Leia os primeiros capitulos

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Leia os primeiros capitulos
A TERRA DE CANAÃ
1643 a.C.
O ancião avistou o grande carvalho, a árvore centenária que durante
muitos anos havia marcado os domínios de Mamre, o amorreu. Era como
se ainda pudesse ver o dia já distante em que, debaixo de suas copas, Sarah
havia rido da promessa. Não por zombaria, talvez por incredulidade, mas
certamente para seu próprio deleite, pois seria testemunha de maravilhas.
Voltou então o olhar na direção da pequena fenda rochosa onde ela agora
descansava e os seus olhos encheram-se de lágrimas.
Segurou com firmeza a pequena tabuinha de argila que carregava em
uma dobra do manto. Recordou a infância em sua velha cidade, a Ur de
Mesilim e de Ur-Nammu, com o zigurate do deus-lua resplandecendo ao
sol de uma tarde de primavera. Permitiu-se um sorriso ao lembrar da
conceituada casa de tábuas, a escola anexa ao templo onde começou a
compreender o mundo e a vida, as histórias de épocas esquecidas, a
narrativa interminável da desventura humana, sempre correndo atrás de
uma glória efêmera. Pensou nos canais e diques que produziam o alimento
excedente, que permitiu a riqueza e o poder das grandes cidades às
margens dos rios Eufrates e Tigre. Lembrou o vaivém constante das
embarcações e das caravanas que cruzavam toda a terra conhecida. Teve os
pensamentos interrompidos subitamente, ao perceber passos às suas costas.
– Esav e Jacob querem vê-lo. E Ismael acaba de chegar com o seu
povo – anunciou Isaac, preocupado com a respiração ofegante do pai – O
que há? Você não parece muito bem!
– Sinto que logo deverei deixá-los! – respondeu o ancião, ao
perceber que havia se cansado do mundo.
– Nossos ancestrais viveram muito tempo e a força ainda reside em
você! Todos temem e respeitam Avraham, o amado do Altíssimo! –
desconversou Isaac, comovido.
– Convivi com alguns desses grandes homens quando vivia nas
terras dos sumérios... Os nossos ancestrais... Uma estirpe abençoada que
preservou parte da dádiva concedida aos primeiros homens – respondeu o
ancião.
– Você pouco falou sobre a sua infância... E menos ainda a respeito
de nossos ancestrais – constatou Isaac, curioso.
– Conheci inclusive o maior deles, o mais antigo dos viventes...
Depois de ser obrigado a fugir de Ur, ainda menino. Avram ainda era o
meu nome. Mas essa é uma história longa, a narrativa de uma grande
busca. E talvez você não tenha paciência para ouvir as lembranças de um
velho... – respondeu, lançando um olhar na direção do poente.
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PRIMEIRO
UR, TERRAS DO SUMMER
1803 a.C.
Avram nunca havia visto o avô tão à vontade quanto naquela
jornada. O deserto produzia em Nacor uma incrível sensação de
rejuvenescimento. Permanecia sempre à frente do grupo, olhando,
perscrutando, analisando rastros, às vezes farejando o vento, que soprava
de um lado e de outro, mesmo sob o calor inclemente. Por vezes saía
apressado e sumia por entre as dunas, voltando em seguida para alguma
pequena correção da rota, para a instrução dos criados ou mesmo para
manifestar algum temor a respeito da presença de estranhos nas
proximidades.
– Olhando para a desolação à nossa volta, as fogueiras parecem ser
um tremendo desperdício – disse Avram, assim que montaram o
acampamento.
– Não se preocupe. Estamos trazendo gravetos suficientes para todo
o tempo que passaremos no deserto. As fogueiras são necessárias para
afastar as feras, que não raro adentram o deserto na perseguição de alguma
presa. E não há leão que resista a uma carne jovem e tenra! – explicou
Nacor, divertindo-se com a reação do neto.
– A não ser que a fera prefira a pessoa mais inquieta e falastrona...
Nesse caso você deveria se considerar o alvo mais atraente! Por sinal, com
toda essa empolgação, imagino que a sua linhagem tenha surgido das areias
desse deserto! – disse Avram.
– O deserto sempre fez muito bem para a nossa gente... Ainda que
esteja cercado de suas intermináveis tábuas de argila, nunca esqueça que há
um pouco de areia correndo em suas veias! – respondeu Nacor.
