1 O CAMPONÊS NA IDADE MÉDIA Uma vida inteira de sujeição

Transcrição

1 O CAMPONÊS NA IDADE MÉDIA Uma vida inteira de sujeição
O CAMPONÊS NA IDADE MÉDIA
Uma vida inteira de sujeição
Maria da Piedade Santos Oliveira*
Vânia da Silva Fontes Santos*
José Eduardo Bastos*
Resumo
Na Idade média o trabalho do camponês se constituía na fonte garantidora dos meios de sobrevivência da
sociedade da época. Esse texto se constitui em mais um esforço para compreendermos como o camponês
vivia, como eram seus instrumentos de trabalho, quais as técnicas por ele utilizadas e desenvolvidas, como se
dava a distribuição da renda gerada como fruto do seu trabalho, qual a ideologia que justificava sua
condição social, e a que regras ele estava sujeito.
Palavras-chave: Camponês, terra, subsistência
O camponês pode ser tomado como a figura emblemática da Idade Média.
Numa sociedade que tinha na terra seu único meio de subsistência, era o camponês quem ia
para preparar a terra, plantar e cuidar dos animais. Compreender os principais motivos que
conformaram esse seguimento social a sobreviver em meio a uma existência de total
sujeição, é a condição sine qua non para se entender os motivos que viabilizaram a
sociedade da época.
“Foi um modo de produção regido pela terra e por uma economia natural, na
qual nem o trabalho nem os produtos do trabalho eram bens. O produtor imediato – o
camponês – estava unido ao meio de produção – o solo – por uma especifica relação social.
A fórmula literal deste relacionamento era proporcionada pela definição legal da servidão –
gleba odscripti ou ligados à terra: os servos juridicamente tinham mobilidade restrita. Os
camponeses que ocupavam e cultivavam a terra não eram seus proprietários”.
(ANDERSON, 2004: 143).
Alunos de graduação do Curso de Licenciatura em História da Faculdade José Augusto Vieira. Trabalho
solicitado pelo profesor Marco Antônio Matos Antônio, como pré-requisito da terceira nota da disciplina
História Medieval
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Em sua labuta diária, o camponês do medievo contava com ferramentas como o
arado e charrua. Este último pode ser descrito como um mecanismo que possui duas rodas,
às vezes um jogo dianteiro, além da relha (parte do charrua que penetra na terra), de uma
peça curva à qual se prende o dente do arado
(cambas), de um braço ou guidão, destinado ao
manejo do charrua (foto), de uma lâmina e aiveca
- duas peças que sustentam a relha do arado, e que
serve para alargar o sulco. No manejo que faz da
terra utilizando-se da charrua, o camponês faz
uma opção pelo cavalo, haja vista que, ao
contrário do boi, o eqüino trabalha mais rápido, permitido se fazer várias lavouras seguidas.
O arado é um instrumente que permite a abertura de sulcos na terra, num momento que
precede a semeadura. No século XI esse arado foi aperfeiçoado, passando a contar com
uma alavanca de metal curvo. A terra agora passou a ser mais bem revolvida, o que
contribuiu para melhorar as condições do solo.
Além de poder contar com algumas ferramentas um pouco mais aperfeiçoada, o
camponês passou a proteger as patas do cavalo com ferraduras. Isso permitiu o animal
cobrir distâncias maiores. O cavalo passou a ser amarrado de uma forma que permitia o
mesmo puxar um arado ou uma carroça maior. As carroças passaram por aperfeiçoamentos:
tracionadas por cavalos, elas se tornaram mais rápidas, aumentando a qualidade do
principal meio de transporte de então. Em grande parte da Europa, o trituramento manual
do trigo foi substituído por aquele feito com a utilização do moinho de vento. Isso
significou uma redução drástica no tempo necessário à trituração do trigo usado para se
obter a farinha. A descoberta da roca de fiar permitiu uma redução significativa no tempo
que se levava para transformar a fibra bruta em fio, levando a um aumento imediato da
produção de tecidos.
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O trabalho exercido pelo camponês na Idade média se prolongava por todo o
ano. Em algum momento houve um entendimento da necessidade de se adotar
procedimentos que redundassem na melhoria da qualidade do solo.
