4.:Layout 1 - Criança Esperança

Transcrição

4.:Layout 1 - Criança Esperança
4.:Layout 1 10/4/10 7:11 PM Page 42
Associação Projeto Providência
Belo Horizonte, Minas Gerais
Direito
de brincar
A pequena Maria Luiza não é apenas uma criança sorridente e ativa.
Ela representa a vitória de uma família humilde, com um passado
sofrido. Filha mais nova de uma ex-moradora de rua, aproveita todas as
oportunidades que a vida, pela primeira vez, oferece a um membro da
sua família. A menina, que só aceita largar seus desenhos para posar
para fotos por alguns instantes, passa as tardes no Projeto Providência,
em Belo Horizonte, onde tem aulas de música, artes manuais, dança e
reforço escolar. A mãe dela, Adriana Martins, resume a situação: “Ela é
a única de nós todos que conheceu a felicidade desde o berço”.
Para muitas crianças, moradoras de comunidades pobres, com altos
índices de violência e baixos indicadores de desenvolvimento humano,
a participação em projetos que estimulam o talento e reforçam a autoestima é uma porta aberta para a transformação pessoal. Maria Luiza
vive com a família em Vila Cafezal, no Aglomerado da Serra, periferia de
Belo Horizonte. “Aglomerado” é como se conhece a maior concentração
de favelas do estado de Minas Gerais, onde vivem aproximadamente
60 mil pessoas.
“Sou uma ex-menina de rua, me separei da minha mãe muito nova.
Quando fui abandonada, tinha só 9 anos e nove irmãos mais novos. Fiz
muita coisa errada na vida. Conheci o Projeto Providência quando minha
filha mais velha, Natália, hoje com 12 anos, tinha 4, a mesma idade da
Maria Luiza. Eu estava tendo problemas com o conselho tutelar e tive
que colocá-la no projeto. Vejo hoje que essa decisão foi o que salvou a
mim e a meus quatro filhos”, conta Adriana.
Natália, a mais velha, era uma criança calada e estava muito abalada
emocionalmente ao chegar ao projeto. “Hoje sonha em ser médica e o
4 anos
reforço escolar a ajuda muito”, diz Adriana, que considera o Providência
um “porto seguro”. Enquanto a hora dela não chega, pensa em fazer o
curso de eletricista, no próprio projeto, para ajudar no sustento da
família.
Maria Luiza
Martins
4.:Layout 1 10/4/10 7:11 PM Page 43
4.:Layout 1 10/4/10 7:11 PM Page 44
A maioria das crianças atendidas pelo projeto não tem outro espaço para brincar, e 25% das famílias são chefiadas por mulheres sozinhas
O padre
conta também com o apoio de órgãos públicos. Ele
Maria Luiza e Natália são duas das cerca de 3 mil crian-
ainda recebe contribuições individuais de quase três
ças e adolescentes de 3 a 18 anos atendidas pelo Projeto
mil moradores da capital. Famoso por suas iniciativas
Providência. As três unidades, Fazendinha, Taquaril e Vila
ousadas, o italiano determinou à sua congregação, na
Maria, todas na capital, são cercadas por comunidades
Itália, que fizesse uma imagem morena da padroeira,
extremamente vulneráveis, marcadas pela pobreza e
originalmente loira, para que a população da região
violência. É para essa população que a instituição
pudesse se identificar com ela e com o bebê que carrega
oferece cultura, educação e cursos profissionalizantes.
em seus braços.
Seu fundador, o padre italiano Mário Pozzoli, 79 anos,
Segue a história, contada por ele mesmo: “Em 1988,
tem como inspiração a convivência com essa gente toda.
quando cheguei a Belo Horizonte, me pediram para
“Essas crianças estão aqui porque querem. Não é
ajudar na paróquia da Favela do Caixote, na Vila Maria.
escola, não é obrigação, mas, mesmo assim, elas acordam
O lugar era conhecido assim porque as pessoas moravam
às 6 horas, enfrentam frio e chuva para chegar aqui. Eu
em madeirites. Eu não tinha dinheiro, não conhecia
choro todos os dias com as histórias que escuto desses
ninguém e não tinha um espaço para trabalhar. Quando
meninos. Há pouco tempo, um garotinho de 4 anos
perguntei aos meus superiores o que eu poderia fazer, me
puxou a minha perna e me pediu que rezasse pela mãe
disseram: “dê a essas crianças comida, ajuda na escola
dele, que vivia na rua, bebendo”, conta padre Mário.
