O consumo midiático de meninas ninfetas: uma

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O consumo midiático de meninas ninfetas: uma
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015)
O consumo midiático de meninas ninfetas: uma breve análise sobre a
representação erotizada de meninas na sociedade contemporânea1
Jacqueline Sobral2
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Resumo
A divulgação de representações erotizadas de meninas pela mídia é um sintoma da
sociedade contemporânea que precisa ser combatida, mas também analisada por um
cenário mais abrangente, o da transformação do erótico e do sexo em mercadoria
pelos meios de comunicação. Este artigo propõe uma breve reflexão sobre o tema,
recorrendo a casos que ocorreram recentemente no Brasil, como o do surgimento da
cantora mirim conhecida como Mc Melody.
Palavras-chave: Comunicação; Consumo; Mídia; Infância; Erotismo.
1. INTRODUÇÃO
(...) Sem querer eu roubei o seu coração. (...) não mereço ser amada assim. Eu
curto amores, eu curto sabores, essa vida sem rumo. (...) Eu sou a cara das
noitadas, curto a madrugada, beber uma gelada. Não gosto de ter hora
marcada para voltar para casa, eu gosto de virar as noites na balada. (...)
Esse é um trecho da música que uma menina de oito anos conhecida como Mc
Melody canta, ao som de um violão, em um vídeo caseiro, publicado no dia 24 de
julho, em sua fanpage oficial, no Facebook. Seis dias após a divulgação, o post já
tinha sido visualizado por 10 mil pessoas, com 27 compartilhamentos e 236
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Infâncias (GT 3), do 5º
Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015.
2
Doutoranda em Educação pela PUC-Rio, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela
ESPM-SP, é jornalista e professora de graduação do IBMR-Laureate e da Unicarioca, além de
professora convidada do IBMEC Online e da FGV. E-mail: [email protected].
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"curtidas". No dia 17 de abril deste ano, o Ministério Público do Trabalho em São
Paulo abriu um inquérito para analisar o caso e verificar se há ou não existência de
"trabalho infantil", prática proibida no país. O pai e empresário da menina, conhecido
como Mc Belinho, foi ouvido pelo MPT e "se comprometeu a cumprir medidas que
garantam a proteção de crianças e adolescentes agenciados por ele"3. No mesmo mês,
o Ministério Público de São Paulo também instaurou um inquérito para investigação
sobre "forte conteúdo erótico e de apelos sexuais" em músicas e coreografias de
crianças e adolescentes músicos, entre eles, a Mc Melody, resultado de denúncias e
representações encaminhadas pela Ouvidoria ao MP 4. A questão realmente vai muito
além do cumprimento ou não da legislação trabalhista. A cantora mirim vem fazendo
uma série de exposições na mídia, participando de programas de rádio e televisão,
usando roupas curtas, sutiãs de enchimento, batons de cores fortes e trejeitos sensuais,
enquanto canta músicas de funk, com conteúdos eróticos.
O caso retrata uma
realidade no Brasil que precisa ser amplamente discutida: a produção e o consumo
midiático de representações erotizadas de crianças. Neste artigo, iremos nos restringir,
porém, à exposição de meninas.
Basta ligar a televisão, folhear uma revista ou navegar pela internet para
constatar que o erotismo se faz presente no cotidiano midiático, tanto na produção
destinada a crianças, como em conteúdos do "mundo adulto" aos quais essas crianças
também têm acesso. Desenhos animados apresentam mocinhas de mini saia, anúncios
de cerveja expõem pernas e decotes, enquanto meninas se transformam em
celebridades mirins seguindo a mesma lógica de erotização de mulheres com o triplo
de sua idade, ou mais.
Em um cenário em que a programação infantil está desaparecendo da TV
aberta, a preocupação não se limita mais aos valores e significados que estão sendo
transmitidos às crianças pelos meios de comunicação em novelas, campanhas
3
Disponível em: <http://www.dm.com.br/cidades/2015/07/pai-de-cantora-funkeira-se-submete-aoministerio-publico.html>. Acesso em 30 jul. 2015.
4
Disponível em: <http://g1.globo.com/musica/noticia/2015/04/ministerio-publico-abre-inqueritosobre-sexualizacao-de-mc-melody.html>. Acesso em 30 jul. 2015.