– Infelizmente não me sinto tão à vontade quanto gostaria! –
lamentou Avram, fazendo uma pausa – Há poucos dias tive um pesadelo.
Estava no deserto e em poucos momentos parecia estar sendo engolido
pela areia, afundando, afundando e, por fim, desaparecendo em um terrível
turbilhão de solidão e esquecimento...
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– Eu e o deserto tivemos os nossos momentos ruins! Havia acabado
de perder a minha mãe. Essas areias, naquele momento, assumiram
proporções assustadoras! Sabe, o velho Sarug sempre dizia que somente os
loucos não temem o deserto... Mas bastaria respeitá-lo para ter tudo:
comida, proteção e mesmo o anonimato que será útil em nossa jornada –
respondeu Nacor, após alguma reflexão.
– Fale mais sobre ele – pediu Avram, curioso.
– Sarug era homem de princípios muito rígidos. Mesmo quando
cercado de pessoas era solitário, não era de meias palavras ou sutilezas.
Mas nesse dia me levou para explorar os arredores do acampamento –
disse Nacor, fazendo novamente uma pausa, enquanto fixava o olhar na
direção das chamas.
O pequeno amontoado de gravetos crepitava, enquanto o vento
parecia sussurrar algo em auxílio de Nacor, que levantou o rosto,
revigorado.
– Andamos um pouco em uma direção qualquer. Então paramos.
Foi quando ele me perguntou o que eu via à minha volta. Respondi,
intrigado, que via areia e alguns tufos de relva rasteira. Ele então me fez
entender que tudo tinha um propósito, que se procurássemos com muito
cuidado, veríamos que a vida pulsava mesmo na aridez, em cada cavidade
na rocha protegida do calor e do frio, onde pequenos animais faziam a sua
habitação e comiam da vegetação rala que encontravam. Ensinou que estes
mesmos animais iriam servir de alimento a outros maiores, que deixavam
os restos para o repasto dos pássaros carniceiros – explicou Nacor.
– Entendo! – disse Avram, comovido.
– Isso não é tudo. O melhor ainda estava por vir. Naquele dia
memorável ele me falou de histórias antigas e passadas de pai para filho,
como um patrimônio familiar. Falou do Único, que operava maravilhas e
que era responsável por cada ser animado sobre a Terra, sobre o ar e sob a
água... Daquele dia em diante eu passei a enxergar não só o deserto, mas o
mundo com outros olhos... – continuou Nacor, emocionado.
– Essas coisas que você disse... Nem mesmo na casa de tábuas de
Ur são Ensinadas! – disse Avram, maravilhado.
– Poucos acreditariam nisso, Avram. Preferem dedicar suas vidas a
deuses que constroem com as suas próprias mãos e que podem ser
controlados ou mesmo utilizados para controlar outros. É sempre mais
prático acreditar naquilo que é conveniente, e com isso vão sendo
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construídos a cada dia novos e diferentes deuses, todos com a sua própria
verdade, feitos à imagem e semelhança de seus artífices e de suas
vontades... – disse Nacor.
– Então essa é a razão de sua implicância com papai, a respeito do
deus Nanna e dos outros ídolos? – perguntou Avram.
– Não deveria culpar o seu pai. Nós nunca tivemos a oportunidade
de ter essa conversa. Eu sempre esperei por um momento propício, que
nunca veio – respondeu Nacor.
– O que mais sabe a respeito dessa divindade? – perguntou Avram,
meio sem-jeito.
– Uma vez ou outra Sarug mencionava algo. Mas eram histórias
esparsas e fragmentadas, que vinham da tradição oral de seus
antepassados. Algumas tão antigas que eram supostamente anteriores ao
grande dilúvio – disse Nacor, despertando, sem intenção, um assunto que
povoava ultimamente os sonhos de Avram.
– O dilúvio? Ouviu falar algo a respeito da epopeia de Gilgamesh e
de Utnapichtim, o escolhido dos deuses? – perguntou Avram, surpreso.
– Gilgamesh? Utnapichtim? Eu não conheço esses nomes. E para
ser sincero, muitas vezes não dava a atenção devida à maioria das histórias
de Sarug. Era jovem e impetuoso. Queria salvar princesas, enfrentar
gigantes e tomar cidades, só com a força do meu braço! Achava que as
narrativas de meu pai eram passatempo de crianças. Hoje sei que perdi
muita coisa! Que poderia ter aprendido mais... – disse Nacor.
