O Futuro da NATO
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O Futuro da NATO
Outono | Inverno 2010 53 05 Transatlantic Trends 2010 Crise afecta 78 por cento dos portugueses Pentágono Preocupado com alterações climáticas O Futuro da NATO António de Almeida Santos Carlos Gaspar Helena Carreiras José Medeiros Ferreira Embaixador americano na NATO quer mais cooperação com a UE Fundação Luso‑Americana Conselho Directivo: Teodora Cardoso (Presidente) Embaixador dos Estados Unidos da América Jorge Figueiredo Dias Jorge Torgal Luís Braga da Cruz Luís Valente de Oliveira Michael de Mello Vasco Pereira da Costa Vasco Graça Moura “Belo céu azul [aqui em Nova Iorque] que me leva a pensar que nós estamos na mesma latitude de Lisboa, o que tenho dificuldade em imaginar.” Albert Camus, Cahier V (1946) Conselho Executivo: Maria de Lurdes Rodrigues (Presidente) Charles Allen Buchanan, Jr Mário Mesquita Secretário‑Geral: Fernando Durão DIRECTORes: Fátima Fonseca, Paulo Zagalo e Melo, Miguel Vaz subdIRECTORes: António Vicente, Rui Vallêra Responsável pelos Serviços Financeiros: Maria Fernanda David Responsável pelos Serviços Administrativos: Luiza Gomes Assessores: João Silvério, Paula Vicente Rua do Sacramento à Lapa, 21 1249‑090 Lisboa | Portugal Tel.: (+351) 21 393 5800 • Fax: (+351) 21 396 3358 Email: [email protected] • www.flad.pt Paralelo DIRECTORa: Maria de Lurdes Rodrigues EDITORA: Sara Pina coordenadora: Paula Vicente Colaboram neste número: Álvaro Rosendo, António de Almeida Santos, Ana Marques Gastão, António Vicente, Carla Baptista, Carla Martins, Carlos Gaspar, Clara Pinto Caldeira, Filipa Melo, Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins, Helena Carreiras, Inês Sousa, Isabel Marques da Silva, Joana Azevedo Viana, Joana Carvalho Fernandes, Joana Gorjão Henriques, João de Vallera, João Silvério, José Loureiro dos Santos, José Manuel Ribeiro, José Medeiros Ferreira, Kathleen Gomes, Manuel Anta, Marco Leitão Silva, Maria de Lurdes Rodrigues, Michael Werz, Patrícia Fonseca, Paula Vicente, Paulo Pena, Pedro Caldeira Rodrigues, Rui Boavista Marques, Rui Ochôa, Rui Zink, Sara Antónia Matos, Sara Pina, Simão Martins, Tiago Moreira de Sá, Vítor Gonçalves Design: José Brandão | Susana Brito [Atelier B2] Revisão: António Martins Impressão: www.textype.pt tiragem: 3000 exemplares NIF: 501 526 307 Nº de Registo na ERC: 125 Periodicidade: semestral 563 [email protected] Depósito legal: 269 114/07 ISSN 1646‑883X © Copyright: Fundação Luso‑Americana para o Desenvolvimento Todos os direitos reservados 2 Caro leitor N este número especial NATO é analisado o futuro da organi zação por vários articulistas como António de Almeida S antos, Carlos Gaspar, Helena Carreiras e José Medeiros Ferreira e discutido em entrevista com o embaixador americano na NATO, Ivo H. Daalder, que defende uma maior cooperação entre a Aliança Atlântica e a União Europeia. Entrevistado, também, o novo embaixador americano em Lisboa, Allan J. Katz. A sondagem anual Transatlantic Trends, apoiada em Portugal pela FLAD, revelou este ano o que a opinião pública americana e a europeia pensam, entre outros assuntos, sobre a intervenção militar no Afeganistão (mais apoiada por americanos do que por europeus), a aprovação do Presidente Obama (mais bem-visto deste lado do Atlântico), as consequências da crise económica (78 por cento dos portugueses sentem-se directamente afecta dos) e a cada vez menos desejada adesão da Turquia à UE. A nova presidente do Conselho Executivo da Fundação Luso-Americana, Maria de Lurdes Rodrigues, comenta estes resultados no Editorial, “O sonho europeu”. Desde a conversa com o neto do Presidente Roosevelt, na ilha Terceira, até ao novo Museu do Côa, esta nova edição da Paralelo divulga programas, bolsas e acontecimentos de incentivo ao desenvolvimento e com relevo nas relações transatlânticas. Sara Pina Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Outono | Inverno índice 53 05 Transatlantic Trends 2010 Crise afecta 78 por cento dos portugueses Pentágono Preocupado com alterações climáticas OFERTA COMPLIMENTARY António de Almeida Santos Carlos Gaspar capa Editorial de Maria de Lurdes Rodrigues COPY O Futuro da NATO DO EDITOR 05 | 2010 Especial NATO O sonho europeu Helena Carreiras José Medeiros Ferreira Embaixador americano na NATO quer mais cooperação com a UE [POLÍTICA] 21-23 | Eleições americanas A hora do chá 24-25 | Transatlantic Trends 2010 Inquérito à opinião pública europeia e americana por Vítor Gonçalves por Carla Baptista Obama: perder as eleições, ganhar a História por Kathleen Gomes “77 por cento de americanos acreditam que o poder militar é mais importante que o poder económico” 30-45 | Especial NATO 30 | Novas alianças para combater novas ameaças Entrevista a Ivo H. Daalder, embaixador americano na NATO por Sara Pina e Simão Martins 34 | As parcerias internacionais da Aliança Atlântica por Carlos Gaspar 38 | Do tratado aos conceitos por José Medeiros Ferreira 40 | Presidentes americanos em Portugal por Carla Baptista 44 | A NATO e a dimensão de géneros nos conflitos armados por Helena Carreiras 46 | A NATO, que futuro? [POLÍTICA] 48-51 | “Somos uma espécie de primos” Entrevista a Allan J. Katz por Sara Pina e Simão Martins por António de Almeida Santos contracapa Silverstein Properties, Inc. www.wtc.com Ground Zero Project Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 3 BREVES Faça-se justiça É um projecto inovador em Portugal, base ado num modelo americano. A Fundação Luso-Americana associou-se a esta iniciativa que conta com o Alto Patrocínio da Presidência da República Portuguesa e é liderada pelo Fórum Estudante, em parceria com o Ministério da Educação, a Universidade Católica Portuguesa, a Sociedade Abreu Advogados, a Escola Superior de Educação Paula Frassinetti e a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Este programa de educação cívica preten de reunir professores e alunos numa expe riência que os levará pelos meandros da justiça, do direito e das decisões legais, sensibilizando os jovens para questões que se prendem, por exemplo, com o funcio namento dos tribunais, a aplicação das penas ou o sistema jurídico. Inspirado num modelo americano a fun cionar desde 1972, o “Faça-se Justiça” é constituído por jogos de simulação, com julgamentos e outros casos práticos. O programa “Faça-se Justiça” entrou em vigor já no presente ano lectivo de 2010‑2011 e tem granjeado o interesse de muitas escolas. Actualmente, participam no projecto 82 escolas secundárias de várias zonas do País, envolvendo 112 pro fessores e cerca de quatro mil alunos. Com a duração inicial de três anos e sujeito a uma avaliação anual, está pre visto incluir este programa no projecto educativo das escolas de todo o país. projectos de promoção do ensino de por tuguês a vários níveis. Os organizadores atribuíram ainda um conjunto de pré mios às pessoas e instituições que nos últimos anos se têm destacado neste domínio. A Fundação Luso-Americana foi uma das agraciadas. Promovido em 2010 pelo Centro Português de Fundações (Portugal), Fundação Roberto Marinho e GIFE (Brasil), esta edição do congresso, que reúne anualmente várias fundações lusófonas com países organiza dores rotativos, decorreu em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde se discutiu o papel do sector no desenvolvimento social. Maria de Lurdes Rodrigues, presidente do Conselho Executivo da FLAD, interveio na mesa subordinada ao tema “A relação entre fundações, governo e comunidade no investimento social”. Paula Vicente ‘ O programa “Faça-se Justiça” entrou em vigor já no presente ano lectivo de 2010‑2011 e tem granjeado o interesse de muitas escolas. ’ Celebrar a língua portuguesa A Universidade dos Açores e a Lesley University, organizaram no final de Agosto de 2010 a “Celebração da Língua Portuguesa na América do Norte”, que reuniu em Fall River um alargado con junto de professores e líderes associativos interessados em questões educativas. O evento assinalou também o centenário da primeira escola a oferecer o ensino integrado de língua portuguesa nos EUA, a Escola do Espírito Santo. Houve opor tunidade de discutir vários assuntos rela cionados com a temática e propor 4 AV VII Encontro de Fundações Lusófonas A FLAD esteve presente no VII Encontro de Fundações da CPLP, realizado entre os dias 12 e 16 de Setembro, no Brasil. CPC Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 editorial O sonho europeu maria de lurdes rodrigues Os resultados da edição de 2010 do inquérito Transatlantic Trends são esclarecedores tanto sobre a vitalidade do sonho europeu, como sobre os dilemas da construção e alargamento da União. Em particular, os dados parecem indicar que a Turquia está a abandonar o seu sonho europeu. E nós? A avaliar pela opinião dos cidadãos inquiridos, cresce o número de europeus que recusam a pos sibilidade de adesão da Turquia à União Europeia (UE) e diminui o número de turcos que se iden tificam como europeus. Pelo menos na opinião pública, Europa e Turquia estão hoje mais afastadas do que no ínicio do processo de adesão. A adesão da Turquia à UE O problema da pressão sobre os limites nunca foi pacífi ca, e menos ainda externos da UE está a ser resolvido fácil. Desde sem por erosão e desgaste. pre que muitos discordaram da possibilidade de um alargamento das fronteiras da UE que incluísse territórios pre dominantemente muçulmanos. Outros, pelo con trário, viram nesse alargamento a oportunidade para transcender velhas clivagens civilizacionais, pois, como sublinha Amin Maalouf1, o processo de construção da UE representa a primeira tenta tiva bem‑sucedida de progressiva construção de uma “pátria ética” a partir das numerosas “pátrias étnicas”, de uma unidade que transcende “a diver sidade das culturas sem nunca procurar aboli‑las”. Ou, para citar Tony Judt2, no mundo da globali zação “o rompimento de fronteiras e a criação de comunidades é algo que os europeus estão a fazer melhor do que ninguém”. Na prática, porém, a adesão da Turquia encontra ‑se hoje adormecida. O problema da pressão sobre