Eça e o politeísmo. Maria de Santa-Cruz

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Eça e o politeísmo. Maria de Santa-Cruz
Maria de Santa-Cruz
EÇA E O POLITEÍSMO
Maria de Santa-Cruz*
RESUMO
R
eunimos aqui dois embriões de ensaio comparatista ou comentário
de dois contos e um romance inacabado: 1. Sobre “A perfeição”, os
signos distintivos e discretos que diferenciam “tradução” e modelo homérico, afastando-se do monologismo épico e parodiando-o: o riso de
Mercúrio, portador da nova mensagem de liberdade (“Nova expressão
da Arte”?), e a perfeição em ato da mimesis do texto primeiro; 2. Partindo de “Civilização” e relacionando o conto com A cidade e as serras, o
balanço de fim-de-século e a contabilização do excesso de objetos mecânicos ou inúteis e profusão de bens que provocam a apatia, em oposição à idílica busca do paraíso perdido, onde se dá a ressurreição do homem viril e comunitário. Depois dum 1º momento, o número espreita
de novo, ameaçando aumentar. Eça e sua insuspeitada tendência cabalística? (Repare-se, por exemplo, na incidência oculta do número 6).
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P
arece-me ser no conto que Eça de Queiroz se liberta do rótulo de “realista”,
mais fácil de impor a alguns dos seus romances do que o s final à sua assinatura, movimento repetido, selo de autenticidade, curva desenhada antes do
gesto de poisar o monóculo. Para um escritor, nada mais importante do que as letras,
em especial as do nome que usa.
O jogo das máscaras da escrita é complexo, e o que aqui expomos sobre “A
perfeição”, um dos contos perfeccionistas de Eça, constitui apenas um apontamento.
Por trás da escrita, aparece-nos a primeira mascarilha, a de um narrador segundo
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Universidade de Lisboa.
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que, por essa razão, será um camafeu, com uma face na sombra – a do escritor dito
realista – e uma outra face mais ou menos iluminada – a do épico –, acontecendo, raramente, o inverso. As segundas máscaras do EU seriam constituídas pelo discurso
das personagens, pela relação eu/tu que existe numa personagem-efeito-de-diálogo
entre o sujeito e o/s outro/s. Seriam, digamos, as máscaras mais simbólicas: a de
Ulisses – necessidade ou substituto de uma vontade de poder real (existencial); a de
Calipso – mais associada ao “estilo”: teatralização e máscara de um déficit existencial; e a de Mercúrio – o mensageiro, portador da palavra dos deuses que anuncia a
libertação, o observador que ri dos outros e de si próprio: a descrição intersemiótica
das representações pictóricas ou escultóricas de Mercúrio-anjo constitui um dos momentos de maior e mais dúplice significância do ironista neste conto. Englobante, a
escrita protege-se, fixa-se através de um código próprio (derivado de uma ótima e livre, enfim, poética tradução ou reconversão das múltiplas traduções, re-criação e nova montagem do episódio da Odisséia), circular, intencionalmente repetitivo e ritmado, namorando o hermetismo. Tem, n’ “A perfeição”, dois compassos nitidamente diferentes:
• Um, predominantemente descritivo, o espaço do DIZER, mais substantivado, adjetivado e metaforizado, onde domina o maravilhoso: ritmo lento,
fazendo ouvir mais o estilo que a escrita queiroziana, onde o palimpsesto
homérico aparece à superfície em fragmentos como o das falas;
• Outro, predominantemente narrativo, o espaço do FAZER (dizendo), actancial, onde predominam as formas verbais, mais do domínio do verossímil: ritmo acelerado, coincidindo ainda e embora com as ações de Ulisses na Ogígia primeira;
• O terceiro espaço, mais raro mas de maior ambigüidade, situar-se-ia nos
momentos de contaminação dos dois primeiros.
Discurso que parte de um texto modelar ou primeiro, o de Homero, com
ressaibos da Ilha camoniana, parece-nos querer veicular, pela repetição diferenciada,
a própria circularidade da palavra. Daí a sua aparente acronicidade: a escrita parece
fazer inserir “A perfeição” num tempo múltiplo ou numa ucronia:
a) Reiteração aparente: a unidade repetida é, aparentemente, a mesma da
Odisséia (episódio de Ulisses na ilha de Calipso), mas diferencia-se sobretudo pelo discurso sutilmente irônico, pelos efeitos de conotação do
texto queiroziano (trata-se de um contracanto ou contraponto, isto é, de
uma paródia ao monologismo épico, por mais deuses que inclua nos
seus concílios olímpicos). A circularidade da palavra provoca um devir
constante, nova e renovada produção de sentidos. Um deles será, talvez,
o da verdadeira imortalidade e eternidade: a imortalidade e eternidade
da palavra (ou da história da palavra) que, embora não a atinja, trabalha
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com ansiedade para alcançar a perfeição ou atualização constante. O próprio Ulisses pretende, no regresso a Ítaca, “conceber sábias leis para os
seus povos”, tornando-se, pela palavra, um tesmógrafo.
b) Reiteração (à letra): a circularidade do discurso queiroziano pretende,
aqui, ser o eco da monotonia da ilha – escrita como símbolo-em-ação
dos gestos e palavras repetidos em Ogígia, gestos e palavras de uma
imortalidade e eternidade longe da vida, afastados da produção de sentidos outros: a minúscula perfeição do estático que se tornaria extático
na satisfeita contemplação de si próprio ou da sua imagem: como uma
“tradição” literária que não se refizesse circunstancialmente. Neste aspecto, Eça vai um pouco mais longe do que o texto modelar em pormenores que, muito mais tarde, foram os adotados pelos grandes cineastas que fizeram a tradução intersemiótica do texto de Homero para a 7ª
arte: poucos deram atenção a Ogígia, mas os que o fizeram (para dar só
um exemplo desses pormenores) não seguiram o “guião” homérico na
primeira parte, a decisão dos deuses, mas, como faz Eça, focalizando
Ulisses num grande plano inicial e ao ar livre, sentado na rocha, olhando o mar (o que, na Rapsódia V, só acontece depois da chegada de Hermes): Coppola na sua Odisséia. O ritmo lento e repetido ou repetível
de uma espécie de litania – o discurso que se refere à vida da ilha e na
ilha –, parece pretender afastar-se de um núcleo, em curvas mais ou
menos próximas do centro ou dos centros. O núcleo seria a posição de
um EU que nunca se revela. O ritmo acelerado, também repetitivo no
início do conto, quase alcança a vertigem no final eciano, quando a palavra ameaça aproximar-se desse núcleo no momento da despedida.