e oportunidade para brincar”. Eu falei que assumiria os
Segundo ele, mais de 25% das famílias atendidas são
adolescentes, mas, um ano depois, tive que assumir
chefiadas por mulheres sozinhas. As famílias vivem em
também as crianças. E estou aqui até hoje. Na época, só
casas de cômodo único e as crianças não têm como
pedi uma coisa à Itália: que me desse uma imagem de
exercitar um dos seus maiores direitos: brincar. Para
Nossa Senhora da Divina Providência para ser a nossa
completar, a rua em que vivem é violenta. No projeto,
padroeira. Só que a Nossa Senhora tem um rosto
socializam-se e fazem amizades que ficam para a vida
redondo, pele clara e cabelos louros. O Menino Jesus
toda. “Quando estou cansado, é a gritaria da garotada
também. Desse jeito não queria. Então tirei fotografias
que ajuda a me reerguer”, conta o religioso, que vive há
das crianças e adolescentes de Vila Maria e mandei para
50 anos no Brasil.
lá. Assim, consegui uma imagem mais condizente com
Padre Mário mantém o Providência por meio de
esta realidade: a de uma Nossa Senhora de cabelos
parcerias com instituições nacionais e internacionais e
escuros, com o bebê moreninho”, lembra ele, sorrindo.
44
4.:Layout 1 10/4/10 7:12 PM Page 45
Atendimento integral
No Projeto Providência, os alunos recebem atendimento odontológico e praticam atividades de acordo com
sua faixa etária. Dos 3 aos 6 anos, as crianças ocupam a brinquedoteca e têm aulas de educação Infantil. Dos 6
aos 14, recebem apoio pedagógico e participam de oficina de trabalhos manuais e de horticultura. Dos 14
aos 16, os adolescentes fazem oficinas de educação pelo trabalho e, dos 16 aos 18, têm aulas de informática
e de formação socioprofissional – podem escolher entre arte culinária, eletricidade, corte e costura e arte
em madeira.
“Perdi minha mulher de câncer em 2000 e me vi sozinho com cinco crianças. Tive que passar meu trabalho
para o turno noturno. Se não fosse o Providência, não sei o que seria de nós. Com meus filhos na rua, seria muito
mais difícil. Além de gostar daqui, há os cursos profissionalizantes, que encaminham os meninos”, diz o porteiro
Hélio Souza Filho, 49.
Seu filho Rhudson entrou no Providência aos 9 anos. Hoje, às vésperas de completar 16, faz o curso de corte e
costura e sonha em ser estilista. “Acho muito legal costurar, mas aqui tem muitas outras coisas de que gosto,
como as aulas de computação e a comida, que é deliciosa”, diz o rapaz.
Além de certificar-se de que a alimentação dos meninos e das meninas está sempre balanceada e saborosa,
padre Mário preocupa-se em incentivar, desde muito cedo, o respeito pela terra. “Nossa intenção é mostrar a
beleza e a solidariedade envolvidas no processo do cultivo. Não vendemos nada. Você não imagina a felicidade
das crianças, ao levarem para casa uma ou duas folhas da alface que elas mesmas produziram”.
45
CONTEXTO
4.:Layout 1 10/7/10 3:17 PM Page 46
1989
ONU aprova Convenção
Internacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente
Campanha Criança Esperança
divulga ações básicas de saúde;
os porta-vozes são Xuxa e Os Trapalhões
As duas principais marcas de 1989 são a
aprovação da Convenção dos Direitos da
Criança e do Adolescente (Convention on the
Rights of the Child), no âmbito internacional,
e as intensas articulações para a aprovação,
no país, do Estatuto da Criança e do Adolescente,
que viria a acontecer no ano seguinte.
A Convenção dos Direitos da Criança e
do Adolescente, aprovada por unanimidade,
em 20 de novembro, na Assembleia Geral da
ONU, é um documento que, além de proteger
a infância, impõe sanções aos países-membros
que descumprem as suas determinações. Em
outras palavras, pela primeira vez, o mundo
tem um instrumento legal, no direito internacional, que protege suas crianças e seus adolescentes. Um ano depois, a Convenção foi
oficialmente considerada lei internacional.