O camponês passou a adotar a tática de lavrar a terra, para depois
deixá-la de pousio, permitindo à mesma adquirir força produtiva,
num ato conhecido como alqueive. Há registros na literatura do
Ocidente do século XI que diz que o camponês já fazia a gradagem –
desmanche dos torrões deixados pela charrua, como forma de
promover uma melhor mistura das sementes com a terra. A época
carolíngia testemunhou o camponês lançar mão do recurso do afolhamento, que pode ser
compreendido a divisão de um terreno em grandes porções, para submetê-los depois a um
ciclo ou alternação de culturas.
Enquanto força humana geradora de riquezas, o camponês que viveu na Europa
entre os séculos V e XII tinha como missão promover o sustento econômico das camadas
sociais em relação às quais ele era inferior: o rei, a nobreza e o clero. Para tanto, pesava-lhe
sobre os ombros encargos como a corvéia, a talha, o censo, a julgada e as banalidades. A
corvéia pode ser entendida como a obrigação do servo trabalhar gratuitamente alguns dias
da semana na terra senhorial; pela talha, o camponês estava obrigado a entregar a seu
senhor parte da sua produção; o censo era o tributo reservado a quem não possuía alóide, e
que era pago em dinheiro ou gênero ao proprietário da terra a qual tinha uso; a julgada era
outra variante de tributo, que permitia à Igreja se apossar de parte da colheita (geralmente
de 10%); e, finalmente, as banalidades eram os pagamentos que os servos faziam aos
senhores pelo uso da destilaria, do forno, do moinho, do celeiro etc. O camponês que
morava na cidade pagava tributos ao senhor feudal, como forma de reconhecimento à
“liberdade” que estava desfrutando.
“A propriedade agrícola era controlada privadamente por uma classe de
senhores feudais, que extraiam um excedente de produção dos camponeses através de uma
relação político legal de coação. Esta coação extra-econômica, tomando a forma de
serviços, arrendamentos em espécie ou obrigações consuetudinárias ao senhor individual
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pelo camponês, era exercida tanto pelo na própria terra senhorial diretamente ligada à
pessoa do senhor, como nas faixas pequenas de arrendamentos cultivados pelo camponês.
Seu efeito foi necessariamente um amálgama de exploração econômica e autoridade
política”. (ANDERSON, 2004: 143)
Na Idade Média, a Igreja se encarregou de construir um discurso com forte
apelo religioso e ideológico para justificar a posição social do camponês. “Deus” havia
decidido que cabia ao camponês preservar a obediência e trabalhar para sustentar o luxo e a
boa vida dos bispos e nobres. Por isso, eles cultivavam a terra observando uma série de
rituais religiosos, como o de dizer súplicas insistentes e
repetidas, ou o de promover a procissão das rogações, que
era uma cerimônia que tinha por finalidade solicitar
proteção para as colheitas. O camponês não tinha motivos
para reclamar suas longas caminhadas, muito menos seus
duros trabalhos, afinal, essa era a ordem natural do mundo;
nem um só homem livre poderia sobreviver prescindindo
do trabalho do camponês.
“A Igreja, que no final da Antiguidade estivera sempre integrada à máquina do
Estado imperial, e a ela subordinada, agora se tornou uma instituição eminentemente
autônoma dentro da forma de governo feudal. Única fonte de autoridade religiosa, seu
domínio sobre as crenças e valores das massas era imenso, mas sua organização eclesiástica
era diferente da de qualquer nobreza ou monarquia secular. Devido à dispersão da coerção
inerente ao feudalismo ocidental que surgia, a Igreja podia defender seus próprios
interesses particulares, se necessária, a partir de um reduto territorial, e pela força armada”.
(ANDERSON, 2004: 148)
No inicio do período histórico aqui retratado, o trabalho de lavrar o solo era uma
tarefa reservada ao homem. Mais tarde as mulheres começaram a participar dos trabalhos.
As casas onde o camponês, sua mulher e filhos habitavam era construídas com madeiras,
com pedra ou barro. A residência típica era constituída de dois cômodos, um provido de lar
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e outro que servia de quarto. Como extensão ou anexo da casa, localizava-se as
dependências destinadas ao gado.
