Sangue, Sofrimento e Fé – Artigos Complementares

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Sangue, Sofrimento e Fé – Artigos Complementares
Sangue, Sofrimento e Fé – Artigos Complementares
O livro original em inglês Sorrow and Blood ficou bem grande, decidimos
diminuir o tamanho para ele ficar mais acessível ao público brasileiro... Aí a
grande luta foi escolher os artigos que não deviam entrar. Não havia artigo
que não fosse importante e relevante. Com oração, discussão e reflexão
cuidadosa fizemos uma seleção, mas cremos, desde o princípio, que os
demais artigos deviam também estar à disposição dos leitores brasileiros.
Assim oferecemos esses artigos complementares, certos de que quem ler vai
continuar a ter um crescimento na fé e a ser moldado para um compromisso
de apoio à igreja sofredora.
SUMÁRIO
1. A demografia do martírio - Todd M. Johnson.........................................4
2. De Gênesis a Apocalipse. Perseguição como tema central das
Escrituras - Wolgang Haede................................................................11
3. Perseverança e sofrimento no plano de Deus no livro de apocalipse Margaretha Adiwardana.......................................................................19
4. O problema do mal e o sofrimento - Isaiah M. Dau..............................24
5. O evangelho da prosperidade. Uma heresia com raízes no norte se
espalha, com reflexos sobre a pobreza e o sofrimento na África - Grant
LeMarquand.........................................................................................46
6. O ocidente moderno secular. Abrindo espaço para Deus - Janet Epp
Buckingham..........................................................................................59
7. Uma abordagem indutiva para se entender a perseguição no oriente
médio - Andrew Edward.......................................................................67
8. A Rússia czarista e a união soviética e pós-soviética - Mark R.
Elliott.....................................................................................................79
9. Os mártires de Ruanda. Uma nova definição de perseguição e martírio
- Célestin Musekura.............................................................................93
10. China. Um Estudo de Caso - G. Wright Doyle...................................102
11. Índia. Um novo momento kairós para a igreja na Índia - Richard
Howell................................................................................................
12. O incidente dos reféns coreanos. Sete lições aprendidas - David Tai
Woong Lee e Steve Sang-Cheof Moon..............................................110
13. Resumo do diálogo global. Pastores, Pastores de Missão, Agência, e
Líderes de Redes refletem sobre políticas em campos sensíveis.....121
14. Preparando a igreja e agências missionárias para o sofrimento, a
perseguição e o martírio - Stephen Panya Baba...............................124
15. Preparando a igreja local e nossos missionários - Paul
Estabrooks.........................................................................................133
16. Preparando uma agência de missões. Um ponto de vista dos EUA - S.
Kent Parks..........................................................................................138
17. Código de melhores práticas. Visitas Transculturais a Nações
Restritas - Voz dos Mártires Canadá.................................................142
18. Melhores práticas para grupos estrangeiros visitando a igreja
perseguida - Aliança Evangélica Cristã Nacional do Sri Lanka.........145
19. Melhores práticas para o ministério à igreja perseguida e em parceria
com ela - Parceria pela Liberdade Religiosa......................................148
20. Reflexões sobre a teologia, a estratégia e o engajamento - Chris
Seiple.................................................................................................152
21. A cura e o consolo de jesus cristo para os traumas - Kyle Miller......159
22. Um Culto de Oração a Favor da Igreja Perseguida. Dia Internacional
de Oração pela Igreja Perseguida - Yvonne Christine DeAcutis
Taylor.................................................................................................167
PARTE UM
CONSTRUINDO O ALICERCE
DISCERNINDO O TEMPO
Esta seção de nosso livro estabelece sua mais ampla abrangência:
O levantamento global leva a reflexões pessoais; um estudo das diferentes
respostas à violência, à perseguição e possível martírio leva a pontos de vista
diferentes sobre a definição e a contagem de mártires; um esclarecimento
sobre perseguição conclui com uma história pessoal e uma pergunta
importante – a perseguição faz a igreja crescer ou morrer? Com estes
capítulos, começamos a construir nosso alicerce.
Nos dias de hoje testemunhamos mais uma vez esta combinação
complexa de ataque e ação ousada. Estamos vivendo os dias de maior
crescimento da igreja, em que multidões estão abraçando o Reino de Cristo.
Ao mesmo tempo, são dias de uma das maiores perseguições de cristãos na
história da humanidade. É um paradoxo sobrenatural.
Bem-vindo à primeira seção de nosso livro – William D. Taylor
A DEMOGRAFIA DO MARTÍRIO
Todd M. Johnson
Durante toda a história do Cristianismo, em todas as suas tradições e em todas as partes do
mundo, aproximadamente 70 milhões de cristãos foram assassinados por sua fé em Cristo, e
podem, portanto ser chamados de mártires.
ORIGEM DA PALAVRA MÁRTIR
A Palavra mártir em português deriva do grego, martys, que significa “testemunha”. No
Novo Testamento, é usada como “uma testemunha da ressurreição de Cristo”. Este
testemunho resultou tantas vezes em morte que, até o fim do primeiro século, martys passou a
significar um cristão que testificava sobre Cristo através de sua própria morte. Este
significado mais amplo se tornou a norma aceita na história da igreja.
DEFINIÇÃO DE TERMOS
Numa análise quantitativa do martírio, os mártires cristãos são definidos como “crentes em
Cristo que perderam suas vidas prematuramente, em situações de testemunho, como resultado
da hostilidade humana.” Esta definição tem cinco elementos essenciais que podem ser
descritos da seguinte forma:
1. Crentes em Cristo: Esses indivíduos vêm da comunidade cristã como um todo,
Católicos Romanos, Ortodoxos, Protestantes, Anglicanos, Cristãos marginais e
independentes. No ano 2010 AD, mais de 2.2 bilhões de indivíduos podem ser
considerados cristãos, e desde o tempo de Cristo, mais de 8.5 bilhões creram em
Cristo.
2. Perderam suas vidas: A definição é restrita a cristãos que realmente foram mortos,
por qualquer razão que seja.
3. Prematuramente: O martírio é repentino, abrupto, inesperado, indesejado.
4. Em situações de testemunho: ‘Testemunho’ nesta definição não quer dizer apenas o
testemunho público ou a proclamação a respeito do Cristo Ressurreto. Refere-se ao
estilo de vida e ao modo de vida do crente em Cristo, estando ele ou não proclamando
ativamente no momento de sua morte.
5. Como resultado da hostilidade humana: No caso, exclui as mortes por acidentes,
desastres, terremotos e outros “atos divinos”, doenças, ou outras causas de morte,
mesmo sendo trágicas.
É importante ressaltar que esta definição omite um critério considerado essencial por
muitas igrejas na sua martiriologia – santidade heroica – que corresponderia a uma vida
de santidade e uma postura de bravura. Com certeza estas qualidades são essenciais para
a martiriologia, para que ela tenha valor na inspiração e educação dos membros da igreja
que tiverem que passar por perseguição, e principalmente para novos convertidos. No
entanto, a santidade heroica não é necessária para a definição demográfica porque muitos
Cristãos foram mortos logo após sua conversão, e antes de terem a chance de desenvolver
seu caráter cristão, sua santidade e sua coragem.
DEFINIÇÃO MAIS DETALHADA
Uma definição mais complexa vê os mártires como cristãos cuja lealdade e testemunho de
Cristo (como testemunhas do fato da ressurreição de Cristo e também como testemunhas
legais e defensores das reinvindicações de Cristo no caso legal cósmico de Deus contra o
mundo) leva diretamente ou indiretamente ao confronto ou à disputa com oponentes
hostis (sejam eles não cristãos ou cristãos de outras persuasões) como resultado ou de 1)
serem cristãos, ou 2) serem parte de um corpo de Cristo ou de uma comunidade, ou 3)
serem obreiros cristãos, ou 4) afirmarem o Cristianismo como verdadeiro, ou 5) se
apegarem a algum princípio ou prática cristã, ou 6) se apegarem a princípios cristãos
diferentes dos de seus oponentes, ou 7) falarem em nome de Cristo, ou 8) recusarem-se a
negar a Cristo ou suas convicções cristãs: o que então resulta em violência e na perda de
suas vidas prematuramente, voluntária ou involuntariamente (o derramamento de seu
sangue; serem mortos, executados, assassinados, apedrejados, mortos a pauladas,
decapitados, mortos por guilhotina, enforcados, estrangulados, esfaqueados, comidos
vivos, mortos por gás, injeção ou eletrocutados, sufocados, fervidos em óleo, assados
vivos, afogados, queimados, massacrados, crucificados, linchados, mortos na forca ou à
bala, assassinados, empurrados na frente de veículos em movimento, enterrados vivos,
esmagados até a morte, envenenados, drogados até a morte, mortos por fome, falta de
medicação, por produtos químicos ou eletronicamente, mortos extrajudicialmente, mortos
por tortura, mortos de apanhar, mortos sob custódia, mortos na prisão, mortos assim que
saíram da prisão, ou deixados para morrer). Qualquer desses métodos pode utilizado,
com ou sem a oportunidade de negarem a sua fé.
Repare que o (6) acima significa que a maioria dos cristãos mortos, supostamente por
serem “hereges”, durante séculos, na verdade deveriam ser incluídos no rol de mártires.
O item (3) acima também inclui obreiros cristãos mortos durante seu ministério, ou os que
estavam no caminho da violência por acaso (o que inclui obreiros mortos por ladrões,
soldados, polícia, etc...). Note também que a definição de martírio na demografia inclui
crianças e bebês que perdem suas vidas junto aos mártires adultos.
CONTANDO MÁRTIRES
O método básico para se contar mártires na história cristã é falar de “situações de
martírio” em pontos específicos da história. Uma situação de martírio é definida como
“martírio em massa ou múltiplos martírios em determinado ponto da história cristã”. A
partir daí, se determina o número de pessoas mortas naquela situação correspondente à
definição de martírio descrita acima. (Isto é explicado mais detalhadamente em World
Christian Trends). Note que em qualquer situação de morte ou assassinato em massa de
cristãos, não se definem como mártires o número total de mortos, mas apenas a fração
daqueles cujas mortes resultaram de alguma forma de testemunho cristão, seja individual
ou coletivamente. Por exemplo, nossa análise não classifica “participante das Cruzadas”
como “mártir”, mas simplesmente afirma que durante as Cruzadas, muitos cristãos
zelosos foram, de fato, martirizados, de acordo com a definição de mártir acima. Da
mesma forma, na América Latina nos anos 80, não contamos como mártires todos os
cristãos que se tornaram vítimas de assassinatos políticos, mas somente aqueles cuja
morte envolvia o testemunho cristão. Ilustrações típicas disto seria o grande número de
congregações inteiras que, enquanto cantavam, soldados trancaram as portas da igreja e
atearam fogo, queimando tudo sem que houvesse sobreviventes.
Um ajuste ao total é incluir “mártires colaterais” ou situações restritas ou isoladas ou
individuais. Isto incluiria casos em que um cristão é morto como resultados da
hostilidade humana, mas em que as circunstâncias não tenham nada a ver diretamente
com o Cristianismo organizado.
O MARTÍRIO NÃO É UM FENÔMENO EXCLUSIVO DO CRISTIANISMO
PRIMITIVO
O martírio acontece por causa da perseguição e resulta em morte, que é em si um
testemunho por Cristo. Na igreja primitiva, desenvolveu-se a ideia que não era suficiente
ser chamado de cristão – era necessário dar prova disso. Esta prova geralmente era algum
tipo de reconhecimento verbal (testemunho) da identificação com Cristo, a começar pela
confissão “Jesus é o Senhor”. Baumeister escreve: “Morrer por ser cristão é a ação por
excelência em que o discípulo chamado a isto confirma sua fé, seguindo o exemplo do
sofrimento de Jesus e, através da ação, é capaz de se tornar novamente uma palavra com
poder de falar a outros.” Eventualmente os que confessavam foram distinguidos dos
mártires.
Quando a maioria dos cristãos ouve a palavra “mártir”, tendem a pensar na perseguição
romana dos primeiros cristãos. Quando se fala da Ecclesia Martyrum, ou Igreja dos
Mártires geralmente se pensa que ela se refere apenas ao período inicial da história da
igreja, as dez perseguições imperiais romanas. Mas, não é o caso. O martírio é uma
característica consistente da história da igreja e ocorre em todas as tradições e confissões
cristãs. Pode-se perceber que todas as dez maiores situações de martírio do Quadro 1
ocorreram no segundo milênio da fé cristã. A taxa de martírio em todo mundo através
dos séculos tem sido surpreendentemente constante em 0,8 %, Um em cada cento e vinte
cristãos no passado foi martirizado, ou no futuro provavelmente será.
POR QUE HÁ MÁRTIRES?
De acordo com o teólogo latinoamericano Leonardo Boff, eles existem por duas razões:
1) Cristãos preferem sacrificar suas vidas a serem infiéis às suas convicções e 2) Pessoas
que rejeitam a proclamação perseguem, torturam e matam (Metz 1983). Esta presença
generalizada do mal no mundo, combinada à devoção cristã, está na raiz do martírio.
Quando examinamos uma lista de mártires através dos séculos, a mais abrangente
possível nos dias de hoje, algumas descobertas nos surpreendem. No Quadro 1 temos uma
lista das dez maiores situações de martírio conhecidas, classificadas por tamanho. Note
que mais de 20 milhões foram martirizados nos campos de concentração soviéticos e que
mais da metade dos 70 milhões de cristãos martirizados foram mortos só no século XX.
Embora poderes estatais (ateístas e outros) sejam responsáveis pela maior parte dos
martírios, se examinarmos mais de perto a lista de situações de martírio, perceberemos
que muitas vezes foram os próprios cristãos os perseguidores responsáveis por martirizar
outros 5,5 milhões de cristãos.
O Quadro 2 revela que mais da metade de todos os mártires eram Cristãos Ortodoxos.
Uma explicação parcial deste fato é a existência de vastos impérios anticristãos
centralizados na região da Europa Oriental no decorrer da história. Não obstante, todas as
tradições cristãs sofreram o martírio.
Quadro 1. Dez maiores situações de martírio na história do Cristianismo, classificadas por
tamanho
Situação
1. 1921-50, cristãos morrem em
Martirizados
15.000.000
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
campos de concentração soviéticos
1950-80, cristãos morrem em
campos de concentração soviéticos
1214, Genghis Khan massacra
cristãos
1358, Tamerlane destrói a igreja
Nestoriana
1929-37, cristãos Ortodoxos mortos
por Stalin
1560, Conquistadores matam
milhões de Ameríndios
1925, Soviéticos tentam liquidar
Católicos Romanos
1258, Bagdá capturada em massacre
por Hulaku Khan
1214, Diocese de Herat saqueada
por Genghis Khan
1939, Nazistas executam milhões
em campos de concentração
5.000.000
4.000.000
4.000.000
2.700.000
2.000.000
1.200.000
1.100.000
1.000.000
1.000.000
Quadro 2. Confissões dos mártires, totais de 33 a 2000 AD
Tradição
Ortodoxos
Ortodoxos Russos
Sírios Orientais (Nestorianos)
Ortodoxos Ucranianos
Gregorianos (Armênios Apostólicos)
Católicos Romanos
Católicos (antes de 1000 AD)
Independentes
Protestantes
Anglicanos
Cristãos Marginais
Total de todos os mártires
Mártires
43.000.000
25.000.000
12.800.000
4.000.000
1.200.000
12.200.000
900.000
3.500.000
3.200.000
1.100.000
7.000
70,000,000
O IMPACTO POTENCIAL DO MARTÍRIO
Em alguns países, descobrimos que o martírio foi seguido do crescimento da igreja. Um
exemplo contemporâneo é a igreja na China. Em 1949 havia apenas um milhão de cristãos na
China. Cinquenta anos de governo Comunista, anti-religião, foram a causa da morte de 1,2
milhões de mártires. O resultado: crescimento explosivo da igreja, que hoje conta com 100
milhões de cristãos. Hoje em dia, situações consideráveis de martírio continuam na República
Democrática do Congo, no Sudão, na Indonésia, na Nigéria, e em outros lugares em todo o
mundo.
Definir e enumerar mártires no sentido mais amplo possível tem tanto limitações quanto
vantagens sobre outros métodos. Em primeiro lugar, é limitado porque deixa de fora questões
de qualidade, como um estilo de vida de santificação (mencionado acima) ou a persuasão
teológica dos mártires cristãos. Em segundo lugar, faz um relatório apenas sobre o martírio
do ponto de vista demográfico, deixando de fora milhares de histórias e casos fascinantes.
Felizmente, estes não faltam em outras publicações.
Duas vantagens também podem ser ressaltadas aqui. Em primeiro lugar, por causa da
codificação extensiva das situações de martírio (disponíveis em World Christian Trends),
pode-se abordar os dados de forma seletiva. Questões como “Quantos mártires Católicos
Romanos houve na América Latina no século dezenove?” podem ser respondidas. Em
segundo lugar, esta abordagem resiste à fragmentação, colocando todos os mártires cristãos
dentro do mesmo fenômeno global.
O FUTURO DO MARTÍRIO
Podemos ser tentados a acreditar que a humanidade gradualmente superará sua natureza
violenta, e que, talvez daqui a cem anos, as pessoas não mais se matarão, por qualquer razão
que seja. No entanto, é difícil que isso se concretize. No futuro, é mais do que provável,
haverá outras situações de martírio, e os nomes dos indivíduos martirizados provavelmente se
acumularão a cada ano que passa.
Nota. Este artigo foi condensado da Parte 4, “Martiriologia”, do livro World Christian Trends
(WCT), de Barrett e Johnson. A compilação dos dados sobre os mártires cristãos em todos os
países em vinte séculos de história do Cristianismo se encontra em dois grandes quadros no
WCT: Quadro 4-10, 4-11, “Lista alfabética de 2.500 mártires conhecidos, dos anos 33-2000
AD. Estatísticas por país sobre mártires podem ser encontradas acessando
www.worldchristiandatabase.org.
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. Os editores acreditam que este artigo detalhado, embora seja breve, surpreenderá a
maioria dos leitores. Quais as implicações da informação contida neste artigo para o
movimento missionário moderno?
2. Discuta a definição de martírio utilizada neste artigo.
3. O artigo apoia a afirmação que o “resultado” de uma perseguição severa dos cristãos
na China foi o crescimento explosivo?
4. Existem mártires nos dias de hoje que se encaixam no modelo de “santidade heroica”
descrito neste artigo?
REFERÊNCIAS
Livre des martyrs chrétiens. B. Chenu et al. Paris: Éditions du Centurion, 1988.
Martyr invictus. T. Baumeister. Münster, 1972.
Martyrdom today. J. Metz & E. Schillebeeckx (eds). Edinburgh: T. & T. Clark, 1983.
Martyrs and martyrologies. D. Wood (ed). Oxford, UK: Blackwell, 1993.
Their blood cries out: the untold story of persecution against Christians in the modern
world. P. Marshall with L. Gilbert. Dallas: Word Publishing, 1997.
World Christian Trends. D. Barrett & T. Johnson. Pasadena, CA: William Carey Library,
2001.
Todd M. Johnson é o Diretor do Centro para o Estudo do Cristianismo Global no GordonConwell Theological Seminary em South Hamilton, MA. Ele é co-autor da Enciclopédia
Cristã Mundial, World Christian Encyclopedia, 2ª edição (Oxford University Press, 2001) e
co-editor do Atlas of Global Christianity (Edinburgh University Press, 2009).
Parte 2
Reflexões bíblico-teológicas
Breves pensamentos sobre o livro de Apocalipse
Mais uma vez fico profundamente comovido quando percebo que 99,4% das
Escrituras foi escrito a partir de ou em contextos de incerteza, violência, exílio,
pobreza e fraqueza. Isso coloca uma lente única – uma hermenêutica nova, mas
normal – diante de nossos olhos quando nos debruçamos sobre a Palavra. Lá estavam
eles para demonstrar o discipulado transformacional como seguidores de Cristo, tanto
reunidos (a igreja local) quanto espalhados (a igreja em missão).
Isso não significa que aqueles que vivem em realidades de paz, prosperidade,
poder e influência não podem interpretar o texto corretamente. Antes, significa que a
igreja histórica contemporânea precisa entender os propósitos do Espírito Santo
enquanto este inspirava o registro das Escrituras naqueles contextos.
Adoração e protesto dos mártires
Vou comentar apenas dois temas: adoração e de protesto dos mártires. Há
cerca de dezessete cenas de adoração no Apocalipse. Elas vão desde pequenos
córregos ao longo do caminho até cataratas enormes mais maravilhosas do que as de
Victoria, do Niágara ou de Foz do Iguaçu. É adoração que vem de algumas vozes até
incontáveis miríades; vem de quatro seres vivente até os vinte e quatro anciãos; de
anjos e de toda a criação; de todos os povos, tribos, línguas e nações até as suas
misturas. Que maravilha incrível de sons, cores, criatividade, diversidade e entrega
total!
Ouça o protesto dos mártires:
Quando ele abriu o quinto selo, vi, debaixo do altar, as almas daqueles que
tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho
que sustentavam. Clamaram em grande voz, dizendo: “Até quando, ó Soberano
Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue dos que
habitam sobre a terra?” Então, a cada um deles foi dada uma vestidura branca,
e lhes disseram que repousassem ainda por pouco tempo, até que também se
completasse o número dos seus conservos e seus irmãos que iam ser mortos
como igualmente eles foram. (Ap 6.9-11)
Descubra a identidade deste povo que impetuosamente clama:
Depois destas coisas, vi, e eis grande multidão que ninguém podia enumerar, de
todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do
Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com palmas nas mãos; e clamavam
em grande voz, dizendo: “Ao nosso Deus, que se assenta no trono, e ao
Cordeiro, pertence a salvação”. (Ap 7.9-10)
Imagine o que seria ouvir esse clamor e saber que “são estes os que vêm da
grande tribulação, lavaram suas vestiduras e as alvejaram no sangue do Cordeiro” (Ap
7.14).
William D. Taylor
De Gênesis a Apocalipse
Perseguição como tema central das Escrituras
Wolgang Haede
Os cristãos no contexto ocidental podem ficar surpresos com o fato de que
a Bíblia fala sobre perseguição e sofrimento1 literalmente de Gênesis a Apocalipse 2.
1
2
A perseguição acontece quando sofremos por causa da justiça e por obediência a Deus.
Incluí algumas formas de sofrimento neste artigo que não se tratam exatamente
“perseguição” para dar uma noção mais ampla.
A maior parte das reflexões deste artigo são extraídas do livro de Glenn Penner, In the
Muitos dos livros da Bíblia foram escritos num contexto de sofrimento (p.ex. Jó,
muitos dos Salmos, Jeremias, as cartas de Paulo da prisão) ou para pessoas que
enfrentavam
perseguição
(p.ex. 1 Tessalonicenses, 1
Pedro, Apocalipse).
Naturalmente, no presente artigo abordaremos apenas algumas dessas referências
à perseguição.
Após a queda
Depois que Adão e Eva caíram em pecado, Deus não apenas declarou que
o sofrimento humano seria uma punição pelo pecado (Gn 3.16, 19); a promessa
imediata de um salvador que “esmagaria a cabeça” (Gn 3.15) da serpente satânica
incluía o anúncio da dor que o salvador teria que suportar para trazer a salvação: a
serpente iria “morder o seu calcanhar”. Sim a salvação seria consumada, mas
haveria muita dor nessa trajetória para a “semente da mulher” e para o seu povo.
A primeira morte na história da humanidade foi de um mártir: Caim matou
seu irmão Abel porque este era justo (Mt 23.35) e Caim teve inveja do “melhor
sacrifício” (Hb 11.4). Quando Jesus falou sobre “o sangue do justo Abel até o sangue
de Zacarias” (Mt 23.35; Lc 11.51), ele colocou Abel em pé de igualdade com
Zacarias, que morreu por causa da sua mensagem (2 Cr 24.20-22).
A história minuciosa do justo Jó (Jó 1.1) deixa claro que o sofrimento nem
sempre é consequência do pecado individual. As pessoas podem sofrer pelo simples
fato de serem justas, embora nem sempre as razões sejam óbvias.
O povo de deus, um povo sofredor
Quando os israelitas foram oprimidos e ameaçados de extinção no Egito,
um novo aspecto da perseguição pôde ser observado. Os israelitas foram
escravizados e viram seus filhos serem mortos (Êx 1) não por causa de algum
pecado que tivessem cometido, mas pelo simples fato de pertencerem ao povo
escolhido de Deus.
Mais tarde, o rei escolhido para o povo de Deus foi perseguido durante anos
(1 Sm 19-31). Saul, o rei rejeitado, tentava matar Davi, o rei ungido.
Shadow of the Croiss, a Biblical Theology of Persecution and Discipleship (2004). Tive o
privilégio de traduzir esse livro para o alemão em um período em que testemunhei a
perseguição na Turquia. As referências bíblicas são da Nova Versão Internacional (NIV).
Davi é o autor de diversos salmos. Alguns deles já na introdução expressam
o contexto da perseguição sofrida por Davi (p.ex. Sl 34; 52; 54; 57; 59), e muitos
outros salmos foram escritos claramente em situações de sofrimento.
Profetas perseguidos pelo seu próprio povo
Quando os profetas começaram a dizer ao povo de Israel que voltasse para
Deus e para a Lei de Moisés foram perseguidos por causa do seu ministério. O
profeta Jeremias nos dá o exemplo mais impactante de perseguição a um
mensageiro de Deus em decorrência da sua pregação. Provavelmente por cerca de
40 anos, Jeremias enfrentou sofrimento por ter sido obediente à ordem de Deus de
pregar sua palavra. Quando ele pediu ao Senhor uma explicação sobre a
discrepância entre a prosperidade dos ímpios e seu próprio sofrimento (Jr 12.1 em
diante), a única resposta que obteve foi a de que as coisas ficariam ainda piores (Jr
12.5).
A mensagem de Deus pregada por Isaías acrescenta uma nova dimensão à
questão do sofrimento. O sofrimento não é meramente uma consequência do
pecado ou um método para unir os pecadores. O sofrimento não resulta apenas da
obediência a Deus ou do fato de se pertencer ao seu povo. Os sofrimentos do Servo
do Senhor anunciados por Isaías3 são o método através do qual Deus nos traz
perdão e salvação. “O castigo que nos trouxe a paz estava sobre ele” (Is 53.5). Os
sofrimentos operam a salvação.
O sofrimento do próprio deus
Quando falamos sobre o Servo Sofredor do Senhor, que é Jesus Cristo em
sua morte pela redenção da humanidade, podemos nos perguntar: Deus sofre –
mesmo antes de se encarnar na pessoa de Jesus? Ou, como diriam os filósofos,
será que o sofrimento contradiz a natureza imutável de Deus?
O Antigo Testamento apresenta um Deus que não poderia ter sido forçado
a sofrer por qualquer outro poder superior, mas que escolheu amar (PENNER, 2004,
3 Confira os chamados “cânticos do Servo” em Isaías 42.1-4; 49.1-6; 50.4-9,1 e
especialmente 52.13-53.12.
p. 89) e, ao escolher amar, assumiu o risco de ser rejeitado e de sofrer. No AT, Deus
sofre com a rejeição dos homens (Gn 6.6; Is 63.10). Além disso, ele participa do
sofrimento do povo que ele ama quando esse povo é oprimido (Êx 2.24; Is 63.9).
O Senhor também sofre quando aplica a punição ou quando tem que
arrancar aquilo que ele mesmo plantou (Jr 45.2). O sofrimento do próprio Deus é um
forte argumento para preparar seu povo para o fato de que não teriam uma vida de
facilidades (ver Baruque, o servo de Jeremias, em Jr 45.5).
Anúncio dos sofrimentos escatológicos
No livro de Daniel, o Filho do Homem “vindo com as nuvens do céu” recebe
autoridade da parte de Deus (Dn 7.14). Juntamente com ele “os santos do Altíssimo
receberão o reino e o possuirão para sempre” (Dn 7.18). Entretanto, por um
determinado período de tempo eles serão “entregues” à besta que os persegue (Dn
7.25). Mais uma vez, nós vemos a verdade de Gênesis 3.15: o caminho para o
triunfo passa pelo sofrimento.
Jesus como servo sofredor
Quando Jesus veio como Servo Sofredor, ele foi confrontado com as
expectativas das pessoas que esperavam que ele fosse um Messias triunfante e
sem sofrimento. Após o clímax da confissão de Pedro sobre Jesus como “Cristo, o
Filho do Deus vivo” (Mt 16.16)4, Jesus precisou repreendê-lo usando as palavras
“Para trás de mim, Satanás!” (Mt 16.23), porque Pedro queria poupar Jesus do
sofrimento.
Estamos subindo para Jerusalém, e o Filho do homem será entregue aos
chefes dos sacerdotes e aos mestres da lei. Eles o condenarão à morte e o
entregarão aos gentios para que zombem dele, o açoitem e o crucifiquem. No
terceiro dia ele ressuscitará! (Mt 20.18-19)
Jesus dedicou seu tempo ensinando seus discípulos que ele deveria ir a
Jerusalém e sofrer muitas coisas (Mt 16.21), o que culminou com os ensinos
4 Citei o Evangelho de Mateus na maior parte dos exemplos. Naturalmente há vários textos
paralelos nos outros Evangelhos também.
ministrados após a Páscoa, quando os confrontou com as Escrituras: “Não devia o
Cristo sofrer estas coisas, para entrar na sua glória?” (Lc 24.26).
Preparando seus discípulos para o sofrimento e martírio
É claro que Jesus conhecia as Escrituras, incluindo os textos que falavam
sobre a tribulação pela qual passariam “os santos do Altíssimo” (Dn 7.18 em diante).
Como Filho de Deus, ele sabia que Pedro seria martirizado (Jo 21.19). Portanto,
certamente ele sabia aquilo que aprendemos com a história da igreja primitiva: que
provavelmente todos os doze apóstolos, exceto Judas e João, morreriam por
professar a fé em Jesus.
Portanto, quando Jesus enviou os doze para pregar e curar em Israel (Mt
10), preparando-os para o seu futuro ministério mundial, dedicou uma grande parte
do seu ensino ao tema da perseguição (10.16-42). Em seus ensinos, Jesus
demonstrou que há uma estreita relação entre missão e perseguição. Sofrer
diretamente nas mãos do povo por causa do ministério é algo que poderia se
chamar de perseguição.
Aqui no Ocidente, nós cristãos estamos acostumados a suavizar as
palavras de Jesus nesse discurso e em outros trechos, aplicando-as diretamente aos
desafios da vida diária que nós vivenciamos. Entretanto, quando Jesus enviou seus
amigos “como ovelhas entre lobos” (Mt 10.16), ele sabia que os lobos os morderiam
e feririam gravemente. Quando encorajou seus discípulos dizendo “quem perder a
vida por minha causa, a encontrará” (Mt 16.25), Jesus sabia que aqueles homens
que estavam diante dele literalmente morreriam como mártires. E quando ele
comissionou cada um dos seus seguidores dizendo “tome a sua cruz e siga-me” (Mt
16.24), aqueles que o ouviam certamente se lembraram de criminosos diante de
uma execução e eles sabiam que Jesus não estava falando somente sobre a
necessidade de lidar com os pequenos problemas da vida sem ficar com raiva de
Deus.
Sofrimento na igreja neo-testamentária
Após terem recebido o Espírito Santo no Pentecostes, os apóstolos
pareciam ter compreendido o que Jesus havia ensinado acerca do sofrimento.
Quando Pedro e João enfrentaram pela primeira vez forte perseguição da parte do
Sinédrio de Jerusalém, não demonstraram surpresa. Pelo contrário, eles “saíram do
Sinédrio alegres por terem sido considerados dignos de serem humilhados por
causa do Nome” (At 5.41).
A acusação contra Estêvão e sua consequente execução (At 6.9-8.1)
claramente apresentou paralelos com o sofrimento e morte de Jesus. O caso do
primeiro mártir, portanto, estabelece um exemplo da veracidade das palavras de
Jesus: “Se me perseguiram, também perseguirão vocês” (Jo 15.20), bem como da
validade da sua promessa: “pois naquela hora o Espírito Santo lhes ensinará o que
devem dizer” (Lc 12.12).
O sofrimento e Paulo
No mesmo dia em que Paulo teve um encontro especial com Jesus, o
Senhor disse a respeito dele: “eu mostrarei a ele o quanto deve sofrer pelo meu
nome” (At 9.16). Pouco depois da sua conversão, ele teve que fugir de Damasco por
causa de uma conspiração para tirar-lhe a vida (At 9.23-25). Posteriormente, ele
relata para a igreja de Corinto uma série de sofrimentos que experimentara por amor
a Cristo durante o seu ministério (2 Co 11.23-29).
Em seu ministério apostólico, Paulo deu um exemplo de sofrimento para os
novos crentes e disse a eles que o imitassem (1 Ts 1.6-7). Ficamos com uma clara
impressão de que perseguição e sofrimento faziam parte do ensino fundamental de
Paulo a todas as igrejas (p.ex. At 14.22). Ele expressou isso claramente para seu
jovem discípulo Timóteo: “todos os que desejam viver piedosamente em Cristo
Jesus serão perseguidos” (2 Tm 3.12). Cinco das treze cartas do Novo Testamento
(Efésios, Filipenses, Colossenses, 2 Timóteo e Filemon) foram escritas por Paulo
enquanto estava preso.
Quando o apóstolo expressa aos Colossenses seu desejo de “completo no
meu corpo o que resta das aflições de Cristo” (1.24), com certeza ele não está
afirmando que o sofrimento de Jesus na cruz pela salvação do mundo não era o
suficiente. No entanto, segundo as próprias palavras de Jesus para Paulo na estrada
de Damasco (At 9.4 – “por que você me persegue?”), os sofrimentos da igreja são a
continuação dos sofrimentos de Jesus. Assim como Cristo sofreu para nos salvar,
ele continua sofrendo através do seu corpo, a Igreja, pela proclamação da salvação.
E esses sofrimentos ainda não se completaram.
Nas cartas aos Coríntios, Paulo parece ter precisado defender seu
ministério contra pessoas que o atacavam, dizendo que “a obra de Deus foi feita em
força e poder, não em fraqueza e sofrimento” (PENNER, 2004, p. 178). Da mesma
maneira que Jesus precisou explicar o papel do sofrimento no plano de Deus, Paulo
teve que ensinar que Deus mostra a sua glória através das coisas “insignificantes
deste mundo e as que nada são” (1 Co 1.28), que o “poder se aperfeiçoa na
fraqueza” (2 Co 12.9).
A questão do sofrimento nas outras cartas
A carta aos Hebreus foi escrita para cristãos que haviam experimentado
algum tipo de perseguição (Hb 10.32-34). Quando os “heróis da fé” são
apresentados no capítulo 11, há uma mudança importante a partir do versículo 35:
“Alguns foram torturados e recusaram ser libertados, para poderem alcançar uma
ressurreição superior”. Nem sempre Deus livrou aqueles que confiaram nele.
Perseverar em meio ao sofrimento pode ser um sucesso ainda maior.
Tiago conclama os crentes a se alegrar nas “diversas provações” (Tg 1.2).
A primeira carta de Pedro foi escrita para encorajar os seguidores de Jesus que
viviam onde hoje é a Turquia, que haviam sido “entristecidos por todo tipo de
provações” (1 Pe 1.6).
Apocalipse: a igreja triunfante em meio ao sofrimento
O Apocalipse foi dado a João quando ele se encontrava na ilha de Patmos,
como prisioneiro, e seus escritos foram enviados às igrejas da região do Egeu que
estavam enfrentando perseguição (Ap 2.3; 2.9) e até morte (Ap 2.13). Todas as
igrejas são chamadas a “vencer” (2.11; 2.26).
No capítulo 12, o tema de Gênesis 3.15 reaparece e é mais trabalhado: o
dragão, “a antiga serpente chamada diabo ou Satanás” (Ap 12.9), peleja contra a
mulher, contra o seu filho e contra “os restantes da sua descendência” (12.17).
Assim como em Gênesis 3.15, fica claro quem será o vitorioso final, mas também é
verdade que o caminho para a vitória passa pela perseguição. Os vitoriosos serão
aqueles que “mesmo diante da morte, não amaram a própria vida” (Ap 12.11).
Sim, a história do trabalho de Deus para salvar a humanidade é uma
história de sofrimento, perseguição e martírio – que percorre toda a Bíblia. Em
Apocalipse 6.9-11, vemos uma assembleia dos mártires que clamam ao Senhor:
“Até quando, ó Soberano santo e verdadeiro, esperarás para julgar os habitantes da
terra e vingar o nosso sangue?” (Ap 6.10). A resposta que recebem é que:
“esperassem um pouco mais, até que se completasse o número dos seus conservos
e irmãos, que deveriam ser mortos como eles” (6.11). Quando virá o julgamento?
Depois que o último mártir for morto!
Assim como Abel, o primeiro homem na história da humanidade que morreu
como mártir por sua fé, também temos razões para crer que a última pessoa a
morrer nesta terra antes da volta de Jesus será um mátir.
Perguntas para reflexão
1.
Quais livros da Bíblia foram escritos num contexto de
sofrimento e perseguição?
2.
Que experiência contribuiu significativamente para que esse
missionário alemão para a Turquia tivesse condições de escrever este
artigo?
3.
Considerando que o autor foi convincente em seus argumentos
sobre a centralidade do sofrimento nas Escrituras, como explicar o fato de
que os cristãos ocidentais, geralmente em condições de fartura e paz social,
tenham tão pouca consciência disso? E qual o efeito desta situação?
4.
Se o método de Deus para difundir a salvação passa pelo
sofrimento, como isso deveria influenciar nossa maneira de evangelizar?
Referência
PENNER G. In the shadow of the cross: A biblical theology of persecution and
discipleship. Bartlesville, OK: Living Sacrifice Books, 2004.
Wolgang Haede: Alemão, com mestrado em teologia pelo FETA Basel, Suíça,
juntamente com sua esposa Janet, de Antioquia, na Turquia, e a filha Debora,
trabalha como plantador de igreja e professor de teologia na Turquia desde 2001.
Necati Aydin, um dos três cristãos mortos em 2007 em Malatya, Turquia, era casado
com a irmã de Janet. Wolfgang escreveu um livro sobre a vida e morte de Necati,
publicado em alemão (“Mein Schwager: ein Martyrer” – Meu cunhado: um mártir) em
2009.
PERSEVERANÇA E SOFRIMENTO NO PLANO DE DEUS NO LIVRO DE APOCALIPSE
Margaretha Adiwardana
Um dos temas principais do livro de Apocalipse é a “absoluta autoridade e suprema
soberania de Deus sobre toda a criação” (Hughes 1990, 52). O apóstolo João compreende o
plano de Deus na história e fica claro que Deus está no controle. O resultado prático do
conhecimento deste fato capacita os cristãos a perceber o sofrimento à luz do reino eterno
de Cristo (Wilcock 1991, 42).
Outro tema do Apocalipse é o sofrimento e a perseverança inerentes ao plano de Deus para
a salvação. Sofrimento e morte são vistos como glorificação, pois Deus está no centro da
história (Morris, 1995, 359). A ênfase é dada na vitória, e o sofrimento é considerado
meramente como um meio para a realização do plano de Deus, permitido por Ele, sob a
perspectiva da cruz. Portanto, os cristãos deveriam compreender o sofrimento, visto que o
sofrimento de Cristo na cruz trouxe salvação. Isso muda nossa concepção do sofrimento e
transforma os valores dos que seguem a Cristo. O sofrimento não é de puramente mau.
Quando é gerado de forma correta, trará frutos para o bem (Morris, 1995, 359). Seguir a
Cristo e tornar-se como ele significa carregar a cruz (Lc 9:23). O serviço cristão é sacrificial,
tem um alto preço, pois levar o evangelho a outros é andar no caminho da cruz (393).
João, nosso companheiro e irmão, sofreu pelo Reino e pacientemente suportou o sofrimento
pela palavra de Deus e pelo testemunho de Jesus (Ap 1.9). Perseverar com paciência é a
capacidade de suportar a perseguição e o sofrimento (Bratcher 1984, 13). Ele participa “do
alto preço da aflição pessoal que é intrínseco à verdadeira comunidade da fé... na tribulação,
Reino e paciência, em Jesus” (Hughes, 1990, 23). O sofrimento faz parte do chamado dos
que pregam a Palavra de Deus e são testemunhas de Jesus (At 1.8). Tribulação e Reino estão
ligados. Para Sweet, “a tensão entre eles se expressa na perseverança, uma palavra-chave
(Ap 2.2,19; 3.10; 13.10; 14.12), que carrega expectativa em lugar de estoicismo” (1979, 67).
Jesus conhece aqueles que perseveram e enfrentam provações pelo seu nome (Ap 2.2-3).
“Vocês não se cansaram”, significa que Deus reconheceu que as pessoas não desistiram nem
ficaram desanimadas (Bratcher 1984, 20). A perseverança na tribulação requer um grande
esforço, muito trabalho e paciência. Hughes menciona que os cristãos em Éfeso não
abandonaram a luta quando enfrentaram dolorosa oposição e aflição porque tinham Jesus
no centro de suas vidas, ao invés de si mesmos. Por isso, expressavam gratidão e não
buscavam mérito próprio. Suportar as aflições e humilhações por amor a Cristo trouxe
bênçãos (Mt 5.11). O caminho do sofrimento é difícil, mas conduz a uma glória incomparável
(Fp 2.8; Ro 8.18; 2 Co 4.17; Hughes 1990, 34-35).
Deus conhecia a tribulação, pobreza, e as prisões, julgamentos, e mesmo morte que estavam
por atingir a igreja de Esmirna, uma igreja pobre numa cidade rica (Ap 2.9, 11). Mounce
sugere que sua pobreza era gerada pelo ambiente antagônico, que tornava difícil a
sobrevivência dos cristãos. Os cristãos de Esmirna podem ter sido vítimas de multidões
enfurecidas e da espoliação de seus bens (confira Hebreus 10.34; Mounce 1977, 92). Eles
foram caluniados (v. 9). Blasfêmia significa difamação. Sweet comenta que o culto cristão era
proibido e considerado como comportamento anti-social. Os magistrados poderiam obrigalos a renunciar o cristianismo e a recusa poderia significar uma sentença de morte (confira I
Pe 4.12-16; Sweet 1979, 85).
Jesus os exortou a não terem medo do sofrimento que viria, mas que fossem fiéis até a
morte. No verso 10, a expressão “coisas que haverão de padecer” indica a presciência,
soberania e permissão de Deus e que seus sofrimentos e os ataques do diabo faziam parte
do plano divino (Sweet 1979, 85). Deus prometeu a coroa da vida para os que vencerem
tribulações, e que eles não experimentarão a segunda morte (conf. Mc 24.13). Os
vencedores descritos no Apocalipse são aqueles que permaneceram fiéis ao Senhor, a
despeito das tentações e perseguição, talvez até a morte. Os mártires vencem a besta (15.2).
Eles são vencedores e recebem a coroa da vida, da mesma forma que os vencedores de
jogos e guerras (I Co 9.25). A coroa da vida simboliza a vida eterna dada aos vencedores (Ap
4.4; 14.14; Js 1.12; I Pe 5.4; Shedd 1989, 292).
A igreja em Tiatira possuía obras, amor, fé, serviço, e sua perseverança era conhecida por
Deus (Ap 2.19). Os feitos ou obras são definidos por Beasley-Murray como o critério da fé
genuína no último julgamento e no julgamento presente; a perseverança necessária para as
obras dignas de fé está relacionada ao esforço para manter-se firme na fé (1978, 73-74).
Apocalipse 2.24 afirma que o Senhor sabe até onde os crentes podem suportar o sofrimento,
não permitindo que eles sofram além de sua capacidade. O verso 25 exorta os fiéis a guardar
o que possuem até o retorno de Jesus. O vencedor é aquele que faz a vontade de Deus até o
fim (v.26; Bratcher 1984, 31). Eles receberão autoridade, governo e poder sobre nações (v.
27).
Aqueles que guardam o mandamento de Jesus de suportar com paciência serão poupados
na última hora do julgamento que está por vir sobre todo o mundo (Ap 3.10). Eles não serão
poupados do sofrimento, mas receberam a promessa de que serão capazes de atravessar o
período de aflições e sofrimento (Bratcher 1984, 31).
O plano e a soberania de Deus incluem o martírio de cristãos (Ap 6.9-1). Isso acontece ainda
nos dias de hoje e continuará a acontecer “até que o número se complete”. Para Sweet
(1979, 142) “a questão é a imutabilidade dos planos divinos – a demora não é procrastinação
ou fraqueza. Aqui temos o calendário divino, materializado no sacrifício de Cristo, do qual o
seu povo deve participar (confira Cl. 1.24). A proteção contra a “hora do juízo” (3.10) não
significa imunidade física, conforme nos alertou o Senhor (Mt 10.28; 24.9).” Eles foram
martirizados porque foram fiéis, recusaram-se a negar a Deus e pregaram a palavra de Deus.
Agora descansam, aguardando o juizo final de Deus sobre o maligno, que os matou. Vestes
brancas são concedidas aos mártires após a Grande Tribulação (Ap 2:13-17). O Cordeiro em
pessoa vai finalmente livra-los de todo sofrimento, será o seu pastor, dará vida eterna a eles
e enxugará de seus olhos toda lágrima (Ap 21.4,7). Hughes observa que os mártires têm um
papel especial no plano de Deus (confira 1.9; 2.13; 3.8; 7.14; 11.3s; 12.11; 14.12s; 20.4). O
martírio silenciou uma das fiéis testemunhas do Senhor. Aparentemente, Deus foi derrotado
e houve retrocesso para a igreja. Mas isso comprovadamente resultou em progresso do
evangelho e poder e bênção para igreja (Hughes, 1990, 90). Ladd faz uma relação desta
passagem com o ensino de Jesus de que seus discípulos devem tomar a cruz, o que não
significa carregar fardos pesados, mas a disposição de sofrer o martírio:
O evangelho será efetivamente proclamado, mas num contexto de hostilidade, que a
despeito da presença do evangelho do reino, será caracterizado por guerra,
sofrimento causado por necessidades materiais e econômicas, e morte... (a) um fato
que a igreja precisa encarar em sua missão de proclamar o evangelho do reino é
presença da perseguição e o martírio...As almas dos mártires são vistas sob o altar
como se tivessem sido sacrificadas...Portanto, os mártires cristãos são considerados
como sacrifícios ofertados a Deus...O Novo Testamento enfatiza que, por sua própria
natureza, a igreja é o povo do martírio (Ladd 1972, 102f).
Os mártires vencem Satanás e seus anjos pelo sangue do Cordeiro, pela palavra do seu
testemunho (o testemunho do evangelho), e por não amarem suas vidas até a morte (Ap
12.11). Ladd declara “seu martírio foi em si mesmo uma vitória sobre Satanás, não uma
vitória física, na qual suas vidas fossem poupadas e eles ficassem livres da perseguição, mas
uma vitória espiritual que provou serem vazias as acusações contra os irmãos” (1972, 173).
Os santos precisam perseverar e ser fiéis, atentando para a advertência sobre a besta que
haveria de vir (Ap 13.10). Ele encoraja os crentes a obedecerem a Deus, mesmo sofrendo
prisão e morte. Hughes comenta que Deus assegura aos servos fiéis que nada pode lhes
acontecer que não esteja sob o controle dele ou contrarie a sua vontade:
Em todas as coisas, Deus dirige e governa de acordo com seu plano. É quando aceitamos a
aflição que a paciência e a fé dos santos se revela triunfante. Tais provas atestam que sua fé
é genuína e sua esperança em Cristo, inabalável. A ideia da inevitabilidade implica na
supremacia da vontade divina, que é sempre direcionada para o bem e para bênção da
comunidade dos redimidos (Hughes 1990, 150).
Apocalipse 14.12 enfatiza que perseverar significa guardar o mandamento de Deus e a fé em
Jesus. Os que morrem no Senhor são abençoados, e suas obras os seguem (vs. 13, confira Jo
15.16). Mounce afirma que a fidelidade a Cristo produz martírio, mas traz bênção e uma
vitoriosa entrada no repouso (1977, 277).
Em Apocalipse 16.5-7, o Deus Todo-Poderoso, verdadeiro e justo, julga todos aqueles que
perseguem e matam seus profetas e santos (conf 18.24), que foram seduzidos pela feitiçaria
(19.2). Deus dará roupas brancas como símbolo de justiça (Ap 19.7) àqueles que foram
mortos por causa do testemunho de Jesus e da palavra de Deus, que não adoraram à besta
nem a sua imagem, nem receberam a sua marca. Eles reinarão com Cristo e viverão para
sempre como seus sacerdotes (Ap 20.4). Morris afirma:
Ninguém menos que o próprio Deus será o consolador do seu povo. Ele enxugará
toda lágrima. Seu cuidado é infinito... A morte não triunfará no final e o povo de
Deus verá que ela será derrotada... A tristeza, o lamento e a dor também cessarão.
Para João, isso ocorre porque “as primeiras coisas já passaram”... A vida, como a
conhecemos, será totalmente substituída por uma nova ordem. João havia chorado
diante da perspectiva de que não houvesse ninguém que fosse digno de abrir os
selos (v. 4). Não há uma resposta para o problema do mal sobre a terra? Suas visões
responderam essa pergunta. O Cordeiro venceu. Agora ele percebe que as lágrimas
também cessaram (Morris 1995, 245).
O Apocalipse revela o projeto do plano de Deus para a salvação do homem e da história
deste mundo. O Cordeiro abre o livro porque ele havia comprado com seu sangue pessoas
de todas as nações (Ap 5). Um anjo disse que a salvação seria pregada a todas as nações e
então viria o julgamento (Ap 14.6-7). João também viu sob o altar as almas dos que foram
mortos por causa da palavra de Deus e do testemunho que deram (6.9). Então João ouviu
que o acusador havia sido vencido por aqueles que não amaram suas próprias vidas e
enfrentaram a morte, pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho. O diabo
está enfurecido porque seu tempo é curto (12.10-12). Eis o projeto: a salvação veio através
da morte de Jesus. Isso precisa ser pregado a todos os povos, do contrário, eles
permanecerão sob o julgamento de Deus. No final, teremos a salvação de muitas pessoas de
todos os povos. Mas antes disso, o diabo mostra sua fúria. Os que testemunharem do
Cordeiro serão martirizados. Entretanto, eles vencem porque mantém o testemunho da
Palavra de Deus.
João adverte sobre o sofrimento, julgamento e a tribulação, que inclui privação, calúnia, e
até a morte. Ele também nos assegura que Deus está no controle, realizando o plano divino
de salvação para toda a criação. Wilcock aplica tais coisas à igreja dos dias de hoje, onde
alguns cristãos sofrem enquanto outros vivem em relativo conforto:
A perspectiva imediata era de sofrimento e mesmo a morte. Essa era uma certeza –
um fato que traz lições para aqueles dentre nós que levam uma vida
comparativamente tranquila. Será que seríamos pegos desprevenidos se a
perseguição batesse em nossa porta amanhã? Muitos irmãos têm vivido com essa
expectativa e nós precisamos fazer o mesmo. Porque a grande tribulação que João
vê no final dessa era, ele também vê, em menor escala, constantemente presente na
experiência do povo de Deus. E isso é uma provação. É a ação do diabo, mas Deus
tem um propósito para isso (Wilcock 1991, 45).
A igreja de hoje precisa dar atenção às advertências e ao encorajamento proferidos por
João. Beasley-Murray enfatiza o valor que a igreja tem para Deus e seu destino na
eternidade. Por causa do seu testemunho para o mundo, a igreja enfrenta sofrimentos. Se
atentar para as palavras de João, a igreja não será pega de surpresa pela oposição à sua
missão junto às nações. Deus sabe tudo isso, mas ele restringe sua intervenção. Ele encoraja
os cristãos a perseverarem. Sofrendo com seu Senhor, a igreja vai compartilhar da sua glória
no reino vindouro. “O sofrimento é permitido para garantir a aprovação daqueles para os
quais o reino é preparado” (Beasley-Murray 1978, 44-45, 81).
O Apocalipse mostra o eterno plano de Deus por completo: salvação, juízo, pregação do
evangelho a todos os povos, a batalha entre os seguidores de Jesus e Satanás, e a vitória
final de Deus. A realização dos propósitos de Deus inclui sofrimento para os seguidores de
Jesus, a quem a pregação do evangelho foi confiada. De alguma maneira, o sofrimento faz
parte do plano de Deus para a salvação dos crentes. A exortação repetidamente encoraja a
perseverar até vencer. Mesmo até a morte.
CONCLUSÃO
Os cristãos devem estar preparados para o sofrimento, especialmente aqueles que pregam o
evangelho. Às vezes Deus permite o sofrimento a fim de cumprir seu divino plano de
redenção, moldando seu povo através dele e demonstrando sua glória quando eles
perseveram e triunfam, mantendo-se fieis a Ele. Negar a si mesmo, tomar a cruz e renunciar
nosso conforto e bens, colocando Deus antes mesmo de nossa família e nosso lar, enfrentar
o ódio, rejeição e perseguição, tudo isso faz parte do custo do discipulado verdadeiro.
A perseverança é necessária quando enfrentamos tentações e sofrimento. Os seres
humanos são avessos ao sofrimento, mas os cristãos não deveriam se surpreender com ele
nem tentar fugir dele. Eles devem se regozijar na certeza do propósito final de Deus,
considerando-se abençoados por sofrerem pelo nome de Cristo e por sua justiça. A
perseverança é alimentada através do entendimento da Palavra de Deus, participação na
comunidade cristã, e imitação do exemplo de Jesus, o Servo Sofredor.
PERGUNTAS PARA REFLEXÃO
1. Por que o sofrimento tem uma importância tão grande no plano de salvação de
Deus?
2. Como explicaríamos a definição de Beasley-Murray de que “Os feitos ou obras
são... o critério da fé genuína no juízo vindouro e no juízo presente? A
perseverança necessária para as obras de fé está relacionada ao esforço de
manter a fé verdadeira”, fazendo uma relação com a igreja em Tiatira, que possuía
obras, amor, fé, serviço e perseverança, os quais Deus conhecia (Ap 2.19)?
3. Quais implicações para a igreja derivam do fato de que o sofrimento está
diretamente ligado à proclamação das boas novas de salvação a todos os povos,
os quais foram comprados pelo sangue do Cordeiro?
4. Na vida da nossa igreja e amigos, em que medida o sofrimento faz parte do preço
de seguir a Cristo, vivendo uma vida justa, e proclamando o evangelho?
Referências:
A Sra. Margaretha Nalina Adiwardana é presidente e diretora executiva da AME (Associação
Missão Esperança), que trabalha com assistência em situações de catástrofes internacionais
e desenvolvimento de comunidades, além de oferecer parcerias e fortalecimento a igrejas
locais. Ela é a fundadora e coordenadora da REDE SOS GLOBAL, uma rede brasileira de
assistência em situação de catástrofe. A Sra. Adiwardana dá treinamento a missionários de
diversas organizações, seminários e escolas de treinamento.
O PROBLEMA DO MAL E O SOFRIMENTO
Uma abordagem comparativa entre a visão africana e a ocidental
Isaiah M. Dau
INTRODUÇÃO
Quem sou eu? Sou uma mulher vestida de trapos, uma
muher incapaz de falar uma língua estrangeira: Sou cega, e
analfabeta. Sempre cuidei do gado para sobreviver, mas
agora todos nossos animais foram roubados. Meus filhos
foram subornados para me atormentar. Meu Nhialic, meu
Nhialic, tem misericórdia de mim. Só tu podes me tirar
deste sofrimento. Já passei dez dias sem comer e sobrevivi
só com a água que tu me deste . 5
Diga-me você, sem rodeios, eu o desafio. Imagine que o
destino da humanidade estivesse em suas mãos e que para
tornar as pessoas felizes, proporcionar-lhes no final a paz e
o sossego, fosse indispensável torturar apenas uma
criaturinha pequena... Você concordaria, nestas condições,
em arquitetar tal felicidade? Responda sem mentir!6
O problema do sofrimento humano coloca a fé sob uma enorme
pressão. Como é de se esperar, gera discussões em todas as
culturas e comunidades. Toca as pessoas e põe em cheque sua fé
em um Deus de amor. Recentemente, a realidade do mal e do
sofrimento ganhou maior visibilidade através da globalização e da
rápida disseminação da informação. Consequentemente, com o
aumento rápido da teconologia da comunicação em nossa época,
quase todos os dias somos confrontados com vítimas ou vítimas em
potencial do sofrimento e do mal em nosso mundo, como nunca
antes na história humana. As imagens aterradoras do genocídio e
assassinato em massa em Ruanda e nos Balcãs nos anos 90 ainda
nos assombram. O mesmo acontece com o horror de membros
decepados de crianças, algumas de meses de idade em Sierra Leoa
ou com imagens da fome causada pelo próprio homem na Etiópia,
na Eritréia, no Sudão, em Angola e na República Democrática do
Congo, só como exemplo. Ficamos sem fôlego, perguntando
desesperados e frustrados: “por que existe o sofrimento, afinal?”
Qual é o propósito ou valor do sofrimento na existência humana?”
Onde está Deus quando o mal nos assalta? Embora essas perguntas
sejam mais fáceis de se fazer do que de se responder, elas
constituem o que tradicionalmente se tem chamado de “o problema
do mal e do sofrimento” Elas revelam a nossa busca humana por
5
Esta é a oração feita num campo de refugiados em Uganda por
uma vítima de guerra sudanesa em fevereiro de 1994. Ela
narra em oração seu sofrimento por causa da guerra em que
ela perdeu o gado e a casa de sua família. Sua fé em Nhialic
ou “aquele lá de cima”, nome que os Dinkas do Sudão usam
para Deus, é muito real e é a única coisa que lhe dá forças
para soreviver no meio da brutalidade da guerra ao seu redor
(Ver Dau 2000). A oração é citada por Marc Nikkel em
“Children of our Fathers ‘Divinities’” (Nikkel 1997, 61-78).
6
Esta é a pergunta feita por Ivan Karamazov ao seu irmão
Alyosha sobre o problema do sofrimento (Dostoyevsky 1993,
282).
uma resposta diante desse problema perturbador. “Nosso coração
humano clama por uma resposta que alcance os que choram e
sofrem com uma palavra de esperança num mundo em desepero”
(Carson 1978, 13). Embora essa resposta não surja como a
humanidade espera, podemos experimentar a presença de Deus até
no sofrimento. Como C. S. Lewis sabiamente observou, “Deus
sussurra aos nossos ouvidos nos prazeres, fala às nossas
consciências, mas grita em nosso sofrimento, o sofrimento é o
megafone que acorda um mundo ensurdecido.” (Lewis 1967,10).
Mas a busca por uma resposta nunca levou a um consenso, o que
inevitavelmente leva a diversos pontos de vista e interpretações. É
isso que representam as citações acima, uma da África e outra do
mundo ocidental. Tokunboh Adeyemo classificou acertadamente
esta diversidade nas visões da realidade como um “choque entre
duas visões de mundo” (Adeyemo 1988, 369). Essas afirmações
são típicas das diferenças nas interpretações do problema sobre o
mal e o sofrimento. A primeira é a oração de uma mulher
sudanesa, lidando com a realidade do sofrimento e a fé na
brutalidade da guerra e da morte em seu país. A segunda é um
protesto ocidental clássico contra a domesticação aparente da
relação entre o mal e o sofrimento, encontrada na teodiceia e
teologia do século dezenove na Europa. Este protesto é
personificado no romance clássico de Fyodor Dostoyevsky Os
Irmãos Karamazov, que desafia a pressuposição tradicional de que
o sofrimento tem um propósito quando se tem uma visão mais
abrangente das coisas, de acordo com o plano original divino. É
um protesto muito forte contra o sofrimento de crianças e se recusa
a aceitar uma justificativa para o sofrimento, nem mesmo o gozo
futuro depois da morte. A oração da mulher sudanesa expressa a
confiança na fidelidade e na provisão de Deus durante a guerra e o
sofrimento.
Neste artigo, procuramos analisar o entendimento africano
tradicional sobre o sofrimento e o mal, comparando-o com a visão
ocidental. Para iniciar, defendemos que a visão africana da
realidade é holística, raramente distinguindo o sagrado do secular
ou o espiritual do material. Depois, examinamos alguns
pensamentos africanos tradicionais sobre a origem do mal e do
sofrimento, procurando diferenciar entre o mal natural e o mal
moral. A seguir, investigamos orações, elegias, protestos e
lamentações expressas no contexto tradicional africano como uma
forma de enfrentar a realidade trágica do sofrimento e do mal.
Comparamos as visões africana e ocidental antes de concluir com
as implicações teológicas relativas ao problema do mal e o
sofrimento. Estas implicações teológicas são tiradas do arcabouço
da encarnação como a resposta cristã ao problema do mal e do
sofrimento. Falamos da cruz, da comunidade, da esperança e do
caráter como base para transcender e tranformar o sofrimento e o
mal no mais alto bem desta vida.
UMA COSMOLOGIA HOLÍSTICAvisão africana do mal e o
sofrimento é um componente de uma cosmologia complexa mas
holística. Esta cosmologia, como John S. Mbiti e outros indicaram,
consiste hierarquicamente de Deus, espíritos ou divindades,
ancestrais, os mortos-vivos, os vivos, os não nascidos, os animais,
as plantas, etc... Nesta visão de mundo, a realidade é um todo
coerente e unificado. O bem e o mal, a benção e a maldição, o
consolo e o sofrimento, a alegria e a tristeza, o sucesso e a falha, a
vida e a morte são todos parte da realidade existencial. Longe de
ser fatalista, a visão de mundo africana aceita que a vida às vezes é
injusta e amarga. Embora esta visão de mundo nunca domestique
ou aceite fatalisticamente o sofrimento e o mal como normais, ela
reconhece que essas são realidades da vida que devem ser
encaradas e resistidas, mesmo sendo desagradáveis, como de fato o
são. Assim, a visão africana reconhece o sofrimento e o mal como
destino da humanidade, que Deus não intensionava que ela
experimentasse, mas que, mesmo assim, acontece neste mundo. O
mal e o sofrimento são vistos como realidades que devem ser
encaradas como parte de uma trágica existência.
Os povos africanos têm uma consciência aguda do mal no mundo e
procuram combatê-lo de várias formas (Mbiti 1990, 199). Mas,
como K. A. Busia observa, o problema do mal, como muitas vezes
é discutido na filosofia e na teologia cristã ocidentais, não aparece
no conceito africano de divindade. O Ser Supremo do africano é o
Criador, a fonte da vida, mas entre ele e a humanidade estão
principados e potestades, bons e maus deuses, espíritos, forças
mágicas e feiticeiras para explicar os acontecimentos estranhos no
mundo (Busia 1998, 197). Muitos pensadores tradicionais
africanos, como é o caso entre os Akan, embora reconheçam a
existência do mal moral no mundo, geralmente não acreditam que
isso é inconsistente com a afirmação de que Deus é onipotente. De
seu ponto de vista, o mal é o resultado do exercício da liberdade de
escolha humana, que Deus lhe concedeu (Gyckye 1987, 128).
O MAL E O SOFRIMENTO NO PENSAMENTO
TRADICIONAL AFRICANO
No pensamento tradicional africano, a origem do mal é presumida,
não explicada. Muitas tribos africanas rejeitam categoricamente a
ideia de que o mal teve sua origem em Deus. Algumas, como os
Vugusu do Quênia, acreditam que o mal se originou de seres
espirituais ou divindades. Os Dinka do Sudão acreditam que os
jak, ou espíritos independentes, ao contrário dos yieth, espíritos
ancestrais, causam a destruição e o sofrimento (Deng 1972, 122-3).
Essas divindades, ou espíritos foram criados por Deus, mas só se
tornaram más quando se rebelaram contra Deus e começaram a
fazer o mal. Francis Deng observa que os jak na cosmologia
Dinka agem como a polícia de Deus, executando o julgamento
sobre os que praticam o mal.7 Mbiti acredita que este conceito é
uma personificação do mal em si (1990,199-210).
O mal supostamente surgiu como resultado da transgressão humana
de um mandamento divino, cujo conteúdo varia de uma tribo a
outra. Existe uma noção generalizada no pensamento tradicional
africano, que no princípio Deus e os humanos viviam juntos na
terra e se comunicavam com frequência. Mas devido a algum
comportamento mau por parte do homem e da mulher, Deus deixou
a terra e foi morar no céu, deixando a humanidade na busca
constante e sem sucesso para alcancá-lo (Smith 1950, 7-8). Uma
história da “Queda”, mais ou menos semelhante à história bíblica
de Gênesis 3, é contada de diferentes formas e com diferentes
sabores na tradição oral africana para tentar explicar a origem do
mal.8 Os Dinka do Sudão relatam um mito no qual os primeiros
seres humanos, um homem e uma mulher, transgrediram o
mandamento divino de não cultivar um território proibido. A
mulher, que é vista como a maior culpada, enquanto lavrava a terra
com um arado longo, bateu na divindade e ele deixou a terra.
Muito ofendida, a divindade enviou um pardal chamado atoc, para
partir a corda que anteriormente ligava os humanos a Deus no céu.
Assim, o acesso ao céu onde os humanos seriam restaurados em
sua vitalidade e juventude depois de velhos lhes foi negado. Foi
assim que tudo “foi estragado”.9 A fome, a doença, o sofrimento, e
a morte foram os resultados desta separação abrupta entre a
humanidade e Deus até os dias de hoje (Lienhardt 1961, 32-55). 10
7
Deng explica ainda que os jak, ou espíritos maus, não agem apenas quando são ordenados.
Todo o sofrimento sem explicação é atribuído à maldade deles, embora a predisposição
culpada e fatalista dos humanos atribua muitas vezes a origem causadora do mal a
alguma falha humana, mesmo que isso seja um erro (1972, 123).
8
Para mais referências sobre as semelhanças entre a visão de mundo africana e judaica,
como aparece no Velho Testamento, veja “Some African Insights and the Old
Testament”, de Desmond Tutu (1972, 16-22).
9
David Bosch afirma corretamente que a palavra usada para pecado em várias línguas
africanas significa “estragar”, especialmente estragar ou atrapalhar relacionamentos
humanos (ver o seu “Problem of evil in Africa: A survey of African views on witchcraft
and of the Christian Church response” (1987, 50).
10
E. Bolaji Idowu conta a história da criação e da queda para os Iorubas em seu livro
A humanidade havia desobedecido o mandamento de Deus e
escolhido seus próprios caminhos ao invés dos caminhos de Deus;
portanto, de acordo com os Dinka, a humanidade deve aceitar o
sofrimento e a morte como consequências lógicas de sua
desobediência. Assim, Deus não é a origem do mal. Para os Dinka
e outros povos africanos, como os Ashanti, os Iorubas, os Nuer, e
muitos outros, o mal não se origina em Deus; Deus não faz o que é
mau nem causa dano a ninguém. De acordo com o povo Ila, Deus
está sempre certo e portanto não pode ser acusado de ofensa, não
pode ser acusado de nada, não pode ser questionado (Smith e Dale
1920. 199-211). Rosemary Guillebaud relata que os povos
Banyarda-Urundi acreditam que nada supera Imana. Ele dá a vida
a tudo e nele não existe mal nenhum. Todo o bem provém dele e se
deixar de existir prosperidade, é porque Imana se afastou dos
humanos. Eles acreditam que é impossível ocorrer o mal se ele
estiver presente (Guillebaud 1950, 186). O povo Nuer do Sudão
também tem esta mesma visão (Pritchard 1956, 21).
A ORIGEM DO MAL
De acordo com John Mbiti, em quase todas as sociedades africanas,
os espíritos são ou a origem do mal ou os agentes do mal (Mbiti
1990, 199). Os mortos-vivos, que se tornam desligados dos vivos,
também são vistos como causadores do medo e do mal aos vivos.
Se eles forem enterrados de forma imprópria, negligenciados ou
desobedecidos eles se vingam e punem os que os ofenderam. Os
vivos sofrem as consequências de suas ações quando experimentam
o mal e o sofrimento, porque deixam de prestar aos mortos-vivos a
honra que merecem. Já que Deus está sempre certo, a desgraça, o
sofrimento, e o mal chegam aos humanos principalmente por suas
próprias ações (Pritchard 1956, 19-21).
No entanto, há ocasiões em que o mal e a desgraça são atribuídos a
Deus. Deus, como aquele que sabe todas as coisas, pode ser
responsabilizado por epidemias e aflições. Mbiti relata que o povo
Tilo acredita que Deus tem o poder de matar e o poder de dar a
vida (Mbiti 1971, 81). Embora não se deva rejeitar Deus por causa
do mal, a maioria dos povos africanos acredita que ele é o único
que pode livrá-los do mal e da desgraça. O povo Nuer acredita que
Deus é o único que pode remover o mal e a desgraça de seu
caminho.
Assim, no pensamento africano, Deus pode ser exonerado da
responsabilidade pelo mal, mas ao mesmo tempo pode estar
Olodumare: God in the Yoruba Belief (1962, 18-29). Há semelhanças surpreendentes
entre esta tradição e a de outros povos africanos, inclusive os Dinka.
implicado. Seja qual for o caso, os africanos tradicionais jamais
rejeitarão a Deus por causa do mal, do sofrimento, e da desgraça
que os aflige. Pelo contrário, eles se apegam a Deus ainda mais,
apesar do mal e do sofrimento. As pessoas, no entanto, podem
reclamar com Deus e os ancestrais por causa dos sofrimentos e do
mal que lhes sobrevêm, mas jamais acusarão a Deus de qualquer
infração moral. Deus é seu último recurso quando todos os outros
falham (Smith 1950, 30). Ele não pode ser acusado de fazer o que é
reprovável porque a culpabilidade sempre recai sobre os ombros da
humanidade (Magesa 1997, 50).
O MAL NATURAL E O MAL MORAL
Neste ponto, devemos distinguir entre o mal que uma pessoa faz a
outra e o mal que naturalmente ocorre e está além do controle
humano. O primeiro está no contexto dos relacionamentos em
comunidade e tem a ver com questões de virtude e caráter. Entre
os povos Nuer e Dinka, assim como muitos outros povos africanos,
se conformar aos padrões de comportamento na família e na
comunidade é de suma importância. Não aderir a estes padrões é
uma ofensa grave que pode trazer consequências más, como
maldição ou a morte. A conformidade aos costumes e às normas
da comunidade determina em grande parte se uma pessoa é
considerada má ou boa. Se uma pessoa age de forma a não
prejudicar os relacionamentos na comunidade ela é boa, e se ela
fizer o contrário, ela é má. 11 As pessoas deveriam estar prontas a
colher os resultados de sua conduta. A maioria dos africanos crê
que o bem sempre segue a conduta certa e o mal segue a má
conduta. As consequências de nossas ações, sejam boas ou más,
sempre nos acharão mais cedo ou mais tarde. Esta é a lógica na
religião Nuer, e até certo ponto, na dos Dinka. Se uma pessoa
sempre faz o que é certo, não comete infrações contra as
interdições e mandados divinamente sancionados, não faz mal aos
outros, e cumpre suas obrigações para as divindades e para seus
amigos e parentes, ela evitará sérias desgraças.
Essa pessoa pode não evitar, no entanto, desgraças que sobrevêm a
todas as pessoas (Pritchard 1956, 17). Ninguém pode evitar o
sofrimento. Deus não pune aqueles que fazem mal aos outros sem
o saberem; mas, as consequências das ações de alguém, sejam elas
deliberadas ou não, são aceitas quando estas são expostas. 12 Ainda
11
Comparar com Mbiti e sua discussão dos conceitos de mal, ética, e justiça em seu African
Religions and Philosophy (1990, 199-210)
12
Ser exposto quando se está errado resulta em vergonha e culpa. Pode não ser
inteiramente correto se afirmar, como diz Van der Walt, que a vergonha tem um papel
assim, não existe o conceito de um pecado pessoal inerente que não
esteja ligado à conduta de alguém na comunidade. O sofrimento
em qualquer modalidade nesta categoria é sempre atribuído a algo
ou alguém na comunidade. Nas palavras de Mbiti:
Cada forma de dor, desgraça, tristeza, ou sofrimento; cada
doença e mal estar; cada morte, seja a de um velho ou de
um bebezinho; cada colheita perdida nos campos, ou
caçada frustrada na mata, ou pesca mal sucedida nas águas;
cada mau presságio ou sonho; estas e todas as outras
manifestações do mal que as pessoas vivenciam são culpa
de alguém nessa sociedade corporativa (1990, 204).
Geralmente, essa pessoa pode ser uma feiticeira, um feiticeiro ou
um mago. “A feiticeira”, como David Bosch indicou
acertadamente, “é uma pecadora por excelência, não primariamente
por causa do que faz, mas por causa das consequências más de
seus atos: doença, esterilidade, catástrofe, desgraça, perturbação de
relacionamentos na comunidade, pobreza, e assim por diante”
(1987, 50). No pensamento tradicional africano, parece nada
acontece sem ser causado por alguma coisa ou alguém. É verdade,
como Laurenti Magesa observa, que na ética moral tradicional
africana, o pecado e o mal não existem nem podem existir na
experiência humana a não ser que sejam percebidos nas pessoas.
São as pessoas que são más, ou pecadoras, sejam elas ajudadas ou
não por forças invisíveis. Porque, até quando as forças do mal
causam dano, é porque pessoas más as usam para alcançar seus
objetivos (Magesa 1997, 162). As pessoas, no entanto, não são
inerentemente pecadoras mas são pecadoras porque fazem o mal e
destróem relacionamentos na comunidade. Assim, tudo que
acontece na sociedade tradicional africana pode ser explicado
misticamente ou naturalmente, às vezes resultando em suspeita
duradoura na comunidade e na fragmentação. Isto é o que constitui
o mal moral no pensamento tradicional.
O segundo tipo de mal é o que os seres humanos sofrem como
resultado de causas naturais. Pode ser na forma de secas,
epidemias, enchentes, e outras calamidades naturais que podem não
ser atribuídas diretamente à atividade humana. O sofrimento, o mal
e a desgraça podem vir como resultado destas coisas. Mas nada
acontece na sociedade africana sem ter sido causado por alguém ou
algo. Consequentemente, sempre se busca ou se dá uma
explicação possível para tudo o que acontece aos seres humanos.
mais importante que a culpa na ética comunitária africana. A culpa parece levar à
vergonha e não o inverso. Como no caso dos Dinka, isto é verdade (ver Van der Walt
1997,33).
Neste processo, a introspecção ou até mesmo uma caça às bruxas
inevitavelmente se segue na comunidade, mesmo que seja para
encontrar um bode expiatório. O mau olhado ou o mau coração e a
