Rádios ilegais: da legitimidade à democratização das práticas
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Rádios ilegais: da legitimidade à democratização das práticas
Sandra Sueli Garcia de Sousa Rádios ilegais: da legitimidade à democratização das práticas Dissertação apresentada ao Centro de Pós-Graduação da UMES, em cumprimento parcial às exigências para obtenção do grau de Mestre em Comunicação Social, sob a orientação do Prof. Dr. J. S. Faro. Universidade Metodista de São Bernardo do Campo (UMES) São Bernardo do Campo, SP, Brasil, agosto, 1997 9 Resumo O fenômeno das rádios ilegais existe em todo o mundo desde que surgiu a radiodifusão. No Brasil, as emissoras sem autorização oficial surgiram em maior número a partir da década de 80. Num primeiro momento, foram chamadas de “rádios piratas”, um hobby de adolescentes estudantes de eletrônica; depois foram as “rádios livres”, uma forma política de descentralizar a propriedade dos meios de comunicação e, atualmente, são conhecidas como “rádios comunitárias”, emissoras dirigidas ao cotidiano dos bairros em que se localizam e que também lutam por uma maior democracia nos meios de comunicação. Esta dissertação trata desse fenômeno em duas partes: a primeira traça um perfil histórico das emissoras ilegais, identifica a experiência como uma das formas de se realizar a comunicação alternativa e situa a conjuntura política em que as rádios estão inseridas; a segunda parte aprofunda a discussão sobre as rádios comunitárias, tomando como exemplo a Rádio Cidadã, uma rádio comunitária localizada na zona Oeste da cidade de São Paulo, que procura ser o veículo de expressão de sua comunidade. 10 Abstract The phenomenon of illegal radios has existed throughout the world since radiodiffusion began. In Brazil, the broadcasting station without official authorization appeared in great number by the earlier 80’s. First, these broadcasting stations were called “pirate radios”, a hobby of adolescents who were studying eletronic. After that, they were called “free radios”, a political way to descentralize the means of communication’s domain. Nowadays, these radios are known as “local radios” which are broadcasts that deal with the daily activities of the district where they are. Besides that, they also want more democracy in the means of the communication. This dissertation, which is about this phenomenon, is divided in two parts: the first one makes a historic perfil of the illegal radios, identifies the experience as one way to consummate alternative communication and situates the political conjuncture in which the radios are inserted; the second one deepens the discussion about the local radios, taking as example Cidadã Radio which is a local radio situated in the west of São Paulo and that wants be the expression vehicle of its community. 11 Para meu querido companheiro, Eliézer Barreto, e para meus pais, Wilson Francisco de Souza e Rocimar Garcia de Souza. 12 Agradecimentos Agradeço à Universidade Federal do Pará (UFPA) por ter acreditado em mim concedendo-me a bolsa do Programa Institucional de Capacitação de Docentes e Técnica (PICDT), sem a qual não teria sido possível a realização desta dissertação. Agradeço à firme orientação prestada pelo Prof. Dr. J. S. Faro, que contribuiu valiosamente para a consecução desta. Agradeço em especial às orientações iniciais dos Profs. Drs. Joana Puntel e Luiz Roberto Alves pelas imprescindíveis sugestões. Agradeço a José Carlos Francisco de Paula, pelo acesso a uma parte do material bibliográfico utilizado. Agradeço a todos da Rádio Cidadã pelo pronto atendimento durante a pesquisa de campo, em especial a Luci Martins, Grácia e Donizete. Por fim, agradeço ao meu companheiro, a minha família e aos meus amigos pelo apoio sempre necessário. 13 Sumário Introdução Parte I Capítulo 1 Os caminhos do rádio 1.1. A invenção do rádio e seu rápido crescimento 1.2. A chegada do rádio no Brasil 1.3. Nos barcos e nos porões: a pirataria está no ar 1.4. Rádios clandestinas e sindicais: lutas políticas 1.5. O movimento de contestação das rádios livres Capítulo 2 As rádios ilegais no Brasil 2.1. As primeiras ondas livres no Brasil 2.2. Rádios religiosas: a “salvação” vem pelo ar 2.3. Rádios comunitárias: um novo canal de expressão Capítulo 3 A comunicação alternativa e a comunicação popular 3.1. A comunicação alternativa 3.2. A comunicação popular 3.3. Localizando as práticas Capítulo 4 A democratização da comunicação 4.1. Anos 80: os movimentos sociais e as novas tecnologias 4.2. O movimento pela democratização da comunicação 4.3. As rádios livres: conotações políticas 4.4. Anos 90: o início da luta pela regulamentação das rádios comunitárias 4.5. Exploração do serviço de radiodifusão 4.6. As principais leis que orientam o serviço de radiodifusão 14 Parte II Capítulo 5 A história de uma rádio comunitária: a Rádio Cidadã 5.1. Antecedentes 5.2. Principais características do Butantã e região 5.3. A Rádio Cidadã Capítulo 6 Os programas da Rádio Cidadã 6.1. A grade de programação da emissora 6.2. Primeira grade: programas de domingo 6.3. Segunda grade: programas de segunda à sexta-feira 6.4. Terceira grade: programas de sábado Capítulo 7 A voz da Rádio Cidadã 7.1. Os programas analisados 7.2. Na boca do povo 7.3. Encontro com as comunidades 7.4. Cala a boca já morreu (porque criança também tem o que dizer) Capítulo 8 Pistas sobre o público da Rádio Cidadã 8.1. Considerações preliminares 8.2. O perfil do ouvinte jovem 8.3. O perfil do ouvinte adulto 8.4. O não-ouvinte da Rádio Cidadã Conclusão Bibliografia 15 “deixar que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer deixar que os olhos vejam pequenos detalhes lentamente deixar que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes como móveis inofensivos pra lhe servir quando for preciso e nunca lhe causar danos morais, físicos ou psicológicos." (Chico Science & Nação Zumbi) 16 Introdução O ano de 1989 marcou, no Brasil, a volta das eleições diretas para a presidência da República. Falava-se em democracia, e novos instrumentos de comunicação surgiam para testá-la, entre os quais estavam as rádios livres. Foi naquele ano que tivemos nosso primeiro contato com essa experiência, o qual se deu por meio da leitura da obra Rádios Livres, a reforma agrária no ar, de Arlindo Machado, Caio Magri e Marcelo Masagão. A partir daí pudemos vivenciar o rádio na prática, criando alguns programas na rádio livre do Centro Acadêmico de Comunicação Social da Universidade Federal do Pará, onde cursávamos o segundo ano de Jornalismo. Em 1991, participamos do III Encontro Nacional de Rádios Livres, em Macaé (RJ), e ampliamos um pouco mais o nosso conhecimento sobre o assunto. Na época, víamos a rádio livre como um laboratório onde era possível uma fala diferente no ar. Ainda não enxergávamos outras possibilidades no veículo, o que só ocorreria nos anos seguintes. Em 1992, pairou sobre Belém (PA) um estranho Sinal de fumaça1, vindo da desconhecida cidade de Poá, na Grande São Paulo, que divulgava uma série 1 Sinal de fumaça foi um fanzine produzido para divulgar as rádios livres; fanzine é a contração das palavras fanatic e magazine, designando uma publicação alternativa, amadora e produzida artesanalmente. 17 de experiências libertárias no éter. Atração à primeira lida. Fins de 1993: mudamo-nos para Poá, onde se deu início esta dissertação, que pesquisa o fenômeno das rádios ilegais2. O assunto das rádios piratas, rádios livres ou rádios comunitárias é tema na imprensa desde meados de 1985, mas recentemente voltou à pauta como hipótese para explicar a queda de dois aviões: o que trazia a bordo o grupo musical Mamonas Assassinas, em março de 1996, e o Fokker 100 da TAM, que matou 99 pessoas em São Paulo no final de outubro do mesmo ano. Ambos os acidentes teriam sido provocados pela interferência de uma rádio pirata nas linhas aéreas. Considerando essas hipóteses como verdadeiras, em novembro daquele ano, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) lança a campanha “Rádios Piratas: só as autoridades não interferem”, veiculada pelas rádios oficiais, mas que também conseguiu espaço na televisão em forma de matérias nos telejornais (só a Rede Globo ocupou-se de pelo menos três matérias, divididas entre o São Paulo Já e o Jornal Nacional), cuja tônica foi a interferência – e conseqüente perigo – das rádios ditas “piratas” na comunicação entre a torre de controle dos aeroportos e a tripulação dos aviões. 18 Mas que emissoras são essas? Ouve-se falar de rádios piratas, rádios clandestinas, rádios livres e rádios comunitárias. Qual é a diferença entre elas? Ou não há diferenças? Para a Abert, seguramente são todas iguais: todas essas rádios são piratas, ilegais, porque não possuem concessão oficial para operar, e portanto precisam ser combatidas, já que representam até mesmo um perigo de vida à população3. À parte a opinião oficial, propomos conhecer melhor o mundo dessas rádios, com mais informações que possam enriquecer a discussão. Rádios piratas, rádios livres e rádios comunitárias 2 Devido aos diversos nomes dados às rádios sem concessão, optamos por chamá-las de ilegais, pois, apesar das diferenças de conteúdo, a característica comum dessas emissoras é funcionar sem concessão governamental, portanto, são formalmente ilegais. 3 Interessante observar que, durante o movimento de rádios livres na Itália, na metade da década de 70, uma empresa de aviação, a Alitalia, também levantou uma polêmica desse tipo. Marco Gaido diz, a respeito, em “Los orígenes: la FM, los disk-jockeys y las radios piratas”, In: BASSETS, Lluís (ed.). De las ondas rojas a las radios libres. Barcelona, Ed. Gustavo Gili, 1981. p. 175: “Alitalia introduziu uma ridícula polêmica em função das interferências provocadas pelas rádios livres, que eram recebidas nas rádios dos aviões durante a aterrissagem. À parte a puerilidade técnica (os aviões recebem e transmitem em bandas muito distantes das rádios livres, à parte que as fases de aterrissagem e de decolagem são dirigidas também por rádio e pelas torres de controle, por emissões de impulsos hertzianos que devem ser descodificados a bordo do avião), o que levava tudo para ser um grande escândalo foi calado rapidamente porque a companhia entrou em greve”. A presidente da Associação Paulista dos Proponentes de Emissoras de Radiodifusão LocalComunitária (Aperloc), Luci Martins, em entrevista ao programa Opinião nacional, da TV Cultura, disse que tanto as rádios comunitárias quanto as piratas e até mesmo as comerciais realmente interferem nas comunicações dos aeroportos de Guarulhos e Congonhas, mas para ela há um certo exagero em afirmar que as interferências são um risco de vida, e esse exagero, segundo ela, deve-se ao fato de o projeto que regulamenta o serviço das rádios comunitárias já ter sido aprovado pela Câmara dos Deputados Federais e ter sido encaminhado ao Senado: “Costumamos brincar entre nós que se as 19 Há diferenças entre essas nomenclaturas. Não se pode chamar, por exemplo, uma rádio de “pirata” e “comunitária” ao mesmo tempo. O termo “rádio pirata” surgiu na Inglaterra, no final da década de 50, quando vários barcos equipados com transmissores, navegavam pelos mares, apontando suas antenas para terras inglesas, com o objetivo principal de obter lucro através da colocação dos produtos norte-americanos na região. No Brasil, não se tem notícia de rádios piratas que tenham transmitido de dentro de barcos. No entanto, prevalece o fato de que as rádios piratas daqui têm como preocupação fundamental explorar o rádio comercialmente, através da publicidade, como forma de obtenção de lucro. Assim, são consideradas rádios piratas as que vêem o rádio como um negócio lucrativo e, em termos de programação, não apresentam nada de novo em relação à programação das rádios oficiais. Pelo contrário, apenas repetem de forma massificada, e pouco elaborada, o que já é feito pelas rádios que possuem concessão. As “rádios livres” são diferentes das piratas por não priorizarem o lucro. Por vezes, os conceitos ficam pouco claros e acabam confundindo-se as manifestações. Mas, historicamente, as rádios livres surgem na Europa (Itália e rádios tivessem tamanho poder de interferência nos aeroportos, nós iríamos vender essa tecnologia para o país vizinho, para o Peru...”. 20 França são os países que melhor referenciam o movimento de rádios livres) na década de 70, objetivando quebrar o monopólio estatal de controle da radiodifusão. As rádios livres querem ser uma alternativa à programação oficial, preocupando-se com a contra-informação, a contracultura, a autogestão, a liberdade de expressão e vários temas afins, sempre em tom contestatório. As rádios livres européias influenciaram profundamente o movimento brasileiro, principalmente na metade dos anos 80, quando foram lançadas suas primeiras sementes, e hoje ele atinge praticamente todo o país. Uma das principais personalidades a divulgar as rádios livres européias no Brasil foi o filósofo francês Felix Guattari, que, empolgado com o movimento, fez palestras a respeito do assunto na Pontíficie Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), durante suas visitas ao país, em 1982 e 1985. Finalmente, as “rádios comunitárias” podem ser consideradas como um outro momento das rádios livres, pelo menos no Brasil. Elas nascem a partir da organização das rádios livres como movimento e da disseminação destas entre as classes populares, que passam a fazer uso do rádio como veículo de entretenimento e organização social. As rádios comunitárias têm como preocupação fundamental possibilitar o acesso da comunidade ao rádio, para que o veículo seja um instrumento (meio, e não fim) de mobilização e conquistas populares dentro de determinada comunidade. 21 Este trabalho tem como objetivos mostrar o quadro histórico das rádios ilegais no Brasil; identificar esses veículos como uma das maneiras de se realizar uma comunicação alternativa à dos meios oficiais; mostrar o funcionamento de uma rádio comunitária, visando a traçar um perfil da emissora e verificar se existem novas formas de comunicação, através da criação de linguagens radiofônicas. Em função desses objetivos, dividimos a dissertação em duas partes: a primeira traça o histórico das experiências ilegais no éter e apresenta um painel teórico da comunicação alternativa e popular, ligando-as aos fenômenos das rádios livres e comunitárias. No nosso entender, quando as pessoas são impedidas, de alguma forma, de expressar seus pensamentos e idéias, surgem outras formas de comunicação que podem levar a processos comunicacionais completos: emissores e receptores, intermediados por um canal, interagem suas respostas, e dá-se, assim, uma comunicação que vai de encontro à comunicação dos grandes meios, procurando mostrar o outro lado de determinadas informações, aquele que não aparece ou surge deturpado na comunicação oficial. Por isso, acreditamos que é preciso ampliar as formas de comunicação existentes. É preciso que todos tenham direito à antena e não apenas aqueles 22 com grande poder aquisitivo. Marques de Melo4, ao resgatar algumas idéias a respeito do direito à informação e à educação, considera como uma das metas prioritárias, entre outras: (...) democratizar o acesso à propriedade dos meios de comunicação. Neutralizar o monopólio hoje desfrutado pela burguesia, que dispõe do capital necessário à sua implantação e manutenção. Criar mecanismos jurídicos para distribuir as concessões radiofônicas ou as facilidades editoriais com as outras forças atuantes na sociedade: sindicatos, movimentos sociais, sociedades culturais ou científicas. Assim, introduzindo no mercado fatores de competição, alternativas de qualidade, matrizes plurais de percepção ideológica. Entendemos que democratizar a comunicação, introduzindo mais pluralidade aos meios, é fator essencial para uma sociedade mais justa e igualitária. Macbride5 leva em conta vários aspectos ao examinar o conceito de democratização da comunicação, entre os quais define a democratização como “o processo mediante o qual: a) o indivíduo passa a ser um elemento ativo, e não um simples objeto da comunicação; b) aumenta constantemente a variedade de mensagens intercambiadas; c) aumentam também o grau e a qualidade da representação social na comunicação ou na participação”. 4 MELO, José Marques de. Comunicação: direito à informação. São Paulo, Papirus, 1986. p. 81-2. 5 MACBRIDE, Sean. “Um mundo e muitas vozes”. Relatório da Unesco. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas/Unesco, 1982. p. 277. 23 O conceito deixa claro que a democratização dos meios de comunicação não é estática e deve ser vista como um processo contínuo, em que o indivíduo é o protagonista e as mensagens são trocadas o tempo todo, o que o leva a um desenvolvimento crítico muito grande. As palavras-chave são: processo, troca de mensagens (feed-back) e participação. Juntos, esses três elementos tornam uma sociedade mais democrática e consciente de seus direitos. Para a realização desse processo são utilizados vários instrumentos de comunicação, entre os quais se encontram as rádios comunitárias, presentes em vários países da América Latina e que começaram a despontar no Brasil no início desta década. Para aprofundar esse assunto, na segunda parte desta dissertação analisamos o funcionamento de uma rádio comunitária, a Rádio Cidadã, localizada no bairro do Butantã, zona Oeste da cidade de São Paulo, que foi criada com a finalidade de ser uma rádio para atender aos interesses dos moradores do bairro. Essa emissora foi escolhida a partir de uma matéria publicada no suplemento Folhinha, do jornal Folha de S.Paulo, do dia 26 de janeiro de 1996, que divulgava um programa da Rádio Cidadã feito só por crianças. Devido ao fato pouco comum, interessamo-nos em conhecer de perto a experiência desse e de outros programas da emissora. Depois de ter visitado outras rádios ilegais, 24 escolhemos a emissora do Butantã para mostrar como se dá o funcionamento de uma rádio comunitária. Assim, através de entrevistas com os organizadores da emissora, apresentadores de programas e alguns ouvintes, traçamos um perfil da rádio. Além disso, selecionamos os programas que têm como objetivo específico oferecer espaço para a expressão da comunidade: Na boca do povo, Encontro com as comunidades e Cala a boca já morreu (porque criança também tem o que dizer). Os dois primeiros têm como proposta ser o canal de expressão da população local, que por sua vez deve recorrer a esses programas para falar dos assuntos de seu cotidiano. O terceiro programa é todo feito por cerca de dez crianças entre sete e doze anos. Acompanhadas de uma psicopedagoga, as crianças fazem as pautas, realizam entrevistas, apresentam o programa e operam a mesa de som. A intenção é desenvolver as aptidões de cada criança com vistas a formar pessoas críticas de sua realidade. Os três programas foram analisados no mês de abril, a partir da gravação das edições do mês. Como suporte à pesquisa do funcionamento da rádio, entrevistamos 15 moradores da região, entre ouvintes e não-ouvintes da emissora. Nosso objetivo foi levantar dados sobre como se dá a participação da comunidade na emissora, já que esta tem como pressuposto básico ser a rádio da comunidade. 25 Acreditamos que as 15 entrevistas realizadas são suficientes para coletar informações relevantes, porém não definitivas, acerca da visão que os moradores têm da Rádio Cidadã. Essa segunda parte da dissertação foi desenvolvida durante os meses de março e abril, com entrevistas, observações in loco e gravações de programas. Optamos por fazer a pesquisa de campo propositadamente durante os meses citados pela inexistência de fatores estranhos ao funcionamento normal da emissora. Nossa principal preocupação foi mostrar a rádio em seu cotidiano, e para isso precisávamos de um período neutro, em que não houvesse, por exemplo, eleições ou qualquer data comemorativa que pudessem influenciar na coleta de dados para a pesquisa. Uma das principais dificuldades em ambas as etapas da pesquisa foi a escassa bibliografia acadêmica a respeito das rádios. Por isso, foi de fundamental importância a consulta de informações divulgadas em jornais, revistas, fanzines (publicações alternativas) e documentos do movimento das rádios ilegais. Todo esse material forneceu-nos dados interessantes e importantes no tratamento do objeto proposto. 26 Parte I Capítulo 1 Os caminhos do rádio 1.1. A invenção do rádio e seu rápido crescimento No final do século XIX, o italiano Guglielmo Marconi tem a idéia de propagar as ondas hertzianas em transmissões radiofônicas, sem que para isso necessite de fios que liguem os aparelhos de emissão e recepção. Assim nascia um dos maiores meios de comunicação: o rádio. A Inglaterra financia o invento, e a primeira transmissão ocorre em 1896. Um dos primeiros usos do rádio foi na esfera militar. A marinha inglesa, por exemplo, equipou toda sua frota com aparelhos de transmissão. O próprio termo inglês broadcasting vem do contexto militar, sendo uma espécie de jargão usado pela marinha americana que significa as ordens das autoridades que precisavam ser passadas aos seus subordinados, um tipo de “disseminação” de ordens pelo rádio6. O rádio evolui rapidamente e na década de 20 as técnicas de transmissão estão bem aprimoradas. As estações utilizam a modulação em amplitude ou 6 MELIANI, Marisa. Rádios livres; o outro lado da voz do Brasil. São Paulo, USP, 1995. Dissertação de mestrado apresentada à Escola de Comunicação e Artes, p. 27. 27 amplitude modulada (AM). O mundo todo explora o novo veículo de comunicação e o Estado passa a gerenciar a sua utilização e de outros meios de comunicação, seja ele próprio explorando os serviços seja dando concessões aos setores privados para que o façam. 1.2. A chegada do rádio ao Brasil O Brasil foi um dos pioneiros na utilização do rádio. As primeiras notícias a respeito do veículo dão conta que em Recife, no dia 6 de abril de 1919, alguns amadores realizam experiências com um transmissor de rádio importado da França, que logo se transformaria na Rádio Clube de Pernambuco. No entanto, a história oficial diz que, no Brasil, o rádio surgiu no Rio de Janeiro, precisamente no dia 7 de setembro de 1922, quando comemorou-se o centenário da Independência. Mas apenas no ano seguinte, através da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, fundada por Roquete Pinto e Henry Morize, o rádio estaria presente em seletos lares brasileiros. Roquete Pinto, antropólogo, etnólogo e escritor, acreditava que a principal missão do rádio era “transmitir educação e cultura aos brasileiros espalhados por todas as regiões do País”7. No entanto, de início foi um veículo profundamente 7 MOREIRA, Sônia Virginia. O rádio no Brasil. Rio de Janeiro, Rio Fundo Editora, 1991. p. 15. 28 elitista, dirigido por intelectuais e cientistas, com pouco (ou nenhum) alcance entre as classes populares. As nascentes emissoras denominavam-se “clube” ou “sociedade”. Possuíam esses títulos porque nasciam no formato de clubes ou associações, para os quais as pessoas que tinham aparelhos receptores em casa pagavam uma mensalidade − até então os aparelhos eram muito caros, por isso poucos tinham acesso a eles. Cabia a esses ouvintes também a função de programadores musicais: emprestavam seus discos de ópera às rádios para que estas programassem suas atrações musicais8. Além de contar com a ajuda do ouvinte, as primeiras emissoras recebiam doações de entidades públicas ou privadas e, de acordo com Gisela Ortriwano9, raramente havia anúncios pagos, proibidos por lei na época. A partir da década de 30, aos poucos a população ia podendo contar com um aparelho de rádio em casa. Mas o ideal educativo já havia sido posto de lado, pois o veículo, apesar da sua crescente popularização, passa a enfatizar o aspecto comercial em detrimento do educacional. Para isso, contribuem: a autorização oficial para veiculação de anúncios publicitários (chamados de “reclames”), em 8 Idem, ibidem, p. 16. 9 A informação no rádio; os grupos de poder e a determinação dos conteúdos. São Paulo, Summus, 1985. p. 14. 29 1932; a adoção do modelo norte-americano de radiodifusão e a distribuição de concessões de canais a particulares10. Segundo Gisela Ortriwano11, a expansão da radiodifusão é favorecida pelo contexto político-econômico da época: o comércio e a indústria ganhavam força e precisavam introduzir seus produtos no mercado interno, através do incentivo ao consumo. Aliado a isso, o poder Executivo estava fortemente centralizado nas mãos de Getúlio Vargas, que foi o primeiro governante brasileiro a perceber as potencialidades políticas do rádio12. A junção desses fatores contribuiu para a fase seguinte do rádio brasileiro, na década de 40, a sua “época de ouro”, marcada pela grande audiência, pelos anunciantes estrangeiros, pelo surgimento das primeiras radionovelas e pela afirmação do radiojornalismo, com a criação dos históricos Repórter Esso, Grande jornal falado Tupi e Matutino Tupi. No entanto, com a chegada da televisão nos anos 50, o rádio vai perdendo aos poucos o seu reinado, pois agora conta com a concorrência da imagem. “Quando surge, ela (a televisão) vai buscar no rádio seus primeiros profissionais, imita seus quadros e carrega com ela a publicidade. Para enfrentar 10 MOREIRA, Sônia Virginia, op. cit., p. 23. 11 Op. cit., pp. 15-16. 12 Nos regimes autoritários o rádio é usado como um importante instrumento de propaganda política, mobilizando a população a favor ou contra determinado regime. Goebbels, Mussolini, Roosevelt e outros encontraram no veículo uma forte arma doutrinária. 30 a concorrência com a televisão, o rádio precisava procurar uma nova linguagem, mais econômica.”13 Sob essa nova realidade, o rádio vai-se adaptando, encontrando outras fórmulas de sobrevivência. Saem os cantores do rádio, entram os discos e fitas gravadas; saem as novelas, entram as notícias; saem os programas ao vivo de auditório, entram os serviços de utilidade pública. Das produções caras, com multidões de contratados, o rádio parte agora para uma comunicação ágil, noticiosa e de serviços. Aliado a outros avanços tecnológicos, o transistor deu ao rádio sua principal arma de faturamento: é possível ouvir rádio a qualquer hora e em qualquer lugar, não precisando mais ligá-lo às tomadas.14 É assim que nas décadas seguintes, o rádio encontra um outro caminho e consegue manter-se como importante meio de comunicação de massa, como vimos, explorando mais a música, o radiojornalismo e os serviços de utilidade pública, um modelo adotado principalmente pelos profissionais do rádio AM. O rádio em freqüência modulada − FM A freqüência modulada (FM) começou a ser utilizada no Brasil na década de 50, como um link que ligava o estúdio e o transmissor de emissoras AM. A 13 Idem, ibidem, p. 21. 14 Idem, ibidem, p. 22. 31 FM também era utilizada para fornecer um sistema de som fechado, com música ambiente em indústrias, escritórios e hospitais15. Segundo Nélia Del Bianco16, três fatores contribuíram para a inexpressividade do rádio FM até a década de 70: os empresários de rádio achavam desvantajoso investir numa freqüência de pouco alcance, os aparelhos receptores que captavam a AM e a FM eram importados e muito caros e o estilo da programação das emissoras FM era pouco atraente, indicado apenas para a venda do serviço a hospitais e escritórios. No entanto, a partir de 1973 o governo militar decide incentivar a proliferação de rádios FM, como forma de expandir o sistema de comunicação. Ao estabelecer uma política de ampliação do setor de radiodifusão através de sua reorganização, a começar pelo recadastramento e exame das condições técnicas de cada emissora, o governo militar decidiu que era o momento de investir na distribuição de concessões de canais FM.17 Ainda de acordo com Nélia Del Bianco, a reorganização do serviço de radiodifusão era urgente e necessária, pois várias emissoras funcionavam sem permissão, enquanto outras operavam com problemas técnicos de transmissão fora do canal. 15 BIANCO, Nélia Del. “FM no Brasil 1970-79: crescimento incentivado pelo regime militar”. Revista Comunicação e Sociedade, no 20, dez. 1993, p. 138. 16 Op. cit., pp. 138-139. 17 Idem, ibidem, p. 140. 32 Com isso, o governo atendia também aos objetivos políticos de “integrar e desenvolver o país” e “resguardar o território nacional e os valores culturais”, através do combate às emissoras estrangeiras que irradiavam programas para o Brasil, principalmente as comunistas. Nos anos seguintes, a FM tornar-se-ia também instrumento de barganha política, usada como moeda entre o governo e seus protegidos políticos. O fortalecimento do setor contou ainda com a qualidade sonora e com o novo estilo da programação e locução, fazendo da rádio FM a preferida do público jovem, o que chamou a atenção dos anunciantes, que voltaram a investir no rádio, cuja consolidação definitiva ocorre na década de 80. Paralela à história da radiodifusão oficial, encontramos a história da radiodifusão não-oficial. Uma história que aos poucos começa a ser documentada e tida como importante dentro do quadro geral da comunicação social, como veremos nos tópicos seguintes. 1.3. Nos barcos e nos porões: a pirataria está no ar As rádios piratas começaram sua trajetória na Inglaterra, no final da década de 50, com o claro objetivo de quebrar o monopólio da British Broadcasting Corporation (BBC), que controla o serviço de telecomunicações do país. 33 Essas rádios tinham seus transmissores dentro de barcos em alto mar, a uma distância em que a jurisdição inglesa podia ou não intervir18. Eram empresários tentando impor seus produtos através da publicidade e minorias de tendências ecológicas, musicais, contraculturais, esotéricas etc. testando seu próprio meio de expressão19. Durante a emissão radiofônica costumava-se erguer uma bandeira negra como faziam os piratas do mar, daí a origem do nome “rádio pirata”. Depois passou-se a transmitir também de dentro de sótãos, quartos, porões, sempre na tentativa de burlar a fiscalização. O financiamento para as rádios piratas dos empresários vinha de empresas norte-americanas, entre as quais a Ford, a Lever e a American Tobacco. “Essas multinacionais tinham interesses comerciais no mercado europeu e precisavam fazer seus informes publicitários perfurarem o edifício do monopólio.”20 Perfurar o edifício do monopólio da BBC não foi difícil, já que na primeira metade dos anos 60, o rock- and- roll era a música preferida do público jovem, mas quem quisesse ouvir pelo rádio os grupos ingleses Rolling Stones, Beatles ou The Who “ficaria a ver navios” e teria de contentar-se em escutar apenas músicas clássicas, juntamente com uma programação pouco atraente da 18 Arlindo, Machado, Caio Magri e Marcelo Masagão, no livro Rádios livres, a reforma agrária no ar, p. 61, explicam que as rádios que emitem a uma distância que foge ao poder da jurisdição de determinado país, ao qual direcionam suas antenas, são chamadas de “rádios periféricas”: “Teoricamente, elas emitem do exterior, não estando portanto subordinadas à lei do monopólio”. 19 CAPARELLI, Sérgio. Comunicação de massa sem massa. São Paulo, Summus, 1986. p. 50. 20 MACHADO, Arlindo et alii, op. cit., p. 60. 34 BBC. E é desse espaço que as rádios piratas se aproveitam. Coube a elas apresentar as novidades musicais, e nesse contexto surge o disc-jóquei — uma criação tipicamente norte-americana, que hoje é representado pela pessoa que fala nas FMs de maneira pasteurizada o tempo todo. Assim, as piratas alcançaram sucesso em pouquíssimo tempo, principalmente junto ao público jovem. Rádio Merkur Oficialmente, a primeira pirata foi a Rádio Merkur, que estreou em julho de 1958, emitindo na costa de Copenhague, na Dinamarca. O sucesso financeiro dessas rádios era grande: um mês depois de ter estreado, a Rádio Merkur já contava com verbas publicitárias de 150 mil dólares21. Dessa forma, a publicidade vem a ser a principal peça de engrenagem das rádios piratas. De acordo com Passeti, “a noção de pirataria inclui toda e qualquer transmissão ilegal que envolve veiculação de publicidade, cujo objetivo é o de competir no mercado, seja transmitindo do próprio território ou do exterior” 22. Rádio Caroline 21 Idem, ibidem, p. 60. 22 “A política no ar; rádios livres e estatização”. In: CONGRESSO ESTADUAL DOS SOCIÓLOGOS DO ESTADO DE SÃO PAULO. 4., São Paulo, 1987. p. 04. 35 A pirata mais popular em terras inglesas é a Rádio Caroline, nome que homenageou a filha do primeiro presidente católico dos Estados Unidos, John Kennedy, de origem irlandesa como o criador da rádio, Roanan O’Rahilly. Em 1961, O’Rahilly parte de Dublin (Irlanda) para Londres (Inglaterra), o cenário da música pop do momento. O rapaz tinha 21 anos e era agente de jovens artistas. Sua intenção era divulgar o trabalho de seus contratados nas rádios londrinas. Mas O’Rahilly não conseguiu o que queria, pois as rádios não abriam as portas para quem não estava inserido no cartel das gravadoras da época. Assim o irlandês decidiu criar sua própria rádio. A Rádio Caroline fez sua estréia no domingo de Páscoa de 1964, quando zarpa da Irlanda para o mar da Inglaterra, dirigindo sua programação para a GrãBretanha, que passa a ter 24 horas de música pop sem parar. Mas em 1966, por ser considerada ilegal pelo governo inglês, precisou deixar as águas britânicas, para instalar-se definitivamente no mar do Norte, onde permanece até hoje. Entre os anos de 1964 e 1968, a rádio chega a ter 28 milhões de ouvintes23. Apesar do sucesso, as rádios piratas em terras inglesas tiveram que enfrentar a perseguição da polícia e das autoridades, que afirmavam que as emissões piratas estavam interferindo nos serviços de emergência da polícia, dos bombeiros e até mesmo de ambulâncias. 