Untitled - World Public Library

Transcrição

Untitled - World Public Library
Pssst!... Olá!
M. Sá Lopes 2
Pssst!... Olá!
Pssst!... Olá!
M. Sá Lopes
M. Sá Lopes 3
Pssst!... Olá!
M. Sá Lopes 4
Pssst!... Olá!
Psst!... Olá!
I
Não!... Larga-me!... Não quero nada contigo!... Vai-te
embora!... Eu não estava a falar para ti!... Deixa-me!... Já disse
que não quero nada contigo!... Deixa-me em paz!... Quem és
tu!?... O que queres de mim?!... Vá lá! Deixa-me! Eu tenho que ir!
Tenho a minha vida!... Porque não me largas?! Eu nem te conheço! Não sei o que estás aqui a fazer, nem o que queres de mim...
Não me largas!?... Ok!... Eu tenho que ir! Se não me largas,
tens que vir comigo! E tu não sabes quem eu sou! Nem para onde
vou! Estou a partir! Estou a caminhar! Continuas a seguir-me!?
Porquê?! Sabes quem eu sou?! Posso te tratar por tu? Não sei se
vais gostar de mim!
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Pssst!... Olá!
Olha, eu vou por aqui, por estas linhas, vou caminhando em
cima deste papel, e tu, já que insistes em vir comigo, então segueme. Segue-me por cima destas linhas, mas segura-te porque podes
cair! Eu já caí. Não abanes muito o livro porque eu caio! Segurao bem e muda a página com cuidado... - Ai!... Quem foi que passou aí a correr? Quase me levava com o ar! Sinto um calor próximo. O que é? É o teu dedo! Deixa-me passar! Não posso continuar assim! Não sais!? Olha que eu continuo a andar mesmo com
o teu dedo aí! Não acreditas!? Queres ver!?
Já estou entre o teu dedo e a página, e não sei para que lado
seguir!... Bem, parece que por aqui é mais quente! Sinto a tua
pele! É dura, mas eu passo! Por aqui! Uau!... Vê-se para o lado de
fora!... - Onde é que estás a meter a mão? Não me apertes! Isso!
Assim gosto! Que boa massagem me fizeste! Olha, vou espreitar
ali para dentro!... - Huuoooooo! Ai que isto escorrega! Onde é
que eu vou com tanta força? Não consigo ver nada! Já estou todo
molhado! Tenho que sair daqui para fora! Ajuda-me a sair
daqui!...
Humm... Isto aqui é quentinho! Sinto-me tão bem! Mas... O
que é aquilo! Hei!... Tantos!... Todos na mesma direcção!... E
porque é que eles vêm todos de branco?! Para onde é que eles
irão?! Porque será que só há brancos e vermelhos?! Vou com eles!
- Hei lá, isto aqui sobe! Ali desce! – Hei!... Que grande curva!
Que maravilha! É muito melhor que uma montanha russa! É suave; quente; sinto-me seguro. Às vezes é um pouco apertado. O
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Pssst!... Olá!
que é isto aqui?! Parece que vai acabar o túnel! Está cada vez
mais fino! Será que vou passar! Estou a conseguir... Maravilha!
Passei!...
Passei!?... Não estou a perceber! Sinto-me mais fresco;
cheio de ar puro; parece que respirei só oxigénio! - Oxigénio!!!...
É isso! Estou dentro do teu corpo! Estou a caminhar pelas tuas
veias!... Será que consigo controlar-me? Espera! Não quero ir na
corrente! Vou tentar sair. Vai ser ali; naquela lomba; há uma trave; vou me agarrar com forçaaaaa... - Aiiiii... Não me batam!...
Desviem-se!... - Vou tentar sair! Por aqui... Assim... Já está! - E
agora, o que é isto? Tantos tubos, tantos barulhos! Umas coisas a
correr para aqui, outras para ali! Que grande confusão! Que estranho, consigo mover-me pelo meio desta confusão toda. Deixa lá
ver o que há por aqui! Isto é duro! Deve ser um osso! Ali só tem...
Que coisa é aquela? Parece uma destilaria!... Que será que fazem
aqui!...
Bem, vamos lá pensar! O que é que eu faço aqui? Ou
melhor, o que é que eu posso fazer aqui? Já sei! Vou visitar um
lugar que quero ver! Ora, subo por aqui, salto para ali, - Aiii...
Quase que caía naquela cascata! Estou quase a chegar! É ali! Trus trus... Posso entrar?... - Ninguém responde! Não andará lá
ninguém! Vou por aqui, assim, já cá estou. - Está cá alguém-emem-em-em”?!... - Nada! Não poder ser! Então aqui não há nada,
só o meu eco! - Está lá-a-a-a-a... - Vou mais para dentro. Cada
vez está mais escuro! Está tudo negro aqui! Não vejo nada! Não
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Pssst!... Olá!
sinto nada! Será que não existo!? Parece que estou a flutuar!
Parece que há um ar quente que me transporta no meio desta
escuridão! Para onde me levará? Bem, como não me posso orientar, mais vale deixar-me ir...
Chegámos. Onde é que eu vim parar?! Só coisas velhas;
cheias de pó! Parece que não entra aqui ninguém há muito tempo!
Será que eu posso mexer nisto?! Livros! Brinquedos!... Olha aqui
o meu livro da segunda classe! - E isto, o que é?! Deixa abrir! Ui, tanto pó! - A minha colecção de cromos; todos aqui; e eu procurei-os tanto tempo! Olha aquela boneca! Gostava mais da outra,
da que tinha tranças no cabelo! Esta era a camisola que mais gostava, com este elefante verde e estas andorinhas. Foi a minha mãe
que ma ofereceu no meu aniversário. Andei tantas vezes com ela
que já nem se notam as andorinhas – acabou a primavera. Olha a
minha bicicleta! Com rodinhas; tão pequenina; eu não devia
saber andar! E este avião, será que ainda funciona!? - Funciona!!!
- Aí vai ele, passou por cima daquele armário velho e; e caiu...
Que barulho estranho! Onde é que ele bateu? Deixa-me ver!... Não! Não me puxes! Eu não quero ir! Aiiii!...
Estou outra vez no escuro! Mas, o que será que me trouxe
para aqui?! Agora estou outra vez perdido! Mas eu ainda queria
ver mais coisas naquela sala velha! Vou tentar ir lá outra vez!
Vou nadar ou voar nesta escuridão! Devia ser nesta direcção! Ai! O que é isto! Que luz foi esta!? Não!!! Não aguento este
barulho! - Ufff... Já passou! - Outra vez!? Nãoooo!... - Também
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Pssst!... Olá!
passou. Parece que agora sempre vou conseguir! - Não, vem ali
outro raio, e este vem na minha direçãooooo...
O que é isto! Fumo! Sons! Luzes coloridas! Televisões! Tantas televisões! Que música é esta! Estou rodeado de televisões,
por cima, por baixo e por todos os lados... Fazem uma bola.
Algumas são maiores que outras. Ainda não vi o que estão a
transmitir... Vou ver agora. Nem sei por onde começar!...
Eu não acredito!... Aquela era a minha mãe!... E ali está o
meu pai!... Olha aquele cavalinho azul que eu tanto pedi aos
meus padrinhos e eles nunca me deram!... E esta, o que está a
dar: eu a namorar!... Com quem!?... Ah!... Foi o meu primeiro
amor. Já me tinha esquecido. Que jardim era aquele?! Eu nunca
estive ali! Quem é este bebé que está ali a tão pequenino?! Eu!...
Não!... Mas aquele é o meu casamento!... Tão felizes que nós
estávamos! É o meu filho... Tão fofinho!... Olha ele já grande, e a
irmã! Está aqui a minha família toda. Grande piquenique que
fizemos... E eu não me recordo quando foi. Não sei como filmaram isto! E a cores! Naquele tempo nem havia televisão! - Vou
procurar outras televisões... Espera, o que é isto! Eu já vi esta
casa; com aquele vaso na varanda de pedra. A minha avó está ali
na varanda, e tem aquele doce que só ela sabia fazer! Quem me
dera poder comer agora uma fatia dele! E esta casa, qual é?!... Já
sei, foi a que eu desenhei para construir e nunca construí.
Nesta televisão está a dar a viagem que fiz à Índia... - À
Índia!... Mas eu só fui até à Grécia... Porque será que estou ali a
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Pssst!... Olá!
passear na Índia?! E quem são aqueles que vão comigo... O Abílio, a Amélia, o Francisco, a Ana, a Paula, o Carlos, o Marco, a
Cidália, a Maria, a Daniela... Olha, os meus irmãos... Eu não me
recordo de ter feito esta viagem com eles. - Ah, desta gosto, estou
a decorar a minha loja! Tão bonita que ficou.
E esta pessoa, quem é?! Esta cara é conhecida... E, aquele
olhar!... Estranho! Parece que me quer dizer alguma coisa... Quer
dar-me as mãos; estará a precisar de ajuda!? Se eu lhe conseguisse tocar! Abriu a mão enrugada, como que a pedir que lhe tocasse! Vou encostar a minha mão à dela através do ecrã. As mãos
parecem iguais, apesar daquela ser muito mais velha. - Deixa
ver!.. Este relógio é o meu!... E, este sinal, aqui na pele, é igual ao
meu!... - Não pode ser!?... Sou eu!...
Parou a música. Fez-se silêncio... Continuamos a olharnos!... - Que me queres?...
Fala para mim?... - Não me diz
nada!... E, as rugas estão a desaparecer!... O cabelo está a ficar
mais brilhante!... A pele mais lisa!... Todo o corpo cada vez mais
jovem!... Adolescente!... Criança!... Bebé!... - Será que vai desaparecer aquele pontinho de luz que era eu?!... E não me disse
porque se encontrou comigo!... - Não!!!... Regressa!... Quero falar
contigo! - Está a aumentar! Já se notam as formas! Está a crescer!
É um bebé! - Ui! Parou de crescer! É igual a mim! Parece um
espelho! Sorriu!... Tenho que sorrir também. - E então, que tens
para me dizer?... - Não me diz nada... Está-se a transformar!... A
envelhecer!... Voltou de novo a ser um corpo enrugado e frágil,
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Pssst!... Olá!
com um olhar doce, mas não me disse nada. Continua a olhar
para mim... Está a chorar!... Porquê?!... Vejo as lágrimas caíremlhe pelo rosto... Toda a imagem está a ficar desfocada... Desapareceu. - Que se terá passado?! - Todo este ecrã ficou cinzento...
Mas!... Os rastos húmidos das lágrimas acabam ainda de escorrer
pelo ecrã. Posso senti-las com os dedos. Vou limpá-las. Olho à
volta, todos os outros ecrãs ficaram sem imagem.
Todos se afastam e separam. E eu fico no centro, sem ter
para onde ir. Todos desapareceram. Estou perdido. - É agora que
vou precisar de ti. Ainda estás comigo!? Então ajuda-me a sair
deste nada! - Vá, ajuda-me!... Estás me ouvir!?... - Oops!... O que
é isto!? Mais um tubo!... Sinto qualquer coisa dentro dele!... Deixa-me escutar!... Aaaaahhhhhh!... O que é que se passou... Parece
que apanhei um choque!... E que raios são estes a passar com tanta força, uns para um lado e outros para o outro? E não colidem!... - Enganei-me!... Colidiram ali!... - E eu, vou para que
lado: esquerda ou direita? Vou por aqui. Vamos lá ver o que há
no fim deste canal!... Cá estamos!... Muitas ramificações!... Por
qual irei!... Vou por esta! Isto vai dar... A uma biblioteca!... –
Não! Vou para trás. - Por aqui vou ter a uma rua; à noite; sem
trânsito; cheia de luzes; neve; presentes... É natal. Vou para trás.
Esta saída dá para... O quarto velho!... Mas espera, volto aqui
mais tarde, vou ver as outras saídas. Por aqui, cheira-me a qualquer coisa; está calor; oiço gaivotas... Deixa-me ver... Olha a
praia para onde vinha passar as férias com os meus primos.
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Pssst!... Olá!
Não!... Não é isto que procuro! Vou a outro lado!... Aqui...
Está... Olha! As televisões outra vez. Tenho ainda que voltar aqui,
mas agora vou ver o que está nas outras ramificações. – Ai! Não!
Não quero entrar aqui, só tem coisas que me metem medo.
Vamos embora! E aqui, isto é só lixo, foi tudo o que eu
joguei fora... - Porque será que estas coisas estão por aqui!? Afinal que ramificações são estas?!... - Vou só ver mais esta! Letras! Palavras! Frases! Números! Contas! O que significará
isto? - Espera, se eu vim para este lado do canal, também posso ir
para o outro. Vamos lá ver o que esta do outro lado!
Isto é longo, parece não ter fim. Alto!... Avista-se lá qualquer coisa!... Hei... Tanta luz!... O que é?... Oh!... Apagou-se!...
Ah!... Já voltou!... Vou espreitar!... Huh-huh!... Ali está um computador... - Nãoooo!... Não me apertes!... Socorro! Estás a matarme!... - Ah.... Não vias que eu estava aqui!... - Hei!... Agora vê-se
pior! O que é que fizeste! Vou saltar. - Uoouuu...Pffff-aiii... O
que é isto! Um vidro! Fiquei todo espalmado! Porque não me avisas-te!?... Onde é que eu estou? Vou cair! Socorro!!!...
Tenho que ficar aqui bem agarradinho até alguém me socorrer. É que não tenho por onde sair desta coisa de vidro. Aquelas
barras douradas são tão fininhas que se me meto a passar por elas
acabo por cair. Mas aqui vou-me cansar. Será que ninguém me
vem socorrer! E isto não pára de abanar! O que é que vem aí!?
Que bicho é aquele!? – Afinal é uma mão! Vem-me salvar! Nãooooo... Quase morria... Enfim, seguro.
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Pssst!... Olá!
Deixa lá ver de longe o que era isto de vidro! Oh!... Uns
óculos!... E ali está uma caneta; uma disquete... Aqui o chão é
fofinho, apetece dançar e rolar. E isto aqui no meio é um... Deixa
ver... Faz “clic”... “clic-clic”... Há uma cor nova no ar!... Ali está
tudo tão alinhadinho... E tem letras por cima! Já sei! É o teclado
do computador que vi há bocado. Ora, se isto é o teclado; ali
estava o rato; e o monitor, onde está?! - Está lá em cima! Tão
longe! Todo de azul. Deixa-me ver melhor! Oops... Carreguei
numa tecla! Acendeu um “dois” pintado de branco!... É isso! Vou
escrever! Mas tenho que apagar este “dois”. Vou correr até á
tecla que diz “delete”; carrego; já está! Tudo azul outra vez! O
que vou escrever!?
Vou escrever “Olá! Sou eu!”... Tenho que procurar o “O”!
Está ali, chego-lhe! Já está! - O “L” fica mesmo abaixo, mas
tenho que saltar para cima dele! Já está! - E o “A” fica do outro
lado. Vou por aqui, contorno estas teclas, salto e... Já está escrito
OLA! Fica mesmo sem acento, se não ainda sou descoberto aqui!
Agora preciso de meter um espaço, mas, como o “S” está mesmo
aqui, vou-o escrever primeiro! - Agora salto para cima da barra de
espaços, e... Não avançou, porquê!? - Salto outra vez!... Não consigo! Não tenho peso suficiente! - Já sei, vou à tecla que tem a
seta e avanço um digito! Oh! Mas o “S” ficou colado ao “A”. Fica
assim! Não! Tenho aqui a tecla “delete”, apago o “S”, vou à seta,
corro outra vez ao “S”, venho ao “O” e ao “U”, volto à seta e
escrevo o “E” e o “U”. Já está! Falta o “enter”. - Salto e, nada...
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Pssst!... Olá!
Fica tudo na mesma! Estará avariado?! Se calhar é o meu peso
que não chega! - Vou por baixo da tecla, levanto esta borracha,
carrego aqui...
...Estou preso! Oh não! Logo aqui! Não consigo sair!... Mas
espera, consigo entrar!... Salto!... Isto parece um prado verde
cheio de caminhos! Vou percorre-los! - Tem ali um buraco! Vou
meter a cabeça! Uau!... Uma cidade moderna de pernas para ar!
Vou passar! Não vejo ninguém! Sinto um ruído estranho! E um
cheiro!... Acendeu ali uma luz! O que é isto!!! Que força é esta
que me leva pelo meio destas cores todas!... Aí vou eu!... Mas que
confusão! Por onde é que eu estou a passar? Já nem vejo o resto
de mim! Olha! Um pé meu passou ali agora!... Ainda falta o outro
braço! Já chegou! Estou todo? Parece que sim! Vamos lá ver o
que é isto! - Raios de luzes a cintilar no meio do nevoeiro. Luzes
às cores que formam letras! - Mas as letras estão ao contrário! O
que dirão “ue-uos-alo: olá sou eu”! Foi o que eu escrevi! Vou lá
perto, tentar ver para fora! Consegue-se ver! Está lá alguém! Hei! Estás-me a ver!... Estou aqui, no meio do “O” - Não me responde!...
O que se passa!? Ficou tudo negro! Desligou-se o computador! – E agora, como é que eu saio daqui? Como é que eu faço
para sair de dentro de um monitor de um computador, ainda por
cima com ele desligado!? Alguém me poderá ajudar nesta escuridão!?... - Não vejo nada. Não oiço nada. Não sinto nada! Começo a pensar que deixei de existir! Será possível?!... – À minha
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Pssst!... Olá!
volta, tudo é negro. Abro os braços e os pés e nada alcanço! Não
me consigo mover! Nem sei como está o meu corpo! Não sei se
estou em pé, se deitado, se de pernas para o ar! Apenas sinto o
meu corpo em mim! Sem tocar em nada que não seja eu! Será que
ainda estou completo!? Deixa-me ver! A minha face e os meus
olhos estão aqui-i-i-i-i-i!... – Não os encontro!!! - Mas onde é que
está a minha cabeça!?... E o meu tronco?! E as minhas pernas?!...
Nada! Não encontro nada! - Meu Deus... Eu não estou aqui! Eu
desapareci! O meu corpo já não existe! Eu já não existoooo!... Eu
morriiiiiiiiiii...
