Arte: o humano e o destino
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Arte: o humano e o destino
Núcleo de Investigações Transdisciplinares-NIT – Departamento de Educação/UEFS Ano XIII – Nº 27 – Set./Dez. 2013 – Feira de Santana-BA – ISSN 2179-1139 Arte: o humano e o destino Não somos o ser, somos sempre e inevitavelmente um sendo participial e finito [...] A essência de todo ser humano, porém, é ser uma dobra de finito e nãofinito, sendo e pensando. Somos por estarmos no ser, mas não somos o ser e nem o ser reduz ao estar, embora não haja estar sem ser. O ser humano é ambíguo, é ente e não-ente, está e nãoestá, tem limite e não-limite. De imediato, a realidade não cessa de estar sendo no aparecer e desaparecer. Portanto, não há nem pode haver estar que não implique posição e deposição [...]. A razão é a posição iluminada. As explicações causais da razão só podem afirmar-se como possibilidades que o ser já possibilitou, mas sem esgotarem as possibilidades do ser e de ser. Por isso, não basta conhecer. É necessário ser o que se conhece [...]. Pensar não é raciocinar. É medir-se pela medida do ser auscultando-o em tudo que se dá e nos provoca. Pensar é deixar-se tomar pelo provocar do ser. Há o ver que olha e vê o que se dá no ver, e o ver que não apenas olha, mas vê o nãovisto, na mesma possibilidade de que sendo não somos apenas sendo, mas sempre e já como possibilidade de ser, não-ser, não-ver, não-saber. Mas já somos não-ser, pois estamos sendo. O nada do não- ser é nossa maior dádiva, pois como nada criativo é a fonte, ou seja, a proveniência de todas as nossas possibilidades. Ser é nada. [...] A medida do nada é o ser. A medida do ser é o nada: fonte e proveniência de todas as possibilidades de e para possibilidades. [...] Ser é amar. Amar é sempre algo concreto, deixar vigorar Eros. [...] Eros energia irradiante e unidade de diferenças, é ser. Amar é ser. Há, portanto, um entre vivo, atuante, um vazio de que se nutrem o estar e o ser, um silêncio que é um nada criativo, segundo o pensador Platão. Esse entre, esse pólemos, é o vigorar da unidade de todas as diferenças. Essa abertura de escuta e diálogo faz-se permanentemente e nos lança, de uma maneira radical e originária, no acolhimento das diferenças [...], pois se aprende com o outro na medida em que mais aprofundamos as fronteiras de nossos limites e não-limites, em tudo aquilo que somos e não-somos. Aprender a pensar é aprender a questionar incessantemente não só aos outros, mas, sobretudo, a si mesmo. Aquilo que se aprende só se aprende quando acontece dentro de nós. Ser próprio é o aprender a viver enquanto o saber de saber -se como o a-ser-pensado. Só sabendo renunciar a todo acúmulo de conhecimentos, pelo aprender a pensar, é que poderemos saborear o nada, a plena liberdade do sem limites. E só se põe a caminho do ser quem ama. Amar é mais, muito mais, do que impulsos e sensações. O amar não as exclui, mas as consuma no sentido que subjaz a todas as sensações que nos advêm nos e com os sentidos. Quem só pensa com a luz da razão, não conhece a energia irradiante da fonte originária, a luminosidade do vigorar do amar, acontecendo com e a partir do coração. Fragmentos extraídos do livro “Arte: o humano e o destino”, de Manuel Antonio de Castro Suzart 2 Setembro a dezembro de 2013 FUXICO Nº 27 expediente Comissão Editorial Catiane Santos da Silva João Paulo dos Santos Silva Miguel Almir L. de Araújo (Coord.) Taizy Pereira da Conceição Weslley Moreira de Almeida (Vice-coord.) Conselho Editorial Dr. Eduardo Oliveira (UFBA) Dr. Miguel Almir L. de Araújo (UEFS) Dr. João Francisco Regis de Morais (UNICAMP) Drª. Mirela Figueredo Santos (UEFS) Drª. Sandra Simone Morais Pacheco (UNEB) Dr. Roberval Alves Pereira (UEFS) Editoração Eletrônica e Web designer Catiane Santos da Silva Danilo Cerqueira Almeida UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA Reitor José Carlos Barreto de Santana Diretor do Departamento de Educação Ana Maria Fontes dos Santos Coordenador do NIT Miguel Almir L. de Araújo Site do NIT www.uefs.br/nit Orientações para envio de material - Recebemos artigos, poemas e imagens com temáticas diversas que sejam relevantes para a humanidade. - Texto de até três páginas; espaço simples; fonte times new roman 12; parágrafo com recuo; colocar dados do autor após o título. - Enviar o material para: [email protected] S um ário Editorial Informes VI SETRANS - FLICA 2013 - 6ª Feira do livro - Bienal do livro Bahia2013 - Lançamento do livro Sertania - p. 3 Sugestão de livros e filmes - p. 3 Artigos Escola Família Agrícola de Valente: buscando caminhos para formação do sujeito do campo no território do sisal - p. 4 O Mal é um problema de quadra(s) epocais - p. 6 Reflexão sobre o filme “Trainspotting” e a patologização da angústia no mundo conteporâneo - p. 9 A velha novidade: caminhos da geografia cultural - p. 10 Mandingas e patuás, nuances do tempo... - p. 12 Crônicas e poemas desaSSOSSEGO Lenon Sampaio Bíspo - p. 14 presença Edson Pielechovski - p. 15 Vinícus, “presente”! Petry Lordelo - p. 16 Infindo Ronaldo da Paixão - p. 16 Nasceu em Música Ana Matos – p. 16 Tempos Modernos Valdir Cavalcante de Matos – p. 16 editorial Nesta edição nº27 caminhamos por trilhas que percorrem entrecruzadamente os vãos da educação, da geografia, da teologia, do existencial e do simbólico presente nos ritos e objetos. No artigo “O mal é um problema de quadra(s) epocais” o autor propõe uma reflexão acerca da origem do mal e o porquê de sua existência, partindo da perspectiva de que o mal é quase inerente ao ser humano vivente e que sem ele a realidade seria incompleta e discutindo as formas como o ser humano enfrenta o mal. No texto “Reflexão sobre o filme ‘Trainspotting’ e a patologização da angústia no mundo contemporâneo” o autor questiona os padrões de controle sociais e aponta a angústia como espaço de reflexão privilegiado sobre a existência. O texto “A velha novidade: caminhos da geografia cultural” apresenta nuances de uma geografia que se volta para aquilo que comumente a racionalista não valorizou. Entende fé, imagem e emoção como elementos importantes para a investigação do espaço geográfico. No artigo “Escola Família Agrícola de Valente: buscando caminhos para formação do sujeito no campo, no território do sisal”, a autora traz algumas reflexões sobre a educação do campo, e usa como exemplo a Escola Família Agrícola Avani de Lima Cunha (EFA Valente) descrevendo sucintamente suas experiências educacionais. No texto “Mandingas, patuás, nuances do tempo...” podemos encontrar uma reflexão sobre esses elementos de proteção, suas especificidades e diálogos que estabelecem entre si, assim como suas reinvenções através do tempo. As imagens presentes nesta edição do Fuxico figuram as relações eco-humanas, percepções do mundo indígena e do sertão, inspiram música, sensações gritantes e também ludicidade. Os poemas trazem nos versos nuances dos tempos modernos e sua maquinização, musicalidade, hierofanias e uma homenagem ao poeta Vinícius de Moraes. Há ainda uma crônica que narra o dramático do humano na sua relação consigo mesmo, com o outro em sociedade e com a religião, pondo em xeque as percepções de normalidade e do espiritual. Boas leituras e fruição! Setembro a dezembro de 2013 FLICA Foi realizada nos dias 23 a 27 de outubro, a 3ª edição da Feira Literária Internacional de Cachoeira – FLICA. O evento contou com diversas mesas, apresentações de música e poesia, contação de história e oficinas de quadrinhos e uma programação específica voltada para o público infantil. Artistas de ruas e protestos também fizeram parte do mosaico da feira. Bienal do livro Bahia 2013 Foi realizada de 8 a 17 de novembro, no centro de Convenções da Bahia, a Bienal do Livro Bahia 2013, na qual o público teve acesso a bate-papo com personalidade culturais, autores, jornalistas, além de atividades recreativas e lúdicas. 