36 A pirataria força o governo a expandir as faixas de transmissão, aumentando o número de emissoras independentes e a BBC a criar o seu rádio especializado em rock and roll. Há autorização para o funcionamento de 20 estações de rádio especializadas nos interesses das comunidades étnicas ou de minorias políticas.24 Rádios piratas em terras tupiniquins No início das experiências com as rádios ilegais no Brasil, as próprias pessoas que colocavam um transmissor no ar intitulavam seus experimentos de piratas. A imprensa também sempre tratou a questão como prática de pirataria, sem se preocupar em estabelecer as diferenças básicas. Na verdade, o nome “pirata” até serviu de argumento para definir o perfil de algumas rádios livres: Capitão Gancho, Corsário, Ladrão do Mar, Mobidique, Pirata I etc., que tinham como uma das preocupações fundamentais fazer uma rádio diferente dos padrões institucionais e por isso se autodenominavam de rádios livres, como veremos adiante. No entanto, com o avanço do movimento das rádios ilegais no Brasil, o nome “pirata” passa a ser motivo de preocupação, uma vez que remete ao sentido pejorativo da palavra: ‘ladrão’. Assim, ter uma rádio pirata é roubar algo de alguém. Explicitando a questão, o pirata do rádio estaria então roubando as 23 MACHADO, Arlindo et alii, op. cit., p. 61. 24 MELIANI, Marisa, op. cit., pp. 47-48. 37 ondas hertzianas que permitem a emissão radiofônica daqueles que possuem concessão governamental para operar o veículo. Esse é o raciocínio de quem utiliza o termo “rádio pirata” para qualificar as emissões não-legalizadas, nãoconcessionadas. Em resposta a isso, a Rádio Xilik25 lança em meados de 1985 o slogan: “Piratas são eles. Nós não estamos atrás do ouro”, com o objetivo de deixar bem claro que as verdadeiras rádios piratas são aquelas preocupadas única e exclusivamente com o lucro. E nesse caso estão incluídas tanto as rádios oficiais, de gênero comercial, quanto algumas rádios ilegais, também de gênero comercial, como veremos no decorrer desta dissertação. Para Luci Martins, presidente da Associação Paulista dos Proponentes de Emissoras de Radiodifusão Local-Comunitária (Aperloc), uma rádio é pirata se possui um dono, é comercial, não respeita os limites de potência determinados pelos movimentos de rádios comunitárias e além disso não conta com a participação da comunidade em sua gestão26. Poderíamos acrescentar, também que os piratas não se preocupam em colocar no ar uma programação diferenciada das rádios oficiais, repetindo modelos desgastados e não trazendo nada de novo ao público ouvinte. Se as diferenças fossem esclarecidas, 25 Os criadores dessa rádio, em união com o professor Arlindo Machado, da ECA-USP, possuem o mérito de terem lançado no Brasil, em 1986, o único livro a respeito do assunto: Rádios livres, a reforma agrária no ar. Voltaremos a falar da Rádio Xilik. 38 principalmente pela imprensa, é possível que a confusão entre os termos deixasse de existir. 1.4. Rádios clandestinas e sindicais: lutas políticas Fazer uso do rádio para organizar politicamente uma população, colocando no ar contra-informações em período de guerra é um dos principais objetivos de uma rádio clandestina. Na rádio sindical, o apelo maior é em torno de reivindicações de trabalhadores, que utilizam o transmissor para divulgar suas informações de classe, criando assim um elo mais estreito entre o sindicato e o empregado. Geralmente, a rádio clandestina funciona em ondas curtas, uma das faixas utilizadas na radiodifusão, com especiais características de propagação, ideais para transmissões a longa distância. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45) houve um maciço uso dessas rádios, que transmitiam para toda a Europa. Um dos que mais se serviu de sua utilização foi Adolf Hitler, que tinha a Inglaterra como principal alvo. O grupo encarregado de veicular a propaganda nazista – Sendergruppe Concordia (grupo de transmissores disfarçados Concordia) – montou quatro transmissores 26 Afirmação feita durante uma entrevista de Luci Martins ao programa Opinião nacional, veiculado pela TV Cultura de São Paulo, no dia 13 de dezembro. 39 direcionados aos ingleses. Cada uma dessas emissoras dirigia-se a um determinado público, que ia das classes média e alta até os mais religiosos. Tentavam disfarçar-se de rádios inglesas atacando o governo e a política desenvolvida por Winston Churchill. A Inglaterra contra-atacou com cinco emissoras dirigidas à Alemanha, também tentando passar-se por alemãs. Luiz Fernando Santoro nos dá outro exemplo do uso do rádio como arma política durante a Segunda Guerra: Na França, foi um importante instrumento de ligação entre os combatentes do interior e os líderes que estavam fora do país, através da veiculação de informações, geralmente cifradas, que orientavam sabotagens, desembarques, etc. A BBC de Londres teve grande importância na reconstituição de uma consciência nacional francesa, que estava debilitada pelas derrotas e pela propaganda nazista, com informes e campanhas antinazistas, fazendo de sua escuta nos países ocupados um verdadeiro ato patriótico. 27 Em outro ponto da Europa, ainda em plena Segunda Guerra Mundial, no dia 22 de julho de 1941, a Rádio Espanha Independente (REI), ou Rádio Pirenaica, começava suas emissões clandestinas contra o regime franquista espanhol. Essas emissões duraram mais de 35 anos, terminando oficialmente no dia 14 de julho de 1977, quando o franquismo já havia acabado. 27 “Rádios livres: o uso popular da tecnologia”. Revista Comunicação e Sociedade, no 6, 1981. p. 98. 40 Aquí Radio España Independiente, estación pirenaica, la única emisora española sin censura de Franco.28 De acordo com Marcel Plans29, a REI era a única voz de oposição ao governo de Franco. Fundada em Moscou, quando os dirigentes soviéticos decidem montar uma série de emissoras “nacionais” para combater o fascismo, a REI só adquire o caráter de rádio independente quando a maioria das emissoras criadas pelos soviéticos dissolve-se, pois em muitos países europeus (a Espanha era exceção) voltava-se a falar em democracia, e o Partido Comunista não era mais ilegal. Em 1955, a rádio é deslocada para Bucareste, na Romênia, onde permanece até o fim. Algumas experiências rebeldes na América Latina Na América Latina, entre 1958 e 1959, surge outra famosa rádio de guerra: a Rádio Rebelde, idealizada por “Che” Guevara, na luta a favor da Revolução Cubana. De acordo com Machado30, vários transmissores formavam a Rádio Rebelde. “Em cada território tomado, um novo emissor era montado, sempre em conexão com o quartel-general.” Com Fidel Castro no poder, a 28 Apud PLANS, Marcel, “Radio España Independiente, la ‘Pirenaica’, entre el mito y la propaganda”. In: BASSETS, Lluís (ed.). De las ondas rojas a las radios libres. Barcelona, Ed. Gustavo Gili, 1981, p. 130. 29 Op. cit., p. 119. 30 Op. cit., p. 98. 41 situação se inverteu: hoje a Rádio Rebelde é a oficial e as emissoras clandestinas dirigidas a Cuba falam contra o regime castrista. Para Claude Collin, o papel primordial de uma rádio de um movimento de libertação é “elaborar contra-informação eficaz, desmontar as mentiras das rádios oficiais (sejam elas da classe no poder ou da potência imperialista) e fornecer os dados verdadeiros sobre a situação militar, denunciando os assassinatos cometidos pelas forças de repressão”31. Da mesma forma que a Rádio Rebelde atuou na Revolução Cubana, outras rádios exerceram o mesmo papel em outras guerrilhas. É o caso da Rádio Venceremos, de El Salvador, criada durante a guerra civil de 1981, e da Rádio Sandino, da Nicarágua, criada durante a luta sandinista pelo poder. “¿Pero, que pasó? Los trabajadores se pararon como un solo hombre y dijeron: mientras no nos devuelvan las radios, no entramos a trabajar. Y se declararon en huelga.”32 Do lado sindical, a mais impressionante história ocorreu na Bolívia, onde, em 1963, havia 23 transmissores operando, os quais cobriam 20% do país, todos mantidos por trabalhadores mineiros, através de descontos quinzenais em seus 31 Apud MACHADO, Arlindo et alii, op. cit. p. 97. 32 CHUNGARA, Domitilia, apud MACHADO, Arlindo et alii, op. cit., p. 111. 42 salários. A criação dessas rádios está ligada à necessidade de comunicação entre os mineiros, que lutavam por “melhores salários e condições de trabalho”33. O governo boliviano não vê as rádios sindicais com bons olhos e passa a reprimi-las a partir de 1965, com a invasão de tropas militares às minas, massacre dos trabalhadores e destruição das rádios34. Mas, apesar dessa primeira ofensiva do governo, e de tantas outras que se seguiram, as rádios dos mineiros bolivianos continuaram a sobreviver, contando com o apoio popular. Em 1980, o general Garcia Meza dava um golpe militar, assassinando personalidades bolivianas e prendendo dirigentes sindicais. A reação das rádios sindicais foi histórica: oito emissoras entraram em cadeia nacional, ao vivo, conversando entre si. “A população trabalhadora inteira estava sintonizada com as rádios, pois eram a única fonte segura de informação com que podiam contar naquele momento.”35 A resistência era possível. 1.5. O movimento de contestação das rádios livres As rádios livres podem ser consideradas como um dos frutos amadurecidos do Maio de 68, movimento contestatório dos estudantes e 33 MELIANI, Marisa, op. cit., p. 31. 34 MACHADO, Arlindo et alii, op. cit., p. 106. 35 Idem, ibidem, p. 107. 43 operários franceses, logo espalhado por toda a Europa e que lança as sementes para o surgimento das primeiras rádios livres. No entanto, é na década de 70 que as rádios livres têm seu melhor momento, colocando em xeque o conteúdo das rádios oficiais e conseguindo dar voz a vários setores sociais, que até então não possuíam um canal legítimo de expressão. As rádios livres representam, antes de qualquer outra coisa, uma utopia concreta, suscetível de ajudar os movimentos de emancipação desses países a se reinventarem. Trata-se de um instrumento de experimentação de novas modalidades de democracia, uma democracia que seja capaz não apenas de tolerar a expressão das singularidades sociais e individuais, mas também de encorajar sua expressão, de lhes dar a devida importância no campo social global.36 O movimento de rádios livres européias tem entre suas preocupações fundamentais dar voz a todos aqueles que não podem se expressar nos grandes meios de comunicação. A intenção é fazer com que o rádio seja um canal democrático de comunicação, no qual esta se realize num processo dialógico, numa profunda interação com o ouvinte, que deixa de ser um consumidor passivo, para participar de forma ativa da troca de informações. 36 GUATTARi, Felix. Prefácio. In: MACHADO et alii, op.cit. 44 Na Itália, por exemplo, isso se deu na prática através do uso do telefone – “As rádios independentes têm lançado a figura do correspondente com fichas telefônicas. É uma pessoa qualquer, informalmente vinculada à rádio, que entra em um bar, pede dez fichas e informa direto à rádio o que está vendo.”37 –, das portas literalmente abertas da emissora, para receber quem quer que seja para dar ao vivo seu depoimento, ou da veiculação de fitas gravadas pelos ouvintes: As emissoras independentes têm substituído o italiano uniforme da rádio estatal pelos acentos locais. Os ouvintes estão surpresos. Locutores que falam do mesmo modo que os habitantes de seu povo ou de sua cidade destroem a sensação de que a rádio é uma espécie de voz oficial (...). Os acontecimentos são descritos por quem acaba de vivê-los (...) O ouvinte tem a sensação clara de que alguém chegou correndo no estúdio da emissora para relatar o que acaba de ver. Existe a impressão de uma falta total de censura, impressão porque esse tipo de colaboração depende da orientação ideológica da emissora.38 Da discussão da TV a cabo surgem as rádios livres na Itália O movimento de rádios livres instaura-se primeiramente na Itália. Tudo começa na década de 70 com uma tentativa de lá instalar as televisões a cabo. Questionava-se o poder do Estado na gestão dessas TVs, perguntando-se se o cabo estaria ao alcance do monopólio estatal exercido pela Radio-Audizione 37 ECO, Umberto. “Una nueva era en la libertad de expresión”. In: BASSETS, Lluís (ed.), op. cit., p. 214. 38 ECO, Umberto, op. cit., p. 220. 45 Italiana (RAI). Politicamente, o poder na Itália estava representado por uma aliança entre a Democracia Cristã e o Partido Comunista Italiano. As TVs a cabo acabaram não sendo instaladas naquela década, mas, em compensação, todas aquelas indagações a respeito da legitimidade do Estado na gestão das telecomunicações tornaram-se públicas e foram a gota que faltava para o surgimento das primeiras rádios livres. As rádios Milano Internazionale e Emmanuel de Ancona são tidas como algumas das pioneiras do movimento de rádios livres italiano. Surgiram, como muitas, na primavera de 1975, mas, como muitas também, não eram donas de projetos alternativos em suas gestões e sim concentravam no rádio a esperança de lucro certo e imediato. Por outro lado, também surgiram as rádios que procuravam fazer valer o movimento de rádios livres, como a Canale 96, de Milão, a Milano Centrale, a Cittá Futura e a Rádio Bra Onde Rosse, autênticas representantes de uma nova maneira de utilizar o rádio. De acordo com Machado39, essas emissoras foram algumas das que melhor personificaram a gestão alternativa da informação e o exercício direto da democracia, através de sua ligação com movimentos sociais contestatórios. 39 Op. cit., p. 63. 46 Como se vê, foi grande a diversidade das rádios livres italianas. Lado a lado, no dial, encontravam-se as emissoras comerciais, com seus anúncios, e as rádios politizadas, que, por sua vez, também eram de várias tendências: havia rádios de extrema esquerda, da nova esquerda, comunistas, socialistas, dos sindicatos e as rádios do lado oposto, como a emissora Comunhão e Liberação, pertencente ao movimento direitista católico. Com tantas rádios, umas sobrepondo-se às outras, as autoridades italianas não viram outra saída a não ser regulamentá-las. Para se ter uma idéia, no final de 1975 havia quase 100 rádios livres espalhadas pela Itália. No ano seguinte, através da sentença 202 do Tribunal Constitucional, as rádios foram liberadas para emitir, desde que tivessem competência técnica e econômica. Houve, então, uma corrida vertiginosa para se obter uma faixa de freqüência modulada ou de TV, tanto que, em 1978, contabilizavam-se nada menos que 2275 rádios locais e 503 TVs, das quais a maioria apresentava programação comercial, sem a preocupação de fazer um trabalho diferenciado. Com isso as rádios mais alternativas do movimento saíram perdendo. Alice é il Diavolo!40 40 Título do livro escrito pelo Colletivo A/Traverso, grupo criador da Rádio Alice. 47 Não se pode falar do movimento de rádios livres italiano sem que se passe pela história da Rádio Alice, talvez a rádio mais famosa de todo o movimento. Ao mesmo tempo que conseguiu criar uma nova linguagem no rádio, também foi uma das que mais obtiveram popularidade e participação dos ouvintes, no período em que esteve no ar, de janeiro de 1976 a março de 1977, na cidade de Bolonha. A saga da Rádio Alice só pode ser compreendida a partir do momento que se conhece a realidade italiana após 1968, quando todas as reivindicações estudantis e operárias converteram-se, nos anos 70, em vários segmentos específicos de lutas, as chamadas “autonomias”, palavra genérica para designar na Itália os núcleos dotados de singularidades. Assim, há um núcleo que luta por melhores condições de vida no bairro, outro cujo interesse é a juventude, outro formado apenas por mulheres, outro que cuida do meio ambiente, outro de minorias sexuais, raciais etc. Foi no seio de um desses grupos, o Colletivo A/Traverso, que nasceu a Rádio Alice. Já na sua primeira emissão, avisava aos mais desatentos: Rádio Alice emite: música, notícias, jardins em flor, conversas que não vêm ao caso, inventos, descobrimentos, receitas, horóscopos, filtros 48 mágicos, amor, partes de guerra, fotografias, mensagens, massagens e mentiras.41 As citações preferidas da rádio incluíam, entre outros, Marquês de Sade, Maiakovski, Mandrake (o herói de histórias em quadrinhos), Artaud e até mesmo um certo Guattareuze, ou seja, um herói cujo nome é a mescla dos nomes dos filósofos Guattari e Deleuze. O mosaico da programação da emissora permanecia nas músicas. Numa mesma hora era possível ouvir “Satisfaction”, dos Rollings Stones, marchinhas regionais e “O Barbeiro de Sevilha”, de Rossini. Quanto ao ouvinte, este era provocado a todo instante: Alice transmite de tudo aquilo que você queria e aquilo que você não queria ouvir, aquilo que você pensou e aquilo que você pensou em pensar, especialmente se você vier até aqui dizê-lo42. Por tudo isso, a Rádio Alice teve sérios problemas com o prefeito comunista de Bolonha, que a perseguiu sem tréguas, até que conseguiu fechá-la de vez e prender alguns de seus animadores. O estopim deu-se nos conflitos de rua que ocorreram na cidade em 1977, principalmente nos dias 11, 12 e 13 de março, quando Bolonha passava por uma verdadeira guerrilha urbana. Alice transmitia os conflitos praticamente ao vivo, com intervenções de vários ouvintes via telefone, que informavam sobre a luta entre os policiais e os 41 ECO, Umberto, op. cit., p. 223. 42 CARRIERi, André. “Alice”. Folha de S. Paulo, 12 mar. 1987. Caderno A-41. 49 estudantes. Além de informar onde estavam ocorrendo os confrontos, a rádio incitava os moradores de Bolonha a reagir contra a repressão. O prefeito considerou essas intervenções verdadeiras ameaças à ordem e decretou o fechamento da rádio, que foi transmitido até o último minuto, quando os policiais invadem os estúdios da Alice e calam sua voz: – Me dá um disco, que já pomos um pouco de música, “porco dio”... (Telefone) Alice... o telefone aqui toca direto, toca direto mesmo. “Ecco”, um Beethoven...zzzz... se você gosta, ótimo, do contrário, que se dane. (Telefone) não, Calimero foi embora. “Dio porco”, que sacanagem, que sacanagem. Não escuta? Estamos com a polícia que está batendo (toca um piano, poucas notas), um pouco de música de fundo. Estamos esperando os advogados (o som do piano até desaparecer). Não, não sei nem se vou dormir esta noite. Volto a dizer que estamos esperando os advogados e a polícia começou a bater outra vez na porta, continua gritando para abrir. Cuidado, fica agachado. – Abram a porta! – Os advogados estão chegando, mais cinco minutos e eles já estão vindo (gritos incompreensíveis)... zzzz... (gritos) entraram, entraram, estamos com as mãos ao alto, entraram, estamos com as mãos ao alto. “Ecco”, estão arrancando, estão arrancando o microfone. – Mãos ao alto. – Estamos com as mãos ao alto. Estão arrancando o microfone, olha, este é um local... o mandato de... (silêncio mortal).43 As rádios livres na França 43 CARRIERI, André, op. cit. 50 Apesar de não ter sido a primeira rádio livre em território francês44, a Rádio Verte de Paris possui o mérito de ter sido a rádio que mais estardalhaço causou junto à opinião pública. A sua história entrou para o rol das clássicas das rádios livres. Era 1977 e a França estava sob o governo do conservador Giscard D’Estaing. Também era período de eleições municipais, e os principais nomes da oposição ao governo participavam de uma mesa-redonda televisionada pela emissora estatal TF1. Uma das personalidades foi o líder do Partido Verde francês, Brice Lalonde. Durante o debate, Lalonde retira do bolso um pequeno rádio, sintonizando-o nos 92 megaHertz da Rádio Verte, uma autêntica rádio livre, de caráter ecológico. A façanha obteve uma audiência de milhões de telespectadores e logo o assunto foi a principal notícia na imprensa durante semanas. A investida bem planejada e histórica de Brice Lalonde foi um trauma para os conservadores, o poder vigente. O monopólio das comunicações acabou por sofrer o primeiro ultraje em público. Foi um estrondoso início. Em uma noite, Lalonde causou mais impacto para as rádios livres do que centenas de debates isolados.”45 44 A primeira rádio livre francesa foi criada em 1969 pelos universitários da cidade de Lille e chamava-se Rádio Campus. 45 MARINOVIC, Ivan. “Piratas de carteirinha: a deglutição oficial da nova onda”. Humanidades, no 19, 1988. p. 27. 51 O governo não se conformava com o espaço obtido pelas rádios livres, que a cada dia surgiam em maior número, e não tardou a reprimi-las, apesar da baixa audiência alcançada, uma vez que poucas pessoas conseguiam sintonizálas, devido à acirrada perseguição que sofriam (uma das formas de boicotar a transmissão era a utilização de um forte zumbido — brouillage — em cima da emissora, o que forçava as rádios a mudar constantemente de freqüência). O interesse do governo francês em não deixar que as rádios livres se proliferassem pelo território explica-se pela própria política na área da radiodifusão: centralizadora e monopolizadora ao extremo. A gestão do rádio e da televisão estava nas mãos do governo, que cobrava um imposto anual (redevances) dos proprietários de aparelhos televisivos para manter tanto as transmissões de TV como as de rádio, já que nessa época era proibido o uso da publicidade. No entanto, apesar do monopólio acirrado, havia espaços para emissão radiofônica, com muita publicidade. Enquanto durou a centralização do governo no rádio e na televisão, a França se viu invadida por um arsenal de emissoras periféricas, que transmitiam para o país sem que estivessem dentro do seu território. A política de comunicação centralizadora do governo, as rádios periféricas e o aparecimento da Rádio Fil-Bleu, colocada no ar em 1977 na 52 cidade de Montpellier (sul da França) por um advogado partidário do governo, que descobriu algumas falhas na jurisdição da comunicação, deram o aval para o surgimento de mais e mais rádios livres. Em 1979, a Assembléia Nacional, preocupada com a rápida proliferação das rádios “piratas”, resolve designar uma comissão parlamentar para estudar a independência e o pluralismo da informação pública no estatuto do monopólio. Após seis meses de trabalho a comissão estimou, após ouvir 97 pessoas, que o serviço de comunicação radiofônica não era suficiente, além de que a independência e o pluralismo da informação não estavam assegurados. O monopólio da radiodifusão sofreu mais um duro golpe.”46 O Partido Socialista não tarda a colocar no ar sua própria emissora, engajando-se de fato na luta. Em junho de 1979, nasce a Rádio Rispote, que teve como primeiro secretário o futuro presidente da República, François Mitterrand, responsável pela liberação das ondas francesas. A Confederation Général du Travail (CGT) também coloca no ar suas emissoras, chamadas de “rádios de luta”, sempre em locais de intensas reivindicações trabalhistas. 1981: a vitória socialista de Mitterrand No dia 21 de maio de 1981, Mitterrand vencia as eleições presidenciais na França. Não demorou muito para que os adeptos das rádios livres invadissem o dial, que se tornou pequeno para tantas rádios, gerando uma situação caótica. 53 Havia de tudo: rádios roqueiras, de jazz, de anarquistas, de homossexuais, de seitas, de emigrantes, ou seja, uma diversidade sem igual, ou “um verdadeiro farwest: o primeiro a chegar reivindica o território”.47 O Partido Socialista, cumprindo seu programa de governo, permitiu a transmissão das chamadas “rádios locais”, com as seguintes condições: no máximo 30 km de zona de escuta, publicidade limitada a cinco minutos por hora, as rádios precisariam ter um estatuto de associação, sem fins lucrativos e sem a criação de redes de transmissão, deveriam produzir 60% dos seus programas e estavam sujeitas à lei de imprensa. A situação das rádios livres francesas ainda demorou a ficar estabilizada, já que o governo queria evitar o uso da publicidade, para não dar abertura ao grande capital, chegando até a criar um fundo de ajuda às pequenas rádios. O ministro das Comunicações, Georges Filloud, conseguiu se manter inflexível até 1984, quando finalmente permitiu o uso da publicidade. O que se segue daí é a progressiva perda de qualidade das rádios mais criativas do movimento e a instalação de rádios estritamente comerciais. 46 Idem, ibidem, p. 28. 47 Idem ibidem, p. 29. 54 Capítulo 2 As rádios ilegais no Brasil 2.1. As primeiras ondas livres no Brasil As rádios ilegais no Brasil possuem quatro momentos distintos em sua história. Na primeira fase, as rádios não-oficiais são colocadas no ar quase por ingenuidade; os organizadores da experiência nem sabiam da ilegalidade do ato. Depois, elas surgem em Sorocaba, interior do estado de São Paulo, como experimento de jovens da área eletrônica e possuem um caráter de hobby. O terceiro momento é mais politizado; marca o surgimento das rádios livres, que têm como pressuposto básico democratizar o acesso a antenas; paralelamente às rádios livres começam a surgir as emissoras de tendência religiosa. Por fim, no quarto momento, que presenciamos hoje, são as rádios comunitárias que estão em cena, organizando-se para serem regulamentadas. O primeiro momento das rádios ilegais brasileiras é composto de dois casos isolados de pessoas que praticaram a radiodifusão sem permissão oficial, pelo simples prazer de fazer rádio e sem nenhuma intenção subversiva no ato. De acordo com Marisa Meliani48, em 1931 o publicitário Rodolfo Lima Martensen, com a ajuda de um amigo, colocou no ar, em Rio Grande de São 48 Op. cit., pp. 104-105. 55 Pedro (RS) a primeira emissora de rádio da cidade. A iniciativa fez tanto sucesso que acabou sendo oficializada, transformando-se na Rádio Sociedade do Rio Grande do Sul. O segundo registro é de 1971, em Vitória (ES). Vivia-se em plena ditadura militar e, por isso, a história não teve um final tão feliz quanto à do publicitário gaúcho. Tudo começou quando Eduardo Luiz Ferreira Silva, de 16 anos, apaixonado por eletrônica, desmonta um aparelho de rádio, remontando-o em seguida em forma de um transmissor à válvula de 15 watts. Surge a Rádio Paranóica. Eduardo põe a rádio no ar com a ajuda de seu irmão. As emissões atingem as imediações do local em que estava instalado o transmissor (no banheiro do bar do pai dos rapazes, que nem sabia da existência da rádio dos filhos). Eduardo decide aumentar a capacidade do transmissor para 300 watts, e assim consegue atingir toda a cidade, concorrendo com as duas emissoras oficiais de Vitória, tornando a Paranóica muito famosa. A gente tocava música, metia o pau nos comerciantes que roubavam no peso, reclamava da prefeitura... A gente era tão bobo, tão inocente com o que fazia, que até dava o telefone do bar. Não sabia que era proibido.49 49 MELIANI, Marisa, op. cit., p. 105. 56 Mas os dois irmãos foram denunciados, acusados de subversão, quando a rádio completava apenas seis dias de emissão. Eduardo teve a casa toda vasculhada e quebrada, e o bar foi destruído. Ele foi preso junto com seu pai (o irmão conseguiu fugir), mas foi logo liberado. Seu pai, semi-analfabeto, só conseguiu ser solto depois de três dias. Em 1994, Eduardo conseguiu ter acesso ao seu processo e descobriu que a sua rádio foi acusada, por um famoso jornalista de Vitória, de ser “uma armação dos comunistas para desestabilizar o regime”. Sorocaba (SP), verão de 1982 Consideradas como as primeiras rádios livres brasileiras, as emissoras sorocabanas foram aos poucos chamando a atenção na cidade durante a primeira metade dos anos 80, mais como hobby do que como um movimento nascido de causas político-contestatórias. O nível de industrialização de Sorocaba, os inúmeros técnicos em eletrônica e a falta de locais de diversão para os jovens de baixa renda foram motivos suficientes para o avanço das rádios livres no local. Alguns adolescentes, cansados de ouvir a programação pasteurizada das FMs comerciais, descobrem que podem fazer suas próprias rádios com a ajuda dos componentes eletrônicos certos. A primeira rádio ilegal de Sorocaba, cujas transmissões atingiam apenas um quarteirão, chamou-se Spectro e foi ao ar em 57 1976 (seis anos antes do boom de Sorocaba) pelas mãos de um adolescente de 14 anos. O mesmo garoto montou outro transmissor, em 1980, que dessa vez atinge 10 km. Já no final de 1981, Sorocaba possui mais seis rádios: junto com a Spectro, também transmitem as rádios Estrôncio 90, Alfa 1, Colúmbia, Fênix, Star e Centauros (esta última troca o nome para Voyage e mescla-se com a Spectro, nascendo assim a Spectro Voyage Clandestina – SVC, uma das mais famosas rádios livres de Sorocaba). Em 1982, estão no ar, oficialmente, 43 emissoras, mas há informações de que mais de 100 rádios transmitiam na época. O movimento nasce de forma autêntica, sem publicidade e com objetivos de organização autogestionária. A verdadeira mania que surge em Sorocaba leva os radioamantes a criar o Conselho das Rádios Clandestinas de Sorocaba, na tentativa de obter organização e impedir as interferências sobre as freqüências oficiais e mesmo sobre outras nãoautorizadas.50 O conselho foi extinto um mês depois de criado, devido à impossibilidade de controlar tantas rádios. O antigo Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel), hoje Departamento Nacional de Fiscalização das Comunicações, não demorou muito a entrar em ação, ameaçando os chamados radioamantes com o Código Brasileiro de Telecomunicações, que prevê pena de prisão para quem transmitir sem concessão na faixa de FM. Com isso, as 58 emissoras foram saindo do ar paulatinamente, até que em 1984 contabilizavamse apenas 15 rádios ilegais em Sorocaba. Rádio Xilik: “uma emissora mais lida do que ouvida” As rádios de Sorocaba não demoraram muito a despertar o interesse da imprensa paulistana, que divulgou várias matérias a respeito, em especial a imprensa escrita. Através dessas informações, um grupo de rapazes, alguns do Centro Acadêmico de Ciências Sociais (CACS) da Pontíficie Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e outros da Universidade de São Paulo (USP), têm a idéia de também montar uma emissora, mas com claros objetivos políticos. Era o ano de 1985 e o país todo lastimava-se pela morte do presidente Tancredo Neves. Quem não sucumbiu, ficou revoltado com tantas informações erradas dadas pela imprensa em geral. Os rapazes do CACS e da USP discutiam essas questões, quando surgiu a idéia de montar uma rádio livre e dar “a versão real dos fatos e usar a liberdade de expressão até as últimas conseqüências”51. Assim nascia a Rádio Xilik, com 6 watts de potência, montada dentro de uma panela, na sede do Centro Acadêmico. 50 Idem, ibidem, p. 109. 51 MELIANI, Marisa. “Rádios livres: o outro lado da voz do Brasil”. São Paulo, USP, 1989. Projeto Experimental em Jornalismo. p. 74. 59 A Xilik entrou em fase experimental no dia 26 de junho de 1985, abrangendo alguns bairros da zona Oeste de São Paulo. Influenciados pelo movimento de rádios livres da Europa (França e Itália em especial), os 12 integrantes da Xilik queriam chamar a atenção do público para questões como democratização da comunicação e liberdade de expressão, divulgando dessa forma o ideário das autênticas rádios livres. Para isso utilizaram uma tática, que seria comum sempre que houvesse transmissão: convocar a imprensa para escutar a rádio. Inúmeras matérias surgiram em jornais da capital e em algumas revistas, fazendo da Xilik “uma rádio mais lida do que ouvida”, como disse um dos integrantes, André Picardi52. Um transmissor mais potente, de 40 watts, a comprovação da audiência e a criação da Cooperativa de Rádio-Amantes (Coralivre) caracterizaram a segunda fase da Xilik. O grupo discute no ar, em forma de debate, a importância de se ter uma rádio livre. Além disso, empresta o transmissor para o nascimento de outras rádios, aproxima-se de sindicatos, visita favelas e envia transmissores para outros estados, como Paraná e Pará. A rádio também promove várias campanhas, como ensinar a população a remarcar os preços nos supermercados, durante o Plano Cruzado: “Já que eles 52 MELIANI, Marisa. Rádios livres; o outro lado da voz do Brasil. São Paulo, USP, 1995. Dissertação de mestrado apresentada à Escola de Comunicação e Artes. p. 115. 60 remarcam tudo, peguem os selos mais baratos e coloquem nos produtos mais caros”53; plantar maconha em casa, quando ainda nem se falava na descriminalização do uso da erva; entrar pela porta de trás do ônibus, afinal “o ônibus é um dever do Estado e um direito do cidadão”54. O Dentel tentou duas vezes apreender o incômodo transmissor da Xilik, mas não conseguiu, pois a rádio contava com largo apoio dos estudantes e até da reitoria da PUC. Sua última transmissão foi ao ar em dezembro de 1985, por decisão do próprio grupo, que considerou ter cumprido sua missão. Rádios Selvagens no Leste ocidental Apesar de a Rádio Xilik ser considerada uma das pioneiras na discussão da democratização da comunicação, outras rádios foram suas contemporâneas. Merecem destaque as primeiras rádios livres da Grande São Paulo, em especial aquelas localizadas no município de Poá, um dos menores municípios do estado, média de 100 mil habitantes, entre as quais citamos Capitão Gancho, Estação Apache e Tuaregs. Sobre o fenômeno, um de seus principais sustentadores explica: 53 MELIANI, Marisa. “Rádios livres: o outro lado da voz do Brasil”. São Paulo, USP, 1989. Projeto Experimental em Jornalismo. p. 78-9. 54 Idem, ibidem, p. 79. 61 Música. Essa é a primeira idéia que vem à mente quando se fala em rádio. Estranho, mas outros fatores igualmente ou mais importantes como noticiário, informações, bate papo, sempre acabam ficando para segundo plano (...) Com certeza, a origem das Rádios Selvagens do Leste não foi muito diferente. A música teria sido o embrião e o combustível da desordem. Claro que o fator música, tem a ver com todo um contexto dos anos oitenta: abertura política (?), formação de novos partidos, novos canais de participação, livre associação, movimentos de massa, novos valores musicais e artísticos surgindo em cena, etc.55 A rádio Capitão Gancho foi criada pelo sociólogo José Carlos Francisco de Paula, que soube das rádios livres assistindo às palestras de Felix Guattari em São Paulo. Assim, José Carlos montou uma rádio (transmissor valvulado caseiro com cinco watts de potência) com o seguinte perfil: autogestionária, ideologicamente voltada ao esquerdismo, locução e músicas com tempo equivalentes, músicas alternativas, personagens criadas a partir da fábula de Peter Pan, situados na Terra do Nunca – Barba Negra, Barba Ruiva, Barba Timão, Barbarella, Sininho e Peter Punk eram alguns dos pseudônimos utilizados pelos organizadores da emissora. Com a Rádio Capitão Gancho surge o primeiro veículo escrito de divulgação das rádios da região: o fanzine Garrafa. Em princípio, foi produzido para informar apenas as atividades da Capitão Gancho, depois passou a divulgar o trabalho de outras rádios livres, fornecendo também dicas de como montar 55 DE PAULA, José Carlos Francisco. “O movimento”. In: fanzine Turba Iratus, no 3, 1994. 