Intermitentemente, essa aproximação e afastamento de um dizer crítico e subjetivo faz oscilar os sentidos, cria a ambigüidade na ilusão da
distância, transforma o espectador-leitor em imaginativo produtor de
máscaras, de texto, de sentidos: “... como a luz quando atravessa o ar”.
Verifica-se uma espécie de “desaparecimento elocutório”, como dizem
os lingüistas, usado pelos épicos, muitos ficcionistas e quase todos os
tradutores. Ao confrontar os classemas levantados com as situações de
discurso (a de Homero, a deste narrador, a de Ulisses e a dos leitores ou
da minha leitura), a semiologia, ultrapassando, sem no entanto as pôr
de parte, a teoria e a cega submissão às categorias lingüísticas, poderia
considerar o FAZER do ato de escrita como medium, consciente ou
não, de um EU envolvido pelas múltiplas máscaras que esse mesmo
ato de escrita vai firmando, favorecendo o relativo desaparecimento do
EU, uma das “... substâncias difusas que se penetram”.
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Partindo do princípio (embora pondo-o em causa) de que o narrador – sujeito específico da escrita, defensor da “Nova expressão da Arte” nas Conferências do
Casino, séc. XIX, etc. – tem origem num primeiro diálogo entre sujeito e leitor/es (a
exterioridade, o Outro que, simultaneamente, é representado e representante, “a outra
substância difusa”), seria esse diálogo que transformaria o Autor, individualidade
quase anulada, “sem o tricórnio na mão, tão impessoal como o leitor”. Estádio de
dupla negação, já que, praticamente, reassume o discurso do outro e de outrem. No
texto, um diálogo entre dois discursos, pelo menos. A construção da personagem
Ulisses ou o renovado Ulisses irá ainda reclivar o sujeito, que não será apenas o sujeito da enunciação, mas também da enunciação deste, por vezes quase enraivecido,
enunciado ulissiponense. O narrador d’ “A perfeição” perspectiva o narrador (chamemos-lhe Eça) sobre o texto do narrador primeiro (Homero, ou o aedo). O sujeito
da narração segunda reduz-se, duplamente, ao anonimato, a um EU impronunciado e impronunciável – não encontrável gramaticalmente –, como se fora uma terceira pessoa, mais próxima (no conto) do também risível Mercúrio. Por vezes – e o
exemplo mais característico, mas não o mais significante, seria o das passagens em
discurso indireto livre –, o autor permuta a sua posição com a do leitor-outro: parece
identificar-se, momentaneamente, com Ulisses, com Mercúrio... Essa, uma das causas do dialogismo da personagem Ulisses, por exemplo: os sujeitos da enunciação e
do enunciado estão por trás dele. A imagem do ato de enunciação é encoberta pelas
imagens da enunciação primeira (a epopéia); do ato da enunciação segunda (longe
do tempo dos heróis e da épica, Portugal do séc. XIX); e do ato da enunciação dos
enunciados: visão com, que, por vezes, se torna superiormente irônica e mesmo despistante.
Num conto em que a intriga se resume ao conflito interior da personagem,
os discursos colidem, interferem, respondem-se, eles, sim, entrando em conflito: o
conflito das linguagens seria o maior, numa estória em que o enredo é praticamente
inexistente ou, pelo menos, decalcado. Re-apresenta-se uma cultura, uma base sócio-política da Odisséia ou do homem-palavra do e perspectivado no séc. XIX? Os
discursos históricos da Grécia Antiga e do séc. XIX (sem contarmos com a épica renascentista e com o discurso de interferência do leitor do séc. XXI, já esquecido de
exegeses e que talvez preferisse Ítaca à mesmice da aldeia global) subvertem-se. Podem ser lidos (escritos) de modos diferentes. Mas ambos coexistem n’ “A perfeição”,
intercalados, Homero-realista-e-descritivo, Eça-decalcando-o-épico. Instala-se, entre os dois discursos que se respondem, a ambigüidade, exacerbada por esta nossa
terceira leitura, a de leitores habituados a Homero-épico e Eça-realista, agora em
presença da contaminação.
Temos, assim, pelo menos quatro situações de discurso diferentes: a da Grécia Antiga, a do século XIX, a das personagens mitológicas e lendárias e a nossa. À
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última (a mais provisória) interessa a guerra entre as duas primeiras. Existe uma intencionalidade de oposição: a escrita queiroziana contra a épica, a que parece aderir
e seguir com demasiada perfeição? A identidade da escrita queiroziana define-se na
de Homero, que, se Eça quisesse, poderia excluir do seu texto (entregando-se a outro), mas não da memória milenar da cultura ocidental: na diferença se lê a negação
parcial do texto modelar, homérico.
À poeticidade da consagrada perfeição do aedo junta-se, entrecortada, a
perturbadora linguagem que a renova e arrasta consigo as discussões das Conferências do Casino da Rua dos Prazeres, por exemplo, em tom mais ou menos irônico,
donde renasce um herói mais humano e, realmente, realista, engordado pela ociosidade e grandeza inerte. E estes termos, o referente e o irreferenciável, em presença,
pareceriam excluir-se se não trocassem de lugar ou de máscara de vez em quando.