os limites externos da UE está a ser resol vido por erosão e desgaste, correndo‑se o sério risco de se alienar, nesse processo, o poder de atracção da União que constitui um dos pilares do sonho – e do exemplo – europeu. Entretanto, a crise económica com que se deba tem os países da UE não apenas retirou da agen da política imediata questões como a da adesão ‘ ’ Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 da Turquia, como constitui um teste à solidez e à capacidade de sobrevivência e de atracção da União. No inquérito já citado, tanto os cidadãos norte‑americanos como os europeus partilham a percepção de que o futuro da UE requer mais UE, mais organização comum das nossas vidas políti cas, económicas e sociais. A crise económica, sendo uma ameaça real à União, constitui‑se assim, simultaneamente, em oportunidade para o refor ço da sua construção. Esperemos que, pelo menos no domínio do aprofundamento da construção europeia, prevaleça o sentido de decisão sobre as hesitações e as não decisões que marcam o enfren tamento das pressões para o seu alargamento. No momento em que se prepara a Cimeira da Nato, em Lisboa, estas questões ganham nova pertinência. Pois é no quadro das convergências de valores transatlânticos que é necessário res ponder aos desafios da construção da unidade da Europa. Post scriptum. A FLAD, a cujo Conselho Executivo presido desde Maio, tem um passado de inter venção e de apoio ao desenvolvimento econó mico, científico e tecnológico do País, em geral, e dos Açores, em particular. São inúmeros os projectos em curso e diversos os parceiros da FLAD: promoção da língua e da cultura portu guesa nas universidades e na sociedade norte ‑americana, o apoio a projectos e unidades de investigação científica e tecnológica, a atribuição de bolsas de estudo e de estágios, o apoio à par ticipação e organização de congressos interna cionais, a promoção de iniciativas para o desenvolvimento do conhecimento e das políti cas públicas em diferentes sectores, bem como o apoio às artes e à cultura. Comum a todas estas áreas de intervenção é a cooperação entre Portugal e os EUA, tendo a FLAD contribuído para a cons trução de uma vasta rede de colaborações entre instituições dos dois países. Importa, hoje, dar continuidade a um percurso que, ao longo dos últimos vinte e cinco anos, acompanhou e par ticipou no progresso do País. 1. Amin Maalouf, Um Mundo sem Regras, Lisboa. Difel, 2010, p. 276. 2. Tony Judt, O Século XX Esquecido, Lisboa, Edições 70, 2010, p. 413. 5 6 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 REVISTA DE IMPRENSA Uma pequena mudança A sala de aula do século XXI “Às quatro e meia da tarde de segunda‑feira, 1 de Fevereiro de 1960, quatro estudantes universitários sentaram-se ao bal cão da cafetaria do Woolworth’s, na baixa de Greensboro, na Carolina do Norte. Eram caloiros da North Carolina A. & T., uma universidade para negros que ficava a cerca de quilómetro e meio de distância. ‘Quero um café, se faz favor’, disse um dos quatro, Ezell Blair, à empregada. ‘Aqui não servimos negros’, respondeu ela. O balcão da cafetaria do Woolworth’s era comprido, em forma de L, tinha espaço para sessenta e seis pessoas e tinha um snack bar sem lugares sentados numa das extremidades. Os assentos eram para brancos. O snack bar era para pretos. Uma outra empre gada, uma mulher negra que estava de serviço na bancada de cubas de banho‑maria aproximou‑se dos estudantes e tentou convencê‑los a irem‑se embora. ‘Estão a ser estúpidos, seus igno rantes!’ disse ela. Os estudantes não se mexeram. Finalmente, acabaram por sair por uma porta lateral. Na rua, formara‑se um pequeno ajuntamento no qual se incluía um fotógrafo do Record de Greensboro. ‘Amanhã volto com a universidade em peso’, disse um dos estudantes. Na manhã seguinte, a manifestação de protesto já contava com a participação de vinte e sete homens e quatro mulheres, na sua maioria da mesma residência universitária que os quatro estudan tes iniciais. Os homens estavam de fato e gravata. Os estudantes haviam trazido o seu trabalho de casa e sentaram‑se ao balcão a estudar. Na quarta‑feira, alunos da escola secundária para ‘negros’ de Greensboro, Dudley High, juntaram‑se a eles, aumentando o número de contestatários para oitenta. Na quinta‑feira, já eram trezentos, incluindo três mulheres brancas do campus de Greensboro da Universidade da Carolina do Norte. No sábado, o número de manifestantes já era de seiscentos. As pessoas espalharam‑se pela rua. Adolescentes brancos acenavam com bandeiras dos confede rados. Alguém atirou uma bombinha. Ao meio‑dia, chegou a equipa de futebol do A. & T College. ‘Aqui vem a equipa de demo lição’, gritou um dos estudantes brancos. Na segunda‑feira seguinte, as manifestações de protesto haviam‑se estendido a Winston‑Salem, a 40 quilómetros de distância, e a Durham, a 80 quilómetros. No dia seguinte, juntaram‑se à mani festação estudantes do Fayetteville State Teachers College e do Johnson C. Smith College, em Charlotte, seguindo‑se na quarta ‑feira estudantes do St. Augustine’s College e da Shaw University, em Raleigh. Na quinta e na sexta‑feira, o movimento de protesto atravessou as fronteiras do estado, surgindo em Hampton, em Portsmouth, na Virgínia, em Rock Hill, na Carolina do Sul, e em Chattanooga, no Tennessee. No final do mês, havia manifestações em todo o Sul, que se estendiam para oeste até ao Texas. ‘Perguntei a todos os estudantes com que me cruzei como tinha sido o primeiro dia das manifestações no seu campus’, escreveu Michael Walzer, teórico da política, na revista Dissent. ‘A resposta foi quase sempre a mesma: «Foi como uma febre. Toda a gente queria par ticipar»’. O número de participantes atingiu os sete mil. Milhares de estudantes foram detidos e muitos mais radicalizaram‑se. Estes acontecimentos do princípio dos anos sessenta transformaram‑se numa guerra pelos direitos civis que envolveu o Sul durante o resto da década – e tudo isto aconteceu sem correio electrónico, sem mensagens de texto, sem Facebook e sem Twitter.” [ Malcolm Gladwell, 4 de Outubro de 2010 ] “As salas de aula americanas estão ultrapassadas. Uma das principais razões prende‑se com questões de dinheiro. Os grandes edifícios comerciais são geralmente construídos com paredes exteriores resis tentes que permitem que o interior seja modificado à vontade. Isso é caro, portanto as escolas são construídas com pilares e paredes. As grandes decisões são da competência das direcções escolares regionais, entidades bem conhecidas pela sua resistência à mudan ça. Isto não significa que alguns distritos não tenham financiado projectos de construção extravagantes; o investimento recente de 578 milhões de dólares na construção de uma escola oficial em Los Angeles, um distrito escolar praticamente falido, é um exemplo que nos deixa de boca aberta. Outra razão é que ninguém conseguiu ainda provar que melhores espaços significam uma melhor educação. Por mais entusiastica mente que Cheryl Hines anuncie os resultados dos exames depois do seu programa School Pride, não há nenhuns trabalhos de investigação sólidos que provem que o aproveitamento dos alunos seja afectado pelo meio físico que os rodeia. Muitas das escolas do nosso país que têm um melhor desempenho fazem o seu trabalho em rectângulos cheios de mesas. As salas de aula na Coreia do Sul, que nos está a bater à grande nas classificações internacionais, são semelhantes às nossas, só que têm mais crianças lá dentro.” [ Linda Perlstein,20 de Outubro de 2010 ] Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 A tirania das metáforas “Há três mitos históricos que têm levado os principais presidentes americanos a cometer loucuras há quase um século. Será Obama suficientemente sensato para evitar a mesma sorte? Há sem dúvida muitos aspectos da conduta dos Estados Unidos no mundo no século XX que merecem ser louvados: a vitória na II Guerra Mundial, a Doutrina Truman, o Plano Marshall, a diplo macia de JFK durante a crise dos mísseis cubana, os acordos de paz de Camp David, o Tratado do Canal do Panamá, a abertura em relação à China promovida por Richard Nixon, e a distensão em relação à União Soviética, para referir apenas os casos mais óbvios. Mas uma visão mais completa teria de incluir os seus muitos tro peções. Três ilusões de longa data – uma fé desavisada no univer salismo, ou no poder da América para transformar o mundo substituindo a comunidade de países hostis onde reina a ilegalida de por Estados esclarecidos dedicados à cooperação pacífica; a neces sidade de rejeitar o apaziguamento de todos os adversários ou condenar sugestões de conversações conciliatórias com os mesmos como uma atitude insensata de fraqueza; e a crença na eficácia infalível do poderio militar como meio de travar adversários, qual quer que seja a sua capacidade para ameaçar os Estados Unidos – têm praticamente impossibilitado os americanos de pensar novamente em formas mais produtivas de resolver os seus problemas externos. Chamemos‑lhe a tirania das metáforas: apesar de todas as suas pre tensões de moldar a história, os presidentes americanos são mais frequentemente seus prisioneiros.” [ Robert Dallek, Novembro de 2010 ] * Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 7 POLÍTICA Curtis Roosevelt, a obsessão de um legado O II Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt, em Angra do Heroísmo e na Praia da Vitória, ilha Terceira, registou uma presença emblemática. Curtis Roosevelt, neto do antigo Presidente dos Estados Unidos, presidiu à Comissão de Honra da iniciativa organizada pela Fundação Luso‑Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e pelo Governo Regional dos Açores. rui ochôa Por Pedro Caldeira Rodrigues* Curtis Roosevelt cresceu à sombra dos avós Franklin e Eleanor. 