62 transmissores ilegais. Outras formas de divulgar o trabalho da rádio foram as vendas de camisetas com o logotipo da Gancho, cartazes e grafitagem pelas principais ruas da cidade. Em 1989, discordâncias entre os organizadores da rádio põem fim ao projeto, que naufraga junto com o Garrafa. Estação Apache: “contra os brancos, bélicos e cristãos”56 Esta foi outra rádio criada pela iniciativa de José Carlos, com o objetivo de fazer uma rádio mais combativa, divulgando principalmente a causa indígena brasileira (transmissor de cinco watts de potência, valvulado, abrangendo Poá e municípios vizinhos como Suzano, Ferraz de Vasconcelos e parte de Mogi das Cruzes). Para isso, conta com a participação do funcionário público Eliézer Barreto, ouvinte da Capitão Gancho, que depois passa a dirigir a Estação Apache sozinho. A Estação Apache teve sua primeira transmissão em setembro de 1988. Toda a estrutura da rádio foi pensada com cuidado, do nome ao perfil da emissora. Segundo Eliézer Barreto, o termo “estação” surgiu como referência à demolição da antiga estação de trem de Poá: “Achávamos um absurdo demolirem a estação em volta da qual a cidade nasceu, então pintou a idéia de resgatar o termo”57. O nome apache foi uma referência à tribo de índios norte56 Uma das frases utilizadas pelos apresentadores da Estação Apache. 57 Depoimento de Eliézer Barreto dado à autora em junho de 1995. 63 americanos, que mais lutou contra a colonização. Além disso, eram chamados apaches, os marginais perseguidos pela polícia por praticarem pequenos furtos para sobreviver na Paris do século XIX. Com a leitura dos livros Enterrem meu coração na curva do rio, de Dee Brown, e Nossos índios, nossos mortos, de Edilson Martins, veio a construção da linguagem utilizada pela Estação Apache, até esse momento, toda voltada para a causa indígena. Em 1989, José Carlos deixa a Apache para montar outra rádio. A Estação Apache vive seu segundo momento quando se preocupa em divulgar o pensamento anarquista e a cultura marginal suburbana. Nos correspondíamos com diversos lugares do Brasil e recebíamos muito material alternativo, como fanzines sobre variados temas, demos tapes58 de bandas de garagem, então passamos a divulgar todo esse material nos programas da rádio, complementando-os com textos clássicos do anarquismo.59 Além disso, há entrevistas com o somaterapeuta Roberto Freire, com o anarquista Jayme Cuberos, com o músico Tom Zé e com músicos da região. 58 Demo tape (fita demo) é uma fita cassete gravada amadorísticamente durante ensaios de bandas musicais. 59 Depoimento dado à autora. 64 A terceira e última fase da rádio foi acompanhada de mais pessoas: 15 ouvintes da Apache juntam-se à Eliézer, dando o caráter autogestionário que faltava. Os programas passaram a ser discutidos em reuniões, e o grupo comprou todo o equipamento da rádio, dividindo também as suas despesas com manutenção. Em julho de 1992, a Estação Apache faria sua última intervenção na cidade. Interferência nas televisões dos vizinhos e a falta de um local apropriado para transmissão colocaram fim à experiência. Tuaregs: no deserto com Alah60 A Tuaregs foi a terceira rádio livre criada por José Carlos de Paula em cinco anos de militância na causa das emissoras livres. O trabalho foi solitário nessa nova experiência. A Tuaregs surgiu em julho de 1990 (transmissor de 15 watts de potência, transistorizado) com a proposta de utilizar o humor e o anarquismo nos programas. O perfil da rádio vem do nome “tuaregues”, povos nômades e guerreiros que vivem no deserto africano. Aproveitando a história desse povo, José Carlos cria o vocabulário da emissora com algumas palavras da língua islâmica, mesclando-as com estranhas gírias usadas no filme “Laranja mecânica”, de Stanley Kubrick chamadas de “nadstat”. Definido o vocabulário da rádio, são 60 Alah era a grafia utilizada pelos componentes da rádio livre Tuaregs. 65 criadas as personagens para que toda a ação se passe “num deserto imaginário com os inconvenientes de praxe”61. Entre os principais “apresentadores” de programas estão: Chacal, Jamal, Maluf Malaka e Jack Estuprador, todos eles representados pelo criador da emissora. Em 1992, a rádio lança seu informativo, o Turba Iratus (povo irado), um fanzine com periodicidade anual que divulga a causa das rádios livres. Em 1995, alguns dos participantes da Estação Apache juntam-se à Tuaregs, que tenta manter seu projeto original, mas com certa dificuldade, pois nem todos os novos participantes adaptam-se a sua linguagem. Atualmente, a Tuaregs está fora do ar, tentando encontrar um novo local para transmissão. No vento e nas aldeias, um Sinal de fumaça Sinal de fumaça foi um fanzine lançado pela Estação Apache e pela Tuaregs no início de 1990, com muita contra-informação. Foram cinco números, cujo objetivo era levar o sinal das emissoras até onde ele não conseguia alcançar. A distribuição foi feita via correio, e o Sinal de fumaça rompeu 61 Depoimento dado à autora em junho de 1995 e informações contidas nos fanzines Garrafa, 66 fronteiras, chegando até o Japão e sendo citado no jornal Barlavento, de Portugal. O fanzine recebeu inúmeras cartas de todo o Brasil e os seus organizadores atingiram a marca de 50 transmissores vendidos. O mais interessante dessas rádios é a originalidade com que elas foram desenvolvidas. Xilik, Capitão Gancho, Estação Apache e Tuaregs, as três últimas com seus respectivos fanzines, trazem no seio todo o ideal das rádios livres mais autênticas, ou seja, o de fazer rádio de maneira criativa, trabalhando a linguagem e oferecendo ao ouvinte uma programação diferenciada, alternativa à programação oficial, predominantemente musical. Também foi característica dessas rádios funcionar em regime de clandestinidade, no sentido de não divulgarem seus endereços ou telefones para contato, uma vez que a fiscalização era mais acirrada. O contato com o ouvinte era feito por meio de uma caixa postal. Rádio Reversão: resistir é preciso De todos os problemas enfrentados pelas rádios livres, o maior diz respeito ao lado financeiro. Ceder espaço para anunciantes, o que seria uma forma de gerar receita, significa limitar a liberdade de expressão. Por outro lado, não é possível sobreviver apenas com as colaborações. Uma rádio que conseguiu Kachorro Louko, Sinal de fumaça e Turba Iratus. 67 pôr fim a esses problemas foi a Reversão, uma rádio livre localizada na Vila Ré, zona Leste de São Paulo, que se tornou um marco na história das rádios livres brasileiras. Sua história começa em 1988, quando surge como veículo de divulgação da cultura urbana underground da cidade de São Paulo, em geral, e do bairro em que se localiza, em particular. Na realidade, a Rádio Reversão faz parte de um projeto cultural de grande abrangência iniciado em 1975 pelo jornalista Léo Tomaz. A idéia era agrupar poetas, escritores, artistas plásticos e músicos da Vila Ré, na Casa de Cultura Reversão, espaço criado originalmente com o intuito de integrar os artistas locais. Como esses artistas não possuíam espaço para expressão na mídia, eles decidem ter seu próprio veículo de comunicação, nascendo, assim, a Rádio Reversão, sem qualquer orientação ideológica e que conta com total apoio da comunidade do bairro. A rádio foi colocada no ar em programas diários, das 20 horas à meianoite, com 27 pessoas revezando-se na operação, locução e funcionamento do espaço. O transmissor possuía 20 watts e atingia um raio de quatro quilômetros. Os programas tratavam de vários temas: havia programas produzidos pelas mulheres do bairro, programas destinados à divulgação de poesia, à produção musical marginalizada pela mídia, programas que apresentavam bandas 68 musicais da região, programas sobre meio ambiente, entre outros. Com objetivos estritamente culturais, a Reversão era mantida com recursos provenientes do bar instalado na Casa de Cultura.62 No dia 9 de abril de 1991 a rádio sofre intervenção, e o equipamento é apreendido pela Polícia Federal e pelo Departamento Nacional de Fiscalização das Comunicações. Léo Tomaz é processado sob acusação de violar o artigo 70 do Código Brasileiro de Telecomunicações. Surgem várias manifestações de apoio à rádio, além de fartas matérias na imprensa. Em março de 1994, o juiz Cazem Mazloum, da 4a Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo, absolve Tomaz, argumentando: A utilização de aparelhos de telecomunicação, de reduzida potência, destinados a atividades culturais, ou no contexto de tais fins, como comprovado no caso dos autos, não constitui atividade que afronta as normas vigentes, notadamente sob o aspecto criminal.63 Com a absolvição de Léo Tomaz, a Reversão tem seus equipamentos devolvidos e volta ao ar. A notícia repercute, abrindo um precedente para o funcionamento de muitas outras rádios ilegais. Só no estado de São Paulo, há mais de mil rádios, com propostas diversificadas, salientando-se que a maioria delas é de cunho evangélico e comercial. 62 MELIANI, Marisa, op. cit., pp.11-6. 69 2.2. Rádios religiosas: a “salvação” vem pelo ar Foi na segunda metade da década de 80 que os religiosos, a maioria evangélicos, começaram a ter as suas primeiras rádios ilegais64. Eles descobriram o filão inexplorado do ponto de vista religioso e começaram a propagar mensagens evangélicas. São rádios pertencentes a várias denominações protestantes, que no início dos anos 90 cresceram muito. De acordo com reportagem veiculada pela Folha de S.Paulo65, em 1991, apenas na zona Leste da capital operavam mais ou menos 20 emissoras, “mantidas por contribuições dos evangélicos e anúncios pagos por pequenos comerciantes”. Para os pastores responsáveis pelas rádios, a meta não é ganhar dinheiro e sim propagar o que eles chamam de “cultura evangélica”. Muitas dessas rádios, para aumentar o alcance, unem-se em rede, segundo atesta Marisa Meliani66 ao citar o exemplo da rádio Nova Jerusalém FM, que transmite junto com as rádios Jerusalém Celestial e Virtudes FM, na zona Norte da cidade. Um exemplo, que serve para ilustrar como essas rádios funcionam, é o da rádio Cultura Celestial, situada no bairro Jardim Castelo, em Ferraz de 63 GIRON, Luís Antônio. “Rádio pirata volta sem ameaça da polícia”. Folha de S.Paulo, 9 abr. 1994. Ilustrada, p. 1. 64 Dentre as rádios ilegais religiosas já se encontram também rádios da religião católica, agregadas na Associação Nacional Católica de Rádios Comunitárias (Ancarc). 65 ANDERAOS, Ricardo. “Evangélicos utilizam rádios piratas para propagar a ‘palavra de Deus’”. Folha de S.Paulo, São Paulo, 27 abr. 1991. Ilustrada, p. 1. 70 Vasconcelos (Grande São Paulo). A emissora é coordenada pelo pastor Roque Santos da Silva, envolvido com a problemática das rádios ilegais desde 1987. O pastor já possuiu três outras rádios no mesmo estilo. Uma delas, a FM Apostólica, foi apreendida pelo antigo Dentel, e ele foi processado no final de 1989, e enquadrado na lei de Segurança Nacional. Apesar do processo, Roque não desistiu das rádios e continuou montando outras FMs. A rádio Cultura Celestial foi criada no final de 1994, na freqüência 108.1, com um transmissor de 40 watts e funciona com 26 programadores, revezandose das 6 horas à meia-noite durante a semana. A emissora é mantida com apoio cultural e pagamento de uma taxa por quem faz programas. Para um programa de uma hora de duração, podem entrar três apoios culturais, que não devem tratar de bebidas, cigarros ou qualquer outro produto que, segundo o pastor, “prejudique a saúde”. Em média cobram-se R$ 10,00 mensais por apoio cultural anunciado. Para ter um programa na rádio é preciso pagar R$ 10,00 por hora de programa. Os programas são compostos por temáticas evangélicas, com hinos de louvores e músicas religiosas. De acordo com o pastor, a orientação é que só haja veiculação de “músicas que edifiquem”. A rádio recebe cerca de 150 telefonemas por dia. Os programadores são na maioria evangélicos, apesar de o 66 Op. cit., p. 143. 71 pastor afirmar que para se fazer parte da rádio não é necessário ser vinculado a qualquer igreja. Com a possibilidade de regulamentar as rádios de caráter comunitário, muitas rádios piratas, livres e evangélicas têm-se transformado em “comunitárias”. É o caso da Cultura Celestial. De acordo com o pastor Silva, a emissora é comunitária porque está aberta a qualquer pessoa, desde que não se critique o governo67. 2.3. Rádios comunitárias: um novo canal de expressão No Brasil, começou-se a falar em rádios comunitárias no início da década de 90, quando as rádios ilegais passaram a ser utilizadas em maior escala pela comunidade de vários bairros. De acordo com José Carlos Rocha, integrante do Fórum Democracia na Comunicação, entidade ligada à defesa das rádios ilegais, o termo “rádio comunitária” surge a partir de 1991, durante o Terceiro Encontro Nacional de Rádios Livres, em Macaé, RJ. Antes as rádios eram mais de cultura alternativa e de repente com o grande crescimento das rádios, muitas passaram a ter um trabalho mais vinculado à comunidade e funcionando de peito aberto, nada clandestino, 67 Depoimento dado à autora em fevereiro de 1996. 72 nada romântico e aventureiro, uma rádio que presta serviço aos interesses da comunidade.68 Além disso, os projetos que entraram em tramitação pelo Congresso Federal regulamentam o funcionamento das rádios de caráter comunitário. Por isso, muitas rádios se auto-intitulam comunitárias na esperança de poder funcionar sem o risco de apreensão. É preciso não confundir as rádios comunitárias com as rádios de altofalantes. Enquanto aquelas emitem em freqüência modulada, portanto, sintonizadas nos aparelhos radiofônicos, estas emitem através de alto-falantes suspensos em postes – por isso são conhecidas como rádios populares, rádiosposte, bocas de ferro etc. – e são muito comuns no interior das cidades brasileiras69, principalmente no Norte-Nordeste. As rádios comunitárias (e, num determinado momento, também as rádios livres) têm um formato semelhante ao do rádio brasileiro da década de 20: as emissoras comunitárias possuem entre seus ideais propagar a cultura, o lazer e a educação, nascem também no formato de associações e são mantidas com contribuições e apoios culturais. Além disso, é comum na rádio comunitária o 68 Entrevista concedida à autora no dia 21 de julho de 1993. 69 De acordo com Sônia Virginia Moreira, op. cit., p. 65, as emissoras que utilizam os alto-falantes geralmente prestam serviços de utilidade pública, com programas elaborados pela comunidade em que se situam. Interessante observar que, com o avanço das rádios livres no Brasil, o baixo custo do equipamento e, por trás de tudo isso, o avanço tecnológico, muitas rádios que funcionavam com altofalantes abandonaram essa prática e passaram a fazer uso do rádio em freqüência modulada. 73 apresentador de um programa ser a mesma pessoa que vai atrás de apoios culturais e representar ao mesmo tempo o contato comercial, o produtor, o redator e o locutor. Uma rádio de caráter comunitário pertence a uma associação sem fins lucrativos, cuja preocupação fundamental é ceder espaço para a expressão de vários setores de uma determinada comunidade. A gerência da emissora fica a cargo dessa associação, que precisa ser pluralista. Assim, fazem parte a dona-decasa, o jovem, o comerciante, o padre, o pastor, a mãe-de-santo, o estudante, o trabalhador, o vereador da região, a oposição política, o aposentado, o professor e quem mais vier para colaborar. É a partir desse mosaico que a voz da comunidade vai-se delineando na emissora, sem discriminações e com espaço para todos. Outra característica da rádio comunitária é o seu alcance, que precisa ser mínimo (25 watts foi a potência estipulada para a regulamentação federal). A maior importância das rádios comunitárias é o seu papel social, enquanto porta-vozes de uma (grande) parcela da população, que não tem um canal de comunicação próprio. Essas emissoras representam, assim, a voz da comunidade fazendo-se ouvir, procurando uma resolução para os seus problemas, com vistas a um avanço social. Esse é o esboço do que vem a ser uma rádio comunitária de fato. O assunto voltará a ser discutido na segunda parte desta dissertação quando será analisada a Rádio Cidadã. 74 75 Capítulo 3 A comunicação alternativa e a comunicação popular 3.1. A comunicação alternativa Para compreender o que é a comunicação alternativa, remetemo-nos à origem das duas palavras, ambas latinas. Assim, comunicação vem de communis, significa “tornar algo comum à comunidade”70 e indica troca de idéias, informações e mensagens. A comunicação só ocorre se houver acesso aos canais de expressão e os envolvidos fizerem parte do processo de troca de idéias, informações e mensagens, participando de um diálogo crítico contínuo que é fundamentado no conhecimento objetivo que o homem tem da realidade71. Paulo Freire afirma que a palavra é um direito de todos: Se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é praxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais. O diálogo é este encontro dos 70 FESTA, Regina. Comunicação popular e alternativa; a realidade e as utopias. São Bernardo do Campo, IMS, 1984. Dissertação de mestrado. p. 166. 71 Idem, ibidem, p. 166. 76 homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu.72 Ainda segundo o pensador, quando os homens dialogam, dá-se “um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados”73. A partir daí estariam prontos para pensar o mundo criticamente com vistas a uma transformação. Voltando à comunicação alternativa, localizamos o significado da palavra alternativa em alter, que quer dizer ‘outro’ e “indica uma relação com outro, um alter que chama a si os que se desviam de um caminho inicial”74. Assim, podese dizer que a comunicação alternativa é uma opção à comunicação de massa, produzida pelos grandes meios. Alternativa porque também representa uma busca por tudo o que é inovador e diferente dentro da sociedade de consumo, como forma de crítica e transformação social: a contracultura, os movimentos hippie, beat e pacifista e as comunidades alternativas foram sem dúvidas alternativas políticas que buscaram um outro caminho frente ao que estava dado pelo poder vigente. 72 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. pp. 92-3. 73 LIMA, Venício Artur de. Comunicação e cultura; as idéias de Paulo Freire. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981. p. 59. 74 CAPARELLI, Sérgio. Comunicação de massa sem massa. São Paulo, Summus, 1986. p. 45. 77 O termo “alternativo” sempre foi historicamente vinculado mais à criação de alternativas técnicas e culturais ao estabelecido (tecnologias, linguagens, novas formas de vida, etc.) e visto também à margem, paralelo à sociedade estabelecida.75 Para Regina Festa76, a comunicação alternativa, no caso brasileiro, surgiu numa situação de marginalidade aos grandes meios de comunicação e se mostrou alternativa ao reorientar as forças sociais, mas não surgiu para se contrapor à comunicação dos meios de massa e sim para ser uma oposição ao poder constituído. Além disso, reflete a autora, é um tipo de comunicação que serve como “mediadora dos interesses entre classes dominantes, sociedade civil e classes populares”77. O conteúdo é fundamental De acordo com Maximo Simpson Grinberg78, para se compreender melhor a comunicação alternativa é preciso levar em consideração alguns fatores. O conteúdo, por exemplo, é fundamental, e, a partir dele, quatro aspectos podem ser levantados: a seleção dos temas, a hierarquização das informações, sua classificação por seções e seu posterior tratamento e a linguagem. A partir 75 SOUZA, Marcio Vieira de. As vozes do silêncio, o movimento pela democratização da comunicação no Brasil. Paris/Florianópolis, Foundation pour le progrès de l’homme/Diálogo, 1996. pp. 81-2. 76 Op. cit., p. 170. 77 Idem, ibidem, p. 171. 78 dessas informações, podem-se ver os aspectos que tornam um meio alternativo ou não. Grinberg também nos dá um panorama a respeito da comunicação alternativa e suas significações. Transcrevemos as seis dimensões do assunto, relacionadas pelo autor como fatores alternativos dentro de determinados meios79: • alternativa 1: produzida de maneira não-massiva; definida pelo controle e propriedade coletivos do meio, pelo princípio de participação na seleção dos assuntos e na elaboração das mensagens, no seu conteúdo aberto e antiautoritário, na ambivalência de papéis emissor-receptor e na multidirecionalidade das mensagens; • alternativa 2: também não-massiva; a eleição dos temas e elaboração das mensagens são feitas com a participação ativa dos receptores. As características definidoras deste meio estão centradas na propriedade e controle coletivos, pela participação e pelo caráter do discurso; • alternativa 3: produzida de forma massiva; tem como objetivo a difusão massiva de mensagens. A alternatividade é mais restrita por situações 78 “Comunicación Alternativa: dimensiones, límites, posibilidades”. In: GRINBERG, Maximo Simpson (org.). Comunicación alternativa y cambio social. Ciudad del Mexico, Universidad Nacional Autonoma de Mexico, 1981, p. 113. 79 conjunturais. Dois exemplos alternativos pelo caráter da mensagem: quando a mensagem é elaborada por um grupo reduzido de pessoas, que tem a propriedade do meio e exerce o seu controle, a comunicação é unidirecional, mas existe o caráter antiautoritário do texto; quando a mensagem é antiautoritária, também elaborada por um reduzido grupo, que não é o proprietário do meio mas possui liberdade para escolher e hierarquizar os temas, abordando-os criticamente; • alternativa 4: massiva; as condições políticas e sociais de determinado local são instáveis, quem está no controle e/ou é proprietário do meio (estatal ou privado) pode exercer uma linguagem antiautoritária em seções, colunas ou programas que mostram o inconformismo, servindo de instrumento crítico do status quo; • alternativa 5: massiva; um meio massivo pode constituir-se, globalmente, em opção ao monopólio da informação se há mecanismos que tornem factível o acesso de diversos setores sociais e políticos que, podendo gravitar na formulação da política editorial, gerem mensagens a partir de uma concepção antiautoritária. Característica definidora: propriedade e controle coletivos, acesso ao meio de grandes setores sociais e caráter do discurso; 79 Op. cit., pp. 116-9. 80 • alternativa 6: massiva; o meio é propriedade coletiva de seus trabalhadores, difunde mensagens não-autoritárias e está identificado com os interesses das maiorias sociais; no entanto, não dá acesso, na formulação de sua política editorial, a setores alheios a ele. Grinberg ressalta, dessa forma, os seguintes aspectos que mais influenciam para que um meio seja de fato alternativo, ou que comporte alguns elementos de alternatividade: o tipo de discurso – “sem discurso alternativo não há meio alternativo”, diz o autor –, o controle e a propriedade coletiva do meio, a participação dos receptores na escolha dos assuntos e na elaboração das mensagens, o conteúdo antiautoritário e o acesso de diversos setores sociais. Um meio que faça a convergência de todos esses aspectos pode ser entendido como genuinamente alternativo, pois implica uma séria opção diante do discurso dominante, uma opção qualitativa, que apresenta outras vozes cujo acesso ao discurso oficial dos grandes meios é muito difícil. No entanto, precisamos ressaltar que o caráter alternativo pode estar presente mesmo nos meios de comunicação de massa. Lins da Silva, ao analisar as “brechas” da indústria cultural brasileira, as quais só foram viabilizadas após a fase de abertura do regime militar, encontra esses canais por onde é possível 81 “passar ao público conteúdos diversos e, algumas vezes, contrários aos interesses das classes dominantes e do próprio Estado”80. Mas essas “brechas” só podem ser assimiladas se houver um conhecimento prévio de determinado assunto por parte do público, ou seja, é preciso que o público tenha suficiente grau de discernimento crítico das questões para que possa compreender o que lhe é apresentado81. Por outro lado, também existem os meios que apenas se “disfarçam” de alternativos, no dizer de Grinberg, mas que na verdade reproduzem o mesmo tipo de discurso que os meios oficiais. Aqui podemos voltar a falar das rádios que funcionam à margem da lei, tomando-as como exemplos de meios que se autointitulam alternativos sem realmente sê-los. Algumas rádios piratas inglesas tinham programação estritamente musical e o seu maior objetivo era o lucro. Sua inovação foi ter apresentado um novo estilo de locução, mas, além dessa novidade estética, nada mais apresentava de questionador. Com uma proposta completamente diferente, as rádios clandestinas que participam de um processo de guerrilha são críticas e democráticas enquanto 80 SILVA, Carlos Eduardo Lins da. “As ‘brechas’ da indústria cultural brasileira”. In: FESTA, Regina & SILVA, Carlos Eduardo Lins da (orgs.). Comunicação popular e alternativa no Brasil. São Paulo, Paulinas, 1986. p. 52. 81 FESTA, Regina, op. cit., p. 172. 82 estão inseridas na luta política, sendo porta-vozes de contra-informação; no entanto, assim que assumem o poder e vencem a guerra “passam a se comportar com as mesmas características das emissoras autorizadas, mesmo trazendo, em alguns casos, mais democracia para o veículo”82. As rádios livres européias, por sua vez, tiveram em seu meio várias emissoras que apenas se aproveitam do movimento para obter a regulamentação, sem possuir um conteúdo crítico da realidade. Ao contrário, eram rádios de caráter comercial, de mentalidade mercadológica, que novamente estavam apenas interessadas no lucro. No Brasil, a história se repete, havendo hoje inúmeras emissoras sem autorização, de caráter comercial, religioso, musical etc. A partir de uma pesquisa de escuta, feita entre março de 1994 e fevereiro de 1995, Marisa Meliani83 sintonizou 50 emissoras de rádio ilegais na zona Norte de São Paulo, das quais 68% (34 emissoras) tinham fins lucrativos, 24% (12 emissoras) não tinham fins lucrativos e 8% (4 emissoras) tinham objetivos ignorados. Em relação ao conteúdo das emissões, a pesquisadora verificou que 44% eram de 82 MELIANI, Marisa, op cit. pp. 35-6. 83 Op. cit., pp. 180-1. 83 caráter comercial evangélico, 24% de caráter comercial musical, 24% de caráter cultural e 8% de conteúdo ignorado84. As rádios evangélicas apresentam um conteúdo totalmente voltado para a causa religiosa, com pregações ostensivas e músicas que seguem a linha da emissora. Já o discurso apresentado pelas rádios comerciais é muito próximo do discurso pasteurizado das rádios oficiais: “A estrutura básica da programação é montada tendo como referência a moda lançada pelo mercado de bens culturais”85. Assim, essas rádios praticamente imitam as emissoras concessionadas, repetindo as mesmas músicas e o mesmo estilo de locução. A diferença é o fato de não serem oficializadas e estarem fisicamente mais próximas do ouvinte, que não raro visita a rádio e telefona constantemente para pedir músicas. O acesso do ouvinte à rádio existe, por certo, mas é a distância, passivo e sem caráter participativo86. Isso pode ser explicado pela característica de passividade do povo brasileiro. Ao analisar esses traços, Marques de Melo87 – referendando as idéias de Paulo Freire segundo as quais o povo brasileiro é 84 A autora não informa se as rádios identificadas como culturais e sem fins lucrativos são as rádios comunitárias. 85 Idem, ibidem, p. 156. 86 Mais adiante discutiremos os critérios participativos. 87 Comunicação; direito à informação. São Paulo, Papirus, 1986. pp. 65-9. 84 caracterizado pela “inexperiência democrática” e pelo “mutismo” – considera que: Um povo que não tem experiência de participação, de intervenção na coisa pública, de exercitação da sua capacidade de influir nas decisões nacionais, é um povo condenado à marginalização social e política, a permanecer mudo, silencioso, apático. A ausência de participação popular nos destinos do país e a conseqüente castração das potencialidades comunicativas do nosso povo tem sido uma constante na História do Brasil, da Colônia ao Império, da Velhíssima República às Novas Repúblicas que surgiram neste século. O autor acredita que a educação é fator primordial para a transformação. Assim: Comunicar, expressar livremente fatos e idéias, pressupõe o domínio do código e o acesso aos conteúdos que permitirão produzir mensagens e difundi-las, divulgá-las. Logo, pressupõe o manejo de informações. E tal atividade se estriba na instrução básica, no conhecimento sistematizado, no treinamento para a aprendizagem continuada.88 Falando novamente das experiências radiofônicas citadas, será que por mais que funcionem à margem da instituição e que estejam exercendo seu direito de liberdade de expressão89 podem ser taxadas de “alternativas”? 88 Idem, ibidem, p. 69. 89 Ainda ligando a comunicação ao saber, Marques de Melo diz: “Não basta portanto que a lei assegure a todos a liberdade de expressão. É imprescindível dotar a todos da capacidade de saber, fazer, transformar, criar. Do contrário, o direito de comunicar se esvazia, na medida em que o seu exercício fica limitado aos poucos instruídos, capazes de formular mensagens, recheá-las de conteúdos e disseminá-las adequadamente” (Op. cit., pp. 69-70.). 85 Se alternativa é toda experiência que traz uma proposta diferente, original em seu conteúdo, como podemos considerar rádios alternativas as que tocam músicas comerciais o tempo todo, que estão interessadas apenas no fator financeiro ou na tomada do poder político e que repetem os mesmos padrões já tão desgastados das rádios oficiais? Recorremos novamente a Grinberg, que vê a qualidade das experiências como outro fator importante para localizar o alternativo nos meios: No nosso entender, para ser verdadeiramente alternativo, não basta que um meio esteja à margem das redes de distribuição da grande imprensa, deve sim ostentar uma diferença qualitativa em relação a ela; em tal sentido, o alternativo se opõe ao meramente complementar ou marginal, pois implica, embora em medida variável, um questionamento do status quo90. Portanto, encontrar-se à margem da mídia oficial não é fator determinante para que um veículo de comunicação seja entendido como alternativo. O alternativo se inscreve numa perspectiva mais ampla, na qual são imprescindíveis fatores como o conteúdo do discurso e a participação ativa dos receptores. 90 Op. cit., p. 116. 86 3.2. A comunicação popular Além do termo “comunicação alternativa”, existem outras denominações para designar o tipo de atuação da comunicação que pretende ser um canal diferenciador de informações veiculadas pela mídia. Analisando o assunto, Regina Festa encontrou 33 termos para denominar uma comunicação com vistas à transformação social, contando com a participação de vários setores sociais91, entre os quais estão a comunicação popular, a participativa, a contestatória, a marginal, a comunitária, a emergente, a de resistência etc., todas primando pela análise crítica da realidade, procurando mudanças estruturais a partir de uma interação entre emissores e receptores, os quais, num processo participativo, trocam constantemente de papel. Por isso, as diferenças entre essas várias comunicações são tênues e difíceis de ser diagnosticadas. No entanto, em relação à comunicação alternativa e à comunicação popular, podemos ver a seguinte diferença: enquanto aquela não precisa necessariamente contar com a participação de diversos setores sociais na sua formulação, para que apresente um discurso alternativo, esta prevê uma comunicação que conta essencialmente com a participação popular e nesse caso há grande ênfase na representatividade, ou seja, é importante a participação de vários setores da sociedade na formulação de seu discurso. 91 Op. cit., pp. 174-5. 87 Segundo Robert White92, a comunicação popular não é um tipo qualquer de mídia; surge sim “dentro de um movimento de base: grupos de camponeses ou trabalhadores falam entre si ou a outros grupos similares”. A partir dessa interação pode ocorrer o uso de um ou de vários tipos de mídia, que passam a ser um instrumento de comunicação do grupo. Para Cicilia Peruzzo93, a comunicação popular está vinculada às práticas dos movimentos coletivos, possui um conteúdo diferente dos meios de comunicação de massa, sendo “um grito antes sufocado de denúncia e reivindicação por transformações”. Fazem parte dessa comunicação, segundo a autora, os pequenos jornais, boletins, rádios populares, teatro, folhetos, vídeos, faixas, cartazes etc. Acrescentamos a essa lista, as rádios comunitárias, um dos novos instrumentos de comunicação popular ou comunitária94. As rádios comunitárias, como já dissemos, são dirigidas aos interesses da comunidade, entendida como interação e ação de pessoas num determinado local limitado geograficamente. Assim, um dos meios de realizar essa interação é a utilização de emissoras comunitárias, as quais são feitas pela comunidade e para ela, servindo de instrumentos que possibilitem a ação em busca de 92 Apud PUNTEL, Joana. A igreja e a democratização da comunicação. São Paulo, Paulinas, 1994. pp. 194-5. 93 “Comunicação popular em seus aspectos teóricos”. In: PERUZZO, Cicilia. (org.). Comunicação e culturas populares. São Paulo, INTERCOM, 1995. p. 29. 94 O termo comunitário é usado aqui como sinônimo de popular. 88 melhorias sociais. Essa prática implica que haja participação no meio, e para isso é necessário que haja acesso, e num nível mais elevado, gestão conjunta nesse meio. Níveis e modalidades de participação É comum muitas rádios ilegais se autointitularem comunitárias por terem a comunidade participando da programação da emissora. Mas esse “participando” se restringe a telefonemas para pedir músicas, para mandar recados ou para conversar com os apresentadores. Acredita-se assim que o simples fato de o ouvinte ligar para pedir música e ser atendido imprime à emissora o caráter de comunitária. Mas não se pode isolar o significado da rádio comunitária adotando apenas esse critério de participação. É preciso ir além, procurando aumentar os níveis na qualidade participativa da comunicação. Estudando as principais formas de participação na comunicação comunitária, Cicilia Peruzzo95 apresenta seis níveis de participação popular ampliada, a partir da divisão proposta por Jorge Merino Utreras, e divide em três as modalidades participativas: 95 “Pistas para o estudo e a prática da comunicação comunitária participativa”. In: PERUZZO, Cicilia (org.). Comunicação e culturas populares. São Paulo, INTERCOM, 1995. pp 147-8. 