– Utnapichtim foi o homem que sobreviveu ao grande dilúvio, salvo
pelos deuses. Ele ganhou como prêmio a vida eterna e vivia afastado do
convívio dos outros homens, até ser encontrado pelo rei Gilgamesh –
explicou Avram.
– O favorito do Único tinha um nome diferente, que eu não consigo
recordar – disse Nacor.
– Gostaria de ter conhecido Sarug! – disse Avram.
– Talvez você ainda possa conhecê-lo. Sarug pode estar vivo e
gozando de boa saúde! Poderemos procurá-lo, depois de passarmos uma
temporada com os rebanhos... Mas aviso que não é uma tarefa fácil! No
último encontro que tivemos, ele havia abandonado o deserto e morava no
extremo norte do Subartu, nos territórios férteis dos arameus, próximo às
grandes montanhas... – recordou Nacor, tocando com carinho a cabeça do
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neto em uma prece silenciosa, enquanto se levantava para dar algumas
instruções ao criado.
Avram sentou-se à entrada da tenda, esforçando-se para esvaziar a
mente dos temores típicos dos rapazes, criados entre as muralhas altas das
cidades. Sentiu um estremecimento interno, como se todas as entranhas
vibrassem em uma cadência única e harmônica com o pulsar
monocromático do deserto. Abriu os braços e sentiu a umidade quase
imperceptível trazida pelo vento, que vinha do Eufrates, às suas costas.
Deitou no chão duro, com o olhar fixo no firmamento e acordou já sob os
primeiros raios da manhã, com os estímulos do avô.
– Vamos apressar a partida, Avram. Não acho seguro retardar a
marcha e nos isolarmos nessa área próxima da margem. A maior parte das
caravanas de comerciantes já partiu e daqui para a frente seguiremos rota
distinta – disse Nacor.
– Estaremos sós a partir de agora? – perguntou Avram.
– Sim, Avram, somente nós e o deserto. Estaremos por nossa conta.
Chegou a hora! – respondeu Nacor, olhando para o neto, em um misto de
curiosidade e compaixão.
– Estou preparado! – respondeu Avram, confiante. E partiram sem
olhar para trás.
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SEGUNDO
ALGUNS DIAS ANTES...
– Mas onde ela está? – perguntou Avram, confuso, ao se deparar
com o cômodo vazio.
– Olhe atrás do baú. É o seu esconderijo predileto – disse Lia.
Ouviram então um riso abafado e nervoso, vindo da direção
apontada. E a sua autora já tentava fugir da vigilância dos dois adultos
quando foi apanhada pelo pai, próxima à porta.
– O que houve? Ainda fugindo de Avram? – perguntou Haram, ao
notar Sarai com as mãos no rosto, fingindo estar incomodada com os
olhares dos adultos.
– Ela não esqueceu do garoto que vivia correndo na área das tendas,
carregando-a nas costas. De vez em quando nos surpreende, chamando
por você! – explicou Haram ao irmão do meio.
– Avram nunca mais brincou comigo. Ele não gosta mais de mim! –
respondeu Sarai, com a voz chorosa.
– Pequena coruja, agora você está em apuros! – provocou Haram.
– Vamos, filha. Dê um abraço em Avram – exortou Lia,
conseguindo atrair a atenção da neta, que finalmente descobriu o rosto,
antes de jogar a franja dos cabelos de lado.
– Está bem! – disse a menina, enquanto vencia o curto espaço que a
separava do rapaz.
– Mas como cresceu! E como está bonita! Não sei se ainda consigo
carregá-la nas costas! – disse Avram, após beijar a testa da sobrinha.
– Eu estou velha agora. Eu não brinco mais de asno ventania. Eu
preciso arranjar um pretendente! – disse a menina repentinamente,
fazendo com que todos rissem.
– Não, meu bem! Você ainda é muito jovem para isso! – interveio Lia.
– Eu pedi a tinta de passar no rosto. Eu vou ficar mais bonita que a
deusa Inanna – continuou.
– Ela foi apanhada outro dia por Zípora com o rosto todo borrado –
explicou Haram.
– Sarai precisa da companhia de crianças da mesma idade. O irmão
Lot tem apenas dois anos. É muito pequeno e quando crescer gostará de
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diversões de meninos – disse Lia, olhando com ternura para a neta. –
Vocês estão criando uma menininha adorável e linda!