Não havendo inversão do episódio referenciado da Odisséia, a negação não
é apenas simétrica e parcial, já que a significação do narrado (só na linha da narrativa
isso acontece, pelo menos para quem nunca leu Homero no “original”, ou seja, toda
a gente) se mantém, sendo, no entanto, o texto queiroziano lido por nós (e, apesar de
tudo, mais de um século depois), detentor de uma modernidade possível pela afirmação e negação simultâneas de outros textos a que se alude de leve (ou que excitam
a lembrança do leitor).
O distanciamento faz com que tenhamos uma ilusão de objetividade. Sutilmente (“sutil” é palavra muito repetida ao longo do conto, substituindo o “astuto”
que adjetiva Ulisses noutras traduções...), a elocução inscreve o discurso num processo de TROCA (também simbolizada neste conto, em que nada foi descurado),
processo de troca culturalmente marcado, mas também inverso ao de Homero e ao
que seria de esperar. O “estilo” queiroziano é sutilmente substituído pela mimesis de
outra escrita, em vez da mimesis do referenciável. O sujeito, lenta e progressivamente, vai-se assumindo como tal, mas foge-nos ao terminar o conto bruscamente. A recusa da apropriação completa do discurso de outrem transforma-se num segundo
valor: ironia, plurivalência. Os modelos já fixados (épico, bíblico, realista) tornam-se
pretexto para circunscrever o espaço de uma demonstração em que o conto queiroziano se mascara de epopéia (ou generalização da), desmascara a epopéia e se faz
pastiche dela e de si próprio (lugar maior da dupla ironia, repetição intencional e
contínua, pretendendo-se monótona).
Eça e o politeísmo. Esta necessidade do trabalho para alcançar a imortalidade, este desejo de ultrapassar a serena auto-satisfação e auto-contemplação para –
depois de repensar durante anos – retomar a aventura feita de experiência e dirigida
para novas experiências já estaria neste episódio da Odisséia. Eça limita-se a, pela
sua escrita ou reescrita, pôr em prática textual este símbolo, simultaneamente da perfeição e da ansiada im-perfeição, do cosmos nuclear ao perturbado, ansioso mundo
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em mutação do escritor cujo convívio com heróis e grandes feitos se reduz a textos
anteriores, como acontece também com a “tradução” de Chaucer, n’ “O tesouro” de
Eça (reparemos na renovada e indiciadora importância semântica dos títulos), conto
publicado, pela primeira vez, no Brasil.
Perante o tentador convite de uma deusa para partilhar a sua ilha perfeita
(mole, monótona, eterna, como o Jardim das Hespérides), onde não há modificações
sensíveis, onde o diálogo se torna impossível e onde a própria auto-análise se repete
todos os dias de forma idêntica, Ulisses acaba por preferir o trabalho, construir, suar,
recalejar as mãos, perder o cetro, defrontar os deuses da vida, realcançar a ilha-imperfeita (dura e mortal). Mas uma é apenas o reverso da outra, ambas monolíticas,
porque, culturalmente, aparecem como naturais, primeiras.
A escrita-contraponto d’ “A perfeição”, troca Hermes, o dos negócios, por
Mercúrio, o intermediário, portador da nova mensagem; em Homero, Atena desencadeia o episódio no diálogo com Zeus, enquanto Eça começa por focalizar um Ulisses-Neptuno engordado “pela ociosiodade imortal do leito” e pelas iguarias da deusa
(que se entretém fiando, com roca e fuso, imitando a domesticidade de Penélope),
deusa a quem retira o poder de dirigir o herói (“que seguia as suas pegadas”, Homero, p. 70); antecipa, como lembrança do passado, a estada no país dos Feácios, que só
se inicia na Rapsódia seguinte, a VI da Odisséia; o conto termina bastante antes do
final da Rapsódia V – “A jangada de Ulisses” e não “A perfeição” –, quando Ulisses se
faz ao mar na jangada sofrida, impelido pela brisa propícia enviada por Calipso, depois do adeus, a que Eça acrescenta um beijo de despedida um pouco camiliano.
Mais naturalistas são a “mão cabeluda”, “a dura barba” que limpa “com as costas da
mão” e os “calos” do herói. “Partiu para os trabalhos /.../ – para a delícia das coisas
imperfeitas” (p. 244), em aberto; as seis páginas que se lhe seguem, na Odisséia, luta
com as vagas, naufrágio e salvamento por nova intercessão de Atena, soam como o
castigo preconizado por Calipso e anúncio de repetição da estrutura narrativa anterior. Outra diferença considerável é a do tempo que cada um dos Ulisses passa na
ilha. Limito-me a dar alguns exemplos dos pormenores, ou signos discretos e diferenciais do texto segundo, paródia ou contracanto. O “estilo” queiroziano borda as
descrições com ornatos e “palavras aladas” que extasiam o leitor mais ingênuo, ou fazem sorrir outro grupo de leitores, conhecedores de Eça, das românticas escolas que
se arrastam pelo seu tempo e do classicismo do texto modelo.
Rir ou sorrir. Com o texto de Eça, onde Mercúrio, em vez das simples sandálias de ouro emprestadas por Homero, calça “aquelas sandálias que têm duas asas
brancas”, “fendera o éter, roçara a lisura do mar /.../”, etc. e ao avistar Calipso “pensou: ‘Linda ilha e linda ninfa!’”. O Mercúrio “risonho” (p. 230) de Eça, “na sua nudez divina”, pendura o caduceu num plátano e, depois de transmitir a mensagem,
não antes de se alimentar, retoma o caduceu, bebe mais uma taça, “E, rindo, /.../ se-
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renamente se elevou, riscando no éter um sulco de elegante fulgor que as ninfas /.../
seguiam com os frescos lábios entreabertos e o seio levantado, no desejo daquele
imortal formoso” (p. 232-233). Também Ulisses ri pela primeira vez, “com soberbo
riso estridente”, quando recebe e sopesa o vaso de bom ouro ofertado pela ninfa,
pouco antes do embarque. Menos magnânima ou apenas desprezando o materialismo do 1º século de Wall Street, a Calipso homérica oferece ao herói somente vinho,
água e deliciosas iguarias. De resto, para que serviria, numa jangada destinada às vagas, o ouro e outras “alfaias lustrosas” que o herói d’ “A perfeição” eciana cobiça
“com olhos devoradores”? Contabilizando, “o herói astuto” avalia e confere marfins,
bordados, pedras preciosas, o vaso de ouro... A soberba das coisas imperfeitas.