8 A presença de Curtis Roosevelt nos Açores, pela primeira vez, fez todo o sentido. Uma visita que decorreu noventa e dois anos após a passagem de seu avô e futuro Presidente dos EUA por estas ilhas, no final da I Guerra Mundial, e que então deixaram boas memórias a Franklin Delano Roosevelt (FDR, como ficou conhecido). Durante uma conferência de imprensa em 19 de Fevereiro de 1945, menos de dois meses antes da sua morte, FDR ainda se recordava com nostalgia dos Açores. Revelou então um desejo que sabia de difícil con cretização: “Arranjar um edifício do tipo do Empire State Building, de Al Smith, ape nas para os arquivos (das Nações Unidas) e respectivo pessoal e, em seguida, fazer com que muitas das conferências se reali zem numa das ilhas dos Açores. Já lá estive uma vez. Em frente da minha casa cresciam, lado a lado, palmeiras e abetos. Têm um clima maravilhoso.”1 O neto do 32.º Presidente dos EUA tam bém resguarda como um tesouro a memó ria da infância e adolescência que partilhou com o único homem que por quatro vezes consecutivas, entre 4 de Março de 1933 até à sua morte, em 12 de Abril de 1945, ocupou o Gabinete Oval para liderar os Estados Unidos no período mais contur bado, e perigoso, do século XX. Curtis Roosevelt (Curtis R.), hoje com 80 anos, assume que esses tempos o marcaram de forma decisiva. Sabe que foi educado em berço de ouro, outro factor determi nante para a formação da sua personalida de. Cresceu “demasiado perto do Sol” e “à sombra dos avós Franklin e Eleanor”, afinal o título do livro que publicou em finais de 2008, uma espécie de catarse, de redenção Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 rui ochôa POLÍTICA (Too Close to the Sun: Growing Up in the Shadow of my Grandparents, Franklin and Eleanor). Mas terá Curtis R. transportado esse pesa do mas confortável fardo durante toda a sua vida? Terão sido esses anos iniciáticos decisivos para lhe impor um rumo ao qual nunca pôde escapar? O “fantasma” de FDR, afinal, perseguiu‑o para sempre? ‘ A “observação das atitudes” é a “chave” para obter resultados políticos desejáveis. ’ Em grande medida, sim. Sabe que, desde então, o anonimato deixou de existir. Optou com a sua quarta mulher Marina, de origem belga, por se fixar na Europa, numa pacata região do Sul da França, não longe de Avinhão. Tornou‑se então um paladino da memó ria familiar, do estilo político e da perso nalidade do seu avô, sem que tivesse perdido o sentido da crítica. Considera que os actuais políticos “perderam o coração” e denuncia sem pejo a máquina do marke ting, da publicidade, os construtores de imagens, de perfis, de personalidades, que se assemelham a robots quase perfeitos para acumular votos e ocupar a ribalta do poder. E Curtis R. pode mesmo prescindir de notar que os conceitos de opinião pública, de propaganda, de publicidade, são afinal um produto dos Estados Unidos, que se come çaram a teorizar e a aperfeiçoar ainda antes da chegada de seu avô à Casa Branca. Exemplo de força e determinação Buzzy, assim lhe chamavam em pequeno, nasceu em 19 de Abril de 1930, seis meses após o Big Crash em Outubro de 1929 que antecedeu a Grande Depressão e originou a maior crise económica de um sistema que até então respirava confiança. Um contexto que motivou o início de uma arrojada política social com o New Deal, patrocinada por seu avô e onde ficou con sagrado o direito à Segurança Social. Aos três anos, após o divórcio da mãe Anna Roosevelt, Curtis e sua irmã Eleanor (Sistie), acompanham‑na pela primeira vez até à Casa Branca, onde se recolheu na sombra protectora do Presidente‑pai. Em tempos de crise, frequentou a escola pública. Louro, fotogénico, era o “menino bonito” da Casa Branca e alvo frequente Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Da esquerda para a direita: Curtis Roosevelt e a mulher com João Silvério (Curador/FLAD) e Mário Mesquita (Administrador/FLAD). da curiosidade mediática. Um príncipe sem trono, que aos oito anos abandona a gran de mansão de Washington para acompa nhar a mãe no seu segundo casamento. Voltam a instalar‑se na Casa Branca poucos anos depois, para acompanhar um FDR já muito debilitado. O Presidente, que tinha participado em Fevereiro na decisiva Cimeira de Ialta, Sudeste da Crimeia, morre em 12 de Abril de 1945. Não assistirá à rendição da Alemanha ou às bombas ató micas de Hiroxima e Nagasáqui, com a consequente capitulação do arqui‑rival império do Japão. Do seu avô, Curtis R. respeita a determi nação, a força de vontade, a persistência de “um deficiente” que nunca desistiu de lutar, de defender aquilo em que acreditava. Durante vinte anos exerceu funções administrativas na ONU, onde chefiou o departamento de Organizações Não Gover‑ namentais. Uma longa experiência diplo mática que lhe permite uma abordagem atenta, cautelosa, equilibrada, crítica, das principais questões mundiais. Sempre acompanhada por uma dose considerável de pragmatismo e de sentido ético. Afirmou‑se como um incisivo crítico da Administração Bush. Com naturalidade, apoia Barack Obama. FDR, o paladino da “cooperação global” O neto de FDR define‑se como um opti mista, mas realista. O livro que escreveu parece tê‑lo libertado dos fantasmas que se acumularam na sua personalidade. Porque sempre se sentiu um privilegiado, um “menino‑família” a quem eram con cedidas todas as benesses. Aos 80 anos sente‑se mais reconciliado consigo e com a vida. Pretende continu ar a escrever a saga dos Roosevelt, um testamento que também quer deixar à sua filha Julianna, e ao seu neto Nicholas B. Roosevelt. A sua missão, o seu empe nho, consiste numa reabilitação da ima gem da América perante o mundo mas assente no exemplo já distante do seu principal legado. A conferência de abertura no II Fórum Roosevelt, intitulada “O Estilo do Presidente Roosevelt”, reflectiu a preocupação de manter viva essa memória, onde a utiliza ção das ferramentas da História não evitam inevitáveis subjectividades. Aliás, o empenho de FDR na formação de uma nova organização sucessora da Sociedade das Nações, mas mais interve niente, revelou‑se um dos aspectos mais enfatizados na sua palestra2. 9 POLÍTICA rui ochôa Curtis recordou que a “morte prematura” do popular Presidente dos EUA antecedeu a conferência inaugural das Nações Unidas de São Francisco, em 25 de Abril de 1945. Mas não tem dúvida em referir que, dos Big Tree (os Três Grandes, EUA, Reino Unido e URSS), não tinha apenas como intenção “manter a paz” mas “ajudar a construir a paz” num mundo do pós‑guerra. Não receia intrometer‑se por terrenos mais especulativos, que denunciam o espí rito de missão do autor de Demasiado Perto do Sol. E se FDR tivesse vivido mais tempo? A sua forte liderança política ter‑lhe‑ia per mitido desempenhar uma função crucial no mundo do pós‑guerra? Teria sido capaz de “silenciar” a Guerra Fria e moderar o seu “efeito destrutivo”? Curtis R. crê que sim. Mas vai mais longe. Considera que FDR era o único dos Big Tree “que considerava essencial a coo peração global”. O pragmatismo e realismo do Presidente ‑avô justificam a “relação relativamente boa” com Estaline. O Uncle Joe (Tio Joe), como na altura os media norte‑americanos designavam o ditador soviético, era um aliado que não se podia menosprezar, nem acusar, nem renegar. Reconhece que, em 1945, muitos fun cionários do Departamento de Estado não entendiam a aproximação pessoal de FDR a Estaline. Não observavam o “lado prag mático” e alguns consideravam‑na mesmo uma manifestação de “fraqueza”. Harry Truman, recorda Curtis R., também não entendeu essa atitude e promoveu uma viragem que vai desde então determinar as relações internacionais. E ressalva que a dicotomia maniqueísta “Ou estão connos sublinha Curtis R., existiu a tendência de co ou estão contra nós” não é uma atitude muitos responsáveis para “ampliar esta americana inventada pelo Presidente George situação”. Desde então, esta “atitude de W. Bush… Infelizmente, disse na palestra, arrogância” passa a caracterizar a política é “uma atitude da América desde que o externa e militar dos Estados Unidos. Mas mundo foi dividido nas esferas comunista uma atitude de arrogância que se torna e anticomunista”. Uma atitude que nasceu disfuncional porque “não ajuda a ultra com a “era Truman”, que assinalará o triun passar as diferenças entre nações”, que fo da arrogância sobre o diálogo. também se diferenciam pelo seu potencial Por tudo o que aprendeu, afirma com económico. segurança que a “observação das ati tudes” é a “chave” para obter resulta Curtis R. valoriza este género dos políticos dese jáveis. E exemplifica de conferências, e as que decerto com um facto mais se seguirão, por estar sinceramente recente: quando George W. Bush se convencido que “podem ser referiu à invasão do uma oportunidade de ouro para indicar Iraque como uma “cruzada”, não esta caminhos alternativos em termos va a apresentar uma de condução de política externa”. ideia política “mas antes a exprimir uma atitude”. Pelo contrário, está convencido que o discurso Mesmo que estivesse consciente que os de Barack Obama no Cairo em 2009 e diri responsáveis pelas políticas externas das gido ao “mundo islâmico” foi na generali principais potências mundiais “não iriam dade bem recebido por se ter reflectido “a alterar de forma repentina as suas atitudes, atitude manifesta do Presidente face ao islão, ou os objectivos dos seus governos”, FDR e que teve a coragem de exprimir”. insistiu até ao fim. Neste sentido, o seu principal legado terá sido o empenhamento em terminar com O desejo da “paz duradoura” os conflitos armados, dando primazia total O rescaldo da II Guerra Mundial, e das ao diálogo. presidências de FDR, permitiu que os EUA Curtis R. valoriza este género de confe se tornassem de forma incontestável a rências, e as que decerto se seguirão, por mais poderosa nação do mundo. Mas, estar sinceramente convencido que “podem ser uma oportunidade de ouro para indicar caminhos alternativos em termos de con dução de política externa”. Uma forma de manter presente o legado de Franklin Roosevelt. Assente no primado da “cooperação global”, no desejo da “paz duradoura”, de “acabar com a origem de todas as guerras” e assistir ao regresso de uma política e de políticos “com uma visão mais ampla que os seus estreitos inte resses nacionais”. ‘ ’ * Jornalista da LUSA Do seu avô, Curtis Roosevelt. respeita a determinação, a força de vontade e a persistência. 