– Zípora suspeita que está grávida – disse Haram, para surpresa da
família.
– Que notícia maravilhosa! Então a família irá aumentar! – disse
Avram, felicitando o irmão mais velho.
– Eu vou ter mais um irmãozinho? – perguntou Sarai, que
acompanhava atentamente toda a conversa.
– Sim, não é uma grande novidade? Agora podemos brincar um
pouco, o que acha? – disse Avram, sorrindo para a menina.
– Está bem! Mas eu não quero brincar de asno ventania! –
respondeu Sarai.
– Como? Não quer?! – perguntou Avram, piscando para Haram. Este
imediatamente compreendeu e apanhou Sarai com um movimento rápido e
colocou-a sobre as costas do irmão. Quando a menina começou a dar
gritinhos histéricos, Avram ajoelhou-se no chão e começou a corcovear
suavemente. Em breve a menina ria até a exaustão, divertindo-se com a
brincadeira.
– Você continua apaixonado pela princesa Niniti? – perguntou
Haram, quando percebeu que estava a sós com o irmão.
– De onde você tirou essa ideia? Eu vi a princesa uma única vez. E
muito rapidamente. Ela é quase uma criança, mal vi o seu rosto! – tentou
explicar-se, sem muito sucesso.
– Já estive apaixonado e sei como é isso! – retrucou Haram.
– Agora percebo que foi tudo uma tolice! – continuou Avram, com
alguma hesitação.
– Quem se importa com o sumério antigo? Por que perde tempo
com isso? – perguntou Haram, examinando algumas tabuinhas de argila
que Avram trouxera emprestadas dos arquivos do templo.
– O sumério ainda é a língua dos templos e dos palácios. Não há
como seguir o ofício de escriba sem conhecê-la! – respondeu Avram,
apanhando apressadamente com as mãos em concha boa quantidade da
água armazenada na pequena bacia de argila decorada do vestíbulo.
– O que as pessoas comentam no templo, a respeito da rendição
sem luta do Ensi de Ur? – perguntou Haram.
– O povo diz muitas coisas, Haram. Penso que as opiniões poderiam
ser sintetizadas em uma expressão que ouvi de um dos meus
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companheiros: ao povo pouco importa o nome de quem lhe monte os
lombos, desde que o peso do jugo não lhe tire o fôlego – respondeu
Avram, arrancando um sorriso do irmão.
– No fundo, os mushkenum, o povo simples, acabam sendo mais
práticos do que todos os reis e seus exércitos. Não estão preocupados com
rituais, com protocolo, com poder e com prestígio. Querem um teto,
alimento e, especialmente, paz e segurança para verem crescer os filhos! –
constatou Haram.
– É isso! Pouco importa se pagaremos tributos a Larsa e não mais a
Uruk, desde que a guerra seja evitada. Os danos são sempre suportados
pelo povo simples, que paga com a vida, com os bens e com a liberdade.
Basta lembrar as inscrições do pátio interno do templo, recordando a
derrocada de Ur, há quatro séculos – concordou Avram, com certo pesar.
– Mesmo os deuses não estão imunes à guerra. O poder e a riqueza
de um templo dependem da prosperidade de sua cidade. Uma cidade
destruída representa uma divindade enfraquecida e sem prestígio. Os
deuses são mais dependentes de suas criaturas e da sorte dos seus negócios
do que imaginamos – argumentou Haram.
– Já pensei nisso... Cada vez que vejo os restos da muralha antiga... –
disse Avram, interrompendo momentaneamente a conversa ao perceber
passos.
– Filho, vista-se. A cerimônia está para começar. O seu pai já nos
espera, acompanhado de convidados importantes – disse Lia.
Avram vestiu a túnica branca e o manto de lã fina colorida, com
franjas em cadeias de ambos os lados, usada em ocasiões especiais. Após
terminar de ajustar o cinto de couro que usaria sobre o manto, calçou por
fim as suas sandálias, dirigindo-se ao pátio interno.
– Ainda não me acostumei com estas roupas. Estou me sentindo
como um daqueles velhos corpos enfaixados que dizem existir nas terras
do rei do Egito – comentou, ao seguir na direção do terraço.