89 • Participação ao nível das mensagens: divulgação de entrevistas, depoimentos, denúncias, avisos, pedidos de músicas, sugestões, concursos etc. • Participação ao nível da produção de mensagens: elaboração sistemática, periódica ou ocasional de notícias, desenhos, poesias etc., os quais são transmitidos pelo meio de comunicação. Implica acesso a conhecimentos técnicos. • Participação ao nível da produção de programas, de boletins informativos etc.: participação no processo de planejamento, de produção e edição. Implica conhecimentos e recursos técnicos e participação das tomadas de decisões. • Participação ao nível do planejamento global do meio de comunicação: compreende a participação popular na definição da política editorial, da estrutura de programação global, dos objetivos, das formas de sustentação financeira, dos princípios de gestão etc. Implica participação das tomadas de decisões. • Participação ao nível da gestão global do meio de comunicação: compreende a participação popular no processo de administração e controle do veículo ou instituição de comunicação como um todo. Implica partilha do exercício do poder. 90 • Participação ao nível do planejamento global dos meios de comunicação locais, regionais e nacionais: acesso à definição das políticas e planos globais de comunicação. A autora lembra que para esses níveis de participação ampliada ocorrerem é mister que os canais de participação sejam “abertos e desobstruídos” e que se incentive e facilite “a participação popular através de uma metodologia que privilegie a participação enquanto processo que vai crescendo em qualidade participativa”. A abordagem de Peruzzo prevê as três modalidades de participação como: não-participação, participação controlada e participaçãopoder: • Não-participação: trata-se de uma participação passiva; a postura de espectador e de sujeição é explícita; o poder de decisão é delegado a terceiros; a não-participação também pode ser uma forma de protestar contra algo; aqui o exercício do poder é autoritário. • Participação controlada: pode ser limitada, realizando-se com ressalvas, e incentivada somente até onde não conflitue com os interesses do poder, e manipulada, disfarçadamente, “e visa adaptar as demandas da comunidade aos interesses políticos daqueles que detêm o poder”96, sem que esses 96 Idem, ibidem, pp. 152-3. 91 interesses políticos sejam explicitados. O exercício do poder apresenta-se como democrático, mas é autoritário, já que mantém as estruturas do poder. • Participação-poder: divide-se em co-gestão e autogestão. A co-gestão é uma participação ativa mas limitada em relação ao acesso ao poder e a sua partilha; assim o poder é descentralizado e há delegação de funções; as decisões centrais permanecem sob o poder da cúpula hierárquica, sem alterar a estrutura central de poder; a autogestão é a forma mais avançada de participação-poder. Trata-se de uma participação direta das tomadas de decisões, abrangendo todas as esferas da vida econômica, social, cultural, política e jurídica. O exercício do poder é partilhado em ambos os casos e é prevista a representatividade, com mandato temporário e revogável pelos eleitores, eleições democráticas e intercâmbio constante com as bases. Com esse painel, já sabemos que participar vai além da mera prática de telefonar, pedir música, ser atendido por alguém, como é o caso das rádios comunitárias, que comumente restringem a participação do receptor ao nível das mensagens e apresentam a modalidade de não-participação como a mais praticada em sua estrutura. Sendo assim, ir além dessas formas de participação é uma tarefa que se faz necessária, mas para isso é imprescindível uma prática educativa em que tanto os emissores quanto os receptores estejam dispostos a pensar nas 92 diferentes maneiras de se conquistar a participação. É claro, que isso só se alcança no processo, ou seja, na medida em que o trabalho se realiza. Além de tudo, as rádios comunitárias têm pouco tempo de existência e faz muito pouco tempo também que se adotaram no país palavras como cidadania97, direito de informação e liberdade de expressão, termos utilizados para defender a prática das rádios comunitárias. Mas como diz Pedro Demo98, “(a participação) não é dada, é criada. Não é dádiva, é reivindicação. Não é concessão, é sobrevivência. Participação precisa ser construída, forçada, refeita e recriada”. 3.3. Localizando as práticas A comunicação alternativa pôde ser encontrada já durante as reivindicações estudantis de 1968. De acordo com Armando Cassigoli, foi a situação histórico-política daquele ano que deu vazão ao surgimento dos meios alternativos: A teorização da cultura alternativa, ou de um sistema de informação alternativa ao sistema oficial, surge das situações que se produziram precisamente em 1968 em quase toda a Europa, Estados Unidos, Ásia e 97 A definição de cidadania para Cicilia Peruzzo está baseada “na ação social e política coletiva, na unidade dos cidadãos em torno dos direitos individuais e coletivos”. Op cit., p. 156. 98 Apud PERUZZO, Cicilia, op. cit., p. 158. 93 América Latina, assim como dos processos de crítica e até de separações em muitos partidos comunistas99. A partir das buscas daqueles jovens contestadores surge uma série de produções envolvendo desde o movimento de rádios livres na Europa, passando pela imprensa alternativa no Brasil (apesar da repressão) e abrangendo outras tantas matizes culturais. Para Santoro100, foi em Maio de 68 que a Europa parece ter tomado consciência maciçamente do papel fundamental dos aparelhos de informação no condicionamento ideológico, dando origem às rádios livres. O papel desmobilizador dos meios de comunicação de massa foi, por muitos, supervalorizado (...) Surgiram, a partir de então, verdadeiros “militantes das ondas”, jovens que se propunham a trabalhar no domínio do rádio e que, em sua maioria, agrupavam-se em torno de organizações políticas. Na Tchecoslováquia, o uso subvertido do rádio teve papel fundamental durante a organização do povo contra a tomada do país pelos tanques soviéticos. A Rádio Praga, que era oficial, passa a ser não-oficial, operando clandestinamente como a Rádio Praga Livre. Naquele momento, a emissora foi 99 “Sobre la contrainformación y los así llamados medios alternativos”. In: GRINBERG, Maximo Simpson (org.). Comunicación alternativa y cambio social. Ciudad del Mexico, Universidad Nacional Autonoma de Mexico, 1981. p. 34. 100 Op cit., p.99. 94 o único meio de comunicação que falava abertamente sobre a realidade que se abatia sobre a Tchecoslováquia. Durante a primeira semana da ocupação, a Rádio Praga Livre foi quem de fato governou o povo tcheco: além de mantê-lo informado sobre o desenvolvimento da situação, instruía-o nas táticas de resistência passiva ao invasor, arregimentava funcionários das administrações estatais e membros do Partido Comunista para reuniões de emergência, denunciava elementos colaboracionistas e advertia sobre deslocamentos das tropas estrangeiras e seus atos de repressão.101 Década de 70: a resistência Na Itália, até os anos 60, a Radio-Audizione Italiana (RAI) monopolizava completamente a área das telecomunicações e por muito tempo foi um dos instrumentos ideológicos da Democracia Cristã (DC), que dominou a vida pública italiana através de distintas combinações governamentais por 30 anos. Com o crescimento do Partido Comunista (PC), durante os anos 70, a política italiana ficou centrada na bipolaridade DC/PC, repercutindo na atuação da RAI. A partir da reforma de 1975, o controle da radio-televisão italiana passou do Poder Executivo ao Parlamento. Na prática, essa medida se traduziu na repartição das cadeias de TV entre a Democracia Cristã e a esquerda. 101 REVISTA REALIDADE. “Rádio – foi assim que ouvimos a invasão”, no 31, out. 1968, p. 8. 95 Com a reforma da RAI, a classe dirigente italiana perdeu o controle exclusivo de um importante aparato ideológico.102 As rádios livres italianas surgem em 1974, após forte discussão pública sobre a privatização da TV a cabo. Nesse ano, o Tribunal Constitucional italiano declarava ilegítimo o monopólio do Estado sobre as telecomunicações103, fato que impulsionou o aparecimento das primeiras rádios livres. Essas rádios já nasceram divididas: de um lado estavam as emissoras que tinham interesses comerciais e intenção de abrir o canal à publicidade e assim transformar o rádio em um negócio lucrativo; de outro lado estavam aquelas preocupadas em utilizar o rádio de forma alternativa104, numa vivência mais democrática; operavam de maneira autogestionária e eram mantidas com contribuições de colaboradores e simpatizantes da causa. O princípio norteador das rádios livres era fazer com que o “ouvinte” se sentisse dentro e participante de um movimento: a qualquer momento (e sem que esse momento pudesse ser determinado a priori) ele poderia telefonar para a emissora para informar qualquer coisa que estivesse acontecendo à sua volta e ser colocado imediatamente no ar, sem 102 FLICHY, Patrice. “La explosión del monólogo. Las radios paralelas en la Europa Occidental”. In: BASSETS, Lluís (ed.). De las ondas rojas a las radios libres. Barcelona, Ed. Gustavo Gili, 1981. pp 185-7. 103 FLICHY, Patrice, op. cit., p. 188. 104 MACHADO, Arlindo et alii, op. cit., pp 62-3. 96 qualquer censura, ou então se dirigir diretamente à emissora para dar o seu recado.105 Representante típica das rádios mais conseqüentes do movimento italiano foi a Rádio Milano Centrale. De acordo com Machado, esta rádio “mantinha conexões diretas com fábricas ocupadas e contava com uma rede de informações sobre a vida da cidade que incluía, entre outros, os motoristas de táxi de Milão”106. Os ouvintes mantinham-se informados sobre as concentrações, as greves e as manifestações; a publicidade também era utilizada de forma alternativa: a rádio anunciava apenas as cooperativas e os mercados que vendiam a preços populares. No final da década de 70, as rádios livres chegam à França, inspiradas pelas rádios da Itália. Após a investida de Brice Lalonde para chamar a atenção do público à causa das rádios livres, vários transmissores começam a ser montados. Os ecologistas denominam a nova experiência de “rádios de quarteirão”. Para eles, o consumo mínimo de energia elétrica e a possibilidade de atingir boa parte da população, de forma barata e rápida e sem desperdício de papel, são os 105 Idem, ibidem, p. 30. 106 Op. cit., p. 63. 97 melhores argumentos a favor das rádios. Chegou-se até a pensar em emissoras alimentadas com energia solar.107 Emissoras como Rádio Verte de Paris, Rádio Tomate, Rádio Oblíqua, Rádio Gay e tantas outras deram voz a vários setores da sociedade, que pela primeira vez experimentaram falar sem intermediários. A Rádio Tomate, da qual fez parte Felix Guattari, às vezes era tomada pelos moradores do bairro, desempregados e até mendigos, os quais pediam a palavra para fazer o Quartier Latin ouvi-los.108 Mas o movimento de rádios livres não foi formado apenas pelas emissoras preocupadas com o uso subversivo do rádio. Existiram também os grupos econômicos interessados no novo filão que se abria, além dos grupos políticos, mais preocupados em fazer a propaganda de seus partidos. Contraditoriamente, foram as duas vertentes que saíram lucrando quando houve a regulamentação das rádios livres na Itália e na França. No Brasil, a imprensa alternativa Enquanto a Europa utilizava as rádios livres como contestação ao monopólio estatal das telecomunicações, a situação brasileira na área política era 107 MARINOVIC, Ivan, op. cit., p. 27. 108 MACHADO, Arlindo et alii, op. cit., p. 30. 98 ditatorial, com a censura prévia à imprensa persistindo vigorosamente. O grande paradoxo é que nesse período a imprensa alternativa entrava numa rica fase de produção. Para Regina Festa, o decênio 1968-78 é caracterizado por uma “comunicação de resistência, denúncia e acumulação de forças por parte das oposições”109, quando articularam-se espaços para o confronto com o poder militar, através de novos e corajosos canais de expressão. De um lado, a repressão direta e a censura aos meios de comunicação de massa tentavam bloquear as manifestações e as reivindicações populares, com o objetivo de impor um isolamento ao movimento de base e à sociedade civil no seu todo. De outro lado, as próprias condições de marginalidade social e política, acrescida à crescente pauperização das classe subalternas, construíam pólos de conflito e resistência.110 A autora acredita que a organização dos movimentos sociais nessa fase não ocorreu por acaso: localizados no interior dos conflitos, os movimentos sociais passam a lutar pelos espaços que lhe são negados e pelo próprio direito à vida. Constituíram, portanto, uma questão de sobrevivência. 109 Op. cit., p. 58. 110 Idem, ibidem, pp. 58-61. 99 Dessa forma, o confronto ocorreu através do surgimento de inúmeros movimentos sociais, com características diferentes mas tendo em comum a resistência ao sistema. Foi nessa época, por exemplo, que se multiplicaram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), as quais reuniam as pessoas pela fé, para “descobrir os signos de morte e de injustiça, e, a partir do próprio Evangelho, buscar identificar os signos de vida e de transformação da sociedade”111. Muitos movimentos populares nasceram a partir das CEBs, responsáveis pela presença e participação das mulheres nos movimentos sociais e também pela origem de uma série de veículos da comunicação popular. A organização dos movimentos sociais, relacionada com o momento político vivido pelo país, teve como porta-voz a imprensa alternativa. À essa imprensa, organizada por médios empresários e pela pequena burguesia112, coube o papel de servir de instrumento de comunicação dos ditos movimentos, dos intelectuais, dos grupos de oposição política etc., indo até mesmo além da mera oposição ao regime, conforme atesta Raimundo Pereira: A imprensa alternativa, porém, fez mais que opor-se à forma política – de ditadura militar – assumida pelo regime: opôs-se ao seu conteúdo 111 Idem, ibidem, pp. 63-4. 112 PEREIRA, Raimundo Rodrigues. “Vive a imprensa alternativa. Viva a imprensa alternativa!”. In: FESTA, Regina & SILVA, Carlos Eduardo Lins da (orgs.). Comunicação popular e alternativa no Brasil. São Paulo, Paulinas, 1986. p. 56 100 antinacional e antipopular, opôs-se à monopolização da economia, à sua integração com os grandes trustes financeiros internacionais.113 Nesse ínterim, é que essa imprensa ganha força e respaldo junto ao povo com a circulação de dezenas de jornais como O Pasquim (1969), Bondinho (1970), Pato Macho (1971), Grilo (1971), Opinião (1972), Ex (1973), De Fato (1976), Coojornal (1976), Lampião (1976), Repórter (1977), Em Tempo (1977). 113 Op. cit., p. 57. 101 Capítulo 4 A democratização da comunicação 4.1. Anos 80: os movimentos sociais e as novas tecnologias No início da década de 80, os movimentos sociais encontravam-se em refluxo. O país atravessava séria crise financeira por causa da dívida externa e, como conseqüência, a inflação, o desemprego e a miséria estavam em alta. As greves e a impopularidade do governo Figueiredo completavam o cenário. Diante desse quadro, a partir de 1983 começam as mobilizações populares em torno do restabelecimento do regime democrático, exigindo-se as eleições diretas dos governantes. A sociedade civil volta às praças públicas em inúmeras manifestações que chegam a surpreender pelo número de pessoas nas ruas – no Anhangabaú, em São Paulo, a campanha pelas diretas chegou a reunir 1,7 milhão de pessoas. Nesse período ressurgem também os jornais populares, como o Jornal dos trabalhadores, Mulherio, Cadernos do Terceiro Mundo etc., e o teatro de conteúdo político, como o Grupo Forja, dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, e o Grupo Tetra, dos bancários, exemplos desse tipo de engajamento nas artes. 102 As novas tecnologias chegam aos poucos, e aos poucos também, devido ao baixo custo dos equipamentos, aproximam-se dos movimentos populares que, num primeiro momento, usam vídeos e computadores, para posteriormente utilizar as rádios e TVs livres. O Brasil começava a entrar, em caráter irreversível, na era da eletrônica (nova etapa de aliança com o capital internacional, apesar da Lei de Informática e de Reserva de Mercado), abrindo conseqüentemente a possibilidade de uso alternativo dessas tecnologias por setores dos movimentos sociais.114 Durante a década de 70 as novas tecnologias da comunicação e da informação surgem nos países industrializados, conseqüência dos avanços da indústria eletrônica. Mas só na década seguinte passam a fazer parte daquele mercado, logo espalhando-se pelo resto do mundo115. Fazem parte dessas novas tecnologias uma gama de equipamentos como videoteipes, videocassetes, videodiscos, câmeras portáteis, TVs a cabo, computadores, fax, correios eletrônicos etc. Grupos isolados e os movimentos sociais brasileiros percebem nas novas tecnologias uma outra forma de comunicação, com a possibilidade de atingir 114 FESTA, Regina. “Movimentos sociais, comunicação popular e alternativa”. In: FESTA, Regina & SILVA, Carlos Eduardo Lins da (orgs.). Comunicação popular e alternativa no Brasil. São Paulo, Paulinas, 1986. p. 29. 115 MELO, José Marques de. Comunicação; direito à informação. São Paulo, Papirus, 1986. p. 29. 103 mais pessoas, estimulando-as à participação conjunta nas lutas por melhorias sociais. Contudo, o controle da venda e produção dos equipamentos de informática e eletroeletrônicos está nas mãos do Estado, que controla também as ondas de radiodifusão. Mas isso não impede que surjam as “rádios piratas” na década de 80 e que muitos grupos passem a produzir vídeos populares. Contribui para isso o fato de essas novas tecnologias gradativamente alcançarem um baixo custo, possibilitando o acesso aos equipamentos. 4.2. O movimento pela democratização da comunicação Diante de todos esses fatores, passa-se a debater a democratização dos meios de comunicação, numa tentativa de dar aos mais variados setores sociais a oportunidade de se expressar. Na realidade, toda essa questão só pode ser compreendida a partir do surgimento, na década de 70, da Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação (Nomic), movimento que surgiu através da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e que “propõe a distribuição eqüitativa dos recursos de comunicação entre as nações e mudanças 104 profundas nos fundamentos legais e institucionais que hoje regem as relações internacionais de comunicação”116. A Unesco, junto com organizações internacionais e instituições acadêmicas, organizou várias reuniões e conferências debatendo a democratização da comunicação, até que em 1976 constitui a Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas da Comunicação, presidida por Sean Macbride, jornalista, jurista e ex-ministro das relações exteriores da Irlanda, contando com mais 16 personalidades internacionais na área da comunicação e cultura. Em 1980, essa comissão divulgou o resultado do estudo intitulado “Um Mundo e muitas vozes”, o famoso “Relatório Macbride”, o documento mais amplo e abrangente sobre a democratização da comunicação já publicado 117. O relatório final fala de censura, controle governamental, monopólio e comercialização dos meios de comunicação, domínio cultural, poder das sociedades transnacionais, direito de informar e ser informado, políticas de comunicação etc. assuntos sobre os quais, 17 anos depois, ainda estão em acirrada discussão. 116 SOUZA, Marcio Vieira de. As vozes do silêncio, o movimento pela democratização da comunicação no Brasil. Paris/Florianópolis, Foundation pour le progrès de l’homme/Diálogo, 1996. pp. 58-9. 117 Idem, ibidem, p. 59. 105 A mobilização brasileira Durante a campanha pelas eleições diretas, em 1984, surgem as primeiras iniciativas para se criar um movimento de luta pela democratização dos meios de comunicação no Brasil. Segundo Marcio Vieira de Souza118, as tentativas de manipulação do processo político feitas pela Rede Globo durante a campanha das diretas serviram de estímulo para que um grupo de jornalistas, professores e estudantes de comunicação, apoiados por várias entidades da sociedade civil, organizassem a Frente Nacional por Políticas Democráticas de Comunicação (FNPDC). Após a derrota da emenda Dante de Oliveira, que propunha as eleições diretas em 1985, a FNPDC se desarticula, mas serve como referência à Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) durante o período de instalação da Assembléia Nacional Constituinte, em 1987, para a proposta de avanços na área da comunicação social. Pouco se conseguiu, mas pela primeira vez foi incluído um capítulo especial na Constituição tratando da comunicação social em cinco artigos (Art. 220 a 224) e “também foi aprovada a instituição do Conselho Nacional de 118 Op. cit., p. 23. 106 Comunicação Social como órgão auxiliar do Congresso Nacional com representação obrigatória de entidades representativas da sociedade civil”119. Outras entidades surgem tendo como bandeira a democratização da comunicação. É o caso do Movimento Nacional de Democratização da Comunicação (MNDC), que surgiu em São Paulo em 1987, e dos Comitês de Democratização dos Meios de Comunicação, surgidos em vários estados em 1990, que depois passam a fazer parte do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC)120, criado em 1991. À parte tantas organizações que tratam da democratização das comunicações, existe na realidade uma série de movimentos que nem sempre estão inseridos em associações específicas, apesar de lutarem de uma forma ou de outra por mais democracia nos meios. Marcio Vieira de Souza refere-se acertadamente ao movimento pela democratização da comunicação como uma ampla rede de movimentos sociais121: Estamos nos referindo aos inúmeros movimentos, grupos, experiências sociais e culturais que se desenvolvem na sociedade brasileira com o intuito de expressar diversas vozes, culturas e ideologias que não têm 119 Idem, ibidem, p. 34. 120 Idem, ibidem, pp. 34-7. 121 O autor esclarece que ao falar de “redes” está referindo-se a “redes sociais” no sentido de “formas de organização humana e de organização entre grupos e instituições”. Salienta também que as referidas redes sociais, ligadas à comunicação, estão vinculadas a uma outra forma de rede, redes físicas e de recursos comunicativos, as quais propiciam maior desenvolvimento às redes sociais. Op. cit., pp. 24-5. 107 chance de manifestar-se livremente ou são ignoradas pela mídia brasileira (...) O desenvolvimento das novas tecnologias e a possibilidade de criação de redes de comunicação, de interesses específicos, redes técnicas (físicas), utilizando os mais variados recursos, meios e canais, são fundamentais para o desenvolvimento destas redes de movimentos sociais. Uma dessas inúmeras redes é o movimento de rádios livres, um dos pioneiros no debate sobre a democratização das comunicações e exemplo da possibilidade de expressão de outras (diferentes) vozes retinindo paralelas aos grandes meios de comunicação. 4.3. As rádios livres: conotações políticas Como já vimos, foi a partir de 1985 que várias rádios ilegais, então conhecidas como “rádios piratas”, surgiram em Sorocaba, interior de São Paulo, voltadas sobretudo à diversão dos jovens que as colocavam no ar, num confronto direto com o monopólio estatal da comunicação. Naquele mesmo ano um grupo de estudantes da PUC de São Paulo coloca no ar a Rádio Xilik que surge ao lado de outras rádios livres. Essas rádios possuem uma conotação diferente da das rádios sorocabanas, pois preocupam-se em resistir ao monopólio através de uma programação conseqüente aos moldes do movimento das rádios livres na Europa. 108 O discurso é político sem ser partidário, as músicas são de caráter alternativo, cabendo desde um Frank Zappa até um então desconhecido Arrigo Barnabé, e é comum também lançarem um manifesto anunciando a proposta da rádio. Para as rádios livres a legalização não é vista com bons olhos, pois isso significaria burocratizar as experiências e assim perder-se-ia parte da criatividade contida nessas emissoras. Nas palavras dos integrantes da Rádio Xilik “é impossível normatizar o desejo e a rádio livre deve continuar a atravessar a comunicação oficial indefinidamente porque é esta a sua verdadeira função dentro da democracia”122. Dar espaço à publicidade é outra polêmica que divide os integrantes de várias rádios livres, sem que haja um consenso. Algumas defendem a entrada de publicidade em forma de apoio cultural (o que se concretiza com as rádios comunitárias) e outras que rechaçam qualquer tipo de anúncio ou apoio cultural, defendendo meios alternativos (vendas de camisetas, bottons, organização de festas etc.) para se obter a renda necessária à manutenção da experiência radiofônica. Vigilância no éter 122 MELIANI, Marisa, op. cit., p. 114. 109 Quando essas rádios mais politizadas surgem no Brasil, o presidente da República é José Sarney e o ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães. Preocupado com o crescente número de rádios livres, o ministro baixa a Portaria 223, no dia 15 de agosto de 1985, determinando ao Dentel que intensifique a vigilância e o rigor no combate aos serviços de telecomunicações clandestinos, especialmente os de radiodifusão123. Organizando o movimento Numa tentativa de organizar o movimento, em maio de 1989 surge o Coletivo Nacional de Rádios Livres, com o objetivo de divulgar a causa das emissoras sem concessão em encontros estaduais e nacionais. O Coletivo realiza três encontros nacionais de 1989 a 1991, em São Paulo (SP), Goiânia (GO) e Macaé (RJ), respectivamente. No Primeiro Encontro Nacional de Rádios Livres, ocorrido na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), foi definido que as rádios livres “são aquelas que vão ao ar sem pedir autorização a quem 123 MACHADO, Arlindo et alii, op. cit., pp. 178-9. 110 quer que seja”124. Os termos “pirata” e “clandestina” são rechaçados, pois as rádios livres “não são lucrativas nem partidárias”.125 Consideramos a definição proposta nesse encontro muito imprecisa e contraditória. Se as rádios livres são aquelas que vão ao ar sem pedir autorização a ninguém, isso engloba todo tipo de rádio ilegal: comerciais, evangélicas, com propostas culturais, comunitárias etc. Para Marisa Meliani, o objetivo dessa definição “é a instalação do maior número possível de emissoras em todo o País”126. Ou seja, não importa a qualidade do conteúdo dessas rádios e sim o número de rádios que vão ao ar. Ao mesmo tempo, nesse encontro foram rechaçados os termos “pirata” e “clandestina” por se entender que as rádios livres não têm como objetivo o lucro e o partidarismo político. Mas se rádios livres são todas aquelas que vão ao ar sem autorização, o que dizer das rádios ilegais que têm como objetivo apenas o lucro ou a divulgação religiosa ou ainda a divulgação de determinados nomes políticos durante as épocas eleitorais? No nosso ponto de vista, não se pode considerar como rádios livres aquelas que visam ao lucro ou à disseminação de correntes religiosas. Isso tiraria todo o caráter de alternatividade desse tipo de proposta. 124 MELIANI, Marisa, op. cit., p. 125. 111 Historicamente, as rádios livres estão ligadas a um modo diferente de fazer rádio, com um discurso alternativo ao existente e não com um discurso reprodutor do status quo, conforme vimos no terceiro capítulo deste trabalho. Nessa perspectiva, Daniel Herz, ao falar da atuação do FNDC junto às rádios livres e comunitárias, considera extremamente importante o papel diferenciado destas em relação às rádios oficiais: A perspectiva do Fórum em relação à radiodifusão livre e comunitária não é simplesmente assegurar que, quantitativamente proliferem emissoras, mas assegurar que as emissoras se disseminem cumprindo um papel diferenciado em relação às emissoras de radiodifusão convencional. Não nos interessa difundir pequenas “globos” no Brasil afora com práticas manipulatórias e igualmente perversas. Interessa disseminar emissoras que sejam capacitadas a difundir um conteúdo diferente e a adotar práticas diferentes em relação aos veículos integrantes dos sistemas dominantes de comunicação.127 Outras associações Após a realização do Terceiro Encontro Nacional de Rádios Livres, em Macaé (RJ), no mês de março de 1991, houve intensa repressão às rádios livres com a apreensão de equipamentos pela Polícia Federal. Uma das rádios que 125 SOUZA, Marcio Vieira de, op. cit., p. 107. 126 MELIANI, Marisa, op. cit., p. 125. 127 Entrevista concedida à autora no dia 4 de novembro de 1995, durante o I Encontro de Radiodifusão Livre e Comunitária, no Rio de Janeiro. 112 tiveram o equipamento apreendido foi a Rádio Reversão, poucas semanas depois desse encontro, o qual contou com a presença de Léo Tomaz, criador da rádio.128 A partir desse episódio surgiu em São Paulo a Associação de Rádios Livres do estado de São Paulo (Arlesp), com estatuto registrado em cartório, objetivando integrar as rádios livres do Estado. Participaram da primeira reunião 10 rádios livres, que aprovam, entre outras coisas, a potência máxima de 50 watts, o respeito aos horários políticos e à Voz do Brasil e a possibilidade de se receber apoio cultural para a manutenção da rádio129. Além da Arlesp, outras tantas associações e até sindicatos surgem tentando agregar as inúmeras rádios ilegais presentes no país, principalmente as comunitárias: Fórum Democracia na Comunicação; Sindicato das Rádios, Televisão e Órgão de Comunicação Sonora Livre e Comunitária do Brasil [sic] (Sinprocom); Associação Paulista dos Radiodifusão Local-Comunitárias Proponentes de Emissoras de (Aperloc); Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço); Associação Nacional Católica de Rádios Comunitárias (Ancarc) etc. Muito antes de todas essas entidades existirem já havia em nível mundial uma associação congregando em torno de 600 rádios comunitárias distribuídas 128 ABREU, Claudia de. “O início do movimento de rádios livres”. In: ENCONTRO ESTADUAL DE RÁDIOS LIVRES E COMUNITÁRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1., São Paulo, 1995. 113 pela Europa, África e América Latina: a Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc), com sede no Canadá, criada em 1983 durante a Primeira Conferência Mundial de Rádios Comunitárias. De acordo com Bruce Girard, coordenador do projeto de secretariado da Amarc, a associação é hoje uma organização internacional não-governamental com o objetivo de prestar serviços ao movimento de rádios populares: “Seu trabalho é promover, facilitar e coordenar a cooperação e o intercâmbio entre emissoras de todo o mundo”.130 Essas operações são dirigidas por um grupo de 10 pessoas com representantes de todos os continentes. No Brasil, há poucas emissoras associadas à Amarc, mas só na América Latina há mais de 300 rádios filiadas distribuídas em países como Equador, Peru, Colômbia, Bolívia, Nicarágua, México e outros. 4.4. Anos 90: o início da luta pela regulamentação das rádios comunitárias No segundo capítulo desta dissertação, localizamos o momento em que surgem as rádios comunitárias brasileiras precisamente no início dos anos 90, quando a prática da radiodifusão livre espalha-se por vários lugares e alguns movimentos sociais abraçam a causa, montando rádios para servir aos interesses 129 MELIANI, Marisa, op. cit., pp. 129-30. 114 do bairro em que se situam. As rádios comunitárias também crescem em número quando se passa a discutir sua regulamentação. Talvez o principal ponto de partida tenha ocorrido em 1992, quando passa a tramitar pelo Congresso Nacional a Lei de Informação Democrática (LID) de autoria do deputado Zaire Rezende (PMDB). Se aprovada, essa lei revolucionaria a comunicação no Brasil, como demonstramos em alguns pontos a seguir: Liberdade de transmissão municipal. Emissoras comunitárias de rádio e televisão, de alcance municipal, sem fins lucrativos, poderão ser instaladas apenas mediante registro no cartório local. Direito à informação. Todas as pessoas terão liberdade de acesso às informações existentes em repartições públicas de qualquer natureza. Direito de antena. Entidades e movimentos de caráter estadual ou nacional terão direito à horário [sic] gratuito no rádio e na televisão. Fim do monopólio na comunicação. Ninguém poderá controlar mais de 30% da comunicação social em um estado ou no país. Ninguém poderá possuir, ao mesmo tempo, rádio, jornal ou revista e televisão (...).131 Devido à grande abrangência do projeto e conseqüente imobilidade junto ao Congresso, o FNDC reconheceu a impossibilidade de a LID ser aprovada e resolveu desmembrar alguns pontos específicos do projeto, numa tentativa de 130 “Organizando as vozes de Babel”. Chasqui, Revista Latinoamericana de Comunicación, no 45, abr. 1993. pp.4-5. 131 SOUZA, Marcio Vieira de, op. cit., pp. 169-70. 115 vê-los aprovados, entre outros, a regulamentação das rádios livres e comunitárias. Segundo Marcio Vieira de Souza132, a proposta de regulamentação das rádios livres e comunitárias surgiu de uma articulação do FNDC, que sugeriu uma regulamentação através de decreto, sem necessidade de lei. O deputado federal Fernando Gabeira (PV) patrocinou o projeto e juntou-se aos integrantes do Fórum para debater o assunto com o ministro das Comunicações Sérgio Motta, numa reunião em 10 de abril de 1995. Mas na realidade pouca coisa avançou após essa reunião. As rádios continuam sendo apreendidas, geralmente em função de denúncias e a Abert promoveu no final de 1996 uma forte campanha nacional contra as rádios ilegais, com vinhetas nas emissoras oficiais denunciando a prática de pirataria radiofônica e listando as rádios ilegais apreendidas pela Delegacia Regional do Ministério das Comunicações de São Paulo. O paradoxo dessa situação é que, de acordo com o jornalista Nivaldo Manzano133, o ministro Sérgio Motta teria afirmado, em 1995, que autorizaria a instalação de 10 mil rádios comunitárias por meio de uma portaria até o final do primeiro período do mandato de Fernando Henrique Cardoso. 