10 1. Ver, a propósito, Mário Mesquita, A Escala de Roosevelt nos Açores durante a Primeira Guerra Mundial, separata do Boletim Histórico a Ilha Terceira, vol. XLIV, 1986. Um opúsculo que relata a presença de FDR nos Açores (Faial e São Miguel) a bordo do USS Dyer em 1918 a caminho da Europa, na qualidade de subsecretário de Estado da Marinha, onde visitou as tropas norte‑americanas destacadas na frente. 2. No último dia do Fórum foi inaugurada a exposição intitulada “Roosevelt e os Açores na I e II Guerra Mundial” organizada por Carlos Riley, director da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 POLÍTICA Relações transatlânticas e novas potências emergentes Os novos desafios da Europa e dos Estados Unidos após a eleição de Barack Obama, em Novembro de 2008, e a função das potências emergentes no Atlântico Sul e no Pacífico, foram temas em destaque no II Fórum Roosevelt. Uma iniciativa que proporcionou ampla diversidade de opiniões sobre assuntos determinantes para o futuro de um Ocidente confrontado com um mundo complexo e multipolar. Os vizinhos do atlântico norte “As relações transatlânticas e os equilíbrios internacionais emergentes”, tema genérico do Fórum, mobilizou parte considerável das intervenções, que decorreram em Angra no nobre edifício do Palácio dos Capitães Generais. O balanço do consulado de George W. Bush e os seus “efeitos cola terais” nas relações transatlân ticas foi outro assunto que não escapou a este “espaço de reflexão”, quando se abrem novas perspectivas motivadas pela “emergência de recentes fenómenos e ali nhamentos internacionais”, como sublinhou na interven ção de abertura Carlos César, presidente do Governo Regional açoriano. Um fórum que decorreu num espaço geográfico muito particular, definido Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 pelo presidente do Governo açoriano como aquele “em que se alicerça de forma mais directa e diária a sólida par ceria transatlântica entre Portugal e os EUA”, e que “aconselha a promover as pontes de uma cooperação estrategica mente relevante”. Carlos César reafirmou assim a importância geoestratégica da região, defendendo a ideia de que “as ilhas são um núcleo de encontro e inter secção necessária entre continentes e entre o Norte e o Sul”. Avelino Meneses, reitor da Universidade dos Açores, também esteve presente na mesa de abertura, antecedendo o discurso do pre sidente do Governo Regional dos Açores. O sentido dos debates foi apontado na sessão inaugural por Mário Mesquita, admi nistrador da FLAD, que sublinhou a com plexidade dos temas em discussão. O propósito consistia em “articular as dimensões regional, nacional, comunitária e internacional”, com a preocupação em “não aceitar como uma inevitabilidade as visões catastróficas que, no início do século XXI, se sucederam aos diagnósticos preci pitados do fim da história após a queda do Muro de Berlim e da União Soviética”. designaraújo Organizado pela Fundação Luso‑Americana para o Desenvolvimento (FLAD), em cola boração com o Governo Regional dos Açores, o II Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt decorreu entre 14 e 16 de Abril na ilha Terceira, Açores, com um balanço sem dúvida positivo. A iniciativa garantiu a presença de mais de 50 conferencistas e 130 participantes, onde se incluíam cerca de meia centena de estu dantes de oito universidades do continen te e dos Açores, acompanhados pelos professores que leccionam em áreas rela cionadas com os temas em debate. Avelino Meneses, reitor da Universidade dos Açores, Carlos César, presidente do Governo Regional açoriano, e Mário Mesquita, membro do Conselho Executivo da FLAD, na sessão inaugural do Fórum (da esquerda para a direita). 11 designaraújo POLÍTICA “As relações transatlânticas e os equilíbrios internacionais emergentes”, tema genérico do Fórum, mobilizou parte considerável das intervenções, em Angra. Numa referência às questões centrais em discussão, Mário Mesquita optou por sublinhar que “a operacionalidade e a efi cácia das organizações internacionais cria das após a II Guerra Mundial – ONU e NATO – dependerão da redefinição dos seus objectivos e da sua capacidade de auto‑reforma”. As problemáticas agendadas proporcio naram ampla discussão que nem sempre foi consensual, para além da nova dimen são introduzida na iniciativa e “relaciona da com a comunidade luso‑descendente”, como também notou Mário Mesquita. Assim, o fenómeno da emigração nos seus diversos vectores foi abordado em seminários paralelos, justificados pelo facto de 70 por cento da comunidade portugue sa nos Estados Unidos serem de origem açoriana ou descendentes de açorianos. Um tema abordado por Cynthia Koch, directora da Biblioteca Presidencial Roosevelt) que integrou o seminário para lelo “Portugal e os Açores – De Roosevelt aos Nossos Dias”, presidido por Vasco Cordeiro, secretário de Estado do Governo Regional, e onde também participaram Luís Nuno Rodrigues (IPRI) e Carlos Cordeiro (Universidade dos Açores), Quanto às relações transatlânticas, perspectivou‑se a cimeira da NATO pre 12 vista para Novembro em Lisboa, onde deverão ser aprovadas alterações ao “con ceito estratégico” da Aliança. O analista norte‑americano Stanley Sloan abordou precisamente esse tema no painel apresentado por António Vicente, da FLAD, e relacionou‑o com as novas potências emergentes (o grupo do BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China). E numa referência ao próximo conclave da Aliança, considerou que o que estará em causa na Cimeira de Lisboa será a capa cidade de a NATO funcionar em “bene fício dos interesses” dos Estados‑membros. Porque a “eficácia” da Aliança “é uma dúvida que paira no ar”. A percepção da NATO nas opiniões públicas europeias e norte‑americana este ve em foco na intervenção de Zsolt Nyiri, director do Transatlantic Trends, que inte gra o The German Marshall Fund dos Estados Unidos. Nesta sessão plenária apresentada por Maria Carrilho do Instituto Universitário de Lisboa, o investigador analisou o estu do de opinião divulgado em meados de 2009, que abrangeu 12 países europeus e os EUA. E concluiu‑se que a opinião dos europeus face à NATO “pouco mudou”, apesar do “significativo decréscimo duran te os anos Bush”. Zsolt Nyiri notou contudo que, após o entusiasmo inicial, a posição de muitos países de Leste face à NATO também está a mudar, um fenómeno designado “fadi ga”, também associado à adesão à União Europeia (UE). “Quando aderem a uma organização como a NATO ou a UE, o entusiasmo desaparece durante algum tempo, porque se confrontam com a rea lidade. É difícil de manter”, notou. A conclusão do estudo revelou ainda que a eleição de Barack Obama gerou “uma enorme boa vontade da Europa em relação à política norte‑americana”, permitindo “criar um novo capítulo”. O seminário paralelo “Os Açores entre a Europa e a América” contou com as par ticipações de Medeiros Ferreira, professor universitário e ex‑ministro dos Negócios Estrangeiros, Gavin Sundwall, cônsul dos EUA nos Açores, e do general Loureiro dos Santos, antigo ministro da Defesa. O general, especialista em geoestratégia, recordou a importância da zona económi ca exclusiva açoriana, “55 por cento da zona económica exclusiva nacional”. E con siderou que esta região poderá desempe nhar uma função decisiva para os EUA, a partir da qual será possível “projectar força” para o Médio Oriente, Iraque e Afeganistão. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 POLÍTICA Previu ainda uma eventual “articulação” com a zona do Atlântico Sul através de arqui pélagos lusófonos, como Cabo Verde e São Tomé, ou a ilha de Ascensão para “projectar força no golfo da Guiné e África Austral”. Disse ainda que a defesa e segurança euro peias necessitam de “capacidade efectiva” que passa pelo investimento sério dos euro peus na área da defesa. “de forma bem realista” como uma ver afectar as relações entre a Europa e os dadeira “hiper‑impotência”. Estados Unidos. Em paralelo, existem ainda “vários olhares Carlos Gaspar, director do Instituto europeus” face à Rússia, num contexto em Português de Relações Internacionais que Washington pretende resolver de forma (IPRI) destacou as três principais fases da bilateral “o seu problema” russo. Outro pre NATO desde 1989: a parceria estruturada texto para a Europa permanecer órfã. em 1991, entre a queda do Muro de Apesar de não ocorrer um afastamento de Berlim e o fim da URSS, e expressa no interesses à escala global, Seixas da Costa Conselho de Parceria do Atlântico Norte. assinalou “sinais de O segundo momento surge com o ino divergências transa vador conceito estratégico da NATO após tlânticas no quadro o 11 de Setembro de 2001: o Grande Os EUA encaram a sua política externa global”, em particular Médio Oriente, apesar de notar que “a par a Turquia, Balcãs, Irão, ceria com países do Mediterrâneo e Golfo em termos morais, quase religiosos, Médio Oriente à Não Pérsico foram um falhanço”. E um tercei em termos “do bem” em oposição Proliferação Nuclear. ro momento, que decorre no debate do Sobre a questão da Conselho do Atlântico Norte em Riga, em “ao mal”. Mas já a Europa adesão da Turquia, 2006, onde surge o conceito de “expansão não tem a “certeza messiânica” disse ser necessário global” da NATO (Global NATO). tempo para “ponde Teses que suscitam divergências de abor de estar do lado do “bem”. rar”, também pelo dagem. Enquanto alguns estrategos da facto de a densidade Aliança admitem a “aproximação à Índia, Seixas da Costa d e m o g r á fi c a d a Brasil e Japão” – factor que em termos de Turquia tornar este critério pode comprometer “a homogenei Velhas e novas potências país decisivo no novo equilíbrio de forças dade política e cultural” da Aliança –, sur O segundo dia dos trabalhos iniciou‑se interno da UE pós‑Tratado de Lisboa. giu em oposição a tese da “NATO regional”, com uma visita e briefings na Base das Lajes, Uma relação entre os Estados Unidos e centrada nos problemas europeus (em par com as sessões a decorrerem durante a a Europa “cada vez