6ª Feira do livro Aconteceu nos dias 10 a 15 de setembro a 6ª Feira do Livro: Festival Literário e Cultural de Feira de Santana. O evento oportunizou ao público a participação em lançamentos de livros, palestras interativas, mesas-redondas, recitais poéticos, apresentação de teatro, música e muito mais. FUXICO Nº 27 informes diversidade – os desafios do intercultural.” O evento teve momentos de discussões e inquietações como mesa-redonda, duas conferências e as sessões de comunicação, contando também com fruições corpoéticas para apreciarmos apresentações de teatro, dança recital de cordel e músicas. Lançamento do livro “Sertania: sabenças de uma saga agridoce” Está sendo lançado, em diversas localidades, o livro “Sertania: sabenças de uma saga agridoce”, do Prof. Miguel Almir Lima de Araújo (UEFS). O livro é editado pela UEFS Editora. O livro “Sertania...” se descortina como desdobramento de uma ampla pesquisa realizada VI Setrans Os dias 29 e 30 de outubro foram agitados pela realização do VI SETRANS organizado pelo NIT/DEDU. O seminário discutiu propostas do campo da interculturalidade abordando o tema “A complexidade da teia da/s cultura/s: tradição, pertencimento e 3 nos Sertões de 5 estados do Nordeste (Sergipe, Piauí, Pernambuco, Alagoas e Bahia) e Norte de Minas Gerais. Nesta pesquisa foram sedimentados repertórios bastante expressivos acerca dos modos de vida, dos saberes e sentires – das sabedorias/ sabenças – que constituem a vida cotidiana, as pelejas e celebrações dos povos dos Sertões no destinar de suas sagas agridoces. A pesquisa contou com o apoio da UEFS e da FAPESB. Nesses repertórios fica bastante acentuada a presença do espírito e das posturas de solidariedade, de compartilhamento, de honestidade, de respeito, de fé, de luta e de resistência dos/as sertanejos/as nos desafios das intempéries que os/as assolam. Apesar das tantas agruras que os/as afetam, estes/as celebram suas vidas através das folias de suas manifestações culturais como o São João, o Reisado, o Bumba meu boi, dos festejos religiosos, dos mutirões etc. O livro apresenta as intensidades do viver cotidiano desses povos que se configuram numa saga agridoce em que a tristeza, as dores, o sofrimento causado pelas secas, pelos descasos políticos etc. são desafiados e entrecruzados com momentos de alegria e contenteza mediante o vigor de suas tradições culturais, de suas resistências e labutas. A palavra Sertania se traduz como o “estado d’alma dos povos dos Sertões”, como expressão dos “cafundós dos sentimentos, crenças e valores que perfazem os estados mais fundos e vastos do ser dessa gente sertânica”, afirma o autor do livro. Sugestão de livros Sugestão de filmes Livro do Desassossego – Fernando Pessoa O malabarista – Alessandro Pitombo Uni duni tê – Ângela Lagos Gramática expositiva do chão – Manoel de Barros As três ecologias – Félix Guatari A busca – dir. Luciano Moura The First Grader – dir. Justin Chadwick Trampolim do Forte – dir. João Rodrigo Mattos Tatuagem – dir. Hilton Lacerda Hannah Arendt – dir. Margarethe Von Trotta 4 Setembro a dezembro de 2013 FUXICO Nº 27 artigos Escola Família Agrícola de Valente: buscando caminhos para formação do sujeito do campo no território do sisal Alessandra Alexandre Freixo Professora da UEFS A questão da Educação no Brasil tem sido alvo de grandes debates, em grande variedade de fóruns, desde as reuniões científicas sobre o tema, no interior das escolas, até no cotidiano dos nossos lares, quando percebemos que a escola não vem cumprindo seu papel na formação dos sujeitos. Quando tal temática se estende ao meio rural, atinge um nível de complexidade ainda maior e são frequentes as críticas ao modelo de escola vigente: uma escola ideal, com alunos ideais, construindo um currículo ideal. O universo cultural no meio rural apesar de ser, indubitavelmente, diferente daquele do mundo urbano, é frequentemente desconsiderado nas propostas curriculares das escolas rurais, que seguem um modelo urbanizador de escola e de sociedade. É importante ainda que a escola do campo resgate, valorize e respeite a sua cultura; incentive a preservação do meio ambiente; aproveite os conhecimentos e experiências do homem e da mulher do campo, valorizando o seu trabalho e seu viver. Experiências locais de contextualização da educação no campo tem inspirado políticas educacionais, que culminaram no estabelecimento de diretrizes operacionais para a educação do campo (BRASIL, 2003), além de iniciativas governamentais, em parceria com toda sociedade civil, para a ampliação do debate sobre a educação rural e sua ressignificação no contexto educacional brasileiro. É nessa perspectiva da conquista de uma educação do campo emancipatória que se inserem as experiências educativas baseadas na Pedagogia da Alternância, a exemplo das Escolas Família Agrícola (EFA). No Brasil, as Escolas Família Agrícola (EFAs) surgem inspiradas nas experiências e nos princípios educacionais das denominadas “Maison Familial Rural”, ou Casas Familiares Rurais, que tiveram início na França na década de 30, num contexto de grave crise agrícola na Europa, desencadeada pelo processo de mecanização da agricultura. Es- Suzart ta experiência se tornou, com o passar dos anos, uma alternativa para os filhos dos camponeses que antes não viam possibilidades de oferecer um ensino formal aos seus filhos. As EFAs surgiram no Brasil em 1969, inicialmente no estado do Espírito Santo e, na década de 1980, expandiu-se por todo o país. Atualmente, existem cerca de 114 Escolas Famí- lias Agrícolas no país, sendo a Bahia o estado mais representativo em número de EFAs, contabilizando cerca de 33 escolas, em sua grande maioria localizadas no semiárido (UNEFAB, 2011). Em que pesem as singularidades de cada EFA algumas características são comuns entre elas, quais sejam: a) as famílias dos pequenos agricultores, particularmente seus filhos(as), são os sujeitos do processo educativo e participam da gestão através da Associação mantenedora, estimulando o associativismo; b) o compromisso com uma formação escolar, como parte de uma formação integral, partindo da realidade e das necessidades dessas famílias; c) a busca da interação entre processo formativo, a família e a comunidade; d) a valorização das atividades em grupo em que as crianças e jovens assumem responsabilidades; e) a presença constante de uma equipe de formadores; e, f) a adoção da Pedagogia da Alternância como a base do projeto educativo. É nesse quadro, em que homem e mulher do campo buscam estratégias para consolidação de uma experiência educativa emancipatória, que a experiência pedagógica da Escola Família Agrícola Avani de Lima Cunha (EFA Valente) emerge como objeto de pesquisa, cujas experiências educacionais buscarei apresentar sucintamente a seguir. A EFA Avani de Lima Cunha e sua experiência de apropriação da educação pelo homem do Campo A história da EFA tem seu ponto de partida no início dos anos Setembro a dezembro de 2013 de 1990, mais precisamente em 1992, quando as atividades de caprinocultura e piscicultura foram iniciadas na Fazenda Madeira (APAEB, 1992), que abriga a sede da Escola até os dias atuais. Em 1995, os encaminhamentos em torno do Projeto se intensificam com a criação do Conselho Educacional formado por representantes da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA), Secretaria de Educação do Estado (SEC), Igreja Católica, Igreja Batista, Movimento de Mulheres Rurais, Associação dos Professores Licenciados da Bahia (APLB), Departamento Educativo da APAEB, monitores e pais dos futuros alunos. O Projeto de implantação da EFA contou ainda com o apoio da ONG alemã MISEREOR. A pedagogia da alternância é então adotada como referência fundamental para o trabalho a ser desenvolvido, o que exigiu a qualificação de dois monitores durante cerca de 8 meses junto à equipe