132 Op. cit., p. 172. 133 MANZANO, Nivaldo. “Escândalo no ar”. Caros Amigos, São Paulo, no 2, maio 1997. p. 11. 116 No entanto, ainda segundo o jornalista, o ministro teria desistido do projeto por pressões da Abert: “Como havia outras questões em jogo, como a reeleição, para a qual a Abert daria, como deu, uma contribuição fundamental, Motta entregou os pontos”134. Depois disso, houve uma grande operação contra as rádios comunitárias em que foram apreendidas centenas delas. Sérgio Motta, desistindo da portaria, acolheu o projeto de lei de radiodifusão comunitária que regulamenta o serviço. Esse projeto, de relatoria do deputado Koyo Iha (PSDB), foi aprovado em dezembro de 1996 na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, da Câmara dos Deputados e agora aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça; caso não haja nenhum entrave, será encaminhado ao Senado e, se aprovado, passará às mãos do presidente para ser sancionado135. 4.5. A exploração do serviço de radiodifusão É importante lembrar como o serviço de radiodifusão pode ser explorado. Segundo Gisela Ortriwano136, a exploração pode acontecer de dois modos: o sistema de monopólio, ou autoritário, em que o monopólio é estatal e o Estado 134 Idem, ibidem, p. 11. 135 SALIGNAC, Carla. “As rádios comunitárias são uma forma de participação do povo. Revista E, São Paulo, SESC, no 11, maio 1997. pp. 31-32. 136 ORTRIWANO, Gisela. A informação no rádio: os grupos de poder e a determinação dos conteúdos. São Paulo, Summus, 1985. pp. 52-4. 117 pode explorar o serviço diretamente através da criação de uma empresa pública, e o sistema pluralista, no qual a radiodifusão é explorada por emissoras estatais e privadas (estas últimas com fins comerciais). Nos dois casos, é o Estado que controla o serviço, seja de forma direta ou concedendo a terceiros o direito de emissão, por determinado período. Prevalece no Brasil o sistema pluralista, cabendo ao Estado conceder a autorização para a exploração do serviço, geralmente a grupos econômicos e políticos da sua confiança137, num prazo fixado em 10 anos para as emissoras de rádio e 15 anos para as de TV. O Estado permanece encarado como proprietário legítimo do espaço eletromagnético, donde decorre que o apadrinhamento continua sendo a conseqüência fatal do mecanismo de concessões. Sejam quais forem os critérios de distribuição, a concessão equivale, nesse sistema, a uma outorga de privilégios, de forma que qualquer alteração da estrutura de poder a nível das mídias de teledifusão significará apenas uma troca de mandarins, sem qualquer progresso real para a democratização dos meios.138 As concessões Com a Nova República esperava-se uma mudança na política de concessões na área de radiodifusão, segundo compromisso assumido por 137 MACHADO, Arlindo et alii, op. cit., p. 28. 138 Idem, ibidem, op. cit., p. 16. 118 Tancredo Neves e pela Aliança Democrática. O então ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães, prometia medidas moralizadoras, e, três dias após assumir o cargo, suspendia 140 processos de concessões outorgadas nos últimos seis meses do governo Figueiredo. Mas a medida servia apenas como retaliação a seus adversários políticos, como ficou demonstrado mais tarde: “O governo da Nova República adotou a velha política do clientelismo e da barganha política na distribuição das concessões de emissoras de rádio e televisão, agravando a concentração da mídia eletrônica no país”139. Assim, o governo Sarney repetia a mesma prática de seus antecessores e até se destacou com o recorde de 1028 concessões de emissoras de rádio e TV outorgadas, trocadas por interesses do governo, principalmente à época da Constituinte, quando se intensificaram as outorgas por ocasião da votação para ampliar o mandato de quatro para cinco anos ao presidente José Sarney140. Até 1988, as concessões eram atribuições do presidente da República e do ministro das Comunicações. A nova Constituição, em seu Artigo 37, determina que as concessões sejam feitas através de licitação pública, assegurando a igualdade de condições aos concorrentes. 139 SOUZA, Marcio Vieira de, op. cit., p. 35. 140 Idem, ibidem, p. 35. 119 Novas regras para as concessões de rádio e TV No governo de Fernando Henrique Cardoso foram definidos critérios mais rigorosos para as outorgas de rádio e televisão, através do Decreto 2 018 publicado no Diário Oficial em 26 de dezembro de 1996. Dentre os principais pontos do decreto reafirma-se a regra de licitação pública para se conseguir uma concessão de rádio (onda média, curta, tropical e freqüência modulada) e de televisão; veta-se a participação de políticos em exercício de mandato nos quadros de direção de empresas concessionárias; a mesma entidade ou as pessoas que integram o seu quadro acionário e diretivo não poderão receber mais de uma outorga do mesmo tipo de serviço de radiodifusão na mesma localidade141. Antes desse decreto ser publicado, o jornal Folha de S.Paulo142 divulgou matérias revelando um esquema paralelo de venda de concessões de FM, às vésperas de ser anunciada a liberação de 120 concessões de rádio e TV, de um total de 600 prometidas pelo ministro das Comunicações. Segundo as matérias publicadas, grupos de lobistas estariam comercializando emissoras FM, do lote das 120 concessões ainda não liberadas, por preços que variavam entre 50 e 150 mil reais. 141 OLIVEIRA, Ribamar. “Definidas regras para concessão de rádio e TV”. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 27 dez. 1996, p. A-4. 120 Um outro fato envolveu diretamente o ministro Sérgio Motta, o da compra de votos para reeleição, na primeira quinzena de maio deste ano. Segundo gravações obtidas pelo jornal Folha de S.Paulo, governadores e deputados do Acre e do Amazonas teriam ganhado dinheiro em troca de seus votos favoráveis à emenda da reeleição. Até mesmo concessões de TV e de rádio teriam sido negociadas nesse esquema. O monopólio nos meios de comunicação no Brasil A propriedade dos meios de comunicação no Brasil está nas mãos de políticos e seus familiares, oito famílias e grupos econômicos. Segundo levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo, em setembro de 1996, 104 dos 513 deputados federais e 25 dos 81 senadores são sócios ou proprietários de emissoras de rádio e TV. A pesquisa demonstra também que 40% das emissoras de rádio e 27% das de televisão de todo o país têm políticos como sócios143, ou seja, em relação ao rádio, quase a metade das emissoras está nas mãos de políticos, cuja lista inclui José Sarney, Fernando Collor de Melo, José Eduardo Andrade Vieira, Antônio Carlos Magalhães, Inocêncio de Oliveira, Jader Barbalho e muitos outros que têm ou já tiveram ligação com o governo. 142 Edições dos dias 20, 21, 22 e 24 de dezembro de 1996. 121 As oito principais famílias que detêm o domínio da radiodifusão brasileira são: Marinho (Rede Globo), Sirotsky (RBS), Bloch (Grupo Manchete), Saad (Rede Bandeirantes), Abravanel (SBT, do Grupo Silvio Santos), Câmara (Grupo Câmara), Dou (TV do Amazonas) e Jereisatti (Grupos Verdes Mares)144. Esse quadro demonstra claramente que a comunicação no Brasil está vinculada a interesses políticos e/ou econômicos. Por isso, é difícil esperar grandes mudanças com resultados qualitativos na área, mesmo em relação à provável regulamentação das rádios comunitárias: assunto que passa diretamente pelos interesses políticos de quem controla a radiodifusão no país. 4.6. As principais leis que orientam o serviço de radiodifusão O Código Brasileiro de Telecomunicações surge em 1962, através da Lei 4117, que regulamenta o sistema de concessão e distribuição de canais de rádio e televisão, através do Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel). A partir da implantação desse código, estava inaugurado o monopólio do Estado sobre as telecomunicações. Durante a vigência do governo militar, foi instituído o Decreto-Lei 236, com o objetivo de “complementar e modificar a Lei 4117”. Segundo Sônia 143 OLIVEIRA, Ribamar, op. cit. 144 SOUZA, Marcio Vieira de, op. cit., p. 167. 122 Virginia Moreira, o principal objetivo desse decreto foi o de “anular e substituir artigos e parágrafos da legislação anterior para inserir medidas que, de acordo com as exigências do momento, cerceavam as atividades das emissoras”145. É do Decreto-Lei 236 que vem o entrave à prática das rádios ilegais. A penalidade prevista está no Artigo 70 do referido decreto, que, como foi dito, complementa e modifica a redação do texto da lei 4117, de 27 de agosto de 1962. Diz o decreto: “Constitui crime punível com a pena de detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de telecomunicações sem observância do disposto nesta Lei e nos regulamentos”. Ainda em 1967 são criados o Ministério das Comunicações e o Dentel, órgão que passa a fiscalizar, no lugar do Contel, a programação do rádio e da televisão e posteriormente a prática das rádios ilegais. O exercício da radiodifusão também é destacado pelo Código Penal (Decreto-Lei 2 848, de 7/12/40), pela Lei de Imprensa (Lei 5250, de 9/2/67) e pela Lei de Segurança Nacional (Lei 7170, de 14/12/83). 145 MOREIRA, Sônia Virginia, “A legislação dos meios eletrônicos nos Estados Unidos e no Brasil”. In: GT RÁDIO – XVIII INTERCOM – CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 1995. p. 9. 123 Com a Constituição de 1988 surgem novas perspectivas para quem pratica a radiodifusão sem autorização governamental. Através do Art. 5o, inciso IX, e dos Artigos 1o, 215o, 220o e 223o, que garantem a liberdade de comunicação, muitas rádios começam a ter mais argumentos legais para funcionar. Fundamentados nesses artigos, alguns juízes absolvem os acusados de crime por prática de radiodifusão ilegal, como foi o caso do jornalista Léo Tomaz, da Rádio Reversão. Salientamos que, apesar disso, as leis do Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1967, continuam valendo, pois “ainda não foram elaboradas novas leis complementares, regulamentando a Constituição de 1988”146. 146 ROCHA, José Carlos. “Quem vai controlar a rádio comunitária?”. In: ENCONTRO ESTADUAL DE RÁDIOS LIVRES E COMUNITÁRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1., São Paulo, 1995. 124 Parte II Capítulo 5 A história de uma rádio comunitária: Rádio Cidadã 5.1. Antecedentes A partir de abril de 1995 o governo federal, através do Ministério das Comunicações, considera a possibilidade de regulamentar as rádios comunitárias. Esse episódio foi mais um incentivo à proliferação dessas emissoras, que já existiam em grande número. Calcula-se que hoje existam mais de 2 mil rádios ilegais no Brasil. Só estado de São Paulo concentra-se a maior parte delas, cerca de mil emissoras. Mas o número pode se maior, uma vez que é quase impossível saber exatamente quantas rádios ilegais estão no ar. Entre os praticantes da experiência é comum dizer que para cada rádio fechada pela fiscalização do Ministério das Comunicações surgem outras cinco. Como já vimos, nem todas as rádios sem concessão são comunitárias. Estas geralmente surgem a partir de um trabalho preexistente em movimentos sociais, associações e comunidades de bairros, os quais percebem na rádio comunitária a oportunidade de expressar sua voz, seus anseios e receios através 125 de um novo veículo de comunicação com maior capacidade de mobilização de pessoas. É nesse contexto que em julho de 1995 surge a Rádio Cidadã, uma rádio comunitária localizada no Jardim Bonfiglioli, bairro do Butantã, zona Oeste da cidade de São Paulo. Essa emissora foi criada com o objetivo de desenvolver um trabalho voltado à comunidade da região em que funciona. Para isso tem tentado encontrar, nesses dois anos de funcionamento, uma maneira de integrar os moradores de diferentes classes sociais existentes na região e assim ser um veículo de expressão de todo o bairro e não apenas de determinado grupo. Como veremos a seguir, a Rádio Cidadã foi criação de um grupo de pessoas, sob a liderança de Luci Martins, que, junto com sua família, financiou todo o projeto da rádio, cedendo os equipamentos, inclusive a casa onde a rádio funciona. É Luci também quem preside a Associação Cidadã do Butantã, entidade mantenedora da rádio. Assim, a reconstituição de toda a história da Rádio Cidadã foi feita com base principalmente em depoimentos da jornalista, que acompanhou o processo de criação da emissora desde o início e é a pessoa central no funcionamento da rádio. Além dela, também entrevistamos as pessoas que participam da experiência no meio comunitário desde o início, como um dos filhos de Luci, Paulo Marcelo Reis, e o músico José Luis da Silva. 126 5.2. Principais características do Butantã e região147 O Butantã possui uma área de 12,9 km², com quase 100 mil habitantes divididos em 19 bairros, entre os quais se encontram, além do Jardim Bonfiglioli, a Cidade Universitária, Jardim Rizzo, Vila Pirajussara, City Butantã, Inocoop, Jardim Christie, Instituto Previdência, Cidade dos Bandeirantes, Vila Gomes e outros. Teoricamente a Rádio Cidadã alcança todos esses locais, mas provavelmente alcance ainda parte dos municípios vizinhos como Taboão da Serra, Osasco e Cotia, além dos bairros próximos ao Butantã, como Jaguaré, Rio Pequeno, Raposo Tavares, Vila Sônia e Morumbi. Esses bairros, junto com o Butantã, possuem uma área de 66,2 km², com um total aproximado de 600 mil habitantes e são administrados politicamente pela Administração Regional do Butantã, ligada à Prefeitura Municipal. Essa região caracteriza-se por concentrar ao mesmo tempo populações de alto e de baixo poder aquisitivo. Há em torno de 60 favelas distribuídas pelos bairros citados, com uma população estimada de 88 mil habitantes. 147 Todas as informações referentes às características do bairro do Butantã e região foram tiradas do documento Micro-Região: Butantã, elaborado pela equipe intersecretarial de planejamento entre out./nov. de 1991, obtido na Administração Regional do Butantã, que infelizmente não possuía dados mais atualizados. 127 Não se pode esquecer que no Butantã estão localizados também a Universidade de São Paulo (USP) e o Instituto Butantã, que, juntos, ocupam quase a metade de todo o bairro. Por isso, pode-se afirmar que convivem lado a lado pessoas de alto e de baixo nível intelectual. Um dos principais problemas enfrentados pelo bairro ocorre na época de chuvas, com o transbordamento de um dos córregos da região, o Pirajussara. O Butantã possui três córregos: Pirajussara, Pirajussara-Mirim e Caxingui (em parte). Além dessas características, os bairros pertencentes à Administração Regional do Butantã podem ser considerados aglutinadores de movimentos sociais. Há na região mais de 100 associações comunitárias, localizadas principalmente nas favelas, o que denota uma certa mobilização dos moradores. 5.3. A Rádio Cidadã Ao iniciar suas primeiras transmissões, a Rádio Cidadã depara-se com as características do bairro. Era necessário encontrar a fórmula de programação comunitária que pudesse chamar, ao mesmo tempo, a atenção do morador de 128 alta renda e do morador de baixa renda e assim promover uma integração entre as duas partes. Essa preocupação, no entanto, é posterior à criação da rádio. A história da Rádio Cidadã começou em março de 1995, quando o produtor de rádio e TV Paulo Marcelo Martins Reis, 25 anos, teve a idéia de montar uma “rádio pirata”. Apesar da resistência de sua mãe, a jornalista Luci Martins, que, de acordo com Paulo Marcelo, considerava perigoso ter uma rádio não-autorizada (um crime passível de prisão), ele não desistiu e, com o apoio de seu irmão, pensou em se juntar a mais alguém que possuísse uma rádio nãoautorizada para desenvolver a idéia. Passado um mês, Luci Martins mudou de opinião: “Ela falou assim: não, nós vamos montar uma rádio nossa, não vai ter sociedade com gente que a gente não conhece”, conta Paulo Marcelo. Estavam dados os primeiros passos para a criação da Rádio Cidadã, que contava inicialmente com a participação de oito pessoas. Luci Martins trabalha com comunicação há mais de 30 anos e há quase 20 participa de associações de bairro e movimentos sociais. Segundo ela, o envolvimento com as rádios livres deu-se na época em que estava trabalhando em emissoras comerciais, entre as quais e mais recentemente, as rádios AM Tupi e Atual. Em ambas as rádios, Luci sempre debateu o assunto das rádios livres, 129 procurando diferenciá-las das rádios piratas; até então não se falava em rádios comunitárias. Paulo Marcelo, por sua vez, envolvido há 12 anos em trabalhos sociais, fazia parte junto com sua família do Grupo de Defesa da Cidadania (GDC), com sede também no Butantã. Quando a rádio surgiu, tiveram a idéia de transformála na rádio do GDC. Assim a rádio ficou sendo a RC; posteriormente recebeu o nome de Cidadão, e quando mudou a proposta para rádio comunitária, mudou-se o nome para Rádio Cidadã, para fazer referência ao termo “cidadania”. Com a rádio funcionando, logo foi desvinculada do GDC, uma vez que o grupo abrangia toda a cidade de São Paulo, e, para tornar a rádio voltada estritamente ao bairro do Butantã, montou-se a Associação Cidadã do Butantã, mantenedora da rádio, que conta com mais de 30 pessoas associadas. Essa associação realiza um trabalho voltado à comunidade do bairro do Butantã. Fazem parte das atividades da associação a difusão educacional, cultural, esportiva, artística, promoção social e comunicação social. A rádio passou então a ser um veículo da associação. “A Associação Cidadã do Butantã foi criada para poder trabalhar em caráter de rádio-escola, porque nós entendemos que a melhor forma de conseguir fazer com que a rádio comunitária tivesse prosseguimento fosse ela ter esse caráter”, explica Luci. 130 Aproximação com a comunidade Durante as primeiras intervenções da rádio, a propaganda era feita verbalmente. Essa foi a fase inicial da emissora; os jovens chegaram de imediato, seguidos dos profissionais desempregados de rádios comerciais e dos religiosos. Logo após vieram os líderes comunitários, aqueles que já desenvolviam um trabalho em associações do bairro e que encontraram na rádio um veículo de aproximação entre os moradores da região. Os jovens, interessados em conhecer de perto a novidade, chegaram com a vontade de experimentar, querendo ser locutores, DJs ou, simplesmente, fazer programas leves, chamados de “besteirol”, em geral reproduzindo as mesmas músicas tocadas pelas grandes emissoras. Luci explica que os programas desses jovens, além de serem quase exclusivamente musicais, traziam muita brincadeira e também tinham um tom apelativo. É importante frisar que a rádio começou com um padrão “mauricinho”, classe média alta; já a meninada mais pobre, eles chegaram ouvindo, não tinham coragem de chegar na rádio porque não tinham auto-estima (...), começaram a chegar na rádio muito timidamente e chegaram pelas mãos dos “mauricinhos” (...) quando estes esgotaram o assunto deles, descobriram essas equipes de periferia, que fazem som e foram elas que acabaram ocupando o lugar dos “mauricinhos”, se firmaram e hoje é a meninada que segura a rádio. 131 Depois, houve a procura dos profissionais de rádios comerciais que, desempregados, passaram a ver na rádio comunitária um novo mercado de trabalho, com a oportunidade de manter os mesmos programas das rádios comerciais: Muitos profissionais de rádio a princípio vieram, fizeram seus programas e mostramos a eles, ao longo do tempo, que eles são comerciais, comerciantes, dependem de ganhar, dos anúncios, mostramos que aqui não é possível porque o que eles conseguiram ganhar como profissionais nas rádios comunitárias não paga nem a locomoção pra chegar aqui. O que uma rádio que atinge um bairro vai conseguir dar de retorno pro comerciante? Muitos acabaram desistindo. Outros resolveram montar as suas rádios, já que não conseguiram ter lucro com os programas, resolveram montar as rádios pra ganhar como empresários de rádio. Já os religiosos, principalmente pastores de várias igrejas protestantes, procuraram a emissora também querendo seu programa. “Você teria que deixar quase 50% da programação da rádio voltada para pastor”, diz Luci. A rádio não impossibilitou, no entanto, a presença de programas religiosos, havendo um horário específico para esse fim, como veremos mais adiante. Diante desses fatos houve necessidade de realizar um trabalho educativo para ensinar como funciona uma rádio comunitária, que necessariamente tem de oferecer espaço a vários segmentos da comunidade sem perder de vista os interesses dessa mesma comunidade. 132 Por fim, chegaram à rádio os líderes comunitários, pertencentes a cinco das mais de 100 associações de bairro existentes no Butantã. A essas pessoas coube o papel de tentar uma aproximação entre a rádio e os moradores do bairro. Foi o caso do músico José Luis da Silva, 54 anos, presidente da União dos Moradores da Favela Nossa Senhora Assunção há 12 anos e morador do bairro há 48 anos. Desde então José Luis possui um programa musical chamado A saudade me chama e participa também do programa Encontro com as comunidades148. Seguindo a propaganda verbal, chegaram mais pessoas do bairro interessadas em conhecer a Rádio Cidadã. Assim, em agosto de 1995, a psicopedagoga Grácia Lopes Lima e o professor de Filosofia Donizete Soares ouviram falar a respeito da rádio e se propuseram a fazer parte do projeto, ela com um programa voltado às crianças149 e ele com um programa voltado à educação e cultura. Os programas Com a chegada das pessoas mencionadas e de outras, aos poucos a rádio foi adquirindo um perfil de rádio comunitária. Estabelece-se uma outra fase na 148 Encontro com as comunidades é um dos programas que será enfocado nesta dissertação. 149 O programa supervisionado por Grácia chama-se Cala a boca já morreu (porque criança também tem o que dizer) e será objeto de nossa análise mais adiante. 133 emissora, com programas que prezam pela qualidade do que vai ao ar. Há entrevistas com especialistas de várias áreas, como saúde, política, cultura, educação etc. No entanto, ainda predominam os programas musicais. De acordo com Luci, isso ocorre porque as pessoas não sabem o que significa uma rádio comunitária: [As pessoas] não sabem achar o canal de comunicação, de falar mais do bairro, da nossa proposta, da melhoria de qualidade de vida, o que fica claro é o seguinte: as pessoas não têm informação, elas sabem o que incomoda, mas não sabem como se expressar e continua prevalecendo essa história de que rádio é pra tocar música, rádio é pra mandar abracinho, pra promoção pessoal. Por ocasião da coleta de dados para esta pesquisa, havia 26 programas no ar, divididos em 17 ou 24 horas diárias de programação. Do total exposto, 18 programas são musicais; os outros oito possuem temáticas diversas, entre as quais reclamações da comunidade, crianças, adolescentes, religião e entrevistas.150 Cada programa veiculado pela rádio tem um contrato de responsabilidade, com normas tiradas do Conselho Comunitário, que envolve diferentes setores sociais da comunidade do bairro: “Ouvimos o que o padre acha da programação, 150 No próximo capítulo trataremos da programação da emissora. 134 o que a casa da cultura, o administrador regional e as entidades acham da programação, que não é feita de forma aleatória”, diz a diretora da rádio. Estrutura física e equipamentos da rádio A Rádio Cidadã começou a funcionar com um transmissor de 20 watts de potência produzido artesanalmente, ou seja, sem muitos arranjos técnicos, e depois passou a utilizar um transmissor industrializado de 50 watts. A rádio funciona num amplo sobrado (cuja proprietária é Luci Martins), onde antes funcionava um pensionato para estudantes. Compõem a emissora, além do transmissor, uma antena, uma torre, dois estúdios - um para apresentação dos programas e outro para gravação de vinhetas da rádio, de programas e de grupos da região que não tenham espaço para gravar uma fita demo. Os equipamentos básicos da emissora são duas mesas de som semiprofissionais de 16 canais, CDs, tape decks, computadores, pick ups, sistema de telefonia para colocar o ouvinte no ar, fax e telefones, dos quais grande parte pertence à família de Luci ou foi doação de quem participa da rádio e outros foram adquiridos pela própria rádio. Custos e manutenção da rádio 135 Para se manter no ar, a rádio tem um custo aproximado de dois mil e quinhentos reais por mês. Segundo Luci, para operar com todas as condições técnicas, a rádio precisaria ter uma arrecadação de cinco mil reais. Esse dinheiro é destinado ao pagamento das contas de água, luz e telefone, manutenção dos equipamentos, compra de material fonográfico, como discos, CDs e fitas cassetes, e pagamento de uma ajuda de custo aos operadores da mesa de som. A arrecadação desse montante é feita através dos apoios culturais e das contribuições da diretoria da associação que agrega a rádio. Muitas vezes, a própria Luci assume as despesas até conseguir marcar uma reunião com a diretoria da associação e discutir o assunto. Os apoios culturais são conseguidos no comércio local pelos programadores da rádio, geralmente os que possuem programas musicais. Um programa diário custa em torno de 8 a 9 reais por hora, o que dá de 240 a 270 reais por mês, considerando-se 30 dias. Aos sábados, um programa de uma hora de duração equivale a 120 reais mensais. Isso gera um certo conflito entre alguns dos programadores da rádio: por estarem em busca de apoios culturais, acreditam ter plenos direitos sobre o horário em que fazem seus programas. Isso é constestado pela diretoria da associação, que vê o fato como uma divisão de responsabilidades dentro da emissora, não havendo portanto donos de horários e de programas. 136 Para Luci Martins, essa é uma troca justa. Citando um exemplo, ela fala a respeito dos programas desenvolvidos pelas equipes de DJs que têm programas na rádio com o objetivo de promover a equipe de som e assim realizar mais bailes no bairro: “É promoção da equipe, então tem que trocar: buscam o apoio para cobrir o horário da despesa”. Como o Butantã é um bairro predominantemente residencial, com pouco comércio, há dificuldades em se conseguirem apoios culturais para a rádio. Isso se explica pelo fato de ser novidade: a rádio comunitária é um veículo novo, ainda não regulamentado, e o apoio cultural não tem a finalidade de ser uma publicidade. Enquanto esta tem mais liberdade para falar de determinada empresa, produtos e promoções, aquele é limitado a falar apenas do nome da empresa. Ainda assim, a Cidadã tem colocado telefones e endereços nos apoios culturais, porque o projeto que regulamenta essas rádios ainda não foi aprovado. Programas sem apoio cultural Os programas voltados à comunidade não possuem apoios culturais e são subsidiados pela rádio, que faz uma espécie de permuta com os responsáveis pelos programas. Esse é o caso da Revista Cidadã; do programa Na boca do povo e dos programas de domingo das 6 às 12 horas e das 14 às 18 horas. 137 A permuta funciona da seguinte forma: no caso da Revista Cidadã, um profissional de determinada área se dispõe a produzir e apresentar um bloco do programa que interessa à comunidade e a rádio cede o espaço; o programa Na boca do povo, por ser voltado completamente aos interesses da comunidade, também é subsidiado pela rádio, assim como o programa Encontro com as comunidades; em troca do espaço para fazer o programa A saudade me chama, o músico José Luis opera a mesa de som da rádio durante toda a manhã de domingo: das 6 às 12 horas; no caso do projeto Rádio-Escola, que atualmente envolve os programas Metamorfose e Cala a boca já morreu..., a permuta é feita com o Gens Serviços Educacionais, que faz toda a produção, arcando inclusive com os serviços da psicopedagoga que supervisiona o projeto, e a rádio se encarrega de veicular os programas. Rotatividade Outra característica da Rádio Cidadã é a grande rotatividade de pessoas. A rádio comunitária conta com o trabalho voluntário dos integrantes e não há remuneração para quem faz programas. Algumas pessoas se aproximam da rádio justamente esperando encontrar ali uma fonte de subsistência, principalmente através da arrecadação dos apoios culturais; quando constatam que a realidade é outra, elas saem da rádio: 138 O que ocorre: essas pessoas procuram a rádio ou porque estão atrás de emprego ou porque querem aprender alguma coisa, a partir do momento que aprendem vão embora procurar o seu caminho. Outra: você depende muito da disponibilidade de tempo do pessoal de participar, então tudo bem, nesse momento a pessoa tem um tempo ela vem dentro daquele horário que ela pode vir participar. Amanhã surge um problema, óbvio, entre ela resolver o problema e vir à rádio, ela vai resolver o problema. Dificilmente você tem um dia igual ao outro, a não ser nos horários de ponta: os primeiros da manhã e os últimos da noite. Notamos outro motivo que também faz com que a entrada de pessoas na rádio e a saída dela seja uma constante: o choque de idéias com a direção da emissora, principalmente com a presidente da associação, Luci Martins, que é considerada por muitos apresentadores como a verdadeira dona da rádio. Sem dúvida, é a jornalista quem comanda a Rádio Cidadã, que não existiria sem a sua intervenção. Por isso, é Luci quem dá a palavra final sobre qualquer problema que ocorra. Nesse ponto, fica claro que a associação mantenedora da Rádio Cidadã tem um papel figurativo, pois não possui poder de decisão para resolver os conflitos. 139 Capítulo 6 Os programas da Rádio Cidadã 6.1. A grade de programação da emissora Devido à extensão da grade de programação da rádio, optamos por dividila em três partes: uma com os programas de domingo, uma com os da semana e a última parte com os programas de sábado. É importante frisar que ao longo de toda essa programação há os espaços destinados aos apoios culturais e aos serviços de utilidade pública - vinhetas educativas, como orientações para não desperdiçar água, não exagerar na alimentação etc. Salientamos que em função da rotatividade de pessoas na emissora, a grade de programação sofre constantes alterações, principalmente nos programas musicais. A grade apresentada neste trabalho estava sendo seguida no mês em que realizamos esta pesquisa, abril de 1997. Para fins classificatórios dos programas da Rádio Cidadã, adotamos a seleção proposta por André Barbosa Filho151, que sugere uma classificação dos gêneros radiofônicos “em razão de sua função específica de seu objeto diante de sua audiência”. O autor divide em sete os gêneros radiofônicos: jornalístico, 151 Gêneros radiofônicos; tipificação dos formatos em áudio. São Bernardo do Campo, IMS, 1996. Dissertação de mestrado, p.37. 140 educativo-cultural, de entretenimento, publicitário, propagandístico, de serviço e especial. Na Rádio Cidadã são encontrados cinco desses gêneros: • gênero jornalístico: atualiza seu público através da divulgação, do acompanhamento e da análise dos fatos. Pode ser em diversos formatos: nota, notícia, boletim, reportagem, entrevista, comentário, editorial, crônica, rádiojornal, documentário-jornalístico, mesa-redonda ou debate, programa policial, programa esportivo e divulgação técnico-científica; é marcado pelas características subjetivas dos conteúdos. A Rádio Cidadã possui o gênero jornalístico nos programas Encontro com as comunidades, Revista cidadã e Na boca do povo, sendo que o único que possui apenas um formato é o Revista cidadã (entrevistas), os demais utilizam vários formatos do gênero jornalístico – notícia, reportagem, entrevista, comentário, debate e outros. • gênero de entretenimento: está ligado ao universo do imaginário, gerando assim uma relação de proximidade com o receptor. Pode ser programa musical, programação musical152, programa ficcional, programete artístico, evento artístico ou programa interativo de entretenimento. Na Rádio Cidadã os formatos adotados desse gênero são a programação musical, presente na maioria dos programas, e o programa interativo de 152 Segundo André Barbosa Filho, a diferença entre os formatos programa musical e programação musical é que enquanto aquele possui conteúdo e plástica diferenciados, divulgando obras musicais de diversos gêneros com discussões de tendências, textos e entrevistas, este é representado como uma esteira de músicas, reproduzindo o conceito geral de programação, na realidade, uma esteira de programas, com a seqüencialidade das execuções musicais (Op cit., pp.71-3.). 141 entretenimento, formato constituído “no conjunto de ações de cunho diversional, que tem como pressuposto fundamental a presença dos ouvintes que participam de jogos, gincanas, programas de perguntas e respostas, brincadeiras (...)”153, encontrado apenas no programa Direitos do cidadão. • gênero propagandístico: está dividido em peça radiofônica de ação pública, programa eleitoral e programa religioso. Na Rádio Cidadã encontramos apenas o programa religioso, Vivendo com Jesus no lar, representando esse gênero. O objetivo do programa religioso é “difundir as idéias e preceitos de uma doutrina ou seita religiosa”154. • gênero de serviço: “os produtos radiofônicos de serviço são informativos de apoio às necessidades reais e imediatas de parte ou de toda a população, atingida pelo sinal transmitido pela emissora de rádio”155. Esse gênero é dividido em notas de utilidade pública, programete de serviço e programa de serviço. A Rádio Cidadã utiliza em sua programação as notas de utilidade pública, que são informativos de curta duração e objetivam alertar o ouvinte sobre vários assuntos. • gênero especial: apresenta várias funções em um só programa. Está dividido em programa infantil e programa de variedades. 153 Idem ibidem, p. 80. Idem ibidem, p. 97. 155 Idem ibidem, p. 98. 154 142 Classificamos dois programas da Rádio Cidadã dentro desse gênero: o Cala a boca já morreu..., um programa infantil que pretende divertir, educar e informar, e o Metamorfose, um programa de variedades “pela multiplicidade de informações com características diferenciadas”156 que apresenta. 