A recriação transgride as regras dos códigos herdados (incluindo o do Gênesis, que ocorre ao nosso espírito, apesar de nada ter em comum com a ilha afortunada e pagã: um Adão que, por graça divina coincidente com a sua vontade, e não
por castigo, recusa com gozo as mordomias do Paraíso). Eça não despreza nenhum
desses códigos, mas sopesa-os ironicamente, tecendo-os, como dúplice Penélope, na
sua dupla ou tripla ruptura. O sujeito dispõe do discurso dos outros, descrê do absoluto, acreditando apenas na relação entre a parte e o todo de que ele, agora, se torna
parte. O cinismo das máscaras vai desconstruindo um deus (Ogígia, Calipso, Ítaca
ou Penélope, o herdeiro Telêmaco, aqui ignorado) à medida que fortalece as leis do
polilogismo: entre os textos, as idades, as modas, as crenças, os costumes, os leitores
dos diferentes tempos e os então chamados estilos, para ele, o mensageiro que ri, tão
facilmente mimetizáveis e, para os que se deleitam sem riso e sem Homero, tão
rapidamente tomados a sério, modelos, que são, do gênio da escrita. (Imagem que
poderá ser julgada absurda, mas continua a perseguir-me: com a elegância quase
clássica de nenhum Surrealismo, Eça coloca os seus pacatos bigodes no busto de
Homero, sobre a Odisséia ou sobre a épica tout court. Com respeito e sem alarde.
Com “palavras aladas”, como Mercúrio e a nova mensagem de liberdade. Depois,
assina, porque conquistou o direito de se antecipar a Homero e Chaucer, assim como
aperfeiçoara a prosa de Rider Haggard. Termina as curvas do Zê final, Zeta ou Zaíne
– a chave divina que tudo abre, do seio da mulher estéril à tumba dos mortos e à porta dos infernos –, letra de libertação. O monóculo rebrilha, sobre os redondos do zê.
Por enquanto, apenas o Z foi afastado da imortalidade. E de algumas perfeições de
insulae fortunatae do arquipélago queiroziano)
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O NUMERÁVEL MUNDO NOVO
“... era uma imensa Máquina de Calcular,
com fileiras de buracos donde espreitavam,
esperando, números rígidos e de ferro.”
O múltiplo e o uno
Não sei se pode passar despercebido o modo como Eça insiste no número
no conto “Civilização”, não só porque o usa profusamente nas páginas dedicadas à
vida no Jasmineiro, mas também porque o vai dispensando, pouco a pouco, nas que
descrevem a vida paradisíaca em Torges; não só porque conserva um número quase
fixo nas enumerações das várias espécies de objetos/instrumentos, mas também porque disserta sobre “os modos diferentes de ser único” (p. 84) que se manifestam na
contrastante precariedade campestre. Será com ênfase na unidade que o narrador
inicia o conto? “Eu possuo preciosamente um amigo...”. “Um”, não é aqui um simples artigo indefinido; neste contexto, é um adjetivo numeral, corroborado pelo advérbio “preciosamente”, pela natureza semântica de “possuir” e, no decorrer do conto, pelo fato de o narrador não dar notícia de ter outro amigo. Esta frase inicial marca
a superioridade do narrador em relação a Jacinto, que, aqui, é definido como objeto
da posse de Zé Fernandes (Z.F.). Jacinto (J.), “complexamente civilizado”, munirase da “mais vasta soma de civilização material” (p. 68). E seguem-se páginas de somas, indicadores da profusão de bens de J. e da observadora precisão de Z.F.: 25.000
volumes da biblioteca, os 1.817 sistemas filosóficos, 8 metros de economia política,
35 dicionários, 318 tratados de astronomia, etc.; 37 malas perdidas, 3 minutos de
transbordo... ... A caminho de Torges, porém, reina a “unidade” sem medida precisa:
“Muito tempo um melro nos seguiu...”. Em Torges, a redução dos números é por demais evidente: 2 arcas, 2 salas, 2 enxergas, 2 cobertores, 2 gatos. Mais tarde, “o conforto inesperado de três cadeiras de verga” e os 25.000 volumes reduzidos a 4 livros.
O narrador civilizado continua a contar, a contabilizar, aponta e enumera incansavelmente. Narrador muito semelhante ao que, n’A cidade e as serras (C.S.), nos
mostra, numericamente, as delícias do “turismo civilizado” de J., gastando 6.000
francos de agosto a outubro, refazendo a mala 37 vezes, passando, 11 vezes, o dia
num vagão, subindo 14 vezes a escadaria de hotéis, brigando 8 vezes com cocheiros,
esperando em mais de 30 mesas que lhe servissem um prato frio. Mas viajara e visitara 29 catedrais e 14 museus com 140 salas de obras de arte. (Esta lista, e não o texto
de Eça, faz lembrar um dos últimos romances do inglês David Lodge). Entretanto, J.