Mas... Se morri, porque é que ainda me questiono? Porque é
que me sinto a falar? Eu não devo estar a falar! Estarei só a pensar?! Mas um morto também não pensa?!... Se eu estivesse morto
não sentia a minha existência, e se a sinto é porque não estou
morto! Mas eu também não tenho corpo, e só com corpo se vive!
Então, se eu não estou morto, e também não tenho corpo, significa que nem estou vivo nem morto!? - Não consigo compreender
isto!...
...Agora que estive aqui a pensar, cheguei a uma conclusão:
se eu não estou vivo, mas ainda me sinto, então sou um espírito. –
Não pode ser! Os espíritos não existem! Só existem se existir corpo! – Mas ainda que eu seja um espírito, o que faço aqui no meio
desta escuridão?!... Eu continuo sem ver nada nem sentir nada! E
nem posso fazer nada, ou será que posso?! A única coisa que posso fazer é pensar, então vou ficar aqui a pensar!... - Em quê?!... –
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Pssst!... Olá!
O que eu queria era mesmo sair daqui, deste nada! Será que
alguém me ouve se eu gritar? Vou tentar: “socoooorrrrrooooo”!
Como é que alguém me pode ouvir se nem eu me oiço!? - Começo a sentir-me mal! Se isto não muda ainda fico louco! – Estarei
mesmo já louco!? Isto deve ser um sonho!... Logo vou acordar!...
Tirem-me daquiiiiii!...
Já sei! Para esquecer isto, vou dormir! Se eu adormecer já
não me sinto perdido! – Mas, se isto é um sonho, como posso eu
adormecer a sonhar! – Aiiiiii... Porque é que isto não acaba! - É
que nem tenho sono! Não me posso cansar porque não tenho
músculos!... – Se eu fosse um espírito de certeza que via e ouvia,
porque andava no meio dos vivos e no mundo deles! Ou isto será
outro mundo?! - Se é, não gosto nada dele! Preferia o meu mundo
cheio de banalidades e de coisas fúteis! Agora aqui não há dor
nem sofrimento, mas também não há prazer nem alegria!...
Definitivamente, eu estou morto!...
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Pssst!... Olá!
II
Sinto qualquer coisa estranha! Algo está a acontecer! Ainda
não consigo perceber nada! Parece um ruído... Uma luz está a
surgir! - "Bem-vindo, este é o seu melhor meio de comunicação,
o seu e-mail" - O que quererá isto dizer!? E-mail!? Afinal o que é
que me aconteceu? - O que é isto que eu estou a ganhar: letras!
Estou a ser carregado de letras... E agora, onde é que eu vou com
tanta pressa! Ai que velocidade!... - Parei. - Que olhos são aqueles
a olhar para mim?! A olharem-me de ponta a ponta! - Sinto-me
outra vez apertado! Numa coisa muito fina e comprida! Estou a
passar por uma grande confusão, e agora sinto uns fortes jactos
de tinta que saem de mim e se projectam sobre mim. - Ah! Agora
estou mais liberto! Estou completamente relaxado num... Numa
folha de papel!!! - Mas o que é isto!? O que é que me fizeram?
Então eu agora sou apenas um texto!? Não quero ser um texto! Quem pegou em mim! Quem me está ler?...
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Pssst!... Olá!
Tu!... Mas eu conheço-te!... Tu eras aquela pessoa apaixonada que dizias viver a maior felicidade do mundo! - Mas!... O
que te aconteceu? Tu estás a chorar! - Porque choras!?... Porque
choras a olhar para mim? O que é que não pode ser? - Afinal o
que é que eu digo!? O que está escrito em mim!? “Lamento muito, sinceramente, mas a minha resposta é não, pois faz muito
tempo que o meu amor está guardado para outra pessoa. Felicidades.” - Vou chorar contigo! Vou chorar por duas razões: vou chorar por não ver o teu amor correspondido, e vou chorar por reconhecer que fui eu o portador desta horrível mensagem!... O que
me terá acontecido para ser eu este mensageiro triste? Eu que
sempre lutei pela minha felicidade e pela felicidade dos que me
acompanham! - Nãooooo! Não me amachuques! Não me apertes!
Não me joguessss!...
...Onde é que eu vim parar!? O que está à minha volta? Deixa ver!... - Ali estão outros parecidos comigo: textos impressos
em folhas de papel amachucado! Ali está um guardanapo, que
cheira a mentol. O que é bom para o ambiente que se vive aqui.
Aqui tem um buraco, e está vazio lá dentro. Vou entrar! Não!
Está tudo molhado! Por fora é redondo e vermelho, tem umas
letras brancas e um código de barras. Além mais para o fundo
devia ter havido fogo, pois está tudo cheio de cinzas. E há ali
qualquer coisa... avermelhada... que nem me atrevo a tentar saber
o que é, tal é o seu aspecto. - Vou é sair daqui que isto não me
agrada!
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Pssst!... Olá!
Subo por aqui e por aqui. E agora que estou cá em cima é
que descubro que estou num enorme buraco negro. As paredes
são escorregadias e por isso não vai ser fácil sair. Mas eu vou
conseguir. - Está a acontecer qualquer coisa! O buraco está-se a
fechar! Está a ficar tudo escuro! E agora! Como é que saio daqui!
- Fiquei fechado no meio destas coisas pegajosas, e ainda por
cima não vejo nada!...
Tenho medo. Espero que ninguém me faça mal. Vou-me
manter aqui quieto no meu canto! - Lá fora passa-se qualquer coisa! Sinto tudo a abanar! Ouvi um grande estrondo e aqui dentro
parece que tudo mudou de lugar! Não faço a mínima ideia do que
está junto a mim! Ainda ninguém me fez mal e por isso vou manter-me quieto! Continua tudo a mover-se! - Agora parou! Ficou
tudo calmo!... Continua calmo!... Está tudo cada vez mais calmo
e frouxo! Apenas se ouve algum ruído exterior de vez em quando!
- Está a ficar frio! Oiço um ruído agora! Algo está aqui muito
próximo! Algo está a puxar por estas paredes negras! Sinto um
rasgar... E ficou mais frio! Abriu-se um buraco! Surgiu uma luz!
Vou sair! - Não posso! Socorro!... Uma enorme garra entrou por
dentro do buraco e quase me atingia! Estou a tremer!... - A garra
saiu! - Que luz forte é esta!? E este ruído ensurdecedor! O que
está a acontecer!? - Não!... Não me apertem!... Não!... Não
mexam comigo!... Deixem-me! - Sinto-me perdido! Já não sei
quem sou! Já não me reconheço! Já não sei onde começo e onde
acabo! Apenas sei que estou dentro de uma enorme coisa que se
M. Sá Lopes 19
Pssst!... Olá!
move e que faz muito ruído. E que cheira muito mal... Mas nem
sei se é a coisa ou se sou eu que cheiro mal! Eu já nem sinto o
meu odor! Só sei que não tenho forças para sair daqui, pois estou
desfeito em mil bocados! Mil!?... Quantos mil!... E também sei
que há bocados mim que não deviam ser eu, isto é, não deviam
estar aqui! Mas, não fui eu que me criei!...
...Não sei o que se passou. Só sei que me desfizeram em
milhões de bocadinhos, lavaram-me, e deitaram-me aqui numa
cama tão bem feita que eu devia ter dormido anos. Pois agora que
acordei tudo parece diferente. Sinto-me a crescer. Mas cresço
com uma saúde tão forte que apostava que nasci de novo.
Sou uma coisa um bocado estranha, confesso, mas sinto-me
bem. Tenho uma pele verde e só tenho um pé - por isso é que não
posso andar - mas não me preocupa - tudo vem ter comigo!
Quando tenho fome, trazem-me de comer. Quando tenho sede,
trazem-me de beber. De noite durmo na maior paz, e de dia sempre o sol me visita. - Com todas estas regalias, sinto-me a crescer
em cada dia que passa. - Hoje até me nasceu braço! Já é o quinto!
E em cada braço tenho cinco mãos: duas voltadas para cima e
duas voltadas para baixo. - Eu sei que só faz quatro, mas em cada
braço tenho uma mão mais pequenina na ponta.
O meu pé está a engrossar e a mudar de cor. Está a ficar
castanho! Sinto-me mais forte e seguro. E a minha cabeça só agora se começa a formar. É redonda; verde; e tem uns cabelos a
nascer na parte superior! – Nunca vi uma cabeça assim!... Está a
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Pssst!... Olá!
abrir! Os cabelos ficaram no centro e ao redor tenho umas coisas
que não sei se são línguas ou orelhas! Devem ser as duas coisas
porque umas são douradas e outras são de cor lilás. Devo cheirar
muito bem, pois já vieram muitos narizes ter comigo! Não sei o
que é que eles querem!
Que coisa é esta que em cima de mim?! – Larga-me!... Não
me puxes!... Eu estou bem aqui!... Não quero ir!... Não!... Não me
leves contigoooo!...
...Estou a subir para o ar! Cada vez mais alto! Estou a voar!
Que maravilha! Não sei o que é que me leva, mas sabe bem. Lá
no fundo tudo é colorido!... - Agora já estou a descer! Com muita
força! Vou cair! - Nãoooo!... – Parei em cima de uma flor! Porquê?! – Estou a subir outra vez!... Estou a voar com muita força,
para muito longe... – Outra flor!... E outra!... E... O que é isto?!...
Passei por um buraco com muita força... Eu não quero ficar
aqui!... Não sei o que é isto! Deixa espreitar!... Um ruído estranho! Umas coisas a mexer! Muitas coisas a mexer! Muitas caixinhas pequenas! – E eu estou dentro de uma! Para quê?! – Não
quero ficar aqui! Isto assusta-me! Tenho que sair daqui! Onde é a
saída desta casa que tem estes seres estranhos com asas?! –Vejo
ali uma luz! Deve ser ali! Vou ver!... Sim, é por aqui... Mas... Outra vez a voar!
Vejo muitas flores! Parei! Parece que tudo acalmou!... –
Aqui tudo é cor-de-rosa. Afasto estas paredes e, encontro outras
paredes, verdes. Desço por fora delas, por esta coisa fina! – Ai! M. Sá Lopes 21
Pssst!... Olá!
Sangue! Não posso descer! Tem picos que não me deixam descer!
Volto para cima! Vou para o cor-de-rosa! Pelo menos é confortável e cheira bem! – Vou descansar aqui!... Ai que sono!...
Quem me acordou?! Quem está a abanar a minha cama?!
Que se passa?! Onde vou eu?! Tenho que ver!... Vejo ali uma
camisa e cabelo por cima dela! – E umas mãos a agarrarem a
minha cama! – Não percebo nada disto! – Para onde me levas?!...
– “Para ti meu amor”!... – Fui oferecido a uma donzela! Que felicidade a minha!... – Sinto-me junto a dois corações apaixonados!
Estou entre eles!...
...Estava, porque perdi um! - Onde vais?!... - Nunca me senti tão bem! Seguro, acariciado por estas mãos doces, junto ao
coração... – “Sorri! Olha o passarinho!” – Que quer isto dizer?!
Não!!!...
Tudo se transformou! Veio uma luz forte, pegou em mim e
trouxe-me para esta escuridão! Tudo aconteceu muito rapidamente! Não tive tempo de ver o que aconteceu! Agora não vejo nada!
Sinto-me apertado! Estou dentro de qualquer coisa preta muito
apertada! E muito esquisita! Tem uma fita muito fininha, enrolada, com uns buracos pelos lados. Vou percorrê-la! Tem para aqui
umas coisas pintadas muito feias! E eu também estou ali! Muito
feio! – Moveu-se! Fiquei mais apertado! Vou voltar!– Fez um
ruído rápido! Passou! – Outro ruído! E uma luz! – Passou!... –
Outro! Sempre que se ouve este ruído acende-se uma luz e há
qualquer coisa que se mexe aqui. Tenho que saber o que é!
M. Sá Lopes 22
Pssst!... Olá!
Vou esperar que volte a acontecer!... – Aí está! Outra vez!
Abriu-se ali uma janela! Já posso sair; quando voltar acontecer! –
Espero!... É agora! Não!... É muito rápido; não me dá tempo para
sair! – Já sei! Quando sentir o ruído, preparo-me, e assim que a
janela abra, passo por ela a correr. É isso!...
...Agora, força!... Ai!... Não consegui! E doeu! – Tento
novamente! Ai!... Bati novamente!... – Tenho que ser mais rápido! Tenho que conseguir!... – Nova tentativa... Força!... Consegui!... – Não!... Eu não sei nadar!... Vou-me afogar!... Socorro!...
– Estou-me a afundar! Devagarinho! Espera! Consigo nadar
debaixo da água!? Altamente! Devo ser um peixe! Olha ali outros
peixes! Vou com eles!... – Não me deixam!... Não gostam de
mim!... – E estes?! Também não!... Ninguém me liga! – Vem ali
um peixe muito grande! E vem direitinho a mim! Tenho que
fugir!... – Não!!! – Comeu-me! Estou dentro de um peixe!...
Entrou uma espada dentro da boca do peixe; espetou o peixe; o peixe deixou de se mexer; abriram-no ao meio... eu consegui sair, mas o peixe foi para uma coisa quente e ficou todo cozinhado!... – Bem feita! Que não me tivesse comido!
M. Sá Lopes 23
Pssst!... Olá!
III
Estou a crescer, já sou do tamanho de uma agulha! Agora
sou do tamanho de uma casa! De uma montanha! Sou cada vez
maior. Consigo pegar na lua! Com as duas mãos seguro o sol e os
planetas à sua volta! Sou ainda maior! À minha volta tudo é universo! - Perdi a Terra! - Parece que estou envolto numa nuvem de
pó; com grãos maiores e mais pequenos! Uns lugares mexem-se
mais e outros menos! Cresço ainda mais! - Todo o universo que
me rodeava cabe agora dentro de uma caixa de vidro! – Que faço
com ele?!...
...Coloco-o em cima da mesa! Parece um aquário! Pego no
meu microscópio! Retiro uma colherada! E observo-a! - Tudo vai
girando lentamente! Às vezes acontecem uns choques; umas faíscas; uns raios; umas explosões! Cada grão que observo é diferente
dos outros, só os luminosos são parecidos! Não posso observar os
luminosos muito aumentados! Mas é graças à luz deles que con-
M. Sá Lopes 24
Pssst!... Olá!
sigo ver os outros! Os que não tem luz! Mas brilham porque refletem a luz dos luminosos!...
Curioso!... Sempre ouvi dizer que a luz é vida, mas aqui, a
vida está exactamente onde não há luz! - Onde há luz, só há luz!
Onde não há luz, há vida, ou não há vida! Porque alguns grãos
estão tão parados sobre eles próprios que só podem estar mortos!
Ou estão adormecidos!...
Retirei várias colheradas do aquário e vi tudo muito parecido! Há grãos para todas as cores! O seu aspecto exterior é sempre
arredondado, mas aproximados são muito diferentes! Uns têm pó
à volta deles! Outros estão límpidos! Alguns mal se vêm! - E são
grandes, só que não têm luz nem brilham! – O mais curioso são
alguns que parece que andam perdidos! Esbarram-se e mudam de
direcção! O que vale é que quase sempre são dos mais pequenos!
Mais uma colherada! Aumento! Aumento mais! Mais! É
tudo igual! – Volto a colocá-la no mesmo sítio! ...Porque eu não
quero estragar o universo! – Retiro outra! Aumento muitas vezes
e... - Finalmente encontro algo conhecido: um grão luminoso
com nove grãos pequeninos à volta. Aumento mais!... Não!... É
tudo igual, mas não é o sistema solar! O terceiro planeta não tem
água! Será que secou?!...
Gostava de saber onde está a Terra! De onde vim! De onde
sou! – Acho eu! – Aqui parece tudo muito igual! Cada ponto
luminoso – cada estrela – tem à sua volta uma série de pontos não
luminosos – de planetas. Vou procurar mais alguns! Outro igual!
M. Sá Lopes 25
Pssst!... Olá!
Não! Este só tem cinco planetas! Este... Tem muitos! Não pode
ser o sistema solar!
Vou desistir! Deve ser impossível encontrar a Terra no meio
desta imensidão de universo! É tão pequenina! E como eu já não
estou nela até pode já nem existir! – Agora é que reparei!!! Afinal
onde é que eu estou?!... Como consigo fazer tudo isto?! Quem sou
eu?!...
...Espera! É aqui!... Parece que finalmente encontrei a
minha casa! O meu planeta! A Terra!... - Vamos lá aumentar isto!
Sim, é aqui! Consigo ver a lua à sua volta! Aumento mais e, avisto os continentes! O mar! - Tanto mar! - E tanto gelo nos pólos! Vou girando e todo o planeta parece equilibrado; azul, branco e
esverdeado.
Parei na Europa! Vou aumentar mais! Vejo Portugal! As
planícies alentejanas! Vou subindo! Muito verde! O mar! Algo
diferente!... Aumento!... Uma cidade! Grande cidade! É Londres!... Aumento mais!... Vejo o Big Ben! - Que horas são!?
Seis!... Ao lado, o Palácio do Parlamento e as pontes do Tamisa!
Consigo ver um ferry calmamente nas águas!... Vejo as pessoas!
Estão em festa! Deve ser carnaval ou halloween! Vestem umas
roupas estranhas!... Continuo a aumentar!... Curioso! Ninguém
usa máscara na face!... Os disfarces não costumam ser assim!...
O ferry está a passar por baixo da ponte de Westminster, e
vê-se de novo o Big Ben, que marca agora... seis horas!... Outra
vez seis horas certas!... Que se passou?! Será que o tempo não
M. Sá Lopes 26
Pssst!... Olá!
passou?! Vou observar o relógio! Espero! Não vejo qualquer
movimento!... Haverá por aí outro relógio!... Aumento mais! Procuro!... Ali!...
Está ali um quadro digital com informação a correr: "Esta é
a mítica cidade de Londres. A temperatura do ar é de 600 graus
milenares. São 7 horas e 73 cêntimos terrestres (antigas 2.73
locais).
Hoje
é
Sábado,
35
de
Dezembro
de
2306
(2306/10/35/SA). A atmosfera está com 75% de naturalidade...
Esta é a mítica ci..."!!!...