2
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publicitárias, filmes e programas sensacionalistas voltados oficialmente para um
público mais velho: as próprias meninas vêm sendo transformadas em produtos
erotizados para consumo imediato de outras crianças e de adultos.
A fabricante de bolsas e sapatos Courofino foi autuada pelo Conselho
Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR) em 2013 por divulgar uma
campanha nas redes sociais, em outubro do mesmo ano, para o Dia das Crianças, no
qual um dos anúncios mostra uma menina de calcinha, sapato de salto vermelho
maior do que o seu pé, colares e pulseiras de pérola, sentada em uma pose erótica,
com o slogan "Amo brincar com os sapator #courofino da mamãe!".
Outro conteúdo que gerou polêmica foi produzido pela Editora Globo em sua
revista Vogue Kids, veiculada em setembro de 2014, que acabou sendo retirada de
circulação, por decisão do Ministério Público do Trabalho. Em um ensaio fotográfico
para a divulgação de roupas e acessórios, entitulado "Sombra e água fresca", meninas
de 10 a 13 anos aparecem em poses impróprias para a sua idade. Há fotos de uma
delas com o bumbum empinado, outra de calcinha e perna aberta sentada em um
deck, outra fazendo "biquinho" com a boca; em um dos registros, uma menina
aparece com corpo de costas, mas com o rosto virado para a câmera, ameaçando tirar
a camiseta branca, enquanto a parte de cima do seu biquini aparece por baixo do short
de grife.
Já mais recentemente, em março de 2015, época do Carnaval no país, a marca
Use Huck, que tem como um dos sócios o apresentador da Rede Globo Luciano
Huck, vendia pelo site da empresa, a "camiseta infantil vem ni mim", com fotos de
um menino e de uma menina vestindo o produto, que trazia a frase "Vem ni mim que
eu tô facin". A camiseta foi comercializada nos tamanhos de 02 a 12. Após causar
diversas reclamações nas redes sociais, a empresa retirou do ar a campanha e
suspendeu a venda; o estilista Rony Meisler e posteriormente o próprio Huck se
manifestaram publicamente pedindo desculpas, alegando que, por um erro, a arte de
tal estampa foi aplicada indevidamente em modelos mirins no site (ou seja,
argumentaram que o equívoco se deu na montagem, pois as crianças teriam posado
3
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com uma camiseta branca lisa). Mas o nome do produto em destaque no site
"camiseta infantil vem ni mim" também teria sido um equívoco que passou
despercebido?
Com base no trabalho de autores como Morin (2011), Silverstone (2005),
Giddens (1994) e Durham (2009), o objetivo deste artigo é fazer uma reflexão sobre a
exposição do erótico como mercadoria pela cultura midiática e mais precisamente
sobre a adultização precoce de meninas nesse contexto, não apenas por corporações
com fins comerciais, mas também pelos próprios pais, tendo como pano de fundo
mudanças sociais e afetivas da sociedade contemporânea, o que Giddens chama de
"transformação da intimidade".
2. O ERÓTICO FEMININO COMO MERCADORIA
Entre os anos 1930 e 1950, época em que a figura feminina era associada à
beleza ingênua e sedutora (Lipovetsky, 2000), surgiram nos Estados Unidos e na
Europa as chamadas pin-ups, ilustrações ou fotos de modelos ou atrizes posando com
símbolos de fetiche, exibidas em calendários, páginas de revista, cartões postais,
caixinhas de fósforo, entre outros produtos. Nas palavras da estilista e especialista em
fotografia Priscilla Afonso de Carvalho e da Doutora em Estudos da Linguagem pela
UEL/PR Maria Irene Pellegrino de Oliveira Souza (2010), elas eram "mulheres de
brilho provocante no olhar", que dominavam a arte de sedução, articulando a aura
inocente com o leve erotismo, em uma "trama de provocações capaz de acender o
imaginário masculino". As autoras enfatizam que tais imagens se propagaram em um
período de busca de aceitação sexual e de liberdade dos corpos: "a característica
destas figuras era essencialmente incitar e incendiar o imaginário do espectador,
atraindo principalmente a atenção masculina", ainda que não deixassem de servir
como "paradigma estético para o público feminino" (op.cit., p.129).