boca má, por causa de inveja, ódio e rivalidade ou mesmo a raiva
ancestral podem ser causas a se examinar quando se passa por
sofrimento e tragédia (Fortes 1987, 211-7). Quando isso acontece,
todo aspecto da conduta humana na comunidade pode ser
considerado como causa possível para o sofrimento ou a desgraça
pelos quais agora se está passando.
Em algumas sociedades, pensa-se que o sofrimento resulta da
punição de Deus aos ofensores que desobedecem suas leis. Para os
Dinka, como Francis Deng explica, qualquer pessoa que sofrer
enfermidade ou desastre busca nas profundezas de seu próprio
interior ou de seus parentes próximos para encontrar o pecado que
trouxe tal problema. Então, quando uma pessoa Dinka fica doente
ou sofre um acidente, provavelmente atribuirá isto às divindades
que estão punindo os malfeitores (Deng 1972. 128). Para os Nuer e
outros povos africanos, as desgraças últimamente provêm de Deus
através de agentes humanos ou espirituais (Pritchard 1956, 18).13
Seja qual for a explicação dada, os seres humanos, e não Deus, são
os culpados por seu próprio sofrimento.
ENFRENTANDO O MAL E O SOFRIMENTO
Seja onde for e da forma como vierem o mal e o sofrimento, devem
ser resistidos e confrontados. Os povos africanos nunca ficam
passivos diante do sofrimento. Eles tentam fazer tudo o que for
possível para aliviar o sofrimento e restaurar a saúde e a harmonia
no indivíduo e na comunidade. Sacrifícios, libações, e orações são
oferecidas a Deus e a divindades para solicitar sua intervenção e
sua ajuda na hora do sofrimento. Às vezes, esta ajuda é
conseguida, outras vezes, não. No fim, a resignação ao mistério do
mal e do sofrimento prevalece quando as respostas são poucas. O
pensamento tradicional africano aceita que a vida é cheia de coisas
sem explicação e inescrutáveis. O sofrimento e o mal, a vida e a
morte, Deus e a humanidade são parte deste mistério da existência
humana no mundo. Apesar disso, o sofrimento não é aceito
fatalisticamente; é algo com que se luta. É essa luta contra o
sofrimento que acaba se resumindo na batalha contínua e na busca
pelo verdadeiro significado da vida com relação a Deus e à origem
do mal. Na religião tradicional africana, Deus é o absoluto
soberano, externo à sua criação, tão distante em sua glória que é
13
Os Dinka também acreditam que a humanidade, como um todo, está sujeita ao poder
supremo único de Deus, porque é Deus que cria e destrói todos os homens (Deng 1972,
126).
inatingível a não ser através de intermediários. Ao mesmo tempo,
ele também é visto como imanente nos seres humanos, como
expresso simbolicamente nas histórias da criação (Smith 1950, 27).
Esta tensão no entendimento tradicional de Deus se manifesta
particularmente quando o sofrimento e a adversidade são
enfrentados. Ela claramente vem à tona em tempos de angústia,
dor e sofrimento. Nós exploramos isto nos cânticos de oração e
elegias funerais das religiões africanas, especialmente aquelas que
são feitas em momentos de angústia e sofrimento.
A oração no pensamento tradicional africano expressa o que mais
preocupa ou o que mais alegra o interior. A oração é uma parte
integral dos sistemas religiosos africanos. A oração é feita na vida
e na morte, na doença e na cura, na prosperidade e na pobreza, no
trabalho e no descanso, na guerra, na adversidade e na paz, na
viagem e no lugar de moradia, no plantio e na colheita, como
oferta, dedicação, bênção, agradecimento, confissão, em todas as
áreas da vida, sem excessão. A oração é feita principalmente a
Deus e em segundo lugar a intermediários. De acordo com Mbiti,
todos oram, no sentido que todos que estiverem presentes na hora e
lugar da oração participam do conteúdo das orações, e podem às
vezes participar repetindo orações padrão (Mbiti 1975, 3). Há
muitos tipos de oração na religião tradicional africana. 14
Nas orações feitas na hora do sofrimento e da adversidade, as
pessoas basicamente lutam com Deus e com a realidade do mal e
do sofrimento. As orações às vezes são feitas com linguagem
muito forte. Os sofredores reclamam e brigam com Deus por não
intervir na hora da necessidade. Deus é tratado como um colega
humano. A expressão dos sentimentos é parte integral da oração.
Orar não é apenas adorar; é também um diálogo retórico, um
diálogo em que o questionamento humano e o exame de
consciência ocorrem na presença de Deus e de outras realidades
espirituais (Mbiti 1975, 44). Um coração pesado pelo luto ou por
uma perturbação emocional é expresso abertamente a Deus numa
combinação de canto e oração. Rosemary Guillebaud, que
trabalhou como missionária em Burundi por muitos anos, gravou as
seguintes orações em forma de canto. A perda de um ente querido
desencadeou a primeira dessas cantigas e a pessoa enlutada, num
14
John S. Mbiti colecionou mais de duzentas dessas orações num livro chamado The
Prayers of African Religion (1975). As orações tratam de várias questões relativas à fé
em Deus, a vida, e relacionamentos na comunidade. O sofrimento é uma dessas
questões. Sou muito grato ao professor Mbiti por chamar minha atenção para esta
fonte preciosa quando tive o privilégio de conhecê-lo em uma conferência em
Stellenbosch, África do Sul, em maio de 1999.
lamento voltado para si mesma, culpa Imana por tratá-lo
injustamente:
Quanto a mim, Imana (Deus) me devorou,
Quanto a mim, não me tratou como aos outros.
Com cânticos eu cantaria,
Se meu irmão (ou quem tenha morrido) estivesse comigo.
A tristeza não é andar cabisbaixo de luto,
A tristeza não é sair chorando (porque isso não leva
embora a tristeza).
Quanto a mim, Imana me devorou,
Quanto a mim, não me tratou como aos outros;
Se tivesse me tratado como aos outros, eu poderia ser um
Desdenhador-de-Inimigos
Ai de mim! (Guillebaud 1950, 198s).
Ser devorado por Imana implica, entre outras coisas, em ter sido
tratado injustamente por um Deus que se presume ser bom e justo.
Isto demonstra um sentimento que equipara a morte de um parente
à própria morte. Mas Imana não é rejeitado aqui. Está sendo
acusado por não ter feito pelo queixoso o que fez por outras
pessoas. Imana deu a outros o que ele não deu ao queixoso. Ele
lhes deu filhos, lhes deu cestas cheias de prosperidade em produtos
da terra, e lhes deu touros e outras bençãos. Somente o queixoso
foi esquecido e assim ele protesta e reclama. O tom de sua
reclamação e protesto também aparece na seguinte oração-canto
por outro indivíduo que também está sofrendo com o coração
pesado diante de uma possível perda na família, provavelmente de
seu único filho.
Não sei para que Imana está me castigando: se eu pudesse
encontrá-lo eu o mataria. Imana, por que você está me
castigando? Por que não me fez como as outras pessoas?
Nào dava para me dar pelo menos um filhinho? Yo-o-o!
Estou morrendo de angústia! Se eu pudesse te encontrar e
retribuir! Por favor (Imana), deixe-me te matar! Deixe-me
te atravessar com uma espada, ou te cortar com uma faca!
O Imana, você me abandonou! Yo-o-o! (Ai de mim!).
O pesar diante de uma perda irreparável de um único filho levou
este indivíduo a planejar um ataque a Imana. Como Jó em seu
sofrimento, o queixoso exige saber o porquê Imana o está punindo.
Ele vai além de Jó, deixando claro que caso encontrasse Imana, sua
intenção era de esfaqueá-lo. Palavras fortes como estas expressam
tanto a fé em Deus quanto a ira contra aquele cuja presença ou
ausência são sentidas na hora da dor e do sofrimento. A fé no fato
da sua presença, mesmo se esta não for sentida, mas a raiva por ele
parecer não intervir quando mais se precisa dele. Tanto a noção de
fé quanto de raiva, denotam um processo de jornada espiritual que
leva a um conhecimento maduro de Deus e à liberdade de expressar
diante dele os mais profundos sentimentos humanos. Uma pessoa
humana briga e dialoga com Deus como se estivesse face a face
com ele.
Como Mbiti indica, esta é uma dimensão marcante da
espiritualidade africana que deveria ser cuidadosamente preservada,
não descartada (Mbiti 1975, 44). Queremos enfatizar que não
existem componentes ateus nesta oração. Na sociedade africana
tradicional, há espaço para se reclamar, discutir, ou mesmo brigar
com Deus, mas não há espaço para o ateísmo. A crença em Deus e
em outras divindades é uma parte inerente da vida cotidiana para
todos. A religião é inseparável das atividades diárias da vida.
Como diz Mbiti, os povos africanos são “notoriamente religiosos”.
Assim, é virtualmente impossível, numa sociedade tradicional
africana, ser parte da comunidade e não ser parte dos sistemas e
crenças religiosas. Cada um é porque sua comunidade é. É
impossível ser ateu se sua comunidade não é e vice versa. Não há,
portanto, nenhum ateu praticante nas comunidades tradicionais
africanas , e não existe a “teologia da morte de Deus”. Isto é
verdade até mesmo quando o sofrimento e a adversidade abundam
e quando não há resposta para o problema do mal e o sofrimento.
Mas enfrentar o problema do mal e do sofrimento com relação à fé
em Deus é uma realidade contínua como se percebe na oraçãocanto.
Há uma outra área na qual a sociedade tradicional africana tem que
lidar com o mal e o sofrimento. É na área da realidade inevitável
da morte. Quando a morte chega, o diálogo entre as pessoas e
Deus claramente aumenta. No pensamento tradicional africano, a
morte é vista como o clímax do mal porque leva a vida embora.
Quando alguém morre, aceita-se que Deus a abandonou. Embora
se pense que uma pessoa vá para outra terra quando morre, ainda
assim, a morte é uma experiência assutadora. A possibilidade de se
morrer, especialmente de se morrer sem filhos, é a pior coisa que
poderia acontecer a uma pessoa (especialmente a um homem).
Morrer numa idade avançada depois de criar uma família não é tão
mal. De fato, há comunidades que acreditam que uma morte assim
não é algo tão ruim porque a pessoa morta deixa descendentes para
perpetuarem sua linhagem. No entanto, a morte sempre desperta
sentimentos muito fortes, expressos em orações e cânticos. Essas
orações e cânticos, cheios de tristeza, dor, agonia, desespero e
sofrimento são verbalizações de protesto. O lamento ou até a culpa
é despejado sobre Deus e outras entidades espirituais por não suster
a vida como deveriam ter feito. Veja a seguinte oração de lamento
do Congo:
Oh, grande Nzambi ou Deus, o que tu fizeste é bom, mas tu
nos trouxeste uma grande tristeza através da morte. Tu
deverias ter planejado uma forma de não nos submeter à
morte. Oh, grande Nzambi, estamos afligidos por grande
tristeza.
Esta oração é uma repreensão velada a Nzambi por ter submetido
as pessoas à morte. No entanto, não é motivo para duvidar de sua
bondade ou da bondade da ordem na criação. Essa bondade já é
reconhecida no início da oração. A tristeza que a morte traz é o que
motiva a oração-lamento. O desejo que Deus tivesse planejado
melhor as coisas para que os seres humanos não fossem sujeitos à
morte é um desejo universal que expressamos diante do sofrimento
e da tragédia. 15 A verbalização deste desejo é um tipo de
desespero diante do mistério do mal e do sofrimento, especialmente
num momento de tragédia. Mas, o fato que se pode orar numa hora
dessas é uma afirmação de fé em Deus, mesmo se o mistério do
mal permanece sem solução. Orar nessa hora é um alívio ao
coração pesaroso e triste. A linguagem forte e a ira manifestas na
oração são parte do processo de enfrentar a realidade do sofrimento
e do luto. Isto não deveria ser condenado, mas sim expresso e
tratado pela passagem do tempo, para que resulte em alívio e
restauração para os enlutados.
As orações-lamentos ou cantos associados ao sofrimento e à morte
incluem a aceitação de que a morte atinge a todos, mas que ela não
deveria chegar cedo demais. No canto-lamento a seguir vemos este
pensamento expresso com a ideia de que a morte não é o fim da
vida, mas o começo de outra vida.
Queria que não fosse hoje!
Deus, você chegou cedo demais!
Dê-lhe água, ele saiu sem comer;
Acenda um fogo, ele não deve partir com frio;
Prepare, fulano (o nome da pessoa morta), um lugar para
nós,
Logo estaremos te alcançando,
Vamos nos encontrar. 16
A dor da tristeza de se perder um ente querido provoca em nós o
sentimento universal de que a morte deveria esperar um pouco.
Gostaríamos que ela não viesse durante certas etapas da vida,
especialmente se a pessoa que morreu não conseguiu completar o
15
Esta é minha paráfrase dos comentários de Mbiti sobre a oração acima (ver 1975,91).
16
Este canto, bem como os outros cantos e orações citados estão registrados em Mbiti
(1975, 88-100).
ciclo vital, que inclui se casar e ter filhos, ou não viveu nem o
suficiente para chegar a apreciar sua “comida”. Esta é a razão
porque se diz a Deus que a pessoa “saiu sem comer”. Ela não
viveu o suficiente para apreciar a sua vida; morreu jovem. Mas
esta é a natureza da morte, ela vem quando menos se espera, como
um ladrão no meio da noite. Como os Akan dizem, “Todos estão
em dívida com a morte”, e “Estar nas mãos da morte é realmente
estar nas mãos de alguém”, porque é apenas uma questão de tempo
para que “todo homem morra e apodreça”. (Nketia 1954, 128).
Neste canto-oração, fala-se tanto com Deus quanto com a pessoa
que morreu. Diz-se a Deus para que dê um pouco de água e
comida à pessoa que morreu. O que fica implícito é a crença numa
terra além da morte, onde se come e se bebe. Portanto, a pessoa
morta não é considerada realmente morta, mas como se tivesse
partido para essa terra. Esta é a razão porque se pede a Deus para
preparar um lugar para os que ainda estão vivos no lugar para onde
essa pessoa vai. A esperança de se reunir logo com os que partiram
é expressa nas palavras “Logo estaremos te alcançando, vamos nos
encontrar.”
O conceito de morte como uma jornada para outro mundo também
pode ser expresso em elegias funerais. Nessas elegias, diz-se aos
que partiram para que não revelem segredos deste mundo para as
pessoas do outro mundo:
Não diga nada,
Yaa Nyaako (nome do que partiu), não diga nada.
Se fizer, seu discurso será longo.
Quando chegar, não conte histórias.
Yaa Nyaako, não conte histórias.
Se fizer, suas histórias serão longas (Nketia 1954, 122)
O fato de que a morte não é o fim da vida aparece novamente.
Também fica implícito na lamentação que a vida neste mundo é
parecida com a vida no outro mundo. Lá, pessoas podem
conversar, e até contar segredos como fazem aqui. Esta crença não
minimiza a dor, o sofrimento, e a tristeza sentidos na hora da morte
nem explica o mistério da morte. O senso de incerteza e
desorientação com relação ao porquê a morte chegou ainda paira no
ar. É uma causa de questionamento ou até de raiva, como expresso
em outra lamentação:
Quando o Criador criou as coisas,
Quando o Eclético Criador criou as coisas,
Como ele criou?
Ele criou o luto,
Ele criou a tristeza,
A tristeza do luto,
Ai de mim! Cálices!
Ai de mim! Cálices!
Anno Ofori (nome do morto) que significa a morte para
outros,
Eu poderia me matar por causa desse acontecimento
(Nketia 1954, 199-31)
A realidade do sofrimento e do mal como manifesta na morte nos
escapa como sempre. É um mistério, que se enfrenta, não se
explica, nas religiões tradicionais africanas. Isto se mostra nos
cantos, orações-lamentos, e lametações na hora da morte. Elas são
expressões de fé e de raiva de um Deus cuja presença e ausência
são experimentadas diante da realidade do sofrimento.
AS VISÕES AFRICANA E OCIDENTAL: UMA
COMPARAÇÃO E AVALIAÇÃO
Nas religiões africanas tradicionais, tanto o bem quanto o mal são
aceitos como parte da vida. A vida para um africano, portanto, é
uma realidade holística. Na visão africana, ao contrário do que
acontece na visão ocidental, a dicotomia entre o sagrado e o
secular, entre o espiritual e o material quase não existe. Como
Bennie Van der Walt acertadamente observou, o pensamento
africano tem um objetivo holístico, um conhecimento integral da
totalidade (Van der Walt 1997. 89). Esta totalidade da visão de
mundo tradicional é caracterizada pela multiplicidade de seres
espirituais, a conexão e a interação entre esses seres, uma ausência
quase total de dicotomia entre o sagrado e o secular, a interpretação
religiosa de todas as experiências da vida, a batalha cósmica e a
centralidade da pessoa humana na comunidade dos mortos e dos
vivos (Adeyemo 1998, 373). A visão africana aceita conviver com
os paradoxos da vida como o bem e o mal, ao invés de se preocupar
com a busca de uma solução. O sofrimento e o mal não são vistos
como algo a se explicar ou interpretar, mas como realidades a se
enfrentar como parte de uma existência trágica. Não é o mesmo
que acontece na visão ocidental, que sujeita a realidade a uma
análise detalhada e a uma explicação científica.
Mas não há falta de explicação na visão tradicional africana.
Porque embora o mundo tradicional africano não seja mecanicista
como o do Ocidente, ele procura dar explicações cósmicas e
religiosas aos eventos e calamidades que o acometem e perturbam
.17 Desastres naturais como secas, fomes, epidemias, doenças e
17
Kwasi Wiredu observou acertadamente que o princípio de explicação racional ou de
evidência não está completamente ausente do pensamento do africano tradicional.
Porque nenhuma sociedade sobreviveria por muito tempo sem basear grande parte de
outros males sociais e morais não acontecem por acaso, são
causados. Causas possíveis dessas calamidades podem ser um
feiticeiro, o mau olhado, a boca má, ou até espíritos ancestrais
vingativos que estejam punindo uma comunidade ou um indivíduo
por negligenciar algum dever ou alguma honra que lhes é devida,
ou o julgamento de Deus por algum mal escondido. Para evitar
esses males cósmicos e sociais, atividades religiosas como a
oração, o sacrifício, a invocação e o exorcismo são realizadas,
mesmo que seja apenas para manter o equilíbrio da comunidade
constantemente ameaçada por calamidades naturais e sociais.
Assim a religião para um africano, como Adeyemo observa, não é
apenas um departamento da vida; ela sustenta e permeia toda a vida
(Adeyemo 1998, 374). A religião é o meio através do qual o
africano interpreta sua realidade. A sociedade africana é tão
impregnada com a religião e a ética que é difícil que exista sem
elas (Parrinder 1976, 146).
Assim, a visão africana do sofrimento e do mal é holística e não
dualista, como na visão ocidental. Ela aceita o sofrimento e o mal
como realidades da vida que devem ser enfrentadas, confrontadas,
e vencidas. Ela não vê o mal e o sofrimento como questões a se
explicar, nem os aceita fatalisticamente. O sofrimento é parte
integral da vida que temos neste mundo. Porque a vida é uma
unidade integral no pensamento africano tradicional, a distinção
entre a ortodoxia e a ortopraxia da teologia da Libertação, a
dialética da cruz e da ressurreição (Jürgen Moltmann), e outras
modificações do pensamento dualista ocidental não fazem sentido.
A cruz e a ressurreição não formam uma dialética, mas duas
dimensões de um só evento. A ortodoxia e a ortopraxia são
impossíveis de se separar, porque uma não pode existir sem a outra
já que a crença e a prática são dois lados de uma mesma moeda.
Estranhamente, no entanto, a explicação de Karl Barth do mal
como sendo a sombra da criação e sua afirmação de que a criação
consiste tanto de Sim quanto de Não se encaixa bem na visão
tradicional africana. 18 Como Barth argumenta, a criação consiste
de luz e sombra, crescimento e deterioração, progresso e
suas atividades cotidianas em crenças derivadas da evidência. Ver seu Philosophy and
an African Culture (1980, 43).
18
A interpretação de Barth do mal como o lado escuro da criação tem muitas dificuldades.
Se examinarmos de perto, pode ser entendida como se a criação antes da Queda fosse
imperfeita. Embora Barth não negue a Queda, como faz Hick, sua discussão do mal
como a sombra da criação é problemática e continua sendo o aspecto mais difícil de sua
teologia (Ver seu Church Dogmatics 3-3 (1932-1967, 296s), cf Hick (1987, 141) e Dau
(2000, 126-9).
impedimento, começo e fim, sucesso e fracasso, ganho e perda, riso
e lágrimas. Há um lado escuro quanto um lado brilhante da vida
(Church Dogmatics 3:3 1976, 296). Kwasi Wiredu argumentou
eloquentemente a partir do ditado Akan, “o falcão diz que tudo que
Deus criou é bom,” que de certa forma o mal está envolvido no
bem (Wiredu 1998, 198). Wiredu diz que o sentimento é de que o
mal, embora seja mal, está inevitavelmente envolvido no bem, e
isto é ultimamente o melhor. Isto seria aprovado por Leibniz
porque concordaria com sua máxima do “melhor de todos os
mundos possíveis”. 19 De acordo com os Akan “se algo não der
errado, não dará certo”, um ditado que ressalta o fato que não se
pode falar sobre o bem sem a possibilidade de contrastá-lo com o
mal (Wiredu 1998, 198). Assim, Wiredu parece implicar que
Leibniz encontraria um lugar para sua filosofia no pensamento
tradicional africano. No entanto, isto é assunto para debate.
A visão tradicional africana também concordaria com G.C.
Berkouwer e seu argumento que não é próprio que as criaturas
tentem justificar os caminhos de Deus diante dos homens quando o
oposto deveria ser o caso (Berkouwer 1983, 242). Igualmente, a
visão africana, como “Believing Theodicy” de Berkouwer, se
recusaria a descartar Deus por causa do problema do mal e o
sofrimento, como aconteceu no pensamento ocidental na forma do
ateísmo, mas ainda manteria um protesto diante do sofrimento
como meio de diálogo com Deus. Seria de se duvidar, que se
dissesse que os cantos, orações, lamentos e lamentações funerais
das religiões tradicionais africanas que examinamos sejam o
mesmo que a doxologia da igreja diante do mal, o que Berkouwer
discute.
No entanto, há semelhanças impressionantes entre a visão africana
e a visão bíblica. Ambas veem a realidade como uma totalidade,
como um todo integral. Ambas presumem, não explicam o mal e o
sofrimento. Ambas mantêm a linguagem de protesto contra o
sofrimento e o mal expressa em cantos, lamentos, orações, e elegias
como podemos ver nos Salmos e nos Profetas (ver Sl 10.13, 17-18;
22.1, 11; 13.1 e Hc 1.2-4, 12-17). Em termos bastante gerais,
parece que o modo de pensar africano é mais próximo do modo de
pensar Hebraico holístico e concreto como aparece no Velho
19
Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) foi um gênio multifacetado, com interesses em
ciência, matemática, política, direito, economia, teologia, e filosofia. Ele argumentou
que, ao criar o mundo, Deus escolheu entre dois sistemas possíveis o melhor mundo
possível porque ele é um Deus sábio. “Nosso mundo”, concluíu, “é o melhor mundo
possível, apesar da presença do mal nele.” (Ver seu Theodicy, publicado pela primeira
vez em 1710, 123-35).
Testamento do que o modo de pensar greco-romano dos ocidentais.
Talvez por isso muitos africanos parecem se identificar mais com a
literatura do Velho Testamento do que a do Novo Testamento (Van
der Walt 1997, 89). Embora a linguagem de protesto seja às vezes
muito forte nas orações, cantos e lamentações funerais, bem como
nos Salmos e nos Profetas, não é a mesma coisa que um protesto
ateu, originado pelo problema do mal no pensamento ocidental.
Tendo dito isso, temos que admitir que ainda existe na visão
africana um elemento de obscuridade sobre a origem do mal e do
sofrimento em relação a Deus. Por um lado, a visão tradicional
geralmente exonera Deus da culpa pela existência do mal no
mundo, que é colocada diretamente sobre os ombros da
humanidade. Mas, por outro lado, ela culpa Deus ultimamente
como aquele que é onipotente e poderia deter o mal, se desejasse,
como aparece nas religiões Nuer e Dinka. A visão africana no
contexto da reflexão cosmológica defende uma doutrina de
onipotência não qualificada de Deus com relação a questões de ter
ou não influência direta sobre o destino da humanidade sobre a
terra. Mas, também defende a diminuição da onipotência de Deus,
uma redução da onipotência de Deus até o nível de uma potestade
humana (Wiredu 1998, 199). A visão tradicional africana do
sofrimento e do mal tem os mesmos problemas que a visão
ocidental: não chega às profundidades do mistério do mal e do
sofrimento. Mas diferente da visão ocidental, o tradicionalismo
africano aceita este mistério como uma face da realidade ao invés
de explicá-lo.
IMPLICAÇÕES TEOLÓGICAS E CONCLUSÕES
A diversidade de interpretações gerada pelo problema do mal e o
sofrimento em várias culturas pressupõe sua insolubilidade. Nem a
visão africana, nem a ocidental oferece uma resposta a este
problema perene. Com certeza, não há sistema humano que resolva
adequadamente o problema do mal e o sofrimento, se “resolver”
significar a eliminação do problema para que não soframos nem
morramos mais neste mundo. Tanto a visão africana quanto a
ocidental ou defende uma doutrina não qualificada da onipotência
de Deus ou uma redução desta onipotência. A visão ocidental é
basicamente dualista e a visão africana é essencialmente holística.
De ambas podemos concluir o seguinte: ambas discutem o
problema do mal e o sofrimento em relação a um Deus supremo, o
Criador. Ambas lutam com a realidade e o fato do mal como um
problema existencial. Nenhuma trata adequadamente do problema
do mal e do sofrimen-to como um problema que revela o potencial
humano de infligir o mal. Em algumas religiões africanas, os seres
humanos não são inerentemente bons ou pecadores, mas são
considerados maus apenas quando e se suas ações atrapalham a
harmonia e a tranquilidade da comunidade. Semelhantemente, uma
parte da filosofia ocidental relativiza o pecado humano, declarando
que o que se chama de “pecado” poderia ser diferente em
disposição e inclinação, o que varia de cultura para cultura e de
pessoa para pessoa. Finalmente, ambas buscam em recursos
humanos e comunitários as respostas ao problema do mal e do
sofrimento. Seja na forma de oração, protesto, ou lamentações
funerais, essa resposta abrange uma luta com o mistério do mal,
real, mas inexplicável.
Da perspectiva bíblica, tanto a visão africana quanto a ocidental
ficam aquém de admitir que o sofrimento e o mal sejam indicações
de algo terrivelmente errado em nossa natureza como seres
humanos. A Bíblia chama isto de pecado, uma força capaz de nos
alienar de Deus e uns dos outros, e assim perder o objetivo da vida
para o qual fomos criados. Esta é a força que nos move a fazer o
mal e a infligir sofrimento uns aos outros. Assim, nós como seres
humanos precisamos ser libertados não somente do mal que possa
nos acontecer, mas também do mal que temos o potencial de fazer
acontecer ao nosso próximo. Do ponto de vista bíblico a resposta a
esse problema é a redenção dada em Jesus Cristo. Neste sentido, “a
solução última ao problema do mal deve estar no fato que o Deus
que criou o mundo é o mesmo Deus que o redimiu; o Criador é ele
mesmo, em Cristo, quem leva o pecado e o sofrimento de toda a
criação, sendo aquele que traz a redenção que há de vir. Mas,
somente o cristão pode saber que Cristo explicou o sofrimento no
ato de derrotá-lo” (Richardson 1983, 196).
Consequentemente, a redenção através de uma teofania sofredora é
a única resposta verdadeiramente cristã ao problema do mal (Surin
1982, 114). A encarnação como resposta cristã ainda não explica
o mal e o sofrimento, mas cria um arcabouço viável no qual o
crente pode responder ao problema do mal e o sofrimeto e assim
transcendê-lo e transformá-lo. A vinda de Deus à humanidade em
Jesus Cristo e sua identificação conosco em toda forma de
sofrimento é a base da nossa resposta positiva ao mal e ao
sofrimento. Assim, a teologia da cruz, que também é a teologia do
sofrimento, é a base para a transformação e transcendência do
problema do sofrimento e o mal sem ser destruído por ele. A cruz
faz isto, transmitindo-nos o seguinte:
Em primeiro lugar, a cruz fala da presença de Deus e sua
participacão em todo nosso sofrimento humano. Martin Luther
King, Jr. notou que Deus não nos abandona em nossas batalhas e
agonias, mas nos procura na escuridão, e sofre conosco em nossas
tragédias (King 1963, 16). Dito de outra forma, Deus não observa
nosso sofrimento de uma distância segura, mas desce até nós e
participa conosco. Consequentemente, a cruz é a demonstração
suprema da solidariedade de Deus conosco neste mundo de
sofrimento. Na cruz, vemos Deus permitindo que Jesus sofresse
como nós, não porque fosse obrigado a isso, mas porque
voluntariamente escolheu fazê-lo, por causa de seu amor redentor
por nós. Assim, a cruz de Cristo sempre será uma lembrança
poderosa de que Deus estava preparado a sofrer para redimir o
mundo e que ele espera que seu povo tenha o mesmo compromisso
em sua participação na tarefa de restaurar o mundo à sua glória
anterior (McGrath 1995, 15, 26). Assim, o problema do sofrimento
e do mal está profundamente enraizado no mistério divino da cruz,
mas ao mesmo tempo, é profundamente humano. A essência deste
mistério é que a redenção do mundo por Deus, que assumiu o
sofrimento na forma de cruz, para permitir à humanidade que
reconhecesse a Deus e reconhecesse a si mesma num
relacionamento vital caracterizado pelo amor.
Em segundo lugar, a cruz conduz nosso olhar, partindo da
contemplação de nossa própria angústia e sofrimento para ver o
Deus sofredor e transformador que compartilha de nosso
sofrimento (Inbody 1997, 180). Quando olhamos para a cruz,
percebemos que Deus sofreu de uma forma que nenhum de nós
sofreu ou jamais sofrerá. Na cruz, Deus nos deu tudo de si,
entregou tudo para que possamos viver. Fazendo isso, ele
demonstrou o seu imenso amor por nós. Assim, a morte de Jesus
Cristo na cruz nos coloca face a face com a maravilha do amor
sacrificial de Deus, de tal forma que somos fortalecidos para lidar
com nosso próprio sofrimento com coragem e determinação. Ao
olharmos para a cruz, encontramos uma força e uma coragem
incríveis para enfrentar o medo e o terror do sofrimento. O
sofrimento possui o que Alister McGrath chamou de “dois gumes:
a dor aguda de experimentá-lo e a intensidade insuportável do que
ele significa ou implica” (McGrath 1995, 68). Por isso a
possibilidade de passar pelo sofrimento nos aterroriza e intimida a
todos. Mas a cruz nos lembra que seu poder foi vencido e seu
aguilhão se tornou cego. Embora a presença e o fato do mal e do
sofrimento sejam ainda realidades pertinentes desta vida, a cruz
aponta para sua derrota final e sua eliminação no futuro quando
Deus trouxer à existência a nova ordem das coisas em que não
haverá mais sofrimento, lágrimas e a morte.
Em terceiro lugar, a cruz nos encoraja a responder ao sofrimento de
outras pessoas assim como Deus respondeu ao nosso sofrimento.
Na cruz, recebemos o estímulo para aliviar e curar o sofrimento dos
outros. Porque o sofrimento de qualquer ser humano entristece o
coração de Deus, aqueles que já provaram o consolo da cruz
precisam estender aos que sofrem o amor e a compaixão de Cristo.
Acudir as necessidades daqueles que sofrem demonstra a
mensagem da cruz. Quando suprimos as necessicades espirituais,
emocionais e materiais daqueles que estão sofrendo de alguma
maneira, nós lhes asseguramos que Deus não os abandonou em sua
dor e miséria. Quando nós como comunidade da fé transmitimos
desta forma a mensagem da cruz na prática do amor e da
compaixão, nós damos forças aos que sofrem para que transcendam
e transformem sua dor e sofrimento.
Finalmente, a cruz lembra a todo o que crê que seguir a Jesus
envolve sofrimento. Existe algo que se denomina “comunhão dos
seus sofrimentos” para os discípulos de Jesus. Eles não são
chamados apenas a crer em Cristo, mas também a sofrer por ele.
Neste sentido, tanto a alegria quanto o sofrimento são partes
integrantes da experiência cristã, da mesma forma que o verão e o
inverno são estações do ano (Smith 1971, 92). As Escrituras
deixam claro que o cristão não é dispensado do sofrimento só por
ser um seguidor de Cristo. Há, portanto, uma forte indicação nas
Escrituras de que a coroa que temos precede a cruz que carregamos
e que ser cristão envolve tomar a sua cruz, com todo o sofrimento e
as dificuldades que a acompanham, e carregá-la até que ela deixe
em nós as suas marcas. Suportar a cruz para este fim redime a
pessoa para um caminho mais excelente, que vem somente através
do sofrimento (King 1963, 25). Assim, os sofrimentos e as glórias
e bençãos da cruz são inseparáveis.
No arcabouço da encarnação, nós não somente encontramos vitória
e consolo no exemplo eminente da cruz, mas também no amor e no
apoio valoroso da comunidade de fé. A comunidade nos dá a
capacidade de transformar e transcender o sofrimento. Em termos
históricos, como observou corretamente Stanley Hauerwas, os
cristãos nem sempre tiveram uma “solução” para o problema do
mal, mas tinham uma comunidade de cuidado que tornava possível
que absorvessem o terror do mal que ameaça todas as relações
humanas (Hauerwas 1990, 53). No cuidado de nossa comunidade
descobri-mos, na hora do sofrimento, o que significa ter nossos
fardos carregados.
Além disso, o sofrimento no arcabouço da encarnação tem a
capacidade de moldar nosso caráter. O sofrimento produz
perseverança e a perseverança produz caráter. Esta formação de
um caráter cristão resiliente, através daquilo que sofremos, nos dá
forças para suportar e estar firmes no meio das provações e testes.
O cristão é inspirado pela viva esperança de que o sofrimento e o
mal serão ultimamente derrotados quando a redenção que já
recebemos em Cristo for plenamente consumada. Esta esperança é
mais forte do que a morte e é absolutamente imbatível diante do
mal e do sofrimento. Ela participa do presente e antecipa o futuro.
Desta forma, com a certeza da presença de Deus e de seu
sofrimento conosco, como demonstrado na cruz, assim como
efetuado no amor e cuidado da comunidade de cristãos, com o foco
no objetivo de moldar um caráter resiliente e tendo em vista uma
esperança de que tudo que nos causa sofrimento será ultimamente
destruído, recebemos o poder de transcender e transformar o
sofrimento e o mal no maior bem possível nesta vida. Embora a
encarnação, tendo suprido tudo isto, possa não ser descrita
necessariamente como teodiceia, ainda é o único sistema que
garante à humanidade a vitória do bem sobre o mal, da vida sobre a
morte. Tendo isso em mente, no entanto, ainda reconhecemos com
Kenneth Surin que o mal é um mistério profundo. Como Deus lida
com o mal e o vence também é um mistério. Devemos refletir
sobre o sofrimento no contexto do amor infinito de Deus, porque é
nele que encontramos a certeza da vitória. Mas não podemos usar
isso como pretexto para a indiferença diante do sofrimento, nem
como um consolo fácil para as vítimas do sofrimento e da tragédia
(Surin 1982, 115).
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. Dau declara que “a visão africana da realidade é holística,
raramente distinguindo o sagrado do secular ou o espiritual
do material. Nesta visão de mundo, a realidade é um todo
coerente...” Como esta visão de mundo os ajuda a enfrentar
o sofrimento?
2. De acordo com a visão de mundo africana, é sempre
importante descobrir quem ou o que causou o mal e o
sofrimento. Nada, na sociedade africana, simplesmente
acontece sem ser causado por alguém ou algo. Como
podemos buscar entender esta visão de mundo e, ao mesmo
tempo, ajudá-los a superar este padrão de pensamento?
3. A resposta africana ao sofrimento e ao mal é semelhante à
do Antigo Testamento, de acordo com Dau. Como
podemos voltar a uma resposta bíblica ao sofrimento?
Como podemos permanecer abertos para aprender de
pessoas tão carentes?
REFERÊNCIAS
O evangelho da prosperidade
Uma heresia com raízes no norte se espalha, com reflexos sobre a pobreza e o
sofrimento na África
Grant LeMarquand
“Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.” (Jo 10.10)
“Não escolheu Deus os que para o mundo são pobres, para serem
ricos em fé e herdeiros do reino que ele prometeu aos que o
amam? Entretanto, vós outros menosprezastes o pobre. Não são os
ricos que vos oprimem e não são eles que vos arrastam para
tribunais?” (Tg 2.5-6)
Qualquer análise sobre o “evangelho da prosperidade” precisa considerar a
tensão entre essas duas passagens bíblicas. De um lado está o fato de que as
promessas feitas por Deus ao seu povo podem ser encontradas em toda a Bíblia, e
essas promessas incluem mais do que a vida eterna. Nas palavras de Jesus, o povo
de Deus é chamado para viver uma vida abundante. Essa vida abundante inclui
inumeráveis bênçãos: a alegria do casamento e a constituição de uma família, saúde
e longevidade, boa alimentação, paz, segurança, prosperidade, os prazeres do
mundo criado e aqueles advindos das artes e da música produzidos pelo homem.
Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, essas bênçãos são tidas como boas e
legítimas, coisas que se espera que todos, especialmente o povo de Deus, possam
usufruir. As bênçãos não são deificadas na Bíblia – a idolatria é um perigo a se evitar
– mas são consideradas como dádivas de um Pai amoroso.
Por outro lado, vivemos em um mundo desfigurado pela impiedade, e o
povo de Deus não está isento da maldade do nosso tempo. Na verdade, em certos
lugares e épocas, o povo de Deus se torna o maior alvo dessa batalha com as forças
do pecado e da morte. Se, como disse Tiago, “os pobres desse mundo são os ricos
em fé”, parece que também é verdade que aqueles que são ricos na fé
frequentemente são pobres. Por certo isso é verdadeiro no século XXI, no qual a
maioria dos cristãos são oriundos das regiões do mundo menos desenvolvidas
economicamente, enquanto as regiões ricas são mais resistentes à mensagem do
evangelho.
O presente ensaio fará uma breve análise da maneira pela qual o
movimento conhecido como o “evangelho da prosperidade” tem afetado as regiões
do mundo que mais precisam de “saúde e riqueza”, bem como de alguns dos
problemas gerados por esse movimento. Vamos centrar nossa atenção na África,
porque o evangelho da prosperidade tem crescido ali e porque o autor conhece bem
esse continente.
O pentecostalismo na África
O pentecostalismo na África pode ser classificado em três diferentes
grupos. Neste ensaio, não faremos distinção entre o pentecostalismo e o movimento
carismático (HOLLENWEGER, 1972; HOLLENWEGER, 1997; COX, 1995; KALU,
2008). Claramente, ambos pertencem ao mesmo movimento, embora haja
manifestações distintas em suas teologias e formação social. Primeiro, existe o que
podemos chamar de pentecostalismo clássico. São igrejas originadas através do
trabalho de missionários ocidentais, advindas do movimento holiness e do evento
explosivo conhecido como “Avivamento da Rua Azuza”.
Em segundo lugar, os avivamentos que aconteceram na África no século
XX deram origem a movimentos que se ajustavam às igrejas fundadas por
missionários1. Essas igrejas instituídas por africanos têm uma base étnica e são
mais abertas à cultura africana do que as igrejas estabelecida por esforços
missionários. Elas são geralmente carismáticas e adotam profecias, sonhos, visões,
libertação de espíritos malignos e oração por cura em sua adoração e prática
(BARRET, 1968; DANEEL, 1987).
A terceira forma é chamada de vários nomes. Em geral, tais igrejas se
denominam igrejas da “Palavra”, igrejas da “Fé”, ou igrejas “Palavra da Fé”. Elas são
consideradas como igrejas que pregam saúde e riqueza, ou doutrinas de fé e
prosperidade. O movimento “palavra da fé” tem elementos comuns a outras formas
de pentecostalismo (oração por cura, uso dos dons do Espírito), mas não devemos
confundi-los (BARRON, 1987; HANNEGRAAF, 1993; SHORTER; NJIRI, 2001;
GIFFORD, 2004).
Todos esses movimentos podem ser vistos como respostas à mudança
social na África. A conversão original de africanos ao pentecostalismo clássico (e a
outras igrejas fundadas por movimentos missionários) significava a conversão da
religião local para uma religião que tinha um alcance universal. O mundo se tornou
maior que a tribo – era preciso que houvesse uma religião que representasse esse
mundo mais abrangente (HORTON, 1972). No entanto, as igrejas fundadas pelos
missionários, embora prometessem uma visão de mundo mais global, geralmente
transmitiam uma visão de mundo Ocidental. Para os africanos, tornar-se cristão era
tornar-se estrangeiro. As igrejas instituídas por africanos foram uma resposta à
necessidade de se sentirem em casa, a fim de que o evangelho tivesse expressões
mais contextualizadas.
As igrejas da prosperidade também são uma resposta a novas realidades: a
urbanização e a globalização. As cidades africanas têm experimentado uma
explosão populacional. A urbanização tem criado uma nova cultura: a forma de se
1
O Avivamento da África Oriental que começou em Uganda e Ruanda em 1930 se
restringiu às igrejas protestantes, mas perdeu algumas práticas carismáticas do início do
movimento. Algumas das principais igrejas na África também abraçaram o movimento
carismático.
vestir e meios de transporte ocidentais, a televisão, internet e telefones celulares
fazem parte do cenário das cidades africanas. A necessidade de se sentir em casa
na sua própria cultura tem sido ofuscada pelo desejo de participar da cultura
globalizada. As igrejas autóctones africanas adoravam na língua do seu grupo tribal.
As igrejas da prosperidade africanas usam todos os artifícios da sociedade moderna,
incluindo intrumentos musicais eletrônicos, cenários requintados – e a língua inglesa.
Os pregadores da prosperidade que pregam nas ruas não apenas falam inglês,
como têm um sotaque americano, imitam os pregadores norte-americanos, que
podem ser vistos 24 horas por dia em algumas cidades africanas através do canal
Trinity Broadcast Network, produzido por americanos.
O movimento “Palavra da Fé”
Embora o movimento “Palavra da Fé” esteja geralmente associado a
organizações e personalidades religiosas americanas, ele é na verdade um
movimento mundial. O pentecostalismo africano tem se espelhado na prática dos
americanos, mas também em líderes como o pastor coreano Yonggi Cho (YOO,
1988), assim como tem influenciado outras partes do mundo (WAGNER;
THOMPSON, 2004). O fluxo não segue apenas da América para o mundo. Por outro
lado, as raízes americanas da teologia da prosperidade são fundamentais para a
compreensão do movimento.
A maioria das pessoas associa os ensinos mais recentes da teologia da
prosperidade com o nome de Kenneth A. Hagin, o pregador texano que argumenta
que assim como Deus trouxe o mundo à existência através da sua palavra da
mesma forma os seres humanos têm o poder de trazer coisas à existência através
de sua palavra – os crentes podem falar uma “palavra da fé” e aquilo que eles falam
vai acontecer. Embora a cura e a prosperidade recebam muita atenção, é a ideia da
palavra da fé, também conhecida como “confissão positiva”, que está por trás das
manifestações visíveis de saúde e riqueza.
[QUADRO]
Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente
não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós. (Rm 8.18)
Hagin foi influenciado por E. W. Kenyon, um professor de teologia da Nova
Inglaterra que ensinava que o pacto de Abraão com Deus assegura bênçãos
materiais para os que têm fé. Outros veem semelhança entre o movimento “Palavra
da Fé”, ciência cristã e o “poder do pensamento positivo” de Norman Vincent Peale.
Entretanto, na base de todos eles está o desejo da cultura americana por uma
religião funcional, utilitária, que possa ajudar os crentes em sua vida cotidiana. Entre
os mais recentes pregadores da prosperidade encontram-se o filho de Hagin,
Kenneth W. Hagin, Gloria e Kenneth Copeland, Oral Roberts, Joel Osteen, Benny
Hinn, Creflo Dollar e muitos outros.
Os que combatem suas teorias argumentam que Jesus não foi rico e que
ele falava contra aqueles que confiavam em suas riquezas e que ele afirmou que os
pobres são bem-aventurados. Os discípulos de Jesus não se tornaram prósperos.
Pelo contrário, eles foram martirizados. Os críticos argumentam ainda que nem
sempre a pobreza e a doença são resultado de falta de fé, visto que há pecadores
ricos e cheios de saúde, assim como santos empobrecidos e enfermos. Aguns
críticos enfatizam os erros doutrinários de certos pregadores da prosperidade, como
a afirmação de que os crentes são “pequenos deuses”, uma ideia que parece ser
cristologicamente herética.
O evangelho da prosperidade na África
Na África, o movimento do evangelho da prosperidade tem se estabelecido
nas áreas urbanas. As cidades africanas não oferecem segurança. Embora muitos
se mudem para as cidades em busca de educação e emprego, muitos ali moram em
enormes favelas, têm dificuldade de acesso a serviços de saúde, vivem com medo
da criminalidade e estão frequentemente longe do apoio familiar e das tradições. O
sucesso e a segurança são uma ilusão. Os sonhos que são em geral negados pelas
cidades são prometidos pelos pregadores da prosperidade para aqueles que têm fé
suficiente.
A pregação da prosperidade não tem prevalecido nas regiões mais pobres
da África. Embora as cruzadas de Reinhart Boonke, o evangelista alemão
influenciado pela teologia da prosperidade, tenham tido algum impacto no Sudão,
aparentemente tais resultados não foram duradouros. As igrejas pentecostais são
ativas no Sudão do Sul, mas elas são mais conservadoras. As que pregam a
prosperidade crescem na África em lugares onde não há segurança, mas onde
existe a possibilidade de enriquecimento – nos centros urbanos de países mais
abastados, como Gana, Nigéria e Quênia.
Certo bispo africano relatou o caso de sua filha, uma estudante
universitária. Ela havia recebido o dinheiro referente ao pagamento das taxas da
faculdade, mas, pouco depois, ela pediu mais dinheiro para o mesmo fim. Ele
perguntou-lhe o que tinha acontecido com o dinheiro e ela respondeu que havia
“plantado a semente” – dado seu dinheiro de oferta para a igreja na esperança de
que aquele valor voltaria para ela multiplicado. Outro amigo africano me falou de
uma mulher que havia se sentido movida a doar o carro que havia acabado de
ganhar do marido para o pastor da sua igreja, onde se pregava a prosperidade, na
esperança de obter um retorno finaceirto maior. Muitos cristãos africanos têm
histórias semelhantes a essas. Mas esses relatos não foram verificados.
Um estudo sobre o evangelho da prosperidade nas igrejas nigerianas
realizado por Adekunle Dada, embora reconhecidamente menos abrangente do que
o necessário para oferecer resultados científicos, aponta na mesma direção do que
me contaram. Dada entrevistou crentes de dez diferentes igrejas da teologia da
prosperidade. Ao todo, foram 50 entrevistas, nas quais ele fazia três perguntas
(DADA, 2004, p. 101):
1. O que levou você a se unir a essa igreja?
2. Você está satisfeito com sua atual condição espiritual e física?
3. O evangelho da prosperidade impactou sua vida como você esperava?
O grupo de indivíduos era formado de pessoas que frequentavam igrejas da
prosperidade, não dos que haviam se decepcionado e ido para outro lugar. Embora
mais da metade tenha se tornado parte da igreja por causa da promessa de
“prosperidade e paz de espírito” (DADA, 2004, p. 101), e embora a grande maioria
se sentisse satisfeita com a experiência de estar na igreja, 75% admitiram não ter
visto qualquer progresso na sua vida financeira. O pesquisador explica que, na
verdade, um número mínimo de pessoas relatou melhoria nessa área (p. 102). Dada
concluiu que a maioria dos crentes estava satisfeita com sua igreja, embora as
promessas de prosperidade não tivessem se cumprido.
Dada lança a hipótese de que a discrepância entre promessa e seu
cumprimento deve levar a um certo nível de “dissonância cognitiva” entre os
membros da igreja. Os pregadores da prosperidade justificam essa discrepância
através de inúmeras racionalizações – pecado na vida de alguém e a incapacidade
de ofertar o suficiente para o ministério são as explicações mais relevantes. Em
outras palavras, “os membros são os culpados pela sua falta de prosperidade”
(DADA, 2004, p. 103). Essa tática pode retardar a decepção, mas a culpa e, por fim,
a rejeição obviamente se constituirão em um problema para o movimento da
prosperidade.
Até à presente hora, sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados,
e não temos morada certa, e nos afadigamos, trabalhando com as nossas
próprias mãos. Quando somos injuriados, bendizemos; quando perseguidos,
suportamos; quando caluniados, procuramos conciliação; até agora, temos
chegado a ser considerados lixo do mundo, escória de todos. (1 Co 4.11-13)
Outro problema são os casos cada vez mais frequentes de fraude e
ganância da parte dos pastores. O fato de que os pastores se tornam mais ricos, ao
passo de que o mesmo não acontece com suas ovelhas, só é aceitável enquanto as
pessoas acreditarem que o pastor é mais piedoso ou tem mais fé do que os
membros da congregação. Porém quando o pastor se envolve em algum escândalo,
ou quando se percebe que o líder está enriquecendo às custas da congregação, a
desilusão se generaliza. Para que os pregadores da prosperidade se tornem, nas
palavras de Dada, “sinceros campeões dos pobres”, eles devem ser vistos como
menos egoístas.
Fica claro que os ensinamentos da prosperidade têm boa aceitação dentro
da visão de mundo africana. Da mesma forma que alguns americanos aceitam o
evangelho da prosperidade porque ele tem relação com a prática da vida diária.
Portanto, a aceitação da mensagem da prosperidade demonstra que a África precisa
de um evangelho que faça mais do que salvar almas. Embora muitas pessoas no
Ocidente estejam satisfeitas com um evangelho que lida apenas com a consciência
– com pecado e perdão – a visão de mundo africana é mais holística. Uma
mensagem que não considere as necessidades da comunidade será considerada
inútil. As igrejas que oram pelo “pão de cada dia”, mas não têm resposta para a fome
humana, que oram “livrai-nos do mal”, mas não conseguem lidar com as
manifestações demoníacas serão consideradas fracas. Um evangelho que não
contempla a necessidade dos pobres é um evangelho incompleto.
É interessante perceber que este é um ponto de contato entre o evangelho
da prosperidade e as teologias da libertação. Ambos percebem que a pobreza não é
um tema insignificante na mensagem do evangelho. Se os evangélicos, com razão,
combatem algumas vertentes da teologia da libertação, eles também deveriam
oferecer uma visão bíblica que leve em conta o ser humano como um todo. Da
mesma maneira, se o evangelho da saúde e da riqueza é visto como deficiente, não
deve ser por considerarmos a pobreza como algo bom ou que as doenças são a
vontade de Deus. A mensagem bíblica mostra claramente que a doença, morte, dor,
pobreza e opressão são parte do mundo caído que Jesus veio redimir. Os
pregadores da prosperidade defendem uma escatologia realizada e não percebem
que os crentes devem fazer parte desse mundo caído juntamente com os não
crentes. No entanto, outros cristãos têm uma visão da realidade próxima do
gnosticismo e creêm que o mundo é mau em si mesmo e deve ser suportado até
que possamos escapar para o céu.
Resposta
Uma resposta africana para a pregação da prosperidade deve incluir o
reconhecimento de que há dimensões da cosmovisão africana que podem deixar os
crentes africanos vulneráveis às tentações desses pregadores. Assim como os
crentes americanos podem ser ludibriados por pregadores que prometem dinheiro e
cura que não podem oferecer, porque os americanos buscam uma fé funcional, que
seja prática, semelhantemente os cristãos africanos podem ser enredados pela
pregação da prosperidade por causa da grande necessidade de segurança na África
e porque a visão de mundo africana é – corretamente! – holística e inclui cada
dimensão da vida em seu escopo. Os cristãos africanos, portanto, precisam estar
atentos e examinar qualquer nova mensagem à luz de todo ensino das Escrituras.
Deve haver uma resposta do Ocidente ao evangelho da prosperidade como
pregado na América do Norte e na Europa – e especialmente na forma como ele é
exportado através de “cruzadas” e programas de televisão para o mundo não
ocidental. Parece claro que embora muitos tenham africanado o evangelho da saúde
e da riqueza, seu principal ponto de origem é os Estados Unidos. Como um produto
exportado dos EUA, ele encontrou um mercado ávido em outras terras, que têm
buscado se libertar não só da pobreza como também da doença, o que nem os
sistemas de saúde africanos tradicionais nem os modernos têm conseguido fazer. A
semente do evangelho da prosperidade caiu no solo fértil de países repletos de
pessoas que não têm o suficiente, que sabem que são pobres e desejam escapar do
ciclo de pobreza no qual frequentemente se encontram. Os pregadores americanos
desse falso evangelho precisam avaliar sua forma de abordar os não ocientais à luz
do ensinamento de Paulo em 1 Tessalonicenses 2.3-10:
Pois a nossa exortação não procede de engano, nem de impureza, nem se
baseia em dolo; pelo contrário, visto que fomos aprovados por Deus, a ponto
de nos confiar ele o evangelho, assim falamos, não para que agrademos a
homens, e sim a Deus, que prova o nosso coração. A verdade é que nunca
usamos de linguagem de bajulação, como sabeis, nem de intuitos
gananciosos. Deus disto é testemunha. Também jamais andamos buscando
glória de homens, nem de vós, nem de outros. Embora pudéssemos, como
enviados de Cristo, exigir de vós a nossa manutenção, todavia, nos tornamos
carinhosos entre vós, qual ama que acaricia os próprios filhos; assim,
querendo-vos muito, estávamos prontos a oferecer-vos não somente o
evangelho de Deus, mas, igualmente, a própria vida; por isso que vos
tornastes muito amados de nós. Porque, vos recordais, irmãos, do nosso
labor e fadiga; e de como, noite e dia labutando para não vivermos à custa de
nenhum de vós, vos proclamamos o evangelho de Deus. Vós e Deus sois
testemunhas do modo por que piedosa, justa e irrepreensivelmente
procedemos em relação a vós outros, que credes.
Diferentemente de outros pregadores itinerantes, o ministério de Paulo
entre os Tessalonicenses não impunha aos seus ouvintes um fardo finaceiro – ele
trabalhava com suas próprias mãos para sustentar seu ministério, o qual não se
baseava em motivações impuras, como a ganância. Ele não bajulava nem
enganava, mas como uma mãe cuidadosa, sempre desejava o melhor para os que
se tornavam seus filhos espirituais. Essa não é a atitude que frequentemente vemos
em pastores da prosperidade que prometem recompensas que não podem dar em
troca de ofertas que eles não merecem.
Qualquer resposta aos defensores do evangelho da prosperidade deve
reconhecer que Deus quer abençoar: devemos orar por cura e por comida para os
famintos e devemos crer que nossas orações serão atendidas. Mas também somos
chamados a minorar a pobreza e suas causas e a cuidar dos enfermos, trabalhando
para a erradicação das doenças. As igrejas devem se tornar comunidades para as
quais o mundo possa olhar e, ao invés de dizer “olhem como o pastor dessa igreja é
rico”, eles digam “olhem como eles se amam”.
Mais importante ainda: a igreja global deve reaprender que o verdadeiro
evangelho é o que coloca Deus no seu centro. Infelizmente, a exemplo de outros
movimentos heréticos, o falso evangelho da prosperidade é antropocêntrico: “tudo
está centrado no ser humano e nas atitudes dele ou dela, não em Deus e em sua
graça”. De igual modo, a mensagem da palavra da fé “é um escândalo”, visto que ela
está focada “em coisas materiais, mostrando Cristo como Mamom, o deus das
riquezas, e a igreja em opulência, em contraposição com os valores de humildade,
sacrifício e abnegação que caracterizam o reino de Deus” (SARACCO, 2007, p. 324,
326).
Perguntas para reflexão
1. De que maneiras o evangelho da prosperidade é uma heresia?
2. Como podemos alcançar os cristãos que estão sob a influência do
evangelho da prosperidade, reconhecendo os ensinos autênticos que
eles receberam, mas tentando levá-los ao equilíbrio?
3. Quais textos e temas bíblicos seriam importantes nessa tarefa?
Referências
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contemporary religious movements. Nairóbi: Oxford University Press, 1968.
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WAGNER, P.; THOMPSON, J. (ed.). Out of Africa: How the spiritual explosion
among Nigerians is impacting the world. Ventura: Regal, 2004.
YOO, B. W. Korean Pentecostalism. Nova York: Peter Lang, 1988.
Grant LeMarquand é canadense, foi professor de Estudos Bíblicos e Missão na
Trinity School for Ministry, um seminário evangélico anglicano em Ambridge,
Pensilvânia. Ele atualmente é bispo na diocese anglicana do Egito com o Norte da
África e o Chifre da África. É autor de An Issue of Relevance: A Comparative Study
of the Story of the Bleeding Woman in North Atlantic and African Contexts (Peter
Lang, 2004) e edições do Trinity Journal for Theology and Ministry.
Parte III
Reflexões da história e estudos de caso
Lições da igreja primitiva
Vamos agora estudar os nossos temas do ponto de vista da história. Vamos ler
a narrativa sobre Ásia Menor desde o primeiro século até os dias atuais e conhecer
histórias e estudos de caso de todo o mundo. Vamos viajar para o Oriente Médio, a
China, o Japão, a Rússia, o Sri Lanka e a Nigéria, para o Vietnã e o Irã. Vamos sofrer
com a tragédia de Ruanda e a cumplicidade da igreja durante o genocídio, mas nos
regozijar em nova esperança para os dias de hoje. Nós vamos escutar narrativas
pessoais de gerações sob perseguição e nos sentaremos com os pobres da Índia.
Minhas reflexões para esta parte do nosso livro são moldadas pelo impactante
livro de Gerald L. Sittser, Water from a deep well: Christian spirituality from early
martyrs to modern missionaries [Água de um poço profundo: Espiritualidade cristã
dos primeiros mártires até os missionários modernos]. Não posso recomendar este
livro o suficiente, dada a sua rica perspectiva histórica sobre a espiritualidade, com
implicações profundas para os crentes, a igreja e a missão.
Eu resumo dois temas que Sittser desenvolve em seus dois primeiros capítulos,
a espiritualidade dos primeiros mártires cristãos e da comunidade cristã primitiva.
“Perseguição, sofrimento e morte estão no centro da mensagem cristã” (p. 29). Ele
contrasta martírio cristão com os modernos atentados suicidas, diametralmente
opostos: “Os primeiros mártires cristãos foram vítimas de ódio... Eles absorveram a
violência, não a infligiram. Eles foram chamados ao martírio, eles não o impuseram a
pessoas inocentes, que é o que os homens-bomba fazem hoje” (p. 31).
E o que havia de especial nessas primeiras comunidades cristãs?
Eles mantiveram uma vida de santidade desde os primórdios: “A cosmovisão
cristã condenou o infanticídio, o aborto e o incesto e desaprovou a infidelidade
conjugal, o divórcio e a poligamia” (57). Eles resgataram bebês abandonados – na
maioria, meninas – encontrados nas vielas de Roma e lhes deram lares cristãos.
“Em segundo lugar, a comunidade cristã propiciava um elevado grau de
estabilidade social, o que chamou a atenção de pessoas que viviam em um mundo que
parecia oscilar à beira do caos” (p. 60-61). Isso foi particularmente verdadeiro para as
cidades, arruinadas pela violência. Os cristãos se tornaram “família” para estrangeiros
e forasteiros que se afluíam às cidades. Deles era a aquela comunidade radical e eles
eram todos “estrangeiros residentes”, cidadãos do reino de Deus.
“Em terceiro lugar, a igreja se importava com as pessoas durante períodos de
crises intensas” (p. 62). Eles modelaram uma vida de serviço sacrificial durante as
pragas (165 e 250 d.C.), servindo aos doentes, tantos cristãos quanto pagãos. Talvez
25% da população morreram em cada um desses flagelos. Um percentual significativo
de cristãos havia se recuperado da praga e tornou-se imune a ela. Foram considerados
curandeiros milagrosos e eles acreditavam em um sobrenatural Deus de milagres, de
quem testemunhavam.
“Finalmente, os líderes ajudaram a criar um senso de pertencimento ao
atuarem como pastores do rebanho, fornecendo cuidados pastorais do berço ao
túmulo”. Em um mundo sem nenhuma contrapartida secular ou religiosa à figura do
pastor, líderes cristãos “praticavam a ‘cura das almas’, para ajudar os crentes a
progredir na fé” (p. 65). Os cristãos amaram os indesejados e trataram escravos e
estrangeiros com bondade incomum. Eles cuidaram de viúvas e órfãos. Por volta do
ano de 250 depois de Cristo, a igreja de Roma tinha cerca de 1.500 viúvas e pessoas
em dificuldades sob seus cuidados (p. 59).
Consequentemente, esse estilo de vida tornou-se testemunho público e, aos
poucos, pessoas de todos os níveis da sociedade começaram a vir a Cristo
William D. Taylor
O OCIDENTE MODERNO SECULAR
Abrindo espaço para Deus
Janet Epp Buckingham
O Tratado de Paz de Westphalia de 1648 estabeleceu pela primeira vez o “Estado
secular” em resposta às guerras religiosas que assolaram a Europa por décadas. Na
época, parecia uma grande inovação. Previamente, a religião do soberano ditava a
religião dos cidadãos. Muitos cidadãos, sob pena de morte, tinham sido forçados a
oscilar entre o Catolicismo Romano e alguma forma de Protestantismo.
O “Estado secular” não era o que temos hoje. O soberano detinha o direito de
determinar a religião de Estado, mas outras minorias religiosas gozavam de um certo
grau de liberdade religiosa. Quando se considera que esse novo sistema substituiu o
Santo Império Romano, com uma religião imposta pela Inquisição, este foi um grande
avanço.
Ninguém na época poderia imaginar o que se tornaria o Estado secular moderno. A
Revolução Francesa na década de 1790 iniciou o Estado moderno secularista. Como a
Igreja Católica Romana era vista como parte do “governo”, foi perseguida junto à
aristocracia; igrejas foram fechadas, terras da igreja foram confiscadas pelo Estado e
vendidas, e padres tiveram que se tornar empregados do Estado. A Revolução
estabelecia uma separação entre igreja e Estado que ia além do que os americanos
haviam feito durante sua própria revolução um século antes.
Alguns defendem o Estado secular com base no fato de que, em sua forma ideal, ele é
neutro com relação à religião. Infelizmente, não é assim que as coisas acontecem na
prática. O secularismo se tornou uma religião em si mesma, e sem rivais. Os
chamados “especialistas” disseram que a religião estava fadada à lixeira da história,
pronunciando que a civilização Ocidental era agora uma sociedade pós-Cristã (Norris
e Ingelhart, 2004). A proteção dos direitos humanos à liberdade de religião acabou se
tornando livramento da religião.
Não há espaço para Deus no Estado secular moderno, e portanto não há entendimento
da religião. Quando o Estado se separa oficialmente de qualquer religião estabelecida,
não pode reconhecer que Deus é soberano. Assim, o próprio Estado se torna o único
recurso a que ele próprio pode recorrer, bem como seus cidadãos, para encontrar
respostas. Assim, deve negar o lugar da religião. Não estou argumentando que o
Estado deveria se alinhar a qualquer religião, isto acarretaria problemas também, mas
devemos entender a força propulsora por trás do Estado secular moderno para que
entendamos o lugar dos cristãos no mesmo.
Outra qualidade do Estado secular moderno é que para que uma diversidade de
indivíduos e grupos coexistam na sociedade, o Estado deve ser “cego para com as
diferenças”. No entanto, devido às diversificadas necessidades dos indivíduos e
grupos na sociedade, isto não funciona. O Estado secular força as pessoas a deixarem
de lado justamente o que estabelece sua identidade. Isto, é claro, significa que não
podem expressar suas necessidades diversas porque isto revelaria suas identidades
específicas.
Mas, há uma abordagem alternativa. Quer seja chamada de “pluralismo com
princípios” (Centro para Justiça Pública) ou de “multiculturalismo” (Habermas 2008:
5), ela é semelhante: reconhece as diferenças que temos como indivíduos com
identidades centradas em nossas comunidades, mas se compromete ao respeito mútuo
e ao diálogo para que haja coexistência pacífica.
RESTRIÇÕES ENFRENTADAS POR CRISTÃOS
As restrições enfrentadas pelos cristãos no Ocidente secular varia de leves a severas,
mas são geralmente acompanhadas de uma linguagem de “tolerância”. As restrições
geralmente são leis promulgadas de forma adequada por algum nível do governo e
portanto são aplicadas pela justiça. Diante dos tratados internacionais e da
constituição que protegem a liberdade religiosa, isto é ainda mais insuportável. A
própria justiça em que os cristãos confiaram para defender seus direitos acaba
restringindo-os.
RESTRIÇÕES DE EXPRESSÃO
O primeiro grupo de exemplos trata da expressão pública da religião, abrangendo a
pregação, o evangelismo e a liberdade de expressão. Estas são expressões da religião
básicas, especialmente para o Cristianismo.
O caso do pastor Suéco Ake Green foi muito repercutido internacionalmente. O
pastor Green foi acusado criminalmente por pregar um sermão em sua igreja expondo
o ponto de vista bíblico sobre a homossexualidade. No pricípio foi condenado e
recebeu a sentença de um mês na prisão por ter “desrespeitado” os homossexuais, o
equivalente a “injúria verbal” no Brasil. Em 2005, essa decisão foi revogada no apelo,
com base na Convenção Europeia sobre os Direitos Humanos, que protege fortemente
a liberdade religiosa ( Riksäklagaren v. Ake Green 2005).
Os testemunhas de Jeová são bem conhecidos pela evangelização de porta em porta.
Um grego testemunha de Jeová foi condenado pelo crime de proselitismo por esta
prática e sentenciado a quatro meses de prisão. A Corte Europeia dos Direitos
Humanos conseguiu reverter a sentença em 1993 (Kokkinakis v. Grécia) A corte
enfatizou fortemente que a liberdade religiosa é um dos fundamentos da sociedade
democrática. Também afirmou que o direito de “manifestar” sua religião em
conversas com outras pessoas é um direito fundamental.
Embora estes sejam casos bem divulgados que foram julgados em instâncias
superiores, também têm havido muitas questões semelhantes em todos os países
Ocidentais. Estes dois casos envolviam acusações criminais, tornando impossível aos
religiosos não se defenderem na justiça. Muitas questões semelhantes são resolvidas
pela desistência dos religiosos de buscarem seus direitos, ou por uma decisão nas
instâncias inferiores que não pode ser levada adiante por falta de dinheiro para um
apelo. Da perspectiva de um canadense, posso me lembrar de dezenas de casos em
que os crisãos foram excluídos ou marginalizados. Embora os religiosos, quer
muçulmanos, quer judeus ou cristãos sejam muitas vezes marginalizados, os cristãos
são especialmente alvo de exclusão. Um pastor na costa leste do Canadá requisitou o
uso do palco em um parque público no centro da cidade para uma peça. O pedido foi
negado com base em que a religião causa controvérsias. Quando sua igreja
apresentou a peça, apesar de não terem permissão, o pastor foi acusado de invasão de
propriedade. Ele se defendeu com sucesso comprovando que tinha tentado conseguir
a permissão, e ainda levou o município à justiça por discriminação (Gilliard 2004).
Uma característica comum de muitos casos legais religiosos é que envolvem códigos e
tabelas de direitos humanos. Esse tipo de proteção a direitos nacionais e
internacionais (International Covenant on Civil and Political Rights: International
Covenant on Economic, Social and Cultural Rights) começou depois da Segunda
Guerra Mundial, como resposta às consciências recentemente sensibilizadas pelo
Holocausto. As pessoas compreenderam que o preconceito, se for tolerado, pode
levar à perseguição, tortura e até ao genocídio. A proteção legal dos direitos
humanos tem uma função importante. Os cristãos deveriam estar cientes deste tipo de
proteção tanto a nível local quanto internacional.
Infelizmente, a proteção legal dos direitos humanos tem sido uma faca de dois gumes.
No Canadá, as políticas já foram usadas tanto contra os cristãos como a favor dos
mesmos. Por exemplo, uma reclamação envolvendo os direitos humanos foi feita por
causa de uma carta pastoral de um bispo católico romano no leste do Canadá, dizendo
que ela “provavelmente incitaria o ódio e desprezo contra os homossexuais.” Na
Suécia, uma acusação contra o Pastor Green, de acordo com uma lei que parecia
semelhante, considerou sua ofensa criminosa enquanto no Canadá foi apenas a
violação de parte do código de direitos humanos. A reclamação foi arquivada porque
o Bispo Henry goza de liberdade religiosa e sua carta pastoral foi considerada uma
perspectiva religiosa sobre o casamento de pessoas do mesmo sexo.
Uma das tendências mais perturbadoras é a censura e a punição de alunos cristãos nas
Universidades. Professores universitários parecem ser a vanguarda dos secularistas
militantes. Procuram endoutrinar uma ideologia anti-religiosa ou, mais focalizada
ainda, anti-cristã. Os alunos que defendem suas próprias crenças são humilhados e às
vezes punidos com notas baixas. Em casos extremos, os cristãos que expressam suas
posições, como os que são contra o aborto ou questionam o homossexualismo ou o
casamento de pessoas de mesmo sexo, são expulsos da universidade ou não
conseguem se formar. Alunos já foram presos por postarem cartazes gráficos contra o
aborto no campus. Antigamente as universidades eram um centro de livre expressão
de ideias, as agora se tornaram enclaves do que é politicamente correto.
RESTRIÇÕES DAS PRÁTICAS RELIGIOSAS
O Ocidente secularizado protege as práticas religiosas privadas, mas tende a limitar
expressões públicas da religião. Isto tem se evidenciado nos Estados Unidos, que tem
uma alta porcentagem de sua população de cristãos praticantes, mas também tem uma
das organizações secularistas mais estridentes, a União Americana pelas Liberdades
Civis (American Civil Liberties Union – ACLU). Outros países enfrentam questões
semelhantes, mas em menor grau, ou vistas de outra forma.
Os Estados Unidos devem ter um dos níveis mais altos de religiosidade entre os países
do Ocidente. Os presidentes, há muito tempo, convocam dias nacionais de oração e
são regularmente fotografados em igrejas e junto a líderes religiosos. As igrejas
americanas exibem publicamente a bandeira americana e misturam nacionalismo com
fervor religioso. Por outro lado, muitas batalhas jurídicas já aconteceram por causa de
orações feitas por alunos em eventos esportivos e cerimônias de formatura, ou até
mesmo por causa de histórias contadas às crianças e de trabalho em sala de aula, por
mencionarem Jesus ou o Cristianismo. Juízes foram forçados a remover quadros
ilustrativos dos Dez Mandamentos de suas cortes. Isto tudo é semelhante à recusa por
parte da União Europeia de reconhecer sua herança cristã.
Escolas têm sido um campo de batalhas na América do Norte, com relação ao
conteúdo religioso, e clubes de alunos cristãos já foram até expulsos.
Ostensivamente, a expulsão é feita com base na “separação entre igreja e Estado”.
Este princípio for articulado em uma carta de um ex-Presidente dos Estados Unidos a
uma igreja para lhe garantir que estava protegida da interferência do Estado (Jefferson
1802). Não é um princípio constitucional nos EUA e certamente em nenhuma outra
parte do mundo. Até nos EUA o princípio nunca teve como intenção impedir a
reunião de jovens livremente para orar quando outros diversos clubes têm a liberdade
de se reunir. Isso é uma discriminação clara contra a religião.
No Canadá, escolas públicas tinham instrução religiosa e oração pública até que uma
Carta de Direitos foi introduzida em 1982. É irônico que um documento de direitos
humanos tenha sido utilizado para limitar a religião nas escolas. Ela foi excluída
porque o foco era a religião Cristã, apesar do Canadá ser mais de 80 porcento Cristão.
Desde então, as escolas religiosas prosperaram. Também já houve várias tentativas de
controlar os currículos dessas escolas religiosas, forçando-as a ensinar algumas
matérias sobre sexualidade ou sobre a evolução. Por enquanto, essas tentativas não
foram bem sucedidas.
A França está na vanguarda quanto à restrição de roupas religiosas. Foi o primeiro
país Ocidental a banir o uso de símbolos religiosos que chamem a atenção (Loi de
laïcité) em 2004. Embora tecnicamente essa lei imponha restrições tanto a cristãos