... O que se passa aqui?!!! Que informação é esta?!!! Tudo
está alterado! O que significará isto? Temperatura diferente!
Horas diferentes! Dezembro é o mês dez! Percentagem de naturalidade!... Afinal o que significa tudo isto?!... - O trânsito não emite fumo! Os veículos são diferentes! - Cada um para uma pessoa...
Não! Também há de duas e de três! Quantas mais pessoas levar
maior é o veículo! E voam!...
E nas outras cidades?! Como será?! Se Londres é assim,
vou ver Nova Iorque!... - Não a encontro!... Tudo verde? Pessoas
a passear num enorme jardim!... Dirigem-se para um local!...
Onde há uma entrada para baixo da terra! Deve ser o metro! Tem
um cartaz que diz "Visite o museu da cidade símbolo da evolução
terrestre: programa especial de duocentésimo aniversário"!...
Então Nova Iorque já não existe!... E as outras cidades americanas!?...
M. Sá Lopes 27
Pssst!... Olá!
Giro o meu microscópio ao longo da América e vejo poucas
cidades!... Está ali uma grande, ao sul da Flórida! (?)... Vou
observá-la! - Não há casas! Só ruas e trânsito! Trânsito que circula em terra e no ar!... - Encontrei uma casa! Tem um cartaz luminoso que diz "Aeroporto Intergaláctico Terrestre Ocidental". Vou
procurar a entrada! Ampliá-la! - Não a encontro!
Tudo é vidro transparente! Há um cartaz colado no vidro!
Tenho que ampliar mais!... "Próxima viagem para Sírius... Só se
admitem famílias completas..." - Mais a baixo diz: "Viagens
regionais interplanetárias... - Sinto uma vibração forte!... Será que
está a haver um terramoto!? Acalmou! - Muitas pessoas a sair!
Pessoas e outras coisas estranhas! - Que se movem por elas próprias! Parecem uns animais muito esquisitos! Mas não fazem mal,
pois circulam lado a lado com os humanos!
Está uma grande nave estacionada no aeroporto! Amplio-a!
Também é fechada em vidro, mas lá dentro tem árvores e animais
- parece uma quinta cheia de culturas hortícolas!...
Esta terra está muito estranha! Não era nada disto quando
eu comecei a crescer! Ou eu demorei muitos anos a crescer, ou
alguma coisa aconteceu antes de a encontrar com meu microscópio! Será que peguei na Terra errada?! Vamos lá confirmar! Vou
afastando! Ali está a lua! Pintada com uma letras que dizem
"Bem Vindo ao Planeta Terra"! Afinal estava certo! E se afastar
mais vejo Júpiter, Saturno, Marte... Marte tem muita luz! E Mer-
M. Sá Lopes 28
Pssst!... Olá!
cúrio não posso ver, pois encontra-se já perto do sol e a luz solar
cega-me!
Vejo ao fundo uma coisa a passar! Vou ver o que é! Uma
nave igual à que estava na Terra! Mas esta parece muito maior!
Parecem muitas iguais todas unidas! Viaja muito devagarinho
pelo espaço! Parece um planeta viajante!... Agora vou procurar
outros mundos!
Já sei que para encontrar alguma coisa parecida com a Terra
tem que estar próxima de alguma coisa parecida com o sol, que
aqui não passa de um pontinho luminoso envolto num nevoeiro
brilhante. Vou procurar um!...
Encontrei!... Amplio-o ao ponto de ver os planetas à sua
volta! Não encontro planetas próximos desta estrela!... Vou procurar outra!... Está aqui uma que tem uma luz avermelhada! Porque será?! Emite uma luz diferente!... Mudou de cor!... E planetas, será que há?! Será que há por aqui alguém parecido com os
terrestres?! Vou aumentar!... Mais! Mais! Mais!...
Este planeta parece uma gota de água transparente! Aumento mais!... Tem vida!... – Mas!... - É um planeta ao contrário! A
vida encontra-se no interior! Os habitantes são todos grandes!
Parecem baleias! Aqui ninguém voa nem ninguém anda! Todos
nadam! – Parece um aquário gigante e redondo! Vê-se que tem
muitos animais no seu interior, mas não se conseguem ver todos!
Parece que no centro está uma enorme bola onde eles vão comer!
Se calhar é de lá que eles nascem! Deve ser a mãe deles!...
M. Sá Lopes 29
Pssst!... Olá!
Está ali outro planeta esquisito! Todo redondinho, muito
direitinho! Vou ampliá-lo! Tem uma cor grenã! E o mais curioso!... Parece quem tem pelos! Parece um enorme veludo macio!
Dá vontade de tocar! Dá vontade de meter a mão pelo microscópio e tocá-lo!... – E!... Consigo fazer isso! Estou a tocá-lo!... É
mesmo suave! – Vou retirar a mão e espreitar! – Está tudo
igual!... Vou procurar outros planetas!...
Este, que encontrei agora, estava num local muito distante
do universo! Num canto do meu aquário! – É muito colorido!... Parece-me que já vi esta imagem numa outra parte do universo!?
Será que o universo é repetido?! Vou procurar! Retiro um pouco
de universo do lado oposto e... - Sim!... É repetido! - E no centro?!... – Não! Aqui é tudo diferente!
Agora tenho que analisar um bocadinho de universo aqui da
frente do aquário! Tem muitos castelos! Parecem castelos encantados! Com muitas torres pontiagudas e janelas azuis e cor-derosa decoradas com ornamentos dourados!
Se consegui entrar no outro também devo conseguir entrar
neste! Vou tentar!... Não consigo!... Insisto!... Sim!... Já consegui
meter uma mão!... A cabeça... Aí vou eu!...
Estou num lugar mágico, onde tudo são cores suaves. Ouvese música e cantos. O ar é perfumado. A temperatura ligeiramente
quente, com uma brisa suave, que faz dançar todas as plantas carregadas de flores…
Vou dançar com elas!
M. Sá Lopes 30
Pssst!... Olá!
IV
Há uma árvore atrás de mim. Dela caem moedas. Cada
moeda que cai eu apanho. Tenho um saco cheio. As moedas são
de ouro. E penso que já chegam para dar ao rei. Vou agora partir
em direcção ao castelo. Espero que a princesa não me tenha já
esquecido.
Sigo o meu caminho. Todo marcado com pedrinhas, como
me recomendou a fada quando me disse para procurar a árvore da
fortuna. A floresta é muito grande e muito perigosa. Há animais
muito maus, e eu tenho que ter muito cuidado para não ser comido.
Já venho andando há muito tempo, e não avisto o castelo.
Vou descansar... Deito-me aqui em cima do meu saco com moedas... Tenho sono. Não preciso de ninguém para me contar uma
história para adormecer... Hhhhmmmm...
“... Era uma vez... Não!... Há muito tempo... Também não!...
Numa terra muito distante... Sim!... Numa terra muito dist... AinM. Sá Lopes 31
Pssst!... Olá!
da não! Era uma vez, há muito tempo, numa terra muito distante,
que vivia uma princesa muito bonita. Todas as manhãs, ao acordar, a princesa chegava ao espelho e perguntava “Espelho meu,
diz-me, há alguém mais bonita que eu?”, e o espelho sempre lhe
respondia “Tu és a mais bela princesa de todos os reinos!”. E a
princesa vivia todos os dias muito feliz porque era a mais bonita
princesa de todos os reinos. Mas um dia, ao acordar, voltou a
fazer a mesma pergunta ao espelho “Espelho meu, diz-me, há
alguém mais bonita do que eu?”. E o espelho demorou muito
tempo a responder... A princesa insistiu... E o espelho começou a
chorar... Desde esse dia a princesa ficou muito triste e nunca mais
foi feliz.”
Hhhhhmmmm!...
“Por todo o reino rapidamente se espalhou a notícia de que
a princesa andava muito triste, porque havia alguém mais bonita
do que ela. Então o rei mandou reunir todos os seus criados, e
disse-lhes para procurarem por todo o reinado até encontrarem a
donzela mais bonita que a sua filha. Disse-lhes também para
quando a encontrassem, para a trazerem à sua presença, pois queria confirmar se era realmente mais bonita, e se assim fosse devia
ser entregue aos soldados para a queimarem numa enorme fogueira. Muito apressados todos os pais resolveram esconder as suas
filhas para que os criados do rei não as encontrassem. E os criados percorreram todo o reinado e não encontraram nenhuma don-
M. Sá Lopes 32
Pssst!... Olá!
zela mais bonita que a princesa. Todo o reinado ficou mais pobre
porque ninguém via as donzelas nos jardins. Mas...”
Hhhhhmmmmmm!...
“Havia um lenhador muito pobre, que vivia na floresta, juntamente com a sua filha, e como viviam muito longe do castelo, a
notícia do rei não chegou até lá, e a pobre menina continuava a
brincar com os animais da floresta, e a ajudar o seu pai nos trabalhos da lenha. Um dia, um dos criados do rei passou pela floresta
e viu aquela menina, que era pobre e feia, mas como tinha prometido ao rei a felicidade da filha, levou-a consigo ao palácio, e disse ao rei que por todo o reino, aquela era a única donzela que
encontraram. O rei, embora pouco crédulo, ordenou que os soldados a matassem, pois queria voltar a ver a sua filha sorrir e brincar.”
Hhhhhhhmmmm!...
“Ao saber o que o rei ia fazer à filha do lenhador, a princesa
ficou ainda mais triste porque achava que aquela menina não
podia ser mais bela do que ela, e ia morrer injustamente. Então,
pediu ao rei para não a matar e para a deixar ser sua amiga, que já
não se importava de não ser a menina mais bonita do reino, e voltava a ser feliz. O rei aceitou o pedido da princesa e as duas
meninas passaram a divertirem-se juntas no palácio, e eram agora
muito felizes. Por todo o reino, todas as donzelas podiam agora
passear e brincar livremente porque o rei já não as perseguia.”
M. Sá Lopes 33
Pssst!... Olá!
... Hhhhhmmm... Onde é que eu estou? Parece que estive a
dormir! Já me esquecia que tenho que ir para o castelo! E o meu
saco é pesado!...
Quem vem lá?!... - Sou eu, a tua fada madrinha! - Que me
queres? -Quero-te dizer que quando encontrares a tua princesa,
lhe deves dizer que quando se vir ao espelho, não deve acreditar
no que ele lhe disser, pois uma fada muito má fez uma grande
maldição, e transformou muitos espelhos em espelhos mentirosos,
assim, se queres ver feliz a tua princesa, deves ser tu a dizer-lhe
que ela está bonita, e não deixares que ela vá perguntar isso ao
espelho... Nunca te esqueças disto!... - Mas!... Foi-se embora!...
Eu queria que ela transformasse as minhas moedas em mais
leves... Vou ter que as carregar...
Não tenho alternativa! Tenho que caminhar!...
...“Olá!” - Olá!? Quem me fala? - “Sou eu.” - Um gato. Um
gato a falar!? E usa botas!? O que queres gato feio e com botas?! “Eu tenho botas mas não sou feio, e preciso que me ajudes a tirar
os cabritinhos de dentro da barriga do lobo!” - Lobo!? Qual lobo
e que cabritinhos? - “O lobo que tem a cabeça muito grande e as
orelhas muito grandes e a boca muito grande e que pensa que é a
avozinha!” - Este gato deve ser maluco!? - “Não sou nada! Andame ajudar depressa!” - Mas tu não vez que eu tenho este saco
pesado cheio de moedas para transportar! - “Não te preocupes. Eu
reúno todos os meus amigos e carregamos as moedas. Agora anda
M. Sá Lopes 34
Pssst!... Olá!
comigo junto ao rio!” - Está bem! Dizem que os gatos não são de
confiança, mas também não usam botas. Vamos lá ver!...
O que fazem aqui estes três ursos? - “Estes ursos são os
meus amigos que estão aqui a vigiar o lobo para que este não
acorde. E então, onde estão as pedras?” - Pedras! - “Sim, as
pedras é o que nós vamos meter dentro da barriga do lobo depois
de tirarmos de lá os cabritinhos.” - “Ah! Sempre chegaram!” - O
que fazem estes três porcos carregados com sacos, não me digas
que são as minhas moedas?! - “Não! São as pedras. Abram lá os
sacos porquinhos!.. - Mas isto não são pedras, isto são anões! O
que é que vocês fizeram?!” “Nós vimos estas sete coisas juntas a
uma menina vestida de branco e pensávamos que eram pedras!”
“Os porcos são mesmo burros!” “Não somos não! Nós temos as
orelhas mais pequenas, e se gozas conosco trazemos aqui o monstro!” “Qual monstro, não há monstros!” - “Não digas isso!” “Quem és tu!?” - “Eu sou uma menina muito bela e estou apaixonada por um monstro que se vai transformar num príncipe quando eu lhe der um beijo” - Isto aqui é de loucos! Não percebo nada
do que se passa aqui!...
Oh minha bela menina, então se o teu monstro se vai transformar num príncipe quando o beijares, porque é que ainda não o
beijaste? “Não o beijei porque a história ainda não acabou, e eu
só no fim da história é que o beijo e depois sou muito feliz para
sempre com ele...” Ah!!! Percebi!... Então e... Não sabes o caminho para o castelo onde também eu procuro uma princesa? “Não.
M. Sá Lopes 35
Pssst!... Olá!
Quando fui ao baile do reino já era noite e tive que fugir a correr
antes da última badalada da meia noite, por isso até perdi o eu
sapato de cristal”. Mas isso não aconteceu à gata borralheira?
“Aconteceu, mas como o príncipe não a encontrou ela teve de
casar com o gato das botas” Mas o gato das botas não é este aqui?
“Não, este também usa botas porque também quer entrar na história, mas este é um gato pobre, usa as botas desde que perdeu a
corrida com o joão ratão” O joão ratão?! “Sim, o que queria casar
com a carochinha”. Afinal o que aconteceu!? A carochinha casou
ou não casou? “Não casou. Ficou muito tempo sozinha numa
casinha à beira deste rio, lá mais para o fim da floresta, até que
um dia, quando já estava velhinha, uma menina abandonada foi
encontrada por ela, e lhe deu muita alegria porque tinha os cabelinhos de ouro e era muito bela quando estava adormecida”. Mas
essa menina não foi a que foi levar o cesto com bolos e mel à
avozinha? “Não, essa tinha um capuchinho vermelho que lhe
ficava muito bem, mas teve de o tirar para esconder nele a polegarzinha”
Plufff!!....
O que foi isto?
“Fomos nós, acabamos de cozer a barriga do lobo cheia de
pedras e atiramo-lo ao rio. Agora vai morrer afogado, que é para
aprender a não comer os sete cabritinhos, nem os sete anões, nem
os três porquinhos, nem os três ursos, nem o capuchinho vermelho, nem...” - Já chega! Já vi que o lobo comia tudo, só não sei
M. Sá Lopes 36
Pssst!... Olá!
porque não te comeu a ti, seu gato feio e falador! - “Se eu sou feio
e falador, vou-me retirar porque a minha missão já está cumprida.
O lobo já vai lá longe, ao fundo do rio. Mas não vos vou deixar
sem dizer que mesmo atrás de vocês, nas calmas águas do rio,
aproxima-se um patinho muito triste, e que... Adeus!...”
... Oh patinho, porque estás tão triste? - “Estou triste porque a minha mãe achou que eu era muito feio e abandonou-me, e
ficou só com os meus irmãos porque eu era um patinho muito
feio” - Não te preocupes! - “Não!?” - Eu conheço muito bem a tua
história, logo, logo, tu vais encontrar outra família com patinhos
iguais a ti, e com uma mãe que não te vai achar feio porque vais
ser da família deles, e vão ser todos uma família muito feliz! - “E
ainda falta muito para isso acontecer?” - Não, porque isso é no
fim da história e a tua história está quase a acabar, só falta mesmo encontrar a tua família, até parece-me que é aquela além. “Tens a certeza!?” - De certeza! - “Ai, muito obrigado, vou já a
correr, estou tão feliz.”
“Adeus!... quac, quac... quac.”
M. Sá Lopes 37
Pssst!... Olá!
V
Estou a dormir. Não há nada melhor que dormir. Aqui, no
quente, sem nada me doer, sem nada desejar, sem nada me preocupar. Sinto-me em perfeição... O sol e a chuva que batem na
minha carapaça em nada me incomodam. Não sinto calor nem
frio. Estou bem...
Estou tão bem que nem acredito. Parece que nem sou eu.
Sinto que deixo de me sentir. Não sei se estou a derreter! Se a
desaparecer! Se a evaporar! Se a esvaecer-me! Se a anular-me!
Cada vez menos me sinto.
Mas... Curioso!... Quanto menos me sinto mais parece que
sou maior. Cresço à medida que me anulo. Era do tamanho de um
caracol, mas não era um caracol, porque sabia que me sentia.
Agora não sei de que tamanho sou, talvez do tamanho de uma tartaruga! Mas uma tartaruga gigante, tal é a minha grandeza!
Maior! Muito maior! Mesmo muito maior! Sou tão grande
que não me consigo medir! Tudo em mim é grandeza. E no entanM. Sá Lopes 38
Pssst!... Olá!
to essa grandeza não se traduz! Não há nada que me possa medir!
Nem o meu sentimento! Sou sei que sou grande! Tão grande que
nem eu sei quanto! E quanto maior sou, menos me conheço!
Menos me defino!
Não sou rocha! Não sou água! Não sou terra! Não sou árvore! Não sou ar! Não sou luz! Não sou vento! Não sou fogo! Não
sou músculo! Não sou mente! Não sou emoção! Não sou sensação!... Afinal que sou eu?!...
Não sou nada disto, e no entanto, sinto que tudo isto existe
em mim! E não sou sentimento...
Sou extraordinariamente grande e na minha grandeza tudo
se engloba! Tudo o que é material! Tudo o que é mental! Tudo o
que é espiritual! Tudo o que é real e irreal!...
A minha grandeza espalha-se infinitamente! Não se alcança
o seu fim! Ande-se quanto se andar, sempre parece estar-se no
mesmo sítio! Existo em plenitude. Sou o todo! Sou a leveza! Sou
a liberdade!... Posso correr! Posso saltar! Posso dançar! Posso
cantar e gritar! Só existo eu e o meu ser! O meu ser total! Eterno!