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Nas últimas décadas, porém, essa trama de provocações é cada vez mais
intensa, o apelo erótico da figura feminina vem se tornando um ingrediente quase que
rotineiro nas representações midiáticas que participam do nosso cotidiano. Para Morin
(2011), "é no fluxo da cultura de massa que se desfecha o erotismo":
(...) não só os filmes, os comics, as revistas, os espetáculos estão cada vez
mais apimentados com imagens eróticas, mas quotidianamente pernas
levantadas, peitos estufados, cabeleiras escorridas, lábios entreabertos nos
convidam a consumir cigarros, dentifrícios, sabões, bebidas gasosas, toda
uma gama de mercadorias cuja finalidade não é, propriamente falando,
erótica. (...) É que se operou uma espantosa conjunção entre o erotismo
feminino e o próprio movimento do capitalismo moderno, que procura
estimular o consumo (2011, p. 113-114).
O sociólogo francês frisa que o erotismo da cultura de massa é ambivalente,
contraditório; mantém uma permanente provocação ao explorar os tabus sexuais sem
necessariamente destruí-los; transforma o rosto em um alvo erótico e promove uma
erotização geral do corpo enfraquecendo a força da sexualidade genital. Ao colocar o
erótico no centro das atenções, a cultura de massa "dilui o que estava concentrado"
(2011, p.13-14). Já Silverstone defende que a não-consumação é a norma da dinâmica
da exposição erótica da mídia, pois "prazer, excitação, sensação são constantemente
oferecidos, mas poucas vezes realmente entregues (...)" (2005, p.96). Segundo ele, o
crescente apelo erótico dos meios de comunicação faz parte de um contexto em que o
direito do indivíduo de consumir e de ter o que ele quiser é cada vez mais
preponderante, é uma busca permanente por algo que ele nunca vai conseguir de fato:
O erótico é tanto uma precondição como a justificação da experiência. É por
uma esperança transcendente, uma esperança e um desejo de que algo nos
toque, que somos atraídos até esses textos e performances que, em outros
aspectos, seriam mundanos e triviais (SILVERSTONE, 2005, p. 109).
O fundamento do erotismo está na relação entre a interdição e a transgressão
(BATAILLE, 2004). Sua presença não é denunciada por um fato físico em si, um
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"está sem roupa, logo é erótico", mas se dá na ordem do simbólico, na representação
do nu ou do seminu, em complexas expressões faciais, posturas corporais,
vocalizações e gestos, na tentativa de sugerir condutas da ordem da sexualidade
(PERUZZOLO, 2010, p.325-333).
Para Peruzzolo, o conceito de erotismo por si só não é sinônimo de sedução,
mas sim de um "excedimento nas indiciações e sugestões relativas aos desejos
sexuais" (...) É a satisfação investida na visão de pernas, pelos, peitos, dorsos, coxas,
etc.", que se enquadram em uma relação de ação/prazer (2010, p. 325). Ao tratar do
tema, o sociólogo Anthony Giddens faz um importante paralelo para a nossa
discussão: "O erotismo é a sexualidade reintegrada em uma ampla variedade de
propósitos emocionais, entre os quais o mais importante é a comunicação" (1994,
p.220).
Em outras palavras, o aumento do apelo erótico da mídia atende ao desejo de
uma sociedade que se alimenta de gratificação instantânea, que busca um estado de
constante excitação (MOREIRA, 2003) que, na verdade, nunca é alcançado; que se
sente atraída por essas imagens e textos sem nem saber por que tais conteúdos
despertam desejo. Giddens propõe que o sexo como mercadoria é utilizado pela lógica
capitalista porque esse é um tema central para a sociedade:
A sexualidade gera prazer; e o prazer, ou pelo menos a sua promessa,
proporciona um incentivo para os produtos comercializados em uma
sociedade capitalista. As imagens sexuais aparecem em quase toda parte no
mercado como uma espécie de empreendimento comercial gigantesco; a
transformação do sexo em mercadoria poderia então ser interpretada em
termos de um movimento de uma ordem capitalista, dependente do trabalho,
da disciplina, e da autonegação, para uma ordem preocupada em incrementar
o consumismo e, por isso, o hedonismo. Entretanto, as limitações de uma tal
ideia são por demais óbvias. Ela não explica por que a sexualidade deve ter a
importância que tem; se o sexo é um complemento poderoso para o
consumismo, deve ser porque já existe uma preocupação dirigida a ele
(op.cit., p. 194-195).