– Que tolice! Com certeza você está bem mais confortável! – disse
Haram, rindo da observação – Ah, tenho ainda uma notícia que vai te
deixar muito feliz: Nacor está aqui!
– O quê? Por que não me disseram antes? Onde está ele? –
perguntou Avram, sem disfarçar a ansiedade.
– Está junto com os outros. Chegou há pouco, de surpresa, dizendo
que não perderia a chance de ver de perto o usurpador. Por sorte não
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havia nenhum dos amigos do papai por perto, naquele instante. Ele já
perguntou por você... – respondeu Haram.
A rua da casa de Tareh, o amorreu, calçada com blocos de tijolos
avermelhados, estava apinhada nas bordas e nos terraços pela multidão
que se comprimia, impaciente. Larga, extensa e com poucas curvas
acentuadas, era a principal via de Ur, conduzindo os viajantes das muralhas
externas às cidadelas internas e fortificadas do templo e do palácio.
Quando subiu ao terraço, onde tinha uma boa visão geral do desfile,
Avram logo avistou, à testa da comissão de boas-vindas, o Ensi Abihil SurNammu, regente de Ur, acompanhado de seus conselheiros e de alguns
escribas mais graduados. Poucos passos atrás, carregado por centenas de
homens da guarda palaciana e cercado pelos sacerdotes do templo, o
gigante barbado de rocha esculpida aguardava para receber a homenagem
do novo soberano da cidade.
“Ainda com o mesmo sorriso desdenhoso!” – pensou Avram,
notando o olhar em lápis-lazuli da imensa estátua do deus-lua Nanna, que
tanto o impressionara, quando criança, em suas primeiras visitas ao templo.
Distraído, Avram não se deu conta da figura que furtivamente se
aproximava às suas costas – Cuidado, rapaz. Os telhados dessas casas
velhas não são confiáveis – disse uma voz familiar.
– Nacor? – perguntou Avram, virando-se para fitar o avô, que estava
acompanhado de Tareh e de Nahor, o irmão mais novo.
Nacor não mudara nada nos últimos três anos, quando de sua última
visita. Magro e alto, a barba cheia proibida aos mushkenum e tolerada nos
velhos senhores do deserto, os cabelos grisalhos, ligeiramente
encaracolados, típico dos amorreus, a idade avançada desmentida pelo
vigor físico e pela rapidez mental.
– Como vai, meu rapaz? Soube que fez grandes progressos nos
estudos. O que aprendeu na edubba? – perguntou Nacor, satisfeito ao ver
que Avram estava se tornando um rapaz bonito e espirituoso. Embora não
fosse alto como os guttios, não tivesse os traços delicados da classe
governante egípcia ou mesmo a compleição robusta dos núbios, chamava a
atenção pelos cabelos negros ligeiramente longos, por vezes revoltos, que
lhe davam o ar de um pequeno leãozinho.
– Eu já conheço um pouco da ciência dos astros e dos números, leio
algumas velhas inscrições no sumério antigo, escrevo e leio razoavelmente
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bem no acádico. É um ofício sem muitos sobressaltos – respondeu Avram,
dando de ombros.
– Fico contente por você! Todavia, convém aos homens de nossa
família que honrem a longa tradição do ofício junto aos rebanhos e ao
pastoreio. Vou falar com Tareh e, se ele permitir, vou levá-lo comigo para
uma temporada nas tendas, onde você vai aprender a tirar o sustento do
campo... É claro, caso você queira... – continuou o velho Nacor, virando-se
em seguida na direção de Tareh, que ouvia a conversa.
– Não posso permitir! – respondeu Tareh, como se já esperasse a
proposta do velho Nacor – Avram será escriba do palácio do Ensi, o
regente de Ur. Talvez um dia chegue a mashkin, o servo da câmara de
justiça, ou mesmo um Abgal, o intendente do palácio!
– Mas você deve considerar a possibilidade de seus planos falharem,
da mesma forma como os meus falharam com você! Muitas coisas fogem
ao nosso controle, Tareh. Os nossos ancestrais foram grandes homens e o
Altíssimo caminhava com eles. Não tenho conhecimento de que qualquer
um deles tenha sido um escriba! – retrucou Nacor.
– Que tal deixarem que Avram decida? Ele já tem quinze anos –
sugeriu Haram, divertindo-se com o pai e o avô, que invariavelmente
estavam sempre discutindo.