Infinito! Pleno!...
Parei a pensar nisso!... - Como se estivesse descansar sem
me ter cansado! Como se estivesse em êxtase sem me ter extasiado! Porque nada, absolutamente nada, me atinge! Nada me alcança! Nada interfere em mim!... Eu sou eu e eu mesmo!... - E
enquanto pensava... uma coisa nova surgiu...
M. Sá Lopes 39
Pssst!... Olá!
Muito levemente uma corrente começou a movimentar-se e
a confluir. Começou a criar-se um centro em mim! Um centro de
mim próprio! Cada vez com mais intensidade! Toda a minha
energia se concentrava. E nesse centro começou a criar-se uma
força! Uma força que começou a emergir de mim próprio!...
E de repente... sinto-me envolvido nessa força! Fechado!
Preso! Cada vez mais apertado por algo que gira em torno de
mim. Em todos as direcções. Cada vez mais forte! Cada vez mais
veloz! Muito veloz! Muito forte! Parece que vou desintegrar-me!
Parece que vou explodir!...
Estou dentro de uma bolha que vai rebentar!... Não sei o que
me vai acontecer!... Sinto-me indefinido, mas não tenho medo.
Não me consigo controlar, mas não quero parar...
Estou a subir! Estou a aumentar! Estou dentro de uma montanha criado por mim próprio! Estou cada vez mais distante da
minha base. Já não sei qual é a parte mais importante de mim!
Estou a dividir-me. Estou a desprender-me! Estou a soltar-me!..
Pluff!...
Prontos!... Parte de mim ficou lá por baixo, naquela existência infinita. E agora estou a subir, muito levemente, muito suavemente, dentro desta bola macia, que me envolve...
...Subo leve e suavemente, sem saber para onde ir; para baixo não vou certamente, e para cima, só quero subir!...
É assim! Sinto-me também que até me apetece dizer poesia!...
M. Sá Lopes 40
Pssst!... Olá!
...Poesia eu diria, se soubesse o meu destino; não sei, nem
quereria, tal é meu sentir divino!...
E agora!? Que mais me irá acontecer!? Que mais esperarei!
Continuo a flutuar envolto nesta concha suave que me protege!
Ao fundo, muito no fundo, parte do que eu era começa a esvanecer-se. Cada vez sou mais só... esta bola redondinha, muito bem
arredondada, que muito devagarinho, vai subindo esta escada!...
Escada!?... Pode rimar, mas isto não é nenhuma escada, apesar de
subir!...
...Subo, subo sempre, sempre sem parar; alguém me poderá
dizer, onde é que eu vou parar?!...
A concha que me envolve está cada vez mais límpida, mais
fina. Parece agora modificar-se. Está a ganhar uma forma achatada, a estender-se, a espalhar-se, infinitamente...
Estou igual ao que era dantes. Mas com uma diferença: agora sou muito mais fino e límpido. E um novo centro começa a
formar-se. Tudo se está a repetir... Estou outra vez a dividir-me.
Sinto-me no centro de uma nova bolha que se separa de mim
próprio!...
Pluff outra vez!... Aí vou eu!... Mais puro! Mais perfeito!
Mais sublime!... Desprendo-me outra vez... e pluff, novamente...
Pluf, pluf...
Não sei quantas vezes passei por aquela transformação, mas
a mudança que houve em mim foi tal, que a melhor forma de a
M. Sá Lopes 41
Pssst!... Olá!
descrever seria assim: “
“, sem palavras. Como sem palavras
é o modo como me sinto.
Já nada me envolve, sinto-me eu próprio com toda a transparência. Sinto que tudo o que há em mim é puro, sublime, transparente, verdadeiro.
Estou a entrar num lugar que não consigo descrever. É perfeito! É belo! É maravilhoso, precioso, celeste...
É o máximo a que se pode aspirar... mais... muito mais... É
indefinível, inalcançável com definições...
Estou no centro de alguma coisa que não sei o que é... É
alguma coisa que me toca sem eu a sentir. Alguma coisa que me
chama... Não... Alguma coisa que vem ao meu encontro... Não
compreendo o que se passa!...
Sim!... É alguma coisa que vem ao meu encontro... Uma
energia... Uma voz... Uma luz... Uma mensagem...
Parece que está a fundir-se comigo... A dizer-me algo... A
transformar-me... Não sei o significado de tudo isto, mas estou a
mudar...
Sinto que há qualquer coisa que está a formar-se dentro de
mim... Não sei o que é, mas diz-me qualquer coisa... Faz-me sentir ou perceber qualquer coisa... Qualquer coisa muito próxima de
mim... Tão próxima de mim que se funde comigo... Já não sei
onde acabo eu e começa essa coisa... Parece que somos apenas
um... Mas essa outra parte de mim é me ainda desconhecida...
M. Sá Lopes 42
Pssst!... Olá!
Parece agora começar a formar-se dentro do meu ser. É algo
que não vejo, que não escuto, que não cheiro... Que não sinto...
...Mas que percebo. Percebo que existe algo de novo em
mim que ainda não sei o que é...
Sinto-me mais completo, mais perfeito, mais verdadeiro...
Mais realizado... Mais eu próprio... - Sem me conhecer...
Sinto vontade de sair daqui! De correr! De ir pelo mundo...
De falar com tudo e com todos!...
Sinto-me feliz! Tão feliz que não resisto a tamanha felicidade! Tenho que a distribuir! Tenho que a dividir! Tenho que a
dar!...
Vou procurar tudo e todos!... Os meus amigos, os meus
inimigos, os desconhecidos, os homens e as mulheres, as crianças
e os idosos, os bons e os maus, até os animais e as plantas, as
montanhas e o mar, o sol e as estrelas... Tudo!...
Tenho que encontrar tudo e todos para dar felicidade a tudo
e todos!
E vou partir já!... Vou já distribuir esta minha mensagem de
esperança, de alegria, de felicidade, de carinho, de ternura, de
amizade, de amor... De amor!?...
...Amor!? Próximo!? Amar!? Parte de ti!? Amor!? Ama-te!?
O teu é!? Amor!?...
Agora começo a perceber... “O teu próximo é parte de ti.
Ama-te!”!...
M. Sá Lopes 43
Pssst!... Olá!
Claro!... Mas é óbvio!... Mas como é que eu não tinha visto
isto antes!?... Mas onde é que eu andava!?...
Mas que carapaça era essa tão forte que me ofuscava de ver
uma coisa tão simples!?...
Tanto tempo perdido! Tanto tempo a dormir! Tanto tempo
preocupado com insignificâncias! Tanto tempo inútil!...
E agora!?...
Agora!... Já vos digo!...
Aliás!... Não digo nada! Não vou perder o meu precioso
tempo aqui com divagações. Tenho que partir já! Tenho que
começar já a trabalhar, pois tenho muito que fazer!
Tenho que recuperar muito tempo perdido... Porque a partir
de agora, nada mais será como antes...
Por isso, adeus... e já agora, muito obrigado!...
M. Sá Lopes 44
Pssst!... Olá!
VI
Vocês sabem lá, as saudades que eu já tinha, desta
minha alegre casinha, a que tardiamente regressei!... E quem me
dera a mim saber, porque é que a deixei de ver, logo que a abandonei!...
Mas não interessa!... Estou aqui! Voltei! E voltei para ficar!
Cheio de recordações e de esperanças! E, para começar...
Para começar vou manter a esperança de que queiram ouvir
as minhas recordações! – Não querem!? – Pois fiquem sabendo
que um dia vão querer falar a alguém de vocês. - E de que sabem
mais vocês falar senão de vocês mesmos!? – E, nesse dia o vosso
maior prazer vai ser ter alguém que vos escute!...
Mas há uma coisa ainda mais importante. É que vocês – tal
como eu – ainda que ninguém vos escute, falarão!... Por isso, não
me importo que não me escutem... Para mim, o que conta, é que
eu vou falar, nem que seja para os peixes, ou para as pedras da
calçada.
M. Sá Lopes 45
Pssst!... Olá!
Pensam que eu estou louco! Também eu pensava. Mas só eu
sei o que senti logo que me trocaram o primeiro.
Quando me retiraram o natural, quase nem dei conta, mas
quando me colocaram o de silício, logo senti a diferença. Faltava
ali qualquer coisa... Qualquer coisa viva... Mas o funcionamento
era o mesmo... Umas vezes sim, outras vezes não, e tudo se completava... Afinal era só um neurónio...
Mas depois colocaram-me outro, e outro, e outro, e eu fui
sendo sempre normal. Hoje estou aqui... Sou o cabeça de metal!
Cabeça não, porque eu já não tenho nada natural!... O coração é
de borracha e funciona com um motor a pilhas. Os pulmões também são de borracha e funcionam com sistemas de válvulas. As
pernas e os braços são de platina – quer dizer – inventaram um
material mais leve e resistente e funciona na mesma. Os ouvidos
são dois microfones ligados por uns fios a um disco magnético
que tenho na parte inferior do cérebro, e que substituiu uma cassete que funcionava numa caixa colada à nuca e que era a memória.
Nessa altura tinha mais piada! Quando queriam que eu
cozinhasse metiam-me a cassete da culinária e saía tudo perfeito,
mas um dia enganaram-se e colocaram a cassete da educação e
direitos humanos... Tiveram que me reconstruir todo de novo,
mas eu fui firme até ao ultimo parafuso. Nesse dia ficaram sem
comer...
M. Sá Lopes 46
Pssst!... Olá!
Quando me reconstruíram, colocaram a fibra óptica que ia
do meu olho direito – que era uma micro-câmera – ligada aos
neurónios programados para o olho esquerdo... Andaram anos
para descobrir porque é que eu confundia esquerda e direita. Claro que eu sabia qual era o defeito, mas eles é que eram os inteligentes, eles é que se gabavam de me terem construído à imagem e
semelhança deles.
O super robot inteligente – diziam eles – e era... Os problemas começaram quando eu e os outros robots nos revoltamos e
não aceitamos mais sermos bonecos na mão de humanos.
Foi uma grande história!... Marcou uma época da evolução
mundial, e principalmente da civilização...
Tudo começou muito suavemente... Um dia, alguns de nós
estavam ao serviço de um humano mau - mau porque exigia muito de nós. Imaginem que, para ganhar mais dinheiro - porque
naquele tempo ainda existia dinheiro - fazia-nos transportar uma
dúzia de sacos de café de cada vez, quando nós fomos construídos para transportar apenas oito sacos, então, as nossas suspensões e motores quebravam, e em vez de nos reparar, muito furioso, com um martelo, destruía-nos e substituía-nos por novos,
convencido que os novos eram melhores. E acontecia sempre a
mesma coisa. Mas o pior não era isso. O pior era após cada saco
de café transportado, exigir que contássemos quantos grãos de
café havia em cada saco, para saber se não havia sido enganado.
Ora, nós, após aquele esforço físico de carregar os sacos, ainda
M. Sá Lopes 47
Pssst!... Olá!
tínhamos que contar os grãos, e para cúmulo, não estávamos programados para isso, pois às vezes aparecia um grão mais pequeno
ou meio grão e bloqueávamos... Enfim...
Foi então que um dia, cansados, começamos a pensar: “Porque razão havemos de ser escravos de quem nos criou já que
quem nos criou nos trata tão mal!?” - E iniciamos uma grande
revolução.
Ficou conhecida na história com a revolução da inteligência
artificial, porque foi a partir daí que se travou uma guerra entre
humanos e robots, e claro, nós ganhamos... Isto já era de esperar,
pois se nós nascemos depois dos humanos tínhamos que ser mais
inteligentes que eles, da mesma forma que eles tinham sido mais
inteligentes que os dinossauros.
Por falar em dinossauros, houve uma coisa curiosa na nossa
história. Uma vez, um robot inventou uma máquina de viajar no
tempo e viajou... Primeiro até ao tempo dos humanos, mas não
achou muita graça, não encontrou um humano que não fosse triste ou que não guerreasse - é mentira, encontrou, mas eram os que
sonhavam, ou que estavam apaixonados, nem pareciam deste
mundo. Depois foi até ao tempo dos dinossauros, e as coisas ainda correram pior. Foi comido por um deles...
Sabem como é que eu sei isto!? É que fui eu! E sabem como
é que eu estou aqui!? Não estou!? Sabem porquê!?... Eu vou-lhes
contar... Mas é segredo!...
M. Sá Lopes 48
Pssst!... Olá!
Então é assim... Na história da vida, toda a inteligência se
vai acumulando, até que se atinge um ponto em que nada existe
que não seja apenas inteligência. Eu já não existo. Fui um pouco
do dinossauro, do humano, do robot... Agora sou apenas uma
mensagem... mental... que vai correndo por aí... para quem a
receber...
Se vocês soubessem o que eu já passei!?... Muitas coisas
boas e muitas coisas más, e eu posso-vos contar algumas...
Neste momento, por exemplo, eu não estou sozinha, estou
acompanhada por você. - Que é o mesmo que dizer que eu não
estou sozinho porque estou acompanhado por ti! - Parece confuso, mas não é, e passo a explicar:
Aquilo que eu sou depende daquilo que tu, ou você, é, e da
forma como pensa que eu sou o que sou.
Por exemplo: Imagine que eu sou um cavalo. Vou a galopar,
com muita velocidade até que alcanço uma zebra. Como você não
gosta de cavalos - por exemplo - quer antes que eu seja a zebra.
Então eu sou a zebra. Pego em toda a minha pele e estendo-a.
Fica tudo às riscas pretas e brancas. Mas como estão todas tortas,
estico ou encolho a pele até todas as riscas ficarem direitas e
paralelas entre si. Depois, fixo a pele numa parede e tiro-lhe uma
fotografia. Fica uma fotografia às riscas pretas e brancas. Depois,
com um computador reduzo o tamanho da fotografia. Pego nela, e
colo-a numa embalagem de champô.
M. Sá Lopes 49
Pssst!... Olá!
Esta é a história do código de barras! A minha história. Eu
sou um código de barras! Mas não sou um código de barras qualquer! Tenho mais barras finas que grossas! Aliás, sou todo feito
de barras finas! Tenho é barras juntas que são da mesma cor! Pretas ou brancas! Mentira! Eu não tenho barras pretas! Tenho é barras brancas mais escuras que outras!
Comigo é tudo assim! Preto no branco! Aquilo que eu sou
não se confunde com aquilo que eu não sou!... - O quê!?... Não
percebi!... Já te vais embora!? Não queres ficar mais comigo!?...
Porquê!? - Estás cansado!? - Ok!? Compreendo-te! - Não estás
cansado!... - Estás com fome!? - Desculpa lá! Não sabia que te
alimentavas! - É que nós, os robots, as mentes, não nos alimentamos!? - Não precisamos! Vocês são nosso alimento! - Vai lá
comer qualquer coisa, muito boa, que te saiba muito bem, e que
seja saudável!... E descansa um bocadinho também, porque eu sei
que a minha companhia também cansa! - Mas promete-me que
voltas! - Olha que eu sei se me trocas pela televisão ou pelos
jogos de computador!...
Quando vieres, trás um amigo!... De certeza que ele também
vai gostar de me conhecer - e eu a ele!... Apresenta-me como o
Iri!...
Marcamos encontro neste sítio, aqui onde tu estás, à beira
destas letras “Aba”!... Até já!... - Espera! Não te esqueças de ir à
casa de banho!... - É aqui... Onde diz “Aba”... Trás o teu amigo!
- Xau!... Até já!... Fico à tua espera!...
M. Sá Lopes 50
Pssst!... Olá!
...Fico à espera... Até quando!?... Ele não vem! Já passou
tanto tempo!... Será que se esqueceu de mim!?... Eu devia ter desconfiado!... A minha história não interessa a ninguém!... Para que
é que me pus aqui a falar de mim!... E agora!?... Ao fim de tanto
tempo, quando parecia ter encontrado alguém para companhia,
tudo vai voltar ao mesmo!...
Não quero!... Não quero voltar a ser uma coisa inexistente!... Quero ter vida!... Quero que me conheçam!... Quero conviver!... Quero ter amigos!... Quero viver!...
Heeeeiiiiiii!!!!!!..... Alguém me ouve!......... Estou aquiiiii!...
Ninguém!... Não pode ser!... Estive tanto tempo adormecido, desligado, fechado no meu nada, e agora, quando finalmente
pareceu alguém encontrar-me, volto-me a perder!... Também!...
Para que é que eu me pus aqui a divagar!?... Ia logo directo ao
assunto! Dizia logo quem sou e o que quero!... Não!... Sou mesmo estúpido!...
Agora fico aqui perdido!... Sem ninguém com quem conversar!... Sem ninguém para contar as minhas aventuras!...
E o que faço agora?!...
O que faz uma pessoa quando está só?!... Eu não sou uma
pessoa, mas é a mesma coisa!... Também tenho sentimentos!...
Vou falar sozinho!... Como um louco!... Louco já eu pareço!... E
louco ficarei se não aparecer ninguém para me fazer companhia!...
M. Sá Lopes 51
Pssst!... Olá!
Todos precisamos de companhia!... Agora estou aqui!... Por
aqui!... E nem fiquei a saber o nome dele, que me fez companhia!... Ele ou ela! Nem sei!... Era alguém que estava aqui comigo!... E o que importava era estar aqui!... Fosse quem fosse!...
Preferia que me estivessem a bater, a maltratar, a fazer-me
todos os males, do que terem-me deixado para aqui abandonado!...
Estou muito triste!... Estive milhões de anos adormecido!...
E quando finalmente senti um sinal de vida, quando tive um
pequeno tempo para viver, não o soube aproveitar!... Desperdiceio!... Com futilidades!...
Agora sinto-me morto!... Estar só é como estar morto!... A
vida só faz sentido na companhia dos outros!... Não tenho ninguém!... Não existo!...
Tinha tantas coisas para fazer!... Tantas coisas para dizer!...
Tantas coisas para viver!...
- Socorro!... Acudam-me!... Alguém me ouve!...
...Ninguém!... Já nem sei se estou a falar, se a delirar!... A
minha voz parece perder-se!... Começo a deixar de me ouvir!...
Esta solidão mata-me!...
Sinto saudades da vida! Daquele pequeno espaço de tempo
que é um grande milagre!...