fora perdendo 15 lenços, 3 ceroulas e 2 botas do pé direito (C.S., p. 101-102). Todo
esse balanço no espaço de uma página pejada de “quantidades”. Este exagero da cidade-civilização contrasta com a tranqüila ausência de quantidades numeráveis que
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caracteriza a primeira fase da vida em Torges/Tormes, de onde desaparece também o
ceticismo de J., como desaparecera a seca, as maçadas constantes, provocadas pelo
civilizacional Jasmineiro/202. Aos muitos pensadores citados no conto e no romance
nunca se junta o nome do judeu de origem portuguesa, Espinosa, aquele que, para
procurar o significado e o objetivo da vida, pensa ser necessário conhecer “a união
que a alma mantém com toda a natureza” e ser o cético aquele que se nega a si próprio, simultaneamente o senhor que decreta e o escravo que lhe obedece. O mesmo
que diz existir apenas uma forma de conhecimento certo, portador da verdade: a
Matemática. E lembra-nos outra das ambigüidades ecianas. O arrazoado de quantidades nada terá a ver com conhecimento exato ou idéia de matemática, pois a enumeração e existência de numerosos objetos não estão ligadas a uma reflexão das personagens (pelo menos antes de chegarem a Torges/Tormes) e serão talvez aparências
sensíveis e imaginosas. No campo, os utensílios são substituídos por outros, cujo número se reduz ou a ele se esquiva o discurso, embora esses objetos simples denunciem um esforço e uma técnica seculares (Tormes medieval, construído em 1410 – de
novo a precisão do narrador), a herança a retomar, marca de um romantismo esquecido que talvez possa ressurgir. No Jasmineiro ou no 202 inexistente nos Campos
Elíseos, J. perde-se em conflitos vagos, angústias injustificadas, afazeres superficiais
(por ex., o jantar cor-de-rosa) que inventa para enganar o tédio e acabam, sempre,
em frustrações. O civilizado deixa-se possuir pela civilização, julga possuir e por ela
é possuído, engolido e massificado. Em Torges/Tormes decide reconquistar a individualidade, a força que lhe vem da necessidade de dinamismo, de crer nas suas possibilidades e da consciência de que precisa dos outros: o cético transforma-se em liberal romântico, acabando por confessar-se, não menos romanticamente, “socialista”.
Falamos de J. como personagem, evidentemente. Personagem construída ideológica
e esteticamente, determinada, submetida à influência das “leis naturais”, que a ciência da época julgava ter codificado, e às leis da “Forma” psicologizante do rigoroso
discurso. Personagem-tipo que informa, exageradamente para os leitores da época,
sobre os costumes do seu tempo. A procura de um tipo leva à narração de um caso
pouco menos que patológico, com resíduos de romantismo. Se falamos das personagens como se fossem seres vivos, não é só porque Eça nos leva a isso, mas porque o
Realismo toma a sério as suas personagens e sente-se obrigado a dissecar os motivos
do seu comportamento. O J. peralta que reduziu as muitas escovas a uma escova de
dentes (“Tinhas umas nove. — Nove? Tinha trinta.”, C.S., p. 158), transfere a idolatria de máquinas e utensílios para o amor próprio mais autêntico. Descobre em si
uma utilidade e passa a dispensar os utilitarismos deterioráveis da técnica. Liberto de
paixões, e sem procurar acumular, encontra um afeto simples, vulgar (ele achara vulgar a prima de Z.F. quando, em Paris, lhe descobrira o retrato). Encontra a “felicidade”. E descobre, nos homens que o rodeiam, as relações de concórdia. Mais uma vez,
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a ironia do narrador continua a invetivar – tão sutilmente que tem sido, muitas vezes, posta em causa –, contra a algo espinosista filosofia de J. em Tormes. Do J. de
Torges, pouco nos é dito nos limites do conto. A elipse do seu fazer e a substituição
pelo dizer do narrador, sempre em nossa presença e longe de J., tornam o conto muito mais ambíguo que o romance. Pormenores deste conto e do romance, quando
reunidos, lembram as descrições enumerativas de economistas modernos. Com grandes diferenças, por certo, para além da estética, como seja a destes últimos não se porem em causa nem usarem de ironia. Ou estará a ironia nos números e na falsidade
real da estatística?
Eça anuncia o poder do número e da quantidade numa sociedade de consumo e estatística. A “prodigiosa” máquina de calcular ou máquina de contar, desempregada no gabinete de J., tem a agressividade fria e expectante dos hoje indispensáveis computadores, embora ainda não hipnotizasse os pobres sem preparação
que agora, em cada guichê, tentam o milagre da multiplicação ou procuram, sem
encontrar, as letras que se acumulam em gralhas. Z.F., no entanto, já revela a vocação para fazer “programas”, denuncia o seu autismo nas sucessivas repetições e, como
máquina humana, vai-se traindo por falta de memória. Erros de cálculo ou marcas
da ironia? Z.F., o narrador de números, também os nega, rebela-se contra esse poder
civilizacional e imperante. Não se revolta de forma súbita e radical, como o seu Príncipe, contra a Civilização-Cidade. Goza-as em ambos os sentidos do verbo (e pelo
verbo). Aproveita-se delas e pelo riso as despreza. Nunca se entrega, nem nunca as
rejeita totalmente. Talvez essa seja a maior diferença entre a sabedoria de Z.F. e a
erudição romântica e crédula de J. – distância entre o civilizado que narra e a civilização narrada. Nova contradição: “A sapiência” – diz o narrador num longo trecho
do conto, em discurso indireto livre atribuído a um J. recentemente convertido – “está em recuar até esse honesto mínimo de civilização, que consiste em ter um tecto de
colmo, uma leira de terra e o grão para nela semear” (p. 90). Apesar de se alegrar com
a ressurreição do amigo, Z.F. nunca deixa de aliar a concordância à ironia do tom.
A “ressurreição no magnífico estilo de Lázaro” faz-se acompanhar pelo acordar do macho J., estiolado no Jasmineiro/202: “virilizara-se soberbamente” no romance; e, no conto: “Ouço que vai casar com uma forte, sã e bela rapariga...”.
Previstas para breve no conto, ou consumadas no romance sentimental, aí
estão as núpcias essenciais ao quadro bíblico: “... subíamos – diz a voz sempre irônica do padrinho Zé – para o Castelo da Grã-Ventura!”. Poderá dizer-se que foram os
amigos de Eça e não o próprio quem encontrou semelhante final para o romance.