quanto a muçulmanos, comumente é conhecida como “proibição do véu” pela
imprensa internacional. A província francofone do Canadá pensou em adotar uma
proibição semelhante – somente limitaria o uso do niqab, mas em um número maior
de áreas públicas. De fato, mulheres usando o niqab seriam impedidas de acessar
serviços públicos.
Muitas das questões referentes às restições de práticas religiosas surgem devido à
presença de grupos minoritários. Mas com a mudança na sociedade, tornando-se mais
secularizada, cristãos praticantes se tornaram um grupo minoritário. Se antes tínhamos
os Adventistas do Sétimo Dia ou os Judeus pedindo isenção do trabalho aos sábados,
agora os cristãos também precisam pedir a mesma isenção porque as lojas ficam
abertas aos domingos. Antes eram os muçulmanos proibidos de usar o hijab ou os
Sikhs de usar o kirpan, agora são os cristãos que não podem usar uma cruz à vista.
Profissionais cristãos têm buscado a objeção de consciência que lhes permita recusar a
participação em abortos e eutanásia. Em países como o Canadá, onde o casamento foi
redefinido para incluir casais de mesmo sexo, os oficiais responsáveis por casamentos
civis não conseguiram isenção e têm o dever de oficiar casamentos de casais do
mesmo sexo, mesmo que isto vá contra sua religião. Profissionais cristãos enfrentam
restrições para expressar sua religião de diversas formas. Enfermeiras e cuidadores
profissionais na Grã-Bretanha foram disciplinados por terem se oferecido para orar
por pacientes e por clientes.
Organizações cristãs também já foram ameaçadas e restringidas em algumas de suas
práticas. Nos anos 90, uma universidade cristã do Canadá perdeu o reconhecimento
de seu programa educativo porque a universidade tinha uma política de padrões
comunitários em que os alunos concordavam em não manter relações sexuais fora do
casamento. Isto foi considerado discriminação contra os homossexuais. A
universidade apelou em diversas instâncias e finalmente teve sucesso na Corte
Suprema do Canadá (B.C. College of Teachers v. Trinity Western University). Um
ministério cristão que cuida de adultos com problemas mentais teve que enfrentar um
grupo de direitos humanos que questionou sua prática de empregar preferencialmente
cristãos em sua instituição (Christian Horizons 2010)
COMO OS CRISTÃOS DEVERIAM RESPONDER
Os cristãos no Ocidente têm muitos meios de influenciar a lei e as políticas públicas
para promover a liberdade religiosa. Estes países são democracias e por isso os
cristãos têm oportunidades de se candidatar a cargos públicos e de participar
diretamente no processo de elaboração das leis. Os cristãos podem se engajar na sua
defesa diante de políticos como indivíduos ou como organizações. Todos os países
Ocidentais estão sob o império da lei, e portanto pode se buscar a justiça através do
sistema judiciário. Além disso, há liberdade de imprensa, e assim os cristãos podem
divulgar sua mensagem através da mídia. É crucial que todos que se envolvam em
qualquer um desses tipos de defesa entendam o processo e falem e ajam de modo
apropriado.
Muitos cristãos no Ocidente secularizado são complacentes com relação à sua
liberdade religiosa. Acreditam que enquanto o culto não estiver sendo ameaçado, a
liberdade religiosa está garantida. Também se acredita amplamente que os que
acabam tendo que se defender na justiça são “desordeiros ou vândalos”. Nenhuma
dessas coisas é verdade.
Há limitações constantes da manifestação pública da fé pelos cristãos. Alguns
cristãos sofrem até restrições em sua prática religiosa privativa. Limitar nossa prática
religiosa ao que ocorre somente na igreja ou em casa é realmente estreitá-la muito. As
comunidades religiosas historicamente se engajaram em um número de questões
sociais, não se confinando apenas à adoração e cuidado pastoral. Ministérios cristãos
existem em todo o mundo para cuidar dos mais vulneráveis, alimentar os famintos,
vestir os carentes e habilitar os pobres para saírem da pobreza. Eles criam escolas,
hospitais, e orfanatos. Mas além disso, os cristãos também são motivados a
compartilhar o evangelho através de uma variedade de formas de evangelismo:
impresso, meios de comunicação, e encontros pessoais. Os cristãos não deveriam ter
que se limitar às funções “religiosas” tradicionais só porque a sociedade em geral se
declara ofendida por ser exposta ao Cristianismo.
A estratégia de resolução de conflitos que aparece em Mateus 18, embora tenha sido
estabelecida para resolver conflitos entre cristãos, é um bom ponto de partida para
resolver questões de conflito religioso também. A sociedade Ocidental é uma
sociedade pluralista, o que quer dizer que há muitas religiões e culturas convivendo
lado a lado. Precisamos nos dar bem porque vivemos juntos. Se existe um problema,
o primeiro passo deveria sempre ser de tentar conversar com a pessoa ou grupo que
toma decisões e discutir por que permitir a prática e a expressão da religião seria
positivo. Deve-se evitar o uso de linguagem religiosa nessas circunstâncias e procurar
utilizar uma linguagem que seja bem compreendida pela pessoa. Muitas vezes a
linguagem dos direitos humanos é a que melhor se compreende na sociedade secular.
Se a primeira reunião não tiver resultados positivos, é hora de demonstrar a força
através de uma reunião com um maior número de pessoas com poder de decisão, ou
de contatar uma autoridade de nível mais alto, como um supervisor. Este passo exige
oração e discernimento. Cada tentativa pode dar errado porque o responsável por
tomar decisões pode se sentir ameaçado e endurecer na sua posição. Essa pessoa pode
estar tentando levar em consideração os interesses de outra pessoa ou outro grupo e
talvez tenhamos que negociar nossa reivindicação, contanto que não abramos mão do
que cremos.
Somente no caso do diálogo falhar devemos partir para uma abordagem de confronto.
Os cristãos só devem dar este passo depois de muita oração e reflexão. Nunca para
nos orgulharmos. Em Atos 25.10, Paulo apelou para César, mas só depois de passar
anos na prisão, sem que qualquer acusação séria contra ele chegasse a ser feita. Paulo
conhecia os caminhos a que podia recorrer diante da lei, ele tinha sido educado na lei,
então foi o que ele fez. Para os cristãos na sociedade secular moderna, este tipo de
apelo poderia ser a políticos, a uma instância superior na justiça, à mídia, ou às três
coisas juntas. Políticos cristãos podem abrir portas na política e no governo para
ajudar aqueles cujos direitos são violados. Advogados cristãos podem ajudá-los na
elaboração de argumentos de defesa. Cristãos na mídia podem usar sua influência
para introduzir histórias ou depoimentos positivos no momento certo em canais de
mídia proeminentes.
Existem muitas críticas à proposta do uso dos sistemas políticos e judiciários pelos
cristãos para garantir a liberdade religiosa. Alguns cristãos se opõem dizendo que
Jesus nos manda “dar a outra face” (Mt 5.39). Afinal, devemos amar nossos inimigos
e orar por aqueles que nos perseguem (Mt 5.44). Outros dizem que Paulo nos manda
obedecer às autoridades (Rm 13.1-5). Ainda outros interpretam mal a instrução de
Paulo à igreja, “Por que não sofrer, antes a injustiça?” (1Co 6.7) Esta recomendação
se encontra no contexto de não levar outros crentes à justiça. Os cristãos não
deveriam recorrer prontamente à justiça assim que são injuriados, mas quando outras
abordagens não dão resultado, a ação política ou legal deve ser considerada. O
Ocidente secularista se orgulha de proteger os direitos humanos, e a liberdade
religiosa é um dos direitos humanos protegidos. Uma vantagem de se levar os casos à
justiça é que um resultado positivo em um caso pode beneficiar toda uma
comunidade.
O desafio diante dos cristãos é de criar espaço para Deus em uma cultura que tenta
excluí-lo. Os cristãos, e pessoas de outras religiões também, não deveriam ter que
restringir suas crenças e práticas religiosas às suas casas, mas deveriam poder expor a
riqueza de sua fé. Já recomendei que os cristãos deveriam utilizar uma linguagem
comum aos secularistas, mas ao mesmo tempo, devemos tomar o cuidado de não
diluir aquilo que cremos. Como Ludin nos admoesta, “Os cristãos correm o perigo de
vender seu direito de primogenitura – seu vocabulário de pecado e graça, julgamento e
perdão, morte e ressurreição – por um prato frio de lentilhas de jargão e obscuridade.”
(Ludin 1993, 30). Como nos diz Jesus “sede prudentes como as serpentes e símplices
como as pombas.” (Mt 10.16). Para criar espaço para Deus, os cristãos devem
aproveitar oportunidades de falar a verdade em processos políticos e legais de forma
agradável e apelativa.
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. Os desafios que os cristãos enfrentam no Ocidente secular são diferentes dos
que enfrentam em outras partes do mundo?
2. Porque os cristaos no Ocidente estão em vantagem se comparados aos que
vivem em outros países, com relação a tratar das violações da liberdade
religiosa?
3. Há passos positivos que os cristãos ou as igrejas podem dar para criar um
ambiente mais positivo para a expressão religiosa na sociedade Ocidental?
4. Discuta a abordagem que você considera a mais promissora para lidar com
uma violação de liberdade religiosa no Ocidente secular.
REFERÊNCIAS
Habermas, J. 2008. Notes on a post secular society. www.signandsight.com. Posted June
18, 2008.
Jefferson, T. 1802. Letter to the Danbury Baptist Association. 1 January.
Ludin, R. 1993. The culture of interpretation: Christian faith and the postmodern world.
Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans.
Norris, P., and R. Inglehart. 2004. Sacred and secular: Religion and politics worldwide. Cambridge: Cambridge University Press.
Referências a Cortes de Justiça e a Estratégias Políticas:
British Columbia College of Teachers v. Trinity Western University. 2001. 1 SCR 772 (Supreme Court of Canada).
Gilliard v. Pictou (Town). 2005. NSHRBID No. 2.
International Covenant on Civil and Political Rights. 1976. GA Res 2200A (XXI), 21 UN
GAOR Supp (No. 15) at 52, UN Doc. A/6316, (1966), 999 UNTS 171, 1976 CTS,
No. 47, signed at New York 19 December 1966, entered into force 23 March 1976.
International Covenant on Economic, Social, and Cultural Rights. 1976. GA Res 2200A
(XXI), 21 UN GAOR Supp (No. 16) at 49, UN Doc. A/6316 (1966), (1966), 993 UNTS 3,
1976 CTS, No. 46, signed at New York 19 December 1966, entered into force 3 January
1976.
Kokkinakis v. Greece. 1993. Judgment of 25 May 1993, Series A No. 260- A. European
Court of Human Rights.
Loi n° 2004-228. 2004. Du 15 mars encadrant, en application du principe de laïcité, le
port de signes ou de tenues manifestant une appartenance religieuse dans les
écoles, collèges et lycées publics, 2004-228 of 15 March 2004.
Ontario Human Rights Commission v. Christian Horizons. 2010. ONSC 2105. Ontario Divisional
Court.
Riksåklagaren v. Åke Green. 2005. Judgment of 29 November 2005, case number B
1050-05. Supreme Court of Sweden.
Janet Epp Buckingham, LL. D. , é professora associada na Universidade Trinity
Western e Diretora do Centro de Liderança Laurentian em Ottawa. Anteriormente,
foi Diretora de Políticas Legais e Públicas para o Evangelical Fellowship do Canada e
Diretora Executiva da Christian Legal Fellowship. Sua ese de doutorado em Direito
da Universidade de Stellenbosch focalizou a liberdade religiosa no Canada e na
África do Sul. Recebeu a honra do prêmio Bom Samaritano dos Advocates
International.
UMA ABORDAGEM INDUTIVA PARA SE
ENTENDER A PERSEGUIÇÃO NO
ORIENTE MÉDIO
Andrew Edward
Durante as décadas em que morei no Oriente Médio acumulei muitas histórias. Ao
contar algumas delas, espero que meus leitores possam aprender alguma coisa sobre a
perseguição de uma forma indutiva.
Minha abordagem será de contar um incidente sobre um tipo de perseguição e depois
fazer algumas perguntas para nos ajudar a pensar mais profundamente sobre a história.
Todos os nomes nos exemplos são fictícios, mas as histórias são verdadeiras. Talvez
seja útil para as pessoas que trabalham em situações difíceis, realizar este exercício em
grupo.
Geralmente pensamos em perseguição apenas em termos de religião. No entanto, as
pessoas também podem ser perseguidas por convicções políticas, econômicas,
educacionais ou sociais. Geralmente, as pessoas são perseguidas por uma combinação
de diversos motivos.
Uma definição abrangente da perseguição é “Qualquer ação injusta, com níveis
variáveis de hostilidade, uma ou mais motivações, direcionada a um indivíduo
específico ou a um grupo específico, resultando em níveis variáveis de dano,
considerados da perspectiva da vítima,” (Tiezen, 2008:41).
A perseguição ocorre em toda parte e em todos os países do mundo. Muitos estão
envolvidos. Já observei famílias, professores, empregadores, treinadores, pregadores,
estudiosos, servidores públicos, empregados de empresas, e soldados participando de
perseguição.
Às vezes, a perseguição leva à morte. Quando alguém morre por Cristo, isto é
chamado de martírio. Nisso, concordo com David Barrett na World Christian
Encyclopedia (Barrett et al., 2001) e com Christof Sauer do International Institute of
Religious Freedom (Sauer, 2008: 26-48). Meu foco neste artigo será sobre os cristãos
que enfrentam perseguição.
RECONHECENDO A PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA NO ORIENTE MÉDIO
A perseguição é utilizada como uma ferramenta para influenciar a mudança de
comportamento que resultará na conformidade com a opinião da sociedade. Os
perseguidores utilizam pressões físicas, sociais, psicológicas e mentais para conseguir
controlar as pessoas. O objetivo é de forçar as pessoas a mudar com relação às normas
que o grupo dominante deseja impor a todos os cidadãos.
A perseguição pode ser levada a cabo na privacidade de um lar, entre os vizinhos, no
mercado, e em prédios governamentais. A perseguição política e religiosa no Oriente
Médio está em toda parte. Um vento de mudança, no entanto, está soprando no mundo
Árabe, com cidadãos comuns pressionando seus governos para que parem com a
perseguição e instaurem mudanças democráticas.
A EXPERIÊNCIA DE RAMI
Rami (pseudônimo) se tornou um discípulo de Jesus Cristo no início de sua vida adulta.
Ele, sua esposa e filhos se amavam e cuidavam uns dos outros. Rami trabalhava na
cidade e era fiel em suas responsabilidades.
Um dia, alguns anos após Rami ter se tornado cristão, alguém na cidade o acusou de
ser um apóstata. A polícia enviou seu caso para a Corte Sharia.
Se ele não renunciasse o compromisso com Cristo, a Corte Sharia o declararia um
apóstata do Islamismo. Esta conclusão daria à corte o poder de cancelar seus direitos
civis e de colocá-lo sob custódia do Estado. Sua certidão de casamento seria anulada.
Seus filhos seriam tirados dele. Ele ficaria proibido de assinar contratos para alugar
uma casa, comprar um carro, ou emprestar dinheiro. Qualquer contrato teria que ser
assinado por um tutor, já que ele estaria sob custódia, e assim seria considerado como
um menor de idade. A única religião que poderia praticar seria o Islamismo.
A polícia e a corte acharam que ele negaria sua fé em Cristo e voltaria para o Islamismo.
Mas, ele se recusou a voltar atrás em sua fé. Como exige a lei Sharia, ele foi declarado
apóstata e recebeu a sentença acima mencionada. Ele sabia que, como apóstata, outros
se considerariam no direito de matá-lo.
Rami e sua esposa e filhos se mudaram para outro país árabe onde ele poderia viver em
liberdade. Eventualmente, conseguiram asilo em um país do Ocidente, onde vivem até
hoje. Seu caso é um caso claro de perseguição religiosa, até pelos padrões das Nações
Unidas.
A sentença de Rami deixou claro para outros seguidores de Jesus Cristo que existe uma
espada sobre suas cabeças. Se forem acusados de serem apóstatas e não negarem sua fé,
eles também serão sentenciados como Rami e terão que enfrentar as consequências.
Convidar muçulmanos a aceitar a Cristo é algo que se faz em obediência ao Senhor
Jesus. Os muçulmanos que aceitam a Cristo no mundo árabe enfrentam adversários em
sua própria família, na polícia e nas cortes, e em qualquer pessoa que queira acusá-los
de apostasia diante das Cortes Sharia. A perseguição e o martírio são sempre uma
possibilidade.
Questões para Reflexão: Mesmo sabendo muito bem que enfrentarão perseguição,
muçulmanos estão aceitando a Cristo como seu Salvador. Quais seriam algumas razões
por que estão dispostos a enfrentar grandes perdas por Cristo? O que significa para eles
ganhar a Cristo?
PERSEGUIÇÃO PRIVADA
Um adolescente atribulado entrou em contato com uma estação de rádio e TV que
divulgava o Evangelho de Jesus como o Messias. Ele escreveu para o endereço de um
dos programas, pedindo um curso por correspondêcia. Fez as lições em sua casa e
guardou os papéis em um armário trancado, do lado de sua cama.
No seu país, ele encontrou Árabes que o ajudaram nesse curso por correspondência.
Alguns meses mais tarde, ele percebeu que desejava receber a salvação de seus pecados
através de Jesus. Recebeu a Cristo como Salvador e começou sua caminhada como
discípulo.
Um dia, ele voltou para casa e descobriu uma pilha de papéis queimados em seu
quarto. Ficou sabendo que seu irmão mais novo tinha conseguido abrir a gaveta
trancada e mostrado para os pais o que ele andava lendo. Seus pais ficaram muito
bravos e queimaram o material de estudo.
Quando o jovem se encontrou com seus pais, eles bateram nele e o avisaram para não
se envolver com a Bíblia ou livros cristãos.
Embora seu pai fosse um advogado e oficial num dos ministérios do governo, o
adolescente continuou a estudar materiais cristãos, mas não mais em sua casa. Com o
tempo, sua vida se tornou insuportável e ele acabou saindo de casa.
Aos dezoito anos de idade, ele teria a liberdade de viajar para fora do país. Ele foi para
um país próximo onde pode continuar seu discipulado num nível de faculdade.
Alguns anos depois, ele terminou seu programa de estudos. Enquanto estava estudando,
recebeu a visita de seu pai.
Seus pais sabem que ele tem a educação para se tornar um professor da religião cristã.
Sabem que ele deixou Maomé e está seguindo a Cristo. Estão conversando com ele de
novo e estão convidando para que ele volte para casa. O jovem precisa avaliar os riscos
de se mudar de volta para seu lar.
Questões para Reflexão: Este jovem será aceito por seus pais e irmãos como
seguidor de Jesus? Será que um membro de sua família ou algum amigo o acusará de
apostasia e o levará à corte Sharia? Ele deveria correr o risco de perder seus direitos
civis e sua vida? Seria esta a hora de Deus para ele enfrentar perseguição pesada e
talvez até o martírio?
NASCIMENTOS E RENASCIMENTOS MILAGROSOS
Ali é um homem de pouco mais de quarenta anos. Ele e sua esposa, vamos chamá-la
de Sarah, formavam uma família muçulmana devota e feliz em seu casamento. Sua
única tristeza era não terem filhos. Em busca deste sonho, já haviam tentado
fertilização in vitro em diversos hospitais. Depois de terem gasto mais de 25 mil
dólares nesses procedimentos, sua esposa ainda não ficara grávida.
Ali e Sarah viajaram para Chipre. Durante a viagem, resolveram pedir a um bispo
cristão que orasse para que tivessem filhos. Foram a uma igreja e o bispo orou por eles
para que tivessem um bebê. Pouco tempo depois, eles voltaram à sua terra natal e Sarah
concebeu e teve um filho.
Ali e Sarah estavam convencidos de que esta criança era um milagre de Deus. O bispo
cristão tinha orado em nome de Jesus. Eles começaram a procurar informações sobre
Jesus.
Encontraram alguns Árabes que lhes disseram que poderiam comprar uma Bíblia e
outros livros. Aos poucos, eles perceberam que desejavam seguir a Cristo. Eles foram
transformados. Uma confiança na verdade da Bíblia e na história de Jesus, o Salvador,
brotou em seu coração. Eles começaram a crescer em sua fé e a ler mais sobre seu novo
discipulado.
Um dia, um membro da família veio ao seu apartamento e encontrou livros cristãos.
Ali e Sarah admitiram que os livros eram deles. O material foi levado ao pai de Ali para
que ele o examinasse.
Quando ele os confrontou, o pai descobriu que Ali e Sarah agora estavam seguindo a
Jesus. Sua reação imediata foi dizer a Ali que ele tinha de sair do apartamento que o pai
tinha lhe dado e que Ali não mais trabalharia para ele. De uma hora para outra, Ali e
Sarah ficaram desempregados e sem ter onde morar.
O marido de uma irmã de Sarah conseguiu um apartamento para eles e deixou que eles
usassem seu caminhão para trabalhar. Eles sobrevivem de trabalhos avulsos que Ali
consegue fazer. Um dia, Sarah disse a Ali: “O Senhor prometeu nos dar o pão de cada
dia. Ele não disse nada sobre carne. Mesmo que tenhamos comido muita carne no
passado, ficaremos felizes com o pão que Deus nos dará a cada dia.”
No início de 2010, um dos irmãos de Sarah ligou para ela, para avisar que seu pai
estava muito doente e precisava vê-la. Quando ela chegou com seus dois filhos,
descobriu que seu pai estava muito bem. Seu irmão só queria que ela fosse até sua casa.
O irmão estava com raiva por ela e Ali terem se tornado cristãos. Ele a separou de seus
filhos e a trancou no banheiro. Ela ficou trancada no banheiro por vários dias. Durante
este tempo, ele bateu nela diversas vezes e a ameaçou com uma faca.
Quando Ali voltou do trabalho, viu que Sarah não estava em casa. Começou a
procurar por ela. Ficou sabendo que estava presa com seus filhos na casa do irmão.
Depois de três dias, deixaram que ele os trouxesse de volta para casa.
Alguns meses se passaram. Um dia, o pai de Ali o confrontou e ameaçou machucá-lo
se ele não deixasse o país. Ele fez outro filho jurar sobre o Alcorão que atiraria nas
pernas de Ali se ele não fosse embora do país permanentemente. Seu pai consentiu em
esperar um ano para que ele encontrasse outro país para morar.
Ali percebeu que não iria adiantar ir até a polícia. Se ele fizesse isso, eles o entregariam
à corte Sharia. Esta descobriria que ele não negaria sua fé e eles o declarariam um
apóstata, tirariam seus direitos civis, anulariam seu casamento e levariam seus filhos, e
não deixariam que ele praticasse outra religião que não fosse o Islamismo. A sentença
máxima para apóstatas é a morte. No país vizinho, a Arábia Saudita, eles decapitam os
apóstatas.
Quando Ali deixou a casa de seu pai, começou a procurar um país para o qual pudesse
fugir com sua família e onde pudesse trabalhar. Ele começou a contatar embaixadas
para ver se alguém poderia ajudá-lo.
Descobriu um país que permitia aos seus oficiais que entrevistassem pessoas em busca
de asilo. Ali e Sarah já foram à embaixada duas vezes. Seu pedido de asilo está
pendente. Enquanto isso, o tempo corre e o ano que seu pai lhe concedeu vai se
aproximando do fim.
Se Ali não sair de seu país, seu irmão vai atirar em suas pernas. Como diabético, a sua
vida estará em risco por causa da perda de sangue. O martírio pode ser seu fim.
Embora ele esteja preparado para isso, quem irá cuidar de sua esposa e filhos? Quem os
protegerá de seu pai e de seus irmãos quando Ali já estiver no túmulo?
Se a família o acusar de apostasia, a polícia mandará Ali para a Corte Sharia. As
autoridade da corte civil não vão intervir. O julgamento da Corte Sharia será enviado
para a Corte de Apelação Sharia. O resultado já é conhecido. Não haverá escape para
um apóstata do Islamismo.
Questões para Reflexão: O que pode ser feito quando a própria família de uma
pessoa se sente no direito de espancá-la, aleijá-la, ou matá-la porque ela deixou de
seguir a Maomé para seguir a Jesus? Para onde fugir quando as cortes civis o
abandonam à sua sorte nas Cortes Sharia? Se você for casado, como pode proteger sua
esposa e filhos da sentença inevitável das Cortes Sharia?
PERSEGUIÇÃO INSTITUCIONALIZADA
O propósito principal das escolas públicas é de proporcionar um local seguro e onde se
é aceito, para o treinamento e o ensino de crianças que se tornarão bons cidadãos.
Desde o Jardim da Infância até o último ano do colégio, a escola ensina seus alunos a se
tornarem pessoas responsáveis e a respeitarem aqueles que são diferentes.
Mas se você for um seguidor de Jesus proveniente de um lar cristão ou muçulmano,
você terá que enfrentar desafios intelectuais, sociais e acadêmicos na escola pública.
Em escolas particulares, a perseguição pode ser menor. Você pode ter que enfrentar a
má vontade de professores, o bullying dos colegas e às vezes a mudança de ano escolar
por examinadores. Quando as pessoas vão para casa e contam aos seus pais o que está
acontecendo na escola, muitos pais simplesmente se calam. Eles têm medo de falar com
a escola e ter mais problemas para si e para seus filhos.
Um dia, durante o jejum do Ramadã, numa escola particular, uma criança cristã sofreu
bullying de crianças muçulmanas. Eles o levaram ao banheiro da escola e cobriram sua
boca com chocolate, porque o cristão não estava jejuando durante o Ramadã. O assédio
foi relatado aos professores e à administração. Nada foi feito para corrigir as crianças
que maltrataram o colega.
As crianças percebem logo que este tipo de tratamento não é punido pela escola. Eles
crescem sabendo que os bullies muçulmanos serão aceitos como parte da vida. E
também descobrem que a maioria dos adultos não querem se envolver com esses
alunos. É difícil manter a esperança quando se percebe que há regras diferentes para as
religiões diferentes.
Todas as escolas no Oriente Médio têm aulas de religião. Todas as crianças cujos
papéis de identificação dizem que são muçulmanas têm que participar dos cursos de
Educação Islâmica. Filhos de pais que agora seguem a Jesus, mas que eram
muçulmanos quando nasceram, não podem escolher que aulas de religião seus filhos
terão. Os filhos e os pais são forçados, contra a vontade própria, a estudar o Islamismo.
Os alunos têm que estudar aquilo que seus pais lhes dizem em casa que é errado.
PERSEGUIÇÃO SECRETA
Há lugar para cristãos e muçulmanos em sistemas governamentais que seguem o
princípio da lealdade aos altos ideais do grupo. Quando todos se comprometem com as
mesmas coisas, a unidade pode promover o crescimento e o desenvolvimento nacionais.
Mas, quando se deixa de lado estes altos ideais por causa de preconceito religioso ou
partidarismo, o resultado pode afetar gerações.
Um jovem pediu um emprego relacionado ao seu treinamento profissional. Ele foi
entrevistado pelo empregador, que o considerou um bom candidato ao emprego. Daí,
seus papéis foram enviados ao Departamento de Segurança Interna do Ministério do
Interior. O ministério respondeu ao empregador em potencial, indicando que o
candidato não era qualificado para o emprego por motivos de segurança. Nenhuma
explicação foi dada.
O jovem pediu um outro emprego semelhante. A mesma coisa aconteceu. O
empregador era favorável à sua contratação. Mas, o Departemento de Segurança
Interna o declarou um risco à segurança e não qualificado para o trabalho. Em ambos
os casos, não houve oportunidade de perguntar porquê não houve liberação da
segurança.
Fica-se imaginando o porquê da rejeição por duas vezes. Seria porque o pai da pessoa é
um líder de igreja influente e o governo está tentando reduzir sua influência? Seria
porque a pessoa mesma já havia usado a liberdade de expressão, e o governo achava que
ele tinha ido longe demais quando disse alguma coisa há anos? Seria porque ele tem
um espírito independente e não se deixa influenciar facilmente pela pressão? Todas
estas perguntas ficam sem resposta porque ninguém pode perguntar às autoridades.
Quando o jovem se casa e tem filhos e eles chegam à idade de procurar um emprego,
eles podem ir a alguns dos mesmos lugares onde seu pai tentou trabalhar e pedir
emprego nesses lugares. E o empregador talvez também lhes seja favorável, mas as
autoridades de segurança os rejeitarão.
Se o pai desses filhos ainda não fez um pedido de imigração para outro país, logo fará,
mesmo que leve vinte anos. Países muçulmanos perdem alguns de seus cidadãos mais
capacitados, sejam muçulmanos ou cristãos, quando essas pessoas mais velhas
percebem que seus filhos são rejeitados pelo mesmo sistema que os rejeitou quando
eram jovens.
Questões para Reflexão: O que mantém pessoas em uma situação em que eles
sabem que provavelmente serão discriminadas geração após geração? Será seu
chamado que os impede de migrar para outro lugar?
LICENÇAS PARA REFORMAR PRÉDIOS
Em 1980, mais ou menos, uma grande igreja em Assuit, no Egito, pediu uma licença
para consertar e renovar os banheiros da igreja. O pedido foi feito para a prefeitura de
Assuit. Foi passado para o Governador de Assuit. Mais tarde, o pedido de licença foi
para o departamento de autorizações no Cairo. Finalmente, o pedido chegou ao
gabinete do Presidente da República, Anwar Sadat. No Egito, qualquer permissão para
conserto de uma igreja tem que ser aprovado pelo Presidente do país. Embora seja
possível ao Presidente ver que todos os papéis estão em ordem e que é lógico dar a sua
aprovação, isto raramente acontece.
Hosni Mubarak se tornou o próximo Presidente do Egito. Ainda não havia permissão
para o conserto dos banheiros da igreja. A igreja esperou quinze anos até receber a
resposta.
Um dia, um novo governador da Província de Assuit foi designado. Ele chamou o
pastor e disse: “Não vamos reparar que vocês estão fazendo os consertos por várias
semanas”. Sua mensagem velada era que eles deveriam consertar os banheiros o mais
rápido possível.
Questões para Reflexão: Qual seria o propósito de impedir consertos em prédios
de igrejas? O que isso nos diz sobre o valor que a liderança muçulmana dá aos
cristãos?
PERSEGUIÇÃO COMBATENDO A LITERATURA
Às vezes, tentativas são feitas de afastar as pessoas de uma fé religiosa através de atos
de violência contra a própria religião. Uma das formas de se fazer isto é pela
destruição de Bíblias, hinários e outros tipos de literatura religiosa.
A queima de livros
Uma das ferramentas utilizadas pelos perseguidores para prejudicar os crentes é a
queima de livros. Se ninguém se machucar, o governo encara isso como um
radicalismo inofensivo.
Em maio de 2008, em Yehuda, Israel, cidadãos devotos judeus se reuniram para fazer
uma fogueira. Ela foi acesa e o fogo foi alimentado por cópias do Novo Testamento e
livros relacionados, tirados das casas na comunidade. Isso aconteceu dois dias antes do
feriado que comemora o Rabi Akiva, da Revolta de 135 AD. Uma das formas de se
celebrar este feriado é com fogueiras.
Um dos jornais populares em Israel, Maarin, publicou um artigo curto e uma foto do
evento em Or Yehuda na Edição Online de 20 de maio de 2008. O artigo ainda podia
ser acessado no início de dezembro de 2010.
Cidadãos da cidade e arredores se reuniram na hora determinada para acender a
fogueira. Participantes, inclusive o Vice-Prefeito, alimentaram o fogo com o material
impresso.
Questões para Reflexão: O que fez os líderes pensarem que queimar livros sobre o
Messias seria uma boa ideia? Que mensagem eles estavam querendo comunicar aos
seus filhos, a outros judeus, a muçulmanos, a cristãos, à sua nação, e ao mundo? Que
tipo de medo eles podem ter desencadeado para os cristãos Messiânicos?
A queima de Bíblias
O Alto Egito passou por uma instabilidade política nos anos 80. Depois que o
Presidente Sadat foi assassinado, os que apoiavam seus assassinos atacaram o principal
posto policial da cidade de Assuit. Muitos perderam suas vidas. O exército egípcio teve
que mandar soldados paraquedistas para conseguir controlar a situação. Um novo tipo
de radicalismo islâmico foi instaurado na região.
Um dia no fim dos anos 80, um grupo de estudantes radicais e seus líderes foram de
Assuit à cidade de Sohaj. Eles tinham a intenção de começar uma desordem na cidade,
instigando a raiva e conflitos entre cristãos e muçulmanos. Um grupo desses estudantes
veio a uma das igrejas em Sohaj num dia de semana com o objetivo de queimar Bíblias
que lá estavam.
Entraram na igreja, e juntaram as Bíblias e hinários numa pilha. Jogaram um líquido
inflamável sobre os livros e atearam fogo. Destruíram os livros, alguns dos bancos, e
deixaram as paredes e o teto pretos com a fumaça.
No seu fervor, os estudantes subiram para o apartamento do pastor, no segundo andar.
Felizmente, o pastor tinha trancado a porta do apartamento. Ele, sua esposa e filhos
estavam lá dentro. Os atacantes gritavam dizendo que iriam matá-los.
O pastor pegou o telefone e ligou para o posto da polícia. Logo, a polícia chegou. Os
atacantes fugiram, e a calma retornou.
Eventualmente, a polícia identificou os atacantes e mandou muitos deles para a cadeia.
A igreja foi consertada. Os móveis foram consertados. Novas Bíblias e hinários foram
comprados para repor os que foram queimados. A polícia recomendou à igreja que
fizessem um muro mais alto em redor da igreja. Um guarda armado foi colocado à
porta da igreja, vinte e quatro horas por dia.
Questões para Reflexão: Qual é a mensagem que os queimadores de livros
desejam comunicar? Quando os governos intervêm rapidamente em tragédias
relacionadas à religião, qual é a mensagem que eles desejam comunicar? Qual é o
efeito de longo prazo dos ataques às famílias por terroristas inspirados pela religião?
Que tipo de aconselhamento e cuidado pastoral seria necessário para a família e para o
pastor desta igreja ou de outras igrejas que experimentaram ataques semelhantes?
A PERSEGUIÇÃO DO PONTO DE VISTA DO PERSEGUIDOR
Ao tentarmos lidar com a perseguição, pode ser útil tentar mencionar os passos que
ocorrem numa perseguição, um tipo de taxonomia da perseguição, do ponto de vista do
responsável pela mesma. É duvidoso que um perseguidor tenha consciência desta
taxonomia. Espero que aqueles que testemunham a perseguição me ajudem nesta
discussão, me dizendo que passos lhes parecem verdadeiros e onde poderiam adicionar
outros fatores.
Cada seção da taxonomia é um acréscimo à anterior. Depois de apresentar e explicar a
taxonomia, ela será ilustrada com uma história sobre perseguição que aparece neste
capítulo. Minha esperança é que, explicando a perseguição da perspectiva do
perseguidor, teremos ideias sobre quais tipos de intervenção podem ou não ser
recomendáveis quando a perseguição ocorre.
TAXONOMIA DA PERSEGUIÇÃO DO PONTO DE VISTA DO PERSEGUIDOR
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
A perseguição é concebida quando uma pessoa sente que seu modo de vida
está sendo ameaçado por outra pessoa.
A perseguição começa com uma pessoa que transforma ameaças percebidas
em ameaças realizadas contra outras pessoas.
A perseguição aumenta quando a pessoa que sente que seu modo de vida
está sendo ameaçado consegue influenciar outros para que adotem seu ponto
de vista.
A perseguição se expande quando outros começam a ver as ações de
perseguição como uma boa forma de apoiar sua causa.
O governo interfere na perseguição com uma política ou regra que torna a
perseguição legal.
As pessoas se acostumam à perseguição dos outros e continuam a realizá-la
porque se sentem bem com isso e eles nem se lembram bem porque
começaram a perseguição.
A vontade de manter a perseguição diminui.
O perseguidor entra em hibernação até que um novo evento ocorra e
apresente uma pessoa ou alguma coisa como ameaça.
Um evento ocorre que desperta o perseguidor da hibernação, e ele redefine
seus parâmetros.
O perseguidor começa a falar sobre uma pessoa que o está ameaçando e o
processo recomeça.
Pode ser uma ajuda para aqueles que passam por perseguição saber, pelo menos um
pouco, como os perseguidores agem diante dos problemas. Vamos tentar ilustrar
com um dos casos mencionados antes e ver o que podemos aprender.
REAÇÃO DE RAMI
TAXONOMIA
1. Nosso modo de vida é ameaçado
2. O perseguidor pega a ameaça que
sente e a transforma em uma
ameaça à outra pessoa.
3. O perseguidor ajuda outras pessoas
a enxergarem a pessoa como uma
ameaça e estimula seu tratamento
como alguém que está ameaçando
suas vidas.
4. Temos justa causa. As pessoas
como Rami não deveriam ter
liberdade de agir sem enfrentar as
consequências negativas.
5. O governo cria uma nova política
ou lei sobre como tratar
socialmente os cidadãos desviados.
6. Os perseguidores continuam a
perseguir porque se sentem bem
com isso.
7. O desejo de manter a perseguição
diminui.
Um amigo ou membro da família viu seu
status de convertido como uma vergonha e
desonra para a família.
Um amigo ou membro da família faz algo
que Rami considera uma ameaça.
Vários oficiais ouvem falar de Rami e
começam a agir contra ele na comunidade
e na sua família
Os perseguidores começam a ameaçar
Rami com o que vão fazer contra ele.
A Polícia Interna entrevista Rami e lhe
pergunta o que está acontecendo em seus
relacionamentos.
Rami é levado diante da Corte Sharia para
ser julgado.
Rami é sentenciado pela Corte Sharia e
deixa de ser uma preocupação do
perseguidor.
8. O perseguidor entra em hibernação. Rami se foi. Não precisamos nos
Está cansado e quer descansar. Já
preocupar mais com ele.
não está mais interessado em Rami.
9. O perseguidor reemerge da
Ele começa a falar das questões de Rami.
hibernação, redefine os parâmetros
da perseguição.
10. O perseguidor volta a falar de
Ele começa a se sentir incomodado por
ameaças.
outra pessoa...
Embora esta taxonomia possa não se encaixar bem em toda situação, pelo menos ela nos
dá uma ferramenta para ajudar a pensar por quê o perseguidor faz o que ele faz.
Também pode ajudar a pessoa perseguida a saber o que ela pode esperar no decorrer do
processo e como ela pode se preparar para isso. Pode também ajudar aqueles que estão
orando pelos perseguidos a saber como orar.
CONCLUSÃO
A perseguição está em toda a parte no Oriente Médio. Acontece em todos os países.
Onde há cristãos, eles acham um meio de persegui-los. Se não há cristãos na
comunidade, eles encontram outros grupos e outras seitas religiosas a quem perseguir.
O desafio para os cristãos é decidir como desejam lidar com a perseguição e ao mesmo
tempo manter um testemunho verdadeiro por Cristo no Oriente Médio. Alguns cristãos
serão chamados a emigrar para outros países. Outros serão chamados a permanecer no
Oriente Médio. Seja no mundo Árabe ou em terras distantes, os cristãos Árabes
precisam encontrar formas de ajudar a alcançar o mundo Árabe para Cristo.
Uma boa forma de ajudar é de orar regularmente pelos amigos e parentes no Oriente
Médio. Ore que eles sejam fieis ao seu chamado para ficar na região e servir ali. Ore
que crentes no mundo Árabe ajam com amor e bondade para com outros cristãos e para
com os muçulmanos, e seus colegas de trabalho. Ore para que cristãos falantes de
Árabe não se cansem de fazer o bem desta forma. Deus trabalha através de nós, de
forma invisível e poderosa quando realizamos sua vontade.
Ore por ousadia. Ore para que, quando os crentes árabes ouvirem a voz do Senhor
dirigindo para que compartilhem sua fé de formas criativas obedeçam. Ore para que
tenham a disposição de falar com as autoridades, se tiverem oportunidade, com o
objetivo de talvez reduzir a perseguição e pressões sobre outros que estejam sendo
perseguidos.
Outra forma de apoiar o testemunho cristão no Oriente Médio é visitar. Visitantes de
fora são tratados com hospitalidade por muçulmanos e por cristãos. Estes encontros
podem ajudar muito a fazer as pessoas se comportarem o melhor possível. As
experiências que as pessoas têm juntas em sua terra natal, com visitantes de outras
cidades e países, deixam uma lembrança duradoura que pode melhorar o
relacionamento entre grupos religiosos por muito tempo depois do visitante já ter
partido.
Uma das coisas com a qual sempre podemos contar é que a perseguição continuará até a
volta do nosso Senhor para nos buscar. Aprendemos a viver com ela e a ter esperança.
Com a expectativa da volta de Cristo em breve, e com a confiança em sua presença aqui
e agora, compartilhamos o seu evangelho com nossas familias e vizinhos. Cremos que
é a mensagem do evangelho que traz à luz a verdade de Deus em toda parte. Oramos
que nossas palavras e nossas vidas iluminem o caminho até o Salvador para muitas
pessoas.
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1.
2.
Como a reflexão indutiva por parte dos perseguidos pode ajudá-los em suas
respostas à perseguição? Como ela pode ajudar outros nos contextos de
perseguição? E se os perseguidos não tiverem a oportunidade de avaliar
cuidadosamente sua resposta?
Em um grupo, selecione duas das sete histórias que o nosso autor relatou e
promova a discução de suas “questões para reflexão” no fim da história.
REFERÊNCIAS
Barrett, D. B., G. T. Kurian, and T. M. Johnson. 2001. World Christian encyclopedia, 2
vols, 2nd ed. Nairobi: Oxford University Press.
Sauer, C. 2008. Researching persecution and martyrdom. International Journal for
Religious Freedom. Vol 1:1, (26–48).
Tieszen, C. 2008. Re-examining religious persecution: Constructing a theological
framework for understanding persecution.Kempton Park: AcadSA Publishing.
Dr. Andrew Edward (pseudônimo) é um seguidor do Senhor Jesus Cristo, aquele que
foi declarado Filho de Deus através do poder de sua ressurreição. É membro de uma
igreja árabe e mora no Oriente Médio há muitos anos. Sua vida profissional se dedica à
educação de crianças, jovens e adultos dessa região.
A RÚSSIA CZARISTA E A UNIÃO
SOVIÉTICA E PÓS-SOVIÉTICA
Mark R. Elliott
No início do século XX, a Rússia Czarista baniu ou restringiu toda expressão do
Cristianismo que não fosse Russa Ortodoxa, a igreja de Estado privilegiada. Entre as
comunidades cristãs que não mais existiam legalmente estava o Catolicismo do Rito
Oriental (que cultuava segundo a liturgia Ortodoxa e tinha padres casados, sob a
autoridade do Papa em Roma). Pejorativamente chamada de Igreja “Uniate” pelos
russos, havia sido suprimida em quase todo o império em 1839 e também no antigo
Distrito Austríaco Kholm em 1875 (Elliot 1985:212).
A Rússia Czarista também negava a legalidade aos Stundistas – Evangelicais Eslavos
que se diziam originários da Ucrânia, assim chamados por sua hora de oração (stunde) ,
palavra emprestada de seus mentores alemães Menonitas. As autoridades chamavam de
Stundistas qualquer cristão que resolvessem assediar ou prender. Outros evangelicais
que enfrentavam oposição tanto do Estado quanto dos Ortodoxos eram os convertidos
eslavos à fé Batista (originária do Cáucaso e da Ucrânia), os seguidores do Coronel
Vasilii Pashkov, convertido ao protestantismo, conhecidos como Pashkovitas, e mais
tarde os cristãos evangélicos (originários de São Petersburgo), Metodistas, e
Adventistas do Sétimo Dia (Sawatsky 1981:34).
Em 1900, Católicos do Rito Latino, predominantemente poloneses, bielorussos e
lituanos nas fronteiras ocidentais da Rússia, foram considerados legais mas estavam
sendo submetidos a uma russificação forçada. No século XIX , milhares de poloneses
que tinham se oposto ao regime czarista tinham sido deportados para a Sibéria, fazendo
que o Catolicismo estivesse presente, mesmo sem sua intenção, ao leste dos Urais
(Chaplitskii e Osipova 2000:lxi).
Trabalhando paralelamente, o Estado Russo e sua igreja do Estado impuseram
numerosas restrições a outra comunidade cristã, os Velhos Crentes. Também
conhecida como Raskolniki (Separatistas), eles tinham rejeitado mudanças na liturgia
Ortodoxa e na representação de ícones imposta pelo Patriarca Nikon no fim do século
XVII. Até 1900, as execuções, aprisionamentos, e os impostos altamente
discriminatórios, levando à fuga, autoimolações, e predições apocalípticas pelos Velhos
Crentes, já tinham dado lugar há muito tempo a uma combinação de medidas
burocráticas que ora incentivavam , ora reprimiam , mas não conseguiram intimidar essa
oposição religiosa intransigente e cada vez mais forte (Beeson 1982:91; Robson
1995:14-40).
A partir de 1900, Batistas alemães, colonizadores Menonitas alemães, e Luteranos,
principalmente alemães em sua origem, quase chegaram a ser tolerados como igrejas
não-Ortodoxas. No entanto, eles também foram submetidos a diversos impedimentos
burocráticos, e os últimos foram legalmente confinados à região do Báltico e a certas
cidades maiores do império. Em cada caso, igrejas não-Ortodoxas foram proibidas de
aceitar convertidos dos Russos Ortodoxos.
Um amálgama ideológico de xenofobia, nacionalismo e triunfalismo Ortodoxo serviu
de justificativa para a grande variedade de medidas tomadas pelo Estado russo contra
cristãos não-Ortodoxos – e outras religiões também. Nicolau II, o último czar da
Rússia (1896-1917), e seu conselheiro reacionário, Konstantin Pobedonostsev,
Oberprokurator do Santo Sínodo Russo Ortodoxo (1880-1905), personificaram a
intolerância arraigada no Estado Russo e sua igreja de Estado. Ambos eram
ardentemente etnocênctricos e anti-semíticos, e temiam que expresões não-Ortodoxas da
fé comprometessem a viabilidade do domínio russo. As dificuldades enfrentadas pelos
evangélicos durante o mandato de Pobedonostsev abrangiam a discriminação para
empregos, tumulto nos cultos, impossibilidade de comprar ou arrendar terras para casas
de oração, multas, espancamentos, identificação em passaporte discriminada como
“Stundist”, falta de reconhecimento pelo Estado dos casamentos “stundist”, privação de
direitos parentais, exílio em outros países, prisão e deportação para o Transcaucaso e
para a Sibéria (Brandenburg 1974:123,125; Hefly 1979: 227; Sawatsky 1981:35-36).
Em 1884, Alexander III tinha ordenado pessoalmente o exílio do Coronel Pashkov.
Outro evangélico proeminente na capital, Ivan Prokhanov, conseguiu escapar da polícia
russa fugindo para o exterior em 1895. Antes de 1917, o pastor Batista Feodor
Kostronin passou nove anos na prisão e dezesseis no exílio, enquanto Vasili Ivanov-
Klyshnikov (mais tarde secretário da União Batista) foi preso trinta e uma vezes e
exilado duas (Brandenburg 1974:130).
A Revolução Russa de 1905 trouxe um alívio temporário aos não-Ortodoxos por meio
do Édito de Tolerância de Nicolau II (abril de 1905). Pela primeira vez na história
russa, todos os cidadãos do império tiveram garantida a liberdade de consciência,
inclusive o direito legal de deixar a igreja Ortodoxa e ir para outra igreja. No entanto,
assim que a ameaça imediata ao trono passou, Nicolau II gradualmente renegou seu
próprio Manifesto de Outubro de 1905 com suas provisões de governo representativo e
liberdades civis, inclusive a liberdade religiosa. Os evangélicos sofreram assédio e
discriminação crescentes, inclusive por censura, limitações no trabalho com os jovens, e
a exigência de permissão policial para reuniões Protestantes (frequentemente negadas).
Um clima de anti-Protestantismo criado pelo Estado, pela igreja do Estado e pela
imprensa influenciada pelo Estado levou a uma repressão não oficial, ou seja, a ação de
desordeiros, às vezes fomentada por padres, levando a ferimentos e mortes
(Brandenburg 1974:152; Sawatsky 1981:36). Somente a ineficiência de uma burocracia
inepta, num território espalhado em onze fusos horários salvou os evangélicos e outros
crentes não-Ortodoxos de uma perseguição mais sistemática.
A Primeira Guerra Mundial trouxe novas provações para os evangélicos, que foram
corretamente acusados de inclinação pacifista, mas incorretamente acusados de simpatia
para com os alemães. Autoridades do tempo da guerra colocaram os cultos evangélicos
sob vigia da polícia, fecharam casas de reunião, e prenderam e deportaram pastores. O
presidente da União Batista teve que se esconder na Ásia Central enquanto o líder
cristão evangélico, Ivan Prokhanov enfrentou o julgamento em 1916, mas foi
absolvido. Pastores russos da igreja Batista Alemã, Walter Jack e Karl Fullbrandt, foram
exilados na Sibéria e na Rússia norte-europeia, e William Fetler foi deportado para o
exterior (Brandenburg 1974:150, 157-58, 173).
Nas vésperas dos levantes revolucionários de 1917, deve se notar também, a Igreja
Russa Ortodoxa também sofreu suas próprias privações debilitantes. Desde Pedro o
Grande até Nicolau II, a igreja estatal padeceu em cadeias de veludo impostas pelo
Santo Sínodo que foi forçado a funcionar como um órgão do governo. Seus
oberprokurators civis – até mesmo os generais militares – impediram todas as tentativas
de reforma interna e renovação da igreja.
As vitórias comunistas na Revolução de outubro de 1917 e a Guerra Civil Russa (191821) levaram ao poder um regime terminantemente ateu que seria responsável pela
perseguição mais abrangente e mortal de cristãos – e de outras religiões – na história da
humanidade até hoje. Muito superior em tamanho, intensidade e precisão às
perseguições do Império Romano, a campanha anti-religiosa Soviética de 1917-1989
parece ter sido superada em consequências letais apenas por uma outra, a da China
Comunista desde 1949.
A Igreja Ortodoxa Russa, percebida pelo novo Estado Marxista como uma fonte
majoritária de oposição, foi submetida a um assalto especialmente impiedoso durante as
primeiras duas décadas do poder Soviético. As 54.147 igrejas Ortodoxas e as 25.593
capelas desde 1914 foram reduzidas a um número entre 100 e 300 até agosto de 1939
(Beglov 2008:68; Davis 2003:12-13; Ellis 1986: 4,14; Emel’ianov 204:3; Hefly
1979:270; Newton 1990:83; Pospielovsky 1988:66; Tsypin 1994:107). Até 1939, em
Moscou restavam apenas 15 a 20 paróquias ativas, de mais de 600; em Leningrado
restavam 5 de 401, em Tambov, 2 de 110; e na Diocese de Kiev, 2 de 1.600 (Davis
2003:12-13; Pospielovsky 1988:66; Tsypin 1994:107).
De 1.025 monastérios e conventos Ortodoxos ativos em 1914, menos de vinte
permaneciam até 1943. Somente quatro bispos tinham algum grau de liberdade, embora
vivessem constantemente sob a ameaça iminente de serem presos ou pior (Davis
2003:11,64; Hefty 1979:27; Zugger 2001: 247) De aproximadamente 51 mil padres em
1914, não mais que 300 ou 400 ainda estavam servindo suas paróquias em 1939
(Beeson 1982:58; Davis 2003:129). De mais de 1.000 padres na região de São
Petersburgo em 1917, apenas 15 tinham a liberdade para realizar missas na renomeada
Região de Leningrado em 1937. Forças alemãs avançando pela Ucrânia em 1941
encontraram somente dois padres Ortodoxos que ainda restavam em duas igrejas abertas
na Diocese de Kiev, de 1.435 padres em 1917 (Davis 2003:11,13).
As perdas institucionais e humanas estarrecedoras da igreja Ortodoxa devem também
ser necessáriamente calculadas em termos de prisões, execuções e trabalho forçado,
com as taxas de mortalidade na prisão chegando até a 85 porcento (Pospiedovsky
1984:177). O patriarca Aleksei II estimou que até o fim dos anos 30, o governo
Comunista Russo foi responsável pelas mortes de aproximadamente 80 mil membros
do clero, monges, e freiras Ortodoxos (Davis 2003:11; Hefly 1979:270). Execuções de
padres somente em 1918-19 e 1930-31 foram estimadas em mais de 15.000 e 5.000,
respectivamente, sem contar as mortes na prisão e nos campos de trabalho forçado
(Emel’ianov 2004:2-3). Além disso, o número de membros das igrejas Ortodoxas que
pereceram por sua fé nas décadas entre as guerras deve ter chegado pelo menos às
centenas de milhares (Shkarovskii 1999, 93).
Antes da Primeira Guerra Mundial, a população da Rússia czarista incluia mais de cinco
milhões de Católicos Romanos, com a maior concentração na Ucrânia Ocidental, na
Polônia dividida, na Bielorússia, na Lituânia e na Látvia (Chaplitskii e Osipova
2000:xxii; Zugger 2001:21-22, 36, 42, 45, 264). As perdas territoriais no tempo da
guerra isolaram a Rússia de porções significativas de sua fronteiras ocidentais com sua
grande população Católica, de tal forma que, até 1917, o novo Estado Soviético tinha
apenas um número muito reduzido de 1.4 milhões de Católicos. A hostilidade renitente
do Kremlin para com o Vaticano e o medo dos quinta colunistas nas fronteiras
ocidentais vulneráveis quase levaram ao completo fim institucional do Catolicismo em
solo Soviético em duas décadas. A repressão Comunista reduziu o número de igrejas
Católicas ativas de 980 em 1917 a duas paróquias para exibição em Moscou e
Leningrado em 1939 (Beeson 1982:23; Solchanyk e Hvat 1990:53). O número de
padres também caiu drasticamente de 912 em 1917 a dois em agosto de 1939. Em
1934, a Rússia Soviética não tinha nenhum bispo Católico, de 21 em 1917; nenhuma
escola paroquial ou instituição social funcionando, de 300 a 500 em 1917, e nenhum
Seminário funcionando, de quatro que operavam previamente (Beeson 1982:123; Hefly
1979:232).
Inicialmente, os protestantes se beneficiaram da queda dos Romanovs e da fixação
Bolshevik sobre o que percebiam como ameaça da Ortodoxia. A relativa negligência
benigna do novo regime permitiu um crescimento evangélico dramático nos anos 20.
Batistas e cristãos evangélicos, que juntos eram um pouco mais de 100 mil membros em
1905, chegaram a 250 mil até 1921, e 500 mil membros, com até um a dois milhões
incluindo as crianças e seguidores até 1929 (Elliott 1981:17; Elliott 1992:192; Elliott
2003:26; Sawatsky 1981:27; Sawatsky 1992:240).
A década de 30, porém, trouxe a repressão esmagadora na forma do fechamento
indiscriminado de igrejas, prisões, sentenças para encarceramento e campos de trabalho
forçado, e execuções. A impiedosa e indiscriminada campanha antirreligiosa daquela
década levou à total eliminação da vida institucional para os Batistas, Luteranos,
Menonitas, Metodistas, Pentecostais e Adventistas do Sétimo Dia. Na região de
Leningrado, somente em 1937-38, trinta e quatro pastores e ativistas cristãos
evangélicos e Batistas perderam suas vidas (Nikol’skaia 2009:105). Uma igreja cristã
evangélica solitária em Moscou pode ter sido a única congregação Protestante ainda
funcionando legalmente em 1939, de mais de 7.000 em 1928 (Elliott 2003:26; Sawatsky
1981:48; Sawatsky 1992:243).
Os anos 30 também testemunharam um crescimento da propaganda antirreligiosa
promovida pelo Estado, contra todo tipo de fé religiosa. O regime Soviético se
empenhou extraordinariamente e investiu prodigiosas quantias neste esforço, por
exemplo com sua Liga dos Militantes sem Deus, cuja membresia atingiu 5,5 milhões em
1932. Embora a campanha antirreligiosa tenha sido bem sucedida no fechamento de
igrejas, não conseguiu tornar ateus os milhões de crentes. Eram tantos que os resultados
a este respeito foram suprimidos do censo de 1937 (Powell 1975ª:35,134).
As divisões da Europa Oriental precipitadas pelo Pacto Nazi-Soviético de agosto de
1939 incluiam a ocupação da Polônia Oriental (1939), e dos Estados Bálticos da
Estônia, Látvia e Lituânia (1940) pelo Exército Vermelho. Estes ganhos territoriais
introduziram na União Soviética temporariamente muitos milhões de Católicos
Romanos, Ortodoxos e Protestantes, incluindo Luteranos, cristãos Evangélicos, Batistas,
Petencostais, Moravianos, Metodistas, Igreja de Cristo, e Igreja Reformada. A
repressão religiosa começou rapidamente nessas regiões recentemente anexadas, mas
foi interrompida pela invasão da União Soviética pela Alemanha em junho de 1941.
Na sua maior parte, as políticas de ocupação nazista eram tão draconianas quanto as do
Kremlin, mas os alemães permitiram a reabertura de milhares de igrejas.
Em 1943, Stalin realizou uma reviravolta surpreendente, fazendo concessões aos crentes
que parecem ter sido motivadas pelo desejo de 1) facilitar os esforços de guerra; 2)
contrabalancear o entusiasmo que acompanhou o reavivamento da igreja nos territórios
ocupados pelos alemães; 3) utilizar a Igreja Ortodoxa na supressão do Catolicismo do
Rito Oriental em terras anexadas no fim da guerra; e 4) empregar a igreja na expansão
das políticas externas Soviéticas. Depois de convocarem o Metropolitano Sergei para
uma reunião tarde da noite com Stalin, em setembro de 1943, as autoridades, sob as
órdens de Stalin, apressaram a reunião de um Concílio Ortodoxo um mês mais tarde,
que elegeu Sergei como patriarca.
Até 1950 Stalin tinha permitido que o Patriarcado de Moscou reabrisse mais de 14 mil
igrejas, dirigidas por uns 12 mil padres (Davis 2003:126,130). Além disso, a Igreja
Ortodoxa Russa conseguiu reestabelecer 67 monastérios e conventos, oito seminários, e
duas academias teológicas (Beeson 1982:58). Para ter um controle mais conveniente,
Stalin também engenhou uma fusão dos Cristãos evangélicos e dos Batistas em
outubro de 1944. O reconhecimento do Estado desta nova denominação foi tal que até
1950 já havia 5.400 igrejas e 512.000 membros, com o número de aderentes relatado
como “muitas vezes maior” (Sawatsky 1981:67. Ver também Brandenburg 1974:198;
Newton 1990:83). Ao mesmo tempo, o Catolicismo Romano dentro da União Soviética
conseguiu um novo fôlego de vida, não por concessões do Kremlin, mas simplesmente
pela absorção da Ucrânia ocidental, da Bielorrússia, da Lituânia e da Látvia, depois da
Segunda Guerra Mundial, que incluiam mais Católicos do que se poderia extirpar.
O Catolicismo do Rito Oriental, no entanto, foi destinado por Moscou para a
aniquilação total, novamente, com a colaboração do Patriarcado de Moscou. Em 1946,
nas regiões da Ucrânia ocidental tomadas da Polônia e em 1949 na Ucrânia
Transcarpatiana, tomada da Checoslováquia, o Catolicismo do Rito Oriental deixou
novamente de existir legalmente. Assim, a Ortodoxia Russa conseguiu milhões de
aderentes compulsórios e milhares de igrejas. No processo, milhares de padres
Católicos do Rito Oriental foram “convertidos” à Ortodoxia Russa, esconderam-se, ou
foram presos e deportados para a Síbéria para os campos de trabalho forçado
(Bociurkiw 1996:148-228; Chaplitskii e Osipova 2000:liv-lv; Elliott 1985:214-16;
Solchanyk e Hvat 1990:54-56). Todos os sete bispos da igreja foram presos e
despachados para campos soviéticos, sendo que somente um, o Cardeal Joseph Slipyi
conseguiu sair vivo da Sibéria (Chaplitskii e Osipova 2000:lvii; Elliott 1985:214;
Pelikan 1990:169).
As concessões religiosas de Stalin no tempo da guerra, que não se extenderam aos
Católicos do Rito Oriental, também não se aplicaram aos Estados Bálticos recém
anexados. Ao invés disso, depois de sua reocupação pelo Exército Vermelho em 1944,
a Estônia, a Látvia e a Lituânia passaram por uma repressão religiosa sistemática. O
fechamento de igrejas, aprisionamentos, interrogatórios brutais, execuções, deportações
em massa para a Ásia Central e para a Sibéria, com uma alta porcentagem de mortes no
caminho: estes foram os destinos de Católicos do Báltico, Luteranos, e outras
comunidades Protestantes menores também. Em 1940, uma igreja Católica Lituana
forte tinha 1.180 igrejas, um pouco menos que 1.500 padres, 1.530 monges e freiras em
158 monastérios e conventos, e 4 seminários. Em 1979 só sobravam 574 igrejas
funcionando; em 1969 somente 700 padres celebravam missas e em 1982 todos os
monastérios e conventos já haviam sido fechados e somente um seminário com
dificuldades permanecia aberto em Kaunus (Beeson 1982:120, 125-26; Bordeaux
1979:152, 166). Na Látvia depois da Segunda Guerra Mundial, o número de igrejas
Católicas caiu de 500 a 179 en 1964 (Popielovsky 1988: 152; Solchanyk e Hvat
1990:59).
Nikita Khrushchev, um dos principais tenentes de Stalin na supressão da resistência
armada e na oposição religiosa na Ucrânia pós-guerra, acabou sucedendo seu mentor no
Kremlin. Sua campanha antirreligiosa de 1959 a 1964 foi responsável pela segunda
mais intensa perseguição de cristãos na era Soviética, ultrapassada apenas pela que foi
ainda mais repressiva nos anos 30. Das 13.325 igrejas Ortodoxas em funcionamento
em 1959, somente 7.600 continuavam abertas em 1964, uma queda de 47 porcento
(Davis 2003: 126. Ver também Tsypin 1994: 160). Ações do Estado reduziram o
número de padres Ortodoxos de 12.000 em 1950 a 10.237 em 1960, a 6.800 em 1966
(Davis 2003:130-31; Tsypin 1994:160, com números um pouco menores). O número
de Seminários Ortodoxos caiu de 8 em 1955 a 3 em 1964 (Davis 2003:181-82; Ellis
1986:120), enquanto monastérios e conventos Ortodoxos caíram de 64 em 1957 para 18
em 1964 (Davis 2003:165). Paralelamente às perdas Ortodoxas, os Cristãos
Evangélicos-Batistas tiveram uma redução das suas igrejas em funcionamento de 5.400
em 1960 a 2.000 em 1964 (Steeves 1990:84).
A campanha antirreligiosa de Khrushchev envolveu não somente a utilização
disseminada do aparato administrativo e da polícia no fechamento de igrejas,
monastérios e Seminários, também mobilizou a mídia, escolas, universidades e até
hospitais psiquiátricos na difamação dos cristãos que na maioria não podiam se
defender. No entanto, o que diferenciou mais claramente a repressão de Khrushchev do
assalto à igreja de Stalin foi a emergência dos movimentos de oposição de Ortodoxos e
Protestantes que o Kremlin não foi capaz de eliminar.
Mesmo antes da campanha de Khrushchev, o Catolicismo do Rito Oriental tinha
estabelecido um precedente desde 1946, por se recusar a desaparecer. Na Ucrânia
ocidental uma igreja de catacumba desafiadora competia vigorosamente com a
Ortodoxia Russa imposta pelo Estado. Num desafio impressionante à polícia do Estado,
os Católicos do Rito Oriental participavam em cultos clandestinos, sustentavam monges
e freiras clandestinos e eram sustentados por eles, operavam Seminários secretos, e
circularam protestos contra as múltiplas violações da liberdade de consciência que
sofriam (Elliott 1985:216-18; Zugger 2001:443-44). O mesmo pode ser dito dos
Católicos Lituanos que, apesar de terríveis ataques do Estado, organizaram uma
oposição determinada contra as campanhas antirreligiosas Soviéticas, instigados pela
fusão da antiga Russofobia e da fé, assim como acontecia na vizinha Polônia.
Movimentos dissidentes Ortodoxos e Protestantes de porte começaram a emergir no
início dos anos 60. De um lado, o Kremlin instruiu a Igreja Ortodoxa Russa e algumas
outras igrejas a participarem no Concílio Mundial de Igrejas (1961-62), exigindo que
esses grupos cativos proclamassem no exterior as intenções pacíficas da política externa
Soviética e a “liberdade religiosa” na URSS. Por outro lado, oponentes da manipulação
governamental da religião começaram a se manifestar. Entre os corajosos Ortodoxos
que condenaram a passividade e as concessões do Patriarcado de Moscou (e foram
presos por um ano por isso) estavam: Anatoly Levitin-Krasnov (1949, 1969, 1972), o
Arcebispo Yermogen ( aposentou-se à força num monastério, 1965) , Alexander
Solzhenitsyn (1974), Alexander Ogorodnikov (1978), Padre Gleb Yakunin (1979), Lev
Regelson (1980), Padre Dmitri Dudko (1980), e Irina Ratushinkaya (1982).
Semelhantemente, oponentes do domínio do Estado sobre a vida da igreja Protestante
começaram a desafiar as autoridades eclesiásticas e civis. Em 1960, oficiais Soviéticos
intimidaram líderes Cristãos Evangélicos-Batistas (CEB) para que publicassem uma
Carta de Instrução às congregações locais, impedindo a participação de crianças no
culto e advertindo contra “tendências missionárias prejudiciais” (Sawatsky 1981:139).
A reação foi uma absoluta revolta que levou a uma divisão da denominação em agosto
de 1961 (Bourdeaux 1968). Os Batistas Dissidentes, também conhecidos como
Initsiativniki (o Grupo Iniciativa), enfrentaram uma perseguição ferrenha pelo Estado e
a prisão de seus líderes e ativistas, incluindo (com um ano de prisão): Peter Rumachik
(1961), A. F. Prokofiev (1962), Aida Skripnikova (1962), Georgi Vins (1966), Gennadi
Kriuchkov (1966), e Lydia Vins (1969). Adventistas do Sétimo Dia também tiveram
uma experiência semelhante de divisão, com resultados idênticos, incluindo a prisão de
seus líderes, com Vladimir Shelkov (1895-1980) se tornando especialmente conhecido
por seu desafio corajoso e vinte e cinco anos de prisão (Beeson 1982:96-97; Elliott
1983; Pospielovsky 1988:158; Sapiets 1990:68-134).
A maioria dos Pentecostais já haviam recusado o reconhecimento legal há muito tempo
sob a cúpula da União CEB reconhecida pelo Estado. Como resultado, eles também
sofreram assédio frequente, detenções, prisões, e fechamento de igrejas durante a
campanha antirreligiosa de Khrushchev, mas antes e depois dela também. A situação
dos Pentecostais é representada pela perseguição sofrida pelos “Sete Siberianos” (Peter
e Augustina Vashchenko, suas filhas Lida, Lyuba e Lila, e Maria Chmykhalova, e seu
filho Timothy). Vários membros dessas pacientes famílias foram vítimas de prisões,
tratamento psiquiátrico forçado e até mesmo abdução das crianças pelo Estado. Em
1978, em desespero, oito membros dessas famílias Pentecostais viajaram a Moscou,
com sete conseguindo passar pelos guardas Soviéticos para entrar na Embaixada
Americana. Ali permaneceram no limbo, até que emigraram , finalmente, para os EUA
em 1983 (Hill 1991:25-40; Pollock 1979).
Uma forma notávelmente bem sucedida de dissensão, empregada não somente pelos
Sete Siberianos, mas por todas as confissões Cristãs, especialmente desde os anos 60,
foi “samizdat”, um tipo de literatura “auto-publicada” de protesto, distribuída por meios
clandestinos. Exemplos marcantes incluem, de Alexander Solzhenitsyn Carta ao
Patriarca Pimen na Quaresma, de abril de 1972, a Crônica da Igreja Católica da
Lituânia , uma série de publicações que sobreviveu por um bom tempo (1972-88), o
protesto de 1975 dos Padres Gleb Yakunin e Lev Regelson diante do Concílio Mundial
de Igrejas, e a produção prodigiosa do dissidente Adventista Vladimir Shelkov e o da
Imprensa Batista dissidente Khristianin (de 1971 em diante), que imprimiu mais de um
milhão de livros e brochuras até o fim dos anos 80 (Nikol’skaia 2009:289-91; Rowe
1994:172).
A política religiosa Soviética sob Leonid Brezhnev (1964-82), Yuri Andropov (198284) e Konstantin Chemenko (1984-85) pode ser melhor descrita como uma mistura de
incentivo e castigo. Esta estratégia diferenciada significava pequenas concessões
simbólicas para igrejas legalmente reconhecidas, tal como a permissão do Estado para
que os Ortodoxos aumentassem o número de bispos, o lançamento de um curso por
correspondência do Seminário para os Batistas, e a impressão e importação de algumas
Bíblias e hinários para ambos. Ao mesmo tempo, o Kremlin foi tenaz em sua repressão
dos Ortodoxos, Católicos e Protestantes clandestinos. Mas o reconhecimento do Estado
dava pouca proteção, porque o número de Ortodoxos registrados legalmente caiu de
7.600 em 1964 para 6.754 em 1985, e o número de sacerdotes Ortodoxos caiu de 6.800
em 1966 para aproximadamente 6.000 em 1988 (Davis 2003:126, 131-32. Ver também
Sawatsky 1992:247-48).
Em março de 1985, a liderança da União Soviética passou para as mãos de Mikhail
Gorbachev, de 54 anos. Suas campanhas de glasnost (abertura) e perestroika
(reestruturação) iniciaram uma nova era, não somente nas arenas política e econômica,
mas também nas relações entre igreja e Estado. Novas liberdades para celebrar o
milênio do Cristianismo na Ucrânia e na Rússia em 1988 foram acompanhadas da
libertação de todos os prisioneiros de consciência (1986-89), de um fim à censura
religiosa, da importação de Bíblias em grande escala, de um fim às interferências sobre
as transmissões em ondas curtas de caráter religioso, e da permissão para que alguns dos
cristãos perseguidos emigrassem (Elliott 1989 e 1990). Em 1989, a Igreja Católica do
Rito Oriental conseguiu sua legalização. Em 1990, o Parlamento Soviético (em 1º de
outubro) e o Parlamento da República Russa (em 25 de outubro) adotaram leis sobre a
liberdade de consciência comparáveis em sua generosidade às existentes em todo o
mundo. E em 1991, o Kremlin aboliu seu maléfico Conselho para Assuntos Religiosos
(Ellis, 1996:157-63, 166).
No entanto, assim como o Édito de Tolerância de Nicolau II logo foi substituído por
restrições renovadas sobre os cristãos não-Ortodoxos, assim também, nos anos 90, os
Ortodoxos, nacionalistas e Comunistas fizeram questão de prejudicar a livre expressão
da fé de igrejas e missionários não-Ortodoxos. Já em 1992, o Patriarca Aleksei II pediu
que a legislação limitasse o trabalho missionário estrangeiro na Rússia (Elliott 1997b).
Finalmente, em 1997, os esforços concertados do Patriarcado de Moscou de restringir
as atividades de missionários e de religiões “não tradicionais” foram recompensados
com legislação que, se fosse imposta como a hierarquia Ortodoxa desejava, teria
reduzido dramaticamente as liberdades religiosas adquiridas através das leis de 1990
sobre a liberdade de consciência. Mas, uma lacuna não intencional na legislação
permitiu que igrejas se filiassem a “associações religiosas centralizadas” que as
isentaram das provisões mais onerosas da lei. Além disso, uma decisão da Corte
Constitucional Russa de 1999 colocou de lado outras provisões discriminatórias da lei.
No entanto, a intenção da lei Russa e das decisões da corte nunca tiveram tanta
influência quanto o preconceito e a arbitrariedade dos administradores encarregados de
sua implementação. Como resultado, o clima de suspeita de religiões não Ortodoxas,
encorajado pelo Patriarcado de Moscou e pela imprensa desde 1990, resultou em
assédio e arbitrariedades por parte de oficiais locais e federais no seu tratamento de
Católicos e Protestantes (Elliott 1997ª; Elliott 1999; Elliott 2000).
No início do século XXI, os cristãos não Ortodoxos se veem novamente diante de um
aumento de restrições à liberdade de consciência. A Igreja Ortodoxa, o Estado e a
imprensa afirmam que a lealdade e o patriotismo de crentes não Ortodoxos são
suspeitos e que eles e seus amigos missionários encobrem espiões a serviço de países
estrangeiros (Uzzell 2003). Assaltos atuais à liberdade religiosa de cidadãos não
Ortodoxos na Rússia – com ecos familiares do passado – incluem dificuldades
frequentes para comprar, renovar, e alugar propriedades para culto, negação crescente
de residência para missionários, discriminação no emprego, e aumento da exclusão de
Católicos e Protestantes da praça pública, capelania militar e do ministério em
orfanatos, escolas, e lares para idosos (Elliott 2005).
Depois da divisão da União Soviética em 1991, todas as quinze repúblicas
anteriormente Soviéticas adotaram constituições e legislação garantindo a liberdade de
consciência. Porém, embora alguns Estados sucessores tenham, em grande parte,
honrado as liberdades civis de seus cidadãos (Estônia, Látvia, Lituânia e Ucrânia),
muitos outros não o fizeram. Os violadores mais flagrantes da liberdade de consciência
são o Turcomenistão, Uzbequistão, Tadjiquistão e a Bielorrússia, com a perseguição de
religiões indesejáveis comparáveis em muitos aspectos a alguns dos piores dias da
repressão Soviética. A Rússia, o Cazaquistão, o Quirguistão e a Moldávia ocupam uma
posição média: na maior parte não tão opressiva às religiões desfavorecidas quanto era
comum na União Soviética, mas, na prática, muito longe de seus compromissos
domésticos e internacionais de proteger a liberdade religiosa de seus cidadãos (Forum
18; Lukin 2011; Marshall 2008).
A perseguição de cristãos na experiência Russa, Soviética e Pós-Soviética foi tão vasta,
apesar de alívios temporários, e tão persistente que a solidariedade pode ficar
entorpecida diante de estatísticas tão estarrecedoras. Indivíduos cristãos que
enfrentaram a opressão com coragem ou que morreram apegados à sua esperança em
Cristo podem nos comover mais do que os milhões que foram martirizados, muito além
da nossa capacidade de compreensão.
Em 1967, o jornal antirreligioso, Nauka i religiia (Ciência e Religião) reclamou do caso
de uma aluna do segundo ano procedente de um lar cristão. Sua professora tinha
explicado em sala de aula que os cosmonautas russos tinham viajado 300 kilômetros no
espaço e não tinham visto sinal de Deus. Esta educadora olhou para sua aluna crente, e
perguntou se esta evidência do cosmos a convencia de que não havia Deus. Diante da
intimidação, de pé, ao lado de sua carteira, com os colegas assistindo, esta criança de
oito anos teve a presença de espírito dada por Deus para responder: “Não sei se 300
kilômetros é muito, mas sei muito bem que apenas aqueles que são puros de coração
veem a Deus” (Powell, 1975b:155; Mateus 5,8). Será que ainda precisamos perguntar
como os pequeninos nos guiam?
Lydia Mikhailovna Vins suportou mais de três anos de prisão (1970-73) por seu papel
na fundação e administração do Conselho de Parentes de Prisioneiros, um
empreendimento notável que informava o Ocidente de todo tipo de violação pelos