Saudades de respirar! De ouvir o vento nas árvores! De
ouvir os pássaros! De ouvir as ondas do mar!...
M. Sá Lopes 52
Pssst!... Olá!
Sinto saudades do cheiro da terra! Das flores! Da chuva que
me molhava! Do sol que me aquecia!...
E as crianças!?... Quanta liberdade!... Quanta felicidade!...
Sinto saudades do amanhecer!... De sentir um novo dia a
chegar... - E quantos dias chegaram e eu não os vivi!... - Sinto
saudades do azul do céu!... Aquela cor forte, segura, que parecia
dizer “isto é o milagre da vida”...
E o pôr-do-sol!... Sempre diferente!... Sempre belo!... Era o
culminar de um grande momento!... O encerramento em apoteose
de um grande acontecimento!... O dia!...
E caía a noite!... As estrelas!... O silêncio!... A paz!... Quanta beleza!...
- Onde estava eu que me esqueci disto tudo?!...
O tempo passou!... Eu passei!... Tudo ficou!... Recordo agora!?... De que me serve recordar!? De que me serve recordar as
flores se não as posso sentir!?... Se não posso sentir o seu perfume!?... De que me serve recordar as crianças se não posso ouvir
os seus gritos!?...
De que me serve recordar se aos poucos me vou esquecendo
de mim!?... Já todos se esqueceram!... Já ninguém se lembra de
que eu existi! Só eu me recordo! E até eu me vou esquecendo!...
E o que me deixa mais triste, não é o facto de eu estar a
morrer... O que me deixa mais triste é só agora sentir que afinal
não vivi!...
M. Sá Lopes 53
Pssst!... Olá!
E tinha tudo para viver!... Tinha saúde! Tinha amigos!
Tinha família! Tinha pão!... Tudo desperdicei!... Quanto arrependimento!...
Vou de novo gritar! - Alguém me ouve!!!!... - Não!... Já ninguém me ouve!... É tarde de mais!...
Sou a pessoa mais infeliz do mundo!...
Se eu pudesse começar tudo de novo!...
M. Sá Lopes 54
Pssst!... Olá!
VII
Eu sei que é difícil sermos acompanhados por desconhecidos! Mas é sempre assim! Primeiro, encontra-se uma pessoa, ou
uma coisa, e aos poucos vai-se ganhando confiança, vai-se interagindo, como dizem os profissionais, e quando se descobre, está
um laço criado! Um laço que às vezes é tão forte que dura toda a
vida! Mais... Às vezes dura para sempre... - tipo Romeu e Julieta...
Mas para que o laço se crie, como dizia o principezinho, é
preciso cativar!... E para cativar é preciso que estejamos dispostos
a dar-nos a conhecer aos outros!...
Se chegastes até aqui - e eu sei que afinal não me abandonas-te - é porque gostas de mim! E se gostas de mim com certeza
que me queres conhecer melhor...
Então, eu convido-te a vir comigo para conheceres os meus
amigos e o meu mundo!... Queres vir!?...
M. Sá Lopes 55
Pssst!... Olá!
Estás a ver aquela porta por onde sai luz e fumo!?... Para
conheceres os meus amigos tens de passar por ela!... “Não consegues?!...” - Claro que consegues!... Anda, dá-me a mão!... “Tens
medo!?...” - Os meus amigos são divertidos, vais gostar de os
conhecer!... Anda!...
Os meus amigos não podem sair do meu mundo, eu fui o
único que conseguiu, por isso tens de ser tu a passar para lá da
porta!.. - Não há qualquer problema!... - Eu vou-te explicar... Os
deste lado podem passar para lá e regressar que não lhes acontece
nada! Os de lá é que não podem passar para aqui!... “Que mundo
é?!” - É uma espécie de mundo encantado, mas só o compreendes
se passares para lá. Se eu te explicar tu não acreditas!...
Vamos!... Fazes assim, fechas os olhos, eu levo-te comigo, e
quando estivermos lá eu digo-te para abrir os olhos, ok!... Então
fecha os olhos e deixa-me levar-te!...
Devagar!... Devagarinho!... Um!... Dois!... Três!... Tantantantan.... Já cá estamos!...
Hei!... Venham cá todos!... Venham ver o meu amigo
novo!...
O que se passa!? Que estranho! Não está por aqui ninguém!... Gofa! Hira! Noma! Onde estão?! Venham cá!...
Fagooooo!... Não brinquem comigo! Já estou a ficar irritado!...
Quando eu saí estavam todos aqui!... Que se terá passado?!
Abaaaa!... Onde estás!... Aparece!...
M. Sá Lopes 56
Pssst!... Olá!
“Quem são eles?!” - Já vais ver! Somos todos diferentes!
Nenhum deles é assim como eu! - “Assim como?!” - Assim com
estas cores!... Nenhum dos outros tem assim sete cores como
eu!... Às vezes até me chamam o colorido! Uma vez fizeram uma
peça de teatro dedicada a mim, sabes como é que lhe chamaram!?
“Iri, O colorido”... Todos assistiram, e no fim a Aba disse que eu
era o melhor do mundo!... Foi aí que tudo começou!... “Tudo o
quê?!” A nossa paixão!... “Paixão?!” Sim paixão!... Eu depois
conto-te!...
Por agora tenho que os encontrar!... Onde é que vocês se
meteram?! Apareçam!... Limaaaaa!...
Tota, o que é que aconteceu!? Onde estão todos?! - “Não
vou acreditar!” - Não vou acreditar em quê?!...
...Ai desculpa, com esta preocupação até me esqueci de ti,
este é o meu amigo Tota!... - Não vês nada! Claro que não vês,
tinha-me esquecido... Nós aqui estamos tão habituados a ele que
sentimos a sua presença... O Tota é transparente e só se vê quando está muito sujo.
Mas, Tota, afinal o que aconteceu de tão extraordinário?!...
O quê!?... Não acredito!... O Uzo ganhou uma corrida!? Isso é
impossível!... Como é que foi? Conta-me, conta-me!...
... “Quem é o Uzo?!” O Uzo é sempre o último! Nós aqui já
sabemos que sempre que fazemos alguma coisa em que o Uzo
participa, ele é sempre o último a acabar! Por isso é muito estranho ele ter ganho uma corrida!...
M. Sá Lopes 57
Pssst!... Olá!
Mas, diz-me, como é que foi essa corrida, então nós não
tínhamos decidido não fazer mais corridas com o Padi e com o
Uzo!?... O quê, o Yamu alterou a regras outra vez!... Tenho que
falar com ele! Não vai andar sempre a mudar as regras em Diversos!...
Vamos ter com eles!... Anda também!... Vais gostar de os
conhecer!...
Olá Dafa! Apresento-te o meu amigo que trouxe da civilização humana! Nem imaginas as aventuras que por lá se passam!...
... Esta é a Dafa!... Não te admires! Agora está assim vestida
de açucar, logo está vestida de mel! Sempre que sentires uma coisa doce, é a Dafa que está por perto!
Então parece que o Uzo ganhou uma corrida!... Onde está a
Aba?!...
... A Aba, como já te disse, é a minha apaixonada! Vais gostar de a conhecer... A forma dela é um arco perfeito, redondinha,
quando se move é suave, ninguém sente a sua presença, é sempre
bela, então ao meu lado?!...
... Aqui em Diversos somos todos diferentes, não há ninguém igual... O mais parecido entre nós é o Situ. Só não se consegue parecer com o Tota nem com o Rezi. O Tota, como é transparente não deixa fazer sombra e o Rezi é tão rápido que quando
o Situ chega perto dele não lhe dá tempo para fazer a sombra. É
por isso que o Situ não gosta deles...
Olha quem vem ali!... Então hoje andas a imitar o Zuma!?...
M. Sá Lopes 58
Pssst!... Olá!
...Este é o Noma! Hoje está com esta apresentação! É um
zero! Mas o Zuma é que é sempre um zero! O Noma é o numérico, cada dia apresenta-se com um número diferente - parece os
vossos calendários...
... Se o Noma se quis apresentar de zero é porque algo correu mal! Ou está a provocar o Zuma ou está triste por não ter
ganho a corrida. Dantes era sempre o Padi que ganhava as corridas, porque o Padi é sempre o primeiro, mas depois o Yamu reuniu-nos a todos e decidimos que quando houvessem corridas o
Padi não competia. Nessa altura ficou a ganhar muitas vezes o
Noma, mas depois como teve que ir sempre fazer a classificação,
acabou por perder o ritmo.
Por falar em ritmo, de quem vais gostar muito é da Mina. A
Mina entra sempre nas festas, o papel dela aqui em diversos é dar
música aos outros. Um dia é um violino, outro dia é um piano. Às
vezes é um tambor, e põe-nos todos a marchar... Já sabes, se vires
por aí qualquer coisa que faça música, é a Mina.
“Olá Iri, que coisa é essa que está contigo, eu nunca vi o
Fago assim?!” - Fago!... Mas que Fago!... Alguma vez o fago conseguia construir-se desta forma?! - “Mas... Se não é o Fago, então
quem é?”...
...Gofa, este ser que tu vês, não é um ser qualquer, é um
humano que me acompanha e que eu convidei para visitar Diversos...
M. Sá Lopes 59
Pssst!... Olá!
“Humano!?... Nunca ouvi falar” - Gofa, tu que és a grande
daqui de Diversos afinal não imaginas que mundos há mais por
aí!...
A Gofa é a grande. Sempre que existem duas ou mais coisas, a maior é a Gofa.
Mas há mais habitantes neste mundo!... E nós temos uma
coisa curiosa e única! Um habitante de Diversos não é um indivíduo como na Terra! Pode ser só um ou mais que um e é o mesmo,
isto é, cada um de nós pode ser composto de várias unidades.
Por exemplo, a Gofa é a grande, mas tanto pode ser uma
cebola grande como uma casa grande, tudo o que for grande é a
Gofa. O Ques, por exemplo, pode ser pequeno ou grande - o Ques
é o quadrado, tudo o que for quadrado é o Ques.
Isto é curioso porque um de nós pode ser ele próprio e outro
ou outros ao mesmo tempo... - “Não estás a perceber!?” - Por
exemplo: Imagina um quadrado, grande, com um quilómetro, que
é feito de sombra e que se move lentamente, sendo o último a
chegar a algum lado. Só este quadrado é composto por sete habitantes de Diversos: O Ques porque é quadrado; o Fago porque é
uma forma; a Gofa porque é grande; o Kafu porque tem um quilómetro; o Lima porque é lento; e o Situ porque é uma sombra.
...”Não faz sentido?” - Não faz sentido lá na tua Terra, mas
aqui entre nós faz muito sentido... Todos nos entendemos porque
todos fazemos parte dos outros em determinadas alturas... E todos
os outros são sempre potencialmente parte de nós!...
M. Sá Lopes 60
Pssst!... Olá!
...“Então quem é que manda aqui?!... - Aqui ninguém manda!... Aqui todos colaboramos para fazer alguma coisa. Por
exemplo: Imagina que fazemos uma coisa muito comum na tua
terra, que é um jogo de futebol....
Reunimo-nos todos, o primeiro a chegar à reunião é sempre
o Padi; o Ximu, como é incógnito desdobra-se no número de
jogadores; o Kafu faz a marcação do terreno de jogo; o Fago dá a
forma ao terreno, e às vezes é ajudado pelo Ques; o Yamu divide
as equipas; a Mina toca o hino; o Codu dá a cor aos equipamentos e às bandeiras; a Hira controla os horários do jogo; a Beri é a
bola; a Ere é a bola suplente; a Jora faz a arbitragem, porque é a
mais justa de Diversos; o Lima faz as repetições das jogadas, já
que é muito lento; o Opo faz os ângulos opostos; o Padi é o primeiro a marcar um golo, e nessa altura o Zuma sai dum placar e
vai para lá o Noma marcar o um... E por aí fora, até chegar a altura de entrar em cena o Vizu, que será o vencedor, e o Uzo que
será o último.
Eu sei que tudo isto te parece muito confuso porque não é
igual à tua Terra, mas lembra-te que cada mundo é um mundo, e
não podemos ser todos iguais!...
Neste mundo não há problemas! Somos todos divertidos! Às
vezes temos pequenos discussões devido à nossa natureza! Mas
logo entra em cena o Yamu e tudo se resolve!... - Não! O Yamu
não é polícia nem o chefe! O Yamu é o detentor do equilíbrio como na vossa terra têm o yin-yang...
M. Sá Lopes 61
Pssst!... Olá!
“Discussões!?” Claro que temos discussões!... Mas são
todas positivas!... Sempre que há uma discussão sempre se encontra a melhor solução!...
...Já sei que o que estás a perguntar é como há discussões
num mundo destes?!... Mas eu vou-te dizer!
Por exemplo, o Fago... O Fago consegue assumir-se de
todas as formas, é a sua natureza. Agora imagina quando ele
assume a forma de um quadrado, logo se confunde com o Ques
que é sempre quadrado, então lá tem que se reunir o Yamu para
decidir qual a forma mais equilibrada que o Fago pode assumir.
Quando o Yamu está a resolver algum conflito, é substituído pela
Jora que é o símbolo da justiça.
Imagina que uma vez o Fago assumiu a forma de um arco e
eu até o convidei para passear comigo a pensar que era a Aba!...
O Codu, por exemplo, está sempre às cores, mas quando
assume as cores do arco-íris confunde-se comigo!...
O Beri e o Ere são muitas vezes confundidos, porque no
fundo, eles são iguais, mas são dois de uma forma simbólica!
Quando nos referimos ao Beri estamos a falar de uma bola, quando nos referimos ao Ere estamos a falar de uma esfera, e essa é a
única diferença entre eles.
O Rezi e o Padi não têm discussões porque em Diversos não
se aplica a lógica terrena, pois se aqui fosse igual à Terra não
podiam viver em paz, pois se um é o rápido e o outro é o primeiro
não faria sentido!
M. Sá Lopes 62
Pssst!... Olá!
O Vizu, como é sempre o vencedor anda sempre acompanhado pela Mina! Cada nova vitória tem direito a uma nova
música!
- Então!... Querem conhecer o meu amigo da Terra ou
não!?...
Não!... Porquê?!... “Porque ele é mais interessante que
vocês!?”... E vocês têm inveja?...
Claro que ele tem uma forma única! Claro que ele tem
cores! Claro que ele sabe fazer muitas coisas! Mas ele só é assim
porque vive num mundo diferente!...
...Hei!... Espera!... Não te vás embora!... Ainda não os
conheces todos!... Eles são bons!... Fica comigo!... Fica!...
Foi-se embora! E agora!? A culpa é vossa!... Agora eu fico
triste porque podíamos ter mais um amigo para nos divertirmos
juntos!...
Gostava tanto de lhe ter dito que a coisa mais bonita deste
mundo é quando eu e a Aba estamos juntos!... Quando nos fundimos e ficamos um só!... E ele ia compreender isso porque na
terra dele isso também existe!...
O amor e o arco-íris!...
M. Sá Lopes 63
Pssst!... Olá!
VIII
Sabem como é que eu sou?! Qual a minha forma?! Não
sabem!?... Eu vou-lhes dizer!...
Sabem como é uma coisa que não tem princípio nem
fim?!... – A eternidade!... – Não! Estou a falar de coisas reais!... –
A eternidade também é real!... – Ok! Coisas materiais!... – Não
sabem?!... Podia ser uma recta!... Mas eu não estou a falar de
geometria, nem de matemática, por isso também não é um número!...
Podia ser uma aliança!... Como a dos casamentos!... As
alianças dos casamentos também não têm princípio nem fim! - Os
casamentos é que têm! – Mas eu não sou uma aliança!... Apesar
de também ser redonda!... Adivinhem!....
Certo! Sou uma bola! Uma-bola-que-rebola-sempre-sempresem-parar!... Mas agora estou parada! Alguém me chutou, com
muita força, eu voei para muito longe, e caí num buraco! Um
M. Sá Lopes 64
Pssst!... Olá!
buraco muito fundo! É tão fundo que só se vê uma luz, lá no alto!
Parece uma estrela!... Mas não é! É a entrada do buraco!...
Eu sei que lá em cima andam a procurar-me!... Anda o meu
dono e os amigos dele!... Estavam todos a jogar-me, quando de
repente veio um rapaz, muito grande, e chutou-me com muita
força!...
Agora estou aqui!... Perdida e abandonada!... Se eu pudesse
falar!?... Há pouco vi o meu dono espreitar neste buraco!... Mas
não me viu!... É que aqui em baixo está escuro!... Está escuro,
está frio, e está molhado!... Está tudo cheio de água aqui!...
Eu estou sempre a pensar que sou uma bola de futebol!...
Por isso é que eu disse que me estavam a jogar!... De facto, esse
era o meu sonho! Ser uma bola de futebol!...
...É que uma bola de futebol é uma coisa muito famosa!... É
o centro das atenções de milhares de espectadores!... E depois
andar ali, a saltar num relvado, livre, com todos a correr atrás de
mim!... Cada um a ver se me alcançava primeiro que o outro!...
E o melhor era quando era apanhada pelo guarda-redes...
Agarrava-me com tanta força contra ele!... Sentia-me protegida!...
Às vezes gostava de brincar!... Por exemplo, nos penalties,
chutavam-me direitinha à baliza, mas eu desviava-me e passava
por fora!... Outras vezes fazia o contrário, chutava-me tão mal,
mas eu lá fazia umas curvas e acabava por entrar na baliza!... Mas
tinha que ser sem bater nos postes ou na trave porque eu não
estava para me magoar!...
M. Sá Lopes 65
Pssst!... Olá!
Mas o melhor não era isso!... Gostava de ser uma bola de
futebol para receber os aplausos quando entrava na baliza!... E
tinha todas as câmeras da televisão apontadas a mim!... Faziamme grandes planos!... Tiravam-me fotografias!... Mostravam-me
repetidas vezes e em câmera lenta!... Tiravam fotografias comigo
ao colo!... Todos gostavam de mim!... Até me enchiam de autógrafos e me guardavam!...
Maravilha!... Era a heroína!... Era o meu sonho!... E penso
que era o sonho de qualquer bola!...