de Piúma (Espírito Santo), que atuaram como multiplicadores junto a educadores da região. Em 1996 a EFA Avani de Lima Cunha – escola de Ensino Fundamental – é inaugurada na Fazenda Madeira, oferecendo cerca de 40 vagas de 5ª a 8ª série para filhos de pequenos agricultores, sendo a única até então a oferecer esse tipo de ensino na região. A partir da Pedagogia da Alternância a orientação do trabalho no EFA tem se organizado basicamente em cinco eixos que visam o enraizamento da população jovem na região trazendo para a dinâmica da Escola a realidade cotidiana das famílias de pequenos agricultores num movimento de formação crítica que incorpora os nexos entre o localregional-global. Os eixos estão assim estruturados: a) um primeiro eixo está no Planejamento Pedagógico Temático que permite articular o programa oficial da Secretaria de Educação e Cultura com as questões relacionadas à realidade regional seja nas atividades teóricas seja nas atividades práticas; b) a definição dos FUXICO Nº 27 Temas de Estudo embasa um segundo eixo do trabalho pedagógico que são os Planos de Estudo (PE). Esses Planos orientam as atividades que o aluno deve desenvolver durante os intervalos em que permanece na comunidade e atuam como elemento que contribui para uma maior interação entre comunidade e escola. Os Planos estimulam os alunos à observação e intervenção sobre a realidade de suas comunidades a partir da reflexão realizada na EFA sendo acompanhados do registro escrito individual que servirá de fundamento para a discussão da turma e para construção da Síntese Temática que fica à cargo do Professor; c) um terceiro eixo são as Viagens de Estudo precedidas de pesquisa exploratória que viabiliza uma maior articulação entre teoria e prática; d) um quarto eixo está nos Serões, aqui entendidos como tempo livre ao final do dia quando alunos e monitores se encontram no salão para conversas informais, brincadeiras, assistir a filmes, etc; e) o quinto eixo se refere às Assembleias com os pais dos alunos onde o desen- Nadja Pitombo 5 volvimento e os resultados do trabalho são discutidos e avaliados. Os Planos de Estudo (PE), constituem-se no principal instrumento pedagógico da EFA e baseiam-se num método de pesquisa participativa, que possibilita analisar os vários aspectos da realidade do aluno promovendo uma relação direta entre a vida e a escola (EFA Valente, 2009). Através do Plano de Estudo as potencialidades da alternância se viabilizam, tornando-se atos concretos de ponto de reflexão. Os Planos são orientados por temas geradores centrais, desenvolvidos ao longo do ano letivo, e variam de acordo com a série, o contexto e a demanda dos alunos e de suas comunidades, sendo estes escolhidos e debatidos por toda comunidade escolar, incluindo-se aí os pais dos educandos. Atualmente, os temas elencados pela EFA de Valente são: Escola, família e comunidade (desenvolvido no 6º ano); Sustentabilidade (7º ano); Convivência com o semiárido (8º ano) e Política (9º ano). Atualmente, a EFA de Valente é mantida pela Associação de Pais e Amigos da Escola Família Agrícola Avani de Lima CunhaAPAEFA, inaugurada em 2007. A APAEFA, instituição parceira, é composta por doze pessoas entre pais, ex-alunos e lideranças comunitárias, que buscam defender os interesses da escola e contribuir para seu funcionamento. A operacionalização dos princípios pedagógicos na dinâmica cotidiana da Escola envolve um conjunto de atividades em que os alunos aprendem técnicas e estratégias de convivência no semiárido visando fortalecer o sentimento de pertencimento dos jovens ao semiárido em contraposição à ideia de que os centros urbanos seriam a única alternativa para “sucesso” social e profissional desses jovens. É nesse cotidiano que os alunos estão continuamente envolvidos em pesquisar e implementar atividades econômicas compatíveis com as condições que 6 Setembro a dezembro de 2013 FUXICO Nº 27 caracterizam o semiárido, avaliando sua viabilidade e rentabilidade. Assim, em sala de aula questões como a escassez de água, os cuidados no manejo do solo, as tecnologias para construção de cisterna e aguadas, os cuidados com o meio ambiente se complementam com o acompanhamento direto da criação de bodes, cabras, porcos, galinhas, garantindo parte do orçamento da EFA no item alimentação. Por outro lado, é importante enfatizar que o trabalho e a presença da EFA-Valente junto às diferentes comunidades só podem ser avaliados sob a perspectiva de uma ligação profunda entre a vida na escola, a dinâmica social em que seus sujeitos estão inseridos e o processo de afirmação e conquistas do sujeito no/do campo. Esse é o terreno fértil em que se inserem os avanços, as contradições e as possibilidades da experiência de EFA-Valente. A partir da experiência aqui descrita, é possível identificar a relevância, a abrangência e contribuição da Escola Família Agrícola neste contexto de grande exclusão social que se constitui a região sisaleira da Bahia. A EFAValente, com sua experiência acumulada de mais de 15 anos, revela-se como um projeto educativo ímpar, no qual a Pedagogia da Alternância assume papel primordial na contextualização da educação local e uma proposta viável de educação do campo, uma educação humanista, que visa a formação integral do cidadão do campo. A EFA representa, acima de tudo, um movimento contrahegemônico, transformador, que visa romper com o círculo vicioso da educação rural urbanizante, comprometida com o capital financeiro. Certamente, seu compromisso, ao contrário é com a constituição e fortalecimento de capital social, cultural e humano locais, buscando alternativas de desenvolvimento rural sustentável e visando a redução da pobreza e exclusão social tão comuns no semiárido. Referências BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Resolução 1. 2003. EFA-VALENTE. Projeto Político Pedagógico. 2009 (mimeo) UNEFAB. União Nacional de Escolas Famílias Agrícolas do Brasil. 2011. Disponível em: <http:// www.unefab.org.br/>. Acesso em: 14 nov. 2011. Lucas Santos O Mal é um problema de quadra(s) epocais Ir. José Conceição S. Araujo PUC - Santiago, Chile Ao introduzir sua obra Deus para pensar, sobre o Mal e o homem, Adolphe Gesche dispara: “Não cabe dúvida de que o mal é o mais irritante que há no mundo. Perturba o coração e a razão, pondo-os frente aos últimos interrogantes” (GESCHE, 1995, p. 15). E ao dissertar sobre o tema, o autor concorda que tratar do tema do mal nos leva ao mesmo tempo a falar de Deus, pois não se trata de coisas distintas. Pois ou se parte da denúncia de Deus (Contra Deum); da sua defesa (Pro Deo); ou plantea desde o ponto de vista de que passa por Deus de alguma forma (In Deo); ou ainda faz do mal uma pergunta em relação a Deus (Ad Deum) ou então se afirma que o mal é uma questão que corresponde a Deus e ele é quem tem que resolver (Cum Deo) (GESCHE, 1995). O fato de estar estudando Teologia tem me levado várias reflexões. E passei a racionar sobre essa antiga: a questão do mal. De onde vem e porque ele existe? Nestas poucas linhas articuladas aponto sorrateiramente e de relance algumas concepções do mal na visão de alguns autores em determinadas épocas e áreas do conhecimento como a filosofia, a teologia, a antropologia e a sociologia. A ideia é dar indício de leituras e vias de investigação em relação ao tema. Desde a infância no interior baiano ouvi diversas teorias acerca da origem do mal. De mi- Setembro a dezembro de 2013 nha avó paterna vinha a explicação baseada na história do Exu; de minhas tias-avós beatas, a história de Adão e Eva e Caim e Abel; minha mãe corroborava as tias e meu pai a sua mãe a qual era do “povo de santo”. Como um bom seguidor dos costumes eu sempre acreditei nas duas e nunca me fez mal. Hoje, já adulto em idade e também na fé (suponho), vejo-me na responsabilidade de pensar mais racionalmente sobre isso com a ajuda de outros que