Além disso, a idade e o pressentimento da morte próxima poderiam ter influenciado
este fim imperfeito – que, aliás, não se adivinha no manuscrito até à parte revista pelo autor. Sempre podemos ler a tirada final como suprema ironia de Z.F. Seja como
for, o narrador do conto, ao contrário do do romance, não se “converte” no final. Pelo
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contrário, demonstra maior distanciamento. Mas ambos os escritos afirmam este casamento da personagem J. com a natureza e a moçoila saudável e procriadora, com
quem iniciará uma outra “civilização” que, de início, se anuncia como estádio medial entre o desprovimento e o excesso. No romance, Jacinto pretende erguer uma
pequena cidade no alto da serra, com casas para rendeiros, escola, biblioteca, telefones... Começam a reaparecer as quantidades em Tormes: 1 telefone, 2 telefones, 3 telefones... J. terá de esperar 30 anos para que o carvalho seja adulto e 9 meses pelo filho; gastaria 250 a 300 mil réis em cada queijo para o vender por 1 tostão e ter apenas
um prejuízo de 199.850 réis... ...O número, ameaçador, espreita de novo. O encontro
com o Uno fora momentâneo e apanágio dos privilegiados, apesar de parecer indispensável, como ritual de iniciação, para se restabelecer uma harmonia sempre precária: “... realizamos um momento, dentro da Consciência, a Unidade do Universo!”
(C.S., p. 147). Z.F. perdera em Tormes a ironia que conservara em Torges? Ainda
não aqui, como nos mostra a resposta de J. ao tom grandiloqüente, arremedante, do
amigo: “— Talvez... Estou a cair de sono”.
Simulando não assumir uma relação estreita com o representado – simulação tão grande que ao leitor passa despercebido o caráter obsessivamente numérico
de certas passagens –, os prolixos nomes numerais não são o sentido da Civilização,
apenas marcas do narrador-tecnocrata que o produz, tentando imitá-la no discurso
que a contém. Por outro lado, existem, (pouco) no conto e (mais) no romance, símbolos que, como não poderia deixar de ser, nos remetem para uma tradição judáico-cristã
participada também pelos jovens de meados do séc. XX, empenhados na luta contra o
excesso de poluição civilizacional – a busca das origens, a procura do paraíso perdido,
o despojamento do supérfluo. Deus, ou o núcleo ou a essência (como Autor) teria experimentado e criado o mundo sob três formas: na escrita, na fala e no número.
Dois estádios de civilização e a harmonia momentânea
Na cidade, o homem, em conflito com os objetos que o abafam e, tornando-o inútil, desocupado, lhe provocam o tédio, a seca, a suprema maçada. Não precisando de deixar o seu gabinete para saber tudo o que no resto do mundo se passa,
desde as notícias ao teatro, transforma-se noutra espécie de máquina. Tudo é mecânico. E o texto que à cidade se refere procura contabilizá-la logo, mecanicamente. Os
utensílios, pelo seu excesso, valem pelo número e variedade e essa extraordinária
quantidade esvazia-os de sentido. A máquina vai-se tornando incontrolável e controladora. Os objetos agem por si próprios (o fonógrafo repete, repete, repete... e os
dois amigos fogem, impotentes; os tubos expelem água quente e nada nem ninguém
os consegue deter, etc.). Excessivas e usadas por desfastio, as coisas que deveriam ser
úteis acabam por ter função ornamental, antes de se transformarem em montões de
lixo, no rito sacrificial a que o homem se entrega (festas, banquetes, demonstrações
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de riqueza civilizada, “tudo uma seca”). A supercivilização apresenta-se como uma
“ilusão de progresso”, essa “perversa ilusão”, que faria do século seguinte, o que deu no
XX, o prodigioso responsável pela emissão mais ou menos lenta de micro-partículas
nada saudáveis que continuarão a perdurar durante milhares de milhões de anos.
Nas serras, o número limitado de objetos liberta mais espaço para o homem, que respira, sonha, imagina e sente necessidade... de outros objetos; depois, a
descoberta da solidariedade e a vontade de se tornar útil, de criar artesanalmente. No
primeiro estádio, reina a mecânica; no último, o artesanato. Os exíguos utensílios, do
mobiliário às alfaias agrícolas, têm função imediata e imprescindível (2 arcas, 2 velas,
2 enxergas, 2 cobertores, 2 colheres de pau...). A antítese seria o momento do desprovimento total, da ausência de coisas indispensáveis num espaço natural (ao jeito de
Robinson Crusoé), já que a tese do início fora a da supercivilização livresca e mecânica que entedia. O narrador distanciado limita-se a empurrar com o pé os montões
de lixo acumulado (final do conto). Mas o espaço natural não pode voltar a existir. E
J., o mais complexamente civilizado, vai preenchê-lo de novo (aos 5 livros que levara, irão juntar-se os 3 que pede ao amigo, etc.). De progresso, quanto baste: a maior
e menos exata das ilusões. Na cidade, como vimos, o número prolifera. Como marca
do excesso: J. tem 40 contos de renda aos 28 anos, 25.000 livros, etc., etc. Como marca
de precisão ou sinal de sofisticação mecânica: 1.817 sistemas filosóficos, 35 dicionários; um jato de água a 100 graus; bebiam em 3 gotas de água 1 gota de Bordéus
(Chateaubriand de 1860); com uma das 14 escovas, J. alisava cabelo, bigode e sobrancelhas durante 14 minutos...