6.2. Primeira grade: programas de domingo Horário Nome Gênero 6 às 8 horas A saudade me chama 8 às 12 horas Encontro com as comunidades* entretenimento (musical) jornalístico 12 às 14 horas Sua discoteca está no ar 14 às 16 horas Metamorfose 16 às 18 horas Cala a boca já morreu...* 18 às 19 horas Jovem rural 19 às 20 horas Brasileiríssimo 20 às 22 horas Landa Mack Show 22 às 23 horas Vivendo com Jesus no lar entretenimento (musical) especial (variedades) especial (infantil) entretenimento (musical) entretenimento (musical) entretenimento (musical) propagandístico (religioso) * Programas que serão analisados no próximo capítulo. Como vemos, a programação de domingo é bastante eclética, apesar de predominarem os programas de entretenimento voltados à música. Há alguns aspectos sobre esses programas que merecem ser mencionados. 143 O programa A saudade me chama, apresentado pelo músico José Luis da Silva, foi um dos primeiros a surgirem na Rádio Cidadã. Trata-se de um programa musical, do gênero de entretenimento, com grande audiência e em que são tocadas músicas antigas de várias tendências, muitas já esquecidas pelas emissoras comerciais. O programa Encontro com as comunidades tem um estilo peculiar: começa a partir de uma conversa entre os seus quatro apresentadores/debatedores, que pode ser sobre um tema recente da imprensa ou da própria comunidade e se desenvolve com a intervenção dos ouvintes, que ligam ou visitam a rádio, e com a intervenção de Sérgio Boiadeiro, responsável pelas reportagens externas. No programa Sua discoteca está no ar, o ouvinte é quem faz e apresenta a programação, diretamente da rádio ou via telefone. É um programa musical, do gênero de entretenimento, que funciona da seguinte maneira: há uma explicação prévia sobre o que é uma rádio comunitária e a responsabilidade sobre os assuntos abordados. Quem quer participar do programa vai à emissora e leva seus discos, para mostrar suas músicas preferidas, ou telefona. Um operador é responsável pelo horário e ajuda na seleção musical. Mas além das músicas, há também muita troca de recados entre amigos e vizinhos. É um programa que também faz parte da grade de sábado e é feito basicamente por jovens do bairro. 144 Metamorfose é um programa feito apenas por adolescentes que cursam o colegial. Esse programa é parte integrante do projeto Rádio-Escola, que visa desenvolver um trabalho de aplicação da educação alternativa através do rádio. Atualmente, apenas duas adolescentes integram o Metamorfose e fazem toda a sua produção e apresentação, supervisionadas por Grácia Lopes. Classificamos esse programa como de variedades dentro do gênero especial, já que diversifica os assuntos em cada edição. Há entrevistas com bandas musicais, com políticos, com profissionais ligados aos questionamentos dos adolescentes etc. Outro programa que também integra o projeto Rádio-Escola é o Cala a boca já morreu (porque criança também tem o que dizer), um dos programas mais antigos da rádio, que teve sua primeira edição no dia 20 de agosto de 1995. Ele é todo feito por crianças, desde a pauta, operação da mesa de som e até a sua apresentação. É dividido em blocos e aborda diversos temas. Pode ser classificado como um programa infantil, dentro do gênero especial. A diferença entre este e os outros programas de mesmo perfil é que neste as próprias crianças determinam o que colocar no ar. Jovem rural, Brasileiríssimo e Landa Mack Show são programas musicais, no gênero de entretenimento. O primeiro é ligado à música sertaneja; o segundo faz um resgate da música brasileira e o terceiro apresenta as músicas 156 Idem ibidem, p. 104. 145 tocadas pelas equipes de som do bairro, que fazem festas dançantes na região. Os três programas são produzidos e apresentados por moradores da comunidade. Finalmente, o programa religioso Vivendo com Jesus no lar, de gênero propagandístico, procura não se ligar a uma religião específica, apesar de ser apresentado por uma missionária de uma igreja evangélica, e é ecumênico em sua abordagem. 146 6.3. Segunda grade: programas de segunda à sexta-feira Horário Nome Gênero 6 às 7 horas Alma sertaneja 7 às 8 horas Direitos do cidadão 8 às 12 horas Revista Cidadã 12 às 13 horas Bate-bola com Deley 13 às 15 horas Cantinho do JB 15 às 17 horas Projeto Rap 17 às 18 horas Show da 98.1 18 às 20 horas Momento sertanejo 20 às 21 horas Balanço radical 21 às 22 horas Seleção sertaneja 22 às 23 horas Vivendo com Jesus no lar* 22 às 6 horas Black visual** entretenimento (musical) entretenimento (interativo) jornalístico (entrevistas) jornalístico (esportivo) entretenimento (musical) entretenimento (musical) entretenimento (musical) entretenimento (musical) entretenimento (musical) entretenimento (musical) propagandístico (religioso) entretenimento (musical) * Exceto às sextas-feiras. ** Este programa é apresentado somente às sextas-feiras, das 22 horas às 6 horas de sábado. De segunda à sexta-feira, a programação tem as seguintes características: no início da manhã é musical, com o programa de músicas sertanejas, depois das 8 horas adquire um perfil mais jornalístico e à tarde e à noite volta a ser exclusivamente musical, com destaque para sambas, pagodes, raps, músicas afras e sertanejas. 147 O programa Direitos do cidadão, apresentado pelo bacharel em Direito João Ferreira, tinha a proposta inicial de ser um programa para orientar os ouvintes sobre aspectos desconhecidos da legislação, principalmente do ramo imobiliário. Mas, na realidade, esse objetivo se perdeu e hoje é um programa musical, com grande participação dos ouvintes, que ligam para pedir músicas e conversar com o apresentador. Inserimos esse programa no gênero de entretenimento porque está voltado para esse fim, sendo interativo por incentivar a participação dos ouvintes em promoções com direito a prêmios, como a de ser locutor por um dia: o ouvinte liga, dá seu nome e depois é escolhida em sorteio a pessoa que apresentará o programa por um dia, junto com João Ferreira. O programa Revista Cidadã é composto de vários subprogramas, divididos de 8 às 12 horas, com um apresentador fixo para o horário. Assim, das 8 às 9 horas é apresentado o rádio-jornal da emissora, exceto às terças-feiras, quando o programa não vai ao ar (uma programação musical cobre o horário); das 9 às 9h15 vai ao ar um programa que envolve exercícios de neurolingüística; das 9h30 às 12 horas ocorrem os programas de entrevistas. O rádio-jornal, inserido no gênero jornalístico, existe no atual formato desde outubro de 1996. É apresentado por Juarez Pereira, 33 anos, pós-produtor de TV, que já havia passado por outros dois programas musicais na rádio e foi 148 convidado por Luci Martins para apresentar o programa de notícias. Esse programa informa aos ouvintes as principais notícias veiculadas nos grandes jornais impressos, como O Estado de S. Paulo, a Folha de S.Paulo e ocasionalmente o Diário Popular. O programa funciona da seguinte maneira: o apresentador seleciona as notícias que considera mais relevantes no dia, geralmente sobre o cenário político brasileiro, e faz a leitura, tecendo, às vezes, algum comentário pessoal. Além disso, mescla as informações com músicas. A particularidade é que não há a preocupação em transformar a linguagem impressa em linguagem radiofônica, ou seja, as informações são passadas como foram publicadas nos jornais. O programa que utiliza a neurolingüística é batizado com o nome de Sintonia RC. Trata-se de exercícios de neurolingüística, geralmente de relaxamento, que duram 15 minutos e são elaborados por um empresário da região que estuda o assunto. Nem sempre é apresentado ao vivo; normalmente, uma fita gravada é colocada no ar. Os programas de entrevistas são apresentados por pessoas diferentes, revezando-se de segunda à sexta-feira, em diferentes horários. Participam vários profissionais liberais, entre os quais há um médico, um odontólogo, um professor de Filosofia e um profissional liberal. Existe grande flexibilidade nos horários: por exemplo, o tempo de um bloco pode ser estendido para que um 149 entrevistado tenha mais espaço em determinado dia. Os assuntos são diversificados: política, cultura, saúde, problemas do bairro, educação etc. Após a Revista Cidadã, entra no ar o Bate-bola com Deley, apresentado por um ex-jogador de futebol de várzea, Wanderley. Esse é um dos programas de maior audiência da rádio. Vai ao ar das 12 às 13 horas e seu principal assunto é o futebol de várzea. O programa procura fazer a integração entre os clubes de várzea da região, organizando e fazendo a cobertura de eventos esportivos. No período da tarde, a rádio é predominantemente musical. Há os seguintes programas: Cantinho do JB, apresentado por Sérgio JB (os principais estilos musicais tocados são o samba e o pagode e, além disso, o programa mostra a produção musical dos grupos da região); Projeto Rap, apresentado por Júlio César, o Teco, com rap e participação dos ouvintes direto na rádio; Show da 98.1, apresentado por Antônio Carlos, com músicas regionais de todo o Brasil e sucessos da música pop; Momento sertanejo, apresentado por Celso Moraes, com músicas sertanejas; Balanço radical é apresentado por Serginho, Magno e Xand Brow, que mesclam várias músicas afras; Seleção sertaneja é apresentado por Delvechio; Black visual, que é um baile de música transmitido pela emissora apenas às sextas-feiras, das 22 horas até as 6 horas de sábado. 6.4. Terceira grade: programas de sábado 150 Horário Nome Gênero 6 às 8 horas Jovem Guarda 8 às 12 horas Na boca do povo* entretenimento (musical) jornalístico 12 às 15 horas Cantinho do JB 15 às 16 horas Sua discoteca está no ar 16 às 18 horas Black balanço 18 às 19 horas Planeta música 19 às 20 horas Mundo da música 20 às 21 horas Acustic company by Bon Jovi ** 21 às ... Sua discoteca está no ar entretenimento (musical) entretenimento (musical) entretenimento (musical) entretenimento (musical) entretenimento (musical) entretenimento (musical) entretenimento (musical) * Este programa será analisado no próximo capítulo. ** Este programa não tem hora definida para terminar; freqüentemente vai até às 6 horas de domingo. No sábado a programação também é musical. Cabe aos jovens o comando da maior parte dos programas. A exceção fica por conta do programa Jovem Guarda, apresentado pelo aposentado Eros Machado, que também participa do Na boca do povo, que é muito parecido com o programa Encontro com as comunidades: denúncias, entrevistas e debates ao vivo são o conteúdo básico do Na boca do povo. Em relação aos demais programas, são todos musicais e apresentam as músicas preferidas dos apresentadores e/ou dos ouvintes: Black visual, baile de música transmitido pela emissora; Black Balanço, retrospectiva da música 151 negra; Planeta música, rock nacional; Mundo da música, reggae; Acustic company by Bon Jovi, músicas do cantor pop, Bon Jovi − recebe esse nome por ser apresentado pelo cover do cantor, Mauro Bon Jovi −, conta com a participação dos fãs-clubes do ídolo. 6.5. Ondas paranóicas: uma nova relação com a loucura O programa Ondas paranóicas não consta da grade de programação da Rádio Cidadã por se tratar de um programa especial, sem data para ir ao ar. É um programa feito pelos doentes mentais da Associação Franco Basaglia, uma organização não-governamental que funciona no Centro de Apoio Psicossocial (Caps), órgão pertencente ao Estado. O Ondas Paranóicas, nome sugerido pelos próprios doentes, tem vários assuntos: política, música, poesia, saúde mental, entrevistas gravadas e conversas com ouvintes. Seu principal objetivo é testar as possibilidades do rádio, dando espaço aos que estão à margem da sociedade. Assim, os participantes têm a oportunidade de mostrar seus talentos: declamam suas poesias, tocam músicas, falam de seus interesses, fazem reportagens, falam de suas vidas, entre muitas outras coisas. O programa advém de uma oficina lúdica e terapêutica produzida na Associação Franco Basaglia, durante dois meses, coordenada pelo psicólogo 152 Edson Fragoaz e pela psicopedagoga Grácia Lopes Lima. O grupo da oficina é composto por 10 usuários do Caps. Lá eles aprendem a fazer pautas, anotando os assuntos, e a apresentar um programa. Após esse aprendizado, ficam aptos a apresentar o programa ao vivo, na Rádio Cidadã, com uma hora de duração. Até agora já foram ao ar três programas. Segundo Grácia, a função do Ondas paranóicas é terapêutica e comprovadamente eficaz. Ela conta o caso de uma paciente que, durante uma das oficinas, estava muito agitada e queria saltar de um muro próximo. O psicólogo, sabendo que a paciente gostava de cantar, pegou um gravador e chamou-a para cantar, pois a música seria colocada no programa. “Ela ocupou-se em gravar a música e esqueceu que queria saltar”, conta Grácia e explica que toda a equipe vai à emissora nos dias de programa, o que deixa os participantes mais motivados e ocupados. 153 Capítulo 7 A voz da Rádio Cidadã 7.1. Os programas analisados Um dos objetivos desta dissertação é mostrar como funciona uma rádio comunitária, a partir do conhecimento de sua programação e do seu conteúdo. Para isso acompanhamos os trabalhos da Rádio Cidadã durante o mês de abril de 1997. Como o estudo é de uma rádio em particular, não podemos generalizar as conclusões para outras rádios comunitárias, visto que cada rádio tem sua peculiaridade. Há 26 programas na emissora, a maioria do gênero de entretenimento, com ênfase nos musicais. Apesar de os programas musicais terem sua importância na programação, porque constituem a sua parte de entretenimento, não nos deteremos em analisá-los, haja vista nossa proposta dar ênfase ao que caracteriza como comunitária a emissora, e eles não têm esse perfil, pois são dirigidos comumente por uma ou duas pessoas e seu principal objetivo é o de entreter através da música, não havendo espaço para outras discussões. Além disso, os atuais programas musicais da rádio, em alguns aspectos, não se diferenciam dos programas musicais das emissoras comerciais. Pelo contrário, apesar das exceções, veiculam basicamente as mesmas músicas que as rádios 154 comercias. A diferença em relação a estas está no estilo de locução e no atendimento ao pedido musical do ouvinte, que é feito de imediato. O programa Revista Cidadã também não será analisado por se tratar de um espaço segmentado; cada segmento é apresentado por profissionais de diferentes áreas e tem em comum com os outros o formato de entrevista. Interessa-nos analisar os programas que possuem a “cara” e a “voz” da comunidade. Assim, consideramos que esses aspectos podem ser encontrados não nos musicais ou nas entrevistas com personalidades e sim nos programas em que há a discussão de temas relevantes à região e em que o morador fala de sua realidade sem intermediários. Nessa perspectiva, selecionamos os seguintes programas para análise: Na boca do povo, Encontro com as comunidades e Cala a boca já morreu (porque criança também tem o que dizer). Os dois primeiros têm como principal objetivo ser o canal para os moradores da região abrangida pela rádio reclamarem dos serviços públicos, divulgarem seus talentos e apresentarem as informações que considerem importantes. O Cala a boca já morreu..., por sua vez, tem como objetivo ser um espaço alternativo de educação, no qual as crianças integrantes do programa aprendam a expor seus desejos, dúvidas e conhecimento, num processo de aprendizagem via rádio, diferenciando-se completamente dos programas infantis 155 conhecidos. Nele, não é um adulto que fala para as crianças e sim as próprias crianças falam para outras crianças. 7.2. Na boca do povo O programa Na boca do povo surgiu em junho de 1996 para ser um dos canais de expressão da comunidade via rádio. O programa teve duas fases: a primeira, que durou apenas quatro meses, sob responsabilidade do presidente da Sociedade Amigos de São Domingos, Manoel Borges; a segunda e atual fase começou em outubro do mesmo ano, sob a responsabilidade do marceneiro Beijomar de Oliveira. Nesta fase, o programa foi dividido em dois: um vai ao ar aos sábados, das 8 às 12 horas, e o outro, com o nome de Encontro com as comunidades, vai ao ar aos domingos, também das 8 às 12 horas. Na boca do povo é um programa ao vivo que trata dos assuntos da comunidade, com entrevistas de personalidades de várias áreas e denúncias de problemas ocorridos no bairro, e pretende possibilitar a manifestação das pessoas sobre os temas que lhes incomodam. As reclamações que surgem no programa são encaminhadas pelos responsáveis aos setores competentes, seja municipal ou estadual, e, tão logo haja uma informação sobre o caso, o programa a divulga. 156 Toda a produção do Na boca do povo é feita por quatro pessoas, responsáveis pelo direcionamento de cada edição do programa. São eles que escolhem os entrevistados, organizam os assuntos e encaminham as reclamações às autoridades competentes. A apresentação é feita por Beijomar de Oliveira; há comentários de João Victorelli157 e reportagens externas de João Ferreira158 e Eros Machado159. Além dos comentários em estúdio e reportagens externas, fazem parte do programa as matérias editadas, produzidas durante a semana por qualquer um dos integrantes do programa e levadas ao ar aos sábados; são basicamente entrevistas sobre problemas da região e não ocorrem em toda edição. Características O programa Na boca do povo inicia sempre com uma conversa entre o apresentador e o comentarista, geralmente abordando uma notícia veiculada durante a semana pela grande imprensa ou comentando um fato da região onde a emissora funciona. As notícias voltadas à comunidade sempre possuem uma ênfase maior. 157 João Victorelli é presidente da Sociedade Amigos do Jardim Alvorada, Vila Sônia, e dirige o jornal de bairro Alvorada, que enfoca informações referentes ao Butantã. 158 João Ferreira é responsável também pelo programa Direitos do cidadão. 159 Eros Machado apresenta outros dois programas na emissora: Alma sertaneja e Jovem Guarda. 157 À medida que os assuntos são explorados pelo apresentador e pelo comentarista, os ouvintes começam a telefonar para participar do debate, cumprimentar os responsáveis pelo programa, mandar recados ou pedir e oferecer músicas. Há ouvintes que se dirigem pessoalmente à emissora e participam do programa in loco, mas isso ocorre normalmente quando se quer passar determinada notícia ou divulgar determinado trabalho. Todo programa conta com entrevistados especiais, podendo ser desde uma dona-de-casa reclamando da falta de professores na escola de seu filho até um vereador da região explicando como vai funcionar a parte do rodo-anel na zona Oeste de São Paulo. Enquanto ocorrem os debates em estúdio, os dois repórteres externos estão percorrendo a região e podem entrar no ar a qualquer momento, sempre que há algum fato interessante para ser reportado. Importante salientar que não há um tempo determinado para nenhum dos temas, apenas a cada meia hora de programa é aberto um intervalo musical que dura cerca de dez minutos. Nesse intervalo são veiculadas duas músicas, vinhetas de outros programas da emissora, apoios culturais e serviços de utilidades públicas patrocinados pela rádio ou por um apoio cultural. Apesar de existir um planejamento em cada edição, existe muita improvisação, dependendo dos assuntos explorados pelos ouvintes ou pelos convidados. Assim, uma determinada matéria pode ser estendida ou não, de 158 acordo com o interesse dos ouvintes, que ligam para dar sua opinião e participar das conversas em estúdio, e com o próprio rendimento da entrevista. Identificação O Na boca do povo utiliza alguns recursos para ser identificado. Um deles é a apresentação de Beijomar de Oliveira falando sobre o programa e a Rádio Cidadã, o nome dos apresentadores e a área de abrangência da emissora, divulgando ainda o telefone e incentivando os ouvintes a participar, nos primeiros minutos de cada edição. Um trecho da música “É”, do compositor Gonzaguinha, serve como tema do programa. Beijomar de Oliveira: Hoje é dia 26 de abril de 1997. Está começando mais uma edição do programa Na boca do povo, pela Rádio Cidadã, 98.1 FM, a pioneira do Butantã. Esse programa, que vai ao ar todos os sábados das 8 ao meio-dia, apresentação de Beijomar de Oliveira, com os comentários do professor João Victorelli e a participação do dr. João Ferreira. Na técnica está a Fernanda (...) Esse programa, que é o programa da comunidade, por isso o telefone pra você ligar e participar é o 268-3302, que está aí à sua disposição. Esse programa, que trata dos assuntos da população, da comunidade de toda a zona Oeste aqui da cidade São Paulo e também dos municípios vizinhos de Osasco, Taboão da Serra e Cotia... Por isso, você, amigo ouvinte que nos ouve todos os sábados, você que está nos ouvindo pela primeira vez podem participar pelo telefone 268-3302, fazendo aí as suas reivindicações, falando sobre os problemas, sobre os assuntos, também mandando aí o seu recadinho, por isso esse é o programa da comunidade pra você ligar e participar. 159 O apelo para que o ouvinte participe do programa é constante, ressaltado a cada 30 minutos e sempre que o ouvinte telefona. É dada grande importância à participação da comunidade no programa, pois, como já dissemos, esse é o seu maior objetivo. Assim, os telefonemas dos ouvintes, as reportagens que vão até eles procurar informações de interesse da comunidade e as entrevistas com pessoas da própria região, renomadas ou não, são fatores essenciais para a existência do Na boca do povo e de outros programas de mesmo perfil da emissora. Reportagens externas As reportagens externas são realizadas sem uma pauta definida. João Ferreira e Eros Machado percorrem de carro as ruas do bairro e adjacências, munidos de telefone celular, procurando assuntos que mereçam ser noticiados. Não há critério para definir quais assuntos são os mais importantes. Assim que encontram algo, os repórteres informam direto do local, em entradas ao vivo, sem hora determinada. De acordo com Eros Machado, as informações são voltadas aos moradores da região: Normalmente a gente vai atender o ouvinte porque o ouvinte liga aqui pra gente reclamando da rua, dos buracos, enfim qualquer reclamação, aí a gente vai até o local faz entrevista com os moradores da rua, fazendo a cobrança para o administrador regional da prefeitura. 160 Para ilustrar como funciona essa parte do programa, tomamos como exemplo alguns trechos de duas reportagens externas realizadas no dia 26 de abril, sob responsabilidade de João Ferreira. Às 10 horas, Beijomar e Victorelli entrevistavam no estúdio a presidente do Conselho de Escolas Municipais da região, Ângela Penha Silva Lima, discutindo os problemas educacionais na área municipal. Naquele momento, João Ferreira fez sua primeira intervenção do dia, com uma chamada do Morumbi, onde se realizava uma feira de livros. A conversa toda durou 12 minutos. João: Beijomar, primeiro nós vamos falar com a dona Maria Cristina, chefe do departamento de Língua Portuguesa do colégio Miguel de Cervantes, só um minutinho. Beijomar: Pois não, estamos com a nossa reportagem lá no Morumbi. Alô, bom dia! Maria Cristina: Bom dia. Beijomar: Como é o nome da senhora? Maria Cristina: Maria Cristina Ferreira Alves. Beijomar: Ah, tudo bem, dona Maria? Maria Cristina: Tudo bem, graças a Deus. Beijomar: A senhora... Maria Cristina: Estamos aqui na nossa 14a feira do livro... Beijomar: Ah, tá. Maria Cristina: ... com escritores famosíssimos como Luis Fernando Verissimo, que veio de Porto Alegre especialmente para esse evento, Sérgio Caparelli também, poeta e escritor, especialmente para esse 161 evento, Tatiana Belinky, Eva Furnari, Cristina Porto, Luis Galdin, entre outros. Olha não dá pra enumerar todo o pessoal tão importante que tá aqui conosco hoje, tá? Beijomar: Tá certo. Essa feira começou quando aí, dona Maria? Maria Cristina: Por favor, dá pra repetir a pergunta? Beijomar: Ahn, quando começou essa feira aí? Maria Cristina: Aqui, hoje? Aqui vai das 9 às 16 horas, mas essa feira é a nossa 14a, e o intuito, o objetivo é colocar o aluno em contato com o escritor (...) Beijomar: A senhora... Maria Cristina: Essa é a grande importância da nossa feira. Salientamos que a entrevista foi comprometida pelas interferências no aparelho celular, o que pode ter dificultado a compreensão de ambos os lados: entrevistador e entrevistado. Mas fazemos a seguinte observação sobre a primeira parte da entrevista: o apresentador fica confuso nas abordagens à entrevistada, que toma a iniciativa e dá as informações básicas sobre a feira de livros. Ainda na mesma entrevista, o apresentador e o comentarista tentam explicar a Maria Cristina o teor do assunto que estavam discutindo em estúdio, a falta de professores nas escolas municipais. O objetivo era comparar uma escola particular com uma escola pública. Mas assim que começam a falar, cai a ligação do celular. Victorelli, o comentarista, explica: 162 Victorelli: Nós provocamos essa diferença... nesse país, que nós dizemos que todos têm o mesmo direito perante a lei, esse direito realmente fica muito distante... quando se trata de poder aquisitivo é muito desigual. A senhora está aqui (dirige-se à convidada Ângela Lima) reclamando que falta professor numa escola municipal e a dona Maria, professora Maria Cristina Alves, professora de português duma escola como a... Ângela: Conceituada, né? (...) Novamente, o repórter volta a chamar da feira, prosseguindo a entrevista com a coordenadora do evento, mas a ligação continua com interferências. Quando o repórter João Ferreira retoma o contato, coloca no ar o escritor Luis Fernando Verissimo, desconhecido pelos apresentadores, resultando uma entrevista pouco produtiva. João: Beijomar, nós vamos falar aqui com o Luis Fernando Verissimo; é a primeira vez que ele sai do Rio Grande do Sul e vem numa feira do livro aqui em São Paulo. Eu gostaria que ele desse uma palavra a todas as pessoas aqui da nossa região e principalmente assim no incentivo à cultura, né? Aliás à leitura... então eu gostaria que ele desse essa palavra aos estudantes aqui da nossa região, tá bom? (...) Beijomar: Alô, bom dia, alô, vamos conversar com o... Luis Fernando Verissimo: Bom dia. Beijomar: Bom dia, tudo bem? Veríssimo: Tudo bem. (...) 163 Beijomar: Como é que o senhor está se sentindo aqui em São Paulo? É a primeira vez que o senhor vem participar de uma feira aqui em São Paulo? Verissimo: Feira do livro de... de... com essas características de ser numa escola, é a primeira vez sim. Beijomar: Tá certo. Qual é a mensagem que o senhor diria para os nossos ouvintes sobre a questão da leitura. Verissimo: Bom, eu acho que tudo que se fizer para promover o livro e a leitura é bem-vindo e positivo, né? (...) A partir desse ponto, Beijomar direciona a entrevista para o assunto da falta de professores, perguntando como está a situação das escolas gaúchas e o que deveria ser feito para mudar. Verissimo dá sua opinião, falando sobre o problema nacional da educação e da falta de prioridade para as áreas sociais. Após conversarem sobre isso, Beijomar indaga-o sobre sua vida de escritor. Beijomar: O senhor é professor, né? Verissimo: Não, não... Beijomar: É só escritor, né? Verissimo: Jornalista. Beijomar: O senhor tá trazendo algum livro do senhor aí pra essa feira também? Verissimo: Não, o livro novo não, mas tem vários livros antigos, já publicados, que estão aqui. Beijomar: Ahn. O senhor escreve mais sobre o quê? Que assunto mais... Verissimo: A minha atividade é mais jornalística, então eu faço esse tipo de literatura jornalística, um jornalismo literário, que é a crônica, né? 164 Beijomar: Ahn, o senhor poder citar alguns livros do senhor? Verissimo: Bom, tem diversos: Comédia da vida privada é um dos últimos, tem O analista de Bagé, tem A velhinha de Taubaté, tem várias coleções de crônicas... Beijomar: Tá ok. O senhor mora em que cidade do Rio, lá do Rio Grande do Sul? Verissimo: Porto Alegre. Beijomar: Porto Alegre, né? Tá bom, seu Luis, muito obrigado pela sua participação. Verissimo: Eu que agradeço. (...) Beijomar: Tá bom, obrigado, e, dr. João, tem mais alguém pra falar conosco? João: Eu quero agradecer aqui o escritor, o Luis Fernando Verissimo, né? pela simpatia que passou essas palavras aqui para os estudantes da nossa região. Eu vou ficando por aqui e chamo a qualquer momento. Outra intervenção do repórter João Ferreira ocorreu por volta das 10h45. Discutia-se no estúdio o projeto do rodo-anel, que objetiva diminuir o tráfego na cidade de São Paulo, desviando a rota de veículos de carga. O repórter chama diretamente da rodovia Régis Bittencourt e coloca no ar um motorista de carreta, chileno, para opinar sobre o rodo-anel. No entanto, como o motorista fala castelhano, não é possível entender muita coisa, principalmente pela má qualidade da ligação via telefone celular. João: (...) eu agora estou aqui na rodovia Régis Bittencourt, no quilômetro 22. É um posto aqui onde ele concentra um grande número de 165 caminhões, inclusive caminhões internacionais, né? Então pra eles é importante até essa informação sobre esse grande projeto que vai tirar o trânsito da capital. Eu vou tentar falar aqui com um senhor, ele é chileno, mas ele entende um pouco o português. Eu vou perguntar pra ele o que significa isso aí para o motorista de carreta nessa região aí, tá bom? Beijomar tenta conversar com o motorista, mas não entende o que ele diz. Nesse ponto, o vereador Nelson Proença (PSDB), que estava sendo entrevistado no estúdio, passa a conduzir a conversa com o motorista, em castelhano, traduzindo-a para todos. Diz que não pode falar por muito tempo em espanhol porque os ouvintes não poderiam compreender tudo. Cumprimenta o motorista e pergunta se ele está feliz com a novidade do rodo-anel e sobre as dificuldades que o motorista encontra ao chegar com seu caminhão em São Paulo. A entrevista termina com o motorista falando das vantagens do projeto, reforçadas a todo momento pelo vereador. Os trechos transcritos dão-nos um exemplo de como funcionam as reportagens externas. Nos dois casos, houve a intenção de colocar as pessoas entrevistadas na rua a par do que se estava discutindo em estúdio. Não se pode afirmar, no entanto, que toda reportagem externa tenha esse objetivo. Levantamos aqui as seguintes considerações sobre esses trechos do programa: a condução da entrevista com a coordenadora da feira de livros e com Luis Fernando Verissimo é inconsistente, faltando mais informações sobre os 166 assuntos abordados. A entrevista com o motorista de caminhão serviu apenas para o vereador presente no estúdio exercitar seu espanhol, já que os responsáveis pelo programa ficaram o tempo todo calados, pois não entendiam a língua do entrevistado. Nesse caso, o repórter externo deveria ter escolhido outra pessoa para entrevistar, abordando um motorista brasileiro que conhecesse melhor a problemática do trânsito em São Paulo, resultando, dessa maneira, uma entrevista mais esclarecedora. No entanto é preciso salientar que as reportagens acontecem sem uma pauta determinada e muitas vezes o repórter escolhe o entrevistado aleatoriamente (como foi o caso do motorista chileno). Além disso, o apresentador, por desconhecer certo assunto, não sabe como direcionar a entrevista (como foi o caso do escritor Luis Fernando Verissimo, que passou anonimamente pelo programa, apesar de todo o seu renome como jornalista e escritor). Isso tudo pode ser compreendido com a ressalva de que o programa é feito por pessoas da comunidade, que possuem pouco tempo de experiência em um veículo de comunicação e que apenas recentemente descobriram que podem reportar sem intermediários seus conflitos e esperanças de vida. E nessa descoberta ainda há muito o que aprender, por isso algumas coisas se perdem. O ponto alto do programa, sem dúvida, são os assuntos do dia-a-dia da 167 comunidade. Por isso, quando surge uma matéria estranha a esse cotidiano, naturalmente há um embaraço e uma perda no enfoque do objeto. Assuntos diversificados durante quatro horas A versatilidade do programa Na boca do povo resulta da diversificação dos assuntos abordados a cada edição. Das quatro edições acompanhadas durante o mês de abril, resumimos os temas abordados em duas edições. É possível ver como um programa, dependendo da participação do ouvinte, pode voltar-se mais para os problemas das localidades abrangidas pela rádio ou deterse na discussão de matérias específicas durante suas quatro horas, como foi o caso de educação e rodo-anel. Na boca do povo: edição de 05 de abril de 1997 Na edição de 5 de abril de 1997, a maioria dos assuntos levantados pelo apresentador, pelo comentarista e pelos ouvintes tinham um ponto em comum: referiam-se diretamente aos problemas enfrentados pelos moradores da região. Nos primeiros 30 minutos, surgem três questões voltadas à região: uma ouvinte que telefona para reclamar do alto valor de sua conta de água; a 168 discussão de problemas do bairro São Domingos e uma reclamação sobre brincadeiras de adolescentes em telefones comunitários. À medida que o programa prossegue, ouvintes telefonam para reclamar sobre uma tarifa cobrada na Administração Regional para dar entrada em ofícios, sobre a falta de luz num bairro próximo e também para informar a mudança de itinerário de um ônibus da região. Todos esses temas foram comentados no estúdio e foram cobradas providências do poder competente. Outros temas que surgiram nessa edição foram: a violência policial na favela Naval, em Diadema, notícia recém-divulgada pela grande imprensa; o projeto que tramita no Senado que prevê um único número para representar todos os documentos do cidadão; quebra do sigilo bancário e telefônico do prefeito Celso Pitta; precatórios e feira de Utensílios Domésticos. Em todos os casos houve a citação das fontes, normalmente os programas televisivos e os jornais impressos. Um exemplo de como as notícias veiculadas pela grande imprensa surgem no programa Na boca do povo é o caso Diadema. O apresentador e o comentarista iniciaram a discussão do caso com as informações obtidas nos telejornais Jornal da Band (Bandeirantes) e Jornal nacional (Globo) e no programa de debates da TV Cultura, Opinião nacional. Depois deram suas 169 próprias opiniões a respeito. Transcrevemos abaixo os primeiros dois minutos da discussão. João Victorelli: Beijomar, esta semana... vamos já... Beijomar de Oliveira: Vamos às notícias, né? que tem muita coisa quente hoje. Victorelli: É. Realmente essa semana foi quente, uma semana cheia de novidades, cheia de problemas... quase todas as semanas tem problemas, mas realmente essa semana foi uma semana que aconteceram coisas... Beijomar: ...que mexeu não só com nós, brasileiros, mas com o mundo inteiro, né, João? Victorelli: Com o mundo inteiro, né, Beijomar? Como que nós ficamos tristes quando isto acontece... Beijomar: É lamentável. Victorelli: Nós adoramos nossa pátria, e quando nós estamos sabendo que lá fora fica sabendo alguma coisa a respeito, que vá prejudicar o brasileiro de uma forma geral, nós ficamos bastante tristes, que essa polícia nossa aqui tem gente realmente importante, pessoas que são responsáveis, trabalha, honesto, mas infelizmente em tudo na vida, em todos os setores da vida existem pessoas que não cumprem com seu dever, não cumprem com a cidadania, não conhece o que faz e acontece o que aconteceu isso aí nessa semana, né, Beijomar? (...) Inclusive essa semana nós tivemos a oportunidade de comentar aí aquele rapaz que filmou, ontem ele apareceu na Bandeirantes, não sei se você teve a oportunidade de ver? (...) Inclusive no primeiro momento, quando eu vi pela primeira vez a fita, eu já tinha certeza que era uma pessoa profissional que estava fazendo aquele trabalho, como a Globo, na ocasião, no primeiro momento, a Globo falou que era uma gravação de um amador, coisa que não é verdade, foi um profissional que fez esse 170 trabalho porque você percebe que não houve, em nenhum momento você percebe que tremeu a câmera, foi um negócio bem feito (...) Nós estamos ainda vivendo restos da ditadura, essas pessoas que fazem isso ainda têm no sangue, ainda está no sangue de cada um desses soldados restos da ditadura (...) Inclusive, ontem assistimos também ao programa do canal 2 (...), Opinião nacional, com o chefe do gabinete do ministro Nelson Jobim, e ele falou realmente que ainda estamos vivendo ainda as raízes da ditadura, precisamos acabar de uma vez por todas com isso aí (...). Podemos observar que os apresentadores não identificam de imediato o assunto sobre o qual vão discutir. Eles falam que a semana foi cheia de notícias, mas não dizem quais foram elas; começam a dar suas opiniões a respeito, considerando que a imagem do Brasil no exterior ficou mais prejudicada com o caso em pauta e depois de dois minutos identificam o assunto, sem detalhes, comentando as notícias obtidas através dos programas jornalísticos. A discussão sobre a violência policial na favela Naval, de Diadema, prossegue ainda por quase 30 minutos e prevalecem as opiniões pessoais do apresentador e do comentarista, que assumem uma posição crítica diante do fato. Na boca do povo: edição de 26 de abril de 1997 Na edição de 26 de abril de 1997, os principais temas referiram-se aos problemas da educação nas escolas municipais da região, na primeira parte, e às novidades do projeto do rodo-anel, na segunda parte. 