mais condicionada pela ticular na Rússia e Ucrânia). tarde no belíssimo Salão Nobre da Câmara evolução do Brasil, Rússia, Índia ou China” O director do IPRI sublinhou estar‑se Municipal da Praia da Vitória. (BIRC), foi o aspecto sublinhado pelo perante duas abordagens incompatíveis: a O embaixador Francisco Seixas da Costa professor Philippe Schmitter, do Instituto NATO global e a NATO regional “não privilegiou como tema “A Europa e a Política Universitário Europeu, que presidiu a uma podem coexistir”, porque os EUA “não Externa da Administração Obama”. das sessões mais aguardadas do Fórum: estão interessados na segunda hipótese” Ao centrar a sua alocução nas recentes “Potências emergentes na perspectiva da atendendo ao seu envolvimento global, alterações políticas nos EUA, o actual NATO: Brasil, China, Índia”. “sobretudo no Afeganistão”. representante diplomático em Paris subli Sem se arriscar em futurologias, admitiu Para Carlos Gaspar, surge como necessá nhou o “alívio da Europa” após o fim do que ainda não é possível saber em que ria uma “terceira via”, que poderá privi consulado de George W. Bush, notando extensão os novos poderes emergentes vão legiar a institucionalização de que após a eleição de Obama “grande parte do mundo” se reconciliou com os Estados Unidos. Relações complexas, porque a Europa é um “continente complexo”, como frisou. Assim, cada país europeu tem uma “visão diversa” e ainda prevalece uma “percepção equivocada” sobre a forma como os EUA olham para o velho continente e para o mundo em geral. Por tradição histórica, ressalvou Seixas da Costa, os EUA encaram a sua política exter na em termos morais, quase religiosos, em termos do “bem” em oposição ao “mal”. Mas já a Europa não tem a “certeza mes siânica” de estar do lado do “bem”. Com Obama, e para além de o seu objec tivo consistir em “inverter” o legado Bush, a América não alterou esta visão mas tem interesse em “ter o mundo consigo”. Ao verificar a “fraqueza” da UE, estru tura “meramente declaratória”, o diplo mata concluiu que, no quadro global, a Europa permanece refém dos EUA. Assim, Stanley Sloan fala sobre a NATO e o grupo do BRIC. Na foto (à direita) com António Vicente (FLAD). Washington continua a considerar a UE e ‘ Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 13 designaraújo ’ POLÍTICA parceiro comercial do Brasil, ultrapassando os EUA. Assegurou ainda que as relações económicas com Irão ou Cuba não serão afectadas com a eventual eleição de um Presidente de “direita” no Brasil. A exposição sobre a China esteve a cargo do coronel Tiago Vasconcelos, que assina lou o facto de a NATO não possuir actu almente “uma estratégia para a China, e não deverá tê‑la num futuro próximo”. Recordou que a China é uma “potência de direito”, membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, que será a “maior economia do mundo dentro de duas décadas”, apesar de um PIB per capita que ainda o coloca na condição de país relativamente pobre. A ascensão da China a superpotência no âmbito de um sistema internacional mul designaraújo designaraújo “parcerias bilaterais” com as principais potências democráticas não‑europeias. “E as principais potências democráticas não ‑europeias, para além do Japão, são o Brasil e a Índia”. Na sua intervenção focou a crescente afir mação do Brasil no cenário internacional, Jair Rattner, correspondente do diário Estado de São Paulo em Lisboa, ressalvou a nova abor dagem do país do Presidente Lula da Silva. A ambição da potência sul‑americana em garantir um lugar de membro permanen te do Conselho de Segurança da ONU, e uma política externa cada vez mais autó noma. “Lula foi o primeiro líder ocidental a encontrar‑se com Ahmadinejad após as conturbadas eleições no Irão”, recordou. Para além das decisivas questões económi cas, com a China a tornar‑se no primeiro Seminário “Os Açores entre a Europa e a América” com Loureiro dos Santos, Medeiros Ferreira, Andreia Cardoso e Gavin Sundwall (na foto de cima, da esquerda para a direita) e Zsolt Nyiri com Maria Carrilho (foto de baixo). 14 tipolar, e a formação de uma nova bipo laridade China/EUA poderá ser um dos cenários que emergirão num futuro pró ximo, vaticinou. A Índia, palestra da responsabilidade de Constantino Xavier, investigador da Johns Hopkins University, já coloca outro géne ro de desafios para o Ocidente em geral e a NATO em particular. O especialista referiu‑se à necessidade de “encontrar um meio caminho entre hos tilizar e integrar as potências emergentes”, mas com uma premissa: “Avoiding Full Contact” (Evitar o Contacto Directo). Para Nova Deli, notou o investigador, o não‑alinhamento permanece uma “opção estruturante da sua política externa”. Para além de uma “alergia às alianças estratégi cas, e o desejo de autonomia estratégica”. Uma enorme península onde existem 4500 quilómetros de fronteira China/Índia e três mil quilómetros de fronteira China/Rússia, “factor que tem de ser considerado”. A Índia é ainda um país que aposta na diversificação. Israel mantém‑se o “segun do fornecedor militar”, a Rússia reassume uma “crescente importância” em termos de relações bilaterais, enquanto Nova Deli não prescinde em manter um “intenso comércio” com o Japão. Neste xadrez complexo, referiu Constantino Xavier, poderá existir uma ter ceira via: integrar a Índia numa “parceria semi‑institucionalizada”, que poderá dar origem a uma “nação amiga” sem hostili dade da opinião pública indiana. Uma opção estratégica que poderia garan tir, a médio e longo prazo (não apenas no oceano Índico), uma Índia que pelo menos manteria uma “cooperação mínima com os interesses da NATO”. Uma parceria, assinalou Constantino Xavier, “fixada nas questões técnicas e de cooperação para manter o essencial, uma Índia amiga”. “O lugar das comunidades luso ‑descendentes nas relações entre a Europa e os EUA” foi outro tema debatido duran te a sessão plenária de quinta‑feira. Olhar para Sul No último dia, 16 de Abril, as sessões ple nárias regressaram ao auditório do Palácio dos Capitães Generais. Pela manhã, dois seminários paralelos: “Africom, que perspectivas?” no Auditório, e “A dimensão científica da relação tran satlântica”, que decorreu no Claustro. A primeira sessão, presidida por Manuela Franco, do IPRI, contou com a participação de Miguel Monjardino, da Universidade Católica Portuguesa, a diplomata Carolina Cordeiro, fixada em Dacar, a investigadora Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 da Universidade Católica Janete Cravino, e o coronel Carlos Coutinho Rodrigues, assessor do Instituto de Defesa Nacional. À margem do colóquio, Miguel Monjardino revelou que o Air Mobility Command (AMC), organização que actua no âmbito do Pentágono, elaborou em Março de 2009 um documento (White Paper) que analisa as várias rotas disponíveis e as funções das bases militares dos EUA no mundo. Nesse documento, o complexo das Lajes é colo cado num nível de prioridade estratégica “mais baixo do normalmente referido publi camente” em Portugal. O professor da Universidade Católica e especialista em relações internacionais con sidera que esta avaliação constitui “um problema político‑militar” para Portugal que “devermos tentar gerir e resolver”. No entanto, Miguel Monjardino também ressalva algumas vantagens que podem ser potencializadas. “O mar vai continuar a ser muito importante e o Atlântico é fun damental para a globalização, que assenta sobretudo em plataforma marítimas. Uma vantagem para Portugal e a região dos Açores”, indicou. As perspectivas da Missão Africom, num contexto de crime organizado na África Ocidental e das actividades na região da Al‑Qaeda do Magrebe Islâmico (AQMI) foi o tema destacado pela diplomata Carolina Cordeiro. Assim a missão da Africom, ainda em fase embrionária, consistirá no “combate ao terrorismo islâmico aliado às redes de criminalidade organizada”. A diplomata sublinhou que uma das principais activi dades da AQMI consiste na “segurança privada” que oferecem às redes de tráfico que operam na região e que consiste na sua principal fonte de financiamento. Uma aliança que se verifica noutras regiões, incluindo no Corno de África. Os Estados Unidos, impulsionadores do Africom, pretendem fomentar uma “estra tégia abrangente e completa” para enfren tar esta ameaça. Uma tarefa que, no entanto, e como ressalvou, se afigura “muito complexa”. Uma das dificuldades desta missão, como sublinhou Janete Cravino na sua intervenção, reside no facto de o Africom ser encarado pela generalidade dos países africanos como uma “tentativa de reco lonizar o território”. No final da manhã, o administrador da FLAD Charles Buchanan presidiu à sessão plenária com o tema “Perspectivas dos Estados Unidos sobre as relações transa tlânticas”. Uma intervenção da responsa bilidade de David Ballard, conselheiro da Embaixada dos EUA em Lisboa em final Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 designaraújo POLÍTICA Gavin Sundwall, o cônsul dos EUA nos Açores, no seminário que debateu o papel do arquipélago nas relações transatlânticas com Andreia Cardoso, presidente da Câmara de Angra. de missão, que assinalou o “emergente equilíbrio de poder no mundo”, referiu‑se ao “desafio de garantir que funcione o acordo nuclear com a Rússia” e à “iden tificação de áreas de cooperação”. consistir na liderança do flanco sul da União Europeia (e da NATO), com crescentes res ponsabilidades do país “na segurança marí tima e o alargamento da plataforma continental”. Aspectos que “vão continuar a fornecer uma função central ao arquipélago dos A cimeira de Lisboa está desta forma Açores”. a ser encarada como uma oportunidade única No actual con texto das relações para a NATO “repensar a sua visão”. transatlânticas, Santos Silva defi Quanto aos países emergentes, interrogou niu ainda como “eixos fundamentais da ‑se sobre a possibilidade de melhor abor contribuição portuguesa para a revisão do dagem, “através dos EUA ou da NATO”, com conceito estratégico, o “momento‑chave” a “perspectiva de parceiras”. da parceria NATO, onde se inclui o Tratado A sessão de encerramento