciam
em pele
O novo imposto impregnado no
informe pretexto
Desenhado Viviscerado,
vicissitudeado
Devir em Ser.
Ana Matos
Feira de Santana-BA
Eu fui lá na capitá
Lá mapertei, seu doutor
Mim metero den’dum bicho
Chamado de levador
As porta foro fechada
E quando abriu, num foi
nada
O quarto mudou de cor
Do livro “Raízes
Nordestinas”
de Valdir Cavalcante de
Matos
Tucano-BA
Eduarda Tuxá