Essa crescente presença do erotismo na cultura midiática se insere também em
um contexto de negociação sexual e de novas terminologias de compromisso e
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intimidade que a sociedade contemporânea vive atualmente, o qual é analisado por
Giddens. Para ele, a sexualidade é hoje de domínio público e nossa vida pessoal se
transformou em um projeto aberto, no qual o "eu" pode ser construído a partir de
diversas possibilidades de autonomia e felicidade. Dessa forma, as relações sexuais se
desataram das necessidades reprodutivas (a partir dessa mudança, ele desenvolve o
conceito de "sexualidade plástica"), e o que estamos vivenciando atualmente é a
ascensão do que o sociólogo chama de amor confluente, que coloca o prazer sexual
como elemento-chave, que pode ser vivido a curto prazo e não é necessariamente
monogâmico, e que entra em choque com o "para sempre" e "único" do amor
romântico burguês. A sexualidade, portanto, tornou-se um tema importante tanto para
as mulheres, que elegeram a reivindicação do prazer sexual feminino como um
elemento fundamental da reconstituição da intimidade e de emancipação na esfera
pública, como para os homens, para quem "a atividade sexual tornou-se compulsiva a
ponto de ficar isolada destas mudanças mais subterrâneas" (1994, p.196).
No Brasil, a questão do erotismo e da sexualidade como presenças costantes
nos meios de comunicação ganha mais força devido à presença do funk na cultura do
país. Com base no método da análise de discurso de linha francesa e como referencial
teórico os estudos de Foucault sobre sexualidade, entre outros, Amorim (2009) analisa
as representações femininas de cunho erótico no gênero musical, ressaltando que a
sexualidade e a sensualidade da mulher recebem um tratamento específico, com letras
que a classicam como “popuzada”, “cachorra” e “vadia”, com o uso de roupas curtas
e apertadas, e de coreografias sensuais que promovem a exposição do corpo como
objeto de desejo. De acordo com a autora, a funkeira é construída como uma figura
feminina ousada e sem pudor, em um jogo de representações dicotômicas, pois, em
alguns momentos, veste o papel de mulher desejada, de objeto sexual à espera de ser
dominada, enquanto em outros, inverte a ordem patriarcal instituída pela sociedade e
assume um personagem dominador, que só faz o que quer. (2009, p.43). A rejeição à
interdição sobre sexualidade praticada em muitos espaços discursivamente
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constituídos seria a principal razão da popularidade do funk entre os jovens (e as
crianças, acréscimo nosso), para Amorim.
3. AS REPRESENTAÇÕES RECENTES DE MENINAS NINFETAS
A fanpage da menina Mc Melody é repleta de fotos suas com poses sensuais e
de vídeos nos quais ela canta letras de funk, que trazem frases como "Se é bonito, ou
se é feito, mas é foda ser gostosa." Em um dos posts, do dia 30 de julho de 2015, a
criança aparece em uma montagem ao lado da Mc Anitta, destacando que a mesma é
sua "diva":
Figura 1: Post publicado na fanpage da Mc Melody5
5
Disponível em: <https://www.facebook.com/pages/Mc-Melody/348959231979150?fref=ts>. Acesso
em 28 jul. 2015.
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Mc Anitta é uma cantora que começou a fazer muito sucesso no Brasil em
2013, mantendo suas músicas nesse ano na lista das mais pedidas nas rádios. Sempre
vestida com roupas apertadas e cantando músicas que trazem trechos como "Prepara
que agora é hora do show das poderosas, que descem e rebolam, afrontam as fogosas
(...)", ela é fonte de inspiração para várias meninas como a Mc Melody, basta fazer
uma visita ao site You Tube para encontrar fãs mirins da artista reproduzindo a
coreografia de seus shows. Não é um fenômeno do século XXI a atração de crianças
por figuras erotizadas. Apresentadoras como Xuxa e Mara Maravilha, nos anos 1980,
já encantavam o público infantil, enquanto faziam uso de shorts e saias curtas em seus
programas, shows e capas de disco vinil. Na década seguinte, por exemplo, os
pequenos se sentiram atraídos por Tiazinha, personagem midiática encarnada por uma
mulher com máscara preta no rosto, vestindo corpete e calcinha fio dental, de chicote
em punho, construída para o "mundo adulto".