foi dirigida por de Lisboa, a “parceria estratégica com a Rui Machete, presidente da FLAD e em final Rússia” e a imperiosa necessidade de “dia de mandato, acompanhado por André logar e saber dialogar” com o Sul. “Por Bradford, secretário regional da presidência sermos uma organização do Atlântico do Governo dos Açores, e José António Norte devemos olhar para o Sul”. Mesquita, representante da República na Para além da vocação e da capacidade que região autónoma. As suas intervenções ante pode oferecer no “diálogo com o Sul” e em cederam a palestra final do ministro da contribuir com “janelas abertas sobre os Defesa, Augusto Santos Silva. outros espaços”, o ministro assegurou em “As relações transatlânticas: vectores per paralelo que Portugal pode “ajudar a NATO manentes, novas perspectivas” foi o tema da a olhar para o Grande Médio Oriente”. intervenção de encerramento. E o ministro A Cimeira de Lisboa está desta forma a da Defesa aproveitou a oportunidade para ser encarada como uma oportunidade sublinhar que a cimeira da NATO em Lisboa, única para a NATO “repensar a sua visão” que vai decorrer a 19 e 20 de Novembro, e quando a revisão do conceito estratégi deverá aprovar um novo conceito estratégi co “conforta as nossas posições”. Mas co da Aliança, que deverá moldar a actuação “devemos ser práticos, concisos e ambi da Aliança na próxima década. ciosos na definição do novo conceito Neste contexto, sublinhou a “colabora estratégico”, concluiu Santos Silva. ção portuguesa” para a elaboração de um No final dos trabalhos, a promessa de novo documento “que não tem de ser prosseguir com esta iniciativa bianual, inteiramente novo”. O ministro da Defesa e de novo na região autónoma dos Açores. PCR considerou que a função de Portugal pode ‘ ’ 15 POLÍTICA Portugal: ponte entre a América e a África O Access Africa Forum juntou em Lisboa entidades oficiais e empresas de Portugal, Estados Unidos, Angola, Cabo Verde e Moçambique. O nosso país foi o lugar do encontro por ser a ponte possível entre estes dois continentes. Por Joana Carvalho Fernandes O Access Africa Forum juntou em Lisboa EUA em Portugal, Allan J. Katz, lembrou que entidades oficiais e empresas de Portugal, este país “possui uma posição única para Estados Unidos, Angola, Cabo Verde e desempenhar o papel de porta para a África Moçambique para que, sentados à mesma a todas as empresas que pretendam aumen mesa, os diversos interlocutores trocassem tar os seus negócios nestes mercados”. ideias e ajustassem parcerias para aproveitar oportunida des de investimento. Alguém vai fazer dinheiro em Angola. Portugal foi o lugar do encontro por ser a ponte Talvez pudesse ser a vossa empresa, possível entre estes dois con talvez deva ser. tinentes. Na abertura do fórum, o embaixador dos Dan Mozena, Embaixador dos Estados Unidos em Angola ‘ ’ Jorge Arcanjo A África lusófona cresce no contraciclo da economia mundial, precisa de investimen tos em infra‑estruturas e de limar arestas no campo do respeito pelos direitos huma nos e do combate à corrupção; os Estados Unidos precisam de virar‑se para fora para recuperar da crise económica, aumentar o investimento externo e as exportações. Portugal fica a meio caminho entre os dois e conhece a história, partilha a língua, per cebe a cultura africana. A solução parece simples, mas os desafios são tão grandes quanto as oportunidades. O embaixador americano, Allan J. Katz (na primeira fila à esquerda) lembrou a importância de Portugal na ligação entre os EUA e África. 16 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Jorge Arcanjo POLÍTICA que Angola é uma aposta de crescimento incontornável: “As empresas norte ‑americanas podem competir, podem ganhar dinheiro. É preciso paciência e bons parceiros. E quem melhor que as empresas portuguesas?”, terminou. Em Moçambique, “a pobreza, a iliteracia e os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio continuam a ser desafios mas os Estados Unidos acreditam no país”, disse a embaixadora Helen Reed‑Rowe, subli nhando que “os dois governos são coope rantes e os investimentos norte‑americanos são muito bem acolhidos”. O potencial do país, defendeu, é imen so. Agora, acrescentou, “é preciso que haja investidores entusiasmados”: “Moçambique tem muitas oportunidades para oferecer ao nível dos recursos hídricos, de carvão e gás natural, precisa de investimento em Da esquerda para a direita: Leslie Rowe, embaixadora dos EUA em Moçambique, Marianne M. Myles, infra‑estruturas e tem muito potencial embaixadora dos EUA em Cabo Verde, António Neto da Silva, presidente da Associação Amizade Portugal/ turístico por desenvolver”, disse. EUA, Allan Katz, embaixador dos EUA em Portugal, Dan Mozena, embaixador dos EUA em Angola. Na perspectiva da embaixadora, Portugal pode ter nesta parceria um papel determi nante porque “partilha a língua e o background “Portugal mantém uma relação muito “Angola está aberta aos negócios com cultural do país, e esta percepção é essencial próxima com a África lusófona – Angola, os Estados Unidos, que já são o maior para que os moçambicanos sejam envolvi Moçambique e Cabo Verde – através de investidor estrangeiro no país. As relações dos nos projectos de investimento”. uma língua comum, de ligações aéreas entre os dois países atravessam a sua Rowe deixou ainda dois pedidos aos directas, da partilha de uma mesma mol melhor fase. E com a ajuda de Portugal, investidores: “Dizer que é uma oportuni dura legislativa e legal e de fortes laços as empresas norte‑americanas terão muito dade investir em Moçambique é também comerciais. É também um intérprete da mais portas abertas”, argumentou. dizer que é importante que as empresas cultura africana”, afirmou. tenham em mente que para além O embaixador sublinhou ainda que “à de criarem postos de trabalho no medida que estas economias continuam país – sobretudo nos sectores das Moçambique tem muitas a crescer – e sempre acima da média do classes média e baixa –, devem oportunidades para oferecer crescimento da economia mundial – acon olhar para o desenvolvimento da tece o mesmo com a procura de bens e ao nível dos recursos hídricos, comunidade e perspectivar formas serviços de qualidade nos diversos secto de transferir para os nativos conhe res, desde as infra‑estruturas, passando de carvão e gás natural. cimentos e posteriormente com pelos equipamentos de energia, tecnologia petências”, afirmou. Dan Mozena, Embaixador dos Estados Unidos em Angola médica, até aos serviços jurídicos”. Marianne Myles, embaixadora dos Katz olhou para os três países em questão: Estados Unidos em Cabo Verde, “Angola absorve hoje uma quantidade Mozena lembrou ainda que “em Angola destacou os laços familiares entre os dois imensa de produtos dos EUA, tira elevados há oportunidades de investimento para países e os bons resultados que a coopera dividendos da exploração petrolífera e tem além do petróleo” e que “o país tem agora ção entre os dois países tem tido no que uma crescente necessidade de investimen dinheiro, paz, estabilidade e muitas neces respeita à defesa de águas atlânticas e ao tos na área da construção de habitação e sidades”: “É preciso construir habitação, combate ao crime e ao tráfico de droga. de estradas; Moçambique, um país pobre estradas, investir na transmissão e distri “Cabo Verde é um país muito pequeno mas onde se têm verificado um crescimen buição de energia e na oferta de serviços mas tem uma posição geoestratégica de to e um desenvolvimento significativos, tem financeiros, não existe nenhum banco grande relevo para a segurança, quer muito por explorar; Cabo Verde tem uma norte‑americano no país”, afirmou. de americanos quer de europeus. democracia bem consolidada e uma posição “É urgente que se olhe para Angola. O A questão‑chave aqui é location, location, loca geoestratégica de grande relevância”. inglês está a ser ensinado nas escolas – e tion. Cabo Verde está a três horas do Brasil, isso é a chave –, a reforma fiscal estará a três horas e meia de Lisboa e a seis horas Angola, Moçambique, concluída no final de 2010 e em breve a e meia dos Estados Unidos. E é o único Cabo Verde e os EUA Delta Airlines vai estabelecer ligações aére país africano a voar directamente para os Dan Mozena, embaixador dos Estados as directas entre as duas capitais”, acres EUA”, argumentou. Unidos em Angola, foi directo na interven centou o diplomata. A opor‑se à falta de recursos naturais, con ção que dirigiu aos empresários na sala: Embora reconhecendo que a corrupção siderou a diplomata, está “a boa governação “Alguém vai fazer dinheiro em Angola. e as fragilidades do país no respeito pelos – transparência e baixa corrupção – e o capi Talvez pudesse ser a vossa empresa, talvez direitos humanos são desafios considerá tal humano: a morabeza está nas pessoas e deva ser”, disse. veis, o embaixador não tem dúvidas de estende‑se à economia”, acrescentou. ‘ ’ Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 17 POLÍTICA Dexter Filkins A guerra na primeira fila Já passaram doze anos desde que o jornalista Dexter Filkins testemunhou, pela primeira vez, a brutalidade dos mujahidines em solo afegão. Desde essa altura, os acontecimentos do 11 de Setembro abriram caminho às guerras no Iraque e no Afeganistão. Dexter assistiu a tudo: como correspondente de guerra, em ambos os países, para o jornal norte‑americano The New York Times, assistiu à guerra a partir da primeira fila. Com ele trouxe histórias para contar: o seu último livro, Guerra sem Fim, foi agora publicado em Portugal. Rui Ochôa Por Marco Leitão Silva Dexter Filkins: “Queria apenas transmitir a experiência de alguém que está dentro da guerra”. 