Como descrição enumerativa: o número é muitas vezes omitido enquanto
nome numeral e substituído pela descrição enumerativa das coisas. No conto, é o
número 6 o mais constante. São 6 “os aparelhos facilitadores do pensamento – a
máquina de escrever, os autocopistas, o telégrafo Morse, o fonógrafo, o telefone, o
teatrofone; o fonógrafo avariado repete 6 vezes a frase “rotunda circular: — Quem
não admirará os progressos deste século?”. À mesa só cabiam 6 amigos e havia 6 espécies de garfos (ostras, peixe, carnes, legumes, fruta, queijo); seis espécies de águas;
eram servidos por 6 homens, 5 criados e 1 pajem preto; as janelas, protegidas por 6
resguardos (o leitor poderá contá-los); e, também no lavatório, 6 aparelhos, 6 escovas, etc., etc.
“Que faltava a este homem excelente?”, pergunta Z.F. Responde, enumerando as vantagens de J.: saúde, inteligência, 40 contos de renda, as simpatias da cidade, uma vida livre e sem sombras, 5 dons inestimáveis. Que lhe faltaria? O 6º
dom? Bereshit, a primeira palavra da Bíblia, que se traduz normalmente por “No
princípio”, também pode significar: Ele/o Criador/fez o seis. O 6 é o número do cosmos e o primeiro número perfeito, número de quarks que compõem cada partícula
atômica; signo alquímico da obra acabada.
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A narração da vida em Torges ilude a quantidade, referindo-a apenas quando
se disserta sobre a cidade ou ao indicar o número exíguo do estritamente necessário
nos primeiros tempos da “ressurreição”. Também desaparece a precisão do tempo e a
descrição enumerativa deixa de ser rígida. Árvores, folhas, flores, grãos, estrelas constituem, teoricamente, verdadeiras quantidades; na prática, são inumeráveis, formando um todo coeso, nomeável e nomeado, mas nunca contabilizado, isto é, nunca excessivo no seu real excesso. No romance, os números atingem maiores proporções,
mas a repetição da mesma quantidade ou das quantidades em geral não se torna tão
notória, dada a dispersão pelo maior número de páginas. Mantêm-se: marcas de excesso: J. ganha 400.000 pesetas na loteria. Os armazéns de Paris, onde afluem produtos de 30 províncias, empregavam 3.000 caixeiros; refere-se a população de Paris, ao
tempo, 2.000.000 de seres, entre os quais, 10.000 pobres. J. recolhera, na sua agenda,
1.300 nomes, “todos do Nobiliário”; possuía, primeiro, 30.000 volumes e depressa
chega aos 70.000, com 2.000 sistemas filosóficos e 6.000 almas de poetas. Gasta com
Diana, a cortesã, 3.000 francos, sem contar com as flores (que não são contabilizadas) e possui outros 3.000 em sedas e tapetes, etc., etc. “Fumava incontáveis cigarrettes” e “rebuscava através da numerosa Civilização da Cidade /.../ uma ocupação”.
Muito “consultava o relógio”. Marcas de precisão: O elevador do 202 levava 7 segundos a subir os 2 andares. J. continua a demorar 14 minutos para pentear os pêlos com
as 6 escovas. Tomava ducha a 17 graus; tem, precisamente, 109 contos de renda, uma
enciclopédia em 75 volumes e cada teatrofone era provido de 14 fios...
Quanto às descrições enumerativas, o número de coisas é muito variável,
embora sejam 6 os meios de transporte enumerados, 6 os aparelhos, 6 as espécies de
garfos para cada um dos 6 convivas e 6 os apetitosos manjares descritos.
No entanto, parece ser o número 3 o mais repetido (se exceptuarmos o 202)
e sobretudo os seus múltiplos, que, na C.S., atingem as centenas, os milhares e até os
milhões. Desde os 3 meses e 3 dias – entre a morte de Cintinho e o nascimento do
nosso J. – aos 3 carneiros do caseiro e ao dia 3 em que Z.F. completa 36 anos e recebe
3 presentes de J., a incidência do 3 é tal que os exemplos, aqui aglomerados e fora do
contexto, seriam exaustivos. No romance, J. possui apenas 3 amigos, incluindo o
Grilo. O 202, único, para além das datas, grafado com algarismos, aparece umas 70
vezes, mais de 50 antes da chegada a Tormes. Em certas páginas, comparece 3 e 4 vezes,
sem nunca ser substituído por palavra ou expressão que para ele pudesse remeter.
O ritual iniciático da catábase é substituído pela ascensão difícil e longa até
à serra. Só para J. constitui o ato iniciático que possibilitará a “ressurreição”, desprovido da escuridade e do cheiro a defunto, embora seja a transladação de “os venerandos restos dos excelsos avós” o pretexto para a partida de Paris e o regresso a Tormes.
O caminho para a luz do dia, o ar perfumado e “a doçura do Paraíso” não tem regresso. Se quisermos entender esta espécie de catábase invertida, não a poderemos limi-
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tar à viagem na “égua tarda” (ainda não existiam furgonetas), empreendida para chegar ao “feio” solar de Tormes. A iniciação, a prova foi mais prolongada: durou 3 dias.
Na cidade, J. recebe, anualmente, os proventos da serra, um dos meios de
manter o regime monárquico. Mas só nas serras se torna um verdadeiro aristocrata,
zelando pelos interesses e ganhando a admiração e o louvor das gentes, que o tomam, no dizer malicioso de Z.F., por D. Sebastião. Liberal ambíguo, suspeita-se que
tenha recolhido D. Miguel em Tormes, “em breve disporia de mais votos nas eleições
que o dr. Alípio...” /seria o de Abranhos?/. Por fim, confessa-se socialista – o pai dos
pobres, dizem os que dele recebem caridade; ou “amigo dos pobres”, como diz Z.F.
a sua tia, traduzindo, para a tranqüilizar, o escandaloso termo: “socialista”. Na cidade, J. não trabalha. Gasta, sustenta a indústria (repare-se na profusão de marcas, dos
vinhos aos cigarros e às lâmpadas, na C.S.), é um consumidor, compra cada vez mais
conforto e luxo, fraquejando-lhe a imaginação por excesso de acumulação e desperdício. Nas serras, embora não trabalhe muito, deixa de ter as mãos desocupadas, orienta a produção, sonha produzir cada vez mais mesmo sem lucro, planta árvores e
espera criar os filhos.