Este artigo vai de encontro a teorias que defendem a mídia como a única
estimuladora de um desejo que a criança não tinha até então — a noção da infância
como uma condição assexuada já foi destruída no início do século passado por Freud,
o que talvez explique a atração que a criança naturalmente sente pelo erótico, mas não
é objetivo deste texto se aprofundar sobre este tema específico. O que é preocupante,
mais do que a exposição da criança a um conteúdo que não foi produzido para ela, é a
exploração da figura infantil pela lógica do erotismo midiático:
As Lolitas que habitam nosso ambiente de mídia são construções. Elas
servem a necessidades de mercado e a objetivos lucrativos, e são
poderosamente sedutoras, especialmente para as jovens garotas cuja
vulnerabilidade é explorada. (...) Hoje, mais do que nunca, a garota sexy está
no olho do furacão. O sexo é um palco de disputas na sociedade
contemporânea, como bem sabe qualquer um que acompanhe as manchetes
na mídia. À medida que nossa compreensão de gênero e de sexualidade fica
mais complexa, o debate sobre o que é "certo", "normal" ou "aceitável" na
esfera outrora clandestina do sexo torna-se mais aberto e mais intenso
(DURHAM, 2009, p. 27).
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No caso particular da Mc Melody, o fato de o seu próprio pai ser o grande
estimulador de tal representação é ainda mais assustador. Em uma entrevista
concedida à imprensa, Thiago Abreu afirma que as críticas sobre a sua postura vêm de
estados onde o funk não é popular, mas logo depois se contradiz: "as pessoas
denunciam porque não aguentam ver uma criança de 8 anos fazer as caras e bocas que
ela faz. Tem muita criança que queria fazer o que ela faz e não consegue."6 Ele
próprio indica em seu discurso que reconhece a incompatibilidade entre a idade da
filha e a "carreira" que ela está seguindo, com a ajuda do pai.
As reclamações e denúncias que casos como o da Mc Melody, assim como o
da campanha publicitária da Couro Fino, o das fotos publicadas pela Revista Vogue e
o da camisa produzida pela marca Use Huck receberam ou recebem são indícios de
que tais representações eróticas de meninas causam desconforto na sociedade. No
entanto, o surgimento constante de casos similares mostram também que, de alguma
forma, essas construções sociais estão se consolidando na lógica de produção cultura
midiática.
No caso da campanha de fabricante de calçados Couro Fino, a empresa retirou
o material publicitário de circulação e divulgou uma nota7, logo após as críticas nas
redes sociais e a veiculação da história pela imprensa. No texto, a organização alegou
que "jamais teve a intenção de erotizar a infância", e que houve uma "interpretação
distorcida" da real intenção da organização, que era mostrar uma menina mexendo
com os pertences da mãe: "a peça trazia uma criança usando os pertences da mãe,
brincadeira muito comum no cotidiano infantil (...)". Em um dos anúncios, uma
menina aparece em pé, de perfil, só de calcinha de rendinha que denuncia uma fralda
por baixo, devido ao bumbum empinado, calçando um sapato amarelo de salto alto
maior do que o seu pé, com a frase "sabendo sempre te cativar!":
6
Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/brasil/mc-melody-de-8-anos-causa-polemica-paidefende-so-porque-ela-canta-funk-15737518.html>. Acesso em 29 jul. 2015.
7
Disponível em: <http://www.administradores.com.br/noticias/marketing/couro-fino-divulga-notasobre-peca-que-gerou-criticas/80972/>. Acesso em 29 jul. 2015.
10
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Figura 2: anúncio da Courofino veiculado e retirado da internet em 20138.
A revista Vogue foi na mesma linha e divulgou um texto no Facebook, na
época, explicando que queria retratar as modelos infantis "em clima descontraído"9.