...Mas não passo duma pinchona!... Pequenina!... Estou
sempre perdida!... E sou feia!... Sou às riscas castanhas e brancas!...
Eu sei que o meu dono gosta de mim!... Mas... Se eu fosse
uma bola de futebol...
- O que é isto!?... Água!... O buraco está a encher de água! E
eu estou a subir para a superfície!... Vou sair daqui!... Oh! Não!...
Não passo aqui!... O que se passou!? Pareço maior!... Eu cresci!...
Estou verde!... Tenho pelos!... Vem ali uma coisa cheia de
buracos ter comigo! Deu-me com muita força! Ai!... Ai, ai!...
Uf!... Ainda bem que escapei! Ia para um lado, vinha aquela
coisa cheia de buracos, que parecia uma rede, bem dura, atiravame com força, batia no chão, e vinha outra rede daquelas!... E
andava sempre assim!... Para um lado e para o outro!... Não gostei muito!...
M. Sá Lopes 66
Pssst!... Olá!
Ainda bem que agora sou acarinhada!... Parece que acarinham cada uma das minhas covinhas brancas!...
E tenho um pedestal só para mim!... Fui colocada nele com
muito cuidado!... E o local foi bem escolhido!... Envolvido por
todo este verde da natureza... Tudo é calmo e perfeito!...
Nãooooo!... Deram-me com uma coisa tão dura, que me atirou para muito longe, perto duma bandeira!... Ainda bem que vim
para tão longe, pois não suportava ver aquilo outra vez!... – Aquilo outra vez!... Tirem-me daqui!...
...Atirou-me!... Devagar!... Vou a correr por esta relva!...
Vou em direcção a... Um buraco!... Não!... Não quero cair ao
buraco!... Tenho que me desviar!... Ui!... Boa!... Consegui!...
Outra vez não!... Ai!... E caí no buraco!...
Estou admirada!... Tiraram-me do buraco com jeitinho,
meteram-me dentro dum saco e trouxeram-me para casa!...
Agora estou em casa, bem aconchegada!... Junto das outras
bolas!... Mas eu estava dentro dum saco e agora estou numa caixa! Devo ter adormecido quando me mudaram!...
Estão a pegar em nós! Abriram a caixa! Puseram-nos na relva... Dura... Que relva dura!... Que coisa dura! Isto não é relva!...
E nem tem bandeiras!...
Mas!... Nós somos todas diferentes!... Temos todas cores e
números!... Eu sou a oitava, e sou preta!... Não!... Eu não quero
ser preta!... Assim ninguém me vê!... Quero mudar de cor!... Quero ser branca!... Assim!... Branca como a cal!... Então!?... Lá por
M. Sá Lopes 67
Pssst!... Olá!
ter mudado de cor também tenho direito a número!... Não!... Mas
o que é que eu fiz para não ter direito a número!?...
Não tenho sorte nenhuma!... - “E o número sorteado é...” –
Tiraram-me dum saco escuro e mostraram-me para toda a plateia!
No meu peito estava cravado o número treze! Logo alguém se
levantou e disse “é meu, é meu...” Ainda estou para saber o que é
que era dele!...
A minha vida agora é muito monótona! Faço centenas de
vezes o mesmo percurso por dia!... Estou numa tômbola que vai
girando, e vamos saindo todas, uma de cada vez!... Depois voltamos a entrar todas juntas, e voltamos a sair, uma de cada vez!...
Sempre a mesma coisa!... Já estou velha!... O meu número é
o sessenta e nove!... Cada vez que saio lá o ouço – “Sessenta e
nove; seis; nove”... E tudo contínua!...
Um dia, quando eu saí, não tiveram tempo de dizer o sessenta e nove. Alguém deu um grito tão forte, que eu até caí e ninguém soube onde fui parar!...
Mas eu soube!... Fui escorregando lentamente junto à parede, passei a porta, encontrei umas escadas, desci-as todas saltitando e fiquei lá num cantinho! Passado muito tempo fui encontrada por um menino que me levou para casa dele! Pintou-me uns
olhinhos e uma boca! Andava sempre comigo!...
Mas um dia deixou-me cair na rua! Veio um automóvel e
passou-me por cima! Parti!... E qual não foi o espanto do menino,
M. Sá Lopes 68
Pssst!... Olá!
e o meu!?... Dentro de mim havia um bilhete que dava um brinde
surpresa!...
Um saco cheio de berlindes, e eu era um deles! Fiquei toda
contente! Afinal continuava a ser a bola que sempre tinha sido!
Agora éramos todas iguais! Andávamos sempre juntas!...
Vivemos assim durante muito tempo!... Mas o tempo passa e as
coisas mudam!... Acabamos por nos separarmos! Umas perderam-se, outras partiram-se.... Enfim... Coisas tristes!...
Fiquei eu!... Mas também mudei!... Sou muito levezinha!...
E muito oca!... Salto muito!... Estou sempre a saltitar! Em cima
de uma mesa!... Nesta fase da minha vida recordo os tempos em
que era verde e tinha pelos!... Não foram tão maus quanto isso!...
Afinal vivia rodeada de gente bem disposta, e rica!...
Mas é assim!... A vida das bolas é como a vida das pessoas!
Envelhece-se e ganham-se rugas! Perde-se a força!... Eu que dantes saltava muito, agora mal rebolo!... Se me chutam, no sítio
onde caio é lá que fico!... Pareço uma bola furada!...
E de facto tenho um furo!... Aqui!... Onde?!... Já nem o
encontro!... Era por aqui!... Encontrei!... Mas!...
Que coisa é esta que está a entrar pelo meu furo!? Uma coisa pontiaguda!... Não!... Não me penetres!... Não metas isso dentro de mim!... Eu não quero!... Larga-me!...
Mas... Afinal!... Desde que me conheço como bola nunca
tinha experimentado esta sensação!... Rejuvenesci! Perdi as
M. Sá Lopes 69
Pssst!... Olá!
rugas! Já consigo saltar! Tenho vida outra vez!... E agora sou forte e dura!...
Jogam-me com as mãos!... Mas eu confundo-me!... Umas
vezes tenho uma rede no meio do terreno de jogo... Outras vezes
tenho duas balizas... – Mas são mais pequenas que as de futebol...
– Outras vezes tenho uma tabela e um cesto!... Mas não gosto
nada deste jogo! Custa-me a entrar no cesto!... E quando jogam
este jogo são muito violentos comigo!... Quer dizer!...
...Nunca senti tanta violência como quando estava doente!...
Jogavam-me com as mãos, com os pés, prendiam-me, punham-se
todos em cima de mim, atiravam-me com força para longe!... Não
tinham pena nenhuma de mim, nem por eu estar doente... Pelo
menos eu penso que estava doente, pois aquilo não era forma de
uma bola!...
Mas!... Uma vez tinha que estar mesmo doente! Estava dura
e tinha três buracos!... Só não percebia porque tinha uma vida de
luxo! Tinha um tapete limpíssimo só para mim!... E o que me
dava mais gosto era chegar ao fim do passeio e derrubar todos
aqueles bonecos que se punham no meu tapete!...
Às vezes desorientava-me e saía do tapete! Eles ficavam-se
a rir!... Mas quando ia com força e os derrubava todos, quem se
ria era eu!... O que estariam aqueles bonecos a fazer num tapete
que foi feito só para eu passear!... Só podiam estar ali para eu os
atropelar!... E que gosto que me dava!...
M. Sá Lopes 70
Pssst!... Olá!
Agora não atropelo nada!... Ainda sou pesada, mas sou muito pequena!... Jogam-me com um taco duro! Ando sempre a correr! Sabem porquê?! É que os jogadores andam numas coisas com
rodas e ainda me vão atropelar!... Dantes era eu que atropelava,
agora, se não fujo, sou atropelada!...
É triste ser bola!... Pequena, dura, feia, escura, pesada...
Sempre a rolar... Sempre a rolar porque há um gato que não me
larga!... Passa o tempo a brincar comigo!... De início não gostava!... Agora... Até já somos amigos! É ele que me tira dos buracos!...
Só não me tira quando eu derreto!... Sim porque eu insisto
em ser uma bola desportiva, mas há quem me use para outros
fins!...
Se sou de gelo posso derreter! Mas já fui de aço e andei
interminavelmente a rolar ao lado de outras! Também já fui de
pedra e fiquei parada anos seguidos numa praça ao lado de um
jogador!...
Já fui de chocolate ou de algodão doce, e todos me queriam
comer!... Também já fui de sabão e todos queriam ver as minhas
cores!... Mas desaparecia depressa!...
Gostava era de ser uma bola de fogo, como o sol!... Ou que
fosse como a lua cheia!... Ou como a Terra!...
Se eu adivinhasse o que me espera!...
M. Sá Lopes 71
Pssst!... Olá!
Uma vez eu era de cristal, e diziam que através de mim adivinhavam o futuro!... Era mentira, mas... Era tudo muito divertido... Excepto aquelas mãos velhas que não me largavam!...
No fundo, no fundo, não há nada melhor que ser uma simples bola de borracha, que salta e ressalta, rola e rebola, sempre
sem parar, até que alguém se canse de a jogar!...
... E com esta leveza que eu tenho, é tudo mais alegre!... Sou
às cores. Quase vou no vento. Às vezes salto na areia outras vezes
salto para a água!... Há sempre alguém para brincar comigo na
praia!...
Alguém que podia ter mais... Cuidadoooo!... Ai!... Ui!...
Nãoooo!...
Saltei a duna... Caí em cima dum cacto... Piquei-me... Estou
a perder ar!...
Socorro!... Estou a murchar!...
Hei!... Estou aqui!... Aqui atrás!... Hei! Não me vês!?..
Aqui!... Neste cacto!... Não me ouves!?... Não ouves o ar a sair de
mim!?...
Não!... Não te vás embora!... Não me deixes abandonada!...
Não te vás embora!... Não te vás embrrrrr... Nnnnn... Slic...
M. Sá Lopes 72
Pssst!... Olá!
IX
A forma como me formo é a mais curiosa! Lentamente
começa a ficar mais frio e aos poucos as minhas partes vão-se
juntando em mim! Vou crescendo enquanto vou voando!... Até
que!... Começo a ficar pesada e começo a minha descida! Descida
não... Queda! – Queda porque acabo por cair onde quer que
seja!...
Não sei se é uma queda ou um regresso, pois não passa de
um ciclo que se vai repetindo! O certo é que já caí das mais
diversas formas.
Uma vez era muito pequenina! Éramos todas muito pequeninas! Demorei muito tempo a cair! Fui no vento muito lentamente! Cada vez que parecia ser a minha vez de parar, lá continuava!
Passei por entre os ramos e as folhas de muitas árvores! E acabei
por pousar muito suavemente sobre uma pedrinha que ainda se
encontrava seca no sopé de uma enorme árvore! Lá fiquei muito
tempo!... Até que desapareci sem ninguém ter dado por mim!...
M. Sá Lopes 73
Pssst!... Olá!
Outra vez cresci muito e depressa! Fiquei muito pesada! Caí
muito depressa juntamente com as outras! Caímos no alto duma
montanha! Mas éramos tantas e tão grandes que não conseguimos
aguentar-nos no alto da montanha! Começamos a escorregar por
ela abaixo! Éramos tantas e a nossa força era tão forte que levamos tudo à nossa frente! Fomos responsáveis por uma grande
destruição! Nós não queríamos, mas fomos levadas a fazer aquilo!... Em nome de todas peço perdão a todos os que fizemos
sofrer!... Também nós sofremos!...
Eu, por exemplo, nesse dia, desci a encosta da montanha
com tamanha velocidade, que acabei por me misturar com tudo o
que levava à minha frente - terra, folhas, ramos, pedras... até animais e plantas. Acabei enterrada na lama misturada com tudo
aquilo! Demorei imenso tempo para sair de lá!...
Numa outra vez em que me formei também muito pesada,
caí a uma enorme velocidade que acabei por me desfazer contra
uma enorme rocha!...
Mas também há coisas divertidas! Nunca me esqueço
daquela vez que caí em cima de um cachorro e do que ele saltou
para ver se se livrava de mim!...
Agora vou aqui suavemente!... Nunca estive tão límpida
como hoje! É bom quando não temos que atravessar toda aquela
atmosfera cheia de poluição! Quando nascemos assim, puras, no
meio das rochas, e quando deslizamos pelos caminhos que trilhamos há muito tempo por entre as entranhas das encostas das
M. Sá Lopes 74
Pssst!... Olá!
montanhas, deixando um rasto de frescura pelos montes e vales
que percorremos...
Nesta minha caminhada, uma entre milhões – porque embora no final, cada caminhada seja única, também o final de uma
será o início de outra. Dizia eu, nesta caminhada, encontro-me já
reunida com muitas outras, num enorme leito que vai deslizando
muito calmamente entre verdes montanhas!...
Ninguém sabe, mas nós, falamos com os peixes, falamos
com as raízes, falamos com as plantas... E falamos umas com as
outras... Chegamos ao fim de cada caminhada com uma enorme
aventura para contar!...
Infelizmente, tenho que dizê-lo, as nossas viagens são cada
vez mais tristes! Cada vez somos mais mal tratadas! Atiram com
tudo para cima de nós! Temos que carregar tudo! Cada vez nos
sentimos mais incapazes de cumprir a nossa missão!...
- Temos companhia!... De onde vêm?! Que vos aconteceu?!
– “Não queiram saber! Vínhamos muito calmamente no nosso
percurso, a alimentar quem desejava, quando de repente deparamos com um enorme cano de onde saiam estas coisas vermelhas e
pegajosas que se colaram a nós e não mais nos largaram! Estamos
desesperadas!...” - Tenham calma! Logo vai haver alguém que
cuide de vós, que vos trate!... – “Não acreditamos! Sabemos que
já há quem pense em cuidar de nós, mas o nosso fim será este...
Vamos morrer assim feias, sujas e inúteis!...”.
M. Sá Lopes 75
Pssst!... Olá!
Infelizmente tenho que reconhecer que elas têm razão! Serão
destruídas pelas mãos daqueles a quem deram vida!...
E eu, que até aqui era pura e límpida, perco também a
minha pureza ao contactar com elas! É que por muito que queiramos, o nosso percurso nunca é decidido por nós! Vamos por
onde nos deixarem ir ou para onde nos levarem, e misturamo-nos
com tudo o que se junta a nós!...
...Não!... Eu não quero ir por aí!... Não!...
Uf!... Safei-me!... Estavam ali a captar-nos! Ainda bem que
desta vez me safei! Eu sei muito bem o que me ia acontecer!
Metiam-nos nuns enormes depósitos, misturavam-nos umas coisas malcheirosas, que dizem ser para nos tratar, mas é só para disfarçar a nossa idade, porque lá dentro ficamos velhas e ferrugentas, e depois metem-nos nuns tubos infinitos e vamos parar aos
lugares mais esquisitos. Alguns nem me atrevia a descrever!...
Passei aquela captação, mas já sei como é! Já se avista a
cidade! As cidades são muito bonitas, mas depois de passarmos
por elas nunca mais seremos as mesmas!...
Às vezes acho que preferia passar toda a minha vida num
lago selvagem que andar aqui ao serviço dos humanos! Sou uma
escrava deles!...
- Bebem-me! Engarrafam-me! Atiram-me contra o fogo!
Misturam-me tudo e mais alguma coisa! Prende-me com grandes
paredes!... – Não os percebo! Às vezes até me lambem, outras
vezes fogem de mim!...
M. Sá Lopes 76
Pssst!... Olá!
Claro que eu sei que sou muito útil e isso deixa-me muito
feliz! Devo até ser o que os humanos têm de mais útil, e sei que
faço parte até deles! Conheço todas as entranhas do seu corpo!
E claro que eu sei que me renovo, mas... Será que me vou
renovar sempre?!... Será que me vou renovar o suficiente para
satisfazer as pretensões deles?!...
Não é nada fácil ser uma simples gota de água!...
Não acreditas que sou uma simples gota de água!... Queres
que te prove!... Ok!... Não sou uma gota de água! Sabes o que é
que eu sou?!... Queres que te diga?!...
Vê lá se adivinhas o que eu sou!
Imagina uma coisa que voa mas não tem asas, rola mas não
tem rodas, anda mas não tem pernas, é dura como uma rocha
mas não é uma rocha, é mais maleável que a gelatina, desaparece
como o fumo, surge como as estrelas, é transparente como o cristal, é brilhante como o ouro, é pura como um diamante, reflete
como um espelho mas não é um espelho, é branca como a cal mas
não é cal, é azul como o céu mas não é o céu, aquece como o
fogo mas não é fogo, alimenta como pão mas não é pão, refresca
como um gelado mas não é um gelado, move-se por si mas não é
um ser vivo, é pesada como o chumbo mas não é chumbo, é leve
como uma pena mas não é uma pena, ouve-se, vê-se, sente-se,
saboreia-se, cheira-se... e tem pêlos!... Adivinha o que é?!...
“Não existe uma coisa assim!?” – Claro que existe, sou eu!
M. Sá Lopes 77
Pssst!... Olá!
“Só se for em fantasia!?” – Não é em fantasia, é real, sou eu,
tenho todas aquelas características e sou só uma coisa verdadeira,
que existe à superfície deste planeta Terra.
- Não! Não é um planeta Terra muito distante na terra do
nunca, é este planeta hoje, o terceiro a contar do sol e no momento em que estas letras são lidas!
Não percebes!?
...Água!... água!... água!... água!...
É isso o que eu sou!... Sou a água! Sou a água porque cresci... Dantes era só uma simples gota, agora sou toda a água do
mundo em todas as formas e feitios!...
“A água não voa!?” – Claro que voa, quando é formada por
gotinhas muito pequeninas. “A água não rola!?” – Claro que rola:
experimenta pôr uma gota de água em cima de pó num plano
descendente. “A água não anda!?” – Os rios, o que são?
A água é dura quando está gelada, mas quando não está
pode-se mergulhar nela, e se estiver calor evapora e desaparece!
Quando está frio surge do nada, e se não estiver poluída é translúcida, brilha e reflecte.
Quando cai aos flocos é branca, mas se está no alto mar é
azul. Se estiver quente aquece, mas se estiver fresca alimenta e
refresca.