18 [Paralelo] No livro Guerra sem Fim, não apon‑ ta responsabilidades pelo que se passou no Iraque e no Afeganistão. Qual foi então o seu objectivo quando o escreveu? [Dexter Filkins] O meu objectivo não era, de todo, apontar responsabilidades. Nos Estados Unidos, o assunto da guerra tornou ‑se tão controverso, com tantas discussões internas, que a verdadeira guerra, aquilo que nela se sente, a forma como se mani festa, de certa forma perdeu‑se. Portanto, eu queria apenas transmitir a experiência de alguém que está dentro da guerra. [P] Recorda a batalha de Fallujah de forma apro‑ fundada no seu livro. Teve especial importância para si? [DF] Sim, em termos pessoais. Fui respon sável pela morte de um soldado americano e foi horrível. Houve um combate rua a rua, casa a casa. Estava acompanhado por 150 soldados e, depois de oito dias de combate, um quarto deles estava morto ou ferido. Foi um combate muito sangrento, mas parecia já ter terminado. O fotógrafo com quem estava queria voltar para trás e tirar uma foto a um insurgente morto no topo de um minarete de uma mesquita. No último segundo, um jovem soldado norte‑americano pôs‑se à nossa frente e disse: “Eu vou em primeiro lugar. Venham atrás de mim.” Subimos as escadas e lá estava o insurgente morto no topo do minarete. Mas também lá estava um outro insurgente. Vivo. Baleou e matou o jovem soldado. Estávamos mesmo atrás dele. [P] Refere‑se com frequência aos jovens soldados aos quais se juntou em diferentes ocasiões. Como se sentiu ao depender deles no terreno? Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Rui Ochôa POLÍTICA para praticamente todos os que lá têm estado. Creio que vai levar ainda muito O problema no Afeganistão tempo até as pessoas come não tem tanto que ver com os talibãs, çarem a esquecer isso. Quando lá estive da última mas sim com a falta de qualquer tipo vez, fui até Sadr City, em de Estado afegão. Bagdade. Já era noite, está vamos no meio da rua e eu perguntei ao meu intérpre te: “O que me teria acon [DF] Ver que a política externa dos Estados tecido se vocês não estivessem aqui e eu Unidos é aplicada por rapazes com 21 anos estivesse por minha conta e risco?”. Eles de idade com espingardas nas mãos, muitos responderam: “Estarias morto em 20 minu deles vindos de pequenas aldeias, é muito tos” (risos). estranho. É‑lhes permitido matar pessoas, [P] Antes de tudo isso, esteve no Afeganistão em mas são basicamente miúdos. Eu tenho a 1998. Podia imaginar, na altura, que os talibãs idade de um coronel. E quando um grupo seriam capazes de organizar os ataques do 11 de de jornalistas aparece para se juntar às tro Setembro? pas, a principal preocupação dos soldados [DF] Foi um tempo muito estranho, quan é a possibilidade de nós os atrasarmos, do os talibãs estavam no poder no podendo ser mortos por causa disso. Afeganistão. Todos os jornalistas que lá esta [P] Passou boa parte da última década no Iraque. vam olhavam uns para os outros e diziam: É plausível afirmar que o país se está a desenvol‑ “Meu Deus, o que está a acontecer aqui?”. ver de uma forma positiva? Eu liguei para a minha redacção nos Estados [DF] Voltei ao Iraque em 2008 e as condições Unidos e disse: “Tenho um mau pressen no terreno eram dramaticamente melhores. timento em relação a isto… Algo mau vai Se tiver em conta os anos realmente maus acontecer”. Ainda assim, nunca pensaria no Iraque (2005–2006), nessa altura, é que a Al‑Qaeda fosse atacar os Estados como se fosse o fim do mundo. Toda a socie Unidos. Pensava que seria algo diferente: dade se estava a desintegrar, as pessoas talvez a Al‑Qaeda ocupasse o Governo, no matavam‑se umas às outras e havia um Paquistão, tendo assim acesso às suas armas autêntico banho de sangue. Pensava que o nucleares (o que eu continuo a achar que país estava acabado. Mas recuperou dessa é um receio muito credível). situação, ainda que o statu quo esteja ainda [P] Depois de uma década de guerra no Afeganistão, muito frágil. Se isso justifica a invasão e os quais são as principais diferenças que tem sentido custos humanos… É outra questão. no terreno? [P] Depois de todos estes anos, com a retirada em [DF] O Afeganistão tem estado em guerra curso, continua a haver um sentimento antiame‑ nos últimos trinta e um anos. É um pesa ricano acentuado entre os iraquianos? delo ser‑se afegão, mas o país é lindo. Mas, [DF] Sim, creio que sim. Foi um período respondendo à sua pergunta: creio que não extraordinariamente difícil para o país e é diferente o suficiente. Os norte‑americanos ‘ ’ Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 estiveram por lá nos últimos nove anos e continuam a dizer: “Talvez para o ano as coisas resultem”, mas estamos a ficar sem tempo. Gastaram muito dinheiro, treinaram soldados, mas não funcionou. O problema no Afeganistão não tem tanto que ver com os talibãs, mas sim com a falta de qualquer tipo de Estado afegão. [P] É razoável apontar uma retirada das tropas da coligação já no próximo ano? [DF] Se olharmos para o Iraque, ainda que seja um país muito debilitado, é na verda de um país rico, com uma população maioritariamente alfabetizada. A sua classe média é urbanizada, sofisticada e compre endem tudo. Não há nada disso no Afeganistão. É um Estado analfabeto, pobre e falido. Ainda continuam a tentar construir alguma coisa. ‘ Fui responsável pela morte de um soldado americano e foi horrível. ’ [P] Este livro vem ajudar os leitores ocidentais a perceber que as guerras no Médio Oriente têm importância para as suas próprias vidas? [DF] Espero que sim. É difícil explicar às pessoas, até mesmo nos Estados Unidos, que estes assuntos são importantes. Mas é difícil ignorá‑los − e não se pode pôr a cabeça na areia e fingir que o resto do mundo não está lá. Mas creio que o livro é apenas um apelo à Humanidade comum. Estas são pessoas reais, quer sejam afegãs, iraquianos ou o que quer que seja. Querem as mesmas coisas que nós queremos, e têm as mesmas esperanças, sonhos e medos que nós temos. 19 POLÍTICA Guerra sem Fim, um livro forte Por José Alberto Loureiro dos Santos* O livro Guerra sem Fim é quase um murro no estômago. Relata aquilo que se passou em dois dos acontecimentos com que, pelas notícias, convivemos há muitos anos – as guerras do Afeganistão e do Iraque. A percepção que (longe e fora da confu são) fazemos destas guerras, dá‑nos a ideia de que são uma coisa limpa, capaz de ser desenhada em ecrãs e em mapas, com vários eixos de progressão, atacando por ali e defendendo por acolá. Neste livro, o autor diz‑nos que não foi assim e não é assim. Há uma coisa dife rente que, à distância, normalmente nos escapa. É isso que nos mostra – a face pior da guerra. Concluímos que, pelas notícias, apenas temos conhecimento dos gran des actores, mas quase não ouvimos falar dos soldados e capitães a combater. Ouvimos falar de Chalabi, de Maliki e outros figurantes. Mas há milhares de outros protagonis tas que também contam e sofrem – a real dimensão humana da guerra. Vemos Chalabi, rodeado de segurança e pronto para conven cer os iraquianos de que é o homem indispensável, como convenceu a CIA e os neocon servadores norte‑americanos de que os EUA seriam aclamados como salvadores em Bagdade. E os horrores a que o autor assis tiu no estádio de futebol de Cabul, com os carrascos talibã a cortarem a mão de um cartei rista, uma das muitas cenas de um espectáculo que um dos participantes diz ter o mesmo efeito que a televisão tem nos países ocidentais – entreter. Com muitas crianças – os órfãos, multidões de órfãos dos muitos pais que a guerra per manente matou – na plateia, assistindo ao assassinato de um assassino, ouvindo um altifalan te a repetir com insistência – “Isto é a sharia; é legítima a vingança dos que a aplicam”. Os episódios são muitos e 20 todos impressionantes. Mostrando sempre Misturados com elas, os terroristas aprovei os pontos de vista das pessoas, especialmen tavam para assaltarem as barragens militares te daquelas que não estão no comando e montadas nas estradas pelos norte apenas executam ordens ou são envolvidas, ‑americanos. Uma carrinha com uma famí independentemente da sua vontade. lia numerosa de oito ou dez pessoas Um episódio cho cante retrata as con sequências trágicas Um livro que nos mostra aquilo que da barreira da lín os políticos não querem que se saiba. gua. Anos depois da invasão, quando a guerra civil sectária devastava Bagdade, as famílias fugiam em aproxima‑se de uma destas barragens. Os pânico da capital, com medo de morrerem marines que a guarneciam mandam‑na parar. em qualquer dos frequentes atentados ter Em inglês, língua que o motorista e os pas roristas que dizimavam, por vezes, mais de sageiros desconhecem. A carrinha continua. uma centena de pessoas por ataque. “Stop! Stop!” grita um marine. A carrinha avança. Várias rajadas de metralha dora. Dos numerosos irmãos, só um ou dois ficaram vivos. Consumada a tragédia, quando os soldados se aperceberam do seu terrível engano, um deles, talvez um miúdo como o da fotografia que ilustra a capa do livro, não resistiu à cena e rebentou em choro convulsivo. Há muitos episódios tão chocan tes como este. Fortes, que mostram a barbárie e o sofrimento. Todos narrados de forma surpreendente mente talentosa, como se estivés semos a vê‑los, mesmo como se estivéssemos a vivê‑los. Encontramo‑nos perante um livro verdadeiramente excepcional que nos mostra aquilo que nor malmente não temos a possibili dade de ver e que os políticos não querem que se saiba. O autor revela talento e inspira ção. Também coragem. Coragem de quem corre os riscos de suces sivos combates, sem nunca usar uma arma, apenas com a finalida de de desempenhar com profis sionalismo os seus deveres de jornalista. Como militar, fiquei sobremaneira impressionado. De tal modo que, se ele fosse portu guês e eu tivesse autoridade para o fazer, não deixaria de o conde corar com a cruz de guerra, por feitos em combate. ‘ ’ * General (R) Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 POLÍTICA A hora do chá É a grande novidade da política americana. O Tea Party começou por ser olhado como um pequeno grupo de fanáticos que se recusava a aceitar a eleição do Presidente Barack Obama. EPA/JIM LO SCALZO Por Vítor Gonçalves* Main Street (símbolo dos pequenos negó considera que a fiscalidade e a economia cios e da classe média) que vai florescer são a cola que mantém o grupo unido. o Tea Party. O Tea Party é uma “chávena” onde cabem Tal como as donas de casa da Pensilvânia, interesses