Soviéticos dos direitos religiosos dos Batistas dissidentes. O sofrimento que ela teve de
suportar por sua fé é difícil de absorver: seu marido, Peter, um pastor Batista, foi preso
três vezes (1930, 1936 e 1937) e morreu num campo de trabalhos forçados na Sibéria
em 1943; seu filho, Georgi, um dos principais pastores Batistas dissidentes, serviu duas
penas de prisão por sua fé (1966-69 e 1974-79); sua nora, Nadezhda, formada na
universidade de filologia, só conseguiu um emprego como vendedora de sorvetes; e
seus netos, por causa de sua fé, sofreram assédio na escola e o desemprego depois.
Apesar de suas “três gerações de sofrimento” Lydia Vins escreveu para seu filho na
prisão (4 de outubro de 1967): “Acredite no homem. Creia que existe em todos um
lugar, debaixo de seus sentimentos maléficos, onde a verdadeira face de sua origem
divina pode ser vista. As pessoas acham isso pouco prático e muitas vezes... mas é
muito bom não guardar rancor mesmo diante dos sofrimentos da vida” (Vins 1975:9091. Ver também Vins 1976:89-97).
Em 1974, a KGB prendeu Nijole Sadunaire por fazer cópias com papel carbono do
Crônica da Igreja Católica da Lituânia. Interrogada, torturada e condenada, num
julgamento fechado, a três anos em um campo de trabalho forçado de regime rigoroso,
seguidos de três anos de exílio na Sibéria, ela nunca entregou o nome de seus colegas
dissidentes Católicos. Sua autobiografia espiritual, contrabandeada para o Ocidente e
publicada sabiamente sob o título de Radiance in the Gulag (Uma luz no Gulag) , é um
profundo testemunho de sua fé indomável. Ferida em sua carne, mas destemida em seu
espírito, ela deixava seus captores atônitos diante de sua paciência e amor: “Este é o dia
mais feliz da minha vida. Estou sendo julgada pela verdade e por amor aos meus
concidadãos... Minha sentença será meu triunfo! ... Como alguém poderia não se
regozijar quando o Deus Todo Poderoso garantiu que a luz vence as trevas e que a
verdade triunfará sobre o erro e a falsidade!” Depois do julgamento de Nijole, seus
jovens guardas Russos, que não compreendiam o Lituano, lhe disseram: “Por dois anos
temos escoltado pessoas para o julgamento, e nunca vimos nada igual. Você era o
procurador, e todos eles eram como criminosos condenados à morte! O que foi que
você disse durante o julgamento que os amedrontou tanto?” (Sadunaite 1987:57-58).
No dia 16 de fevereiro de 1960, numa conferência internacional de desarmamento
promovida pelo Kremlin, o Patriarca Ortodoxo Russo Aleksei I proferiu um discurso
que provavelmente foi escrito para ele pelo Metropolitano Nikolai. Nele, o Patriarca,
nos primeiros ímpetos da terrível campanha antirreligiosa de Khrushchev, declarou
ousadamente que “as portas do inferno não prevalecerão contra a igreja de Cristo”
(Fletcher 1968:188; Mateus 16,18). Ao invés de descontar sua ira sobre Aleksei, que
era muito visível, o regime Soviético exerceu sua retaliação sobre Nikolai, o primeiro
tenente do patriarca. O Metropolitano não foi mais visto em público depois de fevereiro
de 1960. Nikolai “se demitiu” de seu posto como presidente do Departamento de
Relações Externas Russo Ortodoxo no dia 21 de junho de 1960. A seguir, a igreja
aceitou seu “pedido” de demissão de seus compromissos como metropolitano no dia 15
de setembro de 1960. Sua morte no dia 13 de dezembro de 1961, se deu após uma
hospitalização em isolamento tão restrito que nem mesmo sua irmã, uma freira
Ortodoxa, teve permissão de vê-lo. Desde então, há suspeitas de uma morte por causas
não naturais (Fletcher 1968: 199-201).
Stalin e sua Liga dos Militantes sem Deus já se foram. Khrushchev, que falhou em sua
promessa de apresentar o último cristão diante das câmeras de TV, e sua Sociedade
Znanie (Conhecimento) também já se foram. A Igreja (Ortodoxa Russa, privilegiada
em detrimento próprio, Protestante e Católica, restritas sem utilidade), no entanto,
permanece. De fato, as portas do inferno não prevaleceram.
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. Contraste o tratamento do governo Russo da Ortodoxia Russa antes de 1917 e no
período entre guerras, de 1917 a 1939.
2. Compare e contraste as campanhas antirreligiosas dos anos 30 e entre 1959 e
1964.
3. Quais semelhanças pode haver entre atividades dissidentes de Ortodoxos,
4.
5.
6.
7.
Católicos e Protestantes dos anos 60 aos anos 80? Como as igrejas eram
manipuladas às vezes umas contra as outras?
Que vantagens e desvantagens têm os cristãos Ortodoxos, Católicos e
Protestantes no período pós-Soviético?
O que havia de original e o que havia de comum nas experiências sofridas por
Lydia Vins, Nijole Sadunaire e Metropolitan Nikolai?
Que lições sobre a perseverança e a resistência, os cristãos nos cinco países
comunistas restantes poderiam aprender das experiências de cristãos na
Rússia/União Soviética?
Elliott se refere a ondas de repressão de cristãos durante a era Soviética (19171989) como as mais mortais em toda a história até então. Qual é o significado
da perseguição bem documentada de cristãos na Rússia tanto muito antes do
Comunismo quanto depois de seu fim? Por que, apesar de promessas de maior
liberdade depois da queda da União Soviética, a experiência de muitos cristãos
não Ortodoxos apresenta “ecos familiares do passado”?
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Universidade de Kentucky. É o editor fundador do East-West Church and Ministry
Report (Relatório de Ministério e da Igreja Oriental-Ocidental)
(www.eastwestreport.org). Professor aposentado de história, o Dr. Elliott serviu
anteriormente como Diretor do Instituto de Estudos Cristãos Oriental-Ocidental da
Faculdade Wheaton, e como Diretor do Centro Global Universidade de Samford.
OS MÁRTIRES DE RUANDA
Uma nova definição de perseguição e martírio
Célestin Musekura
A dificuldade de compreender a perseguição e o martírio em Ruanda foi
mencionada para mim por meu amigo Antoine Rutaysire por causa da ligação
desses assuntos aos tumultos políticos e tribais que acontecem no país. Além
disso, a definição tradicional de perseguição e martírio cristãos tem sido
questionada pelas alterações na intensi-dade, forma, métodos, intenções,
algozes, etc. Algumas perseguições têm sido equi-paradas ou confundidas com
violação de direitos humanos sem levar em consideração o impacto e a
influência da religião no contexto.
Houve certo grau de perseguição em Ruanda durante as épocas agitadas
como nos dias de revolução (1959-1963), ou quando as guerras tribais entre os
tutsis — rebeldes dominados conhecidos como Frente Patriótica Ruandesa
(RPF) — e os hutus, exército dominado (outubro de 1990 a março de 1994), os
dias de genocídio contra os Tutsi e os Hutus moderados (7 de abril a julho de
1994), e o período de massacres de milhares de Hutus e congoleses que
viviam em Ruanda, em campos de refugiados e em regiões remotas do leste
de Congo (abril de 1994 e 2008). A perseguição e o martírio acontecem por
causa do que os líderes dizem (seja certo ou errado) ou deixam de dizer. A
interpretação do que eles disseram ou do que eles quiseram dizer. Para os
propósitos deste artigo, vou me referir a esses três tipos de mártires de
Ruanda: os pastores e líderes de igreja que foram perseguidos e mortos por
causa de seu testemunho de fé; aqueles que foram martirizados porque
reafirmaram a verdade e, portanto, desafiaram seus algozes; e aqueles que
morreram porque se sentiram na obrigação de proteger seus irmãos e foram
mortos junto com eles. Deixamos claro que os bispos, sacerdotes, pastores e
líderes de igreja que estão presos justa e corretamente por causa de sua
participação no genocídio e em assassinatos antes, durante, e depois do
genocídio de Ruanda não são considerados mártires ou vítimas de perseguição
religiosa.
Antes de nos concentrarmos na primeira categoria de mártires de Ruanda, é
importante esclarecermos que o martírio, na definição tradicional, é
considerado relacionado às forças externas à igreja que buscam destrui-la.
Infelizmente, no caso de Ruanda, os que perseguiram e continuam
perseguindo a igreja e aqueles que mataram os bispos, sacerdotes e líderes
leigos tutsi e hutus eram, em muitos casos, membros de igrejas católicas
protestantes. A perseguição em Ruanda é uma perseguição, assassinato e
martírio por motivos políticos, cujos objetivos não eram necessariamente
exterminar o cristianismo, mas silenciar a voz da igreja ou eliminar
testemunhas idôneas de assassinatos, genocídio e massacres, impetrados por
diversos grupos de guerrilha, tribos e grupos políticos. O que aconteceu aos
líderes de igreja, bispos, padres, pastores e líderes leigos ruandenses redefine
o significado e os pressupostos relacionados à perseguição e martírio.
Mártires com testemunhos fiéis
Nos anos que se seguiram à independência de Ruanda dos belgas e
especialmente durante o tempo em que os poderes políticos em Ruanda eram
controlados por homens fortes da região norte, qualquer bispo, líder de igreja
ou membro do clero que ousasse falar contra as políticas do regime hutu era
intimidado, perseguido e, em alguns casos, desaparecia misteriosamente ou
era encontrado morto. Toda vez que visito o memorial do genocídio na Igreja
Nyamata, vou ao túmulo da Irmã Tonia Locatelli, uma freira italiana que foi
assassinada pelo regime hutu em 1992, quando tentou alertar a comunidade
internacional sobre o perigo iminente de exterminação de tutsis em Bugesera
na província leste de Ruanda. Irmã Locatelli é um bom exemplo de testemunha
fiel e serva de Deus e do povo.
Outros líderes de igreja foram perseguidos, assassinados e torturados só por
pertencerem ao “grupo ou tribo errado(a)”, sem necessariamente fazerem ou
deixarem de fazer, sem dizer ou deixar de dizer algo errado. O compilador do
“Today’s [unofficial] Martyrs of the Roman Catholic Church”1 faz um comentário
interessante sobre esses mártires de Ruanda que foram mortos por
“guerrilheiros, algozes não-identificados, guerrilheiros hutus, militantes, etc.”.
Porque os líderes políticos de Ruanda se consideravam cristãos e se
identificavam como cristãos, eles não querem ser vistos como perseguidores e
torturadores e assassinos de líderes religiosos. Eles preferem usar meios para
intimidar, silenciar, aniquilar, e fazer desaparecer bispos, padres, pastores, e
líderes leigos — não por causa do que estes fizeram, mas simplesmente
porque pertencem à tribo indesejada. Eles são tratados como o resto da sua
tribo. Se o governo hutu está matando os tutsis, então os bispos, os padres, os
pastores e líderes leigos dos tutsis têm de ser mortos. Os líderes mortos por
motivos étnicos não são mártires no sentido estrito da palavra. No entanto,
entre esses líderes, há aqueles que foram mortos porque abominaram e
denunciaram publicamente, — em seus sermões, homilias e pregações — os
atos de injustiça perpetrados pelos líderes políticos contra ruandenses
inocentes. Eles foram violentados, intimidados, aprisionados e mortos porque
desempenhavam fielmente seus papéis. Porque se recusaram a ser
persuadidos a ficar do lado de suas tribos, ou de qualquer tribo, perderam suas
vidas — alguns misteriosamente e outros abertamente. Esses são os que
chamamos de mártires de Ruanda.
Padre Marcel era um sacerdote hutu na Igreja Católica Romana de Mubuga na
Província Oeste de Ruanda que foi morto por um soldado hutu por causa de
sua convicção como sacerdote. No relatório “Rwanda: Cases for Appeals”, a
Anistia Internacional relata uma conversa entre a vítima e o soldado, conforme
narrada por uma testemunha ocular:
— Você, o padre, saia! Os outros vão morrer.
— Mas essas pessoas são cristãs! Como você, como eu...
— É uma ordem do governo.
— Você não vai fazer jorrar sangue de católicos, não em uma igreja! (Anistia
Internacional, 2004, p. 10).
O diálogo termina quando padre Marcel, que tinha se ajoelhado implorando
pelas vidas dos tutsis, é morto esfaqueado. No dia seguinte, estima-se que
cerca de 4 mil tutsis foram massacrados por um grupo de cerca de 500
guerrilheiros com armas de fogo, granadas, e facões. Um líder cristão foi
assassinado porque ele não quis fazer o que era contra sua crença. Ele
preferiu morrer a entregar suas “ovelhas” ao matadouro. Em vez disso, o
sangue do pastor e o das ovelhas se tornaram um no altar.
Padre Marcel é mártir por causa de seu testemunho fiel. No mundo de hoje e
especialmente na África sub-saariana, perseguição e martírio continuarão a
resultar não na recusa de repudiar ou negar sua fé ou crença, porém mais
ainda na recusa de agir contra suas convicções cristãs. Padre Marcel se tornou
mártir de suas convicções enquanto muitos sacerdotes deixaram que seu povo
fosse morto ou até se envolveram nas mortes.
MARTÍRIO E ASSASSINATO POLÍTICO
A morte dos líderes de igreja, bispos, pastores, sacerdotes, freiras e líderes
leigos ruandenses tanto pelos governos e exércitos dominados pelos tutsis
quanto pelos hutus antes, durante e depois do genocídio levou os estudiosos
de perseguição religiosa e de direitos humanos a refletirem sobre a
possibilidade de categorizar essas execuções como perseguições ou apenas
como assassinato político. Um olhar mais cuidadoso para o número de bispos,
padres, pastores e freiras tutsis que foram mortos antes do genocídio, em suas
casas, paróquias, conventos, igrejas, carros, etc., revelará que os líderes
religiosos foram alvos deliberados, já que durante a pior violência tribal anterior,
de 1959 e 1963, os bispos, pastores, padres e freiras não foram mortos. E os
assassinos nunca perseguiram suas vítimas dentro das igrejas.
Ao investigar os assassinatos de tantos sacerdotes, pastores, freiras e outros
líderes religiosos tutsis, pelo governo hutus e guerrilheiros, os ativistas de
direitos humanos e pesquisadores Rakiya Omaar e Alex de Waal afirmam que
nos anos que precedem o genocídio, “havia uma quantidade desproporcional
de sacerdotes tutsis e muitas crianças tutsis, a quem foi negada a educação do
Estado sob o sistema de cotas, ingressaram nos seminários. Como os
sacerdotes têm uma certa influência, podiam dizer na igreja o que os tutsis não
poderiam dizer em qualquer outro lugar. A igreja permaneceu como o único
lugar que se mantinha aberto para que os tutsis pudessem falar livremente.
Logo foi crescendo a percepção de que os sacerdotes tinham um status social
privilegiado. Desde 1990, vários sacerdotes usavam o púlpito para denunciar
muitas injustiças. Mas alguns pagaram um alto preço por isso” (Omaar e de
Waal, 1994, p. 14). Omaar e de Waal continuaram a listar sacerdotes, freiras e
membros do clero específicos que foram mortos nos arredores de Kigali e nas
Prefeituras (Províncias) de Gisenyi, Butare e Kibungo.
A igreja católica em Ruanda qualificou os assassinatos de membros do seu
clero e de líderes leigos como perseguição e martírio. Os autores de “Rwanda:
The Persecuted Church; The Forsaken Nation” afirmam que “A igreja católica
em Ruanda tem milhões de razões para se alarmar com a perseguição, os
assassinatos, e as chacinas do seu clero em Ruanda. A quantidade de
sacerdotes e freiras que estão sendo assassinados pelos líderes ruandenses
não têm precedentes” (AfroAmerica Network, 1999). Os autores listaram os
bispos católicos (Ruandenses e estrangeiros) que foram mortos em Ruanda
entre 1994 e 1998):
Sua Eminência Vincent Nsengiyumva, Arcebispo de Kigali, morto pelo
Exército Patriótico de Ruanda (RPA, na sigla em inglês), em Gakurazo
em 5 de junho de 1994. Sua Eminência Joseph Ruzindana, Bispo de
Byumba, morto pelo RPA, em Gakurazo em 5 de junho de 1994. Sua
Eminência Innocent Gasabwoya, vigário-geral de Kabgayi, morto pelo
RPA, em Gakurazo em 5 de junho de 1994. Sua Eminência Thaddee
Nsengiyumva, Bispo de Kabgayi, morto pelo RPA em 5 de junho de
1994. Sua Eminência Phocas Nikwigize, Bispo de Ruhengeri, morto pelo
RPA em 30 de novembro de 1996, em Goma, República Democrática do
Congo. Sua Eminência Jean Marie Rwabirinda, vigário-geral de Kabgayi,
morto pelo RPA, em Gakurazo em 5 de junho de 1994. Sua Eminência
Andre Sibomana, Bispo em exercício de Kabgayi, misteriosamente
assassinado (aparentemente, pelo serviço secreto do RPA) em Kabgayi
em 9 de março de 1998. Capelão Antoine Hategekimana, morto em
Bukavu em novembro de 1996, pelo Exército Patriótico de Ruanda
(RPA), juntamente com Sua Eminência Christopher Muzihirwa-MweneNgabo, Arcebispo de Bukavu, República Democrática do Congo.
Capelão Fidel Gahonzire, Capelão do Hospital de Kabayi, morto pelo
RPA em Gakurazo em 5 de junho de 1994. Padre Guy Pinard,
canadense, morto pelo RPA em fevereiro de 1997, enquanto celebrava
uma missa. Sua Eminência Boniface Kagabo, Bispo em exercício de
Ruhengeri, morto pelo RPA em 26 de maio de 1998. Padre Vjeco Curic,
um frade da Croácia, foi morto misteriosamente por seu carona
(aparentemente do serviço secreto do RPA) em frente à igreja da
Sagrada Família de Kigali em 31 de janeiro de 1998.
A partir dessa lista de bispos e estrangeiros mortos, os repórteres
prosseguiram com outra extensa lista que fornece a distribuição dos sacerdotes
e freiras assassinados, por diocese. Além dessas listas que apresentam
principalmente os mártires católicos, há muitos bispos, sacerdotes, pastores,
evangelistas e líderes leigos protestantes que foram perseguidos, torturados,
intimidados, exilados e assassinados por causa de suas posições e influência.
Espera-se que o Concílio Protestante de Ruanda ou a Aliança de Evangélicos
de Ruanda coletem a lista e os nomes das vítimas de assassinato político,
perseguição e martírio em Ruanda antes, durante e depois do genocídio de
1994.
No entanto, a maioria dos cristãos de Ruanda dirão que em muitos casos,
essas mortes e torturas não foram apenas de ordem política mas também de
natureza religiosa. Os assassinatos não eram direcionados a cristãos ou
quaisquer grupos religiosos do país, mas antes a membros do clero e líderes
cristãos por causa de suas posições em relação a questões políticas e morais
que os líderes políticos estavam enfrentando. Se esses líderes contrariavam
(de forma certa ou errada) a agenda dos poderes políticos e do partido
majoritário, em seguida vinham perseguições e assassinatos. Outros líderes
religiosos foram escolhidos para serem intimidados, torturados, assassinados e
martirizados porque pertenciam a certa tribo e, portanto, “mereciam” o mesmo
tratamento dispensado aos seus companheiros de tribo ou precisavam ser
silenciados porque poderiam falar em favor das pessoas ou testemunhar contra
as atrocidades perpetradas contra os membros das comunidades e
congregações.
O objetivo desse tipo de perseguição era intimidar, silenciar, incutir a ideologia
política, esconder a verdade, apagar evidências, vingar-se, perseguir e matar.
Uma nação desprovida de consciência nacional, de vozes proféticas, de
zeladores dos valores morais e da justiça social, e desprovida de vozes contra
a crueldade, as violações de direitos humanos, a limpeza étnica, massacres e
genocídios, permite que o governo e os políticos façam o que bem entenderem.
A perseguição e martírio de cristãos ruandenses visava livrar a sociedade
desses olhos, voz e alma.
MÁRTIRES DA VINGANÇA E DA RETALIAÇÃO
Há aqueles que argumentam que o assassinato de muitos bispos, pastores,
freiras e sacerdotes católicos e protestantes foram motivados em grande parte
por vingança. As tropas e os guerreiros da RPF não esperavam encontrar nas
igrejas os corpos sem vida de seus parentes Tutsi que queriam salvar. Mesmo
os membros do clero que esconderam as pessoas em suas igrejas não
esperavam que a milícia e os guerreiros violassem a igreja. Historicamente e
na violência hutu-tutsi de 1959 e 1963, aqueles que se refugiaram nas igrejas
foram salvos em muitos casos. O que foi mais desumano e mais repugnante no
genocídio de 1994 é que as milícias não só entraram nos santuários para matar
tutsis mas também alguns membros do clero convidaram os assassinos a
entrarem na igreja para matar aqueles que eles tinham enganado ou escondido
dentro do templo. Infelizmente para a Igreja Católica, a maioria dessas igrejas
eram católicas, já que estas eram mais firmes, bem protegidas, e de alguma
forma, historicamente mais respeitadas pelos líderes políticos da época, já que
a maioria dos líderes hutus frequentavam a Igreja Católica.
[A ninguém torneis mal por mal; procurai as coisas honestas, perante
todos os homens. Se for possível, quanto estiver em vós, tende paz
com todos os homens. Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas
dai lugar à ira, porque está escrito: Minha é a vingança; eu
recompensarei, diz o Senhor. (Ro 12.17-19)]
O número de bispos, sacerdotes, freiras e líderes leigos católicos que foram
mortos pelo grupo RPF, dominado pelos tutsis, é maior em proporção,
velocidade e extensão do que o número de bispos protestantes perseguidos,
torturados, aprisionados e mortos. Os lugares onde a maioria desses bispos,
sacerdotes e freiras foram assassinados levam a pensar se isso era retaliação
ou destruição intencional do poder e da influência da Igreja Católica que
dominava e influenciava a política em Ruanda e também desempenhara um
papel na revolução de 1959 que trouxe os hutus ao poder e enviou muitos
tutsis para o exílio. Jerome Karabayinga e Clarisse Mwambali do World News
Journal relataram sobre um sacerdote em Kabgayi, Ruanda, que, durante a
celebração de Pentecostes de 24 de maio de 1999 “descreveu como a
liderança da Igreja Católica, antes indubitável dominante da vida espiritual
ruandense, tem sido vagarosa, mas consistentemente dizimada” (Karabayinga
e Mwambali, 2008). O padre continuou seu sermão dizendo: “Antes de
concluirmos, lembremos que neste exato momento Sua Eminência Augustin
Misago, Bispo de Gikongoro está preso em condições penosas pelos nossos
líderes; que Sua Eminência Thaddee Ntahinyurwa, Bispo de Cyangugu e
muitos, muitos outros religiosos e leigos estão sendo perseguidos pelos nossos
líderes políticos” (Karabayinga e Mwambali, 2008).
O martírio por vingança é o mais provável no caso da morte dos treze membros
do clero hutu, incluindo o arcebispo católico romano de Kigali e dois bispos, por
quatro soldados rebeldes que deveriam protegê-los. A rádio rebelde
Ruandense Muhabura relatou que “os guardas acreditavam que os membros
do clero tinham participado dos massacres aos seus parentes” (AP, 1994).
Esse incidente foi um dos primeiros de uma série de assassinatos e execuções
de membros do clero e nos leva a perguntar se a vingança estava limitada a
esses soldados de baixo escalão entre o grupo de rebeldes dominado pelos
tutsis ou se havia uma ordem superior para matar intencionalmente os bispos e
sacerdotes. Será que o fato de encontrar os corpos nas igrejas motivou ou
encorajou os assassinatos daqueles que não foram capazes de protegê-los ou
daqueles que foram vistos como traidores e agentes da matança hutu? Essas
são perguntas que podem não ser respondidas nesta vida.
As razões mais apontadas para o descrédito e algumas vezes a demonização
da igreja ruandense e especialmente da Igreja Católica Romana são os
relacionamentos próximos que os mais antigos membros do clero tinham com o
antigo governo acusado de planejar e executar o genocídio. Sabe-se que antes
do genocídio, alguns bispos e líderes denominacionais estavam muito próximos
do regime hutu. O Arcebispo Católico de Kigali, Dr. Vicent Nsengiyumva, serviu
no comitê de membros sêniores do partido dominante MNND até 1990. Mais
tarde ele foi confessor oficial da esposa do presidente, Agatha Habyarimana,
que é acusada de ser uma das mandantes do genocídio.
Aqueles que veem a execução de membros do clero ruandense como
assassinato político, não como perseguição e martírio, usam essa ligação entre
a igreja e o Estado na argumentação. No entanto, o número estimado de “cerca
de 320 sacerdotes, freiras e seminaristas mortos no genocídio” (Walsh, 2004)
não apoia essa linha de pensamento porque muitos deles eram clero de baixo
escalão, que provavelmente não tinha contato direto com os líderes políticos.
Provavelmente alguns desses sacerdotes e freiras não tinham influência sobre
quem seus líderes iriam servir nos comitês e comissões do governo. A
vingança deveria se limitar aos líderes superiores da igreja, não a sacerdotes e
freiras de vilas e paróquias.
O paradoxo dos relacionamentos próximos entre o governo e a igreja de
Ruanda continua a desafiar as mentes dos historiadores da igreja até hoje,
dezesseis anos depois do genocídio. Uma observação cuidadosa do
relacionamento atual entre o governo de Ruanda, o partido da situação, e os
bispos da igreja Anglicana, mostra algumas relações semelhantes ou até mais
profundas do que aquelas que existiam entre o governo hutu e a Igreja Católica
Romana durante os anos que precederam ao genocídio. Phillip Cantrell
observa que “os líderes da Igreja Anglicana de Ruanda conseguiram muito
apoio da maioria da comunidade evangélica dos Estados Unidos, mesmo
enquanto faziam parte da campanha da Frente Patriótica Ruandesa (RPF) para
confirmar sua legitimidade, ofuscando a história complexa e peculiar de
Ruanda e a sua própria. Além disso, o relacionamento das igrejas com o
regime de Kagame tem paralelos perturbadores com o relacionamento da
Igreja Católica e da Protestante com o governo pré-genocídio” (Cantrell, 2007,
pp. 334-335.
Em um país onde os políticos não são abertamente anti-cristãos, pelo contrário,
se declaram cristãos, a tentação dos líderes de igrejas mais proeminentes de
chegarem perto demais do regime governante é uma realidade. No entanto, os
líderes políticos sabem da influência que os bispos e os líderes de igrejas têm e
portanto procuram o apoio deles atraindo-os para si por meio de favores,
presentes, cargos e ganhos materiais. Esperamos que a chacina de bispos
católicos e o apoio aos bispos Anglicanos não sejam considerados ou
interpretados como uma manobra ou tática para substituir uma igreja poderosa
e influente e sua liderança por outra.
Será que outro período de perseguição, martírio e assassinato de membros do
clero acontecerá novamente, quando um novo “faraó, que não conhece José”
ascender ao poder em Ruanda? Será que a atual igreja de Ruanda evita a
perseguição e o martírio se conformando às vontades políticas e acatando
indiscriminadamente as políticas do regime ou do partido dominante? Ou será
que a igreja de Ruanda, seja Católica ou Protestante (incluindo a Anglicana)
continuará a ser a voz, os olhos, e a alma da nação através do exercício do seu
papel profético e sacerdotal ao mesmo tempo em que se submete às
autoridades governamentais e as honra quando se mostram corretas (Rm 13.17; 1Pe 2.17).
CONCLUSÃO
O contexto, a natureza, o formato, o nível, a intensidade e a extensão da
perseguição e o martírio em Ruanda desafiam as definições tradicionais de
perseguição e martírio. Em nenhum outro momento da história da igreja tantos
bispos, sacerdotes, pastores, freiras e líderes leigos foram mortos
intencionalmente e, em muitos casos, torturados, perseguidos e assassinados
por membros de suas congregações que se declaravam cristãos.
A matança de bispos, pastores, padres e freiras era considerada normal como
a matança de civis hutus inocentes por tutsis vingativos, compelidos por seu
próprio luto pela perda dos seus entes queridos nas mãos de hutus
assassinos? Ou as mortes dos membros do clero hutu eram uma perseguição
contra a igreja que foi vista como aliada do governo hutu que cometeu o
genocídio? Será que a perseguição ou o martírio de bispos e padres era uma
forma de se livrar de possíveis vozes opositoras de bispos hutus a fim de
estabelecer uma nova liderança da igreja com bispos tutsis aliados do regime
tutsi assim como os bispos hutus eram aliados do regime hutu? Timothy
Longman observou que na Ruanda pós-genocídio “o governo do RPF tem sido
cuidadoso em evitar que uma sociedade civil independente ressurja. O governo
tem interferido até mesmo na nomeação dos líderes da igreja” (Longman, 1999,
p. 354).
Será que alguns desses bispos foram mortos por causa de suas convicções e
porque convocaram o regime a explicar as ameaças às pessoas? Alguns
desses bispos e sacerdotes morreram por causa de suas pregações ou por
causa do que diziam ou deixavam de dizer? Perseguição e martírio na África
estão tomando uma nova forma e uma nova definição. Assassinato político,
mortes misteriosas, desaparecimento, intimidações, exílio forçado, falsas
acusações, incriminação, desumanidade e demonização — tudo isso tem sido
usado para perseguir os líderes da igreja africana. E os perseguidores são de
dentro da igreja — um irmão ou irmã em Cristo!
PERGUNTAS PARA REFLEXÃO
1. Como Musekura define os mártires no contexto do genocídio de
Ruanda? Que papel tiveram sua fé e testemunho cristão (inclusive o
comportamento ético) para que fossem perseguidos?
2. O martírio em Ruanda aconteceu em uma sociedade dita cristã.
Musekura diz que os algozes não estavam tentando levar as pessoas a
negarem a fé. Por que então esses líderes cristãos foram perseguidos e
mortos e em que sentido podem ser definidos como mártires?
3. Musekura escreve que desde 1994 vários membros do clero Católico
Romano foram mortos pela RPF. Como podemos ajudar a evitar que as
vítimas de ontem se tornem os algozes de hoje? Qual papel ativo e
positivo a comunidade cristã internacional pode ter, em serviço à
comunidade cristã local neste contexto?
REFERÊNCIAS
Anistia Internacional. 1994. Rwanda: Cases for Appeals. Novembro 1:10.
Associated Press. 1994. Thirteen Rwandan clergymen slain by rebels. Los
Angeles Times: June 9. http://articles.latimes.com/1994-06-09/news/mn2199_1_rebel-radio.
Cantrell, P. A. 2007. The Anglican Church of Rwanda: Domestic agendas and
international linkages. Journal of Modern African Studies 45, pp. 334-335.
Karabayinga, J., e C. Mwambali. 2008. A list of clergymembers killed in Rwanda
1994-1998. World News Journal. 13 de junho.
http://africannewsalaysis.blogspot.com/2008/06/list-of-clergymembers-killed-inrwanda.
Longman, T. 1999. State, civil society, and genocide in Rwanda. In: State,
conflict and democracy in Africa, ed. R. A. Joseph. Boulder, CO: Lynne
Rienner.
Omaar, R., e A. de Waal. 1994. Rwanda: Who is killing; who is dying; what is to
be done — A discussion paper. African Rights. 14 de maio.
Walsh, D. 2004. The long road to redemption: How did Catholics priests in
Rwanda end up in prison on murder charges? An Irish missionary priest talks to
Declan Walsh
Dr. Célestin Musekura é presidente e fundador do African Leadership and
Reconciliation Ministries (www.alarm-inc.org). É um pastor batista que nasceu e
cresceu em Ruanda. Musekura é autor de An Assessment of Contemporary
Models of Forgiveness (Peter Lang Publishing, Inc. 2010), colaborador do
Africa Bible Commentary: A One-Volume Commentary, escrito por 70
acadêmicos africanos (Zondervan, 2010) e co-autor de Forgiving as We’ve
Been Forgiven (InterVarsity Press, 2010).
NOTA
1. http://www.catholicdoors.com/news/martyrs2.htm, acesso em 10 de junho de
2011.
CHINA
Um Estudo de Caso
G. Wright Doyle
CONTEXTO HISTÓRICO
O governo chinês sempre restringiu a prática religiosa desde os primórdios da
história de que se tem registros (Poceski, 2009, p. 258). Apesar das crenças
alternativas geralmente serem toleradas, sempre houve apenas uma
cosmovisão “ortodoxa”. Na China oficialmente ateísta atual, a ortodoxia
sancionada pelo Estado é o comunismo ou “socialismo com características
comunistas”.
Em todas as eras o governo central sempre reclamou para si a autoridade
suprema, total e exclusiva sobre seus cidadãos com diversas liberdades
concedidas como privilégios, não como direitos. Tanto o corpo como as
propriedades dos cidadãos chineses sempre foram considerados como à
disposição do Estado. Os governantes da China assumiram integral soberania
sobre toda a vida, incluindo a religiosa, com a breve exceção da época
Republicana (1911 -1949), e até mesmo as igrejas e escolas cristãs tiveram
que registrar-se no governo e respeitar os seus regulamentos (como permissão
apenas para serviço de capelania opcional, não obrigatório). Embora o grau de
interferência do governo tenha variado muito ao longo dos séculos, a
prerrogativa de funcionários para controlar a prática da religião nunca esteve
em questão (Kindopp e Hamrin, 2004, 1-24). Além disso, alguns grupos
religiosos não são tratado com tolerância, e foram rotulados como "seitas"
[literalmente, "maus ensinamentos"], que significa não só que se desviam das
normas reconhecidas dentro das principais religiões (como o budismo, o
taoísmo, confucionismo , islamismo, ou o cristianismo), mas também que
representam risco à segurança do regime e ameaça à ordem social. A partir
desse raciocínio, a perseguição ativa — e frequentemente violenta — do
governo tem sido empregada para reprimir esses movimentos, alguns dos
quais, realmente são revolucionários (Poceski, 2009, 183-185).
A PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA NO PASSADO
Em várias épocas, monastérios daoístas e budistas e suas propriedades foram
expropriadas pelo Estado, dependendo das tendências religiosas do imperador
da época. Durante a Grande Revolução Cultural (1966-1976), fiéis das cinco
religiões oficialmente reconhecidas, assim como devotos da religião popular,
foram perseguidos abertamente: igrejas e templos foram fechados; os
membros do clero foram presos ou destituídos dos seus cargos e títulos
eclesiásticos; e práticas religiosas foram completamente proibidas
(Charbonnier, 2002, 425-443; Lambert, 1994, 18-25).
Embora tolerado em algumas épocas, o cristianismo encontrou forte oposição
durante grande parte da sua história na China. Missionários da Igreja Síria do
Oriente (também chamados de "nestorianos") foram bem recebidos quando
apareceram pela primeira vez na China, e foram até mesmo patrocinados pelo
imperador, mas seus seguidores foram posteriormente perseguidos durante a
dinastia Tang, quando os budistas foram favorecidos (Moffett, 1998, 288-295)
e, novamente, quando os budistas também foram atacados (Moffett, 1998, 302304; Charbonnier 2002, 63-67). Durante a dinastia Mongol (Yuan), tanto a
Igreja do Oriente como os primeiros missionários católicos romanos receberam
uma calorosa recepção (Charbonnier 2002, 69-83).
Quando descobriu-se que os jesuítas possuíam habilidades técnicas úteis e
equipamentos modernos, eles foram admitidos até mesmo na Cidade Proibida
e obtiveram permissão para proclamar sua fé. Milhares aceitaram a pregação
deles e dos franciscanos e dominicanos que os seguiram, mas todos foram
posteriormente proscritos como resultado da “Controvérsia dos Ritos”. A
intervenção do Papa em uma disputa sobre se os ritos confucionistas de culto
aos ancestrais e ao imperador seriam aceitos pelos católicos romanos chineses
foi severamente rejeitada pelo imperador como uma interferência totalmente
ilegítima nos assuntos internos e um perigoso questionamento das práticas
consideradas essencias à estabilidade social. Começando em 1706,
sacerdotes católicos romanos e depois chineses convertidos sofreram intensa
perseguição (Broomhall, 2005, 1.19-25; Charbonnier, 2002; Moffert, 2005;
Poceski, 2009, 216-222).
Os protestantes também foram banidos e se viram sob forte oposição quando
tentaram entrar na China no início do século 19. Somente após a Primeira
Guerra do Ópio, que terminou em 1842, eles se beneficiaram das disposições
do tratado que lhes garantiu a liberdade de visitar e morar na China, no início
em alguns lugares designados e, depois de mais algumas guerras e tratados,
em todo o território. No entanto, apesar de protegidos por lei, sofreram forte
oposição das autoridades locais, que muitas vezes instigavam a violência da
multidão contra eles (Broomhall 2005, 2,12-13, 32-55, e seguintes; Moffett
2005, 285-298).
Há várias razões para essa hostilidade: Em primeiro lugar, na mente do povo
os missionários ocidentais e seus seguidores estavam inevitavelmente ligados
às potências estrangeiras, que continuavam a humilhar e até mesmo ocupar a
China (Poceski 2009, 224). Talvez o mais repugnante de tudo fosse a
associação natural de missionários estrangeiros com o odiado comércio de
ópio, que foi imposto à China pelos tratados negociados sob a ameaça de
canhões e baionetas ocidentais, especialmente quando alguns deles serviram
como intérpretes para os estrangeiros vitoriosos (embora invariavelmente
tentassem suavizar as disposições dos tratados).
Os missionários ocidentais eram também considerados socialmente perigosos
porque traziam consigo uma nova religião, que era muito diferente da
cosmovisão confuciana e que representava um desafio também ao budismo,
ao daoísmo e à religião popular da China. E, principalmente, os protestantes
costumavam ensinar que o “culto” aos ancestrais era idolatria (apesar de os
confucionistas classificarem esses rituais apenas como veneração); isso
enfraqueceu toda a base da percepção chinesa de piedade filial, um pilar de
toda a sociedade. As autoridades cultas percebiam também o humanismo
confucionista como diretamente oposto ao teísmo cristão.
Os católicos romanos eram alvo do maior ressentimento, porque segundo
algumas disposições do tratado os convertidos a essa religião eram isentos de
pagarem algumas taxas do templo e serem processados por magistrados
locais. Logicamente esta isenção dava margem a abusos dos crentes com
motivos inescrupulosos. Nem os agentes governamentais apreciavam a
posição em que o governo colocou os bispos católicos romanos (Moffert, 2005,
470, 472).
A máxima expressão da hostilidade anti-cristã dos chineses foi a Rebelião dos
Boxers (1899-1901) em que milhares de crentes chineses e centenas de
missionários estrangeiros foram mortos e diplomatas estrangeiros foram
sitiados em Pequim. As forças militares de oito nações desmantelaram o cerco,
e algumas delas causaram estragos na capital, aprofundando ressentimento
contra todas as coisas estrangeiras (Charbonnier 2002, 334-335; Moffett 2005,
484-487).
O sistema imperial e o confucionismo que o fortalecia foram repudiados na era
republicana, quando os cristãos em geral gozavam de liberdade, mas eram
duramente atacados por intelectuais, alguns dos quais mais tarde se tornaram
proeminentes no Partido Comunista (Charbonnier 2002, 384-387).
Na década de 30 os comunistas começaram a infligir punições aos cristãos;
esta tendência para a repressão emergiu com toda a força após o
estabelecimento da República Popular da China em 1949.
Desde então, cristãos tanto católicos quanto protestantes sofreram diferentes
graus de pressão, discriminação, limitações legais e perseguição explícitas. As
razões apresentadas incluíam acusações de que os cristãos e os missionários
que lhes ensinavam até serem obrigados a deixar o país no início dos anos 50,
eram (ou são) agentes de governos estrangeiros (Poceski 2009, 262-263);
disseminadores de ideias estrangeiras contrárias à cultura chinesa e à doutrina
comunista, e potenciais instigadores de resistência organizada ao governo.
Até a formação, nos anos 50, das organizações oficiais “patrióticas”
protestantes e católicas romanas, os que estavam fora do sistema sofriam
pressão constante para se juntarem a eles ou pararem de praticar sua fé. Ao se
recusarem a fazer isto, sofriam duras represálias, incluindo detenções, multas,
espancamento, tortura, e até a morte. Reuniões foram invadidas e os líderes
detidos, o tratamento mais ameno incluia visitas frequentes para
questionamento ou expropriação de propriedade por parte de seguranças.
Líderes protestantes extraordinários, como Wang Mingdao, Allen Yuan (Yuan
Xiangchen), Watchman Nee (Ni Tuosheng) e Samuel Lamb (Lin Xiangao)
foram submetidos na era Mao à acusação, interrogatório, prisão e tratamento
cruel (Aikman 2003 , Anderson 1991; Harvey 2002; Kindopp e Hamrin 2004,
122-148; Lee 2001; Xi 2010), assim como milhares de crentes leigos. Por um
tempo, durante e depois da Revolução Cultural (1966-1976), muitos
observadores ocidentais acreditavam que o cristianismo na China tinham sido
exterminado.
No entanto, a patir de 1979, no contexto da política de abertura ao mundo
exterior de Deng Xiaoping, começaram a surgir notícias, no início
esporadicamente, depois com muita frequência, sobre uma vasta expansão do
cristianismo na China.
Esta expansão só tem aumentado desde o final da década de 1980,
estendendo-se das áreas rurais para as cidades e de grupos marginalizados às
elites proeminentes (Aikman 2003; Lambert 1994; 1999; Lawrence 1985;
Wallis, 1986). Apesar do perigo e da grande dificuldade, os cristãos
continuaram a orar, pregar e evangelizar. Milagres de cura e livramento no
perigo os tornaram mais ousados e impressionaram seus opressores, assim
como a perseverança alegre a paciente daqueles que sofreram terrivelmente
pela sua fé. A perseguição se tornou o catalisador de um crescimento sem
precedentes tanto em número como em dedicação.
Líderes de igrejas domésticas mais antigos se lembram de como a MPTA
(Movimento Patriótico das Três Autonomias) participou ativamente nos ataques
contra aqueles que não se juntaram à organizações oficiais (Harvey, 2002) ou
que tinham diferenças teológicas. Até mais recentemente, alunos e professores
evangélicos foram silenciados ou expulsos do Seminário Teológico Jinling em
Nanjing durante a campanha de “Reconstrução Teológica” do bispo KH Ting
iniciada em 1998 (Yamamori e Chan, 2000; Xi, 2010, 210). Porém, de forma
geral, a maioria das organizações do MPTA e das igrejas nas casas têm
desfrutado de relativa harmonia, e até cooperação, em muitos lugares. As
tensões diminuíram muito quando as igrejas Verdadeiro Jesus e Pequeno
Rebanho “foram retiradas da lista de organizações ilegais [e] lhes foi
assegurado certo reconhecimento como grupos distintos dentro da estrutura
das Três Autonomias” (Xi, 2010, 211)
SITUAÇÃO ATUAL
Sob a premissa fundamental de “liderança” (supremacia) do Partido Comunista,
a constituição chinesa garante liberdade de crença religiosa (embora não haja
liberdade de prática religiosa) e cinco religiões mundiais organizadas: budismo,
daoísmo, islamismo, catolicismo romano e protestantismo. Cada uma tem sua
associação “patriótica”, que está sob controle do Partido Comunista e do
governo.
Regulamentos promulgados em 1994 e 2004 detalham os limites atuais da
prática religiosa legal na China (Burklin 2005, 219-239). Dentro de limitações
específicas, os crentes dessas associações podem se reunir para adoração e
ensino; se envolver na educação religiosa dos adultos; administrar
sacramentos, educar, ordenar e apoiar o seu clero, e participar de certas
atividades de caridade. Os regulamentos têm permitido, por exemplo, que a
editora da Protestant Amity Foundation imprima e distribua milhões de Bíblias
em chinês. Apenas os religiosos locais podem vender esses materiais
“religiosos”, como Escrituras e hinários. Mas livrarias públicas e privadas em
cidades de todo o país vendem vários outros materiais sobre temas religiosos
publicados na China com ISBN legítimos.
As restrições à prática religiosa incluem: as “três especificidades” (as atividades
da igreja podem ser realizadas apenas em lugares específicos, em horários
específicos e por líderes treinados na China); a proibição de evangelização fora
das instalações da igreja; recepção não-autorizada de recursos, inclusive
dinheiro ou ensino de cristãos de fora da China; crítica ao governo ou ao
socialismo, entre outras coisas. Dentro dessas limitações, os cristãos das
igrejas oficiais gozam de liberdade crescente. Até certo ponto, há até proteção
legal limitada para as congregações reconhecidas; algumas impetraram
processo contra agentes locais que expropriaram suas propriedades, por
exemplo.
Na prática, essas regras tornam fora da lei as atividades religiosas nãoautorizadas, ou seja, reuniões e outras atividades de grupos religiosos nãoregistrados, incluindo igrejas domésticas protestantes e membros de grupos da
igreja católica romana que, por lealdade ao Papa, se recusam a participar da
Associação Católica Patriótica. Desde cerca de 2005, até mesmo esses grupos
têm podido exercer todas as funções normais com relativa impunidade, embora
sejam prejudicados pelo acesso restrito a contas bancárias e dificuldades para
alugar ou comprar propriedades. Eles têm operado abertamente e até marcam
sua presença substancialmente através da Internet. Com raras exceções, não
tem havido perseguição a cristãos por causa das crenças ou práticas cristãs —
a despeito da percepção disseminada na mídia ocidental de que é o contrário
que acontece.
Estudos acadêmicos sobre religião, incluindo o cristianismo, se multiplicaram
nos últimos anos nas universidades. Há mais de trinta instituições para estudo
da religião, sendo algumas apenas sobre o cristianismo, assim como estudos
em grupos de estratégia do governo. Conferências acadêmicas sobre o
cristianismo, e até mesmo sobre religião e política ou legislação são
organizadas, e jornais e livros são publicados regularmente.
De acordo com a legislação federal (Burklin, 2005, pp. 203-207), a menos que
sejam formalmente convidadas por uma das igrejas oficiais, cristãos
estrangeiros não podem proclamar publicamente sua fé na China. Não podem
falar em encontros cristãos, a não ser aqueles voltados para expatriados, que
devem ser liderados por pastores chineses designados; nem podem treinar
líderes; não podem “discipular seguidores...., nem se dedicar a outras
atividades missionárias” (Burklin, 2005, p. 206); nem doar dinheiro para grupos
cristãos; não podem publicar nem distribuir literatura; ou realizar evangelismo.
Aqueles que violam essas disposições devem ser expulsos sumariamente do
país e proibidos de voltar por vários anos. A aplicação esporádica dessas
regras não significa que as atividades religiosas dos estrangeiros são
desconhecidas ou aceitas pelo governo, que as tolera temporariamente
conforme a conveniência. Alguns estrangeiros foram convidados a deixar a
China nos últimos anos porque violaram essas normas.
Contudo, se sofre como cristão, não se envergonhe, mas glorifique a Deus por
meio desse nome. Pois chegou a hora de começar o julgamento pela casa de
Deus; e, se começa primeiro conosco, qual será o fim daqueles que não
obedecem ao evangelho de Deus? (1 Pedro 4.16-17)]
No entanto, centenas, talvez milhares, de cristãos estrangeiros que são
professores, obreiros sociais e pessoas de negócios, têm vivido na China e
testemunham silenciosamente sua fé. Alguns que estudam o idioma chinês têm
passado a maior parte do tempo evangelizando universitários sem muita
intervenção do governo.
Essa liberdade generalizada levou alguns observadores estrangeiros a
afirmarem categoricamente que os cristãos na China têm quase total liberdade
para praticar e propagar sua fé. Eles apontam especialmente para a larga
amplitude de ação dada à igreja católica romana oficial e às organizações
protestantes e aos estrangeiros que trabalham com eles. Alguns até afirmam
que os crentes e líderes das igrejas domésticas somente são punidos quando
violam a lei (Burklin 2005, 76 -77). Outros falam do “mito” da perseguição a
cristãos na China, admitindo a sua existência, mas chamando-o de “esporádico
e ocasional” (Falkenstine 2008, 78).
Recentes exceções a essa prática não-oficial de tolerância envolveram grandes
congregações, especialmente aquelas que queriam alugar ou possuir
construções e, especificamente, a Igreja Shouwang em Pequim, que tentou
comprar uma propriedade; grandes congregações com marcante presença
pública (como um alto-falante anunciando o horário de culto nas ruas); grandes
igrejas ou “redes” envolvidas em treinamentos que incluem missionários de
outras áreas, especialmente de outras províncias; redes menores com
influência em cidades importantes; grupos cristãos com relações ostensivas
com estrangeiros, especialmente norte-americanos; advogados cristãos
envolvidos em defesa de direitos humanos, especialmente quando parecem ter
relações com governos estrangeiros. (Mais de duzentos cristãos chineses
foram proibidos de ir ao Congresso Lausanne na Cidade do Cabo por várias
razões, incluindo as citadas acima).
Além disso, todas as igrejas não-registradas, e especialmente as seitas
milenaristas e messiânicas, que lembram ao governo de revoltas anteriores
inspiradas na religião, estão sob constante supervisão e suspeita do governo.
Os grupos religiosos experimentam também a antipatia do governo por
qualquer crescimento da sociedade civil, o que causou um aumento de
restrições às ONG’s, inclusive às organizações sociais e igrejas cristãs, desde
2005. A nível local, congregações específicas com frequência enfrentam
perseguição por agentes corruptos do governo que querem subornos ou coisas
de valor. É comum a discriminação no trabalho e emprego em instituições
estatais, inclusive nas universidades; proclamar abertamente fidelidade ao
cristianismo pode ser uma barreira ao desenvolvimento na profissão ou até
mesmo razão para ser demitido. E, claro, nada de cunho cristão pode ser
veiculado na rádio ou televisão pública (com uma exceção notável para dois
documentários sobre um missionário protestante e um católico romano que
contribuíram de forma signficativa para a sociedade).
Cada vez que cristãos ocidentais protestam e principalmente quando imploram
aos seus governos para falarem em apoio aos cristãos chineses, são acusados
de interferir em assuntos internos chineses. De fato, alguns acreditam que
gestos bem intencionados (como receber cristãos chineses na Casa Branca) e
declarações do Departamento de Estado ou incluídas no programa Voz da
América, embora algumas vezes talvez tenham sido temporariamente bemsucedidas, em geral saíram pela culatra, porque geralmente são vistas como
uma confirmação da suspeita de que os cristãos locais são, na verdade,
instrumentos subversivos dos poderes anti-chineses.
A situação mudou drasticamente em abril de 2011, quando os líderes da Igreja
de Shouwang, tendo o acesso negado ao restaurante onde costumavam se
reunir, decidiram fazer um culto de louvor ao ar livre num espaço público.
Várias tentativas de se reunirem terminaram em prisão temporária de centenas
de membros de igrejas, prisão domiciliar para os líderes, e a ameaça de ação
penal contra eles. Líderes de outras igrejas de outros pontos da China foram
detidos com acusações criminais; muitos parecem ter sido parte do grupo que
tentou ir ao Congresso Lausanne. Em maio, líderes de vinte igrejas domésticas
ao redor da China assinaram e enviaram uma petição ao Congresso Nacional
Popular, apoiando a Igreja de Shouwang e pedindo ao governo central que
revisse e revisasse as leis sobre as práticas religiosas. Cristãos estrangeiros
que viviam na China tiveram seus vistos de retorno negados, e muitas
conferências e reuniões com estrangeiros foram canceladas. Se continuar,
essa tendência que é parte de uma ofensiva maior a vozes dissidentes na
China, pode marcar uma regressão significativa das liberdades de que gozam
os cristãos na China nos últimos anos.
Implicações para missões: Nessas condições, os cristãos estrangeiros
deveriam focalizar a oração, evangelização e treinamento de chineses que
vivem ou estudam no exterior; e desenvolvimento de um grupo de discípulos
maduros fluentes no idioma chinês, com conhecimento da cultura chinesa, e
comprometidos em ser “presença fiel” de longo prazo na China, ao invés de
evangelismo de curto prazo.
PERGUNTAS PARA REFLEXÃO
1. Quais são as razões, de acordo com Doyle, para as autoridades da China
terem ficado desconfiadas ou terem reprimido os missionários e cristãos locais
ao longo da história? Quais dessas razões eram/são evitáveis?
2. Do segundo ao último parágrafo, Doyle descreve os preocupantes
desdobramentos recentes e temores de que a China em 2011 possa estar
regredindo quanto às liberdades concedidas aos cristãos nos últimos anos.
Quais poderiam ser as razões para esses desdobramentos? E comos os
cristãos chineses poderiam reagir a isto?
3. No parágrafo final, Doyle inclui recomendações para a intervenção por
missões estrangeiras. Reflita sobre as mesmas.
REFERÊNCIAS
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changing the global balance of power. Washington, DC: Regnery Publishing, lnc.
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Broomhall, A. J. 2005. The shaping of modern China: Hudson Taylor's life and legacy.
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Burklin, W. 2005. Jesus never left China: The rest of the story. The untold story of the
church in China now exposed. Enumclaw, WA: Pleasant Word (a division of WinePress
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Charbonnier, J. 2002. Christians in China: AD 600 to 2000. San Francisco, CA:
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Falkenstine, M. 2008. The Chinese puzzle: Putting the pieces together for a deeper
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Lambert, T. 1994. The resurrection of the Chinese church. Wheaton, IL: Harold Shaw
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theology of Bishop K. H. Ting (Ding Guangxun). Hong Kong: Christian Life Press.
Moffett, S. H. 1998. A history of Christianity in Asia. Volume I: Beginnings to 1500.
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Poceski, M. 2009. Introducing Chinese religion. New York:
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Publishing.
Wang, D. 2010. Happy birthday, Chairman! Gospel Herald. December 8, 2010.
http://www.gospelherald.net/article/opinion/46849/happy-birthday-chairman.htm.
Yamamori, T., and K. Chan. 2000. Witnesses to power: Stories of God's quiet work in
a changing China. Waynesboro, GA: Paternoster Press.
G. Wright Doyle é Diretor do Global China Center (www.globalchinacenter.org) e editor
geral do Biographical Dictionary of Chinese Christianity (www.bdconline.net). Entre
seus livros, está China: Ancient Culture, Modern Society (co-autor). É também diretor
do China Institute (www.chinainst.org).
NOTA
1. Como as revoltas dos Turbantes Amarelos Daoístas, da Sociedade Budista Lótus
Branco, e da Rebelião semi-cristã de Taiping no século dezenove; bem como o papel
dos cristãos na derrubada dos regimes comunistas na Europa Oriental no final do
século 20.
ÍNDIA
Um novo momento kairós para a igreja na Índia
Richard Howell
Os membros da igreja primitiva sabiam que eram mordomos do evangelho de Jesus
Cristo; estavam verdadeiramente conscientes de que o evangelho é para todo tempo e
para todo o mundo e não apenas para uma época, lugar ou povo. Consequentemente,
com frequência a igreja cruzou fronteiras e se tornou uma fé não-judaica. Ela também
alcançou, segundo a tradição, a costa da Índia. O primeiro encontro da fé cristã com a
Índia foi com a chegada de Tomás o Apóstolo ao sul da Índia, especialmente ao sul de
Malabat em 52 d. C., onde muitas comunidades cristãs foram estabelecidas. Uma igreja
foi erguida e até hoje presta tributo à vida de São Tomás como testemunha fiel de Cristo
no local onde foi martirizado em 72 d. C. (cf. Brown, 1982). A igreja na Índia é tão
antiga quanto o cristianismo em si, e também tão antiga quanto a sua história de
sofrimento e perseguição.
TRADUZINDO A MENSAGEM DO EVANGELHO
No dia de Pentecostes Deus revelou que o evangelho deve ser comunicado a todos em
suas próprias línguas, quando o povo reunido exclamou: “Nós os ouvimos declarar as
maravilhas de Deus em nossa própria língua!” (At 2.11). As religiões não-cristãs ainda
consideram o idioma de suas escrituras como intraduzível. Os muçulmanos, por
exemplo, ainda oram em árabe, a ordem social brâmane dos hindus ainda recita seus
mantras em sânscrito, assim como os sikhistas usam o Gurumukhi e Pali é o idioma do
Budismo Theravada. Esta é uma característica especial da fé cristã, de ser traduzida para
a língua do povo a que se destina, porque a fé cristã acredita na encarnação de Deus. A
fé não foi propagada na língua do seu fundador, Jesus Cristo. Ele falava aramaico; as
Escrituras foram inspiradas pelo Espírito Santo em grego. O ensino de que Deus
entende e fala todas as línguas é revolucionário no contexto de pluralidade religiosa e
cultural da Índia. “O cristianismo adquiriu uma orientação cultural e geográfica global”
(Sanneh, 2008, 3).
Os primeiros missionários protestantes, Bartholomäus Ziegenbalg e Heinrich Plutschau,
desembarcaram em uma pequena colônia Danish chamada Tranquebar, no sul da Índia,
em 9 de julho de 1706. Ziegenbalg criticou publicamente alguns membros da casta
brâmane, acusando-os de desprezarem as castas mais baixas da sociedade hindu. Por
isso, ao menos um grupo conspirou para matá-lo. No entanto, de forma geral seu
trabalho não encontrou audiência hostil. Os primeiros exemplares do Novo Testamento
saíram da pequena gráfica missionária em Tranquebar em 1714. Os missionários
pioneiros eram de origem alemã, de confissão luterana, apoiados por um piedoso rei
dinamarquês, e apoiados pela Sociedade para a Promoção do Conhecimento Cristão
(SPCK, na sigla em inglês), uma organização inglesa. O próximo grande missionário
pioneiro, o inglês batista William Carey, desembarcou em 11 de novembro de 1793. Ele
também começou o trabalho em uma colônia dinamarquesa de Serampore. Traduziu a
Bíblia para o bengali, sânscrito e várias outras línguas e dialetos. O sermão de Carey, a
partir de Isaías 54.2-3, usava repetidamente a frase que se tornou uma das suas mais
famosas citações: “Espere grandes coisas de Deus; realize grandes coisas para Deus”.
Com seus 4.635 grupos populacionais distintos e seus numerosos grupos linguísticos, a
Índia é uma nação da diversidade na unidade. Cerca de mais de trezentos grupos
populacionais têm uma presença cristã; a maioria destes são de origem dalit e de povos
tribais. “Antes dos movimentos para alcançar as massas, a igreja indiana era formada
apenas por um pequeno grupo de convertidos da elite da casta alta. A entrada de
camponeses, aos milhares, causou um profundo impacto no panorama demográfico da
igreja. O centro da igreja se mudou das cidades para as vilas” (LAING, 2001, p. 92).
A RESPOSTA TRIBAL AO EVANGELHO
O advento do cristianismo no nordeste da Índia remonta ao século 19. Os missionários
encontravam inúmeros desafios para chegarem a lugares remotos e acidentados para
evangelizarem. Lakshom Bhatia escreve que “as práticas de manter como troféu cabeças
de inimigos, os ataques intertribais, os sacrifícios de animais e diversas festividades
eram consideradas como pecados pelos missionários, e o primeiro passo para o perdão
seria a confissão perante o Espírito Santo.” As confissões levaram a um grande
crescimento no número de seguidores de Jesus Cristo. Além disso a fé cristã estabeleceu
profundas raízes em outros estados do nordeste da Índia.
Os sistema Bawi de escravatura, que prevalecia na sociedade Mizo foi abolido e
substituído pela ética cristã de igualdade, fraternidade, e amor e respeito mútuos.
A missão introduziu caracteres de escrita para o dialeto Dhulian dos Mizos, que se
tornou a lingua franca* como resultado disso a educação e a alfabetização progrediram
rapidamente.
O ENCONTRO DOS DALITS COM O CRISTIANISMO
O foco tradicional da casta hindu na perspectiva dos brâmanes, coloca os dalits na
periferia. Eles são considerados párias, impuros. O sistema de castas se baseia no
princípio da discriminação e da desigualdade, que todos os seres humanos não nascem
iguais. Este é um dos mais rígidos e institucionalizados instrumentos de brutalidade da
sociedade hindu. Como categoria conceptual, o conceito de castas só foi seriamente
desafiado depois da chegada dos missionários cristãos, que trouxeram a ideia radical de
estender a educação aos dalits. Apesar de a sociedade indiana defender a tolerância, ela
permanece como uma sociedade intolerante e cruel.
[Depois de ter bradado novamente em alta voz, Jesus entregou o espírito. Mt 27.50]
Quem consegue abandonar a hierarquia de castas e reivindicar os benefícios da
tolerância? Quem pode desafiar a hierarquia verticalmente e aspirar por uma casta mais
alta e esperar adaptação? No Natal de 1927, Dr. Ambedkar, um líder dalit, queimou
publicamente o Manu Smiriti, o documento fundamental e mais sagrado dos brâmanes,
usado para justificar as castas e atribuir a intocabilidade. Voltar-se para Cristo
representou um esforço da parte dos dalits de ganharem dignidade, amor próprio, e a
capacidade de escolherem suas próprias identidades. Aos dalits que começaram a seguir
a Cristo foram negados os benefícios do sistema de quotas que o governo concedia
apenas aos dalits hindus. Isto é discriminação. Vengal Chakkarai, um hindu de alta casta
convertido a Cristo, defendia que a igreja deveria “confrontar o hinduísmo nas planícies
da vida”. Com isso ele queria dizer que a igreja deveria confrontar a opressão e a
exploração que resultam das castas.
O crescimento do cristianismo no século 19 se deu no contexto da Índia colonial e em
meio a um crescente despertamento da consciência nacional, liderado pelas sociedades
missionárias oficiais, fundadas por estrangeiros ocidentais, que controlavam a
propagação e o direcionamento de missões. A missão fundou o que chamamos de
igrejas tradicionais, que continuam a imitar as estruturas e a liturgia da igreja ocidental;
denominadas cativeiro latino da igreja (cf. Boyd, 1975).
O CRESCIMENTO CONTEMPORÂNEO DA IGREJA
Com o crescimento contemporâneo da igreja na Índia, a ênfase agora é na igreja local,
que não importa e imita o estilo, as leis, a liturgia e a teologia das igrejas europeias. As
igrejas estão cada vez mais enraizadas culturalmente em seus contextos. É
verdadeiramente um novo kairos para a igreja na Índia. As culturas nativas descobriram
o cristianismo e Jesus Cristo. O fato de que os indianos estão se convertendo em meio a
uma ressurgência de forças anti-cristãs militantes sugere certo grau de compatibilidade
dos nativos com o evangelho. O crescimento contemporâneo da igreja é pós-colonial,
em meio a um nacionalismo hindu militante, e está acontecendo sem as estruturas
organizacionais ocidentais. E este crescimento se dá em meio à instabilidade
generalizada. Isso precisa ser denominado como o crescimento do cristianismo indiano.
Reuniões religiosas informais de novos crentes continuam a acontecer. A igreja está
tentando se redefinir.
PERSEGUIÇÃO AOS CRISTÃOS
A história é testemunha de amplos conflitos religiosos na sociedade indiana. O jargão
religioso é muito eficaz para exaltar os ânimos nos conflitos étnicos e religiosos. O
jargão religioso bélico é muitas vezes usado como ferramenta motivacional para fins
políticos, pois nada é melhor do que a guerra para unir e mobilizar pessoas e recursos
em prol de uma causa. Para que a linguagem espiritual leve ao conflito é essencial que
os fiéis acreditem que a guerra espiritual pode ser uma realidade também em termos
humanos. “Ao identificar as lutas terrenas com a luta cósmica entre ordem e desordem,
bem e mal, luz e trevas, justiça e injustiça, os políticos e os líderes religiosos lançam
mão da mentalidade disponível que justifique o uso de meios violentos”
(Juergensmeyer, 1991, p. 386).
A intolerância religiosa não é estranha ao hinduísmo “apesar do mito do século 19
segundo o qual os hindus são, por instinto e religião, pessoas não-violentas. A origem
desse mito é em parte atribuída à imagem romântica do passado indiano projetada, por
exemplo, por estudiosos como Max Müller”.
No entanto, os cristãos só se tornaram um alvo político em 1998, quando a Índia teve
seu primeiro governo nacionalista hindu — em uma coalizão liderada pelo Partido
Bharatiya Janata (BJP, na sigla em inglês). A Índia independente experimentou seu
primeiro ataque indiscriminado de larga escala contra cristãos no distrito de Dangs, no
estado de Gujarat, em dezembro de 1998. Em janeiro de 1999 um missionário
australiano, Graham Staines, e seus dois filhos menores de idade foram queimados
vivos no distrito de Keonjhar, em Orissa.
Segundo as confissões de Swami Aseemanand, do [grupo fundamentalista] Sangh
Parivar que, segundo relatos, teria assumido para si a tarefa de alvejar missionários
cristãos que trabalhavam no distrigo de Dangs, no estado de Gujarat, desde que ele
chegou lá no final de 1995, os grupos fundamentalistas Vishwa Hindu Parishad e o
Bajrang Dal organizaram uma campanha no dia de Natal em 1998 em Subir para
impedir celebrações natalinas.
Em 2006, Aseemanand organizou um Shabri Kumbh em Dangs. O slogan era: “Cada
pessoa que se converte ao cristianismo é mais um inimigo do país”. O padrão
estabelecido por Aseemanand em Dangs foi reproduzido em Kandhamal por Swami
Laxmananda Saraswati. Depois da morte de Saraswati nas mãos dos maoístas, os
trabalhadores de Sangh Parivar desencadearam uma onda de violência contra os cristãos
por quarenta e dois dias, nos quais mataram cerca de 100 pessoas, queimaram 147
igrejas, deixaram aproximadamente 48 mil pessoas desabrigadas e estupraram uma
freira. O governo estadual falhou totalmente no seu papel de proteger os cristãos
inocentes que não conseguiam se defender. A polícia ficou por perto e vez ou outra se
aliou às manifestações do Sangh na violência. As atrocidades contra os cristãos em
Orissa foram as piores já registradas na história do cristianismo na Índia.
A história é a mesma em Karnataka. O estado está sob uma onda de perseguição a
cristãos sem precedentes, com mais de 1.000 ataques em 500 dias. Em 26 de janeiro de
2010, no dia em que celebramos do Dia da República da Índia, o milésimo ataque de
Karanataka aconteceu na cidade de Mysore. Nos últimos anos, o número de ataques a
cristãos, registrados pela Aliança Evangélica da Índia, tem sido mais de mil ataques por
ano. A Lei da Liberdade Religiosa em sete estados da Índia exigem que o cidadão peça
permissão de um oficial do governo designado antes de decidir-se a louvar a Cristo e se
tornar seu seguidor.
A comunidade cristã na Índia não apresenta histórico de envolvimento em violência
religiosa, embora sejam vítimas de violência. Eles trabalham para minimizar a miséria
humana e a injustiça porque creem que Deus ama todas as pessoas igualmente e deseja
justiça para todos.
O SOFRIMENTO COMO PARTE DA IDENTIDADE CRISTÃ
A igreja deve integrar o sofrimento e a dor como parte da história da igreja. A maior
parte da linguagem bíblica sobre missões, sobre promover a fé, reflete a noção de
bênção em vez de luta, reconciliação e paz em vez de violência e ódio. Aqueles que
estão traumatizados e feridos pela violência precisam da cura de suas memórias. Como
a igreja deveria se lembrar do seu sofrimento, perseguição e martírio? Deveríamos
acalentar a raiva fria e persistente, a sede por vingança, e reagir como animais feridos?
Para reagirmos como seres humanos livres devemos valorizar os sentimentos, até
mesmo os desejos de vingança, mas devemos também seguir os preceitos morais
implantados por Deus na essência da nossa humanidade. Como igreja devemos estar
determinados a não perder de vista o mandamento de amar o próximo, mesmo que este
aja como nosso inimigo. A vítima pode exigir que os algozes que são verdadeiramente
culpados sejam tratados como merecem, com a aplicação rigorosa da justiça retributiva.
O Estado é um dom de Deus para a graça comum e tem autoridade para manter a lei e a
ordem e controlar o mal na sociedade (Romanos 13.1-7). No entanto, é preciso enfatizar
que o amor cristão pelos inimigos não exclui preocupações quanto à justiça mas vai
além, incluindo o perdão e a reconciliação.
PERGUNTAS PARA REFLEXÃO
1. A “traduzibilidade” das Escrituras tem aplicabilidade mais ampla do que na área
de linguística?
2. Discuta os elementos e as consequências do choque inevitável entre o sistema de
castas e o evangelho.
3. Reflita sobre a observação de Howell: “O fato de que os indianos estão se
convertendo em meio a uma ressurgência de forças anti-cristãs militantes sugere
certo grau de compatibilidade dos nativos com o evangelho.”
4. Resuma a descrição de Howell sobre a reação do cristão ao aumento da
perseguição na Índia.
REFERÊNCIAS
BROWN, L. 1982. The Indian Christians of St. Thomas. Cambridge: Cambridge
University Press. Primeira publicação em 1956.
SANNEH, L. 2008. Disciples of all nations. Oxford: Oxford University Press.
BHATIA, L. 2010. Contradiction and change in the Mizo society. In Margins of Faith:
Dalit and Tribal Christianity in India, eds. R. Robinson and J. M. Kujur. Thousand
Oaks, CA: Sage Publications.
THAPAR, R. 1994. Sydicated Hinduism. In Hinduism reconsidered, ed. G. Sonteimer
and H. Kilke. New Delhi: Manohar.
BOYD, R. 1975. India and the Latin captivity of the church. New York: Cambridge
University Press.
LAING, M. 2001. The consequences of the “Mass Movements:” An Examination of the
consequences of mass conversion to Protestant Christianity in India. Indian Church
History Review, XXXV/2 (Dezembro).
Dr. Richard Howell, de Nova Delhi, na Índia, é secretário geral da Aliança Evangélica
da Índia (EFI, na sigla em inglês) e da Aliança Evangélica da Ásia (AEA). Ele é
membro do Fórum Cristão Global (GCF, na sigla em inglês) e foi diretor do Seminário
Bíblico Allahabad, em Uttar Pradesh, na Índia, de 1990 a 1996. Tem um BA (Hons),
MA e BD da Índia, um ThM do Canadá e um Phd da Holanda.
O INCIDENTE DOS REFÉNS COREANOS
Sete lições aprendidas
David Tai Woong Lee e Steve Sang-Cheof Moon
INTRODUÇÃO
Vinte obreiros de curto prazo da Igreja de Sammool deixaram o Aeroporto Internacional
Incheon, como outras equipes similares deixavam o país para servir em diferentes partes
do mundo. Já que várias outras viagens temporárias de missões já tinha sido
organizadas pela Igreja de Sammool, esta não parecia diferente das empreitadas
anteriores. Havia algumas outras equipe de trabalho de curto prazo, representando
diversas organizações, operando no Afeganistão e não parecia haver nenhum perigo
iminente. Havia uma obreira solteira enviada pela mesma igreja morando no mesmo
local por mais de um ano e alguns trabalhadores de outras ONG’s que já estavam lá há
algum tempo — poucos poderiam culpá-los de ter uma falsa sensação de segurança.
Todavia, é necessário revisitarmos o incidente para analisarmos as lições que podem ser
aprendidas em cada fase do incidente: pré-sequestro, sequestro, e finalmente, o póssequestro.
RESUMO DO CASO DE SEQUESTRO
Pré-sequestro
A Igreja de Sammool pertence à denominação Presbiteriana Koshin. Esta foi fundada
depois da libertação Coreana da anexação japonesa depois da 2ª Guerra Mundial.
Durante a ocupação, os cristãos coreanos foram forçados a fazer parte do chamado
“culto ao Imperador [ao imperador japonês]”. Alguns se recusaram a fazer reverência
diante do imperador, arriscando suas vidas. Koshin foi formada por aqueles que não
reverenciaram a imagem do imperador. A Igreja de Sammool tem sido uma das igrejas
líderes dessa denominação. O pastor Un-Jo Park, um evangélico convicto, é
considerado por muitos como um dos pastores proeminentes na Coréia. Enviar obreiros
temporários era uma forma de expresar a filosofia do ministério da igreja local —
enfatizar tanto o evangelismo quanto a ação social.
O SEQUESTRO
A equipe de vinte pessoas deixou o Aeroporto Internacional Incheon em 13 de julho de
2007. Eles chegaram a Cabul no dia seguinte. Foi relatado que o grupo de vinte pessoas
desempenhou com sucesso suas ações sociais na área de saúde e educação de 14 a 18 de
junho, no nordeste do Afeganistão, que é uma região relativamente segura. No entanto,
em 19 de julho, juntaram-se a eles três médicos que já estavam no Afeganistão e a
seguir foram de Cabul para Candahar. Esses três seriam seus guias. Foi durante essa
viagem que o sequestro aconteceu.
Eles deveriam ter ficado desconfiados quando o motorista do ônibus entregou a direção
a um outro motorista, e mais desconfiados ainda quando o motorista de ônibus parou
para pegar um estranho na estrada. O resto nós já sabemos. Os vinte e três foram
tomados como reféns e passaram-se quarenta e dois dias até que os últimos reféns
fossem libertados. Duas pessoas morreram; os vinte e um voltaram para casa em
segurança, mas não sem cicatrizes físicas e emocionais que acompanharão alguns deles
por muito tempo.
[“Vocês serão expulsos das sinagogas; de fato, virá o tempo quando quem os matar