já pensaram antes de mim. Lendo o dicionário de filosofia de MORA (1982), ele apresenta alguns pontos de vista sem se aprofundar em nenhum. Em sua concepção o mal é metafísico e incorpora todos os valores negativos pois é o último grau do ser. Em segundo lugar, esse autor ainda aponta um outro ponto de vista onde o mal representa uma privação do ser, uma privação determinada. É uma mentalidade agostiniana e outros escolásticos onde abarca a metafísica, mas o vê também sob o ângulo religioso-moral. “...porque não sabia que o mal é apenas a privação cujo último termo é o nada.” (AGOSTINHO, 1948: Conf. III,7). Segundo uma visão mais teológica, o Dicionário Crítico de Teologia (p.1075-1081) anuncia: “Mais ainda em Agostinho, admitir a realidade do mal se mostra como uma concessão feita ao dualismo. [...] O mal de fato não é; ele não possui outra posição senão a de ‘privação do bem’, privativo boni; ele é a ausência do que deveria ser; e, do nãoser, Deus não poderia ser a causa” (LACOSTE, 2004). Tal ideia vem de encontro ao terceiro ponto apresentado por MORA no qual o mal procede, em última análise, de Deus ou da causa primeira. Esta mentalidade está, segundo ele, fundada na inexistência de Deus ou no combate a alguma ideia de Deus. Porém, “Deus deve ser absolvido do processo que lhe movem os homens, responde Leibniz, porque o mundo tal como é constitui o FUXICO Nº 27 melhor dos mundos possíveis; nele, o mal não é irreal, seja como metafísico, físico ou moral, mas é aí necessário à promoção do maior bem criado possível.” (LACOSTE, 2004). Assim, o mal não é inerente a Deus mas sua razão é a existência do mundo (MORA, 1982). Lacoste (2004, p.1079) afirma que “ao recorrer-se ao conceito de pecado, reconhece-se que o mal é inerente à própria ação má e não é imputável a condições ou circunstâncias”, assim ele corrobora com Mora quando cita que a origem do mal está no homem e nas suas atividades. Tal concepção é compartilhada pela Igreja Católica no seu magistério expresso no catecismo: “Se Deus Pai todo-poderoso, Criador do mundo ordenado e bom, cuida de todas as suas criaturas, por que então existe o mal? [...] Mas por que Deus não criou um mundo tão perfeito que nele não possa existir mal algum? [...]Todavia, na sua sabedoria e bondade infinitas, Deus quis livremente criar um mundo ‘em estado de caminhada’ para a sua perfeição última” (CIgC, nn. 309-310). Desde uma perspectiva teoantropológica vemos que a realidade do mal é quase que inerente ao ser humano vivente. Como diz o próprio Lacoste (2004, p.1080): “Por outro lado, a ideia de uma raiz do mal é precisada pela especificação de todas as corrupções de que o homem é capaz” e é um problema histórico encarnado que advém desde a pré-história onde a natureza, a princípio sempre apareceu ao homem como uma mescla confusa de bens e males e o mal ali não passava de uma noção demasiada abstrata. Evoluindo, passando pela cultura assírio-babilônica com a personificação de todos os males; pela sapiência egípcia que atribuía a potencias malignas todo tipo 7 Suzart de sofrimento; ou ainda pelos persas com sua ideia de homem como resumo do universo onde se dá o combate entre o bem e o mal; pela Índia que identifica o bem com a justiça e a felicidade e tudo que vem contra é designado como mal; passando pela civilização grega com as perguntas sobre a personalidade, o Princípio abstrato, o Destino anônimo desde os pré-socráticos até Epicuro; pelos Estoicos; Platão com sua ideia de dualismo até chegar aos primeiros séculos do cristianismo com Orígenes e Agostinho. Anos mais tarde a escolástica de Tomás de Aquino com a sua sistematização teológica em forma de suma e os pensadores reformados. Já na “idade da razão” encontramos nos no século XVIII com Voltaire e sua ideia de conciliação do mal com a necessidade de um primeiro princípio; com Rousseau que enfrenta o mal de maneira muito sentimental; com Diderot fugindo da doutrina e Condorcet com a teoria do progresso. Depois dessa fase no obstante nos deparamos com as ideias idealistas alemãs tendo em Kant seu expoente, que interpretava o mal radical da natureza humana como um prin- 8 Setembro a dezembro de 2013 FUXICO Nº 27 Abraão Batista cípio que alicerça o comportamento de todos os seres racionais finitos, sem circunstâncias atenuantes. Pulando grandes nomes e feitos de época chegamos à época dos chamados dualismos recentes (não platônicos) e ao existencialismo de Kierkegaard com suas fases estética, ética e religiosa e à negação de todos os valores vitais do pessimismo radical de Sartre; chegando até os nossos dias. Tudo isso para dizer que a dose do bem e do mal na história varia com as civilizações, e também o sentimento que deles se tem. As teorias acerca da natureza do mal, a grosso modo, nos dizem que o mal não é uma realidade separada ou separável, mais bem forma parte da única realidade existencial; sem ele tal realidade seria incompleta. Sua pobreza ontológica advém da atribuição que lhe é dada de todos os valores negativos que existem e possam vir a existir. O mal é ainda segundo esse agrupamento de teorias o sacrifício que executa uma parte em benefício do todo, é pura e simplesmente o não ser, uma aparência, uma ilusão, um véu que impede a visão do bem, identificado com o ser (MORA, 1994). Como se pode apreender algumas dessas teori- as são de índole monista, outras implicam um certo dualismo que pode ser classificado de moderado e outras até de dualismo radical. Numa discussão pré-filosófica costuma-se estabelecer uma discussão ainda sobre o mal físico e o mal moral. O primeiro entendido como o sofrimento, a dor e o segundo como um tipo de padecimento que não se identifica com o físico ainda que de alguma maneira esse possa sofrer certas alterações. A esse respeito grande parte depende da maneira como se enfrenta tal realidade, como o homem enfrenta esse grande inconveniente que é o mal. Mora sugere algumas formas: para ele existe aquele tipo de comportamento de aceitação alegre onde se pode perceber até algum tipo de satisfação, é o que se chama de algofilia. Há também a aceitação resignada e por tal resignação os males podem ser reduzidos. Mas há também o desespero, a fuga, a adesão (maniqueístas) e a ação que pode ser individual ou coletiva (MORA, 1994). Na Filosofia do fim do século XX, é recorrente a ideia inicial de Gesche de não poder separar a reflexão sobre o mal da sua relação com Deus. “As soluções principais são as de H. Jonas, segundo a qual Deus, sendo bom mas não onipotente, não tem condições de impedir o mal, e a de L. Pareyson, segundo a qual Deus contém em si mesmo, nem que a título de possibilidade já sempre vencida, traços de mal (ABBAGNANO, 2012; p. 738). Outra figura que se deve reconsiderar diante da problemática do mal e da sua re-dogmatização é a imagem do Demônio, a qual deve ser estudada com a atenção de não cair em categorias fantasmagóricas. Mas isso deixaremos para uma outra oportunidade. Não tendo essas poucas linhas a pretensão de esgotar a temática do mal e nem sei se tal empreitada seria possível diante da perplexidade de tal tema, encerro por aqui a discussão com mais perguntas que respostas, mas repleto de luzes indicadoras de passagens por onde devo percorrer em caso de querer apreender mais afundado o que é e de onde vem essa ideia abstrata que se materializa no íntimo do ser de cada homem e que apelidamos de mal. Referências CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Petrópolis, Editora Vozes,1993. GESCHE, A. Dios para pensar I. El mal. El hombre. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1995 LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário Crítico de teologia. São Paulo: Paulinas: Edições Loyola,2004. MORA, J. F. Diccionario de Filosofía. Tomo III. Barcelona> Editorial Ariel, S.A., 1994. ______, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1982. SANTO AGOSTINHO. Confissões. [Ed. 14° milhar] – Porto: Livraria Apostolado da Imprensa,1948. – (Trad. do original latino de J.Oliveira Santos, sj e A. Ambrósio de Pina, sj) SERTILLANGES, A.D. El problema del mal (história). Madrid: E.P.S.A., 1951. 