O documento hoje é ratificado por 191 países.
No Brasil, a violenta realidade vivenciada,
principalmente, por meninos e meninas que
viviam nas ruas, seguia como ícone de uma
população que, mobilizada, clamava por
seus direitos e pedia mudanças. Naquele
ano, integrantes do Movimento Nacional dos
Meninos e Meninas de Rua realizaram seu segundo encontro nacional, ocupando o plenário do Congresso Nacional e promulgando,
simbolicamente, o Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Ganhou força no país a luta pela inclusão
dos direitos da criança e do adolescente em
constituições estaduais e leis orgânicas municipais – a exemplo do que havia ocorrido,
anos antes, em relação à Constituição Federal.
dade tinham quase uma relação de causa e
efeito.
Além da violência contra a infância pobre,
em 1989 havia 35 milhões de analfabetos
no Brasil. Metade das crianças era reprovada
já no primeiro ano do Ensino Fundamental.
Entre os trabalhadores, 70% recebiam até
dois salários mínimos por mês.
Extermínio
Vitória na saúde
Em Vitória (ES), segundo o livro “A Guerra
dos Meninos: assassinatos de menores no Brasil”, a Organização Pena de Morte eliminou,
entre 1989 e 1990, de 17 a 21 crianças e jovens
moradores das ruas. No Rio, a preocupação
era “limpar” os cartões postais: crianças e
adolescentes que aparentavam viver nas ruas
eram levados pela polícia militar ao Juizado
de Menores, apesar de não estarem cometendo nenhuma infração na hora da prisão.
Há registro de 23 crianças terem sido presas
em apenas um dia de “arrastão” – apenas
nove foram encontradas depois.
No Rio, segundo a mesma fonte, essa população era vítima dos chamados “Anjos da Guarda”, lutadores de artes marciais da classe média que se diziam defensores da sociedade. No
inconsciente coletivo, pobreza e criminali-
46
Na saúde, havia o que comemorar: aquele
foi o ano do registro do último caso de poliomielite no Brasil. O Zé Gotinha vislumbrou,
ali, a iminente vitória sobre a paralisia infantil.
No mesmo ano, a Organização Mundial de
Saúde lançou a Declaração Conjunta sobre o
Papel dos Serviços de Saúde e Maternidades.
Em 1989, a campanha Criança Esperança
foi lançada no Fantástico, no dia 8 de outubro,
durante uma reportagem no interior de
Minas Gerais.Ao longo do mês, o “Domingão do
Faustão” e “Os Trapalhões” divulgaram formas de os telespectadores fazerem pequenas
doações em dinheiro, reafirmando, dessa forma,
seu compromisso com a causa da infância. No
“Xou da Xuxa”, foram apresentados documentários curtos sobre ações básicas de saúde.
4.:Layout 1 10/4/10 7:12 PM Page 47
Foto: Almir Bindilatti
Antônio Carlos Gomes da Costa
Oficial de projetos do UNICEF no Brasil
de 1987 a 1991
“O Crianca Esperança, além de tornar-se um exemplo, para o Brasil e para o mundo, de mobilização
e de pedagogia social nos campos da promoção, atendimento e defesa dos direitos das crianças e
adolescentes em estado de necessidade, vem tornando-se também um fecundo espaço de inovação
pedagógica. De fato, os Espaços Criança Esperança estão a cada dia se transformando em centros de
referência de um novo jeito de ver, fazer, sentir e cuidar da educação das nossas novas gerações de
brasileiros (crianças, adolescentes e jovens) como pessoas, cidadãos e profissionais.
Como foi possível fazer isso?
Por um imenso esforço de transformação das Quatro Aprendizagens da UNESCO em competências,
das competências em habilidades, das habilidades em capacidades e, destas, em comportamentos
observáveis no chão da sala de aula e dos demais espaços educativos. Estes avanços, embora ainda não
tenham chamado a atenção do nosso e de outros países, estão destinados a se transformarem, da
exceção de hoje, na regra feliz de amanhã.
Quem viver verá!”
47