171 Para discutir a questão da educação, a convidada foi a presidente do Conselho de Escolas Municipais, Ângela Lima, mãe de um aluno de uma escola municipal e que foi ao programa para divulgar um documento que precisava de assinaturas dos pais para ser encaminhado à Secretaria Municipal de Educação. A entrevista ocorreu de maneira descontraída e durou uma hora, girando em torno dos objetivos do Conselho e dos principais problemas educacionais enfrentados pelas escolas municipais, como a falta de professores e de seus baixos salários. Uma ouvinte ligou para reclamar da falta de professores nas escolas e foi convencida a assinar o documento divulgado. Foi durante esse debate que ocorreu, como vimos, a intervenção do repórter externo, João Ferreira, para falar de uma feira de livros no Morumbi. Na segunda metade do programa, o assunto é dirigido para o projeto do rodo-anel. Participam do debate o vereador Nelson Proença, a presidente da Associação Cidadã do Butantã, Luci Martins (os dois haviam realizado durante a semana um vôo de helicóptero para ver o local de passagem do rodo-anel), e outra integrante da associação, Maria Penha Silva, além do apresentador e do comentarista do programa. Esse debate sobre o rodo-anel começou às 10h30 e foi até o final do programa. Discutiram-se vantagens e desvantagens do projeto, ressaltando-se mais as partes positivas. 172 Nenhum ouvinte ligou para fazer perguntas ao vereador sobre o rodo-anel. Os únicos telefonemas que foram ao ar eram do odontólogo Geraldo Leite, que apresenta um bloco de entrevistas no programa Revista Cidadã, e de uma ouvinte, uma empregada doméstica, que ligou para cumprimentar a todos do estúdio por terem lembrado de homenagear o Dia da Empregada Doméstica, 27 de abril. Houve outros telefonemas de ouvintes para pedir música e cumprimentar as pessoas presentes no estúdio, mas não quiseram falar ao vivo. A síntese dessas duas edições nos permite reiterar a variedade de assuntos de cada programa. Além disso, notamos que poucos ouvintes telefonam para falar sobre matéria mais específica, como o caso do rodo-anel. O interesse maior é pelos assuntos da comunidade. Para a exploração desses objetos, a Rádio Cidadã parece ser o local apropriado, no sentido de ser um veículo aberto a todo tipo de manifestação da comunidade. 7.3. Encontro com as comunidades O programa Encontro com as comunidades nasceu em outubro de 1996, em função do sucesso do Na boca do povo. Por causa do grande interesse da comunidade, a diretoria da Associação Cidadã do Butantã criou o Encontro com as comunidades, como uma extensão do Na boca do povo, para ser apresentado aos domingos. 173 O programa é apresentado ao vivo todos os domingos, das 8 às 12 horas; o apresentador é o presidente da Sociedade Amigos de São Domingos, o eletricista Manoel Borges, e os comentaristas são o aposentado Nadir de Souza e o músico José Luis, que é presidente da União dos Moradores da favela Nossa Senhora Assunção e opera a mesa de som durante o programa; Sérgio Boiadeiro faz as reportagens externas (que não acontecem em todos as edições), percorrendo os bairros das imediações da emissora160. De acordo com Manoel Borges, que há 16 anos participa de associações comunitárias, a principal idéia do Encontro com as comunidades é levar as pessoas das comunidades a participar do programa junto com representantes do poder público e assim discutirem ações que propiciem uma melhoria das condições de vida do bairro. Mas, segundo ele, esse objetivo não foi completamente alcançado. Nós precisamos fazer um trabalho mais consistente com eles (os moradores do bairro), ir mais atrás desse pessoal, já que na maior parte são muito acomodados (...) Eles não estão acostumados com o rádio, não estão acostumados a mostrar o que eles fazem na região e a forma de trazer é a forma encontrada pela Cidadã porque é uma rádio comunitária. As grandes emissoras não têm dado essa liberdade à população 160 Durante o mês de abril, o Encontro com as comunidades contou com a participação da profissional liberal Maria da Penha Silva, que estava participando da direção geral da Associação Cidadã do Butantã, encarregada de obter recursos financeiros para a emissora. No caso específico do programa, participava como produtora e comentarista. Divergências com a presidente da associação, Luci Martins, afastaram Maria da Penha de todas essas funções em maio. 174 participar e é um lugar onde você pode se expressar, pode reclamar, pode falar, pode agir é aqui na Rádio Cidadã... [sic] Características O improviso é a marca registrada do Encontro com as comunidades, que também não possui uma pauta definida. O programa inicia sempre com uma conversa entre o apresentador e os comentaristas sobre algum assunto ocorrido na semana, podendo ser um assunto da grande imprensa ou um acontecimento do bairro. Manoel Borges faz as seguintes considerações a esse respeito: A rádio é comunitária, mas não pode ser limitada a uma rua, a um bairro, tem que ser uma coisa voltada ao nosso país. Nós falamos do governo do Estado, do governo Federal, falamos do deputado, do senador, do vereador, do prefeito, do administrador regional, do presidente da entidade, do diretor da escola, dos caras da escola de samba, nós falamos de tudo. É global o tratamento que nós fazemos aqui na Rádio Cidadã. A falta de uma pauta específica em cada edição do programa leva muitas vezes a sugestões de matérias durante a transmissão. Como exemplo, se o debate é sobre falta de água na região, sugere-se entrevistar alguém da Sabesp. Um dos integrantes do programa fica, então, encarregado de fazer o contato com a empresa para a realização da entrevista no programa seguinte. Se a entrevista não é apresentada, é explicado o motivo aos ouvintes. 175 Outra característica do programa é a evolução dos temas abordados. Um assunto começa a ser discutido num ponto específico, como a falta de lombadas numa avenida, e termina em considerações mais amplas, como a necessidade da existência de lombadas devido à falta de educação no trânsito. O programa todo pode ser visto como uma longa conversa, comentário ou discussão161 entre os presentes no estúdio e entre os ouvintes que telefonam, com uma música de fundo em todas as falas, exceto nas dos ouvintes. As discussões têm um tom crítico e são abordadas principalmente pelo apresentador Manoel Borges. Para ilustrar essa afirmação, selecionamos um trecho da edição do dia 20 de abril. Estão presentes no estúdio Manoel Borges, Nadir de Souza, José Luis e Maria da Penha. Esta última informa aos ouvintes que a Administração Regional do Butantã está atendendo a população em postos itinerantes distribuídos pelos bairros e elogia a iniciativa; em seguida Nadir faz uma sugestão: Nadir: Maria, essa intenção, embora seja começo de administração, não é ruim. Mas eu acho que seria melhor, por exemplo, ele localizar, por exemplo, assim perto de onde tem a Sociedade Amigos de Bairros, juntar sempre perto de oito, sete sedes e fazer uma parada nesse lugar, porque ali a população já tem mais achego, tá entendendo? 161 Conversa, comentário ou discussão porque um assunto pode começar com uma conversa descontraída, evoluir para um comentário crítico e acabar em discussão exaltada. 176 Penha: Eu acho assim, Nadir, nós mesmos que representamos a comunidade, nós mesmos sabemos que tem um problema de comunicação seríssimo, né?, que o certo era esse administrador ser escolhido aí pela comunidade, né?, ser representante da comunidade. Infelizmente nós temos um processo muito fraco de união da comunidade, senão a gente teria força de ter colocado alguém, né? mais ligado a nós aqui, não tivemos essa força (...). Manoel Borges não se manifesta de imediato, então Nadir se dirige a ele perguntando se algumas pessoas da Administração Regional não deveriam ser demitidas para dar lugar a outras. Ele entra na discussão: Manoel: (...) falando só dessa questão aí de regionalização, então eles tão pegando, parece que eles tão pegando um trabalho que nós já fazemos, viu, Maria da Penha, o Cepam, o Conselho Popular de Abastecimento, toda essa idéia que tá dando aqui a Administração Regional, eu tenho certeza que ele (o administrador regional) tirou do vereador (...) agora só que tem uma coisa, só que, Nadir, não pode mexer muito com aqueles cidadãos que já estão lá calejados, porque são funcionários de carreira da Prefeitura. Nós temos um caso grave em São Paulo: é que a Administração, o administrador é uma pessoa que é o vereador que indica, então o vereador indica e quando serve ao vereador, ele continua no cargo, quando não serve, o vereador tira ele e coloca outro (...) Penha: Ô, Manoel, qual foi o vereador mais votado aqui no Butantã? Manoel: Olha, eu quero dizer que teve vários vereadores, mas o vereador que sempre comandou aqui foi o Brasil Vita. Penha: E o Brasil Vita é do Butantã? Manoel: Não. 177 Penha: Então eu acho que aí tem um problema muito sério é com a população do Butantã, entendeu? A população do Butantã tem que votar em vereadores do Butantã pra depois chegar e reclamar, pedir, solicitar um representante do bairro; agora se a própria população vota no vereador de fora daqui e vem uma pessoa de fora, não pode reclamar nada, vai fazer o quê? (...) O início da discussão foi o informe sobre a criação de postos de atendimento da Administração Regional, elogiada por Maria da Penha. Depois das sugestões de Nadir e de Maria da Penha, o apresentador faz suas observações e o informe vira uma acirrada discussão. A fala de Maria da Penha mostrou um desconhecimento de como funciona a indicação de nomes para administrarem a região. Nesse ponto, Manoel Borges, o mais experiente dos três na área, fez sua intervenção opinando sobre os assuntos discutidos e mostrando a realidade política na atual gestão das administrações regionais da cidade de São Paulo. Ao final, tocam num assunto freqüente na emissora: a falta de união ou participação da comunidade para resolver os problemas de seu interesse. O tema participação freqüentemente surge nos debates, seja para elogiar quem telefona ou para criticar aqueles que não se dirigem à emissora para se manifestar. O programa Encontro com as comunidades dá grande ênfase aos trabalhos da Sociedade Amigos de São Domingos, que foi citada em todos os programas 178 do mês de abril. Manoel Borges falou a esse respeito na edição do dia 27 de abril: Muitas vezes o pessoal fala “ah, porque o pessoal só fala do Rio Pequeno e do São Domingos”; é lógico, porque o pessoal do São Domingos e do Rio Pequeno é o que tão mais participando aqui da rádio, então tem que falar de quem tá participando [sic]. Outro fator que contribui para o destaque dado ao trabalho da associação do bairro São Domingos é o fato de três dos quatro responsáveis pelo programa pertencerem a esse bairro. Intervalos e encaminhamento de reclamações Os intervalos são compostos de músicas, serviços de utilidade pública e apoios culturais e não há um critério para irem ao ar, podendo haver um intervalo musical depois de 30 minutos de discussão ou dois intervalos em 10 minutos. Manoel Borges e José Luis encarregam-se da escolha dos momentos propícios para a entrada dos intervalos. Durante todo o programa são tocadas, em média, dez músicas de estilos variados, com ênfase às nacionais. Em relação às queixas da comunidade sobre os seus problemas, o tratamento é o mesmo do Na boca do povo: é apresentada a reclamação no programa e seus articuladores se encarregam de obter a informação para o 179 ouvinte, que nunca fica sem resposta. Segundo Manoel Borges, esse é um ponto fundamental para incentivar a participação da comunidade. Identificação Como já frisamos, o Encontro com as comunidades é completamente imprevisível em suas abordagens e em sua forma. Um ouvinte que sintonize a emissora pela primeira vez, num domingo de manhã, com certeza demorará para descobrir que emissora e programa são aqueles. A identificação do Encontro com as comunidades é feita em alguns momentos específicos: no início do programa, quando todos cumprimentam o ouvinte; após um intervalo musical, quando o apresentador informa o horário, o nome da emissora (que ele chama pelo antigo nome: RC) e do programa; durante as conversas em estúdio e no final do programa, quando todos se despedem. A seguir, uma das passagens de identificação do programa pelo apresentador, no dia 6 de abril: Manoel Borges: São oito horas e quarenta e três minutos na RC 98,1, a pioneira do Butantã, Encontro com as comunidades. Ouvinte, liga pra cá, dá seu recado, faça as suas reclamações, nós estamos aqui pra realmente colocar coisas aí, pra cobrar de quem é de direito [sic] (...). Reportagens externas 180 As reportagens externas do programa são feitas pelo técnico operacional Sérgio Boiadeiro, que é uma espécie de relações públicas da Sociedade Amigos de São Domingos. Essas reportagens não ocorrem em todas as edições e, quando ocorrem, não têm hora para ir ao ar nem tempo de duração definido. De acordo com Sérgio, as reportagens de rua servem para cumprir o lema da rádio adotado por Luci Martins: “se a comunidade não vai até a rádio, a rádio vai até a comunidade”. Da mesma forma que a apresentação do Encontro com as comunidades em estúdio, as reportagens também não possuem pauta. Sérgio percorre as ruas dos bairros a pé, andando cerca de 4 quilômetros, enquanto faz um rastreamento de assuntos que mereçam ser reportados. Encontrando algo, ele primeiramente conversa com um morador da região, em busca de mais informações, a seguir identifica-se como repórter da rádio e pede uma entrevista para o programa, colocando o informante para falar com o estúdio através de um telefone público. Segundo Sérgio Boiadeiro, ele não utiliza o telefone celular da emissora porque “às vezes, no meio da entrevista ele corta a linha”. As discussões nas quatro horas de programa O Encontro com as comunidades é um programa voltado às ações políticas. Os principais assuntos dizem respeito às reivindicações dos moradores 181 para solucionar problemas dos bairros e às ações do governo (municipal, estadual ou federal), o que sempre dá margens a severas críticas. A esse respeito, Manoel Borges é quem direciona as discussões, sem poupar comentários. Sem dúvida, a figura-chave do programa é o apresentador, que ultrapassa essa função, tornando-se também comentarista, mediador e debatedor. Cabe a ele fazer a leitura dos acontecimentos e dar a sua interpretação, estabelecendo um julgamento do fato. Encontro com as comunidades: edição de 06 de abril de 1997 Na edição de 06 de abril de 1997, os principais temas voltaram-se à região, intercalados com discussões a respeito do caso da violência policial na favela Naval, de Diadema. Nos primeiros 35 minutos de programa, falou-se dessa violência, de uma reunião na Sociedade Amigos de São Domingos, a ser realizada nesse mesmo dia e que contaria com a presença de um assessor político do prefeito de São Paulo, e também da falta de lombadas em avenidas da região, cobrando-se soluções. Esses assuntos foram discutidos pelo apresentador do programa e pelos três comentaristas. Durante a discussão dos problemas da região, foi comentada a reivindicação para a criação de novas linhas de ônibus na região, que fora negada, e a mudança de itinerários de algumas linhas de ônibus que passavam 182 pela avenida Paulista; foi proposta uma visita à CET para gravar entrevista a respeito. Na metade do programa, a falta de água na região foi um tópico bastante explorado e terminou com outra sugestão: a de levar ao programa alguém da Sabesp para falar a respeito do assunto. A organização de mutirões para a construção de casas populares, a divulgação de um encontro com todas as sociedades de amigos de bairros da região, as privatizações de estatais e novamente o caso dos policiais foram os assuntos que completaram o programa do dia. Encontro com as comunidades: edição de 27 de abril de 1997 Resumidamente, a edição de 27 de abril de 1997 teve como principais temas os blecautes ocorridos durante a semana, discutidos a partir da leitura de uma matéria publicada na Folha de S.Paulo do dia 25 de abril. Uma ouvinte telefonou para falar a respeito do assunto com Manoel Borges, conversa que durou quase dez minutos; o encontro das comunidades da região também mereceu destaque no programa; o pequeno aumento do salário mínimo, tema que levou a críticas ao governo federal. Esta edição contou com convidados especiais: os integrantes do grupo de músicas nordestinas Trio Bahia, que visitavam a rádio para divulgar seu trabalho. A reportagem externa do programa foi feita por Maria da Penha, diretamente de uma feira no bairro São Domingos, 183 onde ela entrevistou um consumidor sobre preço e qualidade dos produtos oferecidos. 7.4. Cala a boca já morreu (porque criança também tem o que dizer) O Cala a boca já morreu, que possui o subtítulo “porque criança também tem o que dizer”, é um dos programas que começou junto com a Rádio Cidadã. Ele completou dois anos em agosto deste ano e foi criado para viabilizar um projeto de educação alternativa, batizado de Rádio-Escola. O programa é todo feito por crianças entre sete e doze anos. O Cala a boca já morreu... vai ao ar todos os domingos das 16 às 18 horas e é o momento prático das oficinas de rádio idealizadas pela pedagoga e psicopedagoga Grácia Lopes Lima, em sua escola, o Gens Serviços Educacionais. O programa conta com a participação de vinte crianças de dez escolas diferentes, entre públicas e particulares, da região Oeste de São Paulo. Desse grupo, dez crianças fazem parte do projeto desde o seu início. O critério de seleção é que estejam cursando a escola regular e gostem de ler e escrever e sejam curiosas para poderem experimentar o rádio como veículo de expressão. Grácia conta como o grupo foi formado: 184 Eu levei para participar da oficina algumas crianças que eu atendia enquanto psicopedagoga. Eu tinha algumas crianças que tinham dificuldade de aprendizagem, de relacionamento, de auto-imagem muito negativa e eu vi a possibilidade delas estarem desenvolvendo um trabalho em que essas deficiências pudessem ser favorecidas uma vez que estariam integradas à crianças que não têm dificuldade tão acentuada (...) O grupo nasceu boca a boca, inicialmente com as crianças que eu atendia que devagarinho foram falando pro amigo, pro vizinho, pro colega e o grupo foi se formando aleatoriamente. As crianças que chegam ao projeto Rádio-Escola não são colocadas imediatamente no programa. O processo é gradativo e há uma preocupação grande em esclarecer, principalmente aos pais, que o objetivo não é artístico, não visa formar talentos mirins e sim, como já foi dito, educar, incentivando hábitos de leitura e escrita. No primeiro mês de programa, as crianças não ficavam sozinhas no estúdio, contavam com a companhia de Grácia, que mediava os assuntos, e tinham operadores da rádio fazendo a parte técnica. Depois de um mês, avaliando o trabalho, eu disse: “não, eu acho que o mais legal é eu cair fora e deixar que as coisas rolem espontaneamente com o linguajar deles e contando com a minha participação na organização, impedindo que falem juntos, por exemplo, mas não tendo uma atuação direta”. Hoje, a participação de Grácia se restringe à produção do programa. Ela elabora junto com as crianças as pautas de cada edição e, durante a 185 apresentação, faz a supervisão. A técnica também passou a ser feita pelas crianças: todas operam a mesa de som, em regime de revezamento. Reuniões semanais Ao contrário dos outros programas analisados, o Cala a boca já morreu... é mais elaborado, com reuniões que visam discutir o desempenho de cada criança e preparar os programas com antecedência. Esses encontros ocorrem uma vez por semana, das 19h30 às 21 horas, com a presença de todas as crianças do projeto, reservando-se espaço para que elas falem de si mesmas, para a produção das pautas do programa seguinte, para a avaliação do programa anterior e para que as crianças brinquem. Nas reuniões semanais, todos aprendem a fazer pauta e possuem um caderno para anotar cada passo da reunião: nome dos presentes, atrasos, faltas, elaboração dos assuntos do programa etc. Há algumas regras a serem seguidas, todas formuladas conjuntamente; duas delas são: três faltas não-justificadas excluem a pessoa do grupo e lição de casa não é justificativa para faltas. O voto é a maneira de decidir sobre os assuntos e todos votam e expõem sua escolha. Pauta e blocos do programa 186 A pauta do programa é apontada pelas crianças, que sugerem os assuntos que querem discutir em cada bloco. O Cala a boca já morreu... é composto de 11 blocos fixos e nem todos são apresentados em cada edição, pois, dependendo do assunto, é preciso mais espaço para determinado bloco. Mas há um cuidado para que um não seja muito mais extenso que outro, por isso o grupo decidiu que cada bloco terá em torno de seis minutos, intercalados por música a cada três minutos. A exceção será aberta quando houver um assunto de maior interesse para as crianças. Os blocos surgiram a partir dos assuntos que as crianças queriam ver no programa. Alguns temas, como educação ambiental e política, foram sugeridos por Grácia: Alguns assuntos, dada a forma como são apresentados nos meios de comunicação, a criança foge rapidinho porque é muito chato. Falar de política é muito chato, falar de ciências é muito chato, mas eu acho que é chato porque foi passado de uma forma desagradável, foi passado numa linguagem inacessível, então por que a gente não pode aprender a falar desses assuntos? Os nomes dos blocos são: Notícia quente é com a gente; Acorda, meu filho; Espaço sideral; Criança ecologia; Nham, nham; Tamanho não é documento; Beijinho de amor; Leitura da hora; Saúde da terra; Adivinhações; e Rádio-novela. 187 • Notícia quente é com a gente é um bloco que trata de temas diversos de interesse das crianças, como a questão ambiental, mas pode ter também entrevistas com um político, um dentista ou um grupo de atores de peça infantil. As entrevistas são sugeridas e produzidas por Grácia. Segundo ela, as crianças ainda não percebem a possibilidade de receber pessoas para falar sobre determinados assuntos, daí sua influência; é ela que faz também o contato com o entrevistado. • Acorda, meu filho é específico para reclamar de qualquer assunto que incomode as crianças no dia-a-dia. O mais comum é a reclamação do preço de produtos, como lanches na cantina, material escolar etc. • Espaço sideral trata dos assuntos intergalácticos, como planetas, sistema solar, pesquisas em outros planetas etc. • Criança ecologia é o bloco que fala de meio ambiente: da água, dos animais em extinção, da poluição, entre outros. • Nham, nham é o menor bloco do programa e vai ao ar na sua segunda hora. Nele é passada uma receita culinária feita comprovadamente pelas crianças. Há um rodízio no qual cada um dos componentes do programa testa em casa a receita e depois a divulga no bloco. 188 • Tamanho não é documento recebe convidados mirins para mostrarem seus talentos, cabendo também a divulgação de trabalhos de adultos para crianças. • Beijinho de amor é o bloco romântico, também da segunda hora. Nele surge a personagem Tatiane, interpretada por Ísis Soares, dez anos, que participa do programa desde os oito anos. Esse bloco foi criado para aproveitar o talento das crianças na criação de personagens. Apesar de já terem existido outras personagens, como o Espírito Santo, um menino que imitava Silvio Santos, apenas a personagem Tatiane continua com o seu Beijinho de amor, que recebe versos de ouvintes e recados de namorados para divulgação. • Na Leitura da hora, as crianças comentam os livros que leram e ocasionalmente entrevistam autores cujos livros foram lidos e discutidos por todo o grupo. Já passaram pelo bloco escritores de livros infantis como Pedro Bandeira, Eva Furnari, Maurício de Sousa e Wagner Costa. • Saúde da Terra é o mais novo bloco do programa e dele participam algumas das 20 crianças do projeto homônimo, em que crianças carentes aprendem o cultivo e a utilidade de plantas medicinais numa horta comunitária, criada na Sociedade Amigos de São Domingos, sob a responsabilidade de Grácia e de uma farmacêutica. As crianças contam neste bloco as suas experiências no projeto, além de participar de todas as outras partes do programa. 189 • Adivinhações é o bloco em que as crianças brincam de “O que é, o que é?”, contam piadas e curiosidades. • A Rádio-novela não é constante. Trata-se de textos de livros transformados em novela, que é gravada pelas crianças durante as reuniões semanais. Por ocasião desta pesquisa, a novela que estava na pauta para gravação era “Vidro vira vidro”, que fala da reciclagem de materiais. Músicas As músicas que tocam em cada programa também são escolhidas pelas crianças, que geralmente reforçam a discoteca da rádio com seus acervos pessoais, e são basicamente de estilo pop, rock e dance music. Para Grácia Lopes, a falta de uma programação musical é um problema a ser resolvido, pois em sua opinião o gosto das crianças é marcado pela imposição da mídia, que de tempos em tempos lança um novo ídolo no mercado fonográfico: “Aí eu fico pensando: cadê a dimensão também educacional quanto à educação auditiva dessas crianças?”. A solução, segundo ela, seria mesclar outras opções musicais com as músicas que as crianças gostam. Audiência 190 A audiência do programa é diversificada, composta de jovens, adultos e crianças. Não se tem idéia do número de ouvintes, mas não parece ser grande, pelo número de telefonemas – em torno de 5 – nas quatro edições. A razão pode ser o horário em que o Cala a boca já morreu... vai ao ar: domingo, das 16 às 18 horas, horário em que também são transmitidos os programas televisivos de Fausto Silva e Silvio Santos, o que se torna uma concorrência injusta com o Cala a boca já morreu... O Jornal Cala a boca já morreu... A partir de uma entrevista das crianças com o diretor de uma rede de jornais de bairros, a Rede A de Jornais, surgiu a idéia de as crianças produzirem seu próprio jornal. O diretor se comprometeu a arcar com o projeto gráfico, a impressão e a distribuição do jornal, enquanto as crianças fazem todo o resto do trabalho: reportagem, redação, foto, legenda etc., sempre sob a orientação de Grácia Lopes Geralmente, as matérias do jornal são compostas pelas entrevistas e assuntos que fizeram parte do programa de rádio. Atualmente, é um tablóide de quatro páginas, distribuído gratuitamente como encarte do Jornal do Butantã. São 20 mil exemplares, dos quais três mil são encaminhados para escolas. 191 Alguns trechos de edições do mês de abril Ilustrando um pouco a maneira como é desenvolvido o Cala a boca já morreu... selecionamos alguns trechos de blocos dos programas do mês de abril. Toda edição do Cala a boca já morreu... começa com a vinheta do programa, seguida da apresentação, que explica que o Cala a boca já morreu... é mais um dos programas do projeto Rádio-Escola; além disso, cada uma das crianças se identifica, dizendo seu nome e a seguir começam a apresentar os blocos com seus respectivos assuntos. No programa do dia 6 de abril, o Notícia quente contou com a participação de um odontólogo, Franco Rattichieri, que falou sobre sua profissão, os cuidados com a higiene bucal, explicou o que é o dente de leite e o dente do juízo etc. O bloco foi estendido para mostrar uma entrevista feita pelas crianças com os atores da peça “Uma professora muito maluquinha”. As crianças assistiram à peça e em seguida realizaram a entrevista. Eis um trecho: Ísis: Estamos aqui diretamente do teatro Bibi Ferreira, a gente acabou de assistir à peça “Uma professora muito maluquinha” e a gente agora vai fazer um bate-papo com os atores. Hans: Bom, o namorado, cadê? Cadê o namorado? (referindo-se ao ator que faz a personagem que namora a professora) Namorado: Pode perguntar. Qual é a primeira pergunta? Tô nervoso... Hans:. O que você achou de encantador na professora? 192 Namorado: O que eu achei de encantador? Eu achei ela bem maluca. Eu acho que ela deixa a gente fazer o que quer, lá a gente pode brincar, a gente tem a liberdade, mas a liberdade vigiada por ela, então ela dá uma chance da gente não ficar com aquela coisa tradicional, sabe? (...) A entrevista prossegue com os atores falando da dificuldade de se interpretar um papel infantil e da mensagem da peça. Tanto na entrevista que fizeram com o dentista, quanto na entrevista com os atores, o grupo do Cala a boca já morreu... mostrou-se bastante integrado aos assuntos. O contrário ocorreu no mesmo bloco da edição de 13 de abril, cujo entrevistado do Notícia quente foi o deputado estadual Lívio Geosa (PSDB). Transcrevemos a seguir o início da entrevista: Ísis: Bom, gente, agora vamos entrevistar o deputado estadual Lívio Geosa, que é suplente do Walter Feldman, né? Lívio: Isso. Ísis: Ah, bom. Então, antes eu queria te agradecer por você ter vindo junto com a sua família, esposa.... E quando você começou a ter um cargo político? (...) Livio: Sou fã desse programa. Conheci vocês numa grande reunião que a gente fez através das rádios comunitárias (...) Bom, respondendo a sua pergunta, bom, primeiro que eu realmente desde criança que eu me interessava por assuntos políticos (...) Ísis: Quando você começou a ter um cargo político? 193 Lívio: Então, sobre duas coisas, né? Uma coisa é você exercer a política no Executivo, outra coisa é você exercer a política no Legislativo. Eu vou explicar (...) Nessa primeira parte da entrevista, apenas o deputado fala e é pouco interpelado pelas crianças. A primeira pergunta foi sobre o início da carreira de Lívio Geosa como político, o que deu margem a uma extensa resposta. Sua explicação é didática e as crianças se manifestam pouco, por isso ele fala durante mais de dez minutos, com quase nenhuma interrupção. Nota-se um certo desinteresse por parte das crianças, algumas conversam no estúdio e poucas parecem prestar atenção ao que o deputado fala. Após um breve intervalo musical, no qual Grácia chama a atenção das crianças por estarem pouco participativas, o grupo muda de atitude, fazendo mais perguntas ao deputado e colocando ainda a sua filha, mais ou menos da mesma faixa etária que as crianças do Cala a boca já morreu..., para dizer o que pensa sobre a profissão do pai. Ísis: Agora vamos fazer uma pergunta pra sua filha Joana. Tudo bem? Então.. cê não sente falta do teu pai, às vezes, quando ele vai fazer reuniões em algum lugar? Você não sente falta dele? Joana: Sinto. Ísis: E você preferiria que ele levasse você junto ou que ele ficasse? Joana: Que ele ficasse. Ísis: Que ele ficasse? Então tá. E você gosta de política? 194 Joana: Não. (risos) Ísis: Bom, por que você não gosta? Joana: Ah, porque... ah, não sei explicar direito. Ísis: Você acha chato? Joana: Acho. Hans: Bom, muita criança acha, né? Porque às vezes não entende, como a gente às vezes também não entende algumas coisas, então a gente: “ah, isso daí é chato, a gente não entende, é complicado”. Ísis: Quando é horário político, desliga a televisão... (...) Hans: Você, ouvinte, mesmo não estando aqui, você pode perguntar. Liga pro 268-3302 e você vai poder falar... O grau de participação das crianças depende do assunto da entrevista. Quando estão explorando pouco um assunto durante o programa, como no caso da entrevista com o deputado, entra em cena a supervisão de Grácia, que orienta o grupo a mudar de atitude, com o seguinte discurso: “O programa é de vocês, interfiram, cortem a fala, façam explicar de outro jeito, digam ‘não entendi’, mas nós temos que começar a falar dessas coisas, senão o mundo não muda”. Mas o Notícia quente não é feito apenas com entrevistas e a participação de convidados. Podem haver também discussões como os motivos da poluição dos rios ou as notas recebidas na escola. 