– Sempre existirão lugares para bons escribas! Não é minha intenção
afastar meu neto das suas obrigações ou de sua vocação. Estou apenas
oferecendo alternativas para o seu futuro! – respondeu Nacor, no
momento em que ecoou por toda a cidade o brado das multidões, que
enchia as ruas e as casas no entorno.
– Deve ser o início do desfile! – disse Avram, aliviado, ao perceber
que o pai e o avô deixariam as diferenças de lado por alguns momentos.
– Vou me juntar aos convidados... – disse Tareh, olhando com
desconfiança para Nacor.
Rim-Sin de Larsa e de boa parte das cidades de Summer e Akkad
surgiu montado em seu carro de combate, tendo ao redor quatro dos
shagins, os mais graduados de seus chefes militares. Seguiam o seu
soberano numerosas tropas de assalto, que marchavam ao som dos
tambores de guerra. O Ensi Abihil saiu da posição que ocupava e postou-se
à meia distância que o separava dos homens de Larsa.
– Saiba todo o povo que deste dia em diante, para todo o sempre, a
amada cidade de Ur prestará tributo ao seu monarca Rim-Sin, senhor das
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quatro regiões do mundo, de Larsa, de Uruk e de Nippur, profeta de
Inanna e Enki, por sábia decisão e suprema concessão de seu protetor
eterno, o grande Nanna, que confere e tira a coroa dos reis – anunciou,
com voz retumbante, um dos ajudantes-de-ordens.
Do outro lado, adiantou-se um dos subalternos de Rim-Sin, que
procedendo do mesmo modo, em voz alta, deu continuidade ao
cerimonial.
– Saiba todo o povo que o seu senhor Rim-Sin atenderá aos apelos
do grande Nanna, assumindo a proteção da amada Ur, que de boa vontade
se submete. Saibam ainda que deverá ser honrado como o grande punho
do rei o príncipe Abihil Sur-Nammu, que abraçou a causa da justiça.
– Veja a falsa expressão de surpresa do Ensi Abihil! Devem existir
muitos tolos aqui imaginando que ele não sabia que seria mantido na função!
– comentou Nacor, com sarcasmo, ao se aproximar do neto. – Essas
cerimônias são boas para quem gosta de barulho e agitação. Quando tinha a
sua idade e sempre que podia, Tareh fugia das tendas e corria para alguma
cidade próxima para ver os desfiles. Em uma das ocasiões quase
enlouqueceu a sua avó. Somente depois de muitas semanas resolveu enviar
um estranho qualquer para dizer que estava vivo. Preciso dizer quem pagou
pelos serviços do mensageiro? – perguntou Nacor, fazendo Avram sorrir.

Terminada a cerimônia reservada ao povo nas ruas, os criados
passaram a circular, servindo os convidados de Tareh, o amorreu, com
iguarias vindas das quatro regiões. Um pouco mais afastados e reservados,
os conselheiros de Ur Ishler-Abu-Il e Romil Sur-Nammu, cumprimentaram
Avram e Nacor discretamente. Tareh retornou ao terraço um quarto de hora
após o fim do desfile, acompanhado de Abner-Gum, importante dignatário
e velho conhecido da família, além de dois rapazes de aparência distinta e
olhar altivo.
– Este é Hamid e aquele é seu companheiro Zahoud. Vieram do norte
para acompanhar as festas. Talvez pudesse mostrar a eles a cidade, o que
acha? – perguntou Abner, assim que notou a aproximação de Avram.
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– Se o meu pai consentir, não vejo problema... – respondeu Avram,
em tom cortês, apanhado de surpresa pela proposta inesperada.
– Ótima ideia. O fato de termos quase a mesma idade provavelmente
facilitará a nossa convivência. Além disso, estamos dispostos a recompensar
seus esforços. Quem sabe, colaborar com a sua família, nas trocas
comerciais de nossas cidades? Conhecemos pessoas importantes que talvez
possam ajudar! – disse Hamid, em tom solícito.
– Enquanto estiverem aqui, será uma grande honra para a família
poder servir aos nossos amigos do norte – interveio Tareh, fazendo uma
mesura exagerada, para desgosto do velho Nacor, que havia se aproximado
do grupo e acompanhava atentamente a conversa.
– Seremos eternamente gratos pela hospitalidade e nos lembraremos
de vocês em nossas orações. Pedirei ao deus-sol, Shamash, meu protetor
pessoal, que ilumine os seus caminhos com as suas chamas de justiça –
respondeu Hamid, devolvendo a gentileza.