Num mundo em que todas as obrigações terrenas perecem incidir sobre o
camponês, até mesmo sua vida pessoal é regrada por normas e condutas que procuram
ressaltar sua condição social. Em algumas comunidades da Europa do século XIII, era
indicado ao camponês casar-se legalmente, e apenas com uma mulher de sua localizada.
Caso infligisse tal lei, o camponês tinha que pagar uma multa de 60 soldos. Além disso, ele
ou a mulher teria que voltar para sua terra sem recorrer ao erro cometido. Por vezes, quando
a mulher de um senhor paria, a do camponês era tomada à força como ama-de-leite sem
pagamento nenhum, deixando o filho do camponês morrer por falta do leite materno. O
grande reclame do camponês era quanto ao poder do senhor de dormir com sua mulher na
noite em que a mesma contraia núpcias, em sinal de senhorio.
“Os homens do território de São Pedro não se casarão com mulheres de fora,
enquanto possam encontrar no domínio mulheres com as quais possam casar legalmente.
As mulheres ficaram igualmente sujeitas a esta norma. E se o camponês tivesse agido sem
consentimentos deles pagará segundo a lei que é de 60 soldos, e o homem ou mulher
voltarão para a sua terra, sem recorrer a enganos”. (PEDRERO-SÁNCHES, 2000: 107).
“(...) acontece às vezes que a mulher do senhor, à força, toma alguma mulher de
um camponês como ama-de-leite sem pagamento nenhum, deixando o filho do camponês
morrer por não haver forma alguma de dar ao dito filho leite de outra parte, do qual se
segue grande dano e indignidade (...)”. (PEDRERO-SÁNCHES, 2000: 107).
No mundo do camponês havia espaço para algum tipo de diversão. Eles
participavam, por exemplo, de festas ligadas à liturgia, como o natal e o 1º de janeiro.
Mesmo que não marcasse o início do ano, o 1º de janeiro se constituía numa manifestação
popular, com forte vestígio de paganismo. Entre os festejos, merecem destaque ainda o
ciclo de maio (marcado pelas cerimônias pagãs e pelas rogações), e as procissões
comandadas por párocos, que percorriam plantações com pedidos para que Deus tornasse o
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solo fértil. O carnaval também era uma festa que se sobressaia,
assim como as fogueiras de São João e dança como a “carola”, que
pode ser descrita como uma roda, ou cortejo de pessoas - em dupla
ou em trio -, desfilando com solenidade e entoando canções que
exaltava o amor. Entre os eventos familiares, o casamento é a fonte
de maior distração, uma vez que se constituía no evento em torno
do qual toda a aldeia se reunia.
Entre os autores medievais, há os que defendem que a condição servil não era
tão ruim como pode parecer à primeira vista. Segundo o que pode ser deduzido de seus
escritos, é verdade que subsistiam coerções, impostos, corvéias. Mas é verossímil que
muito entre os servos conseguiram acumular certas fortunas, chagando a existir situações
em que camponeses se tornavam proprietários e ricos, seja por meio de casamentos,
herança e usurpações que lhes permitiam produzir mais. Há registro de camponeses que
adquiriram grandes porções de terras através da confiscação, ou da compra de terra
daqueles que não podiam quitar as dívidas contraídas por empréstimos ou compras de
sementes. Isso resultou no surgimento de comunidades aldeãs, em que os camponeses
passaram a defender determinados direitos seus perante o senhor.
Os feitos da Idade Média são devidamente compreendidos e valorizados quando
o homem se propõe a deitar um olhar destituído de preconceito sobre esse período
histórico. É nesse momento que se vê como o camponês foi capaz de cumprir com seu
papel, investindo suas forças para garantir não apenas sua sobrevivência, mas também de
todos aqueles que dele dependiam. Cada gota de suor derramada na labuta significou uma
contribuição importante para o desenvolvimento de técnicas que garantiriam às gerações
futuras maiores facilidades no embate diário contra as forças da natureza.
Bibliografia:
ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo: O Modo de Produção
Feudal. São Paulo: Brasiliense, 2004.
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PEDRERO-SÁNCHES, Maria Guadalupe. História da Idade Média: Textos e
Testemunhas. São Paulo: Unesp, 2000.
VERDON, Jean. Camponeses, Heróis Medievais. Revista História Viva, São Paulo, n. 34,
2006.
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