pensará que está prestando culto a Deus.” João 16.2]
Em 21 de julho, o presidente da Coréia, Moo Hyun Noh, pediu publicamente ao Talibã,
através da CNN, uma rede global de notícias, que libertasse os reféns assim que fosse
possível. Àquela altura a situação estava fora de controle e tinha se tornado uma questão
nacional. Todo o gabinete do governo Coreano, incluindo o presidente, se tornou um
comitê de contigência. Toda a nação se via em suspense e terror, conforme as notícias
se alternavam entre ruins e piores. O governo coreano proibiu viagens ao Afeganistão
em 21 de julho. Depois de longos dias e horas de negociação, o Talibã finalmente
concordou em deixar os últimos reféns saírem, sob duas condições: Uma, que as tropas
não-combatentes da Coréia instaladas no Afeganistão fossem retiradas até o final de
2007. Duas, que todos os trabalhadores cristãos, incluindo o pessoal das ONG’s,
deveriam deixar o Afeganistão assim que fosse possível. Houve boatos de que a equipe
de negociação do governo coreano teria pago um grande resgate em troca dos reféns.
No entanto, não há confirmação disso. O governo coreano negou essas alegações.
Deixe-me chamar a nossa atenção para as reações de vários setores da sociedade
durante e após o sequestro. Os secularistas estão em um extremo do continuum daqueles
que manifestaram sua opinião sobre o pós-sequestro e a missão realizada pela igreja
coreana; e os conservadores quanto à teologia, mas radicais em suas maneiras de fazer
missões estão no outro extremo do continuum. Os secularistas fizeram severos ataques
contra as missões cristãs e a igreja. A Igreja de Sammool sofreu duras críticas, e elas
ainda não terminaram. A seguir estão algumas amostras das reações dos diferentes
grupos sobre o sequestro, especialmente com relação à Igreja de Samool e quanto à
igreja em geral.
É quase unanimidade entre todas as partes envolvidas dizer que o sequestro afetou
futuras negociações de sequestro, tanto nacional quanto internacionalmente. A perda é
incalculável. Regras sobre negociação em caso de sequestro existentes no passado
foram violadas, o que pode aumentar a frequência de sequestros ao redor do mundo. A
igreja coreana deve asumir a responsabilidade por este resultado e desistir de fazer
missões de forma confrontadora e vigorosa e mobilizações de massas de maneira
ostensiva, especialmente em países difíceis e perigosos como o Afeganistaão e outros
países islâmicos com hostilidades similares.
Os líderes da Igreja Presbiteriana Yong Dong, e outros pastores progressistas que
pensam como ele, declararam que os dias de enviar obreiros em missões já passaram.
No entanto, a maioria das igrejas coreanas não se identifica com essa visão.
Talvez a declaração feita pelo Dr. Han Hum Ok (recém-falecido), o pastor emérito da
Igreja Amor e Dr. Myung Hyuck Kim, Presidente da Aliança Evangélica Coreana, e de
outros, reflita a posição da maioria na igreja evangélica coreana. Eles protestam contra
métodos invasivos e ostensivos de missões e, ao mesmo tempo, concordam que o
evangelismo e a responsabilidade social ainda são centrais para missões. No geral, eles
foram mais precisos na descrição da situação. Eles repudiaram alguns grupos radicais
que realizaram ações evangelísticas ostensivas para milhares de pessoas a despeito dos
fortes protestos do governo afegão, da imprensa, e até dos misisonários locais.
PÓS-SEQUESTRO
Dezenove reféns libertados chegaram ao Aeroporto Internacional Incheon em 2 de
setembro de 2007. Dois já tinham chegado antes. De vinte e três reféns, dois foram
mortos e vinte e um foram finalmente libertos. Foram levados ao Sam Hospital, em An
Yang, cidade-satélite de Seul, onde uma equipe de investigação estava pronta para
encontrar os antigos reféns. Eles passaram dez dias sendo interrogados e aconselhados
em ambiente seguro. A seguir, foram levados para uma cidade remota na Província de
Kang Won para uma semana de terapia de grupo. Muitos deles, àquela altura, tinham
voltado à vida normal, mas não sem sequelas. Para alguns deles, as cicatrizes se
manteriam por um longo tempo. Ao menos dois casais se formaram entre eles. Vários
mudaram de profissão. Oito familiares se tornaram cristãos. As famílias dos dois
membros que foram mortos foram os mais atingidos.
LIÇÕES MISSIOLÓGICAS A PARTIR DO SEQUESTRO
Este sequestro nos oferece importantes lições em meio ao sofrimento e à perda.
Devemos nos lembrar de que o incidente aconteceu conforme a providência de Deus, e
devemos tirar lições a partir dele, para melhorar a prática mundial de missões,
especialmente dos países em desenvolvimento.
Lição nº 1: Aprendemos que paixão e pureza de mente não são suficientes para boas
práticas em missões. Os membros da equipe que foi sequestrada e os envolvidos nas
igrejas e nas agências tinham pureza de mente e paixão, refletindo o zelo da igreja
coreana por missões. No entanto, paixão pura não é suficiente para missões. Precisamos
de sabedoria também. Há mais falta de sabedoria do que de pureza nas missões
transculturais. Presumimos que nossa experiência e conhecimento em nossa própria
cultura funcionam em outro contexto cultural, mas não é verdade. Precisamos ser sábios
como serpentes na obra de Deus, especialmente quando mudamos de cultura por causa
do evangelho. Os cristãos coreanos são conhecidos pela sua paixão e zelo pela causa do
reino de Deus, mas precisam aprender o que significa ser sábios e estratégicos nos
ministérios transculturais. Os países de mais tradição como enviadores de missionários
devem ajudar os países novatos como enviadores, com sua sabedoria e especialização
no ministério, especialmente em locais com problemas de segurança.
Lição nº 2: Aprendemos que entender o contexto cultural local é um pré-requisito para
atividades misionárias. Um reconhecimento do ambiente pode ser necessário como
parte do ministério transcultural. Precisamos de informações precisas e pesquisas
exaustivas sobre a situação local e as circunstâncias antes de embarcar no sério
compromisso nos campos de missões. A motivação missionária pura deveria levar a
pesquisas exaustivas sobre as características culturais, as mudanças sociais e os
potenciais riscos na área alvo. Ativismo e excesso de otimismo podem levar à
negligência desse passo. A pesquisa em missões não tem sido suficientemente
enfatizada nas igrejas e missões coreanas ao longo dos anos. As tendências ativistas dos
misisonários coreanos que buscam resultados vísiveis do ministério vão de encontro às
estratégias de desenvolvimento do movimento missionário. Igrejas e missões precisam
criar um ambiente de aprendizado organizacional para desenvolverem atividades
missionárias transculturais maduras.
Lição nº 3: Aprendemos que precisamos buscar qualidade em vez de quantidade de
crescimento nessa fase do desenvolvimento do movimento missionário na Coréia. O
movimento missionário coreano atingiu crescimento estrondoso nos últimos trinta anos,
em termos quantitativos, mas não cresceu qualitativamente tanto quanto era necessário.
Não é uma questão de isso ou aquilo, mas sim de isso e aquilo. Porém, o crescimento
quantitativo parece ser mais urgente nessa fase do desenvolvimento, por causa do
desequilíbrio entre os tipos de crescimento. Sem programas apropriados de cuidado e
treinamento do missionário, a quantidade de missionários e obreiros de curto prazo não
é em si uma razão de contentamento. O crescimento qualitativo significa buscar padrões
globais em missões neste mundo globalizado. Há traços culturais regionais refletidos no
movimento missionário nacional, mas precisamos buscar uma verdadeira visão global
além de uma verdadeira visão local para que o movimento missionário alcance uma
visão “glocal”.
Parcerias e contatos além das fronteiras culturais e organizacionais são desejáveis para o
crescimento qualitativo nesta era de globalização. Muitas igrejas e missões coreanas não
estão suficientemente em contato com outras organizações missionárias. Quando
estamos conectados adequadamente podemos tomar decisões melhores.
Consequentemente podemos prevenir muitos perigos desnecessários, especialmente em
situações hostis, como no Afeganistão.
Lição nº 4: Aprendemos que precisamos investir em desenvolvimento de conhecimento
para a maturidade do movimento missionário. Há aproximadamente 20 mil missionários
coreanos em mais de 170 países do mundo, mas há menos missionários especialistas
que seriam necessários para prevenir uma repetição dessa crise. Precisamos de
experiência em redes de informações, pesquisa e desenvolvimento, em coordenação
estratégica, em mobilização, em cuidado do missionário (incluindo aconselhamentos),
treinamento missionário, e administração. Para um desenvolvimento equilibrado, as
igrejas locais da Coréia precisam ver e investir em desenvolvimento de experiência
técnica entre as agências missionárias. Existem fontes limitadas, mas ricas, de
conhecimento disponível entre as comunidades missionárias da Coréia, mas o expertise
não é compartilhado abertamente por causa da centralização em grandes igrejas locais.
Lição nº 5: Aprendemos que ações evangelísticas de massa no campo têm sérios efeitos
colaterais negativos. O caso do sequestro de 2007 teve algo a ver com essas ações
evangelísticas com propósitos missionários em Kabul em 2006. Os grandes eventos
missionários foram planejados e executados com boas intenções, mas sem dar atenção à
oposição dos missionários coreanos já no Afeganistão. No delicado contexto islâmico,
eventos massivos dessa natureza podem ser vistos como uma ação religiosa de
estrangeiros. Uma ação evangelística pode elevar o nível de tensão rapidamente; é
preciso muita sabedoria quando missionários planejam um programa assim. É miopia
espiritual se missionários pensam que devem expulsar depressa os demônios e espíritos
maus para facilitar e garantir os frutos das atividades missionárias nos países-alvo. Uma
perspectiva de longo prazo é necessária e desejável se quisermoa enfrentar bem a
batalha espiritual. Preocupa-nos a mentalidade de curto prazo de alguns programas
evangelísticos de impacto, especialmente em países hostis, como o Afeganistão.
Ficamos pensando se eles estão baseados em cosmovisões erradas. Precisamos
recuperar o equilíbrio bíblico entre os extremos.
Lição nº 6: Aprendemos que as viagens com a “visão” de curto prazo precisam focar em
educar seus participantes e não em fazer evangelismo direto em países de acesso
limitado para cristãos. É amplamente aceito que não podemos esperar muito de uma
curta viagem, especialmente em locais de acesso restrito a cristãos. Cada vez menos
países permitem que estrangeiros façam atividades de evangelismo direto. Precisamos
ser realistas ao estabelecer objetivos para uma viagem de curto prazo a áreas difíceis.
Precisamos aprender primeiro, antes de nos envolver em sérias atividades missionárias.
Podemos pensar no que fazer e orar sobre o que fazer e em como servir às pessoas
locais de uma perspectiva missionária enquanto estivermos coletando informações e
adquirindo conhecimento sobre as pessoas nativas. Uma tentação da parte das igrejas
enviadoras e dos visitantes de curto prazo é deixar resultados visíveis de suas
atividades. Já existem muitas construções e instalações indesejadas que não foram
iniciadas a partir de um levantamento completo das necessidades. Artefatos físicos que
não são voltados para as necessidades reais servem para a autosatisfação das igrejas
enviadores e dos visitantes de curto prazo, mas não servem aos nativos. Visitantes de
longo prazo podem focar em aprender o que significa viver como cristão nesse mundo
globalizado. Podem aprender a orar, doar e dessa maneira fazer mais para alcançar os
não-alcançados no plano salvífico de Deus.
Lição nº 7: Aprendemos que precisamos nos empenhar mais para cuidar dos
missionários. Há riscos e perigos envolvidos nas atividades missionárias, tanto de longo
quando de curto prazos. Os missionários estão mais vulneráveis do que nunca a vários
tipos de perigos e riscos em potencial. As igrejas e missões coreanas precisam enfatizar
o cuidado ao missionário para um equilíbrio entre uma vida sacrifical e bem-estar. É
obrigação dos pastores das igrejas enviadoras e dos líderes de missões cuidarem bem de
suas ovelhas. Algumas vezes as pessoas enfatizam demais o martírio e negligenciam
suas obrigações quanto ao cuidado com o missionário. Como pastores, colegas
missionários, líderes de missões e apoiadores, nossa parte é oferecer o melhor cuidado
aos missionários. De acordo com minha pesquisa, voltada a dirigentes de missões
coreanas, o cuidado ao missionário é visto como um dos pontos fracos da missão
coreana. Precisamos conscientizar e orquestrar esforços a nível nacional para promover
o cuidado ao missionário.
Seja em ministérios de longo ou curto prazo, precisamos da abordagem encarnacional
que enfatiza a unidade na diversidade, a humildade e o esvaziar-se de si mesmo, a
contextualização, poder não agressivo, e a presença do Espírito Santo. O sequestro de
agosto de 2007 acabou sendo um mal que veio para o bem, para a maturidade e o
desenvolvimento da missão coreana na medida em que nos comprometermos com o
ministério encarnacional.
PERGUNTAS PARA REFLEXÃO
1. Este artigo contém as reflexões sinceras de dois líderes missionários coreanos.
Discuta a frase “É quase unanimidade entre todas as partes envolvidas dizer que
o sequestro afetou futuras negociações de sequestro, tanto nacional quanto
internacionalmente. A perda é incalculável.”
2. Discuta as implicações mais amplas da declaração de que “Há traços culturais
regionais refletidos no movimento missionário nacional”.
3. De que maneiras específicas os “países enviadores por tradição” podem ajudar
os “países novatos como enviadores”? O que seria necessário para este trabalho?
4. De que formas a “abordagem encarnacional” mencionada no final do capítulo
pode mitigar potenciais crises futuras?
Dr. Davi Tai-Woong Lee treina missionários transculturais coreanos há vinte e cinco
anos. Ele é diretor-fundador do Centro de Treinamento Missionário Global e foi
presidente da Comissão de Missões da Associação Evangélica Mundial (de 1994 a
2002). Seu Mestrado em Divindade e seu Doutorado em Missiologia são do Trinity
Seminary. Atualmente é diretor da Global Leadership Focus.
Dr. Steve Sang-Cheol Moon é diretor do Instituto Coreano de Pesquisa em Missões,
localizado em Seul, Coréia do Sul. É casado com Mary Hee-Joo e têm dois filhos que
agora são universitários. Steve é principalmente pesquisador e palestrante sobre a igreja
e missões na Coréia. Ele tem PhD em Estudos Interculturais pela Trinity Evangelical
Divinity School.
PARTE 4
PREPARO, APOIO E RESTAURAÇÃO
Aprendendo para ensinar...
Como nos prepararmos com antecedência? Como recuperar e sarar? Colocamos
esses dois temas lado a lado nesta seção importante do livro. Jesus preparou seus
apóstolos e outros seguidores para o futuro com palavras diretas e realistas. Ele sabia o
que estava fazendo e nós devemos fazer o mesmo. Muitos cristãos no Norte Global e,
para nossa surpresa, na América Latina, dizem: “Mas a perseguição e o martírio não
acontecem aqui”. Pois é, talvez ainda não, ou talvez não como em outros países. Como
podemos identificar a igreja sofredora ao redor do mundo e aprender com ela? Como
deveríamos preparar nossos servos transculturais para seu futuro ministério num mundo
incerto e violento? Os cristãos no Norte mais rico têm uma teologia do sofrimento, da
perseguição e do martírio? Quais são suas heresias e fraquezas particulares?
No entanto, as deficiências não se restringem ao Norte. Elas também aparecem
em grande parte do Sul, especialmente onde um evangelho "light” tem sido pregado, ou
onde a herética teologia da prosperidade já criou raízes.
Nos capítulos seguintes apresentamos um apanhado de vozes comprometidas
com o preparo tanto da igreja local como de seus missionários para o futuro próximo.
Ouvimos a conversa global de líderes de missão e de professores de missões.
Examinamos códigos de melhores práticas para o ministério de curto e de longo prazo
em lugares difíceis. Incluímos recursos para os que buscam a cura de seu trauma devido
ao sofrimento e à perseguição. Começamos a entender o papel do estudo acadêmico e
da pesquisa para nossos tópicos centrais.
Há muito mais que poderíamos ter incluído nesta seção e no livro. Porém reflita
agora sobre estas amostras e se pergunte: “O que eu posso aprender? O que minha
família pode aprender? O que minha igreja, minha missão, minha equipe, meu
ministério, meu seminário, meu centro de treinamento missionário podem aprender ao
ajustarmos nossa visão e redesenharmos nosso preparo para o futuro?”
William D. Taylor
RESUMO DO DIÁLOGO GLOBAL
Pastores, Pastores de Missão, Agência, e Líderes de Redes
Refletem sobre políticas em campos sensíveis
Nota do editor: Este é um resumo curto de um artigo bem mais desenvolvido que foi publicado
em Connections: The Journal of the WEA Mission Commission (Julho 2008, http://www/weaconnections.com/Back-issues/Missions-in-contexts-of -suffering,-violence,-perse/A-GlobalDialoque.aspx).
Na edição da Connections, você encontrará partes de uma comunicação global entre sociedades
missionárias, movimentos missionários e líderes missionários que tratam de questões relativas à
missão no contexto de sofrimento, violência, perseguição e martírio.
Alguns responderam brevemente às questões; outros, de forma mais narrativa; e outros ainda
enviaram cópias de suas políticas por escrito. Alguns líderes, devido à delicadeza das questões,
pediram para não serem incluídos na edição do jornal, ou deram permissão para citarmos o que
disseram anonimamente. Um afirmou que poderia escrever muito pouco porque sua agência
estava no meio de negociações delicadas para libertar um missionário recentemente sequestrado.
QUESTÕES CENTRAIS
1. Quais são as políticas de seu movimento missionário nacional, agência enviadora, ou
igreja para o envio de missionários, de curto e longo prazo para contextos de risco?
Cite algumas diretrizes específicas.
2. Vocês possuem uma declaração curta de sua teologia bíblica sobre a perseguição e o
martírio? Se a resposta for positiva, por favor, compartilhem conosco.
3. Que diretrizes vocês têm (ou acham que precisam desenvolver) no caso de sequestro de
missionário ou filho/a de missionário?
4. Que diretrizes vocês têm (ou acham que precisam desenvolver) sobre o pagamento de
resgate de um missionário sequestrado?
5. Que cuidado pós-traumático é oferecido às suas famílias missionárias no caso de
passarem por uma situação de violência, doença ou morte?
6. Que tipo de treinamento pré-campo vocês oferecem ou encorajam para contextos de
risco, violência, perseguição, ou martírio?
7. O que mais deveríamos dizer às nossas igrejas e futuros missionários sobre este
assunto?
8. Por favor, inclua um pequeno exemplo ou estudo de caso, se puder.
RESUMO DAS RESPOSTAS
Suponha que você seja o líder de uma igreja ou agência que envia pessoas para lugares
perigosos, como muitos fazem, inevitavelmente. Como deveria preparar seus enviados para tais
missões? O que você deve fazer quando o perigo deixar de ser uma possibilidade e se tornar
uma realidade? Que preparativos, planos, e políticas devem exixtir a priori e ser entendidas por
todos os envolvidos? Como você pode agir de forma responsável, e ao mesmo tempo
reconhecer que alguns lugares onde há maior necessidade de testemunhas comprometidas do
evangelho são também os mais hostis? E como você pode cuidar das pessoas após um evento
desse tipo?
A seguir, apresentamos um amálgama de doze respostas extensas a estas questões. Havia um
consenso significante, mas alguns detalhes foram contribuições individuais.
As duas primeiras questões se referem a políticas e diretrizes para o envio de missionários (1) de
curto prazo, e (2) de longo prazo para contextos de risco. É raro enviar missionários de curto
prazo a situações de risco ou isoladas, e onde isto chega a ser proposto, é porque há
missionários maduros como parte da equipe, que já estão no local para onde os missionários de
curto prazo serão enviados. Esta equipe pode ser de uma agência parceira, e não a que está
enviando os missionários de curto prazo, mas deve ser estável e experiente, afirmativa em seu
desejo de receber as pessoas e de aconselhar e mentorear as mesmas apropriadamente. Uma
agência exige que missionários de curto prazo assumam a responsabilidade de fazer um seguro
de viagem com a provisão da necessidade de evacuação, enquanto seus missionários de longo
prazo recebem cobertura da própria agência na eventualidade destes casos. Muitos enfatizam
que missionários de curto prazo devem seguir as insturções da liderança da equipe, mas isto
também é exigido dos missionários de longo prazo. Isto é importante para proteger os cristãos
locais quando há problemas.
Muitas agências possuem regras muito rigorosas para o recrutamento, especialmente para
aqueles que desejem ir para locais de risco ou mais difíceis. Verificam a maturidade geral,
emocional e a saúde física, e resiliência espiritual, que são essenciais para tais colocações.
Também insistem na participação de um treinamento de orientação, no qual as especificidades
de cada destino são descritas. Uma organização inclui um treinamento por simulação. Tanto
para missionários de curto prazo quanto para de longo prazo, a agência deve fornecer
informações cuidadosas e honestas sobre a situação a ser enfrentada pela pessoa, para que, se
houver risco em potencial, o obreiro possa compreender plenamente, assim como sua família
imediata e igreja de envio. Algumas agências têm manuais detalhados, que são revisados
frequentemente, de acordo com as mudanças de situação, lidando com princípios básicos para
tratar as situações de crise, tais como assalto ou ataque, e todos os membros da equipe têm que
conhecer estas informações muito bem. A maioria das agências também observam as
recomendações de embaixadas nacionais de seu pessoal, especialmente com relação à
evacuação quando níveis gerais de perigo aumentam, como no caso de começar uma guerra
civil.
É claro, o que é percebido como situação de alto risco vai variar de uma parte do mundo para
outra, e de fato, alguns contextos podem ser de maior risco para pessoas de determinados
grupos. Isto é especialmente complicado para agências internacionais, porque seu pessoal vem
de diversos países, com diferentes expectativas sobre o que constitui “risco razoável”, sobre
quais dificuldades são aceitáveis, e até mesmo quais as exigências legais de diferentes países dr
origem. Então, por exemplo, um dos participantes Indiano, comenta que missionários da Índia,
a maioria dos quais trabalha em contextos transculturais na própria Índia, passam mais por
problemas de risco para sua saúde em áreas remotas do que de martírio. Muitos ficam doentes
com malária, febre tifóide, icterícia, encefalite, e outras doenças. Comparativamente, muitos
missionários ocidentais esperariam ser evacuados bem mais rápido que nossos irmãos Indianos,
para receberem tratamento médico de especialistas, e, de qualquer forma, eles podem ter seguro
de saúde, o que não é viável financeiramente para muitos do sul global.
Surpreendentemente, apesar da maioria das agências terem documentos e treinamento sobre as
respostas práticas diante de situações de risco, apenas uma, a organização “guarda-chuva” alemã
DMG, tem um resumo de sua teologia bíblica da perseguição ou do martírio. Talvez isto reflita
o ativismo evangelical, mas muitos líderes, surpreendidos pela questão, comentaram que isto é
algo que precisam providenciar. Kirk Franklin, da Wycliffe Internacional, infelizmente
comentou que missionários ocidentais não têm essa teologia do sofrimento porque
culturalmente. em décadas recentes, há uma busca de redução dos danos, de evitar o risco, e
promover o conforto pessoal. Ao mesmo tempo, a maioria das agências têm suas declarações
de fé, o que já é um bom começo e, de fato, afirmam algumas verdades fundamentais. Então,
por exemplo, Patrick Fung, da OMF Internacional, afirma que “Nossa dependência está em
Deus para nossa proteção e seguraça.”
Há um consenso forte de que no caso de sequestro, inclusive de filhos de missionários, não se
deve pagar resgate, porque isso colocaria em perigo os outros. É claro que isto traz grande
agonia à família da pessoa sequestrada, e por isso há um esforço especial para apoiá-la e
aconselhá-la. Na maioria das vezes, a família é evacuada para o país de origem, ou pelo menos
para um lugar seguro. Já que essa é uma política de consenso, a pessoa sequestrada teria o
consolo de saber que sua família está em segurança e recebendo cuidados necessários. Às
vezes, um sequestro é uma indicação que toda a equipe deveria ser evacuada, pelo menos por
um tempo, mas esta decisão também é muito difícil e emocionalmente desgastante. Deve-se
pedir conselho aos cristãos locais, especialmente se forem diretamente afetados pelo que
potencialmente os sequestradores possam fazer. Onde for possível, negociadores experientes
devem ser chamados e o governo local informado, se necessário. Se a situação for muito
sensível, pode não ser aconselhável a divulgação das informações, mas se o incidente já tiver se
tornado público, redes cristãs devem ser mobilizadas, para orar pelos envolvidos e pela
resolução do conflito em segurança. Agências devem entrar em contato com os parentes mais
próximos e com as igrejas de origem, para informar sobre o que está acontecendo, antes que a
mídia, cristã ou não, divulgue as notícias.
Qualquer experiência traumática – sequestro, estupro, assalto a mão armada, assassinato e
muitos outros – pode afetar profundamente a pessoa ou pessoas diretamente envolvidas, mas
também seus colegas de equipe. A maioria das agências têm esquemas de aconselhamento por
profissionais e boas sessões de troca de informações (debriefing) , mas, inevitavelmente, isso
varia de lugar para lugar em termos de qualidade e adequação. Nenhum dos respondentes
comentou sobre o aconselhamento para os cristãos locais que fossem diretamente afetados; não
havia uma questão explícita a este respeito, mas temos a responsabilidade de cuidar não só de
nossos próprios membros, mas também daqueles entre os quais servimos. Também, a maioria
dos respondentes falou de uma resposta imediata à crise, para a qual existe muita experiência
atual em muitas partes do mundo, mas pouco foi dito sobre um apoio de longo prazo. Tanto
adultos quanto crianças têm que conviver com as consequências de um trauma por muitos anos
depois do ocorrido.
Um bom cuidado pós-traumático é caro, e pode sobrecarregar grupos mais pobres. Bob Lopez,
da Associação Missionária Filipina (Philippine Mission Association), escreve: “Algumas vezes,
dependendo da necessidade, tentamos levantar apoio financeiro para a família”, o que nos
lembra que mais e mais da força missionária mundial vem de países onde o apoio geral do
Estado (sistema de saúde, aposentadoria, habitação, etc...) é limitado ou ausente; neste caso, a
agência missionária pode ter que se responsabilizar por muito tempo e de forma prática, pelo
apoio aos traumatizados ou feridos. Da Índia vem a observação que, no momento, há muito
pouco cuidado disponível, e uma parcela muito pequena no orçamento para o cuidado póstraumático; ao mesmo tempo, há uma consciência cada vez maior da necessidade de se enfrentar
esta questão.
Junto ao cuidado profissional, é claro, existe o apoio crucial de uma comunidade amorosa.
Então, a igreja e a família, tanto no local de serviço quanto no de envio, têm um papel
importante. No entanto, em ambos os casos, pode haver pouco entendimento do que está se
passando com a pessoa ferida. Muitas vezes, pessoas traumatizadas não conseguem se
expressar adequadamente, e feridas profundas não podem ser colocadas em palavras facilmente.
Aqueles que desejam ajudar podem não ter as qualificações ou mesmo imaginar como fazer isto
da melhor forma. Apesar disto, tanto líderes de agência quanto parceiros de oração podem
cercar a pessoa de cuidados e apoio pacientes.
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. É possível prever toda crise que poderia surgir? Como indivíduos, sua igreja enviadora,
e a agência podem, juntos, procurar suprir um treinamento razoável? Se o indivíduo
diz que se sente fortemente chamado para um lugar potencialmente perigoso, como a
igreja e a agência deveriam lidar com essa situação, se o considerarem inadequado?
2. Um número crescente de missionários transculturais vêm de países economicamente
pobres, ou lugares onde a igreja enviadora é pequena e/ou pobre. Que desafios
especiais estão diante deles? A igreja global deveria colaborar financeiramente para o
cuidado de sua saúde, por exemplo? Qual seria o impacto positivo, e qual o impacto
negativo de fazer isto?
3. A recusa de pagar o resgate de uma pessoa sequestrada muitas vezes leva à sua morte.
Esta política de recusar o resgate é correta? Por que? Por que não? Há circunstâncias
em que pode ser certo pagar? Qual seria a consequência provável ?
PREPARANDO A IGREJA E AGÊNCIAS
MISSIONÁRIAS
Para o sofrimento, a perseguição e o martírio
Stephen Panya Baba
A NECESSIDADE DO PREPARO
Um grande progresso foi feito na evangelização de povos não alcançados nos últimos anos e por
isso damos glória a Deus. No entanto, como Deus disse a Josué em Josué 13.1, ainda
muitíssima terra ficou para se possuir. De acordo com a Operation World, dos 16,350 povos na
lista do Projeto Josué, 6.645 estão classificados como menos alcançados ou não alcançados, o
que é aproximadamente 40,6% dos grupos. Além disso, a população total de indivíduos de
grupos não alcançados é de 2,84 bilhões, ou 41,1 porcento da humanidade. É de grande
interesse e relevância especial para nosso assunto que a grande maioria dos não alcançados são
originários da “janela 10/40”.
A janela 10/40 é uma área retangular no Norte da África, Oriente Médio, e Ásia, entre 10 graus
e 40 graus de latitude. Todos os cinquenta países menos cristãos e menos evangelizados do
mundo estão localizados nessa região. Ela contém mais de 90 porcento dos grupos não
alcançados do mundo – mais de cinco mil tribos e grupos etnolinguísticos, com pouco ou
nenhum testemunho do evangelho.
Esta região é muito resistente ao evangelho, uma região de poderosas fortalezas satânicas. De
acordo com John Piper, alcançá-los, como nos ordena Jesus, será perigoso e custará caro.
Alguns de nós e alguns de nossos filhos seremos mortos. Portanto, não nos surpreende que esta
região tenha o menor número de missionários. O preço de ser testemunha de Cristo nesta vasta
região não alcançada é muito alto e para muitos, é um preço para o qual não estão preparados,
ou que não estão dispostos a pagar. Se a tarefa de evangelização mundial precisa ser realizada,
então a igreja e missionários enviados por ela deverm estar preparados a pagar o preço de
alcançar os grupos não alcançados restantes, especialmente na janela 10/40. Com certeza, isto
implicará em sofrimento, perseguição, e até martírio. Isto exige que a igreja e seus missionários
sejam intencionalmente preparados.
A PRONTIDÃO DA IGREJA E DE AGÊNCIAS MISSIONÁRIAS
Missionários são enviados ao campo por várias denominações, para serem testemunhas do
evangelho. Estas denominações desenvolveram, ao longo de anos, algumas peculiaridades que
podem incluir crenças teológicas e doutrinárias, o ambiente religioso, social e até econômico de
suas operações, etc... Portanto, algumas igrejas e missionários podem estar mais preparados
para enfrentar o sofrimento, a perseguição e o martírio, por causa de sua perspectiva doutrinária,
ênfase bíblica deliberada e perspectiva teológica correta a respeito desses assuntos. Por
exemplo, muitas igrejas no mundo de dois terços foram fundadas por missionários ocidentais
que sacrificaram muito em termos de sofrimento, perseguição e martírio. Consequentemente,
elas enfatizaram ensinos bíblicos sobre isto, primariamente para encorajar o envolvimento
missionário das igrejas que estavam se estabelecendo, de modo que elas enviassem missionários
autóctones que estivessem bem preparados para se sacrificar e perseverar na evangelização de
muitas áreas não alcançadas. De fato, muitas dessas denominações foram mal compreendidas,
incluindo a minha própria, e acusadas erroneamente de pregar a pobreza como uma virtude
espiritual ou de terem equiparado a pobreza e o sofrimento à espiritualidade.
Um dos princípios da antiga Missão Interior do Sudão, no princípio, era de plantar igrejas com
visão missionária. Isto foi feito através de publicações, ensino bíblico, e métodos de formação
de aprendizes, de modo que os novos convertidos praticassem o que tinham aprendido,
participando no ministério de evangelização. Esta era a prática da SIM desde o início de seu
trabalho na Nigéria. O resultado natural de seus métodos e práticas garantiu o estabelecimento
de igrejas autóctones com visão missionária, prontas a levar o evangelho a outras áreas,
enfrentando grandes sacrifícios.
Yusuf Turaki recorda a atitude dos missionários pioneiros da SIM, que foi passada à igreja
estabelecida, citando uma carta escrita pelo Sr. Gowans a sua mãe, em que dizia: “Nosso
sucesso nesta empreitada significa que o país estará aberto para o evangelho; nosso fracasso, no
máximo, nada mais do que a morte de dois ou três fanáticos iludidos. Mas, se falharmos, será
nossa própria culpa, por falta de fé. Deus é fiel – ele não falha. Mas, nem a morte significa
derrota. Seus propósitos são alcançados. Ele usa mortes bem como vidas para propagar a sua
causa. Afinal, será que não vale a pena este investimento? Sessenta milhões estão em jogo!
Será que não vale a pena arriscar até nossas vidas por tantos?”
Turaki concluiu que não há dúvida se esses missionários pioneiros estavam espiritualmente
preparados desde o princípio, para enfrentar qualquer dificuldade ou perigo pelo caminho, e
alcançar o Sudão com o evangelho. De fato, eles estavam, porque em menos de um ano, dois
dos três missionários pioneiros morreram no lugar que mais tarde se tornou a Nigéria atual.
Deus, no entanto, providencialmente poupou Roland Bingham, que perseverou no trabalho,
contra todas as expectativas, o que eventualmente resultou no estabelecimento das igrejas da
antiga SIM, agora chamadas de igrejas da Evangelical Church Winning All (ECWA), que tem
mais que cinco mil congregações locais e pastores, e mais que seis milhões de membros em
todo o mundo.
Além disso, os missionários da Evangelical Missionary Society (EMS) da ECWA continuam a
ministrar em áreas remotas infestadas de doenças e no norte da Nígéria, centro do Islamismo
fanático e volátil. Esta é a herança dos missionários pioneiros e que continua a ser passada a
gerações subsequentes. Recentemente, durante o levante muçulmano contra os cristãos no norte
da Nigéria, um de nossos missionários da EMS, Isma Dogari, foi sequestrado, forçado a entrar
numa mesquita, e pressionado para negar a Cristo e aceitar o Islamismo. Quando se recusou,
arrancaram os seus olhos e depois o mataram.
Algumas das denominações estabelecidas pelos missionários pioneiros ocidentais que passaram
por sofrimento, perseguição e martírio no início de seus ministérios desenvolveram uma forte
resiliência em decorrência disso. Isto não só as ajudou a sobreviver na fornalha em chamas,
mas também as preparou da melhor forma, para serem testemunhas missionárias do evangelho
em outras situações semelhantes de aflição. Por exemplo, quando as igrejas nas casas da China
planejaram entrar para o movimento “Visão de Volta a Jerusalém”, um movimento que que
começou com a esperança de levar o evangelho, desde a nações não alcançadas vizinhas da
China até chegar a Jerusalém, primeiramente exigiram que fossem enviados seus melhores
obreiros. Para decidir quais eram os melhores obreiros, procuraram aqueles que estavam em
posições de liderança no movimento de igrejas nas casas há pelo menos dez anos, que tinham
sofrido muitas dificuldades pelo Reino de Deus, e cujos ministérios estavam frutificando muito
há muito tempo. Estes eram os critérios necessários, porque vinte e nove dos trinta e seis
obreiros enviados foram presos em seus primeiros dias de trabalho missionário! Assim, o que
encontraram foi uma situação que já haviam previsto, e para a qual estavam preparados de
antemão.
A maioria das denominações que foram fruto de projetos missionários sacrificiais ou que
cresceram e floresceram em meio ao sofrimento, perseguição e martírio naturalmente estariam
mais preparadas e adaptadas para alcançar áreas de dificuldades semelhantes. Infelizmente,
muitas igrejas implantadas por denominações modernas não tiveram o privilégio de
desenvolver-se a partir de situações difíceis, mas são produto de um evangelismo moderno de
shows, ou do chamado evangelho da prosperidade – um evangelho que tem propagado o
Cristianismo principalmente aos que já foram evangelizados, e que não exige que os cristãos
tomem sua cruz, e, como Paulo, preencham o que resta das aflições de Cristo, na sua carne, a
favor do seu corpo, que é a igreja (Cl 1.24). Assim, não estão prontos a pagar o preço de levar o
evangelho aos povos não alcançados ou aos menos evangelizados.
Outras igrejas, especialmente no hemisfério ocidental, mas também nas regiões do Sul da
maioria, se tornaram complacentes no seu conforto há muitos anos. Perderam o fogo
evangelístico e o zelo missionário e, com certeza, relutam em sair de sua zona de conforto, a
arriscar qualquer coisa por amor do progresso do evangelho que elas mesmas afirmam como
único meio e poder para a salvação de almas. Em Crônicas 12.32, os homens de Issacar eram
conhecidos como homens que entendiam sua época e sabiam o que Israel deveria fazer. Em
tempos como estes, há uma necessidade premente de acordar e preparar a igreja e agências
missionárias, para enfrentar os desafios de missões no século vinte e um. Isto passa
necessáriamente pelo preparo para o sofrimento, perseguição e martírio.
UMA ABORDAGEM DUPLA
Geralmente, o preparo da igreja e de agências missionárias para o sofrimento, perseguição e
martírio pode ser considerado de duas perspectivas principais:
A PERSPECTIVA TEOLÓGICA, DOUTRINÁRIA E ESPIRITUAL
Foi a perspectiva bíblica, teológica, doutrinária e espiritual correta que inspirou o grande
Guilherme Carey, conhecido como pai das missões modernas, a despertar toda a igreja de Cristo
para sua responsabilidade divina de levar o evangelho aos povos não alcançados do mundo.
Nos dias de hoje, é a visão teológica, doutrinária e espiritual correta sobre o sofrimento,
perseguição e martírio que é necessária, para estimular a igreja a alcançar o restante dos povos
não alcançados que estão localizados nos chamados países fechados. Exigirá sacrifício, até
mesmo o sacrifício de nossas vidas, levar o evangelho até eles.
A igreja precisa ser despertada para a verdade do evangelho de que, nas palavras do Pastor Tson
, “o sofrimento de Cristo é para a nossa propiciação, o nosso sofrimento é para a propagação.” O
sofrimento, a perseguição e o martírio, como preço necessário a se pagar na propagação do
evangelho, são enfatizados nas Escrituras. Isto precisa ser ensinado e enfatizado na igreja, e nas
agências missionárias. Agências missionárias precisam se certificar de que os missionários
sendo enviados conhecem as seguintes Escrituras em particular:
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Então, disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se
negue, tome a sua cruz e siga-me. Com isso, ele estava se referindo a seguir o
caminho do seu sofrimento, perseguição e até a morte se fosse a vontade de Deus
(Mt. 16.24)
A Bíblia deixa claro em Atos 14.22 que “através de muitas tribulações, nos importa
entrar no reino de Deus.” (Atos 14.22)
O Senhor Jesus nos avisou que “vem a hora em que todo o que vos matar julgará com
isso tributar culto a Deus.” (João 16.2). Quão verdadeiras são estas palavras para
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aqueles que estão sendo martirizados por fanáticos muçulmanos hoje, em nome de
estar seguindo um mandato de seu deus Alá!
Pedro disse: “ Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós,
destinado a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos estivesse
acontecendo;” (1 Pedro 4.12)
Tiago disse: “Meus irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias
provações, sabendo que a provação da vossa fé, uma vez confirmada, produz
perseverança. Ora, a perseverança deve ter ação completa, para que sejais perfeitos e
íntegros, em nada deficientes.” (Tiago 1.2-4)
Falando sobre o fim dos tempos em que estamos, Apocalipse 13. 5-7 diz: “ Foi-lhe
dada uma boca que proferia arrogâncias e blasfêmias e autoridade para agir quarenta e
dois meses; e abriu a boca em blasfêmias contra Deus, para lhe difamar o nome e
difamar o tabernáculo, a saber, os que habitam no céu. Foi-lhe dado, também, que
pelejasse contra os santos e os vencesse.” Portanto, o martírio é, com certeza, a
vontade de Deus para alguns cristãos.
A igreja e as agências missionárias não deveriam, entretanto, encorajar os cristãos e os
missionários a desejar ou a procurar a perseguição, o sofrimento e o martírio pela causa do
evangelho. Gordon Heath, escrevendo sobre desejar a perseguição, enfatiza esta afirmação,
dizendo que os cristãos primitivos desconfiavam daqueles que estavam em busca de
perseguição. A igreja primitiva aprendeu rapidamente que os que faziam isto eram geralmente
os que não a conseguiam suportar. Ele continua, dizendo que a perseguição precisa ser vista
como o que realmente é – “cheia de sangue, dor, e uma tragédia.” Os cristãos deveriam esperar
e se preparar para a perseguição, mas jamais procurar ou desejar a mesma. Se vier, e não puder
ser evitada, então sofra. Mas se não vier, não a deseje nem a provoque.
A não ser que as igrejas e agências missionárias estejam preparadas para aceitar o sofrimento, a
perseguição e o martírio como parte do plano divino e de seus propósitos para seu chamado, isto
pode se tornar sua maior perdição. Adoniram Judson vivia nas campinas da graça soberana de
Deus. Enfrentou tanta adversidade no campo missionário, inclusive perdendo suas esposas e
seus filhos e ficando psicológicamente deprimido, que confessou: “Se eu não tivesse a certeza
de que cada provação adicional foi ordenada pelo infinito amor e misericórdia, não poderia ter
sobrevivido a tantos sofrimentos acumulados.”
Uma ênfase renovada no desenvolvimento do relacionamento pessoal dos cristãos e sua
comunhão com o Senhor precisa ser dada pela igreja e pelas agências missionárias, para que os
cristãos e missionários possam resistir e florescer onde há sofrimento, perseguição e martírio.
Em muitos casos, os missionários acabam ministrando em situações isoladas e difíceis, de tal
forma que é a espiritualidade interna, construída e sustentada pelos seus próprios hábitos
devocionais de oração e comunhão com o Senhor, que vai sustentá-los. Não é incomum
missionários serem presos e colocados na cadeia, e submetidos a trabalho forçado. Nessas
circunstâncias, sua única fonte de sobrevivência é sua força espiritual interior, porque
geralmente são destituídos de qualquer comunhão ou ajuda. Cristãos e missionários só podem
continuar bem em situações de sofrimento, perseguição e martírio se derem atenção ao
desenvolvimento desses recursos espirituais internos. Esta é a experiência da igreja na China e
na maioria dos países em circunstâncias semelhantes. A perseguição brutal da igreja na China
fez com que ela ficasse sem nada externo que pudesse ser associado ao Cristianismo. Prédios
de igrejas foram confiscados e, ou foram demolidos, ou usados como casas, ginásios ou
depósitos. Bíblias e hinários foram queimados, e a liderança das igrejas, quase inteiramente
removida. No entanto, apesar de estarem vivendo num sistema empenhado na sua destruição, as
igrejas na China aprenderam a não ter medo – não porque apreciem a perseguição e a tortura,
mas porque conhecem a Deus e foram profundamente transformadas. Elas experimentaram o
amor profundo e íntimo de Deus, e agora conhecem pessoalmente a verdade das suas
promessas.
PREPARO FÍSICO
Em nenhum outro lugar, a verdade encontrada em Mateus 10.16 é mais aplicável que na forma
como a igreja e as agências missionárias deveriam agir diante do sofrimento, perseguição e
martírio. É necessário ser prudentes como as serpentes e símplices como as pombas. Se a
igreja precisa preparar cristãos e missionários para qualquer eventualidade e, de fato, como já
falamos antes, estar pronta para sofrer e, se necessário, morrer por seu testemunho cristão, existe
uma base teológica, para que a igreja dê passos razoáveis no preparo de cristãos e missionários
fisicamente para uma resposta prática.
Alguns sofrimentos e perseguição podem ser provocados por ignorância, insensibilidade e até
descuido evidente para com a cultura, tradição e religião dominante da comunidade, ou para
com os campos missionários. Portanto, missionários precisam ser apropriadamente orientados
para ministrar na cultura e no contexto socioreligioso de seus campos, de modo a evitar
sofrimento autoinfligido.
Também, tem havido uma grande mudança de atitude de muitos (certamente não de todos)
missionários ocidentais de hoje, comparando-se aos missionários veteranos de antigamente,
pelo menos na opinião do que um Africano pode observar.
Os “velhos veteranos” estavam, com certeza, mais preparados para circunstâncias adversas.
Isto transparecia nas poucas posses que traziam para o campo missionário. Além disso, eles
também estavam mais dispostos a viver no nível básico de subsistência, juntamente à a
população autóctone com que conviviam durante toda a vida. Alguns missionários até
começavam a treinar como iriam viver no campo missionário, mesmo antes de saírem de seu
país de origem, vivendo com menos luxo e comendo refeições menos elaboradas. Ao contrário,
muitos dos missionários de hoje chegam com equipamento pesado e variado, alimentos
importados, e outras conveniências para tornar suas vidas o mais confortável possível no
chamado campo missionário. Diferente do que ocorria antes, sua base de atuação missionária se
restringe muitas vezes a vilas e cidades, porque, como eles justificam frequentemente, “há
razões de segurança e de saúde”. Muitos dos missionários de hoje operam a partir de suas bases
confortáveis em vilas e cidades, e ocasionalmente visitam os missionários autóctones que
trabalham em regiões perigosas e difíceis. Esses missionários também só ficam no campo
missionário enquanto for conveniente para eles. Muitas vezes, eles voam para casa ao menor
sinal de perigo ou conflito. Este tipo de atitude é uma das maiores razões que levaram à ideia,
certa ou errada, de que as agências missionárias do Sul só precisam do apoio financeiro dos
parceiros do Norte. A ideia é que este apoio financeiro pode ajudar a sustentar bem mais
missionários autóctones, já acostumados com a dificuldade, e assim, ser um apoio mais efetivo,
por uma fração do valor do que custaria sustentar um missionário ocidental.
Missionários que vêm de países desenvolvidos, especialmente Ocidentais, precisam ser
orientados quanto à necessidade de serem testemunhas para as equipes missionárias autóctones
em seu contexto e estar preparados para baixar seu padrão de vida, enfrentar perseguição, e até o
martírio, junto com as ovelhas que o Senhor lhes der para cuidar, e não fazer como os
mercenários que fogem cada vez que há uma ameaça.
Embora missionários precisem estar preparados e dispostos a sofrer e até a morrer, se for da
vontade soberana de Deus, a experiência de Cristo após seu nascimento (Mateus 2.13) nos
ensina que pode haver situações em que precisemos mesmo fugir da perseguição. Quando o Rei
Herodes ordenou que as crianças de dois anos para baixo fossem mortas, Deus ordenou que os
pais do bebê Jesus fugissem para o Egito até que este rei morresse. Também a experiência de
Paulo ilustra bem a necessidade de se estar aberto à direção e orientação de Deus nessas
situações. No princípio, quando estava sendo perseguido pelos Judeus, Paulo foi descido,
dentro de um cesto, da janela na muralha. Outra vez, no entanto, ele foi avisado que corria
perigo de morte, mas respondeu que sua vida só teria valor para ele, se pudesse completar a
carreira de levar o evangelho (Atos 20.24)
A igreja Chinesa tem feito os missionários se prepararem para correr e escapar, se essa for a
direção de Deus. Eles dizem: “sabemos que o Senhor nos manda para a prisão para testemunhar
a seu respeito, mas também cremos que o diabo às vezes deseja nos aprisionar, para parar o
ministério que Deus nos chamou para fazer. Ensinamos aos missionários habilidades especiais,
tais como o que fazer para se libertar de algemas, em trinta segundos e como pular de uma
janela no segundo andar sem se machucar.” Este tipo de preparo não é descabido na igreja, e
especialmente para missionários que serviriam em países onde há tendência à perseguição,
como na janela 10/40.
Embora uma agência missionária possa ter que acionar planos de emergência no caso de perigo
para os missionários, as decisões sobre se os missionários deveriam ficar ou fugir, como regra
geral, deveriam ser tomadas pelos próprios missionários, e não impostas a eles.
Pela experiência da igreja de nossa denominação (ECWA), a igreja precisa tomar as seguintes
medidas para se preparar para o sofrimento, a perseguição e o martírio:
Oração
A igreja deveria estar altamente mobilizada para orar constantemente contra o aumento da
violência e pelo consolo e encorajamento de vítimas de violência.
Sensibilizar líderes e membros da igreja quanto aos primeiros sinais de
conflito e como conseguir ajuda
Na nossa experiência, cristãos têm reagido aos conflitos ao invés de serem proativos. Membros
de igreja precisam ser sensibilizados e ensinados a detectar ataques iminentes e chegar a um
lugar seguro durante ataques.
Suprir ajuda imediata
A igreja deve estar sempre preparada, por causa do aumento de ataques, para se deslocar até as
áreas afetadas, para verificar as condições dos seus membros e suprir ajuda imediata em termos
de transporte de pessoas, comida, roupas, cuidados médicos, cobertores, colchões, e outros itens
essenciais para famílias afetadas. Uma rede deveria ser estabelecida, para tornar mais fácil a
mobilização de membros de igrejas e cristãos para regiões, estados, zonas, e até países fora das
áreas de crise, e para enviar ajuda aos irmãos e irmãs afetados e necessitados imediatamente e
também por longo prazo.
Apoiar membros para que reconstruam suas casas e igrejas
A igreja deve estabelecer um fundo de emergência ao qual possa recorrer para ajudar seus
membros a reconstruirem suas casas e locais de adoração. Isto deveria ser feito para aliviar seu
sofrimento, mas também para garantir a permanência do testemunho cristão nessas áreas.
Investigação, coleta de relatórios, e apresentação da posição da igreja
diante de comissões de investigação e da mídia
A igreja precisa analizar objetivamente cada situação de crise (causas, nível de prejuízos e suas
intenções) e elaborar um relatório detalhado para a liderança da igreja. Num país como a
Nigéria, o governo tradicionalmente investiga a crise. O relatório da igreja pode ser enviado à
comissão, representando a voz dos membros afetados.
Representação legal para os membros presos
Como é comum durante casos de violência religiosa, membros da igreja muitas vezes são presos
injustamente por agentes da polícia preconceituosos contra sua religião, o que piora o
sofrimento das famílias, porque geralmente quem é detido é justamente a pessoa que sustenta a
casa. A igreja deveria ter um serviço legal gratuito a que possa recorrer, para garantir a justiça
para esses membros e sua libertação.
Apelo à calma e repúdio à violência
Em contraste aos grupos religiosos no país, que usam, muitas vezes, seus locais de culto para
incitar e infligir a dor e a violência contra cristãos, a igreja deveria usar seu púlpito e a mídia
para apelar aos seus membros e igualmente a outros cristãos que permaneçam calmos diante da
perseguição contra eles, evitando a violência e buscando a paz por todos os meios necessários.
Consulta ao governo/a outros grupos religiosos
A igreja deveria continuar se encontrando com autoridades governamentais, se possível, para
consultá-las e oferecer sugestões úteis para interromper outras crises no país originadas pela
intolerância religiosa.
Ajudar na segurança
Se possível, a igreja deveria estar sempre em contato com os militares, com a polícia, e outras
agências de segurança, para ajudar a controlar a situação de violência e se possível, prevenir a
violência antes que ocorra.
Por fim, surge a questão: “Cristãos e agência missionárias deveriam ser preparados a se
defender, usando armas de guerra? Esta é uma pergunta muito difícil que precisaria de uma
consideração à parte. Porém, é certo que, diferente dos muçulmanos que consideram como
mártires os representantes do Jihad que matam ou cometem suicídio enquanto estão divulgando
o Islamismo, nenhum cristão pode ser considerado mártir a não ser que morra voluntariamente,
como um sacrifício necessário que ele tenha que fazer por causa de seu testemunho cristão.
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. Quais foram os princípios dos missionários pioneiros da SIM quanto à disposição a
pagar o preço de estabelecer igrejas no interior da África? Qual foi o fruto de sua
atitude e dedicação? Como seu exemplo nos inspira em nosso trabalho?
2. Como, de acordo com Baba, as igrejas podem aprender a se preparar para o sofrimento
e o martírio, e quais seriam atitudes inadequadas em resposta a tais dificuldades? Como
sua igreja responde a estas questões, tanto a igreja local, quanto a igreja global de
Cristo?
3. O que você acha das medidas que as igrejas da ECWA desenvolveram para se preparar
para a crise e a perseguição? Como podemos adaptar suas diretrizes ao nosso contexto
e a outros contextos?
REFERÊNCIAS
Abu, S. n.d. ECWA’s response to the religious conflict in Plateau and other northern states of
Nigeria. Palestra apresentada ao Secretário para Respostas a Conflitos da ECWA.
Baba, P. 2009. A vision received, a vision passed on. Jos, Nigeria: ACTS.
Hattaway, P. 2003. Back to Jerusalem.Tyrone GA: Authentic Media.
Heath, G. L. 2010. Wishing for persecution? International Journal for Religious Persecution
3/1, 15–22. www.iirf.eu.
Mandryk, J. 2010. Operation world. Colarado Springs, CO: Biblica.
Piper, J. 2009. Filling up the afflictions of Christ. Wheaton, IL: Crossway.
Turaki, Y. 1993. An introduction to the history of SIM/ECWA in Nigeria 1893–1993. Jos,
Nigeria: ECWA Publications.
Sr. Stephen Panya Baba formado em contabilidade na universidade, tem Mestrado em Estudos
Bíblicos (MABS) do Seminário Teológico da ECWA, Igbaja, Nigéria. Trabalhou doze anos
como implantador de igrejas e pastor em Abuja, Território da Capital Federal da Nigéria, antes
de assumir seu presente mandato como Diretor da Sociedade Missionária Evangélica (SME) da
Evangelical Church Winning All (ECWA) em janeiro de 2009. Mora em Jos, na Nigéria
Central.
PREPARANDO A IGREJA LOCAL E
NOSSOS MISSIONÁRIOS
Paul Estabrooks
Em janeiro de 2004, eu estava liderando um grupo da minha igreja no Canadá, que estava numa
viagem missionária a Cuba. A igreja em Cuba tinha passado por um movimento de grande
avivamento e o movimento de igrejas nas casas estava cheio de novos cristãos.
Em Havana, visitamos o Seminário Batista e tivemos o prazer de estar com o seu presidente, já
idoso, Reverendo Dr. Vegilla. Ele falava inglês fluentemente e nos contou como havia passado
cinco anos no sistema carcerário de Castro nos anos 60, só por ser um pastor cristão. Também
especificou as pressões por que a igreja passou nas mãos do regime de Castro nos últimos
quarenta e cinto anos. Depois sorriu e, de forma positiva e gentil, concluiu: “Mas aprendemos
três coisas nestes anos. Aprendemos a não temer, a não odiar e a não prejudicar!”
Meditei sobre esta afirmação por algum tempo e concluí que ela expressa muito sucintamente a
essência bíblica de permanecer firme durante qualquer tempestade. Aprender “a não temer”
infere o desenvolvimento de ousadia e coragem. Aprender a “não odiar” implica em focalizar o
amor, o perdão e a graça. E aprender a “não prejudicar” indica um compromisso com os
princípios bíblicos de dizer não à violência e sim ao amor radical. Três lições de grande valor.
Através de seu ministério aos cristãos perseguidos em países comunistas durante a guerra fria,
o Irmão André e seus grupos da Portas Abertas perceberam a necessidade de treinamento
preparatório em regiões onde os cristãos eram ameaçados de perseguição. Anos de escuta e
observação de princípios de vida cristã vitoriosa – bem como de derrotas – em países de acesso
restrito formaram a base para este treinamento.
O Dr. Everett Boyce, da eguipe de Portas Abertas na Ásia, produziu o primeiro manual de
treinamento, intitulado More than Conquerors (Mais que Vencedores). Ensinou estas lições a
cristãos de diversas denominações no sudeste da Ásia, no início dos anos 80. Seu foco principal
eram métodos bíblicos e práticos de preparo contra a ameaça do Comunismo e de como
responder a ele.
Com o aumento dos desafios do Islamismo militante e da intolerância religiosa em nações
Hindus e Budistas, logo ficou evidente que o programa de treinamento precisava se expandir.
Isso deu origem ao manual de treinamento Standing Strong through the Storm (SSTS) (Ficando
Firme na Tempestade) . Um comitê de membros talentosos da equipe da Portas Abertas do
sudeste da Ásia, do Golfo, da América Latina, da China e da África trabalhou em conjunto, para
garantir que o produto final fosse bíblico, prático e ensinável. Tive o privilégio de escrever o
currículo do texto. O Dr. Jim Cunningham, agora no Canada Institute of Linguistics na
Universidade Trinity Western, produziu os manuais do aluno e do professor.
Embora os testes no campo tenham sido bem sucedidos no Sri Lanka e no nordeste da Índia, foi
no conflito entre muçulmanos e cristãos em Ambon, na Indonésia, que tivemos a primeira
oportunidade significativa de realmente ver resultados. Em 1998, dois obreiros da Portas
Abertas encontraram-se com pastores de destaque na ilha, recomendando o seminário do SSTS.
Sua resposta não foi surpresa: eles achavam que o crescente conflito com os muçulmanos
extremistas poderia afetar Jakarta, a capital, mas não sua ilha, onde muçulmanos e cristãos
conviviam em paz há séculos.
A Indonésia já foi descrita como “ponto de encontro das religiões do mundo”. Lá estão a maior
comunidade islâmica do mundo, além de três outras grandes religiões: Cristianismo, Budismo e
Hinduísmo. Embora a maioria da população seja muçulmana, a Indonésia não é um Estado
religioso. De acordo com o lema nacional “unidade na diversidade”, a filosofia do Estado de
Pancasila é baseada em cinco princípios, a saber:
1.
2.
3.
4.
5.
Crença em um Deus todo-poderoso, único e onipotente;
Um humanitarismo civilizado e justo;
Uma democracia guiada pela sabedoria e pela representatividade;
Justiça social para todos, e
Uma Indonésia unida.
No início de 1999, o grupo extremista muçulmano conhecido como Laskar Jihad, com ajuda de
estrangeiros do Afeganistão, começou a agitar a comunidade muçulmana na cidade de Ambon,
na ilha de Ambon, capital da província de Maluku. Um infeliz incidente entre um motorista de
ônibus cristão e um passageiro muçulmano provocou o primeiro ato de violência. A
comunidade cristã foi atacada, igrejas queimadas e casas destruídas, deixando muitos refugiados
e muitos cristãos mortos.
A comunidade cristã respondeu imediatamente. Seus pensamentos, influenciados por um
conceito amplamente adotado em todo o mundo – especialmente em países como o Sudão e a
Nigéria – poderiam ser articulados da seguinte forma: “Precisamos mostrar a esses muçulmanos
que nosso Deus é mais forte que o deus deles!” Eles se armaram e destruíram mesquitas, lares
muçulmanos e pessoas. Isto acendeu a chama da violência que aumentava cada vez mais.
Logo, milhares estavam mortos, dos dois lados, e dezenas de milhares perderam suas casas e se
tornaram refugiados. A polícia e os militares pareciam impotentes para impedir a luta. De fato,
muitas vezes foram acusados de ficar do lado da Laskar Jihad,
Em meio à violência, no entanto, alguns relataram episódios de forte testemunho cristão. Uma
dessas histórias se deu com um jovem cristão de quinze anos chamado Roy Pontoh que foi
martirizado. No verão de 1999, ele foi a um acampamento cristão na ilha de Ambon, onde os
estudos Bíblicos eram baseados em 2 Timóteo e o tema era “Soldados de Jesus Cristo”. Uma
multidão armada de muçulmanos atacou o acampamento e encontrou o jovem Roy segurando
sua Bíblia. Eles resolveram usá-lo como exemplo na frente dos outros, fazendo perguntas
ameaçadoras, que ele respondeu com respeito e gentileza. Depois, ele foi trucidado com uma
machete até morrer, e a última palavra que disse foi “Jesus”.
O ciclo da violência tinha alcançado tal gravidade no fim de 2001 que líderes das igrejas quase
desistiram de uma solução pacífica. Eles decidiram que estava na hora de convidar Portas
Abertas para dar o semi-nário SSTS. Nem é preciso dizer, houve violência e destruição ao
nosso redor, enquanto nos reuníamos com cinquenta líderes de igrejas na cidade de Ambon.
Uma das cenas mais tristes que testemunhamos foi em uma mesquita, da qual só restaram as
paredes enegrecidas da fachada. Nas paredes estava escrito em tinta vermelha em inglês – não
em Bahasa Indonésio – “Eu amo Jesus!” Sabíamos que Jesus estava chorando ao ver a situação
em Ambon.
A resposta ao seminário foi reservada a princípio, mas depois foi muito positiva – especialmente
por causa das histórias de perseguição em outros países e pelo ensino bíblico sobre o perdão e a
oração. Entre as respostas recebidas encontramos: “A questão é, será que vou viver para Jesus
agora? É mais difícil viver para Jesus todos os dias do que morrer por ele uma vez só.” Outra,
dizia:
O ensino sobre o perdão foi uma grande benção para mim. A lembrança de que
devemos perdoar até mesmo os que nos machucaram profundamente e causaram muita
destruição tocou minha vida. Reconheço que em meu coração, às vezes, quero parar de
perdoar. Mas, sei que não posso mudar o que Jesus nos mandou fazer, que é perdoar até
nossos inimigos. Quero me comprometer mais e colocar isto em prática.
Uma confissão memorável veio de um pastor respeitado que disse ao grupo:
O ensino mais difícil deste seminário foi o ensino sobre o perdão. É fácil citar Lucas
23.34, onde Jesus disse: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem,” mas eu disse
a mim mesmo que não podia perdoar esses muçulmanos porque eles sabiam o que
estavam fazendo, quando queimaram minha casa. Eles sabiam o que estavam fazendo,
quando assassinaram minha esposa. E sabiam o que estavam fazendo, quando
queimaram minha igreja! Não tinha conseguido perdoá-los até hoje. Pela graça de
Deus agora eu os perdoo – e os perdoarei.
Seus comentários iniciaram uma série de conversas no fim do seminário sobre “Que passos
devemos dar agora?” O seminário havia afetado os pastores profundamente, e agora eles
estavam buscando sabedoria para reagir. O Reverendo Dr. Iman Santoso, líder do Movimento
de Oração Nacional na Indonésia, era um dos membros de nossa equipe. Ele propôs aos
pastores que gastassem o restante daquele primeiro dia do Ramadã juntos em oração. Isto
trouxe resultados surpreendentes!
Depois de orar juntos de joelhos diante do Senhor, pedindo perdão, cura e reconciliação, eles
concordaram em voltar aos seus púlpitos no domingo e pedir aos membros de suas igrejas:
Fiquem em casa nos próximos três dias, se puderem; só vão trabalhar se tiverem que fazer isto;
mas, separem este tempo para a oração e o jejum diante do Senhor. Então, como Ester, depois
de jejuar e orar por três dias, nós iremos aos líderes muçulmanos e vamos buscar estabelecer um
acordo de paz (Bohm, 2005: 201-202).
O que os pastores e seus membros não sabiam é que, enquanto eles oravam e jejuavam, os
conselheiros da Jihad Afegã começaram a sair da ilha para Kabul, para se prepararem para a
invasão do exército americano em resposta ao 11 de setembro.
Na semana seguinte, uma pequena delegação foi enviada aos líderes da comunidade muçulmana
e pediu o seu perdão e a paz. Os líderes muçulmanos de Ambon aceitaram o pedido de perdão
e, no Natal de 2001, um acordo de paz, negociado pelo governo, foi assinado, as cercas de
arame farpado foram removidas das ruas e os cristãos e muçulmanos voltaram a comprar e
vender nas lojas uns dos outros.
Um grupo de cristãos decidiu estabelecer uma torre de oração que funcionaria dia e noite, no
último andar do hotel onde o seminário de SSTS havia ocorrido da primeira vez. Esta vigília de
oração continua até hoje.
O SSTS está sendo ensinado num seminário de três dias em mais de vinte e sete línguas em
muitas partes do mundo em que os cristãos vivem sob pressão. Há seis partes, depois da
introdução:
1. O caminho da cruz. A singularidade de Cristo é o ponto de partida, com a profecia de
Isaías sobre Jesus como “Servo Sofredor” como base. Jesus também avisou repetidas
vezes que se ele foi perseguido, seus seguidores também o seriam. Uma definição
bíblica de perseguição de Lucas 6.22 leva a várias bases bíblicas para o sofrimento no
mundo e como o cristão deveria reagir diante deste sofrimento e perseguição.
Resumindo, ele deveria andar “no caminho da cruz” ao invés de “no caminho da
cultura”.
2. A igreja e a família vitoriosas. A simplicidade da igreja exige entendimento de sua
essência, suas funções, e formas, para que cresça, seja flexível e não se detenha, sendo
vitoriosa num mundo de antagonismo e oposição.
3. Conhecendo o nosso inimigo. (as estratégias de Satanás contra os crentes.) Nosso
inimigo, Satanás, tem táticas tanto internas quanto externas, mas todas podem ser
categorizadas como engano e intimidação. A vitória vem quando resistimos a ele –
especialmente à sua tática favorita, o medo da morte.
4. Provisão para a vitória. Deus já providenciou recursos necessários para ficarmos
firmes: toda a armadura de Deus, a Bíblia, a oração e o Espírito Santo.
5. Treinamento em retidão. (Desenvolvendo um espírito de servo.) A pessoa que é como
Cristo age como sal e luz na comunidade, demonstrando amor a todos. Cada um
também encoraja os outros e cada um persevera. Resumindo, a vida é vivida com
perdão e graça, como servos de Jesus Cristo.
6. A vitória (Vitoriosos na superação) O segredo de permanecer firme não é a riqueza,
nem a prosperidade, nem a ausência de problemas, mas a obediência diante de
provações e dificuldades.
Algumas igrejas em países ocidentais consideram estes ensinamentos importantes para seus
membros também. Satanás só usa táticas diferentes contra nós que estamos vivendo nos
chamados países livres. Um pastor da Noruega me disse: “Não somos perseguidos aqui. Somos
apenas seduzidos!” Então o SSTS também é promovido como seminário em países ocidentais e
o livro texto também está disponível para estudos em grupos pequenos. Um livreto chamado
Red Skies @Dawn: The Coming Storms ( Estabrooks e Cunningham 2005) foi produzido para
suprir essas oportunidades.
Depois, recebemos o pedido de países que utilizavam o SSTS para que fizéssemos o
treinamento de futuros pastores e líderes da igreja num nível acadêmico de Seminário. O Dr.
Jim Cunningham já visitou Seminários em países como o Sri Lanka e Bangladesh, para ajudar a
desenvolver um currículo para um curso sobre A Teologia da Perseguição e o Discipulado.
Hoje, enquanto escrevo, ele está de volta a Ambon, na Indonésia, com oito de onze escolas de
teologia na ilha de Ambon, cada uma querendo adicionar este curso ao seu currículo.
Os textos principais são Standing Strong through the Storm (Estabrooks e Cunningham, 2004) e
a dissertação de doutorado sobre o sofrimento, a perseguição e o martírio do pastor Romeno,
Josef Ton (Ton, 2000), In the Shadow of the Cross, de Glenn Penner (Penner, 2004) e Faith
that Endures: The Essential Guide to the Persecuted Church (Boyd-MacMillan, 2006), do
notável autor Dr. Ron Boyd-MacMillan, da Portas Abertas. O Dr. Cunningham e eu demos este
curso uma vez em 2010 como uma matéria optativa intensiva no Seminário ACTS, no campus
da Universidade Trinity Western em Langley, British Columbia, no Canadá. Outros Seminários
agora estão pedindo.
No discurso no cenáculo, alguns dias antes de sua crucificação, Jesus disse aos seus discípulos:
“ Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim.” (João
15.18). O ódio a Jesus Cristo é o fundamento na perseguição de cristãos, não importa quão
intensa. Hoje, cristãos evangélicos em sociedades livres são odiados por muitos, por causa de
sua fé no Jesus sobrenatural – embora Jesus, na forma de uma joia ao redor do pescoço, em
filmes, na música e até em tatuagens tenha se tornado moda. Além dos ataques contra a fé em
Jesus, há também ataques contra a Bíblia, contra a igreja e sua missão – evangelismo. Os
ventos dessas tempestades estão começando a soprar com força.
Como, então, os cristãos nas sociedades ocidentais respondem a essas tempestades? Vamos nos
acovardar com um medo paralizante e perder a energia para as boas obras que ajudariam os
outros antes, durante e depois da tempestade? Vamos fugir da tempestade que está chegando e
tentar nos esconder? Vamos nos tornar verbalmente e fisicamente agressivos, atacando como
fariseus, para mudar um sistema que está fora de controle? Vamos sorrir com complacência e
dizer: “As coisas precisam piorar antes da volta de Jesus Cristo à terra como Rei dos Reis e
Senhor dos Senhores. Vamos dizer que a perseguição é boa porque separa as ovelhas dos
cabritos e permite que a igreja cresça, então ‘Não se preocupe, alegre-se, tudo vai dar certo!? ‘”
Estas opções não são nem bíblicas, nem realistas. Com base em nossas observações de cristãos
em outros países que perseveraram na perseguição, ou que a estão experimentando agora,
devemos nos preparar intelectualmente, praticamente e espiritualmente para as tempestades de
hoje, bem como para as tempestades que ainda chegarão.
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. Leia Marcos 4.35-41. Que princípios de sobrevivência às tempestades aprendemos
desta passagem?
2. Leia Apocalipse 12.11 em seu contexto. Explique como o sangue do Cordeiro, a
palavra do testemunho e o amor sacrificial (martírio) podem ir de encontro às acusações
de Satanás.
3. É possível amar seu inimigo e ainda lutar contra ele? Explique sua resposta com base
bíblica.
4. Identifique as razões bíblicas primárias por que devemos perdoar os outros. Por que é
tão difícil colocar em prática o perdão?
REFERÊNCIAS
Bohm, C. J. 2005. Brief chronicle of the unrest in the Moluccas: 1999–2005. Ambon,
Indonésia: Crisis Centre Diocese of Amboina.
Boyd-MacMillan, R. 2006. Faith that Endures: The essential guide to the persecuted church.
Grand Rapids, MI: Fleming H. Revell.
Estabrooks, P., and J. Cunningham. 2004. Standing strong through the storm: Victori-ous living
for Christians facing pressure and persecution.Santa Ana, CA: Open Doors International.
———. 2005. Red skies @ dawn: The coming storms.Santa Ana, CA: Open Doors
International.
Penner, G. 2004. In the shadow of the cross: A biblical theology of persecution and discipleship.
Bartlesville, OK: Living Sacrifice Books.
Ton, J. 2000. Suffering, martyrdom and rewards in heaven.Wheaton, IL: Romanian Mis-sionary
Society.
Paul Estabrooks completou mais de trinta anos de ministéiro entre cristãos perseguidos com
Portas Abertas Internacional, e atualmente serve como Especialista Senior em Comunicações. É
autor de quatro livros, o mais recente sendo Night of a Million Miracles (A Noite de um Milhão
de Milagres), em que descreve sua coordenação do Projeto Pérola, a entrega secreta de um
milhão de Bíblias chinesas.
PREPARANDO UMA AGÊNCIA DE
MISSÕES
Um ponto de vista dos EUA
S. Kent Parks
Vale a pena sofrer pelo que estamos fazendo agora?