489p. Setembro a dezembro de 2013 9 FUXICO Nº 27 Reflexão sobre o filme “Trainspotting” e a patologização da angústia no mundo contemporâneo Marcelo Vinicius Estudante de Psicologia da UEFS "Trainspotting - Sem Limites" é um filme britânico de 1996, do gênero drama, dirigido por Danny Boyle e com roteiro baseado em livro homônimo do escritor Irvine Welsh. O filme conta a vida de um grupo de jovens viciados em heroína em Edimburgo, na Escócia. Num subúrbio de Edimburgo, quatro jovens sem perspectivas mergulham no submundo para manter seu vício pela heroína. "Amigos", que são ladrões e viciados, caminham inexoravelmente para o fim desta amizade e, simultaneamente (com exceção de um do bando), marcham para a auto-destruição. Logo no início do filme “Trainspotting”, apresenta-se a fala de um personagem que diz: "Escolha viver. Escolha um emprego. Escolha uma carreira, uma família. Escolha uma televisão enorme. Escolha lavadora, carro, CD Player e abridor de latas elétrico. Escolha saúde, colesterol baixo e plano dentário. Escolha viver. Mas por que eu iria querer isso? Escolhi não viver. Escolhi outra coisa. Os motivos? Não há motivos. Quem precisa de motivos quando tem heroína?”. É com esse discurso inicial no filme que podemos perceber, também, a ideia da procura de controle e de algo padronizado sobre a vida. O costume de escolher carreira, família, carro etc., no discurso desse personagem, nos remete ao conceito de uma vida segura, estabilizada e previsível, onde tudo está no seu lugar. Fugir deste controle é entrar na angústia. Então, se faz necessário criar um sentido para a nossa existência para se combater o sem-sentido que gera a angústia. Nem que este sentido seja escolher um carro ou se tornar um consumidor alienado (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009). Através da ciência, no mundo contemporâneo, o homem procura dominar as circunstâncias da vida. Mas há um preço a se pagar por essas ilusões de controle e previsão, que é administrar a angústia no seu modo patológico de expressão, como as fobias, compulsões, estados de pânico e depressão. Então, o ser humano, na sua ilusão de controle sobre o devir, não aceita a angústia como sinalizadora da limitação da ciência e dos padrões sociais de uma vida, que tenta explicar os fenômenos da vida perdendo a angústia como espaço de reflexão privilegiado sobre a existência (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009). Assim, “em nosso contexto histórico, a angústia é, em geral, considerada uma condição patológica que deve ser ‘aliviada’ por terapias ou medicamentos. O bem-estar humano encontra-se, cada vez mais, dependente de saberes técnicos especializados” (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, pag. 7, 2009). Mas o personagem do filme evidencia, desde o início, essa não-necessidade de viver uma vida padrão que tenta ter o controle sobre o devir, no entanto, para compensar a sua angústia de um mundo fora do modelo padrão, ele se envolve com as drogas, quando o mesmo diz: “[...] não há motivos. Quem precisa de motivos quando tem heroína?”. A heroína se torna uma fuga. O que reafirma também a angústia como algo patológico. Assim, se a vida do ser humano perde o sentido, e a segurança sobre o devir se desfaz, ou seja, não há ninguém que lhe diga sobre o que seria a referência para viver, se tem então a necessidade de curar a angústia através de especialistas, combatê-la pelo envolvimento com as ocupações úteis ou se entregar as drogas. A angústia aponta para a dimensão trágica da existência, a fragilidade, vulnerabilidade e a finitude perante a vida, e isso as pessoas tendem em não reconhecer (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009). O sujeito que rompe com as familiaridades cotidianas, com os padrões, com as respostas cientí- Abraão Batista 10 Setembro a dezembro de 2013 FUXICO Nº 27 ficas que passam segurança sobre o devir, mostra que o território da angústia é exatamente esta insuficiência de qualquer território antecipadamente formado ou explicado (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009). Se a proliferação de respostas científicas, religiosas, moralizantes e a padronização de uma vida segura não podem deter a devastação do mundo enquanto habitação existencial; se em algum momento o sujeito pode fugir destas respostas, dando a entender que elas não são o suficiente para suprir a falta que ele tem, é perceptível que a angústia é algo que nos é essencial e, sendo assim, assumirmos nossa singularidade é fundamental para que existam outros modos de experiência da angústia, outras formas de desvelamento do real (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009). Desse modo, o personagem do filme tenta sair dessa patologização da angústia como marcas recorrentes dos modos de produção de subjetividade na época contemporânea, mas, ao invés de saber lidar com a nova demanda, que é conseqüência de uma vida sem sentido por não ter mais aquela sociedade atual que lhe fornecia este sentido, o personagem se envolve com as drogas para suprir o seu sem-sentido da vida. Isso mostra o quanto a sociedade do consumo, da ciência e da moral padronizou a subjetividade humana, lhe ensinando como ser feliz, ao invés do próprio sujeito aprender a lidar com a sua singularidade e ser feliz ao seu modo (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009). Assim, percebe-se o papel essencial da angústia na dinâmica da singularização da existência humana e a importância da ciência apropria-se desta questão não como uma reforçadora de patologias, mas abrir espaço para os processos de singularização que a angústia pode propiciar, pois é preciso que se aproprie de outras possibilidades, para além das dadas pela ideia de patologizar a angústia (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009). A angústia não pode ser vista como mero transtorno neuroquímico ou subjetivo a ser sanado por algum tratamento farmacológico ou psicoterápico adequado, mas como um espaço para uma nova formação do ser, já que a angústia pode ser uma possibilidade de uma experiência mais própria do existir enquanto ser-no-mundo. Aprender a lidar com ela é aprender a lidar com nosso existir e com tudo o que, a partir dele, nos vem ao encontro (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009). O que pode ser compreendido nesse contexto é que a vida é insegurança. A cada momento nos dirigimos para uma insegu- rança maior. É um apostar. Nunca se sabe o que vai acontecer. E é belo que nunca se saiba. Se fosse previsível, não valeria a pena viver a vida. Se tudo fosse como se gostaria que fosse e se tudo fosse uma certeza, não seriamos seres humanos, seriamos uma máquina. Só existem certezas e seguranças para as máquinas. Referência DANTAS, B. J; SÁ, N. R; CARRETEIRO, C. O. C. T. A patologização da angústia no mundo contemporâneo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 61, n. 2, 2009. Abraão Batista A velha novidade: caminhos da geografia cultural Onildo Araujo da Silva Professor da UEFS A novidade veio dar a praia Na qualidade rara de sereia Metade o busto de uma deusa maia Metade um grande rabo de baleia A novidade era o máximo Um paradoxo estendido na areia Alguns a desejar seus beijos de deusa Outros a desejar seu rabo pra ceia Gilberto Gil Setembro a dezembro de 2013 A presença do novo normalmente anima e entusiasma. É comum que seja percebido como a expressão da roda moderna baseada na ideia de progresso, da qual um conjunto significativo de cientistas também faz parte. No entanto, esse “novo” - geografia cultural - já nasce, paradoxalmente, questionando a primazia dessa razão que