195 Um dos blocos que mais demonstram a preocupação das crianças com o meio ambiente é o Criança ecologia, em que já foi entrevistado o biólogo do projeto S.O.S. Mata Atlântica e coordenador do Núcleo Pró-Tietê, Samuel Barreto, que falou sobre o rio Tietê, e um professor do Instituto Butantã, que conversou sobre cobras com as crianças. Assim como o Notícia quente, este bloco nem sempre conta com a participação de convidados, o que possibilita que as crianças falem sobre outras coisas, como os animais que estão em extinção, por exemplo. Quando o tema é esse, o grupo fica responsável por pesquisar a respeito e conseguir todas as informações possíveis sobre a matéria, como a que foi ao ar no programa do dia 13 de abril: Ísis: E hoje, qual que é o assunto de hoje, Hans? Hans: O assunto de hoje é o lobo. Ísis: Que lobo? O guará? Hans: Não somente do lobo guará, mas de todos os lobos. Ísis: Posso falar um pouquinho primeiro? Hans: Fala. Ísis: O nome científico do lobo guará é Chrysocyon brachyurus; o tamanho dele, ele mede de um metro e vinte a um metro e quarenta, mais a cauda de 40 centímetros (...) (...) Hans: Quem escreveu a história do Lobo Mau, da Chapeuzinho Vermelho nunca viu um na vida, né? O lobo na verdade não é tão mau assim e é 196 até considerado bem covarde, acredita? Aquele lobo que o pessoal “nossa, que feroz” é até considerado bem covarde. Ele só ataca animais pequenos como sapos, lagartos, roedores e também se alimenta de frutas, ovos, insetos e raízes (...) Hans continua, falando a respeito do modo de vida do lobo guará e das suas características. As crianças contam as histórias que conhecem a respeito do lobo, como ele é representado nas histórias em quadrinhos e nos desenhos animados, comparando com a realidade. Ao final, pedem aos ouvintes que liguem caso queiram saber mais informações sobre os lobos. No programa do dia 20 de abril, os assuntos que mais despertaram o interesse das crianças foram o descobrimento do Brasil e Tiradentes, no bloco Tamanho não é documento: Renato: Agora, gente, pra quem não sabe, segunda-feira, amanhã, dia 21 de abril é o Dia de Tiradentes, feriado nacional. Então agora eu vou falar um pouquinho de Tiradentes que amanhã vai fazer aniversário, não, aniversário não (...). Hans: Lembrando que dia 18 foi o aniversário de Monteiro Lobato, né? E dia 19 foi o Dia do Índio. (...) Renato: ... como amanhã é o Dia de Tiradentes, eu vou contar um pouquinho da vida de Tiradentes. Tiradentes não é um barbudo nem cabeludo como mostra as representações conhecidas do maior personagem da Inconfidência Mineira (...). 197 Ísis: Bom, gente, agora eu quero falar uma coisa que um ouvinte chamado Paulo... ele disse que o nome certo, Calhandra, não é bicarbonato de sódio, é cloreto de sódio (referindo-se ao bloco anterior, o Nham, nham, quando foram passadas as receitas de fondue de chocolate com rabanete e de soda limonada; um dos ingredientes da soda, de acordo com Calhandra, era o bicarbonato de sódio). Calhandra: Quanta correção, né? Renato: Valeu, pessoal, é Rádio-Escola, então a gente tá aprendendo, por isso que serve de escola. Então, pessoal, mais um super-recado, que dia 22 de abril, terça-feira... fala, Ísis. Ísis: Por sinal, temos ouvintes, né? Renato: É claro, por sinal, temos ouvintes e isso é muito bom, valeu vocês terem corrigido a gente, e dia 22 de abril, que é terça-feira, foi o descobrimento do Brasil. Hans: Na verdade, não foi descobrimento, foi invasão; o Brasil já estava descoberto porque já existiam os índios que são nativos. Saiu uma reportagem no jornal no Estadinho desse sábado que diz que os professores de escola dizem que o Brasil foi descoberto pelos portugueses, mas.... historiadores dizem que ele não foi descoberto e na verdade eles descobriram oficialmente e eles invadiram o Brasil... Renato: É. Mas na história tá marcado como descobrimento do Brasil, né? Porque os índios, a gente não sabe como os índios vieram. (Grácia fala do outro lado do estúdio que os índios já estavam aqui. Nesse momento, várias crianças falam ao mesmo tempo, defendendo seu ponto de vista.) Adriano: Só que eles tão falando que os índios vieram da Índia. Renato: É... não, isso são várias hipóteses, né? Ninguém pode... Hans: Os índios foram chamados de índios porque os portugueses na verdade queriam chegar nas Índias e não sabiam da existência das Américas, chegaram no Brasil, viram eles e disseram que eles eram os 198 índios, pensando que ali era as Índias, por isso que os índios são chamados de índios. (Renato continua falando sobre a versão oficial para o descobrimento do Brasil. Após um intervalo musical, Hans retoma a hipótese de invasão, e Grácia, que acompanha de fora do estúdio, pergunta a ele a fonte da informação.) Hans: Isso eu tirei do Estadinho, que vem dentro d’O Estado de S. Paulo, de sábado, 19 de abril. Essa passagem demonstra a curiosidade das crianças pelos temas explorados, ou seja, elas não se limitam a pesquisar apenas a versão oficial, que muitas escolas repassam, e sim procuram ver outras interpretações, num saudável exercício de busca de conhecimento. O grupo preocupa-se em trazer novidades para o programa e em apresentar a fonte da informação. Essas observações também foram verificadas no bloco Acorda, meu filho, do dia 27 de abril: Mariana: É o seguinte, eu vou reclamar sobre a segurança dos shoppings; eu não vou falar o nome do shopping, mas... Todos: Pode falar. Mariana: É, então, ontem eu cheguei do shopping Continental, cheguei em casa e liguei a TV, daí, quando eu liguei a TV, tava passando “Bomba no shopping Continental”. Ainda bem que eu saí de lá, viu?, porque tinha uma bomba lá dentro, dentro de um vaso sanitário, eu não lembro em qual dos banheiros. Hans: Já pensou se alguém senta lá? Ia ser desagradável... (risos) 199 Ísis: Isso não é motivo de risadas. (mais risos) Calhandra: É, cê falou e tá rindo, né, Ísis? Hans: Não, sem brincadeira. Já pensou se alguém senta lá? Ia ser chato... (...) Ísis: Como você acha que deve ter surgido essa bomba? Mariana: Não sei (...) Você vai passear, acha que tá tudo bem e depois chega lá e explode o shopping que você tá e você morre... é tão simples... é demais, né? (...) Ísis: Ô, gente, espera aí, nós temos que verificar isso direito, né? Porque... pra não ficar assustando os outros, pra gente saber direito o que aconteceu. Não vamos ficar falando coisas que a gente não tem certeza. Apesar de brincarem um pouco com o assunto, as crianças logo demonstram a preocupação de não se divulgar uma notícia equivocadamente e por isso elas colocam a dúvida, prometendo voltar ao assunto no programa seguinte. Em seguida começam a reclamar de outras coisas, inclusive da violência dos policiais no caso da favela Naval, de Diadema, e mostram-se relativamente assustadas com a história. A seguir, transcrevemos um trecho em que falam desse assunto: Renata: Eu queria falar dos PMs, que eu vi na televisão que os PMs tão batendo nas pessoas que passam assim nas ruas sem motivo de bater... 200 Hans: Sem motivo? O caso de Diadema lá, aquilo foi mais do que sem motivo... Renata: Olha, na minha escola... eu acho isso ruim porque em vez de bater eles podiam ajudar as pessoas. Calhandra: Na minha escola tem gente que prefere ficar do lado de um trombadinha do que de um PM, ele acha mais seguro. Ísis: (...) tão falando na televisão que é preferível agora você chamar o ladrão do que chamar a polícia... O programa Cala a boca já morreu... pode ser considerado o mais inovador da Rádio Cidadã. Nele, crianças fazem um programa para crianças no seu particular ponto de vista (e os adultos podem aprender muito). É claro que a mão da psicopedagoga está presente, mas apenas como uma maneira de organizar os pensamentos das crianças, que muitas vezes se atrapalham ao microfone, principalmente na parte técnica. No entanto, tudo é um rico aprendizado e por isso o exercício é estimulante, já que incentiva as crianças a pensar a realidade criticamente, a não aceitar os acontecimentos passivamente, através do que está escrito nos livros de história. Para isso contribuem alguns fatores: 1. a maioria das crianças que formam o grupo são da classe média e têm acesso a jornais, revistas, boas bibliotecas e até mesmo já utilizam a Internet em busca de informações. Mas, com a entrada das crianças do projeto Saúde da 201 terra, cuja maioria é da classe baixa, começa-se a mesclar o grupo e a troca de experiências de vida está passando a ser um novo componente; 2. a vivacidade do Cala a boca já morreu... mantém-se em decorrência da preocupação em não sobrecarregar as crianças de tarefas, reservando-se espaço para brincadeiras nas reuniões semanais e no próprio programa. Além disso, insiste-se na filosofia do trabalho por prazer, deixando-se a criança livre para sair do grupo quando quiser. “O mais importante”, nas palavras da pedagoga, “é a criança participar enquanto tiver prazer, caso contrário, vira algo burocrático”. 202 Capítulo 8 Pistas sobre o público da Rádio Cidadã 8.1. Considerações preliminares Advertimos que não é nossa proposta traçar um perfil completo a respeito dos ouvintes da Rádio Cidadã. No entanto, parece-nos útil levantar algumas hipóteses sobre os seus ouvintes e os seus não-ouvintes e como eles vêem a emissora comunitária. Para isso, entrevistamos 15 pessoas, entre jovens, donasde-casa e comerciantes da região, com o intuito de apresentar alguns elementos acerca da recepção da rádio. Ressaltamos que nosso objetivo é buscar, com isso, um suporte à pesquisa feita sobre a emissora, não tendo, portanto, um caráter conclusivo. As entrevistas com ouvintes e não-ouvintes foi realizada entre abril e maio de 1997, no período em que foi feita a pesquisa de campo na Rádio Cidadã. A escolha dos entrevistados – que foram divididos em duas categorias: jovens e adultos162, independentemente de sexo e profissão, entre 13 e 65 anos, faixa etária que congrega o maior número de ouvintes – foi aleatória, bem como o número de pessoas entrevistadas. As perguntas foram direcionadas a duas 162 Descartamos entrevistar as crianças por considerar que a maioria dos ouvintes da Rádio Cidadã é constituída de jovens e adultos, apesar de existir um programa infantil na emissora. Para chegar a essa conclusão, baseamos-nos em depoimentos de pessoas envolvidas com a rádio e em telefonemas dos ouvintes. 203 questões básicas: a relação do entrevistado com a mídia oficial e a sua relação com a Rádio Cidadã. Selecionamos alguns depoimentos para fundamentar nossa análise. 8.2. O perfil do ouvinte jovem O ouvinte jovem da Rádio Cidadã inclui jovens que têm entre 13 e 19 anos, mulheres em sua maioria, que trabalham, possuem o primeiro grau incompleto e moram há mais de dez anos no Butantã. É um público que gosta da emissora pelas músicas veiculadas, em especial samba, pagode e rap, e pode ser visto como um público fiel, que telefona e visita a rádio freqüentemente. Essas características mostram-nos o perfil do público que ouve a emissora à tarde, que é predominantemente jovem. A participação restringe-se a telefonemas (pedidos de música e recados para amigos e namorados) e visitas à emissora para ver de perto a apresentação dos programas. Antes de conhecer a Rádio Cidadã, esse público costumava ouvir emissoras como a Cidade e a 105.1, também em função do estilo das músicas, mas não telefonava para as rádios. Dentro dessas características, encontramos Ana Paula Oliveira, 18 anos, ajudante-geral, primeiro grau completo, nascida no Butantã. Ela escuta a Rádio Cidadã há algum tempo (não sabe precisar quanto) e conheceu a emissora através de amigos que telefonavam para a rádio e falavam no ar. “Eu achei 204 interessante e passei a ouvir”, conta. A partir daí, tornou-se uma ouvinte assídua, sintonizando a rádio das 13 às 22 horas, período em que não trabalha. Seus programas preferidos são: Cantinho do JB e Projeto Rap, que veiculam seus dois estilos de música preferidos. Conhecer a rádio pessoalmente foi outro motivo que levou Ana Paula a ouvir a Rádio Cidadã. “Depois de uma semana escutando a rádio, vim conhecer, eu e minha irmã”, diz, explicando que nunca tinha ido antes a uma emissora de rádio. Sua relação com a emissora é de proximidade: telefona sempre para pedir música, conversa com os apresentadores no ar, manda recados e conhece pessoalmente os de seus programas preferidos. Assim como Ana Paula, outra ouvinte fiel dos programas musicais da rádio é Elisabeth Pereira, 15 anos, que estudou até a 3a série, não trabalha ainda e também nasceu no bairro. Para ela, o rádio serve para se escutar música, e são as músicas o que mais a atraem à Cidadã, além do relacionamento cordial que mantém com os apresentadores. “Gosto mais das pessoas que atendem o telefone, são muito simpáticos e o jeito de tratar a gente... tratam muito bem... quando a gente manda recado, falam tudo certo, nunca tratam a gente mal”, relata. Outra ouvinte fiel da emissora é Patrícia do Carmo, 15 anos, 8a série, que também nasceu no bairro. Antes de conhecer a Cidadã, só ouvia a 105.1, por 205 causa das músicas: dance music e rap. Patrícia soube da existência da rádio por meio de um amigo de sua família que foi apresentador na emissora. Ela escuta a rádio todos os dias: “Quando saio da escola, a primeira coisa é ligar a rádio [sic]”, e conta que sempre vai à emissora. “Eu ajudo: atendo telefone, levo recadinhos.” Essas informações permitem-nos algumas observações: • o ouvinte jovem da Rádio Cidadã vê a emissora como musical, sem outras possibilidades de uso do veículo; • esse ouvinte demonstrou não saber o que é uma rádio comunitária nem qual o seu papel junto à comunidade163; • o mais importante para esse público é poder telefonar para a emissora, ser bem atendido e visitá-la quando quiser. Esse é o aspecto que o atrai e faz com que deixe de ouvir as rádios comerciais, passando a ouvir a rádio comunitária, que sempre atende seus pedidos musicais. Para esse ouvinte, a rádio comercial é distante, difícil de ser contactada e não lhe dá muita atenção, o contrário do que se verifica na emissora comunitária: localizada na região em que se reside, pode ser visitada sempre. 163 Houve entrevistados que responderam que uma rádio comunitária é uma emissora para onde se pode telefonar através de telefones públicos, o que não pode ser feito com relação às rádios comerciais, já que estas aceitam apenas ligações de telefones particulares. 206 8.3. O perfil do ouvinte adulto O ouvinte adulto da Rádio Cidadã inclui pessoas que têm entre 28 e 65 anos, mulheres donas-de-casa na maioria, com pelo menos o segundo grau completo e que moram no Butantã há mais de 20 anos. A preferência pela Rádio Cidadã dá-se, em primeiro lugar, pelas músicas e pela relação de amizade com os locutores da emissora e, depois, pela possibilidade de utilizar a rádio como instrumento de reivindicações de melhorias ao bairro. Essas pessoas têm a Rádio Cidadã como a “sua” emissora, o veículo de comunicação através do qual podem ouvir sempre boas informações (palavras que os entrevistados mais utilizaram para explicar por que gostam da Rádio Cidadã), e gostam, predominantemente, dos programas musicais como Alma sertaneja, Direitos do cidadão, Jovem Guarda e A saudade me chama, mas também têm preferência especial pelos programas de entrevistas e debates, entre os quais, Revista Cidadã, Na boca do povo e Encontro com as comunidades. Além disso, a rádio possibilita a esses ouvintes ampliar seu quadro de amizades no bairro. Um dos programas com maior audiência, A saudade me chama, promoveu um encontro entre as ouvintes mais assíduas, na própria emissora. A partir desse encontro, elas se tornaram amigas, e utilizam a rádio para mandar recados umas às outras. 207 De acordo com esse perfil, selecionamos alguns ouvintes que melhor representam o público adulto, entre os quais há casos peculiares: Elba Pinheiro Simi, 65 anos, viúva, aposentada, moradora do Butantã há mais de 50 anos, é considerada a ouvinte “número um” da Rádio Cidadã. Na emissora, é conhecida como “a Dentel” da rádio, porque está sempre escutando a Cidadã, telefonando e gravando alguns programas diariamente. Na realidade, Elba possui uma espécie de fã-clube do Butantã, chamado Crianças de Cosme, Poeta do Rio Pequeno, o qual possui mais de duas mil assinaturas de pessoas do bairro e de fora dele (não há um objetivo específico para esse fã-clube, o interesse é apenas colher assinaturas). Todos os dias ela divulga a relação de aniversariantes do fã-clube, via rádio, através dos programas Alma sertaneja e Direitos do cidadão. Sobre isso, ela diz: “Antes de conhecer a rádio eu já tinha o fã-clube, que eu fiz para o poeta do Rio Pequeno, chamado Abdias. Eu sou a presidente do fã-clube Criança de Cosme. Quando o Abdias veio, eu disse que eu ia ajudar ele, ele entrou no fãclube e eu dei o fã-clube pra ele. Foi o Abdias que me levou pra rádio, aí o pessoal da rádio entrou no fã-clube”. Elba é ouvinte da rádio desde as primeiras transmissões: “A rádio me dá tudo que eu preciso”, diz ela, e é capaz de falar sobre toda a grade de programação sem titubear. Ela indica seus programas preferidos pelo nome do 208 apresentador e não pelo nome do programa e cita o de Eros Machado (Alma sertaneja), “porque ele divulga os aniversários do meu fã-clube, ele fala muito bem, ele me quer muito bem, quando eu dou festa aqui, ele vem aqui, ele participa de minhas festas aqui, ele, a esposa, os filhos. O doutor João também (João Ferreira, Direitos do cidadão), aliás todos da rádio vêm aqui, até o filho da Luci”. Apesar de conhecer outras rádios comunitárias no bairro, Elba não troca de emissora: “Eu escolhi a rádio Cidadã porque eu gosto da Luci, eu gosto da família dela, ela me trata muito bem e gosto da minha rádio porque foi a primeira rádio que me deu muito apoio, que os comunicadores são muito meus amigos, todos eles, e quando eu ligo eles ficam felizes, me mandam aquele alô, a ouvinte número um, eu sou muito bem tratada por eles. Então jamais eu trairia a minha rádio, que eu gosto de todos que tão lá”. Outra ouvinte assídua da emissora é a dona-de-casa Jovelina dos Santos, 52 anos, casada, que mora há 47 anos no bairro e escuta a rádio pela manhã. Seus programas preferidos são os de Eros Machado, João Ferreira e José Luis, respectivamente Alma sertaneja, Direitos do cidadão e A saudade me chama. Além desses, também costuma ouvir a Revista Cidadã, com suas várias entrevistas. Ela acompanha a emissora desde o início das transmissões e a conheceu por meio de um dos apresentadores, José Luis. 209 Ao contrário de Elba, Jovelina costuma ouvir também emissoras oficiais e acompanha, em especial, o programa de Eli Correa, na Rádio Capital, para onde sempre escreve pedindo músicas, já que participar pelo telefone, segundo ela, é mais difícil. Reforçando, esse é um ponto de proximidade do ouvinte com a Cidadã: “Sabe o que eu acho diferente? É que sempre que a gente liga pra lá, a gente é bem atendido, então pede uma música, se eles não têm aquela hora, já falam ‘amanhã eu toco’ e toca mesmo”. Além de ligar para pedir músicas, Jovelina utiliza a rádio para tentar solucionar alguns problemas cotidianos. Ela contactou, através da emissora, um advogado para o seu filho: “Foi um advogado no programa do doutor Geraldo e através do programa dele, a gente contratou esse advogado pra ser advogado do meu filho numa causa trabalhista”, comenta. Ela também já usou a rádio para fazer reclamações: “Eu fiz várias sobre lixo na rua, tanto no programa do Zé Luis como nos outros programas, e dá resultado”. O contato com a rádio é feito por meio de telefone e de visitas; neste último caso, Jovelina combina com as amigas que conheceu através da rádio: “A gente combina e vai, se encontra no programa do Zé Luis. Uma vez combinamos e fizemos o aniversário do Zé Luis lá. Outra vez fomos no programa do João Ferreira”. A única queixa de Jovelina em relação à rádio é quanto à inconstância dos programas. De acordo com ela, já houve muitos 210 programas bons que saíram do ar sem explicação: “Eu não entendo por que esses programas bons como o do Everton, do doutor Geraldo saiu do ar [sic]”. Elisabeth Rocha, 31 anos, administradora, residente no bairro há 28 anos, considera o rádio o melhor veículo de comunicação, porque oferece serviços de utilidade pública, música e informações: “Você pode ficar por dentro dos acontecimentos do dia-a-dia”. Suas emissoras preferidas são a Rádio Cidadã e a oficial Antena 1. Na rádio comunitária, sua preferência recai nos programas musicais, entre os quais Tarde vespertina, Black balanço e Cantinho do JB. “A gente entra em contato, liga, passa recado, mensagem, sempre telefona”, explica, dizendo gostar da educação e da dedicação com que tratam os ouvintes – “eles são muito atenciosos” – e das músicas que tocam. Maria José Rocha, 49 anos, presidente da creche Nossa Senhora Assunção, no Jardim Bonfiglioli, residente em Cotia, sintoniza seu rádio na Rádio Cidadã, no caminho de sua casa até a creche. Ela escuta a emissora por causa das músicas tocadas, especialmente, as sertanejas. Ela conheceu a rádio através de José Luis. Quando ainda morava no bairro, Maria José ouvia a emissora com mais freqüência: “Eu ligava, oferecia música, a gente ligava pra poder passar mensagens”. Ela diz que nunca telefonou para dar sugestões ou reclamar de qualquer problema do bairro. 211 A partir dessas entrevistas, observamos: • o ouvinte adulto da Rádio Cidadã acompanha a programação da manhã, não se interessando pelos programas vespertinos, e têm preferência pelos programas musicais e os de entrevistas; • há uma relação de amizade com os apresentadores dos programas, daí os ouvintes sentirem a rádio como parte integrante de sua vida no bairro. Assim como o público jovem, o adulto também diferencia a Rádio Cidadã das rádios comerciais pelo tratamento recebido, frisando sempre a atenção com que o ouvinte é tratado; • o ouvinte adulto tem noção de que a rádio comunitária é um canal que deve ser utilizado para resolução dos conflitos no bairro e até utiliza a rádio para isso. No entanto, ainda predomina a visão do rádio como veículo de entretenimento. O caso da ouvinte que preside a creche é revelador nesse sentido, já que, mesmo sabendo da existência da rádio comunitária, não a utiliza para falar dos problemas enfrentados na creche. A emissora, por sua vez, apesar de utilizar o lema “se a comunidade não vai até a rádio, a rádio vai até a comunidade”, deixa a desejar no sentido de não explorar um assunto (como os problemas enfrentados na creche) que diz respeito a vários moradores, fisicamente próximos à emissora que, contudo, acabam 212 ficando à margem do principal objetivo da rádio: o de ser o veículo de expressão da comunidade. 8.4. O não-ouvinte da Rádio Cidadã Consideramos como não-ouvinte da Rádio Cidadã as pessoas que, mesmo morando na área de abrangência da rádio e sabendo de sua existência, não a escutam ou o fizeram poucas vezes. Esse grupo inclui pessoas que têm entre 17 e 49 anos, estudam ou trabalham. Os principais motivos elencados para não ouvir a rádio comunitária são: o estilo de música tocado e as características dos apresentadores, principalmente o estilo de locução. Entrevistamos, entre outros, Elaine Silva Santos, 19 anos, estudante, residente no bairro há 5 anos. Ela ouve rádio em função das músicas tocadas. As emissoras preferidas são a Rádio Cidade e a Jovem Pan e ela costuma ouvir rap e pagode. Elaine escutou a Rádio Cidadã uma vez, sem saber que era uma rádio localizada no Butantã. Apesar de ter gostado, não voltou a ouvir a rádio, por falta de tempo, segundo ela. 213 Já a cabeleireira Ediléia Costa, 49 anos, que vive no bairro há 18, é vizinha da emissora comunitária, mas não a escuta. Ela conhece a Rádio Cidadã desde as primeiras transmissões e já a sintonizou, mas não continuou ouvindo-a, por falta de tempo. Ela acha a rádio importante para o bairro, apesar de não saber por quê: “Acho legal ter uma rádio no bairro, não sei explicar por quê, parece que fica mais completo”. Viviane Alves dos Santos, 19 anos, não mora no Butantã, mas trabalha no bairro o dia todo, como ajudante num salão de beleza. Sua emissora radiofônica preferida é a Rádio Cidade. “Adoro samba”, explica. Para ela, o rádio serve apenas para tocar músicas, que precisam ser sempre renovadas, sem muita repetição. “Na maioria das rádios, as músicas cansam por serem repetidas”. Ela sintonizou a Rádio Cidadã uma vez, mas não gostou: “Eu acho que o jeito deles falarem [sic] na rádio, a voz deles é muito estranha”, explica, dizendo ter gostado apenas das músicas tocadas e que não voltará a ouvir a emissora. Marcelo Pavan, 31 anos, comerciante, que mora há dois anos no bairro, também não gostou da Rádio Cidadã por causa das músicas tocadas. O contato que Marcelo teve com a Cidadã foi comercial, quando algumas pessoas da rádio ofereceram a ele espaços para apoio cultural. Além disso, um amigo chegou a fazer um programa na emissora e incentivou Marcelo a sintonizar a rádio. Mas o estilo de música não o convenceu a continuar a audiência, apesar de achar a 214 proposta da rádio “diferente”: “Achei interessante porque era uma rádio voltada pro bairro mesmo... até fiquei sabendo por um funcionário meu que tinha uma banda de pagode, e a rádio já tinha convidado todo o grupo dele, então eu achei interessante porque é uma rádio voltada pro bairro”. Com relação ao não-ouvinte da Rádio Cidadã, observamos: • entre as pessoas entrevistadas predomina a visão do rádio como meio de entretenimento: a maioria ouve rádio por causa das músicas e não se interessa pelo seu lado informativo, seja a emissora oficial ou não; • os entrevistados sabem que a rádio é localizada no bairro e que tem como objetivo divulgar os acontecimentos locais, mas não se interessam em saber mais a respeito. No entanto, essa não é uma característica exclusiva desse público da emissora, pois, como vimos, mesmo o público jovem não conhece todas as potencialidades da rádio comunitária, restringindo seu uso à divulgação de pedidos musicais e recados para amigos e namorados. Tudo isso pode significar que a Rádio Cidadã não tem conseguido, nesses dois anos e meio de emissão contínua, fazer-se entender pelo ouvinte, ou seja, 215 ainda não conseguiu esclarecer sua comunidade acerca do papel de uma rádio comunitária. Conclusão Na primeira parte desta dissertação delineamos um perfil histórico da radiodifusão ilegal. Mostramos que a utilização do rádio pode ter objetivos tais como entreter com finalidade lucrativa (caso das rádios piratas), ser uma arma política para divulgar a contra-informação (caso das rádios clandestinas e sindicais), ser portador de um discurso alternativo ao do rádio oficial (caso das rádios livres), ser divulgador de práticas religiosas (caso das rádios evangélicas) e ser o instrumento de comunicação de uma comunidade (caso das rádios comunitárias). O fato de termos direcionado particular atenção à prática das rádios livres, tanto as européias quanto as brasileiras, explica-se pela influência das emissoras livres na história das rádios ilegais no Brasil. É do movimento de rádios livres que se originam as rádios comunitárias, nosso objeto de discussão na segunda parte desta dissertação. Ao analisar o fenômeno das rádios livres no país, encontramos também sua ligação com um pressuposto básico da comunicação alternativa: a 216 preocupação com um conteúdo diferente daquele que é apresentado pelas rádios oficiais. Essa diferença estava presente não só na parte de locução como também na parte musical: as músicas veiculadas pelas rádios livres eram escolhidas com rigor, procurando uma adequação ao perfil da rádio, e geralmente eram músicas que as rádios comerciais não tocavam. A origem dessa preocupação está na formação de quem fazia rádio livre: alguns ligados a universidades, outros estudantes autodidatas, outros ligados à cultura, ou seja, pessoas intelectualmente esclarecidas, que viam no rádio um instrumento de divulgação das práticas alternativas. As rádios comunitárias, por sua vez, podem ser ligadas à comunicação popular, já que surgem no seio dos movimentos sociais e são organizadas por determinados segmentos da comunidade, como líderes de associações de bairro. Essas rádios também têm a preocupação de apresentar um conteúdo diferente do dos grandes meios, mas são marcadas pelas contradições de quem pratica a experiência. Por isso, é comum encontrar na programação dessas emissoras as mesmas músicas das rádios comerciais e um estilo de locução parecido com o seu, ou igual a ele. Para refletir mais a respeito da experiência das rádios comunitárias analisamos o trabalho de uma dessas emissoras, a Rádio Cidadã. Vimos a sua grade de programação, o conteúdo dos seus programas e como é feita a sua 217 aproximação com a comunidade. A partir desse estudo foi possível chegar às seguintes conclusões: 1. a Rádio Cidadã surgiu a partir de um grupo limitado de pessoas, que viram na rádio comunitária uma forma de organização e mobilização popular, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida na comunidade. Assim, apesar de ter a intenção de ser a emissora da comunidade, a Rádio Cidadã não nasceu da organização dessa mesma comunidade; 2. a aproximação da Rádio Cidadã com a comunidade surge gradativamente, primeiramente com os jovens da região, depois com os líderes comunitários e por último com os outros moradores do bairro. É a partir desse encontro que a emissora começa a ser comunitária, embora ainda não totalmente, pois, para isso, precisaria ser dirigida de fato pela comunidade, o que não ocorre. Como vimos, a Rádio Cidadã é dirigida pela jornalista Luci Martins, que, junto com sua família, financiou todo o projeto da emissora; 3. a programação da emissora ainda é predominantemente musical, os programas musicais são os mais ouvidos e as músicas não diferem muito daquelas veiculadas pelas emissoras comerciais. O entretenimento é importante dentro da programação de qualquer emissora, mas em uma rádio comunitária não deve ocupar o maior espaço, visto que a sua proposta é principalmente ser o veículo de expressão da comunidade, portanto, é 218 necessário mais espaço na programação para os temas relevantes para a comunidade, que deveriam necessariamente ser discutidos pela própria comunidade; 4. nos programas Na boca do povo, Encontro com as comunidades e Cala a boca já morreu(porque criança também tem o que dizer) reafirmamos que os dois primeiros são os responsáveis pela aproximação da comunidade com a rádio, pois são apresentados por moradores do bairro e alguns líderes comunitários e é a esses programas que a comunidade recorre quando precisa denunciar um fato de seu interesse; mas essa aproximação precisa transformar-se em uma ampla participação; o programa Cala a boca já morreu... representa uma nova linguagem na emissora, já que é realizado apenas por crianças, e é o melhor exemplo de como um programa produzido e apresentado coletivamente pode levar ao ar temas importantes ao cotidiano de todos; 5. os programas da Rádio Cidadã são realizados por moradores do bairro, em geral pessoas que nunca tinham tido uma experiência radiofônica, que nem sequer conheciam uma emissora de rádio. Mas há um número limitado de pessoas na apresentação dos programas. Por isso, consideramos que a participação da comunidade na Rádio Cidadã ainda é pouco explorada, apesar dos apelos constantes para que a comunidade usufrua mais da rádio, tomando219 a como a rádio do seu bairro. Assim, a participação na emissora está limitada ao nível das mensagens, com telefonemas, cujos principais assuntos são os pedidos musicais, as reclamações sobre os problemas no bairro e os elogios aos apresentadores por seus programas, além de visitas para conhecer a estrutura física da emissora; 6. os ouvintes da Rádio Cidadã sabem que a emissora é do bairro e gostam do atendimento recebido na rádio, mas a aproximação não vai além disso. Falta a esse público conhecer as potencialidades do veículo comunitário; falta um trabalho educativo que esclareça o papel social da rádio comunitária; mais que tudo, falta a esse público compartilhar das decisões de poder na emissora, desde a discussão da programação até a administração do meio. Um bom exemplo de como poderia ocorrer essa partilha de poder é verificado no programa infantil da própria Rádio Cidadã, no qual as crianças são educadas nas oficinas de rádio a participar coletivamente de toda a sua produção. O fator principal para que a emissora alcance um perfil definitivamente comunitário começou com a comunidade sendo chamada a participar da rádio, a tomá-la como sua, ou seja, a Rádio Cidadã está aberta a esse objetivo, apenas precisa incentivar e facilitar a participação como um processo crescente em qualidade, de acordo com o que foi discutido no terceiro capítulo desta dissertação. Mas isso só será alcançado, não só na Rádio Cidadã como nas 220 outras emissoras comunitárias, se o projeto que regulamenta esses veículos for logo sancionado. A regulamentação das rádios comunitárias é necessária, pois sem ela muitas experiências tendem a ser interrompidas no meio do processo, como aconteceu com a própria Rádio Cidadã, apreendida no dia 8 de julho de 1997, após dois anos de funcionamento contínuo. A ação foi realizada pela Polícia Federal e pela fiscalização do Departamento Nacional de Fiscalização das Comunicações. Os equipamentos da rádio foram apreendidos e Luci Martins foi indiciada. Com o silêncio deixado pela Rádio Cidadã, os moradores do bairro que apresentavam programas resolveram unir-se e criar outra rádio comunitária, a Rádio Coral, que nasce movida pela vontade dessas pessoas de continuar a experiência iniciada com a Rádio Cidadã. 221 Bibliografia ABREU, Claudia de. O início do movimento de rádios livres. 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