Essa é uma das imagens divulgadas pela publicação:
Figura 3: parte do ensaio fotográfico da Vogue Kids, edição de set. de 2014.10
8
Disponível em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/noticias/article.php?storyid=892>. Acesso
em 25 julho 2015.
9
Disponível em: < http://www.brasilpost.com.br/2014/09/13/polemica-vogue-kids_n_5815314.html>.
Acesso em 25 jul. 2015.
11
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Já o apresentador Luciano Huck e o outro executivo da marca de camisetas
vieram a público para dizer que havia ocorrido um erro digital de aplicação da
estampa "Vem ni mim que eu tô facin". A frase é uma expressão que sugere uma
disponibilidade para o relacionamento que talvez só o adulto entenda:
Figura 4: anúncio da camiseta da marca Use Hulk que causou polêmica.11
Recorremos à análise de Carvalho e Sousa (2010) sobre a causa do sucesso
das pin-ups na primeira metade do século XX para refletir sobre as representações da
menina erotizada do século XXI: "imagem estimulante de fantasias: força e
delicadeza, malícia e candura". Ao que tudo indica, a lógica de produção é a mesma.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabemos que a infância não é uma categoria universal, estável e imutável ao
longo do tempo, muito pelo contrário (SARMENTO, 2004; QVORTRUP, 2010). A
10
Disponível em: <http://planetaescuro.blogspot.com.br/2014/09/campanha-da-vogue-e-criticadapor.html>. Acesso em 30 jul. 2015.
11
Disponível em: <http://ego.globo.com/moda/noticia/2015/03/camiseta-infantil-da-grife-de-lucianohuck-causa-polemica-na-web.html>. Acesso em 30 jul. 2015.
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própria discussão sobre a "destruição" da infância é um sintoma de uma ansiedade
mais generalizada em relação a mudanças sociais e culturais que vêm ocorrendo com
o advento do novo milênio (BUCKINGHAM, 2007). Portanto, não pretendo com este
artigo delimitar o que é exatamente ser criança e o que é ser adulto. Também não é
intuito deste texto concluir, em uma abordagem funcionalista de causa e efeito, que as
crianças estão se interessando pelo sexo mais cedo, ou até praticando sexo, por culpa
da mídia, que funciona a serviço da sociedade de consumo: outras mediações, com
destaque para a família, fazem parte do dia a dia dos pequenos e influenciam seus
usos e percepções de mundo. Além disso, vale ressaltar que nem sempre a criança tem
repertório suficiente para a plena compreensão dos conteúdos eróticos disseminados
pelos meios de comunicação (SOBRAL, 2014).
O cenário aqui apresentado apresenta dois grandes problemas. O primeiro é a
aceleração de um processo de amadurecimento que precisa ocorrer de forma natural.
A criança é um sujeito ativo, ainda que em formação, que precisa de orientação, de
um ambiente familiar seguro e de tempo suficiente para crescer e aprender sobre sexo.
Isso é importante principalmente para as futuras mulheres, que durante muito tempo
tiveram sua sexualidade reprimida, controlada e punida (DURHAM, 2009). O
segundo é a condição de vulnerabilidade em que essas meninas são colocadas diante
do desejo adulto, ao serem transformadas em pequenas ninfetas, o que pode ser um
estímulo a crimes de pedofilia (LIVINGSTONE; HADDON; GÖRZIG, 2012).
O que estamos presenciando nos dias de hoje não é apenas um
enfraquecimento da separação entre crianças e adultos e da concepção moderna de
infância promovida pela visibilidade pública do erótico e da sexualidade
(BUCKINGHAM; BRAGG, 2004), mas um esfacelamento significativo dessa divisão
provocada pela transformação da própria criança em objeto erótico e sedutor. Ao
vestir uma menina como uma pequena mulher erotizada, abala-se, direta ou
indiretamente, a ideia de que o sexo é um rito de passagem para o mundo adulto.
Precisamos debater cada vez mais o tema e continuar denunciando tais
representações.
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SILVESTONE, Roger. Por que estudar a mídia? São Paulo: Edições Loyola, 2005.
SOBRAL, Jacqueline. Você gosta de alguém? Representações de amor, erotismo e sexo
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