pretende gerar o novo. Entender a geografia cultural é um exercício para além da própria geografia, pois esse movimento propõe um repensar da geografia de base racionalista, um repensar da primazia da razão como forma única de análise do real. O sentimento, a emoção, a fé, não tem explicação, pois não se explica a partir do encadeamento lógico, seja que tipo de lógica utilize. A geografia cultural, como conjunto de pressupostos, nasce sem uma unidade, ou seja, ao contrário da geografia de base racionalista, como a crítica, por exemplo, não propõe um método (mas vários), um tema central (mas um grande e diverso conjunto de abordagens relacionadas às questões culturais), uma escola (mas a valorização de múltiplas perspectivas que tem em comum discordarem da primazia da razão). Sempre existiram vozes discordantes que enfatizaram as questões que hoje relacionamos à geografia cultural. Assim, o que é, às vezes, apresentado como a grande novidade não passa de uma releitura ou de uma valorização de pressupostos que no passado foram deixados de lado. O importante é que, concordando com Claval (2002), a geografia cultural não se opõe a geografia funcionalista, muito menos se opõe a qualquer outra forma de fazer geografia, logo não se preocupa em criar mais uma falsa dicotomia, das quais a história do pensamento geográfico está recheada. A geografia cultural valoriza a leitura do espaço, pela via da paisagem, do lugar e do território, FUXICO Nº 27 11 ferenciais da geografia cultural são tão antigos quanto os das “outras geografias” e é comum creditarmos a pensadores como Paul Vidal de La Blache, por exemplo, argumentos precursores para esse momento que se apresenta como novo. De fato, concordam com Correa e Rosendhal (2003), existe em curso um movimento de renovação da geografia cultural que relêem clássicos como Carl Sauer, Eric Dardel, Paul Vidal de La Blache, entre outros, e propõem novos enfoques, novas abordagens. Essa renovação valoriza o uso de métodos como a fenomenologia e a hermenêutica, por exemplo, mas deixa um vasto campo para outras referências. Além disso, esse movimento de renovação valoriza a leitura do espaço pela via da cultura, não como forma de oposição às leituras que valorizam o econômico e o social, mas como forma Suzart de contribuir com respostas principalmente, mas não exclusique essas leituras não foram cavamente, mas volta-se para a pazes de produzir. investigação daquilo que a geoEnfim, a novidade estendida na grafia racionalista não valorizou: nossa praia é mesmo paradoxal, o sentimento, a fé, a imagem, a metade busto de uma deusa geoemoção. Entender as relações gráfica que reclama seu espaço espaciais a partir desses elecomo novo e metade grande rabo mentos é tão importante quando que finca pé nos clássicos referealizar uma investigação sobre renciais da nossa disciplina. Poo espaço e suas funcionalidades. rém, importa destacar que ela De acordo com Gomes forma um corpo capaz de nos for(1996), na historia da geografia, necer consistência científica para a partir da sistematização dos fazer geografia. conhecimentos geográficos por Ritter e Humboltd, podemos iReferências dentificar geógrafos que defenderam argumentos centrados em CLAVAL, P. A revolução pósprincípios que permitem subdivifuncionalista e as concepções atudi-los em dois grades grupos: ais da geografia. In: MENDONÇA, um de base racionalista que enF; KOZEL, S. (Orgs) Elementos de globa as escolas que acostumaEpistemologia da Geografia Conmos a chamar de tradicional, temporânea. Curitiba: UFPR, teorética e crítica; e um outro 2002 p. 11-43. base anti-racionalista, que nos CLAVAL, P. Geografia Cultural. 2ª acostumamos a chamar de hued. Florianópolis: UFSC, 2001. manista, de percepção cultural. CORRÊA, R. L. e ROSENDAHL, Z. A questão é que a escola de Introdução à geografia cultural. base racional foi hegemônica e Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, somente nos anos de 1990 idei2003. as anti-racionalista começaram a GOMES, P. C. da C. Geografia e ser ouvidas com muito crédito e Modernidade. Bertrand Brasil: Rio aparecerem como sendo a mais de Janeiro, 1996. nova novidade. Pois bem, os re- 12 Setembro a dezembro de 2013 FUXICO Nº 27 Mandingas e patuás, nuances do tempo... Felipe Augusto Barreto Rangel Mestrando em História – UEFS Encruzilhadas à parte, no desenrolar de uma das conferências do VI SETRANS: Seminário Transdisciplinar, cujo tema central foi A complexidade da teia das culturas: tradição, pertencimento e diversidade – os desafios do intercultural, realizado na UEFS, nos deparamos com uma bela canção, que soprava poesia sobre as questões gerais do referido seminário, e em especial sobre nossa proposta de comunicação oral. A música – Oração ao Tempo, de Caetano Veloso – expunha com grande maestria um ponto de suma importância para as perspectivas do seminário. Cultura, tradição, pertencimento, diversidade, entrelaçamentos, no sentido maior do termo, entre tantas outras, tiveram justamente o tempo como âncora especial. Como o espaço é relativamente curto, e este pequeno texto objetiva apenas expor algumas reflexões rápidas, traremos apenas um trecho da dita canção. Diz ele, “Por seres tão inventivo / E pareceres contínuo / Tempo tempo tempo tempo / És um dos deuses mais lindos / Tempo tempo tempo tempo...”. Inventivo e contínuo, dois polos basilares para pensarmos o tempo, em especial para o ofício do historiador, campo ao qual fazemos parte. Como disse Marc Bloch, historiador medievalista francês, em obra bastante significativa para as atuais perspectivas históricas, a história é o estudo do homem no tempo (BLOCH, 2001, p. 55). Espaço que não está congelado, engessado, mas que se ressignifica constantemente, entre rupturas e continuidades, renovando tradições e perpetuando minudências do cotidiano. Ornando-os e dourando-os ao sabor do desenrolar dos tempos. Para dar maior consistência a estes levantamentos, partindo de nossas inquietações iniciais, lembramo-nos que, durante a apresentação de nossa comunicação oral, uma das perguntas de um de nossos colegas de apresentação foi: “Você acha que os patuás utilizados hoje em dia são continuidades das bolsas de mandinga?” A colocação foi extremamente pertinente, a nosso ver, pois traçava uma interessante analogia entre termos e usos em temporalidades distintas, respeitando, é claro, as fronteiras dos anacronismos. Vale dizer, que a colocação não ordenou as palavras literalmente desta forma, mas lembramonos que a ideia foi esta, sem muitas variações. As “bolsas de mandinga”, nosso objeto de estudo, eram um tipo de amuleto de proteção corporal, utilizado em todo o Império português. Consistia em um pequeno recipiente, de couro ou pano, no qual diversos ingredientes eram combinados em seu interior - pequenos ossos, fragmentos de vegetais, grãos minerais, entre outros. Com o tempo, após os processos de evangelização dos terrenos de além-mar, objetos da ritualística cristã, como hóstias e/ou fragmentos de Círio Pascal, passaram a integrar estas combinações mágicas, em especial no século XVIII. Os relatos temporalmente mais longínquos do porte destes talismãs nos remetem à costa ocidental africana, sendo disseminados por todas as possessões portuguesas (SANTOS, 2008; CALAINHO, 2008). Segundo Laura de Mello e Souza, historiadora brasileira, pioneira nos estudos sobre religiosidade e feitiçaria na América portuguesa, as bolsas de mandinga setecentistas eram a expressão mais sincrética de todas as práticas mágicas conhecidas, congregando em sua feitura elementos de cunho europeu, africano e indígena (SOUZA, 2009, p. 279). Com os desbravamentos atlânticos, a circulação de pessoas possibilitou um intenso contato de povos com culturas diversas, gerando uma imensa rede de saberes. Alguns autores atribuem o uso de amuletos de proteção, chamados de mandinga, a um grupo específico de africanos