Qual seria um objetivo pelo qual vale a pena sofrer?
O que é sofrimento legítimo?
A forma como os crentes enfrentam o sofrimento é um instrumento de Deus para
mostrar a sua glória?
A maior parte da comunidade missionária global concordaria rapidamente que os modelos
coloniais de compounds missionários e vistos missionários não são legítimos no mundo de hoje.
Mas, práticas baseadas nos resquícios culturais desta era continuam a afetar parte do
conhecimento popular sobre missões. O treinamento para o ministério encarnacional
geralmente enfatiza servir por muitos anos num mesmo local para que possa ser efetivo,
aprender apenas uma cultura muito bem, e manter um visto válido. Às vezes, o sucesso
significa quais programas se implantar de modo a ser aceito pelo governo e pela sociedade. Às
vezes, ele é medido pelo número de igrejas institucionais que se consegue instalar, ao invés de
como iniciar o Corpo de Cristo orgânico e que se reproduz. Às vezes o sucesso é medido por
quão próximo se chega do sofrimento, sem ter que realmente passar por ele. Por isso, tenho as
seguintes questões:
VALE A PENA SOFRER POR TUDO QUE SE CHAMA DE “MISSÕES”?
Muitos esforços missionários usam uma definição mínima: a igreja está fazendo coisas boas. O
objetivo de muitos esforços geralmente é definido como transformação, ou ser a presença de
Cristo, ou fazer o bem em nome de Jesus. Com tais definições impossíveis de se medir,
qualquer atividade ou a mera capacidade de existir é definida como “missões”. Muitos esforços
missionários não se encaixam nem em padrões profissionais de efetividade nem em padrões
bíblicos (os quais podem ser mais parecidos do que se pode imaginar). Um compromisso com a
excelência bíblica exige que se pague o preço integral ao invés do preço de barganha que muitos
buscam.
Será que vale a pena sofrer por um projeto humanitário que não tenha nenhuma definição clara
de como medir a transformação da comunidade tanto física quanto espiritual? Será que vale a
pena sofrer por um programa que pode eventualmente levar a um testemunho e a alguns crentes
e somente a um resultado temporário subsidiado? Quando o sucesso é definido por “apenas o
que se faz”, enquanto se aceitam as restrições do governo ou de religiões para não contar a
história de Jesus (sob o disfarce de ser “sábio como as serpentes...”), isto significa logicamente
que 1) as pessoas realmente vão “ver” Jesus de forma a levá-los a um relacionamento pessoal
com ele e 2) os poucos que se decidirem a seguir a Jesus serão uma ameaça ao ponto que
alguém na sociedade se importe, e assim o sofrimento valeria a pena?
Será que vale a pena sofrer por construir um prédio e alcançar um número pequeno de pessoas
que vivem nesse aquário? Será que vale a pena sofrer se tudo o que se está fazendo é começar
uma escola de treinamento vocacional chamada de Seminário, para treinar pessoas para fazerem
funcionar essas instituições de poucas pessoas? Vale a pena sofrer por criar um bom programa
de educação primária ou secundária com a esperança (mas não com um plano definitivo) de que
pessoas conheçam a Jesus por osmose?
Francamente, não vale a pena sofrer por um programa de agricultura, ou por uma escola
(secundária ou faculdade, qualquer uma), ou por começar uma colônia estranha de qualquer país
de origem (chamada de “igreja, com um prédio, pastor formado, etc...), seja ela coreana,
norteamericana, de Singapura ou iberoamericana.
PARA O QUÊ VALE A PENA SOFRER?
Na verdade, a pergunta é: “Por que os apóstolos de Jesus sofreram?” A resposta é que a natureza
inerente às palavras, obras e maravilhas do Reino de Deus abertamente realizadas (palavra,
ação, milagres) foi rapidamente reconhecida como uma ameaça total às estruturas de poder do
governo, da religião, da filosofia e do modo de vida da sociedade e uma contradição a elas.
Jesus, os apóstolos e a igreja primitiva sofreram porque eles pediram às pessoas, sem pedir
desculpa por isso, que mudassem sua lealdade aos reinos terrestres para uma lealdade ao Reino
de Jesus.
Ironicamente, quando um objetivo tão alto é visto como algo possível, mesmo que exija um
preço igualmente alto, as pessoas se sacrificam para alcançar este objetivo. Um objetivo pelo
qual vale a pena sofrer é ver grupos que se reproduzem de “pessoas obedientes”(discípulos) de
Jesus Cristo, que começam a reproduzir mais grupos de pessoas obedientes, que começam a
reproduzir mais grupos de pessoas obedientes, que... Estes grupos que se reproduzem são
ensinados a obedecer tudo o que leem nas Escrituras, sob a orientação do Espírito Santo (assim
eliminando a necessidade de uma pessoa de fora “que seja “treinada” ou que fique tempo
demais). Estes grupos obedientes – a verdadeira ekklesia - , tendo aprendido a ser dirigidos pelo
Espírito de Jesus, começam a alimentar os pobres em seus bairros, a destruir casas de virgens
para liberar adolescentes da opressão sexual, a ajudar as viúvas, e a amar seus inimigos
(pessoais e étnicos). Eles se tornam uma encarnação completa de Jesus em sua cultura, com
uma massa crítica suficiente para não exigir manutenção externa. Eles mudam o equilíbrio das
lealdades em sua sociedade. Eles se unem para completar a Grande Comissão. Por tal mudança
para o Reino de Deus, vale a pena sofrer qualquer coisa.
Os obreiros e a organização devem estar preparados para enfrentar momentos de Getsêmani
(Mateus 26.36ss) em que, como Jesus, o obreiro, ou obreiros, percebe que deve beber o cálice
do sofrimento, para realizar o plano de Deus. Nos lugares em que movimentos reais tiverem
acontecido, as testemunhas transculturais que trazem a mensagem de mudança e os líderes dos
grupos multiplicadores sofrerão. O de fora terá que resolver se é mais importante manter um
visto e evitar o sofrimento, ou ajudar a começar um movimento de milhares que terão um
relacionamento real, abundante e eterno com Jesus – e pagar o preço do sofrimento, seja qual
for.
C.T. Studd, um líder de missões conhecido de outro século resumiu isto da seguinte forma: "Se
Jesus Cristo é Deus e morreu por mim, não há sacrifício grande demais que eu não faça por
amor a Ele."
ENTENDA O QUE É SOFRER PELO EVANGELHO E O QUE NÃO É
Quando se pede a uma sociedade uma mudança de lealdade para Jesus, o sofrimento nas mãos
do governo, de líderes políticos e culturais da sociedade vai ocorrer (por exemplo, açoites,
prisão, perda de um visto). Mas, às vezes, o sofrimento acontece porque alguém utiliza métodos
inadequados (como usar um alto falante para perturbar os muçulmanos na saída das suas
orações vespertinas na capital da Malásia). Outras vezes, quando alguém escolhe
conscientemente não obedecer as leis legítimas, como adquirir uma permissão para trabalhar,
essa pessoa precisa estar disposta a sofrer as consequências de seus atos ao invés de escrever
uma carta da oração falando mal desse governo asiático corrupto que a está perseguindo. Sofrer
por ser ousado da forma correta e sofrer por ser estúpido são duas coisas completamente
diferentes.
Além disso, os missionários devem ser equipados para perceber que o sofrimento pode vir na
forma de ataques do Mal e de seus seguidores. Este sofrimento pode assumir a forma de uma
série de doenças, crises familiares, etc... O propósito não é de jogar a culpa de qualquer
dificuldade sobre um ataque espiritual do mal. O propósito é de ajudar nossas equipes a
entender que toda necessidade pode e deve ser levada ao Senhor para sua solução. Quando
várias equipes que estavam trabalhando com um grupo de não alcançados começaram a passar
por uma série de doenças, algumas pessoas no grupo perceberam que o padrão estava fora do
normal. Convidaram todas as equipes e todos os parceiros em oração para se unirem e orarem
por alívio destas doenças. De repente as doenças pararam. A confiança para pedir ajuda ao
Senhor diante de qualquer forma de sofrimento deve ser desenvolvida em todos os obreiros.
ENTENDA QUE A FORMA COMO OS CRISTÃOS ENFRENTAM O
SOFRIMENTO É UM GRANDE TESTEMUNHO SOBRE JESUS E PARA A
GLÓRIA DE DEUS
Às vezes, Deus cura nesta terra para demonstrar seu poder. Às vezes, este Deus de toda
consolação (2 Co 1.3-4) ajuda as pessoas a terem a paz que excede todo entendimento durante o
sofrimento e a morte. Às vezes, a cura é eterna depois da morte nesta terra. Se ser um seguidor
de Jesus significasse que a pessoa seria sempre curada e nunca passaria por sofrimento, muitos
poderiam aceitar esta opção barata, ao invés de seguirem a Jesus por amor a ele.
Um entendimento mais completo do sofrimento por amor do evangelho nos ajuda a entender
por que organizações missionárias não pagam resgate, não só para que os missionários não se
tornem um alvo lucrativo. Muda a questão sobre se os missionários devem ficar ou fugir diante
da violência num país. Muda se vamos deixar “ o lobby de Deus” ao invés do “lobby do
governo” promover a libertação de alguém da cadeia. Muda se vamos correr para ajudar novos
cristãos a escapar de provações.
Num país hostil ao Cristianismo, seis cristãos/líderes foram levados a julgamento por suas
vidas, acusados de heresia. Eles ligaram para uma pessoa de fora (plantador de igreja), pedindo
conselho. Ao invés de tentar resgatá-los, a pessoa de fora lhes recomendou que pedissem
sabedoria a Deus. Eles ligaram de volta para dizer que Deus os havia dirigido para ir a
julgamento e não para fugir. Quando começou o julgamento, com um painel impressionante de
juízes religiosos e uma corte lotada, um demônio começou a se manifestar através de uma
mulher. Estes líderes religiosos – inclusive alguns shamãs poderosos – não conseguiram parar
ou remover a mulher. Os juízes anunciaram que teriam que adiar o julgamento para mais tarde.
O Senhor orientou aos seis líderes que pedissem ao painel de juízes se poderiam resolver o
problema. O painel concordou, com cepticismo. Os homens começaram a orar baixinho, mas
de forma audível, no nome de Jesus para que o demônio fosse embora. O demônio foi expulso
e a mulher ficou quieta, e todos ficaram em silêncio na corte. Muitos passaram a crer em Jesus,
inclusive alguns juízes.
Se, como geralmente manda a sabedoria popular, esses cristãos tivessem sido levados
clandestinamente a um lugar seguro diante do possível sofrimento, Deus não teria demonstrado
seu poder para mudar vidas de forma tão visível.
Este tipo de compromisso é evidente na forma como Hudson Taylor (líder, na Missão para o
Interior da China) enfrentou o sofrimento. Enquanto estava na Europa recrutando mais
missionários e também doente, ficou sabendo do aumento do número de missionários mortos no
Levante dos Boxers na China (por volta de 1900). O que ele conseguiu dizer foi: “Não consigo
pensar, não consigo orar, mas consigo confiar.”
Cento e oitenta e oito missionários morreram no Levante dos Boxers, e embora a Missão tenha
sofrido as maiores perdas (setenta e nove), Hudson Taylor se recusou a pedir ressarcimento ou
compensação (o que os Poderes Ocidentais tinham exigido que a China oferecesse). Ele
considerava essas ações contrárias ao evangelho. O trabalho da missão não diminuiu depois do
Levante. Pelo contrário, foi mais vigoroso. O número de obreiros quadruplicou nas próximas
décadas (Hefley 1994).
Ele pôde enfrentar esta terrível tragédia porque já havia lutado com o Senhor em 1865, em
Brighton Beach, sobre o risco e o sofrimento que ele estava pedindo aos novos candidatos que
enfrentassem. “Eventualmente, um facho de luz se abriu sobre sua mente e ele exclamou: ‘Se
estamos obedecendo ao Senhor, a responsabilidade está sobre ele, não sobre nós. ’” Logo em
seguida, ele escreveu em sua Bíblia: ‘Em Brighton, 25 de junho de 1865, orei por vinte e quatro
obreiros dispostos e habilitados para irem à China”
(http://www.wholesomewords.org/missions/biolaylor3.html).
CONCLUSÃO
Como organização, estamos trabalhando para treinar nosso pessoal, não para o sofrimento, mas
para ajudarem sociedades inteiras a mudarem sua lealdade para Jesus. Se ou quando isso
acontecer, eles vão sofrer. O sofrimento por programas e instituições ou vistos não vale a pena.
O sofrimento para ver nascer um Corpo de Cristo dinâmico e obediente vale.
O objetivo não é de se estar fisicamente seguro. Uma frase “O lugar mais seguro para se estar é
no centro da vontade de Deus” é falsa, se implicar que a morte, o estupro, os açoites, a prisão,
etc... não vão acontecer. Jesus estava absolutamente no centro da vontade de Deus e, assim
mesmo, foi morto. Mas, esta afirmação é verdadeira se entendermos segurança como vibração
espiritual, uma comunhão íntima com Deus e eficiência.
Mais importante, como podemos ter a ousadia de pedir às pessoas a quem somos enviados, que
sigam a Jesus – que arrisquem-se a ficar alienados e a serem perseguidos pela sociedade – se
não estivermos dispostos a enfrentar exatamente o mesmo?
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1.
2.
3.
4.
Vale a pena sofrer pelo que estamos fazendo agora?
Qual um objetivo pelo qual vale a pena sofrer?
O que é sofrimento legítimo?
A forma como os cristãos enfrentam o sofrimento é um instrumento que Deus usa para
sua glória?
REFERÊNCIA
Hefley, J., e M. Hefley. 1994. The Boxer Rebellion – 1990. By their blood: Christian martyrs
of the twentieth century. Grand Rapids, MI: Baker House Books.
Dr. Kent Parks é pastor, professor de Seminário e plantador de igrejas há vinte anos entre
grupos não alcançados de muçulmanos no Sudoeste da Ásia. Em 2008, se tornou presidente da
Missão para Povos Nào-Alcançados (Mission to Unreached Peoples), que focaliza o estímulo a
movimentos integrais para Cristo entre os 27.9 porcento do mundo que ainda não têm acesso
para ver ou ouvir as Boas Novas.
CÓDIGO DE MELHORES PRÁTICAS
Visitas Transculturais a Nações Restritas
Voz dos Mártires Canadá
PREÂMBULO
Cremos que tudo que fazemos e dizemos tem o potencial de construir ou destruir a confiança de
nosso grupo e de nossos parceiros internacionais. É com este entendimento que nos
comprometemos a seguir as Melhores Práticas para Visitas Transculturais a Nações Restritas.
ANTES DA VISITA
1. Antes de partir, todos os membros do grupo participarão de uma sessão de treinamento
informativo amplo e formal que tratará das seguintes questões:
 Segurança
 Objetivos e expectativas
 Papéis no grupo (líder, finanças, devocionais, pessoas de contato, etc...)
 Questões médicas
 Questões transculturais
 Preocupações éticas
 Questões de comunicação
 Ambiente político/histórico/religioso
 Bem estar espiritual
 Outras questões relevantes, por exemplo pagar pelas próprias refeições, gastos com
viagens no local, não pedir para usar os telefones pessoais ou a Internet, etc...
2. Queremos que todos os membros do grupo se reúnam para este treinamento. Em
situações excepcionais pode ser possível realizar o treinamento via Skype e Powerpoint,
conforme decisão do líder de equipe.
3. Antes de cada viagem, um grau de segurança deve ser atribuído a cada país por
executivos da missão e também as práticas apropriadas a se empregar. Os níveis de
segurança serão Verde (sem restrições), Amarelo (restrito) ou Vermelho (muito
restrito).
4. Cada viagem será aprovada pelo executivo da missão somente após orar e identificar
um benefício específico para a missão e para os parceiros, e após estabelecer propósitos
claros da viagem.
DURANTE A VISITA
1.
Procuraremos ser bons hóspedes enquanto estivermos no país. Procuramos não ser um
peso para nossos anfitriões. De fato, isto é muito difícil. Não podemos evitar ser um
peso para suas agendas, mas podemos exercitar a prudência e a modéstia, por exemplo,
evitando ser um peso financeiro para eles.
2.
Expressaremos claramente nossas expectativas e objetivos para a visita aos nossos
anfitriões/parceiros, e ao mesmo tempo seremos sensíveis às suas necessidades,
preocupações e desejos que podem diferir dos nossos. Se não pudermos chegar a um
consenso, a opinião de nosso anfitrião/parceiro prevalecerá.
3.
As atividades no campo de visita serão alinhadas às prioridades e parcerias de longo
prazo. Parcerias de longo prazo e suas prioridades sempre terão precedência sobre
necessidades e aspirações de curto prazo. Por exemplo, jamais colocaremos em risco
nosso parceiro ou nosso projeto por causa de uma foto ou de uma entrevista.
4.
Todos os presentes não relacionados ao projeto serão dados pelo líder do grupo, em
nome da missão, através de nossos parceiros locais e só depois de consultar com eles
sobre se é ou não apropriado. Idealmente, presentes deveriam ser anônimos com o
entendimento que isto não é o estabelecimento de precedentes. Todos os presentes
precisam se alinhar à missão, propósito e valores da missão. Devem ter um recibo e
devem ser relatados.
5.
Tomaremos cuidado de não prometer o que não foi autorizado ou criar expectativas
para as quais não podemos garantir o cumprimento. Nós nos esforçaremos para
explicar claramente os processos de decisão da missão que impedem cada indivíduo de
se comprometer desta forma. Isto inclui pedidos de ajuda financeira, fotos, vídeos,
serviços e projetos.
6.
Nos nos comprometemos a nos reunir como grupo todos os dias da viagem para orar e
ler a Bíblia.
7.
Nós nos comprometemos a nos reunir todos os dias para avaliar o progresso dos
objetivos da viagem, a dinãmica no grupo, a situação atual de segurança, e questões que
possam ocorrer, para determinar o curso de ação corretiva.
8.
Nós nos comprometemos a seguir as diretrizes e liderança de nossos parceiros quanto
ao que relatar e como podemos tornar isto público. Em princípio, diremos menos do
que for aprovado pelos parceiros no país mas não diremos mais do que eles aprovarem.
Sempre confirmaremos se é apropriado usar fotos ou entrevistas com líderes de
confiança/parceiros no país, mesmo se o entrevistado já nos tiver dado a aprovação.
9.
Nós nos esforçaremos para chamar o mínimo de atenção enquanto estivermos no país.
Nós informaremos nossos parceiros/anfitriões a respeito deste desejo, e pediremos que
nos ajudem e nos aconselhem sobre como fazer isto de forma apropriada e
especialmente quando isto envolve convites para pregar, visitar nas casas e entrevistar
pessoas, etc...
APÓS A VISITA
1.
Dentro de uma semana após a conclusão de cada viagem, cada membro do grupo
individualmente e o grupo como um todo passarão por encontros para debriefing pelo
executivo da missão. Nosso alvo é que todos os membros do grupo se reúnam após a
viagem para estes encontros de debriefing. Em circunstâncias excepcionais pode ser
possível realizar este debriefing por conferências via Skype, segundo o parecer do
executivo da missão.
2.
Dentro de um mês após a conclusão da viagem, cada membro do grupo entregará um
relatório por escrito, incluindo como os propósitos da viagem foram alcançados, qual
foi a dinâmica no grupo, como está evoluindo a parceria, um relatório das finanças, e
quais são os encaminhamentos necessários.
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. Quais são os principais valores e motivos subjacentes a estas melhores práticas
recomendáveis no envio de pessoas para visitar cristãos em nações restritas?
2. Como estas melhores práticas podem bater de frente com o “espírito da época” que
também afetou muitos cristãos ocidentais?
3. Baseado em suas experiências, existem questões sobre visitas transculturais que não
foram contempladas neste código de melhores práticas?
A Voz dos Mártires Canadá apoia irmãos e irmãs perseguidos em todo o mundo. Eles ajudam
cristãos que são, ou já foram perseguidos por seu envolvimento na propagação do evangelho,
divulgando seu testemunho e informando os cristãos no Canada sobre como ajudar.
MELHORES PRÁTICAS PARA GRUPOS
ESTRANGEIROS VISITANDO A IGREJA
PERSEGUIDA
Aliança Evangélica Cristã Nacional do Sri Lanka
1. Choque cultural
Será muito útil para a organização enviadora conduzir uma breve orientação para os
visitantes e para seus funcionários, antes de chegar ao Sri Lanka. Isto os ajudará a
compreender a situação local e a ser culturalmente sensíveis. Essa orientação é
essencial para a segurança dos visitantes e dos pastores locais em ambientes de risco.
2. Objetivos
A maioria das organizações estabelecem objetivos antes de visitar a igreja perseguida.
Seria muito útil comunicarem seus objetivos de viagem ao parceiro com antecedência,
dando tempo para qualquer adaptação, e escolhendo a data para a visita levando em
consideração ambos os parceiros.
3. Itinerário
Ao planejar sua viagem, etc..., nós, os parceiros locais, temos que trabalhar dentro de
certos limites. Por exemplo, algumas partes do Sri Lanka não são facilmente acessíveis
e pode levar oito horas para chegar por terra. Viajar para outras áreas exige que se
tenha permissão prévia do Ministério da Defesa. É essencial que os visitantes
consultem o parceiro local no preparo do itinerário. Uma visita repentina para um local
determinado pode não ser possível.
4. Sabedoria local
É necessário sempre seguir a orientação do parceiro local ao visitar o campo. O
anfitrião terá um entendimento melhor e mais experiência no local, e está numa posição
melhor para tomar decisões e avaliar corretamente a situação.
5. Entusiasmo versus bom senso
Embora apreciemos os esforços dos visitantes de registrar em fotos e divulgar o
sofrimento da igreja perseguida no Sri Lanka, deve-se manter em mente que quando os
visitantes forem embora depois de uma breve visita, os pastores locais, os fucionários e
os obreiros contiuarão a viver aqui mesmo, em meio à perseguição, e vulneráveis. Por
exemplo, um repórter ou uma equipe de filmagem muito expansivos que atraia a
atenção acaba colocando o pastor local em perigo. Deve-se lembrar que a maioria dos
lugares a serem visitados são vigiados e monitorados pelas partes interessadas.
6. Timidez diante das câmeras
A maioria das vítimas de perseguição é de origem muito humilde. Para eles, falar com
um jornalista estrangeiro, ser entrevistado, fazer pose para a filmagem de um vídeo,
etc... são experiências muito estranhas. Muitos não se sentem bem “atuando” diante das
câmeras. Esta situação precisa ser tratada com delicadeza.
7. Aceitar um “não”
É parte de nossa cultura receber bem os visitantes. Principalmente no meio rural. A
maioria dos cristãos atenderão aos pedidos de um hóspede, mesmo se for inconveniente,
perigoso, vergonhoso ou desconfortável. Por exemplo, pedir a uma vítima de
perseguição para representar uma cena traumática de um ataque ou repetir uma
experiência dolorosa várias vezes. Nestes casos, é nossa responsabilidade, como
parceiro local, intervir em favor das vítimas, e negar o pedido. Por favor, confiem em
nosso julgamento nesses casos, mesmo se a vítima “parece” estar disposta a concordar
com o pedido do visitante.
8. Presentes
As igrejas ou vítimas que serão visitadas podem ter muitas necessidades materiais, e
muitas vezes um visitante fica comovido a ajudar. É melhor consultar o parceiro local,
para saber se o presente ou a promessa de ajuda são apropriados, antes de se
comprometer com as vítimas. Idealmente, todo presente da organização visitante
deveria ser dado através do parceiro local. Como parceiros locais, nós também
podemos fornecer os recibos apropriados e prestar contas destes presentes.
9. Roupas e conduta
Em muitos lugares a serem visitados, roupas apropriadas são uma forma de demonstrar
cortesia aos seus anfitriões. Por exemplo, se você for convidado para falar ou
compartilhar numa reunião, ou visitar um escritório de uma empresa, vestir shorts não é
apropriado. A maioria dos locais de interesse cultural, que geralmente são também
locais de culto Budista, exigem roupas que demonstrem modéstia. Semelhantemente, o
comportamento considerado normal e aceitável no Ocidente pode não ser aceitável nas
regiões rurais que são muito conservadoras. Busquem a direção de seus anfitriões, para
saber o que é apropriado.
10. Relatórios
Em algumas situações, publicar informações sensíveis pode colocar em risco os cristãos
locais e atrapalhar o trabalho da Igreja. É melhor seguir a direção dos parceiros locais e
sempre verificar os relatórios, scripts, e cópias uns dos outros antes de publicar.
11. Nosso compromisso
Como parceiros e anfitriões, nós nos comprometemos a tornar sua visita frutífera e
mutuamente benéfica, assumindo uma imensa responsabilidade de garantir a segurança
e o interesse dos pastores locais, dos cristãos e da igreja. Por isso, defendemos que os
visitantes devem sempre seguir os conselhos de nossos funcionários quanto ao que é
apropriado em termos de ações e comportamento durante as visitas ao campo.
Formuladas por: Roshini Wickremesinhe, Advogado e Procurador jurídico, Aliança Cristã
Evangélica Nacional do Sri Lanka, 2003, atualizadas em 2007.
DEZ FORMAS DE REDUZIR A TENSÃO NA COMUNIDADE EM QUE VOCÊ
SERVE
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
Seja sensível à altura do som nas reuniões e cultos
Integre-se na sua vila sem se isolar da comunidade
Seja culturalmente sensível em sua conduta, especialmente quando lidar com jovens
Evite programas com muita publicidade nos feriados religiosos especiais
Não use programas de assistência social como “isca” para o evangelismo
Adote um estilo de vida simples, consistente com o da vila
Promova unidade entre líderes cristãos na região
Reúnam-se em congregações pequenas, se persistir a hostilidade
Evite promover estrangeiros ou pessoas de fora a posições de proeminência na vila ou
na igreja
10. Evite sempre comentários depreciativos sobre outras religiões
Usado com a permissão da Comissão de Liberdade Religiosa da Aliança Cristã Evangélica
Nacional do Sri Lanka
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. Do ponto de vista da organização enviadora, estas melhores práticas formuladas pela
igreja anfitriã são razoáveis? Quais são as mais difíceis de se colocar em prática?
2. Há preocupações legítimas da agência enviadora que não tenham sido contempladas por
estas melhores práticas?
A Aliança Cristã Evangélica Nacional do Sri Lanka (ACENSL) serve a igreja nacional do
Sri Lanka. Participam da ACENSL cinco denominações cristãs, 74 igrejas e organizações
cristãs, que representam mais de 200.000 cristãos evangélicos.
MELHORES PRÁTICAS PARA O
MINISTÉRIO À IGREJA PERSEGUIDA E
EM PARCERIA COM ELA
Parceria pela Liberdade Religiosa
O Código de Melhores Práticas para o ministério à igreja perseguida e juntamente com ela em
todo o mundo é designado como documento de referência, para orientar as políticas e a prática
de organizações participantes. Seu objetivo não é estabelecer padrões legais ou
responsabilidades legais. Ao contrário, este código foi desenvolvido com base na
responsabilidade para com os participantes e parceiros no trabalho de liberdade religiosa, com o
objetivo de que sejam servidos nos mais altos padrões possíveis.
O código não reflete necessariamente a prática atual, mas estimula a busca pela excelência. No
entanto, padrões mínimos estão implícitos, e portanto, estes princípios deveriam ser vistos como
passos num processo, ao invés de um fim em si mesmos. Também reconhecemos que o código
pode não ser aplicável a todas as situações no ministério em prol da liberdade religiosa.
Embora nenhum documento ou acordo sobre princípios possa refletir a atitude e
relacionamentos dos quais eles se originam, foi o que procuramos fazer.
As seguintes questões foram identificadas pelos membros da Parceria pela Liberdade Religiosa PLR (Religious Liberty Partnership) como necessidades que deveriam ser tratadas neste
documento:












Problemas de ministério direcionado pelo doador ou pelo mercado
Entendimento em comum das necessidades da situação
Não causar dano
Valor e reconhecimento transcultural
Pensamento de longo prazo que seja proativo ao invés de reativo
A tendência de ver dinheiro/tecnologia/recursos como a resposta principal para as
necessidades
Possíveis discórdias sobre as causas principais da perseguição
Preparo para o ministério/ treinamento bíblico e teológico/ conhecer e aplicar princípios
bíblicos relativos à perseguição
Integridade na comunicação
o Entre organizações
o Dentro da própria organização ou da rede
o Entre nacionais e internacionais
o No levantamento de parceiros em outro país
Respeitar a visão relacional do corpo de Cristo
Parcerias e colaborações
Prestação de contas entre ministérios da PLR




Reconhecimento da centralidade da igreja local – isto é, os recursos deveriam passar
pela igreja e a deveria haver capacitação da igreja local para ajudar e aconselhar
Conceito de trabalho com os líderes da igreja perseguida como iguais, ao invés de vêlos primariamente como vítimas
Acesso igual às oportuniades, inclusive para aqueles que não sabem inglês
Perigo de profissionalismo excessivo
PRINCÍPIO 1: COLABORAÇÃO E PARCERIA
A igreja perseguida é melhor servida por ministérios que trabalham juntos em cooperação,
mantendo, ao mesmo tempo, distinções de ministério. Isto implica na redução da duplicação;
no compartilhamento sábio de informações; desenvolvimento de um entendimento comum dos
problemas e das causas primárias da perseguição; relacionamento forte e confiança; e prestação
de contas (informação, dinheiro, etc...)
INDICADORES PRINCIPAIS







Estamos investindo tempo para desenvolver relacionamentos e a confiança uns nos
outros
Estamos procurando evitar duplicação de ministério em uma área determinada, se
possível
Estamos procurando desenvolver nosso capital intelectual coletivo, compartilhando
informações, conhecimento e lições aprendidas
Estamos trabalhando na redução de atitudes competitivas
Estamos falando bem uns dos outros e fazendo contato direto uns com os outros no
caso de discórdia
Estamos lançando mais projetos em conjunto
Estamos aprendendo a compartilhar o sucesso uns com os outros
PRINCÍPIO 2: NÃO CAUSAR DANO
O ministério à igreja perseguida deveria ser realizado tendo como valor central a certeza de que
trabalhamos ativamente para nunca causar dano àqueles a quem procuramos servir. Isto implica
em sensibilidade transcultural e reconhecimento; acesso igual a oportunidades; apoio de líderes
locais; planejamento de longo prazo e sustentabilidade; e exame de possível exploração.
INDICADORES PRINCIPAIS



Estamos respeitando a cultura, a língua e as práticas locais
Estamos aprendendo quando aceitar um “não” para evitar a exploração/exposição dos
cristãos perseguidos em nome da publicidade/promoção
Estamos promovendo a unidade e não alimentando a desunião entre cristãos locais,
dando acesso amplo aos recursos, consulta sobre projetos possíveis, e avaliação de
projetos atuais e passados, especialmente com relação à sustentabilidade.
PRINCÍPIO 3: EDUCAÇÃO E TREINAMENTO
Como entidades em formação, procuramos sempre aprender de nossos erros, bem como dos
erros de outros ministérios, e queremos usar essa oportunidade para servir melhor à igreja
perseguida. Isto implica em preparo para possíveis perseguições futuras; treinamento em
princípios bíblicos e teologia; orientação e ensino aos obreiros contra a dependência; e a
promoção da liderança da igreja local.
INDICADORES PRINCIPAIS



Estamos dando orientação e treinamento sobre questões importantes tais como
dependência, parceria, sensibilidade cultural, etc... aos nossos funcionários e obreiros.
Estamos promovendo o entendimento e percepção de diferentes níveis de perseguição.
Estamos preparando apropriadamente nossa liderança, funcionários, e parceiros quanto
aos princípios bíblicos e missiológicos sobre perseguição.
PRINCÍPIO 4: COMUNICAÇÃO
Procuramos demonstrar integridade em todas as nossas comunicações. Isto implica em
integridade nas promoções; integridade na coleta de informações; integridade na disseminação;
e integridade no uso de estatísticas.
INDICADORES PRINCIPAIS






As organizações estão realizando uma comunicação efetiva, sem exagerar as
necessidades, as estatísticas, e o sofrimento dos cristãos perseguidos
Estatísticas e pesquisas corretas e verificáveis estão sendo usadas
O uso apropriado de fontes, reconhecimento, e permissão estão sendo praticados
Demonstramos sensibilidade ao impacto sobre os cristãos perseguidos em nossa coleta
de informações
Estamos seguindo as diretrizes e orientações de diversos líderes locais sobre o que pode
ser relatado e publicado
Buscamos consenso sobre os números a serem utilizadospara relatar sobre os que estão
sendo perseguidos e o número de mártires.
PRINCÍPIO 5: PRESTAÇÃO DE CONTAS
A prestação de contas mútua leva a um ministério mais eficaz e à mordomia fiel em nosso
chamado aos perseguidos. Isto implica em padrões de qualidade na contabilidade; informação;
e avaliação.
INDICADORES PRINCIPAIS



Adotamos padrões de contabilidade nacionais, inclusive com auditoria da contabilidade.
As organizações estão abertas a opiniões de outros membros da PLR com relação à
nossa fidelidade e ao nosso cumprimento das melhores práticas
Qualquer dúvida sobre a prestação de contas pode ser levantada pessoalmente.

Quando há falhas na resolução de problemas entre nós, eles são tratados pelos
princípios de Mateus 18 e possível mediação.
PRINCÍPIO 6: DEFESA PÚBLICA
Promoveremos a conscientização sobre cristãos perseguidos, e também procuraremos
influenciar resoluções e estruturas socio-econômicas e políticas. Isto inclui a defesa sendo feita
em benefício dos cristãos perseguidos; e a defesa sendo feita em colaboração com outros
ministérios.
INDICADORES PRINCIPAIS



Povos negligenciados estão recebendo atenção apropriada.
Quando possível, a defesa pública está sendo feita em cooperação com outras
organizações
As campanhas e a defesa pública estão sendo feitas com a participação e aprovação das
famílias envolvidas e da liderança da igreja local sempre que possível.
PRINCÍPIO 7: ESTRATÉGIAS OPERACIONAIS
O ministério à igreja perseguida deve ir além de estratégias “comercializáveis”. Isto implica em
participar com os líderes da igreja perseguida e entender que pode haver diferenças de opinião
entre cristãos locais sobre como lidar com uma dada situação.
INDICADORES PRINCIPAIS






Garantimos que nosso trabalho nunca seja determinado apenas pelo doador.
Dinheiro, tecnologia e recursos não estão sendo vistos como a única “resposta”.
Quando procuramos tratar das necessidades dos perseguidos, estamos olhando além dos
recursos monetários, técnicos e materiais.
As organizações estão crescendo numa motivação do coração a favor dos perseguidos, e
não meramente pelos padrões seculares de administração.
Escritórios regionais são estabelecidos com sensibilidade à cultura, contexto e
realidades econômicas locais (salário, pessoal) , e não são implantados se organizações
nacionais já estiverem fazendo o trabalho necessário.
O envolvimento da organização está contribuindo para aumentar a capacidade e autosuficiência de líderes e igrejas nacionais.
Tornamos disponíveis nossa visão, missão e estratégias, uns aos outros.
PRINCÍPIO 8: LEVANTAMENTO DE RECURSOS
O levantamento de recursos para o ministério à igreja perseguida deve exemplificar integridade.
INDICADORES PRINCIPAIS

Estatísticas, fatos, e testemunhos corretos e verificáveis são usados nos materiais de
levantamento de recursos, evitando-se abordagens sensasionalistas.