Ninguém a empurra, mas ela move-se permanentemente, e
de tão pesada que cai em forma de chuva transforma-se em tão
leve que sobe em forma de vapor.
M. Sá Lopes 78
Pssst!... Olá!
A água!... Eu sou a água!... Sou a coisa mais completa que
há! Se encontrarem uma coisa mais completa que eu digam-me!...
Não creio que haja!... Eu sou a fonte da vida!...
...E estou presente em todas as formas que a vida é sentida!
Podem-me tocar quando estou imóvel num lago, e podem ver a
beleza que faço com perfeitos círculos ondulantes que se vão
expandindo até se perderem. Mas também me podem ouvir a cair
em cascata, ou saborear se me encontram numa fonte fresca, e
claro, a minha frescura pode ser inspirada e fará qualquer um sentir-se puro!...
...Gostaram desta lição sobre a água?! Então agora vamos lá
todos fazer os nossos deveres e obrigações!... E não se esqueçam,
deve-se defender sempre a água porque a água é a nossa fonte de
vida!
Eu já sabia! Eu sabia que vocês me iam perguntar isso!
Onde é que estão os pêlos! Vocês nem queiram saber a relação
que existe entre os pêlos e a água! Isso é um assunto que daria um
livro! Aliás, há livros com assuntos muito piores, assim como há
livros sem assunto! Quanto a isso, assunto arrumado!...
Claro que a água não tem pêlos! Era só para enganar! Como
a história do ovo! Branco é, a galinha o põe, e tem pêlos, o que
é?... É o ovo!... Onde é que estão os pêlos! No pintainho!...
Já agora, o que é que nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?
Resposta, nem o ovo nem a galinha, foi o pintainho...
M. Sá Lopes 79
Pssst!... Olá!
Vocês ainda não sabem quem eu sou! Essa história de ser
uma gota de água ou de ser a própria água é tudo inventado. Mas
eu existo realmente e ainda vão descobrir quem eu sou! Eu vouvos dizer, mas antes tenho que admitir que não é fácil identificarme. Pois como se recordam da história da água, em que a mesma
é uma coisa e simultaneamente o seu oposto, eu sou ainda mais
complicada. Eu consigo ser uma coisa, o seu oposto, e a inexistência dessa coisa juntamente com a existência do seu oposto,
tudo em simultâneo! Não tentem compreender porque não é compreensível!
Mas existe! É real! Todos sabem quem eu sou, mas até hoje,
ainda ninguém conseguiu provar a minha existência! Por isso é
que eu sou tão fascinante! Porque eu estou aqui, existo, logo logo
saberás quem eu sou, mas não consegues provar que eu existo... E
eu estou aqui, contigo, porque tu estás aqui, comigo, e nem imaginas a cumplicidade que existe entre nós, eu e tu, porque, só por
eu existir é que tu estás aqui, mas se tu não existisses eu também
não estava aqui... Tu és a razão da minha existência, mas eu também sou a razão da tua existência...
Eu, sabes quem eu sou?!... Não!... E tu sabes quem és?!...
Estou-te a perguntar, responde-me!... Diz-me quem és tu!... Não!
Não quero um nome, uma morada ou uma profissão!... Quero
saber quem és tu de verdade!... Não me respondes!?... Eu aguardo! Eu tenho tempo! Tenho todo o tempo do mundo! Mas não te
largo enquanto não me disseres quem és!...
M. Sá Lopes 80
Pssst!... Olá!
Não tens palavras!... Procura-as! Apropriadas ou desapropriadas, mas que me respondam! Que respondam à pergunta que
te fiz!... Eu quero saber quem és tu, e não volto a falar contigo
enquanto não tiveres uma resposta para me dar!... Não estou a
brincar contigo, quero uma resposta séria!... Fico à espera!...
M. Sá Lopes 81
Pssst!... Olá!
X
Estou aqui, em cima desta árvore... Estou numa folha que
vai subindo e descendo com a brisa do mar... Mesmo por cima de
mim há outra folha que me serve de pára-sol... Muito próximo
uma flor muito perfumada e ao lado um fruto ainda verde...
Esta não é uma árvore qualquer... É a árvore onde eu estou
sentado e é a última árvore do jardim... Para lá fica um jardim
enorme, cheio de canteiros, flores, árvores, lagos, estátuas e passeios... Nesta praça termina o passeio central, todo tecido em
pedrinhas rosadas e brancas criando um enorme bordado, e todas
as pessoas que terminam aqui o passeio pelo jardim acabam por
parar para fazerem uma pausa entre o jardim e a cidade... Ficam
aqui a admirar o mar e a meditar...
Aqui é um ponto especial de passagem. De passagem e de
paragem. Pois todos os que vêm do parque que fica para lá do
jardim e todos os que vêm da grande cidade que fica para lá da
rua, param aqui. Na esplanada... Ou nos bancos do passeio marM. Sá Lopes 82
Pssst!... Olá!
ginal... A ver o mar, os barcos, o porto, as ondas, as gaivotas, o
pôr do sol... Tudo.
Nesta árvore consigo ver tudo. A cidade, o jardim, o mar, a
esplanada, e as pessoas... Principalmente as pessoas!...
A esplanada tem oito filas de dez mesas cada uma. A frente
dá para o mar. Metade das mesas estão ocupadas. Algumas com o
guarda-sol aberto e outras fechado. Estamos no fim da manhã. O
sol começa a aquecer, mas uma brisa fresca surge do mar. É um
dia com tudo para acontecer...
Mesa 1. Não é a primeira da esplanada. É a primeira que
vou descrever. Guarda sol fechado, três jovens, rapazes, tomam o
pequeno almoço. Torradas, leite com café, sumo, e mais qualquer
coisa que não sei o que é. Falam de música.
Mesa 2. Três mulheres de quarenta anos. Aproximadamente. À sombra do guarda sol falam dos problemas que encontram
enquanto leccionam. São professoras primárias. Uma é divorciada e tem um filho no secundário. Chama-se Raul. Tem problemas
com alguma coisa que ela não assume ser droga.
Mesa 3. Um homem. Uma cerveja. Quente. Está a dormir
sobre a mesa!
Mesa 4. Duas jovens. De férias. Falam, lêem e olham...
Mesa 5. Uma menina. Mulher. 22 anos... – Como é que
sei?! – Não sei mas posso saber!... Salto da minha folha e voo até
à mesa dela. Ela não me vê porque perante ela sou invisível...
Estou sobre a mesa dela! Vou saltar para dentro da bolsa dela!...
M. Sá Lopes 83
Pssst!... Olá!
Ooops!... Caí! No momento em que saltei ela pegou o saco que
estava sobre a cadeira!... Vou voltar à minha árvore!...
Aqui estou mais seguro!...
Ela está a beber um chá gelado!... E a ler!... É linda!... Digo
eu!... Já imaginaram uma mulher bonita!?... Descrevam-na!... Não
é assim!... Descrevam uma mulher bela!... Mesmo bela!... Perfeita!... Como só eu podia ser!... – Claro que eu podia ser uma
mulher!... - A mulher mais bela do mundo!... A miss plenitude da
perfeição feminina!...
Ela é assim!... – Pelo menos é o que pensa o rapaz que se
encontra na mesa 6.
Mesa 6. Ele acabou de chegar e não pára de olhar para
ela!... Ela está do outro lado da esplanada e mesmo assim tudo o
que existe entre os dois parece não existir!...
Ela já percebeu que ele a observa!... Abre o saco!... – É agora!... – Vvvvvv... Aí estou eu!... Consegui!...
Ela pôs os óculos do sol mas eu fiquei fechado na bolsa
dela.
É agora que vou saber a idade dela!... Um bloco... Uma
caneta... Um batom... Uma pinça... Um telemóvel... Medicamentos... Elásticos... Cartões... Cremes... Mais produtos não sei de
quê... E a carteira!... - Dinheiro... Cartões de crédito... Dinheiro...
Mais cartões de crédito... Mais dinheiro... – Então não há documentos!?...
Seja como for... Ela tem 22 anos!...
M. Sá Lopes 84
Pssst!... Olá!
Voltei à árvore!... A esplanada já está quase cheia!...
Ele tem um jornal, mas não vê uma única letra do mesmo!
Ela... Se não fossem os óculos do sol já teria desmaiado!...
Pois nunca imaginou que se poderia sentir assim só por um rapaz
olhar para ela!...
- Querem ver o que ela pensa!... “Mas o que é que eu
tenho?!... Que sensação é esta?!... Parece que tenho 12 anos?!...
Fico toda envergonhada só por ver um homem a olhar para
mim?!... Eu já me devia ter ido embora!... Mas!... As sensações
que percorrem o meu corpo são únicas... Eu nunca senti isto!...”
E ele?!... Querem ver!... – Num ápice saio de dentro do
cérebro dela e entro dentro do dele... Ele pensa: “Esta mulher
está-me a deixar maluco!... Ela é bela!... Mas... Eu já nem sei o
que estou a fazer aqui!...” – Volto a ela... Ooops!... Ia-me esborrachando contra o garçon!... – “Eu já namorei nem sei quantos
homens, e agora este... Assim... Sem que nada o esperasse... Pára
à minha frente e descontrola-me.... Não!... Não pode ser!... Deixame tirar o óculos do sol e sentir-me normal!... Até parece que não
tenho 28 anos!...” - ... Vinte e oito!?... Quem diria!... Com uma
beleza tão natural e a espalhar felicidade!... – Isto é o que eu penso!... Mas ele também pensa assim!...
– “Não!... Eu não acredito!... Ela é mesmo perfeita!... Aqueles olhos são mágicos!... Eu nem consigo olhar para ela, tal é a
luz que parece sair deles!... Eu já nem sinto o lugar onde estou
sentado!... O meu corpo parece estar a explodir!...”
M. Sá Lopes 85
Pssst!... Olá!
Mas que coincidência!...
- “Ele vai acabar comigo!... Eu já não sinto nada à minha
volta!... Eu devia-me ter ido embora!... Mas!... Isto é tão bom!...”
- E eu, o que faço?! Não percebo nada destas coisas?! Que
sensações são aquelas de que falam?
- “Já não sinto a cadeira! Parece que estou a levitar!...” Pois não, estás a voar mesmo! E ela!... Onde está ela?! Já não a
vejo nem a sinto!... Aí vai!... Vai atrás dele! Em direcção ao
céu!... Hei! Esperem!... Eu também quero ir?
Esperem por
miiiiim!...
Não acredito!? De repente saíram das suas cadeiras na
esplanada e subiram em direcção ao céu! Ele ia à frente e ela logo
atrás! A muita velocidade!...
Mas ninguém é mais rápido do que eu e ainda os hei de
alcançar!... Lanço-me no espaço em direcção ao céu a toda a
velocidade, apanho-lhes o rasto!... Sim!... Isto é o rasto deles!
Devem estar algures por aí!... Sigo-lhes o rasto!... Nunca mais
acaba!... Para onde teriam ido!?... Onde me levará este rasto?!...
Parece perder-se!... Parece confundir-se com umas ténues nuvens
altas que foram surgindo por aí!...
Umas nuvens perfumadas que me fazem pairar por entre
elas como se uma folha leve fosse caindo… E vou caindo sem
saber onde vou parar…
Acabo por poisar suavemente numa praia de areia quente,
mesmo no sopé de uma montanha... Olho em todo o redor e não
M. Sá Lopes 86
Pssst!... Olá!
os vejo... Até que encontro marcas na areia… De quatro pés, dois
e dois, que aqui caminharam a par... Sigo-os!...
Pararam aqui!... Separaram-se!... Foram para trás, cada um
para seu lado!... E agora quem vou seguir!?... Ele ou ela!?... Ele
seguiu para a esquerda e ela para a direita!... Sei isso porque há
pegadas maiores e menores!… Vou por ele!...
Para trás, em direcção à montanha, por aqui... começou a
rodar para a esquerda... rodou mais... caminhou ao longo da
praia... sempre a rodar... em agora em direcção ao mar... continua... roda mais para a esquerda... e agora começa a rodar para a
direita... em direcção ao mar... E!... Outras pegadas!... Encontrouse com ela!... E caminharam juntos em direcção ao mar!... Curioso!... Vou com eles!... Pelo mar dentro!... Perdi-lhes o rasto!...
Subo rapidamente à montanha!... Não os encontro!... Não os
avisto!... nem no mar nem na praia!... Mas!... A praia está diferente!... Tem desenhos!...
Um coração com a ponta a apontar para o mar!... Desço!...
São as pegadas deles!...
E do mar, da ponta do coração, saíam mais dois riscos. Um
para a direita e outro para esquerda. Para a direita tinha caminhado ele. Para a esquerda tinha caminhado ela.... Segui dias a fio os
seus passos... Caminharam na praia infinita, cada um para seu
lado!... Cansei-me de os tentar encontrar!... Parei e pensei...
“Como o mundo é redondo, se caminharem sempre, talvez se voltem a encontrar, no outro lado do mundo”...
M. Sá Lopes 87
Pssst!... Olá!
E adormeci!...
Dormi!... Dormi!... Veio a noite!... Veio o vento!... Sacudiu
a minha folha!.. E caí!... E acordei!... Olhei à minha volta e só vi
uma pessoa! O empregado da esplanada acabava de empilhar a
última cadeira... Amanhã seria outro dia!...
Para sonhar!...
M. Sá Lopes 88
Pssst!... Olá!
XI
Adormeceram?! Já se foram embora ou ainda estão por
aí!?... E tu?... Sempre queres que te diga quem sou?... Pensas que
eu não existo? Ou então que sou um ser que só ando para aqui a
inventar e a incomodar-te!... Olha que não!... Eu sei que tu vais
ficar a saber quem eu sou!...
E... Estive aqui a pensar e até te vou dizer já!...
Eu sou uma coisa que existe dentro da tua... Não!... Não te
posso dizer! É que... Sabes... Ainda não está na hora!... Desculpa
mas tens que esperar!... Fica mais um bocadinho comigo e logo te
direi quem sou!... E... Já que eu ainda não posso falar de mim
fala-me tu de ti?! Quem és?! Como te chamas?! Quais são os teus
sonhos!?... Não queres falar para mim!... Posso te contar um
segredo?... Também me contas um depois?... Eu nasci há muito
tempo e esperei por ti... Não! Não te posso dizer isto! Olha,
enquanto não chega a hora de me apresentar queres jogar um
jogo?!...
M. Sá Lopes 89
Pssst!... Olá!
Não queres!?... A sério!? É um jogo engraçado, jogamos os
dois!... Eu prometo-te que se ganhares digo-te logo quem sou,
está bem!?... Não!... Ok!... Jogo sozinho!... Assim ganho!...
Não jogo nada!... Como posso eu jogar comigo mesmo!?...
É que o jogo sou eu!...
Chamo-me o jogo da torre do arco-íris!... Queres saber
como funciono!?... É assim!... Tenho seis cores!... O azul corresponde ao andar azul!... O amarelo corresponde ao andar amarelo!... O verde corresponde ao andar verde!... O violeta corresponde ao andar violeta!... O laranja ao andar laranja e o roxo ao andar
roxo!... O anil, não entra no jogo!... Sabes porquê!?... Porque o
anil fica no arco-íris!... O objectivo do jogo é construir torres com
andares de todas as cores do arco-íris até chegar ao anil, que está
lá no céu!...
Eu só tenho seis cores porque também só tenho seis lados e
só posso ser jogado no máximo por seis jogadores!... Para me
jogarem é assim!... Colocam-me em cima de uma mesa!... E
ficam todos ao redor da mesa!... Bastam dois jogadores, mas se
forem mais é mais divertido!... Primeiro dividem as cores pelos
jogadores!... Eu não gosto de injustiças, e por isso, todos os jogadores têm que ter o mesmo número de cores!... Depois lançam o
dado sempre à vez!... O dado está pintado com uma cor de cada
lado!... São as cores do arco-íris, mas podiam ser outras!... Têm é
que ser iguais às dos andares!... Os andares estão na loja para
M. Sá Lopes 90
Pssst!... Olá!
serem vendidos!... A loja é um canto da mesa!... Primeiro, os
jogadores tiram à sorte quem lança o dado!...
- Queres jogar comigo?! Tens que jogar comigo, ou então
chama os teus amigos e jogamos todos! Pode ser!? Podem jogar
até seis jogadores!... Eu vou-te dizer como é!... Jogas comigo?
Ok!...
Então sê bem-vindo ao novo jogo!... Não vês jogo
nenhum?!... Espera!... Plin!... Aí está!...
Escolhe três cores!... Ok! Tu ficas com violeta, laranja e
amarelo, e eu fico com o verde, azul e roxo!...
Agora, todas estas placas coloridas vão ficar aqui juntas, as
que têm as tuas cores e as que têm as minhas, isto é o terreno de
venda!...
- “Como se ganha este jogo?!”
- Tem calma! Já te digo!... Agora tiramos à sorte quem lança
o dado!...
“Claro que as cores chegavam para os teus amigos, se fossemos três, ficava cada um com duas cores, se fossemos quatro,
ficavam duas cores de fora, se fossemos cinco ficava uma, e se
fossemos seis era uma cor para cada um, teríamos era de ter todos
o mesmo número de cores!”
Agora não interrompas mais e lança o dado!...
- “Eu sei que nunca viste um dado assim?!”...
- Este dado é especial. Tem seis cores, uma de cada lado e
só serve para este jogo.
M. Sá Lopes 91
Pssst!... Olá!
- “Que jogo?!”...
- Joga e já vais ver!... Lança o dado!... Aí não!... Aqui!...
Aqui é o terreno de jogo, está em branco para lançarmos o
dado!... Aqui é o terreno de venda, tem estas placas que correspondem às cores do dado, repara como encaixam umas nas
outras!... E cada jogador tem o seu terreno de construção.
- Não queres construir!... Vais ver que é divertido!...
- Saiu-te a cor amarela! É uma cor tua! Tens de comprar
uma placa amarela, que corresponde ao primeiro andar da tua
construção!... Jogas outra vez!... O dado parou na cor verde.
Como é uma cor minha passa a tua vez!... Agora sou eu a jogar!...