islamizados – os malinkê ou mandingas (CALAINHO, 2008, p. 173). No entanto, no Atlântico português os usos de magias de proteção, chamadas também de mandingas, fossem feitas ou portadas por africanos, crioulos ou mesmo brancos, não estavam necessariamente ligadas aos africanos mandingas do outro lado do Atlântico, e sim a questões relacionadas ao universo religioso (SANTOS, 2012). Na dimensão das circularidades atlânticas, inúmeros indivíduos foram processados pela jurisdição inquisitorial por portarem e/ou comercializarem as ditas bolsas de mandinga. A ideia de mandinga, associada à feitiçaria, foi construída pelos mecanismos de repressão das expressões espirituais populares, em especial as inquisições ibéricas, que vasculharam delitos durante toda a Época Moderna. No que concerne à feitiçaria, genericamente falando, compreendia muitas vezes a uma caracterização estereotipada das variações da religiosidade aflorada nas possessões coloniais portuguesas, assim como na própria metrópole. Os ritos e devoções que discrepavam da cartilha católica eram demonizados pelos religiosos e classificados como feitiçarias. Retornando a nossa questão inicial, sobre a possível ligação Setembro a dezembro de 2013 entre as mandingas coloniais e os nossos conhecidos ‘patuás’, devemos dizer que não encontramos, entre as documentações inquisitoriais exploradas, nenhuma menção ao referido termo. No entanto, a pesquisadora Vanicléia Santos mostra que o uso do termo mandinga aparece enquanto um ‘guarda chuva’ para tratar dos amuletos utilizados em diversas partes do Atlântico, inclusive os chamados de patuás. A autora utiliza elementos documentais, produzidos ainda no século XVIII por Oliveira Mendes, baiano que se deslocou em estudos para Lisboa; ele presenciou a visita de comitivas de africanos, vindos do Daomé, e aproximouse com o intuito de coletar informações sobre os costumes africanos. Sabemos da natureza dos discursos produzidos sobre os africanos, balizados pelos estereótipos característicos da época – feiticeiros, supersticiosos e bárbaros; o cronista baiano não fugiu a esta regra. Interessa-nos que esta é a primeira referência nominal encontrada, dentre nossos estudos, acerca das bolsas de mandinga associadas aos ditos patuás. Segundo a autora, Oliveira Mendes explica a origem dos patuás utilizando o termo “mandinga” justamente pela sua circulação pelo Atlântico associado a práticas mágicas (SANTOS, 2012; SILVA, 2002, p. 262). Nesta perspectiva, mesmo considerando todas as especificidades destes complexos mágicos, é possível perceber um grau de aproximação entre as lógicas que sustentavam a feitura e o porte de bolsas de mandinga e patuás. Ambos voltados para a proteção de quem os carregassem, com um imenso leque de variações de uso, dependendo da necessidade de seu portador. O que nos chama mais atenção nestes processos é a plasticidade cultural, a capacidade de ressignificação com o desenrolar dos tempos, transformando determinadas instâncias, mas mantendo parte significativa de sua essência. Um complexo movimento, dotado de rupturas e FUXICO Nº 27 continuidades. Segundo o antropólogo Roque Laraia, as mudanças culturais compreendem a dois movimentos: um que é interno, resultante da dinâmica do próprio sistema cultural, e outro que corresponde aos contatos entre sistemas culturais distintos (LARAIA, 2007, p. 96). O autor acrescenta ainda que o segundo tipo é o mais estudado e o mais presente na maioria das sociedades humanas. Os 13 to de sua essência. De forma externa incorporou as novas demandas, as especificidades do mundo colonial, questões de uma sociedade em constante incerteza, assombrada pelos instrumentos de controle social e religioso. Os patuás contemporâneos, considerando que a pergunta de meu colega tinha este como o outro polo temporal, talvez possam ser lidos como uma variação das mandingas. Em qualquer feira livre é possível encontrar bolsinhas de proteção, chamadas de patuás e, pelas prescrições de seus vendedores, nos é permitido equiparar o processo de manufatura com as descrições dos processos inquisitoriais setecentistas, em que as bolsas de mandinga eram abertas e seu conteúdo registrado. O que interessanos, acima de tudo, é tentar entender este movimento de continuidades e rupturas. A junção de elementos protetores, nuançados entre mandingas e patuás, talvez promovam uma boa metáfora para pensar estas dimensões temporais, que, segundo Caetano, são contínuas e inventivas... Referências Eduarda Tuxá dois tipos de mudança se complementam, já que não existem sociedades completamente isoladas. A bolsa de mandinga, enquanto a materialização de uma cultura de proteção, fruto da diáspora, transformou-se, desde as suas origens na África, até a disseminação nas Américas. Inúmeros documentos inquisitoriais, e de cronistas que passaram pelas franjas atlânticas, revelaram em suas anotações parte do caminho percorrido por este complexo mágico, em dinâmicas de modificação internas e externas. Internamente, a “dimensão islâmica” cedeu lugar para outras lógicas, como a inserção de ingredientes de cunho cristão, mas não perdendo mui- BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das Mandingas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no antigo regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 21º Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico: século XVIII. São Paulo, 2008. (Tese de doutoramento apresentada ao programa de pós -graduação em História Social da FFLCH – USP) ______. Mandingueiro não é Mandinga: o debate entre nação, etnia e outras denominações atribuídas aos africanos no contexto do tráfico. In: PAIVA, Eduardo França; SANTOS, Vanicléia 14 Setembro a dezembro de 2013 FUXICO Nº 27 Silva. (org) África e Brasil no Mundo Moderno. São Paulo: Annablume, pp. 11-27, 2012. SILVA, Alberto da Costa e. A memória histórica sobre os costumes particulares dos povos africanos, com relação privativa ao Reino da Guiné, e nele com respeito ao rei de Daomé, de Luis Antonio de Oliveira Mendes. AfroÁsia, no 28, pp. 251 - 292, 2002. SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Crônica e poemas desaSSOSSEGO! desaSSOSSEGO! Era deste modo que sentado ao quintal, à sombra de um coqueiro com folhas mortas, Zé Pedra Alta, balbuciava, ora palavras de raiva, ora gargalhadas e rosnos incompreensíveis. Carregava sempre um chapéu de couro sobre a cabeça e fumo de corda no bolso esquerdo da camisa. Não aparentava a idade que tinha, apesar dos cabelos prateados conquistados dia a dia. Não morava nem perto nem longe de onde lhe conto esta estória, Calixto. Antes que prossiga, tome tento, eu ouvi estória do meu cumpade, Doca Olho de Cobra – Permita lhe dizer, o melhor atirador e poeta que já vi por estas bandas do norte. Só enxergava de um olho e mesmo assim era capaz de acertar qualquer asa ou patas em velocidade de fuga, qualquer coisa que se mexesse; mas se atenha no que vou falar. Minha intenção não é reproduzir estória do meu cumpade Doca Olho de Cobra, mas sim de seu Zé Pedra Alta. Só mencionei meu cumpade pra dar mais apresso de verdade. Seu Zé era cumpade de Doca, ambos vaqueiros e poetas. Seu Zé tinha sete filhos, todos já bem crescidos e alimentados, Nadja Pitombo soube até pouco tempo que um dos menino virou padre, fez esses cursos de teólogo, teologia. O mais velho é advogado na capital; menino de posses. O restante tomou rumo pra Son Paulo e nunca mais se arribou por aqui. Só a menina, Beatriz, que morava com seu Zé e Dona Maria – Mulheres direitas, que cuidavam do Zé parecendo que cuidando de uma criança. Sem arrodeios! Num destes dias, de muito calor e pouca nuvem no céu, seu Zé não despertou para atividades na roça; Dona Maria o balançou, e ele disse – Me deixa mulher. Acordou ao meio dia, lavou a cara, pôs a camisa, e se sentou no tamborete dos pés mancos que ficava na cozinha; não ligou o rádio e não