A cultura que a cidade lhe proporciona (“acumulara civilização nas máximas proporções, para gozar nas máximas proporções a delícia de viver...”) parece-lhe
incomensurável. Desperdiça-a da única forma que a sua sociedade concebe: em conversas mais ou menos filosóficas e inúteis, festas, ostentação e bocejo. No campo, reconhece o pouco que sabe, a inutilidade dos 318 volumes de Astronomia, quando
não consegue lembrar o nome de uma única estrela; ou dos 30.000 livros, pois não
sabe distinguir um amieiro de um sobreiro.
O espaço aberto, a luz do sol, a alimentação simples e as noites bem dormidas, sem a repressão de inúmeras máquinas frustrantes, são as condições coerentes
que o texto queiroziano arquiteta para tornar verossímil e até científica a transformação da personagem: intensificação de uma virilidade em parte auto-sublimada.
Dessa sublimação nascem as relações com os outros, as tarefas comuns. J. “recuperara o dom divino de rir” (C.S., p. 91). A liberdade vem-lhe, afinal, de uma aparente
contradição: conhece, pela primeira vez, autênticas contrariedades, obstáculos de vária ordem, desde o desaparecimento dos 33 caixotes e das 23 malas (37, no conto) ao
conhecimento de que os seus rendeiros passavam fome. Deixa de sofrer do “mal jacíntico” ou narcísico e sente-se feliz por usar apenas uma escova de dentes, ele, “o
antigo homem das 39 escovas”. Para conseguirmos ler a substância das verdades conotadas, Eça oferece várias informações ideológicas e conta com a nossa cumplicidade. Constrói o universo do Jasmineiro/202 com o (então) exagero próprio ao seu tom
irônico, exagero necessário a uma ficção científica modesta, isto é, realista. Mas mesmo nas exíguas 26 páginas de “Civilização” faz um balanço e um aviso aos navegantes futuros, comparável, apenas nesta largo espectro e salvas as devidas proporções,
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ao último romance do nosso Nobel. Em Tormes, J. lembra, sem alienação, os textos
relidos nos livros deixados na cidade, e só então entende a origem do ceticismo dos
seus autores, de Jesus, filho de Sirac, a Schopenhauer (nunca refere, expressamente,
Platão e A caverna, mas depois de ler Saramago não seria difícil lembrarmo-nos de
comparar os textos ecianos, em especial a C.S., com o mito platônico). A grande diferença (de épocas, de perspectivas, de escritas) entre a idealização de Eça e a de Saramago está no movimento, que é inverso: Saramago parece propor a saída (para onde?); a
“Civilização” ainda acredita no regresso ao interior, conselho nunca seriamente seguido em Portugal. Assim, aqui artificialmente reunidas, a solução de Saramago parece
responder à frustração da proposta eciana para as Serras. Quanto à descrição enumerativa, maciça n’A caverna, chega a ocupar páginas inteiras (como, aliás, noutros romances de Saramago). Mas tanto o conto de Eça como A caverna recorrem à ironia final
para se descomprometerem, auto-ironizarem e desfrutarem o leitor.
Jacinto, apesar de ter perdido a bagagem, transporta consigo a contradição
do civilizado, ou simplesmente a contradição humana. Reencontrada a natureza, renascerá outro estádio de civilização, que, por sua vez, culminará no excesso e na entropia. Paraíso sem a componente transcendental que lhe daria o místico, Torges/
Tormes, como Ogígia e o topos terreal de “Adão e Eva no Paraíso”, denegam a plenitude, tão maçadora e alienante como a seca supercivilizacional. À supercivilização
predominantemente “dionisíaca” – onde não existe uma idéia que não seja cética da
felicidade que se tenta encontrar sem se saber como nem onde – opõe-se uma civilização quase apolínea, de pausa, moderação, um certo coletivismo. Jacinto, como se fora o
habitante da primeira que experimenta a segunda (movimento inverso ao das personagens de Saramago), estabelece a comunicação entre ambas, parecendo prometer encontrar o desejado equilíbrio em Tormes, com... planos sociais de coletivismo, agricultura e industrialização. Z.F. tem conhecimento do número, dos ciclos e das diferentes
vibrações que se podem captar em cada estádio da civilização ou da cultura.
O múltiplo coro de variadas vozes que os irônicos narradores ecianos regem com mestria é acompanhado por um ritmo concretamente marcado pela repetição das quantidades, que nos dá a medida ou desmedida da proporção das coisas,
parecendo procurar o cânone, o diapasão harmônico, que, sabemos, não estará na
perfeição monológica. Ao repetir-se ou ao modificar-se, procura-se o número, múltiplo e uno. O número não terá, aqui, uma função utilitária, senão uma significação
qualitativa e estruturante, uma estética das proporções, tendência para o nivelamento, para uma divisão bem repartida da energia, para afastar o espectro que ameaça,
também, o novo século e que tantos desastres causou no XX: a entropia. Não apenas
da Física, mas das relações humanas. A mudança de ritmo produzirá nova harmonia. A reiteração do nome numeral será apenas marca de um narrador-Autor ironicamente civilizado que contabiliza.
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ABSTRACT
T
wo attemptive essays and comments on Eça’s two short stories and
one novel have been assembled here: 1. “A perfeição”: the distinctive and suttle marks of the “translation” that, unlike the Homeric model,
differs from its epic monologism and parodies it; Mercury’s laughter,
bringing the new message of freedom; and the actual perfection of the
original text’s mimesis. 2. From “Civilização” to A Cidade e as Serras:
an end of the century account and the reckoning of too many mechanical and useless objects and exuberant goods that lead to apathy and
oppose to the idyllic surch for the Paradise lost, where the virile and
comunitarian man comes to life again. Then, numbers lurk and threaten to increase. Eça’s unexpected proneness to the Kabala (like the repeated use of number 6)?
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