– Ora, já estou sentindo o meu traseiro pegar fogo – vociferou Nacor.
Após alguns momentos de silêncio, o constrangimento do pequeno
grupo foi quebrado por uma gargalhada, que ecoou pelo terraço e
contagiou aos demais.
– Esse comentário foi espirituoso, muito próprio dos velhos, sempre
sábios em seus negócios – disse Hamid, que havia sido o responsável pela
gargalhada. A observação, contudo, acabou por deixar o velho Nacor sem
reação, pois não sabia se o rapaz zombava dele ou se realmente lhe dirigia
um elogio.
– Este é Nacor, meu pai... – disse Tareh, envergonhado.
– Tareh, você deve estar orgulhoso de sua família! – aprovou
Hamid, olhando em seguida na direção de Nacor, a quem cumprimentou
com um sorriso.
– Gentileza sua, jovem Hamid – respondeu Tareh, constrangido.
– Penso que esta pequena temporada em Ur será muito divertida,
não é mesmo Zahoud? – perguntou Hamid, ao rapaz calado ao seu lado,
que se limitou a um meneio de cabeça.
– De fato, esta manhã foi bem divertida... Mas devemos ir... Abihil
nos espera para o banquete no palácio... – adiantou-se Romil Sur-Nammu,
após lançar um olhar de soslaio em direção a Nacor.
– Vou acompanhá-lo – disse o conselheiro Ishler-Abu-Il a Romil
Sur-Nammu. – Tareh, somos muito gratos pela recepção. Tenho alguns
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amigos muito interessados naquele lote de tecido de sésamo. Voltaremos a
conversar em breve.
– Creio que seria uma boa ideia permitir que o jovem Avram nos
acompanhe ao banquete. O que acha? – perguntou Hamid a Abner-Gum,
para surpresa de todos.
– Não sei se teremos convites para os mushkenum – interviu Romil
Sur-Nammu, que chamou a atenção de Avram pelo imenso broche em
ouro trabalhado com a insígnia da casa regente, que guarnecia e dava
destaque às suas vestes.
– Acredito que Abihil não se importaria. Afinal, Tareh fez uma
generosa contribuição à despensa do Palácio! – retrucou Abner-Gum, o
chefe do Conselho da cidade.
– É claro, está muito bem... – respondeu o velho Romil, em tom
pouco convincente, enquanto se despedia.
– Avram, regressaremos em duas horas. Poderemos ir juntos ao
palácio – disse Abner, despedindo-se em seguida, antes de sair
acompanhado de seus dois hóspedes.
O rapaz assentiu com a cabeça, preocupado com os encargos que
momentos antes havia assumido. Enquanto os convidados se dirigiam,
acompanhados por Tareh, ao pórtico de entrada da casa, viu-se cercado
pela família, agitada por tantas novidades.
– Ei, não é que a pequena coruja alçou seu voo mais alto! Convidado
para o banquete em honra do rei? Quem diria... – disse Nahor, em tom
provocativo.
– Aquele rapazinho não me engana! Estive observando esse Hamid
e notei a forma como ele media Rim-Sin de cima a baixo, durante o desfile,
enquanto os demais se deslumbravam com toda aquela pompa. Notei
também como ele dominava o rapaz que o acompanhava – comentou
Nacor.
– Será que você não está exagerando um pouco? É apenas um rapaz
ambicioso, como outros tantos, que vemos todos os dias cruzando estas
terras – observou Haram.
– Não estou exagerando. Se você tivesse passado uma temporada
nas tendas, como eu gostaria, saberia do que estou falando! Um homem do
deserto que aprendeu a ser livre, migrando como os pássaros, sabe como
farejar opressão a distância! Esse rapaz não será boa companhia para
Avram! – continuou Nacor.
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– Entendo a sua preocupação. Mas temos de reconhecer que Hamid
tirou você de uma situação bem perigosa. Sou grato por isso. Alguém
poderia tê-lo denunciado às autoridades, quando zombou de um dos
deuses! – contemporizou Avram.
– Ele fez isso porque percebeu que tiraria proveito. Agora Tareh lhe
deve um favor! Por via das dúvidas ficarei algum tempo por aqui, de olho
em você! – respondeu Nacor, resoluto.
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