reclamou do café que fumegava, embaçando aos poucos as lentes dos seus óculos. Dona Maria o olhava sem pronunciar única palavra, mas pensava no íntimo – será que o Zé desatinou, meu Jesus Cristo? Até o instante que ela rompeu o mormaço e silêncio que os arrodeavam por ali – Homi, o que foi, o café não tá bom? – seu Zé baixou a cabeça e murmurou baixinho – venha cá Maria, mais perto, mais... Do- na Maria perguntou – o que é que te apoquenta tanto, homi? Eu descobri Maria, eu descobri; Deus não existe! Maria no mesmo espaço de tempo reagiu – não diga uma blasfêmia dessas Zé. Tu fala isto porque teu passarinho, velho e despenado morreu. – Mas eu ouvi seu último canto, não sei, não sei te explicar Maria, mas eu pude entender o que ele disse, ele disse que Deus não existia! – E foi assim, Calixto, que o tal do Zé Pedra Alta começou o seu desatino. Duas semanas depois chegou o advogado da capital e na outra semana o padre. Maria explicou aos filhos que o pai já não fazia as atividades da roça, acordava sempre tarde, passou a beber e comer a comida dos passarinhos, brincar e rolar no chiqueiro, falar coisas sem sentido; queimou a única bíblia que havia em casa, além de começar amizade com a menininha de fitas alaranjadas no cabelo; ela devia ter uns nove anos; morava na casinha sem cerca do outro lado do roçado. A menininha das fitas alaranjadas talvez chamasse Carolina, Adelina, não lembro bem, lembro que Doca sempre se referia a ela como a menina das fitas alaranjadas no cabelo. Pedra Alta passou a brincar todas as tardezinhas com ela; ensinava-lhe noções sobre poesia, cores, gostos, desgostos, sobre as plantas e terminavam quase sempre o dia brincando com os animais do roçado. Logo depois da chegada dos filhos, o advogado atinou que aquilo poderia ser um caso de esquizofrenia. O padre não tinha dúvida que era espiritual. Pouco tempo depois, seu Zé P.A. foi internado em manicômio na capital. Passou apenas quatro meses. Quando voltou para roça passou a falar pouco, quase nada. Não comentava mais nada sobre a existência de Deus, bebia o café, sempre calado, ouvia rádio sem ao menos dizer um por menor. A menina da fita alaranjada não apareceu mais. O Setembro a dezembro de 2013 pai havia proibido de ir à casa do Zé, depois que a menina começou a ter um comportamento estranho, dizem que eram falas arrevesadas e profanas. Dias depois, do retorno de seu Zé do hospital psiquiátrico, a menina dos laços alaranjados morreu. Dizem que morreu de tristeza; parou de frequentar a escola, não comia nem falava. Passou a ter febre alta todas às noites e, ao final de duas semanas morreu. Faleceu com um terço mastigado entre as mãos. Dizem que mastigava o terço porque sentia dores terríveis, outros, falavam que estava possuída pelo espírito mal. Mas ninguém soube explicar. Seu Zé naquele dia parecia que sabia de algo. Estava agitado, não conseguiu dormir. Ficou três dias e duas noites sem dormir. Quando enfim conseguiu dormir, dormiu por dois dias consecutivos. Tome muito tento agora Calixto. Quando Zé acordou, procurou a alpercata, mas os pés já não cabiam nelas, sentia pés, mãos e sua cabeça maiores; perguntou a Maria quem era ela e o que ele estava fazendo ali naquela casa. Maria com doçura e paciência tentou explicar-lhe – Sou tua mulher homi, teu amor, tua rainha, lembra não? Zé, meio confuso foi até o quarto pegou lençol enrolou sobre o pescoço, buscou facão, foi ao roseiral, e como o nazareno, fez uma coroa de espinho. Assim como um rei, partiu correndo pelas veredas até chegar à praça principal do vilarejo, não conseguiu reconhecer ninguém. Alguns o cumprimentavam, outros apontavam e zombavam, mas ele só enxergava corpos sem forma definida, eram todos mistura de bicho e gente, as veredas pareciam andar sozinhas, sem se precisar caminhar. Bastante agitado Zé circulava pela praça como se fosse rei. Gritava palavras de ordem – O Deus de vocês não existe! – É o rei que vos fala! 15 FUXICO Nº 27 Começaram a se ajuntar pessoas ao redor, num ímpeto de medo e coragem, Zé tentou sair da grande multidão que o cercava, mas foi empurrado de volta, por jagunços, com corpos de jiboia, que ali riam e se divertiam com todo o espetáculo. Tomado de medo, arribou o facão, e tentou abrir caminho de novo, desta vez o homem com rabo e patas de escorpião o segurou, acertando o ferrão na barriga do Pedra Alta. Sangrando no chão, viu todos aqueles corpos ali, mistura de gente e bicho. Deu o último suspiro, mistura quase incompreensível de som e sangue pronunciou - desaSSOSSEGO! Lenon Sampaio Bispo Salvador-BA Ana Matos presença s s s s Só palhaços brincariam com aqueles balões só dragões sorteando valentias v e n d o a embalagem da razão num convite à trapaça em respeito ao ar em respeito ao ar dum enterro que racha de algum sono rente ao chão v o g a i s sonâmbulas não se ofertam Não animam nenhum clã do circo de amores não não não Não Edson Pielechovski São Paulo-SP 16 Setembro a dezembro de 2013 FUXICO Nº 27 Vinícius, “presente”! (Ao centenário de Vinícius de Moraes) O corpo que afago o cigarro que apago o fogo que trago o copo que agarro... Vinícius, só vi nisso: souvenirs, Seus vinis, nossos versos, “ócios”, vícios... Petry Lordelo Cruz das Almas - BA Infindo Eu vi um deus ventando. Ele ventava tanto tanto tanto... Tanto que se confundia: com o dia que o atravessava. com a praça que o atravessa. com a aroeira que o atravessava. com a chuva que o atravessava. com o arco-íris que o atravessava. com o mormaço que o atravessava. com o colibri que o atravessava. com o pasto que o atravessava. com o zero a zero que o interrogava. Até que esse deus esbarrou em mim: e a mim, me assoviou ... ... me assoviou mesmo! Até que o vento que há no seu ventre, se embaraçou em mim feito um liame de ninho e de outras prerrogativas! Tempos Modernos Ô seu doutor mim perdoe Essa minha gonorança É qu’eu sou um caba veio Cheio de discunfiança Veja só, num mim aprumo Eu nunca mim acustumo Quesse proguesso qui avança Mais nesse mundo de hoje Apareceu tanto invento Cas nutiça tá correndo Ligero, iguá pensamento Qui eu fico assim, parado Cum cara de bestaiado Bestão que nem um jumento Botaro a vida de nóis Dentro dum tale disqueta Mete num cumpuntador E mostar a ficha cumpreta Pa cabar de interar Só se vê gente falar Num’a tale de intreneta Nóis que é apusentado É quem se lasca premeiro Dero um cartão magnésio Qui é de nóis o tempo inteiro Nóis põe num caxa eletronco Fais uns baruio e uns ronco O bicho cospe o dinheiro Num supermercado grande Chamado de shop cente Tinha um’a escada volante A bicha cheia de dente Aquilo era o satanás Só mim puxava pa traz E eu querendo ir pa frente Tem um tale celular Que inventaro pra nóis Pode ta no meio da rua De longe se iscuta a vóis É do povo sispantar Todo besta quer usar Um pindurado no cóis Os doutor das medicinas Fizero tanta invenção Conhece o corpo do home Que nem a Parma da mão Dum morto sarva um duente Arranca inquanto tá quente Figo, rim e coração Eu fui fazer uns inzame E vi uns parece feio É gente de tanto lado Um’as luis e uns ispeio Da gente eles tira uns taco E im tudo que é buraco Eles infinha apareio Ronaldo da Paixão Feira de Santana-BA Nasceu em música Já quere até fazer gente Fazer home copiado O home já criou tanto Qu’esqueceu que foi criado Vai querer imitar Deus Só que esse passo seu Tá difice de ser dado Do fluxo que é vida e morte Da sonora sinfônica dos sentidos O estrépito falatório linguístico Decadencadeia a música dos silfos As vias das luas e sóis anunciam em pele O novo imposto impregnado no informe pretexto Desenhado Viviscerado, vicissitudeado Devir em Ser. Ana Matos Feira de Santana-BA Eu fui lá na capitá Lá mapertei, seu doutor Mim metero den’dum bicho Chamado de levador As porta foro fechada E quando abriu, num foi nada O quarto mudou de cor Do livro “Raízes Nordestinas” de Valdir Cavalcante de Matos Tucano-BA Eduarda Tuxá