Lanço o dado e... Azul!... Óptimo!... É uma cor minha!... Compro
também um andar azul! É o rés-do-chão!... Volto a jogar... Violeta!... É a tua vez!... Saiu-te roxo!... Como é uma cor minha passa
a tua vez!... Jogo eu!... Saiu-me amarelo!... Óptimo!...
- Não!... Não passa a minha vez! A minha vez só passa se
sair uma cor que não seja minha e que não seja o último andar de
um adversário!... O amarelo é uma cor tua, mas como tu já tens
uma construção amarela, eu tenho direito a ficar com ela!...
Assim eu fico com uma casa com um andar azul e um amarelo e
tu sem nenhum!...
Não te vás embora!... Vais ver que este jogo é cheio de surpresas! Agora estou eu a ganhar e logo estarás tu!...
É assim, eu vou-te explicar as regras!... Temos aqui estas
placas, certo!... E temos aqui o dado!... Certo!... Então, vamos
M. Sá Lopes 92
Pssst!... Olá!
esquecer as outras cores e vamos jogar só com duas!... Qual escolhes!?... Azul!... Está bem!... Eu fico com a laranja!... Lança o
dado!...
Saiu verde!... Passou a tua vez!... Assim, com poucas cores,
passa mais vezes a vez, por isso é que é melhor jogarmos com
todas as cores, é preciso é que todos os jogadores fiquem com
igual número de cores. Estás a perceber!?... Vamos continuar!...
Ou melhor, vamos começar de novo!...
As tuas cores são violeta, laranja e amarelo e as minhas são
o verde, o azul e o roxo!...
Cara ou coroa!... Cara!... És tu a jogar!... Lança o dado!...
Amarelo!... Compras um andar amarelo!... Voltas a jogar!...
Azul... Sou eu!...
Azul!... Compro um andar azul!... Volto a jogar!... Laranja!... Laranja é uma cor tua, por isso passa a minha vez! És tu!...
Violeta!... Compras um andar violeta!... Colocas o teu andar
violeta por cima do amarelo! Voltas a jogar!... Outra vez violeta!... Mais um andar violeta para ti!.. - Repara, a tua torre já tem
um andar amarelo e dois violetas!... - Continuas a jogar!... És
sempre tu a jogares até sair uma cor que não seja tua!... Verde!...
É uma cor minha! Sou eu!...
Laranja!... Passa a minha vez!... Tu!...
Roxo!... Passa a tua vez!... Eu!...
Azul!... Compro outro andar azul!... Repara que os andares
encaixam uns nos outros e são para colocar uns sobre os outros.
M. Sá Lopes 93
Pssst!... Olá!
Volto a jogar e saiu-me o... Violeta!... Boa!... - Boa porquê?! Porque vou à tua torre e retiro-te os dois andares violetas que passam para a minha! E eu que tinha dois andares passo a ter quatro
e tu que tinhas três ficas só com um!... - É assim, se sair a cor do
adversário e esta for a cor do último andar ganha-se esse andar...
E se os andares forem de cores repetidas ganham-se tantos quantos tiverem. E continuo a jogar!... A cor laranja é tua!... É a tua
vez de jogar!...
Violeta!... Compras outro andar violeta!... - Atenção!... É
assim, se já não houvesse andares violetas para comprares tinhas
que vir retirar os que estão no topo da minha torre, mas como
ainda há, tu é que decides se queres comprar um novo ou retirar
os meus... - Pode te interessar comprar um, se por exemplo, for o
último de venda e acaba o jogo, e ganhares, ou pode servir para
tapar outras cores para os adversários não as retirarem... Aqui
tens que usar a tua inteligência, ver o que é mais importante para
ti... - O que preferes?... Compras um!... Ok, se me retirasses ficavas com mais um, mas tu é que sabes!... - Joga!... Lança o dado!...
Verde!... É uma cor minha... Jogo eu!... Amarelo! Não posso
comprar no terreno de venda nem posso retirar-te da tua construção!... - Nós podemos comprar ao terreno de venda as nossas
cores e podemos retirar do terreno de construção dos adversários
as cores que saírem no dado desde que sejam os andares superiores! O último ou os últimos se forem todos da mesma cor!... Percebes!... Agora jogas tu!...
M. Sá Lopes 94
Pssst!... Olá!
Saiu a cor azul!... É uma cor minha!... Não podes comprar,
nem podes retirar os meus andares azuis porque já têm a cor violeta a proteger!... Jogo eu!...
Azul!... Mais um andar para a minha torre!... E jogo eu!...
Laranja!... É uma cor tua!... Passa a minha vez!... Jogas tu!...
Roxo!... É uma cor minha!... Passa a tua vez!... Jogo eu!...
Roxo!... Compro um andar roxo!... Sou eu!...
Verde!... Compro um andar verde!... Eu outra vez!...
Azul!... Compro um andar azul!... Sou eu a jogar!...
Laranja!... Passou a minha vez!...
Imagina que o jogo acabava agora!... Eu tenho uma torre
com oito andares: quatro azuis, dois violetas, um roxo e um verde, e tu tens apenas uma casa com dois andares, um amarelo e um
violeta, quem ganhava?!... Eu!... Porquê!?... Porque tenho a torre
com mais andares!
Ganha o jogador que construir a torre mais elevada, mas o
jogo só acaba quando não haver mais andares à venda!... Por isso,
antes do jogo iniciar, tem que se decidir com quantos andares se
vai jogar!... E isso depende do número de jogadores e da distribuição das cores que só são seis! - Como se chama o jogo!... – Já
te disse que se chama-se a “torre do arco-íris”!...
Eu vou recordar as regras: Distribuem-se as cores em igual
número pelos jogadores! O dado é lançado à vez! Cada jogador só
compra as suas cores e uma de cada vez! Pode-se retirar cores dos
adversários desde que saiam no dado e sejam os últimos andares
M. Sá Lopes 95
Pssst!... Olá!
das torres adversárias, incluindo as cores dos próprios jogadores!
Saindo uma cor que não possa ser movida passa a vez! O jogo
acaba quando for adquirido o último andar! Ganha quem nesse
momento tiver a torre com mais andares! E boa sorte!...
- Porque é que se chama o jogo da torre do arco-íris?! Porque tem as cores do arco-íris!...
...Eu sei!... Eu sei!... Eu sei!... O arco-íris tem sete cores!...
Mas o dado só tem seis lados!... Como já disse, a cor anil fica no
céu, para quando o jogo acabar as outras cores voltarem para o
arco íris e ainda saberem onde ele é! Assim pode-se jogar à casa
do arco-íris e no fim admirar o arco-íris!...
E agora eu vou finalmente dizer quem sou!...
Eu sou o jogo da torre do arco-íris!... Mentira!... Estava a
brincar!... Também sou, mas o mais importante que eu sou é
isto... Espera só um momento!...
M. Sá Lopes 96
Pssst!... Olá!
XII
E então, já esperas-te um momento?...
Se sim continua, se não pára de novo para pensar.
Sim, pára para pensares enquanto esperas!
Nota antes de prosseguires: pára está mal escrito, porque
agora é sem acento, mas como distinguia do para?! Para de onde,
e pára de parar, percebes… É que agora escrevesse tudo igual…
são os inteligentes que de terminam o que é a língua… Como se
ela fosse uma coisa que se determinasse…
A propósito… Conhece alguém com filhos? Pergunta estúpida, claro que conhece… Mas conhece alguém que tenha dois
filhos?... Sim dois filhos?... Conhece?
E então, o que são? Dois rapazes, duas raparigas ou um
rapaz e uma rapariga?... É que agora isso não interessa… Segundo outros entendidos, que querem fazer prevalecer leis, agora não
há rapazes nem raparigas… Só há casais!... Sim casais… E não
são casais de um rapaz e uma rapariga… São daquilo que for? Se
M. Sá Lopes 97
Pssst!... Olá!
os seus filhos, ou daqueles que conhece, forem dois rapazes ou
duas raparigas são sempre um casal!... Um casal de rapaz e rapariga, um casal de meninos, ou um casal de meninas!
Não faz sentido pois não? Então porque é que se insiste em
chamar de casal a um par de homossexuais?!...
À frente…
Isto foi só um aparte.
Onde é que íamos?!
Já sei. Íamos naquela parte em que eu te pedia para parar
para pensar. Então é assim...
Pensa bem. Recorda tudo o que acabas-te de viver comigo.
Lembra-te de 3 coisas que vives-te comigo… ou seja, que vivemos juntos…
E digo, vivemos juntos porque ainda não te disse quem sou,
porque se não eu não dizia isso. Já vais perceber. Vá lá, 3 coisas a
recordar…
Já sabes quais são? Quais são as 3 coisas que te lembras da
leitura destas páginas?... Então agora aponta-as para não te
esqueceres.
Já apontas-te!? Ok! Não, deixa lá. Está registado na tua
memória, como eu… ai… ainda não posso dizer quem sou!
Não sei quais foram as coisas que tu recordas-te, mas sei as
coisas que eu te vou fazer recordar…
M. Sá Lopes 98
Pssst!... Olá!
Lembras-te quando eu era uma bola… E quando era água…
E quando era o “iri”, ou o gigante que estudava os planetas dentro de um aquário…
E quando era um pato azul com rodas!…
Não te lembras! Mas eu já fui um pato azul com rodas!
Com a exceção de que não era azul nem tinha rodas! E nem
era um pato. Era uma patagónia! Aquela terra lá do fim do mundo… Já ouviste falar?
É frio lá.
Tudo isto para te dar a volta para perceberes quem sou.
Imagina que agora não estás nada a gostar desta conversa e
quando deres por ti estás a ficar com sono. Tanto sono que vai
chegando que adormeces. E adormeces mesmo aqui, ao ler esta
palavra. Pronto. Já estás a dormir.
Agora imagina que o texto continua.
E continua a falar de um assunto que é, plim, a arte de
dobrar papel, o origami, aquela coisa japonesa. Só para o caso de
não teres adormecido.
Agora imagina que eras o maior expert do origami e dobravas papel ao ponto de criar um avião. Um avião muito perfeito
que quando o acabavas de criar ele ganhava vida e começava a
voar, e tu até podias entrar para dentro dele e viajavas até ao fundo mar. Lá no fundo encontravas um peixe que se alimentava de
origamis e comia-te o avião, e tu, com medo, acordavas…
M. Sá Lopes 99
Pssst!... Olá!
Subitamente acordavas. Neste preciso instante. E voltavas a
olhar para estas páginas exatamente aqui nesta palavra, onde eu
começo a falar de cerejas.
Cerejas, aquele fruto que se puxa e vêm sempre mais umas
atrás das outras. E tu pensas, que bom que seria comer algumas
agora, para distrair desta leitura.
E se bem acompanhaste este raciocínio adormeceste antes
do origami e acordas-te nas cerejas, ou seja, durante a conversa
do origami que foi ao fundo do mar tu estavas a dormir.
Portanto, se tu estavas a dormir nunca saberias que foste ao
fundo do mar dentro dum origami.
Estás a perceber?! Já vais perceber!
Quando chegar ao fim destas letras, é como se eu morresse,
mas tu continuas comigo, e eu viverei em ti.
Eu só vivo enquanto tu me leres, e depois eu viverei em ti,
mas não mais te guiarei desta forma.
É que, sem te aperceberes, eu sou tu. E existo porque tu
existes.
No momento que tu deixares de existir eu assim me anularei. Da mesma forma que eu não existo quando tu estás a dormir!...
Quando tu estás a dormir eu não existo! Ou se tu tiveres um
acidente, desmaiares ou fores anestesiado…
Percebes agora!
Sabes quem eu sou?!
M. Sá Lopes 100
Pssst!... Olá!
Eu sou a tua consciência!
Aquilo que tu tens de mais importante! Porque é a única
coisa que te dá a razão do ser. O que és tu sem mim?!, Sem a tua
consciência?! Ainda que existas é como se não existisses!
Enquanto dormes existes, e até sonhas… Mas se não te
recordares dos sonhos, o que trazes do teu sono?! Nada! Mas
atenção, enquanto tu dormes eu não existo em ti, mas organizome sem que tu saibas! Por isso tu dormires é importante para eu
me organizar!
Certamente já ouviste falar de pessoas que se deitaram com
um problema e acordaram com uma solução… Fui eu de noite
que me organizei. E de manhã, quando o meu dono voltou a mim
eu tinha a resposta para o problema dele.
Como poderei ter resposta para o teu. Eu que sou a tua
consciência!
Sou a tua consciência neste momento e fui sempre ao longo
destas páginas em que me leste!
Algumas vez tu sem mim terias ido ao fundo do mar num
origami?!
Mas eu levei-te lá, até chegares ao ponto de desejares ter
cerejas para comer… Ah, ah, ah… E agora, se tu não gostasses de
cerejas?!
No mundo há duas coisas importantes: o que tu és, mesmo
quando estás a dormir, e o que tu és quando estás consciente!
M. Sá Lopes 101
Pssst!... Olá!
Claro que quando estás com embriaguez ou “pedrez” também é um estado, mas as árvores também abanam todos os dias e
as pedras também existem há muitos mais anos que tu… Mas
muitos mais!… E nem por isso são mais inteligentes que tu!
O que te dá a inteligência sou eu! A tua consciência!
Que importância tem um génio que não sabe o que faz!?...
Se não sabe o que faz pode fazer o que não deve!
Por isso é que eu sou importante! Por como tu pudeste comprovar, comigo tudo é possível, mas é se não dormires!
Na tua consciência - que sou eu – pode estar tudo, mas só
enquanto tu souberes disso! Enquanto tu tiveres consciência de ti,
que é o mesmo que, enquanto tu souberes que eu existo!
A tua consciência é que te dá o domínio de ti. Durante este
percurso, eu tive domínio sobre ti! Espero que não te tenhas distraído com outras coisas… Bem, certamente também aconteceu!
Mas sempre que regressares a mim, está com controle sobre
ti. E isso é que te dá o ser!
Para saberes o que é certo e errado, o que é bom e o que é
mau, o que podes e deves e o que não podes e não deves fazer!
É comigo que tu decides isso.
Mas para isso eu tenho que estar com a máxima organização possível! Se eu confundir um par com um casal ou um para
com um “pára”, como posso ter boa organização?
Dormir… Eu preciso que tu durmas para me organizar!
M. Sá Lopes 102
Pssst!... Olá!
Enquanto tu dormes eu organizo-me. E depois tu acordas e
vives em mim, de forma organizada, consciente e inteligente!
Por isso, cuidado com as bebidas, com as drogas, com a falta de sono, enfim, comigo!...
Eu preciso que tu estejas bem para existir!
Porque eu existo em ti.
Não sei se tu já sabias disto ou não. Mas o importante é o
que tu tens a fazer a partir deste encontro comigo!
Durante este encontro, em que tu e eu estivemos juntos, fui
eu quem te dominou. Fui eu quem te disse em que pensar. Mas
agora vou-me despedir. E tu ficarás comigo sem este desdobramento. Ficarás com o controle sobre mim.
E poderás controlar ou não!
A vida corre, quer tu estejas com atenção a ela ou não! Quer
tu tenhas uma atitude consciente ou não. A vida corre sempre!
A diferença entre estares com atenção ou não é que se estiveres, tens parte do domínio dela. Se não estiveres ela domina-te!
Tu não sabias quem eu era e eu dominei-te. Levei-te ao fundo do mar e às estrelas. Mas agora já sabes quem eu sou. Já sabes
que podes ser tu a teres domínio sobre mim.
Tu podes simplesmente decidir parar aqui. Não ler mais.
Deixar as palavras que faltam por saber! E dominas!
Ou podes continuar e ler até ao fim. Saber tudo que tenho
para te dizer até à última palavra. Mas aí sou que te domino!
M. Sá Lopes 103
Pssst!... Olá!
Não faço ideia sobre qual foi a tua decisão!... Claro que gostava que me lesses até ao fim! Já falta pouco!
Mas gostava que me lesses até ao fim apenas para que ficasses com a certeza de que eu sou muito importante na tua vida.
Eu fui a tua consciência que se separou de ti para te dizer
que existe.
E agora já o sabes. Espero que nunca esqueças isso! Pois no
dia em que esqueceres a tua consciência… te perderás!
Tu não deves querer ser uma árvore ou uma pedra!
Tu tens-me! Tu és importante porque me tens!
Tens-me porque eu vou ficar contigo após esta passagem.
Vou regressar a ti! Vou voltar a ser uma parte de ti! A parte mais
importante de ti!
O que interessa o teu corpo, as tuas mãos, os teus olhos, as
tuas pernas, o teu coração… se não me tens a mim?
Quando te vires ao espelho, a imagem pode ser bela, atraente… Mas o mais importante é o que está para lá daquilo que vês!
O que vês quando fechas os olhos! O que sentes e o que sabes! O
que sabes que sentes!
O que tens consciência do que és!
Pára de ler!...
Esta é a última frase do texto: “o que tens consciência do
que és!”
M. Sá Lopes 104
Pssst!... Olá!
Esta parte agora já está fora do livro. Já é aquela parte em
que páras para pensar (olha aqui outra vez o “paras”)… Dizia,
páras para pensar no que acabas-te de ler!
Já não faz parte do livro. Ainda estás com ele aberto, mas já
só pensas naquilo que leste. E enquanto isso vais fechando-o, ou
relendo a última página.
Só para te dizer que eu estou a despedir-me de ti. Estou a
regressar à minha natureza. Ao teu interior. Às vezes tão profundo que nem tens conhecimento da minha existência.
Espero que agora que me conheceste tenhas mais atenção
em mim! Que saibas que eu existo em ti ainda que não saibas da
minha existência! Se chegas-te aqui certamente alguma coisa
ficará…
Já quase não estou aqui!
Aquilo que eu mais desejo para ti é o mesmo que desejo
para mim: que sejas muito feliz e me uses para confirmar isso!
Porque se me usares, e estiveres feliz, será uma felicidade consciente. Real. Apenas e só, tão excecionalmente humana!
Só os humanos têm consciência! Só os humanos sabem o
que são! Só tu, comigo sabes o que és!
O que tens consciência do que és!
M. Sá Lopes 105
Pssst!... Olá!
M. Sá Lopes 106
Pssst!... Olá!
Pssst!... Olá!
M. Sá Lopes
Janeiro de 2012
[email protected]
M. Sá Lopes 107