As necessidades dos perseguidos são apresentadas de forma verdadeira, com respeito,
sem explorar seu sofrimento para ganho material e sem aumentar o risco para eles
através da publicidade.
Vemos estas melhores práticas como um “documento vivo”, elaborado por uma força tarefa
multi-organizacional da Religious Liberty Partnership em agosto de 2007. Esta é a sétima
versão, de março de 2011.
Perguntas, comentários e pedidos de informação adicional devem ser enviados para:
Brian F. O’Connell, Facilitador da RLP
[email protected]
Telefone: +1-425-218-4718
www.RLPartnership.org
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. Como escrever um Código de Melhores Práticas ajuda a atingir os objetivos de uma
organização?
2. Porque devemos rever estes códigos importantes?
3. Qual dos sete princípios é uma ponto forte da sua organização? Qual precisa ser
trabalhado?
The Religious Liberty Partnership é um grupo de mais de trinta organizações que, procurando
servir à igreja perseguida em todo o mundo, colaboram no esforço de tratar das questões de
defesa e conscientizar sobre a perseguição religiosa global.
REFLEXÕES SOBRE A TEOLOGIA, A
ESTRATÉGIA E O ENGAJAMENTO
Chris Seiple
Os desafios do século vinte e um podem ser reduzidos a uma única questão: como podemos
viver e trabalhar tranpondo as nossas mais profundas diferenças? Todo desafio é, acima de
tudo, uma questão de como decidimos nos relacionar.
A mera tolerância não é suficiente. Já no engajamento que ultrapassa nossas divisões, baseado
no respeito e na conciliação, há uma chance de haver sinceridade construtiva – de nomear as
diferenças, identificar valores e interesses comuns, e construir soluções para lidar com as raízes
de questões complexas.
Embora não haja nada distintamente cristão nesta lógica, os cristãos e a igreja deveriam ser os
primeiros a abraçar esta realidade – como “embaixadores da reconciliação” (2 Cor 5.16-21).
Para determinar se alguém está pronto para ser um embaixador da reconciliação, devemos
examinar três questões:
1. Qual é a teologia de engajamento?
2. Qual é a estratégia de engajamento?
3. Como este engajamento é implementado?
Estas são as questões que nós, no Instituto para o Engajamento Global (IEG) temos discutido há
uma década, procurando obedecer ao nosso chamado de ampliar a liberdade religiosa
sustentável em todo o mundo através de nossos parceiros locais.
A seguir, estão alguns pensamentos que me ocorreram, ao tentar confiar cada dia mais em Jesus,
e ao entender que minha fé é real e relevante nos lugares mais frágeis e complexos do mundo.
UMA TEOLOGIA DE ENGAJAMENTO
Como eu trabalho no mundo onde a maioria é muçulmana e na Ásia Oriental Comunista, seis
princípios ficam claros para mim a cada dia. Acredito que compreender seu impacto prático
seja o precursor de um engajamento construtivo e da reconciliação, não importa qual sua
vocação ou localização.
Deus é soberano. Se Deus é soberano, então não existem problemas insuperáveis. Se o mundo
é dele, e ele está agindo nele, então deveríamos esperar que ele esteja trabalhando nas situações
mais difíceis. Para seus bons propósitos, ele usa pessoas boas, pessoas más, e aqueles que não
reconhecem sua existência (Isaías 45). Seu mistério e majestade são tais que nem podemos
relatar. EU SOU O QUE SOU (Êxodo 3:14). Seria sábio de nossa parte não colocar outros
deuses diante dele, inclusive nossa religião, nosso país, e nossas metodologias de defesa.
Fomos criados para glorificar a Deus. Quando os hebreus saíram do Egito, Deus deu ao seu
povo orientações sobre como glorificá-lo. Os Dez Mandamentos (Êxodo 20.3-17) deixaram
claro que nós, humanos, devemos adorar somente a Deus, honrar nossos pais (Jeremias 1.5), e
respeitar nosso próximo “criado à imagem de Deus” (Gn 1.27).
Nós o glorificamos através do amor ao nosso próximo. “O Deus do Sinai” (Juízes 5.5; Salmos
68.8) é glorificado quando amamos ao nosso próximo. C. S. Lewis certamente compreendeu.
“O fardo, ou peso, ou a carga da glória do meu próximo deveriam ser colocados sobre meus
ombros diariamente, uma carga tão pesada que somente a humildade pode carregar... Não
existem pessoas comuns... Depois do Santo Sacramento, o nosso próximo é o objeto mais
sagrado que se apresenta aos nossos sentidos” (citado em Dorsett 1988:369-370).
Este próximo é, acima de tudo, o estrangeiro. Deus é claro quando diz ao seu povo que,
porque ele é soberano, e porque ele os fez para glorificá-lo, eles deveriam amar àqueles que são
diferentes deles: “Como o natural, será entre vós o estrangeiro [alguém não de Israel, não da
cultura majoritária] que peregrina convosco; amá-lo-eis como a vós mesmos, pois estrangeiros
fostes na terra do Egito.” [onde Israel tinha sido uma minoria étnica na cultura majoritária
egípcia] (Levítico 19.34; Ezequiel 47.22-23).
Assim como seu Pai, Jesus diz aos seus discípulos: “Porque, se amardes os que vos amam, que
recompensa tendes? ... E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais?” (Mateus
5.46-48). Ao falar com uma prostituta desprezada e rejeitada em plena luz do dia numa
sociedade patriarcal – coisa que não se faz por razões culturais, religiosas e de gênero – Jesus
deu um exemplo muito claro aos seus seguidores (João 4.4-42).
Se vivermos este amor, seremos estrangeiros. Ao crer que Jesus morreu e ressucitou para
vencer nossa própria alienação de Deus, agora nos tornamos estrangeiros neste mundo. Porque
somos nova criatura em Cristo, não mais seremos “estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos
dos santos, e somos da família de Deus” (Efésios 2.19). Mas, porque nossa lealdade última é a
Jesus, somos agora “peregrinos e forasteiros” (1 Pedro 2.11) neste mundo – um mundo que nos
tratará da mesma forma como tratou a Jesus (João 15.18; 1 Pedro 2.21). Ao por em prática este
amor, quanto mais nossa identidade tiver raízes na do nosso próximo, mais nos tornaremos
plenamente humanos e cidadãos do céu, chamados como despenseiros de nossa cidadania global
e nacional.
Marque presença e cale-se. Com o entendimento teológico acima mencionado, aderimos ao
trabalho de Deus no contexto de um país específico. Alguns perguntam: “O que Jesus faria?”
Mas a pergunta, na verdade, é “O que Jesus está fazendo?” A resposta, que recebemos daqueles
que moram no local é que Deus está presente e trabalhando, muitas vezes através da sua igreja
local, muito antes de chegarmos, e ele estará lá muito depois de sairmos (Jó 38).
Deus não precisa de nós para alcançar seus propósitos (Gênesis 18.14; Números 11.23), mas ele
nos convida a participarmos com ele no que está realizando. Jesus foi claro sobre a natureza do
chamado e as consequências: “Eis que eu vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede,
portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas.” (Mateus 10.16)
Resumindo, Deus é soberano e nos criou para glorificá-lo. Nós o glorificamos através do nosso
amor aos nossos próximos estrangeiros, inclusive aos nossos inimigos. Aprendemos a amar em
contextos diferentes, discernindo como Jesus já está trabalhando nesse local. Só assim
poderemos amar nosso próximo de forma apropriada e nos tornar embaixadores da
reconciliação.
Não existe maior alegria do que a de obedecer a este chamado, mas, em minha experiência,
pode haver consequências desagradáveis. Cristãos bem intencionados e não-cristãos vão
categorizá-lo e estigmatizá-lo, alguns dizendo que você é muito “liberal” e outros, “muito
conservador”. Em outros países, vão dizer que você é um espião do seu país de origem, e no
seu país de origem vão dizer que você não é “brasileiro” de verdade.
Recomendo que você mantenha um relacionamento correto com Deus e obedeça o que ele está
pedindo que você faça. Em segundo lugar, tenha relacionamentos com algumas pessoas chave,
com quem possa se abrir e prestar contas de forma sincera, e que o ajudem a discernir o que
vem de Deus e o que não vem dele. Finalmente, feche os olhos ao orar, para que os “fatos” à
sua frente não o façam retroceder diante da tarefa, porque essa é a definição de infidelidade
(Hebreus 10.36-39).
UMA ESTRATÉGIA DE ENGAJAMENTO
Não existe nenhum grande desafio neste mundo que possa ser resolvido por uma só entidade. O
século XXI terá como característica definidora coalisões e comunidades de pessoas dispostas,
que trabalham no ponto de contato entre as esferas pública e privada, em busca de soluções
sustentáveis para problemas que parecem insuperáveis. Para os cristãos, cada desafio global é
uma oportunidade de demonstrar o amor reconciliador de Cristo.
Os cristãos são o corpo de Cristo, perfeitamente pré-posicionados em todas as vocações e locais,
para serem embaixadores intencionais da reconciliação. Somos bons próximos, usando nossa
vocação – de tradutores da Bíblia a engenheiros elétricos, ou militares, ou enfermeiros – como
uma oportunidade de sermos embaixadores da reconciliação.
Meu chamado é para trabalhar em prol da liberdade religiosa em dois níveis. Primeiro, existe
sua definição básica, reconhecida em alianças internacionais em prol dos direitos humanos e na
maioria das constituições nacionais. A liberdade religiosa é a oportunidade de se escolher uma
religião livremente, de propagar sua reliagião e de mudar de religião, ou de não ter nenhuma
crença religiosa.
Como organização cristã, no entanto, também pensamos na liberdade religiosa como o maior
presente, depois da graça, de um Deus que dá presentes. Não posso amar meu próximo
estrangeiro que carrega a imagem de Deus – não posso glorificar a Deus – se eu não respeitar a
liberdade do meu próximo de aceitá-lo ou rejeitá-lo. Desta forma, o IEG procura comunicar e
viver a liberdade religiosa como uma responsabilidade de respeitar, e de se reconciliar com
nosso próximo (estrangeiro).
Se quisermos ser “prudentes como as serpentes e símplices como as pombas”, devemos ter a
liberdade de perguntar quais são as necessidades ou o interesse próprio de nosso próximo.
Fazer isto pode catalizar um relacionamento que talvez não se desenvolvesse de outra forma.
No IEG, tivemos que descobrir como a liberdade religiosa serve os interesses e necessidades
dos Estados e sociedades de forma consistente com o melhor contexto sócio-político-religioso
local. Por exemplo, as pessoas que podem por em prática o que está no centro de sua identidade
– isto é, a crença em um determinado sistema de fé – são menos propensas a se rebelarem contra
o Estado (Jenkins 2004, 2007). Elas também são mais propensas a serem íntegras em suas
palavras e ações, atuando como uma rocha de moralidade contra a corrupção que vem com a
transição para uma economia de mercado (como mais de um oficial Comunista me
confidenciou).
Estes crentes também têm uma probabilidade maior de serem bons cidadãos, demonstrando sua
fé através do serviço aos desfavorecidos ao seu redor. Isto pode aliviar as responsabilidades
financeiras dos governos. Nesse tipo de ambiente pode se criar uma estabilidade, que ajuda a
atrair investimentos estrangeiros tão necessários para a prosperidade das pessoas e do país.
Ao apresentarmos o “caso” da liberdade religiosa desta forma – combinando a teologia ao
interesse próprio – estabelecemos uma estratégia de engajamento. Com base no exemplo de
Jesus com a mulher samaritana, chamamos esta estratégia de “diplomacia relacional”.
A diplomacia relacional do IEG tem três características principais. Em primeiro lugar, a
diplomacia relacional engaja o Estado e a sociedade de forma tranparente, trabalhando
simultaneamente de cima para baixo (governo) e de baixo para cima (a partir das raízes).
Chamamos isto de diplomacia do “Tipo 1.5” porque trabalhamos no espaço entre a diplomacia
tradicional, de governo a governo (Tipo 1), e a não tradicional, a diplomacia de pessoa a pessoa
(Tipo 2). Esta abordagem exige que os que a praticam ouçam diligentemente, pesquisem, e
busquem compreender os contextos sócio-cultural-religioso locais.
Com o tempo, com paciência e persistência, relacionamentos se desenvolvem, mas não sem
dificuldade e confusão. Cria-se um espaço onde se pode nomear as diferenças e descobrir
valores em comum. Conversas com parceiros nos níveis nacional e provincial levam a um
consenso sobre o papel da religião em sua sociedade, e eventualmente sobre como podem
promover a liberdade religiosa da melhor forma.
Em segundo lugar, o consenso atingido pela diplomacia relacional é definido por tratados
assinados que promovem a liberdade religiosa de forma contextual. Este “mapa” demonstra
uma estratégia tangível de passos mensuráveis e com prestação mútua de contas. A abordagem
de respeito mútuo cria uma situação que beneficia ambas as partes, promovendo os interesses de
comunidades religiosas marginalizadas, bem como os governos preocupados com a segurança e
com a coesão social.
Finalmente, e mais importante, esses tratados permitem uma transparência pública em que todas
as partes podem cobrar responsabilidades e celebrar a implementação dos alvos do tratado. Este
tipo de engajamento baseado na dignidade de nações e culturas – através de parceiros nos níveis
governamental e de raíz – pode ter um impacto duradouro e positivo.
O IGE procura criar um espaço para o diálogo crítico sobre como um Estado e a sociedade
podem proteger e promover a minoria estrangeira no seu meio como um vizinho pleno. É um
“meio termo radical” em que cidadãos podem ser respeitosamente honestos e concordar em
discordar (quando necessário), e ao mesmo tempo manter seus relacionamentos.
A APLICAÇÃO DA DIPLOMACIA RELACIONAL
Não tem sido fácil ser cristão no Laos e no Vietnã desde que os governos comunistas tomaram
posse em 1975. Há somente dez anos, cristãos eram presos em troncos de madeira no Laos, e
em 2001 e 2004 muitas Divisões do Exército Vietnamita promoveram a repressão nos planaltos
centrais – onde o Cristianismo está crescendo rapidamente entre grupos étnicos minoritários.
No entanto, com mais da metade de sua população nascida desde 1975, a necessidade de prover
educação e empregos, de competir na economia global, e de equilíbrar o grande vizinho do
Norte, ambos os países começaram intencionalmente a buscar um relacionamento com os
Estados Unidos
Os EUA responderam com preocupação sobre a situação dos direitos humanos nos dois países,
especialmente a questão da liberdade religiosa. De fato, os EUA colocaram o Vietnã na lista de
piores violações da liberdade religiosa em setembro de 2004 e ameaçaram fazer o mesmo com o
Laos.
Em 2011, passando por uma melhora mal distribuída, a liberdade religiosa está
consideravelmente melhor do que há dez anos. Muitas questões e muitos indivíduos tornaram
esta mudança possível, especialmente pessoas empenhadas nos governos dos dois lados que
desejam um relacionamento bilateral forte.
O IEG trabalha naquele espaço entre o Tipo 1 e Tipo 2 de diplomacia, buscando aumentar a
confiança e contribuindo para maior liberdade religiosa. O IEG é a única organização nãogovernamental internacional de liberdade religiosa que assinou um tratado com o Vietnã e com
o Laos para este fim. Estes tratados incluem o IEG no treinamento de líderes religiosos locais e
do governo sobre a liberdade religiosa em províncias onde anteriormente ocorreram os piores
casos de perseguição religiosa.
É marcante que uma ONG de dez pessoas, cristã, tenha assinado tratados com os governos
comunistas do Laos (6 milhões de habitantes) e do Vietnã (87 milhões de habitantes). É como se
uma ONG muçulmana do Irã viesse ao distrito mais evangelical do Texas e quisesse ensinar
princípios de educação à Associação de Pais e Mestres local. Como foi que isso aconteceu?
Muitos fatores contribuíram para isso. Primeiro, meu pai tinha participado de 300 missões de
combate num avião, partindo de Danang, Vietnã, 25 das quais sobre o Laos na “guerra secreta”.
Mais tarde, Deus lhe deu um coração voltado para a reconciliação com esses países. Como
fundador do IEG, junto com a minha mãe, eles foram obedientes ao chamado de se engajarem.
(Para outros relatos, ver as referências.)
Eles focalizaram o Laos, enquanto eu focalizei o Vietnã, um engajamento que nos foi
apresentado por um oficial Vietnamita que, descobrimos mais tarde, havia lutado contra meu pai
em Danang (Seiple 2008). Deus é soberano, ele tem um plano. Ele usa nossa família para seus
propósitos.
Em segundo lugar, nós continuamos a viajar para lá, buscando entendimento antes de nos
engajarmos. De muitas formas, especialmente nas primeiras viagens ao Laos e ao Vietnã, não
importava o que disséssemos ou fizéssemos. O que realmente contava é que voltávamos.
Nosso “sim” era “sim” e nosso “não” era “não”. Eles podiam confiar em nós. Encontramos o
mesmo tipo de pessoas em ambos os governos, pessoas que desejavam o melhor para seu país e
que viram que trabalhar com o IEG beneficiaria o seu governo.
Em terceiro lugar, entendemos o contexto geopolítico-econômico e os pontos de negociação.
Depois de ver progresso tangível na liberdade religiosa em lugares que outras organizações para
os direitos humanos não visitavam, pudemos apresentar um entendimento mais amplo de
liberdade religiosa do que a versão simples, preto-no-branco que era oferecida por algumas
ONGs.
Como resultado, pudemos dar a ambos os governos sugestões que beneficiariam a todos.
Importantíssimo, éramos sempre transparentes, dizendo a mesma coisa a todos os envolvidos –
fosse o embaixador americano, o presidente vietnamita, um líder de igreja nas casas, um
deputado, ou o governador de uma província (por favor, veja as referências em meu testemunho
diante do Senado dos EUA, Seiple 2006b).
Declarações de dois oficiais vietnamitas do alto escalão resumem o porquê fomos abençoados
com algum “sucesso”. O próprio relacionamento só aconteceu por causa da visita de oficiais
vietnamitas à nossa casa. Um deles disse: “Vocês são os primeiros americanos que não me
deram uma lista primeiro, me dizendo o que fazer.” Com o desenvolvimento e amadurecimento
do relacionamento, nos disseram em Hanoi: “Quer gostemos ou não, temos que reconhecer que
a liberdade religiosa é um interesse nacional permanente dos Estados Unidos.”
CONCLUSÃO
Entre o desejo humano de ser respeitado como igual e a lógica às vezes renitente dos interesses
pessoais há um espaço para o engajamento construtivo de forma “prudente como as serpentes” e
“símplice como as pombas”, e para sermos embaixadores da reconciliação nos lugares mais
complicados. Não por nossa causa, mas porque decidimos aderir silenciosamente ao que Jesus
já estava fazendo através daqueles que escolheu (não-cristãos) e ungiu (cristãos) para isso.
Os seguidores de Cristo são chamados para serem construtores de pontes, embaixadores práticos
da reconciliação. Este chamado não é uma questão para ser debatida, mas sim para ser
obedecido. A construção obediente de pontes exige um compromisso de longo prazo,
discernimento, e a disposição de “levar chumbo” de todos os lados – teológica e politicamente.
Através dessa obediência, pode haver um impacto significativo e sustentável em prol da
liberdade religiosa e nosso Deus soberano é glorificado.
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. Jesus demonstrou de forma intencional o seu amor por uma pessoa muito diferente dele
(a mulher Samaritana), atravessando todas as barreiras geográficas, teológicas, sociais e
de gênero para fazer isso. Podemos fazer menos?
2. Como podemos amar alguém completamente diferente de nós mesmos? Quais são os
passos práticos que precisamos dar, pessoalmente e profissionalmente?
3. Você tem uma teologia e estratégia de engajamento em sua igreja? Como se aplica
localmente? Globalmente?
REFERÊNCIAS
Dorsett, L. W., ed. 1988. The essential C. S. Lewis. (C. S. Lewis, The weight of glory,
originally preached as a sermon on June 8, 1941.) New York: Macmillan Publishing Company.
Galli, M. 2007. Good morning, Vietnam. Christianity Today, May: 26–32.
Jenkins, P. 2004. The politics of persecuted minorities. In Religion and security: The new nexus
in international affairs, ed. por D. Hoover and R. Seiple. Landham, MD: Row-man Littlefield.
(Este capítulo foi adaptado como artigo mais tarde, “Repression and rebellion”, in The Review
of Faith and International Affairs, 5 (1), (2007): 3–12.)
Seiple, C. 2005. Religious freedom and reconciliation. September 6. https://www.globalengage.org/pressroom/ftp/475-from-the-president-religious-freedom-and-reconciliation.html.
———. 2006a. The gate at Bethel: Building religious freedom in Vietnam. July 6.
https://www.globalengage.org/pressroom/ftp/469-the-gate-at-bethel-building-religious-freedom-in-vietnam.html.
———. 2006b. Vietnam, religious freedom, and PNTR. Testemunho diante do Comitê de
Finanças do Senado dos EUA, July 12. http://finance.senate.gov/sitepages/hearing071206.htm.
———. 2007. Religious freedom in Vietnam: An update. Testimony before the Congressional
Human Rights Caucus (CHRC), the CHRC Taskforce on International Religious Freedom, and
the Congressional Caucus on Vietnam, December 6.
http://www.globalengage.org/WorkArea/showcontent.aspx?id=9080.
———. 2008. The road to reconciliation. November 5.
https://www.globalengage.org/pressroom/ftp/775-the-road-to-reconciliation.html.
———. 2009. Case study II—Vietnam. In International religious freedom advocacy: A guide to
organizations, law, and NGOs. K. H. Thames and A. B. Rowe. Waco, TX: Baylor University
Press. Ver Apêndice VIII para todos os acordos assinados pelo IEG com o Vietnã.
———. 2010. Miracle on the Mekong. March 30. https://www.globalengage.org/pressroom/ftp/1148-miracle-on-the-mekong.html.
Chris Seiple, PhD, é o presidente do Instituto para o Engajamento Global
(www.globalingage.org) e fundador de The Review of Faith and International Affairs. É coautor de International Religious Freedom Advocacy (2009), e de Religion and Security
Handbook . Ele serve no Conselho de Relações Estrangeiras, no Instituto Internacional de
Estudos Estratégicos, na diretoria do WBT e no Comitê Consultivo Federal da Secretária de
Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, em seu “Strategic Dialogue with Civil Society”
(Diálogo Estratégico com a Sociedade Civil), onde ele também atua como consultor sênior para
o grupo de trabalho do comitê “Religion and Foreign Policy” (Religião e Política Externa).
A CURA E O CONSOLO DE JESUS CRISTO
PARA OS TRAUMAS
Kyle Miller
AS PERGUNTAS DIFÍCEIS
“Mataram minha esposa e filhos! Eu saí, eles vieram e os mataram!” Ibrahim 20 me encarou com
intensa tristeza e raiva enquanto conversávamos numa tarde quente de outubro de 2008. Os
seus olhos se encheram de lágrimas ao relatar os detalhes da morte de sua família, pelas mãos da
milícia que havia atacado e destruído sua vila africana no ano anterior. Ficava ainda mais triste
pela culpa de não ter estado em casa. A história era de partir o coração, e Ibrahim terminou
dizendo: “E ainda estou com muita, muita raiva, e não sei como lidar com isso!” O que Deus
poderia me ajudar a dizer a Ibrahim? Que palavras haveria para responder a esse profundo
sofrimento ainda tão vivo? Como é que eu poderia ajudá-lo, especialmente sabendo que ele,
provavelmente, não acreditava que Jesus Cristo é o Filho de Deus?
“Como posso acreditar que Deus é bom e que me ama depois de todas essas coisas horríveis que
me aconteceram?” Olga me perguntou em junho de 2011. Estávamos conversando através de
um tradutor, um dos funcionários que me auxiliava no aconselhamento dos moradores da
Freedom Home em Chisinau, Moldávia. Em seu desespero, Olga, assim como Ibrahim, estava
me perguntando algo impossível de responder. Olga tinha sido negligenciada e passado por
abusos numa família Moldova pobre da zona rural, antes de ser vendida para ciganos. Ela
20
Nomes e alguns locais trocados por uma questão de privacidade e segurança.
acabou numa capital nas redondezas, onde sofreu atrocidades inenarráveis nas mãos de
traficantes para a exploração sexual e os que utilizam seus serviços. Durante a conversa com
Olga e outros residentes, a maioria falava com uma dissociação, sem demonstrar emoções ao
descrever os horrores de serem escravos sexuais, constantemente sob a ameaça de tortura ou de
morte para si ou para seus amigos, caso não cooperassem ou se tentassem fugir.
Como eu poderia responder a essas questões, com uma vida tão diferente? Como poderia dizer
qualquer coisa, mesmo que fosse verdade, que não soasse ridiculamente banal ou insensível, em
comparação com o genocídio cruel da família de Ibrahim e com a dúzia de estupros por dia e a
tortura de Olga? Deus me mostrou que a única coisa a fazer é ser pobre de espírito para que
possa ser rico do Espírito de Deus e não tentar explicar os fatos. Depois de aconselhar pessoas
durante toda minha vida, estou aprendendo em cada santo momento a chorar com os que
choram (Romanos 12.15) e a não me deixar vencer pelo mal que lhes foi feito, mas vencer o mal
com o bem (Romanos 12.21).
O CORPO DE CRISTO E O MINISTÉRIO DA RECONCILIAÇÃO
Num mundo cheio de sofrimento, perseguição e martírio, é difícil imaginar um papel mais
importante no corpo de Cristo do que oferecer a compaixão de Cristo, seu consolo e cura para os
sobreviventes de grandes atrocidades. A grande comissão de Jesus para fazer discípulos em
Mateus 28.19-20 parece mais fácil de explicar para alguém num café com ar condicionado do
Ocidente do que numa igreja secreta nos lares na China, num apartamento caindo aos pedaços
na União Soviética ou num vilarejo na África prestes a ser atacado. Mas, quando olhamos para
estes mesmos versículos com as lentes do ministério da reconciliação do trauma, que foi dado
por Deus a Jesus Cristo em Isaías 61 e, também por meio dele, a nós, então, pela fé, o invisível
se torna visível (Hebreus 11.1) e o impossível começa a acontecer (Mateus 19.26). Ore ao Pai
Celeste, usando Isaías 61, e diga-lhe que você deseja cumprir o chamado em sua vida, cada vez
que ele lhe der oportunidades:
O Espírito do SENHOR Deus está sobre mim, porque o SENHOR me ungiu para
pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a
proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados; a apregoar o ano
aceitável do SENHOR e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os que
choram e a pôr sobre os que em Sião estão de luto uma coroa em vez de cinzas, óleo de
alegria, em vez de pranto, veste de louvor, em vez de espírito angustiado (Isaías 61.1-3)
Estou seguindo a Jesus neste ministério de reconciliação do trauma (2 Coríntios 5.18). Mesmo
que o mal e a tristeza das pessoas possam ser devastadores, mesmo que eu me sinta aquém –
Deus é maior (1 João 4.4). É por isso que eu participo de viagens missionárias com minha
igreja, por isso estou num programa de PhD em um Seminário, e até por isso é que estou
escrevendo este capítulo – para que eu possa confiar a vocês o que Deus me ensinou ( 1
Timóteo 2.2). Estou seguindo a Jesus e me tornando a pessoa que preciso ser, para alcançar os
Ibrahins, e as Olgas da minha vida. Vamos seguir a Cristo no “caminho sobremodo excelente”
(1 Coríntios 12.31) para que juntos em todo o mundo possamos “ser chamados carvalhos de
justiça, plantados pelo Senhor, para a sua glória” (Isaías 61.3c).
No preparo para este chamado, duas verdades de Deus podem nos ajudar. Em primeiro lugar,
precisamos receber e compartilhar transformação, não informação, para que quando
oferecermos as Escrituras, a esperança e a autoridade espiritual, Deus possa tranformar as
pessoas da mesma forma milagrosa como nos transformou. Em segundo lugar, não precisamos
ser sobreviventes de um genocídio ou da escravidão sexual para ajudar alguém que seja. Se
você é, então a redenção de Deus significa que ele poderá usá-lo/a de formas que não pode me
usar. De qualquer jeito, para que você seja eficaz, Deus o/a está chamando a enfrentar seu
próprio trauma. Jesus ensina em Lucas 16.10 que temos a responsabilidade de encarar nosso
próprio trauma junto com ele, mesmo que pareça “apenas uma coisa pequena” em comparação
com o trauma de genocídio ou do tráfico humano. “Aquele que é fiel nas coisas pequenas (seus
próprios traumas) também é fiel nas coisas grandes (o trauma severo de outra pessoa); e aquele
que é desonesto em algo pequeno também o será em algo grande.”
Se eu e você estivermos (1) não nos aproximando de Deus e de todos em nossas vidas com a
humildade de um pobre de espírito; (2) não enfrentando a dor, o trauma e o sofrimento de nosso
passado; (3) não recebendo as coisas difíceis da vida – até mesmo as menores – como
oportunidades da parte de Deus para nos tornarmos como ele; e portanto (4) não crescendo em
Cristo de forma perceptível, então estaremos despreparados quando enfrentarmos essas
provações em primeira mão ou tentarmos ajudar outra pessoa em segunda mão. Provérbios
24.10 diz que “Se te mostras fraco no dia da angústia, a tua força é pequena.” Utilizando uma
analogia, se eu, como um treinador de basquete não promover o treinamento para meu time,
quando chegar a hora do jogo, meus jogadores provavelmente vão perder.
Gostaria de colocar este princípio em prática agora: Estou orando agora por todos que lerão este
capítulo. Peço que você ore pelos outros leitores e por mim, que todos nós cresçamos em
Cristo, que nos tornemos mais pobres de espírito para que possamos ser ricos do Espírito de
Deus, que possamos ver e sentir a dor e o trauma ao nosso redor como Jesus faria.
Três elementos são necessários para que relacionamentos de discipulado que transformem e que
curem possam ocorrer: (1) um modelo bíblico, (2) humildade e disposição para aprender da
parte do obreiro, e (3) humildade e disposição para aprender da parte do sujeito. A disposição
para aprender é um componente do Modelo de Trauma das Beatitudes. Quando Jesus dirige um
obreiro disposto a aprender, a vida do obreiro será transformada e suas próprias feridas serão
curadas (1 Pedro 2.24). Com isso, o obreiro terá experimentado pessoalmente o processo e o
poder de Jesus. Ele se tornará mais atento e equipado para ministrar às feridas profundas
daqueles a quem está servindo, e para ter a fé e a paciência com os traumatizados, de modo a
promover a cura transformadora, assim como Deus fez em sua vida previamente (2 Coríntios
1.2-4).
Muitos versículos do Velho Testamento nos admoestam sobre não estarmos dispostos a
aprender. Eclesiastes 4.13 diz “Melhor é o jovem pobre e sábio do que o rei velho e insensato,
que já não se deixa admoestar” Esse rei já foi sábio e podia receber instrução de outras pessoas,
mas no momento seu valor é menor do que o de um adolescente pobre, que é sábio porque é
capaz de receber instrução. Podemos ligar este provérbio a um atributo de Jesus Cristo que
embora seja poderoso, não é muito conhecido – sua disposição para aprender através do
sofrimento. Hebreus 5.8 ilustra as boas novas da disposição para aprender. Claramente
descreve que Cristo não só aprendeu a obediência – mas também que o fez através do
sofrimento. “embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu.” Cristo
demonstra a maturidade constante através da aprendizagem, e também constante aprendizagem
através da vida e do sofrimento. Isto é verdade num país desenvolvido – todos temos que
enfrentar nosso próprio sofrimento e, através dele, desenvolver uma fome e sede da justiça de
Deus (Mateus 5.6) para que tenhamos autoridade espiritual tanto em nossos relacionamentos
pessoais quanto em nossas vidas profissionais. No entanto, é ainda mais necessário para os que
estão nos países em desenvolvimento, trabalhando com sobreviventes de atrocidades, desastres
naturais e guerra.
O MODELO DE TRAUMA DAS BEATITUDES
Jesus Cristo disse em Mateus 5.3-5: “ Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é
o reino dos céus. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados
os mansos, porque herdarão a terra.” Baseado no Modelo de Aconselhamento das Beatitudes
que tenho usado desde 1984, desenvolvi o Modelo de Trauma das Beatitudes (MTB) em 2008
para ensinar aos nossos sobreviventes do genocídio na África. O MTB é um modelo de
processo tranformacional e relacional – não um modelo de performance de curto prazo – não
um modelo de especialista; um modelo exegeticamente bíblico – não um modelo topicamente
bíblico; e um modelo centralizado no espiritual – não um modelo psicológico conceitual. As
Beatitudes em Mateus 5, especialmente as três primeiras nos versículos 3-5, nos dão um
primeiro pontapé bíblico e espiritual para começar a conversar e orar com alguém que esteja
enfrentando tristeza e aflição. O MTB nos dá uma abordagem para: (1) conhecer a Deus
(humilde de espírito) para se tornar livre de seu velho eu, (2) se tornar livre da dor dos pecados
passados e presentes (chorar); e (3) aprender a se relacionar com os outros em paz e poder e a
não vitimizar ou ser vitimizado pelos outros (manso). O Modelo de Trauma das Beatitudes é
uma abordagem que não exige uso de papel (três princípios para cada uma das três Beatitudes).
Foi desenvolvido para ser apresentado a uma audiência ainda não cristã; as apresentações não
incluem referências limitadas a uma cultura, mas têm referências a culturas específicas; e a
abordagem missional é semelhante ao modelo de missões médicas (Desenvolva
relacionamentos → Ofereça cuidado médico → Continue os relacionamentos → Compartilhe
sobre Jesus Cristo na medida do possível, e não exija uma profissão de fé para que recebam
cuidado médico).
Em nosso programa de alcance a uma vila africana em 2008 , conseguimos ensinar ou conversar
com 800 dos 2.000 habitantes em pequenos grupos. O Modelo de Trauma das Beatitudes e a
história de José foram muito convincentes para apresentar, mas foi muito doloroso conversar,
orar e chorar com as pessoas, metade das quais (muitas eram crianças sobreviventes) haviam
testemunhado a tortura e a morte de seus entes queridos no genocídio. Não há palavras para
descrever o que meus novos amigos, como o Ibrahim, estavam sentindo ao falar, mas estavam
ansiosos por falar. Eles contaram à nossa igreja que desde o último ataque no ano anterior, eles
estavam gratos pelo cuidado médico e pela comida que outras ONGs estavam suprindo, mas que
até nossa vinda, ninguém havia lhes perguntado especificamente o que havia acontecido com
eles, nem haviam se sentado para ouvir suas histórias.
Depois dessa experiência que mudou minha vida em 2008, fui covidado por Andy e Nancy
Raatz, fundadores da Freedom Home na Moldávia, Chisinau, para dar um treinamento para seus
funcionários, ensinando o Modelo de Trauma das Beatitudes, em maio de 2010. O MTB foi
adaptado para ser efetivo para as funcionárias jovens e cristãs, falantes de Romeno ou Russo, da
Freedom Home da Moldávia. Este evento foi seguido no ano seguinte por um treinamento
através de Skype todo mês para todos os funcionários. Estes começaram a usar o MTB com os
residentes, e centenas de pessoas de todo o mundo se uniram à Freedom Home em oração,
numa campanha de batalha espiritual de oito semanas na primavera de 2011. Depois, em junho
de 2011, um grupo da nossa igreja, Igreja Batista Great Hills em Austin, no Texas, foi até a
Moldávia para dar mais treinamento sobre o Modelo de Trauma das Beatitudes para os
funcionários. Foi uma benção aconselhar os funcionários individualmente, e também as jovens
residentes que estão se recuperando de terem sido traficadas para a exploração sexual.
Os nove princípios transformadores da MTB que são ensinados, e aplicados, são os seguintes:
Humildes de espírito (Mateus 5.3)
1. Perceba que não podemos suprir nossas próprias necessidades, devemos nos tornar
continuamente pobres de nosso espírito e ricos do Espírito de Deus (Isaías 57.15;
Mateus 11.28-30; 2 Coríntios 8.9; Filipenses 2.1-7; Tiago 4.6; 1 Pedro 5.5-7).
2. Cresça no conhecimento verdadeiro de Deus, tornando-se humilde de espírito
(Colossenses 2.2; 3.10; 2 Pedro 1.2-4.8).
3. Receba e ande na sua nova identidade em Cristo, despindo-se do velho homem e
revestindo-se do novo homem, como quem você realmente é em Cristo. (Colossenses
3.9-11)
Chorar (Mateus 5.4)
1. Entenda e mude suas reações à vida do tipo Triste→Irada→Má (Marcos 3.5, Efésios
4.26).
2. Desenvolva a disposição de perdoar aqueles que lhe fizeram mal; arrependa-se de seus
pecados e peça e receba perdão de Jesus Cristo (Mateus 6.12; Efésios 4.32).
3. Aprenda como passar pelo luto por sua dor, culpa, medo, tristeza, trauma e ansiedade,
para criar um vácuo que Deus possa preencher com seu consolo (Mateus 5.4; 2
Coríntios 1.2-4)
Manso (Mateus 5.5)
1. Entenda que a mansidão como a de Cristo não é fraqueza, mas o poder divino sob
controle divino (Gálatas 5.22-23; Mateus 19.26; Filipenses 4.13).
2. Aprenda a entregar a Deus suas ansiedades, e pare de exigir “direitos pessoais” que são
um mito. Ao se esvaziarem de seus direitos, os sobreviventes do trauma param de
tentar se tornar saudáveis e fortes em si mesmos e, ao invés disso, aceitam que Jeová
Rafá é o que cura e que o Senhor dos Exércitos pode lhes dar forças para ficarem firmes
em Cristo (1 Coríntios 8,9, especialmente 9.4-6).
3. Transforme-se de vítima em vitorioso/a (1 Coríntios 15.57) em Cristo, um soldado
(Filipenses 2.25; Filipenses 1.2) um vencedor (1 João 2.13; 4.4; 5.4-5, Romanos 8.37).
Bem-aventurado
“Bem-aventurado” é uma das palavras menos compreendidas de Jesus. Bem-aventurado não
significa feliz, sortudo, ou afortunado; sua raíz significa grande, e portanto significa grande,
realizado e cheio de propósito. Bem-aventurado não significa que as circunstâncias da vida são
fáceis ou isentas de dor. A bem-aventurança engloba o benefício de ter um propósito crescente
e a paz ao amadurecer na jornada com Cristo. John Stott nos dá uma excelente sinopse das
Bem-aventuranças:
As Beatitudes pintam um quadro abrangente do discípulo cristão. Nós o vemos
primeiramente sozinho, de joelhos diante de Deus, reconhecendo sua pobreza espiritual
e chorando por isso. Isto o torna manso, ou gentil em todos os seus relacionamentos, já
que a honestidade faz com que ele permita que outros pensem dele o que, diante de
Deus, ele mesmo confessa ser... Assim é o homem ou a mulher que é bem-aventurado/a,
isto é, que tem a aprovação de Deus e encontra a auto-realização como um ser humano
(citado em Greenman et all, 2007: 258-259).
Em todas as suas tribulações, Jesus tinha este propósito e paz de bem-aventurado, já que sabia
que estava fazendo o que seu Pai lhe ordenava (João 14.10). Foi essa vida de bem-aventurança
por seu Pai que o preparou para levar os pecados do mundo – “o qual, em troca da alegria que
lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra
do trono de Deus.” (Hebreus 12.2)
Não há nada rápido, fácil ou indolor sobre o Modelo de Trauma das Beatitudes para a cura. Por
exemplo, discutir sobre ser bem-aventurado com as jovens na Moldávia é difícil – precisava ser
reconhecido que suas vidas não tinham sido bem-aventuradas. Mas muitas de nossas conversas
sobre seus anos no tráfico começavam com o meu compartilhar sobre o que Jesus significou
para este mundo. De fato, como as pessoas nas vilas africanas, elas também estavam mais do
que prontas a falar; eu nunca tive que perguntar: “O que aconteceu com você quando foi
traficada?” Depois de alguns minutos de conversa sobre sua infância, Deus, e sua vida na
Freedom Home, suas experiências no tráfico começavam a jorrar. Quando somos pobres de
espírito, Deus nos dá “maior graça” (Tiago 4.6) – tanto para a pessoa que Deus está curando
quanto para o funcionário que está ajudando a curar. Tenho agora mais de meio século de vida.
Já vivi em cinco países, visitei vinte e cinco, e aconselhei milhares de pessoas. Mas, as coisas
que ouvi dos sobreviventes do genocídio na África e das sobreviventes do tráfico humano na
Moldávia foram muito mais maléficas e emocionalmente arrasadoras do que se possa escrever
ou imaginar. Porém, Deus está nos chamando para ajudar os sobreviventes a receber “uma
coroa em vez de cinzas” para que o “Senhor Deus faça brotar a justiça e o louvor perante todas
as nações” (Isaías 61. 3,11).
Pessoas traumatizadas experimentam a nova bem-aventurança em Jesus em partes iguais de
“desconforto” e de “esperança”. É desconfortável, não porque o Espírito de Deus não os esteja
atraindo com seu amor, mas porque não só foram traumatizadas centenas de vezes, mas, no caso
das meninas traficadas, elas também foram enganadas e muitas vezes. Combinando
‘traumatizadas’ com ‘enganadas’, isso as torna naturalmente muito desconfiadas, tanto do amor
de Deus quanto do amor das funcionárias que cuidam delas. Mas, ao se tornarem pobres de
espírito, percebendo que não podem suprir suas próprias necessidades e devem depender do
Espírito de Deus, a “maior graça” cresce, e elas gradualmente se enchem de esperança, e sua
ansiedade e depressão podem começar a diminuir. Ao perceberem lentamente que não estão
sozinhas, e ao receberem o amor de Deus e uma nova família, elas podem baixar a guarda no
presente, revertendo sua ansiedade e depressão em expectativa e alegria.
A bem-aventurança acontece para os funcionários da Freedom Home na Moldávia quando
respondem ao chamado de Deus nas suas próprias vidas, permitindo que seu Pai Celeste os cure
de seus traumas e os amadureça com o poder da ressurreição de Jesus Cristo , através da obra do
seu Espírito Santo. A bem-aventurança para as oito residentes e seus filhos acontece quando
são curadas e quando recebem a visão redentora de Deus para suas vidas. Algumas delas
participam no ministério aos envolvidos no tráfico humano. Ao realizarem este trabalho, podem
ser as mãos e os pés de Cristo, como Paulo explica em 2 Coríntios 1.2-4, “consolando os que
estão em qualquer angústia, com a consolação com que elas mesmas foram contempladas por
Deus.” A bem-aventurança acontece para os 800 adultos e crianças com quem conversamos na
África quando eles começam a seguir a Jesus Cristo como seu Salvador e Senhor.
Conseguimos, de forma sutil mas suficiente, compartilhar o “evangelho transformador da graça”
com eles
FINALIZANDO
Não sei onde Ibrahim se encontra hoje, mas Deus estava trabalhando nele. A última coisa que
ele me perguntou foi: “Você está me dizendo que preciso perdoar as pessoas que mataram
minha mulher e meus filhos?” Grato pelo tempo da tradução para poder orar, eu respondi: “Não,
Ibrahim, não estou te dizendo isso. Deus é quem está te dizendo isso.” Ele acenou com a
cabeça, sorriu, e aceitou o pensamento. Ele compreendeu, como já havíamos discutido, que se
ele não os perdoasse, o seu próprio ódio acabaria tornando-o como eles. Em fevereiro de 2009,
a vila onde tínhamos estado foi atacada novamente e roubada, mas todos escaparam primeiro.
Das vezes que conversei e orei com Ibrahim, sei que ele ouviu o evangelho da graça de Jesus
Cristo, e continuo orando por ele e por todos na sua vila.
Para contrastar, sei onde está Olga, e ela está bem, assim como as outras residentes. A tremenda
diferença não é apenas que a Olga agora é salva por Jesus Cristo, mas também que os Raatzes,
os funcionários e as residentes estão juntos, trabalhando com os princípios do Modelo de
Trauma das Beatitudes, pela graça e bom humor de Deus. Deus usa sua Palavra, através de seu
povo e por seu Espírito, nas situações mais traumáticas, para realizar sua vontade e propósito de
amor para as vidas das pessoas. Pretendo voltar à Moldávia no ano que vem, oro que eu possa
voltar para a África assim que possível. Peço a você que ore por todas essas pessoas de quem
cuido e a quem sirvo e eu vou orar por vocês e pelas pessoas a quem Deus os chamou para
cuidar e servir.
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. Compartilhe uma área de orgulho (auto-suficiência) em sua vida e como ela o prende
em seu ministério. Diga ao grupo que você sente o toque de Deus para se arrepender do
orgulho e que você deseja ser pobre de espírito e se tornar rico do Espírito de Deus.
Pense em uma forma como seu ministério às pessoas será mais eficiente se você se
tornar mais humilde.
2. Compartilhe um trauma em sua vida que Deus lhe mostrou que quer curar, para que
você seja saudável e possa ajudar aos outros com maior poder a sararem de seus
traumas. Além de compartilhar essa nova determinação com a pessoa ou grupo,
compartilhe qual será o próximo passo de cura para você (isto é, perdoar alguém ou
pedir o perdão de alguém)
3. Compartilhe que grupo de pessoas traumatizadas Deus colocou em seu coração para
servir; conte o que você sente e qual é o seu discernimento quando ora por eles.
Explique as mudanças em sua vida que você teria que fazer para estar preparado/a para
ajudá-los a sarar e serem transformados; peça oração.
REFERÊNCIA
Greenman, J. P., T. Larsen e S. R. Spencer. 2007. The sermon on the mount through the
centuries: From the early church to John Paul II. Grand Rapids, MI: Brazos Press.
Kyle Miller cresceu na Ásia como filho de missionários. Casou-se com Terri e são abençoados
com seus filhos Nathan, Kevin, Kristin e Katherine. Kyle tem um BA e dois mestrados da
Universidade do Texas, em Austin, em psicologia/aconselhamento. Atualmente, está no
programa de PhD em aconselhament do Seminário Batista Southwestern em Ft. Worth, no
Texas. Kyle é o Pastor Titular da igreja Batista Great Hills, em Austin, e gosta muito de servir a
Jesus em outros países através do treinamento em trauma e em viagens de ministério.
PARTE CINCO
Temas finais
As lições dos cristãos celtas
Chegando à última seção do nosso livro, nos perguntamos como devemos
responder a tantos desafios. Somos chamados a interceder, mas o que mais podemos
fazer?
Vamos refletir brevemente sobre algumas lições do cristianismo celta e alguns
de seus líderes principais: Patrício, Columba, Columbano, Aidan, Hilda, Ita, para
mencionar somente alguns. O cristianismo celta moldou a Irlanda e outras áreas das
Ilhas Britânicas, especialmente desde os séculos quarto ao oitavo. Num sentido bem
real, eles salvaram a civilização ocidental, preservando a educação, bibliotecas e
manuscritos das Escrituras. Sua decadência começou durante o século nono quando as
invasões vikings destruíram muitas comunidades. Reavivamentos da espiritualidade
cristã celta de vez em quando surgem na Grã-Bretanha para mais uma vez abençoar o
mundo. Na atualidade, desfrutamos de um reavivamento nos estudos sobre música,
missão e espiritualidade do cristianismo celta.
Os valores centrais dos irmãos celtas incluem uma visão elevada de amor pelas
Escrituras e pela fé na Trindade, vida interior profunda de oração e santidade,
compromisso com a simplicidade, respeito holístico pela criação, importância dada à
comunidade, envolvimento em guerra espiritual, um lugar mais abrangente para as
mulheres na igreja e na missão, a liberação das artes visuais e musicais, o envio de
pessoas de gerações mais jovens e mais idosas para o trabalho missionário e uma
missão que flui da comunidade e da espiritualidade. Sua estrutura social religiosa era
mais relacional do que hierárquica. Finalmente, eles preparavam, sustentavam e
enviavam equipes para o ministério – fluindo a partir da comunidade e voltando à
mesma.
Esses crentes falavam de missão em termos de peregrinatio – peregrinação ou
desejo de explorar o desconhecido, portanto, fazer missão. Seu símbolo para o Espírito
Santo era o indomável ganso selvagem, clamando de longe, levado pelo vento ou contra
ele a terras desconhecidas. Essa peregrinatio os levou a evangelizar os pictos, na
Escócia, o país de Gales, grande parte do norte e centro da Inglaterra e lugares distantes
como Itália, Ucrânia e o reino Bizantino.
Aqui está o que veremos nesta parte do livro: a peregrinatio e o martírio e
sacrifício missionários.
Yvonne e William D. Taylor
Um Culto de Oração a Favor da Igreja Perseguida
Dia Internacional de Oração pela Igreja Perseguida21
Yvonne Christine DeAcutis Taylor
Notas introdutórias para o preparo dessa celebração solene
1. Se você considera usar as ideias dessa liturgia, sinta-se livre para adaptá-las à luz de sua
própria situação e objetivos. Essa liturgia enfoca a oração, formas de adoração e de meditação
silenciosa.
2. Esse culto vai durar aproximadamente 60–90 minutos, dependendo da celebração, ou não,
da Santa Ceia.
3. Esse culto requer uma equipe comprometida que vai orar para torná-lo em realidade. Exige
muito trabalho preparatório, mas prometemos que você e seus irmãos não vão esquecê-lo tão
cedo.
21
Pode parecer uma liturgia um pouco estranha para nós evangélicos brasileiros, mas pode
ser uma experiência enriquecedora, e que nos leva a interceder com mais empatia pela
igreja perseguida (nota da tradutora).
4. Decidi incorporar o mais possível dos nossos sentidos no culto, e encorajamos você a fazer o
mesmo, envolvendo a pessoa completa no culto completo. Há coisas para ouvir (música,
Escrituras), para ver (bandeiras das nações, a organização, velas, visuais), para cheirar (velas,
ou possivelmente incenso), para tocar (o boletim, as bandeiras, as velas que são carregadas)
para saborear (se vocês concluem com a Santa Ceia).
5. Algumas igrejas podem incluir a Santa Ceia, mas isso vai tornar a liturgia mais demorada.
Não foi incorporado na presente liturgia.
6. Escolha a música apropriada. Tambores bem tocados podem servir bem a liturgia.
7. Providenciamos a ordem de culto para os que vão dirigir o programa, e no fim você vai
encontrar parágrafos para introduzir no boletim que será entregue a todos.
Orientações para os coordenadores:
1. Antes das pessoas chegarem, preparem o ambiente com velas acesas em diferentes
tamanhos e cores, velas pequenas para crianças e adolescentes, maiores para adultos
(representando a diversidade da igreja perseguida). Vermelho pode se referir aos perseguidos
e branco aos mártires de Apocalipse 6:11. Use bandeiras das nações onde Cristãos são
perseguidos hoje. A luz central está apagada.
2. Quando as pessoas entram, recebem o boletim, entram no lugar de culto e se sentam em
silêncio.
3. Imagens da igreja perseguida em redor do mundo aparecem e desaparecem na tela.
Quando a liturgia começa
1. A luz vai se apagando e uma imagem da cruz aparece na tela.
2. Aí a pessoa responsável pelo som começa a tocar a música solene.
• Depois do fim da música fiquem em silêncio por 10 segundos
3. Um cantor (um homem com a voz forte, com ou sem o uso de microfone), fala do fundo do
auditório e clama: “A terra é do Senhor… (pausa)…
Que toda a terra silencie na sua presença.”
4. Depois de 15–20 segundos de silêncio, o cantor fala, “A Palavra de Deus vem até nós.
Prestemos atenção!”
5. Comece com a leitura de Escrituras selecionadas, feitas por pessoas que lêem bem e que
praticaram a leitura dos textos. Escolhi os textos seguintes, mas você pode usar outros que
tem conteúdo e poder semelhante.
Nota: as luzes continuam baixas, e as imagens na tela voltam a aparecer.
Leitores, cantor e a leitura congregacional declamam escrituras sobre sofrimento e
perseguição.
1. Leitor 1: “Desde os dias de João Batista até agora, o reino dos céus sofre violência e os
violentos se apoderam dele.” (Mt 11.12 – Bíblia de Jerusalém).
2. Leitor 2: “Então Jesus disse a seus discípulos, ‘Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se
negue, tome a sua cruz e siga-me.” (Mt 16:24–25).
3. Congregação: “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a
mim. Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do
mundo, pelo contrário, dele vos escolhi, por isso, o mundo vos odeia.” (Jo 15:18–19).
4. Leitor 1: “Então sereis atribulados, e vos matarão. Sereis odiados de todas as nações, por
causa do meu nome. Nesse tempo muitos hão de se escandalizar, trair e odiar uns aos outros;
levantar-se-ão falsos profetas e enganarão a muitos. E por se multiplicar a iniquidade, o amor
se esfriará de quase todos. Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo.” (Mt
24:9–13).
5. Cantor: Dos fundos do auditório; pausa por 15–20 segundos depois da leitura do texto de
Mateus 24, depois clama em alta voz: “Aqui está a perseverança e a fidelidade dos santos.” (Ap
13:10b).
6. Leitor 2: “Porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e
potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do
mal, nas regiões celestes” (Ef 6:12).
7. Congregação: “Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado
a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos estivesse acontecendo; pelo contrário,
alegrai-vos na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo” (1Pe 4:12–14).
8. Cantor: Dos fundos do auditório; pausa por 15–20 segundos depois da leitura do texto de 1
Pedro 4, e depois clama em alta voz: “Aqui está a perseverança e a fidelidade dos santos”.
9. Leitor1: “Lembrai-vos dos dias anteriores, em que, depois de iluminados, sustentastes
grandes lutas e sofrimentos; ora, expostos como em espetáculo, tanto de opróbrio quanto de
tribulações, ora tornando-vos co-participantes com aqueles que desse modo foram tratados.
Porque não somente vos compadeceste dos encarcerados, como também aceitastes com
alegria o espólio de vossos bens, tendo ciência de possuirdes vós mesmos patrimônio superior
e durável.” (Hb 10:32–34).
10. Leitor 2: “Quando ele abriu o quinto selo, vi, debaixo do altar, as almas daqueles que
tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que
sustentavam. Clamaram em grande voz, dizendo: Até quando, ó Soberano Senhor, santo e
verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra? Então, a
cada um deles foi dada uma vestidura branca, e lhes disseram que repousassem ainda por
pouco tempo, até que também se completasse o número dos seus conservos e seus irmãos
que iam ser mortos como igualmente eles foram.” (Ap 6:9–11).
11. Cantor: Dos fundos do auditório pausa por 15–20 segundos depois da leitura de Apocalipse
6, e depois clama em alta voz: “Aqui está a perseverança e a fidelidade dos santos”.
12. Congregação: “Então, ouvi grande voz do céu, proclamando: Agora, veio a salvação, o
poder; o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo, pois foi expulso o acusador de
nossos irmãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante do nosso Deus. Eles, pois, o
venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram
e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida. Por isso, festejai, ó céus, e vós, os
que neles habitais.” (Ap 12:10–12a).
13. Leitor1: “Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: ‘Eis o tabernáculo de Deus com
os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles.
E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem
pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram’” (Ap 21:3–4).
14. Cantor: Dos fundos do auditório, pausa por 15–20 segundos depois da leitura de
Apocalipse 21, depois clama em alta voz: “Isso requer a perseverança e a fidelidade dos
santos”.
Transição: Um período de 15–20 segundos de silêncio segue a conclusão das leituras bíblicas.
1. Agora segue um período de louvor apropriado, com seleções de hinos e cânticos históricos e
atuais, que enfocam a igreja sofredora, por uns 15–20 minutos. Deus se aproxima de nós
quando o louvamos. Muda-se a iluminação, mas continua a luz baixa.
2. O foco agora se muda para a narrativa, oração e intercessão. As luzes novamente ficam mais
baixas.
• Peça para que alguém que tenha experimentado perseguição pela sua fé fale, de preferência
de outro contexto cultural ou geográfico (máximo de 6–8 minutos).
• Peça que a pessoa escreva o que vai dizer. Assim se controla o tempo e a história, e ajuda os
líderes a lidar com a pessoa para que fale de maneira apropriada.
3. Começam as orações dos participantes. Isso pode exigir alguma explicação do líder. As luzes
continuam baixas e não haverá imagens no telão.
Gaste pelo menos 20 minutos em oração. Imprima os pedidos de oração.
• Você pode criar cantos para oração por países ou situação específicos, onde cristãos
experimentam perseguição severa, colocando bandeiras e outros objetos.
• Você pode pedir que as pessoas circulem para outra bandeira ou lugar de intercessão no
salão.
• Você pode pedir que pessoas específicas orem por vários pedidos sobre situações atuais de
perseguição da igreja no mundo.
Nota: Se quiserem podem começar a Santa Ceia nessa altura. Isso depende do tempo que foi
separado para o culto e o lugar que ocuparia na liturgia de sua igreja. Lembre-se que o foco
principal dessa liturgia é a oração e a meditação silenciosa.
Concluindo o culto:
1. O líder convida as pessoas a voltar para seus assentos e juntos fazem as seguintes orações:
“Deus Todo Poderoso, que nos criaste em tua imagem: Dê-nos graça para confrontar o mal
sem temor e a não nos conformar com a opressão e que possamos reverentemente usar nossa
liberdade, ajude-nos a usá-la para manter a justiça em nossas comunidades e entre as nações,
para a glória do teu santo Nome; por meio de Jesus Cristo nosso Senhor, que vive e reina
contigo e o Espírito Santo, um só Deus, agora e para sempre, Amém.”
• Todos juntos façam a oração Celta, abençoando aqueles por quem oramos:
> Que Deus o Pai lhes envolva com seus anjos de luz;
> Que o Filho lhes envolva com o sangue que derramou;
> Que o Espírito lhes envolva com seu fogo de poder.
> Para salvar, para guardar, para curar, para proteger.
> Cada dia, cada noite, cada luz, cada escuridão, até o fim de suas viagens.
• Amém.
2. O líder termina o culto com comentários finais, pedindo que as pessoas fiquem para
continuar a orar e meditar ou que saiam em silêncio. Seria bom ter material informativo sobre
a igreja perseguida sobre algumas mesas, no fundo do salão.
• Aí o líder pede por silencio completo. Espere por 30 segundos. As luzes estão bem baixas; há
uma imagem bem forte no telão.
3. O cantor clama bem alto, dos fundos: “Louvado seja Deus: Pai, Filho e Espírito Santo – e
louvado seja o seu Reino, hoje e para sempre, e por todas as eras. Amém!”
4. Pausa, e toca-se uma música selecionada, com volume baixo.
5. As pessoas saem em silêncio ou ficam para orar em silêncio enquanto o CD toca em som
baixo.
6. Imagem final de cruz Celta no telão, as velas estão acesas, as luzes estão baixas.
Notas para serem entregues aos participantes:
Um tempo para leitura, silêncio e oração pela igreja perseguida
Bem vindo! Obrigado por vir e juntar-se a crentes em muitas nações para orar pelos nossos
irmãos e irmãs em Cristo que estão sofrendo e sendo perseguidos em outras partes do mundo.
É bom buscar informação, fazer uma lista das necessidades e passar para as orações como
fazemos frequentemente, vamos fazer esse período de oração de forma um pouco diferente.
O tom dessa noite vai ser mais enfocado num ouvir silenciosamente a Deus, e em adorá-lo e
depois responder à maneira como o Espírito nos dirige quando entramos no período de
intercessão por aqueles que sofrem pelo seu Nome. Muitas vezes entramos correndo na
presença de Deus a partir de nossas vidas confusas e fragmentadas e mergulhamos na oração
onde nós falamos muito e ouvimos pouco.
Para essa finalidade usaremos vários meios para nos ajudar a aquietar nossos corações e
entrar num lugar de escuta com atenção, humildemente pedindo por uma identificação mais
profunda com aqueles que sofrem e por saber como podemos orar melhor por eles. As
imagens no telão vão lhes lembrar do sofrimento da igreja e das palavras de Cristo em Lucas
9.23, 24 e 14.27, que nós, também, devemos compartilhar sua cruz. As velas, grandes e
pequenas, vermelhas e brancas, simbolizam adultos e crianças, mártires e aqueles que sofrem
ao redor do mundo. Elas também nos lembram que “as orações dos santos sobem como
incenso diante do trono de Deus” (Ap 5.8).
A música sugerida convida a um lugar de silêncio e paz, e também nos lembra da glória que
nos espera, e da honra que será dada àqueles que sofrem por amor a Jesus. Ouvimos hinos de
louvor e também hinos que clamam a Deus por sua misericórdia pelos cristãos em qualquer
lugar.
Peça a Deus que prepare seu coração para ouvir a leitura da Palavra, para o período de louvor,
e finalmente para as orações. Agradeça-o porquê Cristo está sentado à sua mão direita no
trono de Deus e sempre intercede pelos seus (Ro 8.34). E agradeça-o pelo seu Espírito Santo
que mora em cada um de nós e que, em e através de nós “ora pelos santos de acordo com a
vontade de Deus” (Ro 8.26, 27).
Depois do louvor e da oração, vamos concluir o culto como começamos, em silêncio. Alguns
podem desejar ficar mais um pouco para orar silenciosamente e continuar numa postura de
adoração. Quando sair, por favor faça-o em silêncio e espere para entrar em conversa com
outros até estar fora do lugar de oração. Obrigado por estar conosco essa noite.
Quando você levar em seu coração os perseguidos e os que sofrem, que a bênção de Deus
esteja sobre você “cada dia, cada noite, cada passo do caminho aonde for.”
Inclua o conteúdo das Escrituras a ser lidas e a liturgia.
Notas finais: Sou grata a Deus pela liderança da Igreja Presbiteriana de Cedar Springs,
Knoxville, TN, USA, que permitiu que eu introduzisse e usasse essa liturgia para o Dia
Internacional de Oração pela Igreja Perseguida de 2003.
Busque maiores recursos em: www.IDOP.org.
Yvonne DeAcutis Taylor tem ministrado junto com seu marido William em missão
transcultural desde 1967. Ela é formada em artes liberais e música. Ela é uma musicista
clássica e uma estudante de espiritualidade cristã em várias correntes históricas do
Cristianismo. Seu chamado por Deus para o ministério inclui formação espiritual e
mentoria/direção espiritual, assim como dedicação à intercessão. Áreas adicionais de estudo e
de ministério específico são história da igreja e Cristianismo Céltico.
Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo:
"Eis o tabernáculo de Deus com os homens.
Deus habitará com eles. Eles serão povos
de Deus, e Deus mesmo estará com eles.
e lhes enxugará dos olhos toda lágrima,
e a morte já não existirá, já não haverá
luto, nem pranto, nem dor,
porque as primeiras coisas passaram."
Apocalipse 21:3–4

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