e preocupações muito diferentes. há gente comum que toma a iniciativa, Há um sector que defende políticas que contacta os vizinhos, os amigos formando conduzam a orçamentos limitados, impos núcleos que, aos poucos, assumem uma tos baixos e défices controlados. Há pesso dimensão nacional. as normalmente identificadas com a O movimento não tem uma estrutura direita evangélica que têm posições con formal ou uma liderança mas a espontanei servadoras em matérias sociais. Há os liber dade inicial vai diluindo‑se à medida que tários que propõem uma redução estes grupos crescem e se multiplicam. significativa do papel do estado federal e a Recebe o apoio de personalidades da polí saída dos Estados Unidos de organizações tica, como a ex‑candidata à vice‑presidência, internacionais, e muitos outros. Sarah Palin, e dos media, como Glenn Beck ou Sean Hannity, O Tea Party veio introduzir uma energia dois dos rostos mais inesperada ao debate político. carismáticos da Fox News, o canal de tele No entanto, há o receio de que, puxando visão que vai ter um os republicanos para a direita, possa deixar papel crucial na visi bilidade do Tea Party. espaço aberto para o Partido Democrata Entretanto, nos bas conquistar o centro político. tidores, poderosos grupos conservadores passam a apoiar o movimento fornecendo Finalmente, há as franjas radicais. Não há recursos financeiros e aconselhamento. manifestações do Tea Party em que não O American for Prosperity, do multimilio surjam cartazes em que Barack Obama é nário David Koch, avançou com 30 milhões comparado a Hitler, Lenine e Osama Bin de dólares para as campanhas contra a Laden. Há elementos racistas e outros que reforma da saúde. O FreedomWorks, lide acreditam em teorias conspirativas − a mais rado por um antigo líder republicano da popular é a que postula que Barack Obama House of Representatives, gastou 10 é secretamente muçulmano e está ao ser milhões de dólares no apoio aos candida viço de forças ocultas que pretendem con tos do Tea Party. trolar e transformar os Estados Unidos. O Tea Party veio introduzir uma energia inesperada ao debate político. No entanto, A PLATAFORMA POLÍTICA há o receio de que, puxando os republica Há uma palavra que caracteriza o Tea Party: nos para a direita, possa deixar espaço “menos”. O Tea Party quer “menos” gover aberto para o Partido Democrata conquis no, “menos” impostos e “menos” défice. tar o centro político. Existe um debate interno sobre se o Tea O futuro dirá de que modo irão os eleitos Party deve ficar apenas pelos assuntos eco do Tea Party exercer o poder. Até que ponto nómicos ou se deve assumir posições públi poderá transformar‑se num terceiro partido. cas comuns noutro tipo de matérias. Amy E finalmente, que papel vai ter na escolha Kremer, o rosto do Tea Party Express, um do candidato presidencial em 2012. dos grupos mais fortes do movimento, * Correspondente da RTP em Washington ‘ A antiga governadora do Alasca e dinamizadora do Tea Party acenando depois de discursar nos degraus do Memorial a Lincoln no National Mall, num comício do Tea Party chamado “Restoring Honor”. Mas as primárias para as eleições de Novembro revelaram que se trata de um movimento mais vasto com peso suficien te para decidir os candidatos do Partido Republicano. Em Abril de 2009, em Bucks County, no estado da Pensilvânia, duas donas de casa organizaram um dos primeiros grupos Tea Party do país. Estas mulheres não aceitavam que a Administração Obama se preparasse para gastar 814 mil milhões de dólares, provenientes do bolso dos contribuintes, no resgate da banca, companhias financeiras e grandes empresas de automóveis que, nessa altura, se encontravam à beira do colapso. Desse encontro, na Pensilvânia, surgiu a ideia de criar um movimento de oposição ao rumo que o país estava a tomar. É a partir do contraste entre aquilo que é percebido como a opção preferencial da Administração por Wall Street (coração dos grandes interesses financeiros) em vez de Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 ’ 21 POLÍTICA Obama: perder as eleições, ganhar a História? Em quase dois anos, Obama tem vindo a cumprir as promessas de campanha e conseguiu vitórias legislativas consideradas extraordinárias. Será que o resultado eleitoral de 2 de Novembro seria diferente se Obama tivesse agido de outra forma? EPA/MIKE THEILER Por Kathleen Gomes* O Presidente norte‑americano discursa enquanto o Vice‑Presidente escuta em “Moving America Forward”, num comício num parque em Germantown, perto de Filadélfia, Pensilvânia. 22 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 POLÍTICA A 20 de Setembro, a estação NBC organi zou um frente‑a‑frente entre Barack Obama e cidadãos americanos em Washington DC. Obama riu‑se, como uma reacção ner vosa. Ela também estava nervosa. “Julguei que tinha votado num homem que disse que ia mudar as coisas de forma significativa para a clas se média. Eu sou uma dessas Era difícil imaginar que Obama pessoas. E estou à espera, sir. tivesse dificuldades de comunicação Não sinto nada ainda.” ‘ com os seus eleitores. ’ 1. O Presidente dos Estados Unidos esta va visivelmente mais grisalho. Mas a sua aura parecia intacta debaixo de uma bar ragem de aplausos, indicando que as notí cias da sua morte (política) tinham sido exageradas. Subitamente no Verão passado, tornou‑se cool ser anti‑Obama. Ele foi acusado de dar dinheiro a Wall Street e não fazer nada para estancar o desemprego e ajudar a classe média. Foi criticado pela forma como lidou com o derrame de petróleo no golfo do México – que continuava por vedar. As son dagens mostraram que um em cada cinco americanos acredita que Obama é secreta mente muçulmano. Uma América zangada, a do Tea Party, marchou até Washington para pedir a cabeça do Presidente. Como podia ele tirar férias, breves ou não? (O que explica as imagens de Obama a traba lhar durante as férias.) Obama podia esque cer a reeleição em 2012. Mas a verdade é que a rua ainda não tinha falado. Pelo menos, até 20 de Setembro. O jornalista que moderou o encontro, filmado em directo, quis ouvir a versão do Presidente. Porque é que o grande comunicador da campanha de 2008 estava a ter sérias dificuldades em 2010? “Eu estou a pensar na próxima geração e há muita gente por aí que está a pensar na próxima eleição. Se eu esti vesse a tomar decisões pensando em Novembro, não teria feito algumas das coisas que fiz porque sabia que não eram populares.” Aplausos. Talvez a assembleia de cidadãos tivesse sido seleccionada de forma a não incomodar Obama. O Presidente que está mais interessado em ganhar a História do que ganhar eleições concluiu: “Mas eram as coisas certas a fazer.” Primeira pergunta do público: “Boa ‑tarde, Presidente Obama. É uma grande honra estar aqui.” A mulher, uma afro ‑americana de casaco branco, apresentou ‑se: directora financeira de uma organização de veteranos, mãe de família, ex‑militar. “Muito francamente, estou exausta. Estou exausta de o defender e de defender a sua administração.” Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 extraordinárias, como a aprovação do pacote de estímulo à economia e a refor ma do sistema de saúde. O paradoxo é que tudo isso tem sido recebido pelo público americano com um “não, obri gado”. Olhando para a sua campanha eleitoral em 2008, era difícil imaginar que Obama tivesse dificuldades de comunica ção com os seus eleitores. Mas é isso que parece estar a acontecer em 2010: ele pode estar convicto de que está no bom caminho, mas não tem con seguido explicar ao resto do país porquê. A resposta do grande orador à mulher que disse estar “desiludida” e “exausta” foi balbuciante. Em vez de mostrar confiança na economia e de explicar porque é que o país estava na direcção certa, Obama perdeu‑se nos pormenores. Será que o resultado eleitoral de 2 de Novembro seria diferente se Obama tives se agido de outra forma? Nem todos os analistas políticos estão convencidos disso. No dia seguinte às eleições começará a campanha (não‑oficial) para 2012. Se umas eleições presidenciais podem prever o resultado de umas eleições intercalares, será que as eleições intercalares podem prever o resultado das próximas eleições presidenciais? Reagan e Clinton viram os seus partidos sofrer pesadas derrotas nas eleições intercalares (em 1982 e 1994, respectivamente) durante os primeiros mandatos na Casa Branca, o que não impe diu a sua reeleição. 2. Ninguém estava a pensar nisso em 2008, mas a vitória de Barack Obama foi uma má notícia para os demo cratas – tradicionalmente, quando um novo presidente entra na Casa Branca, o seu par tido costuma sofrer perdas nas eleições seguintes. É um traço da cultura política americana, um momento de check and balance. Os americanos não gostam de concentrar todo o poder numa só entidade. Um perito em sondagens que trabalhou para os republicanos quando Reagan era presidente, nos anos 1980, nunca mais se esqueceu do que lhe disse uma mulher ao telefone: oh, ela adorava Reagan. “Nesse caso”, perguntou o perito em sondagens, “vai ajudá‑lo a obter uma maioria republi cana no Congresso?” A mulher respondeu: “Não quero dar‑lhe tanto poder assim.” Os democratas ganharam maiorias tão confortáveis no Congresso em 2006 e 2008 que é inevitável serem quem mais tem a perder nas eleições intercalares de 2 de Novembro. Que são eleições locais – cada estado escolhe os seus congressistas – mas, no fundo, funcionam como um referendo sobre a administra Nos dois próximos anos, tudo vai depender ção em funções. É por isso que de três factores decisivos: economia, pouco importa que economia, economia. a popularidade dos republicanos nas sondagens tenha atingido um dos valores mais baixos de todos os tempos. Nos dois próximos anos, tudo vai depen A boa notícia é que não são eles que estão der de três factores decisivos: economia, em causa nestas eleições. economia, economia. Thomas Mann, do E, para o caso de estarem a pensar: onde think tank Brookings, em Washington, não estão os 15 a 20 milhões de novos eleitores acredita que as eleições de 2 de Novembro que Obama levou às urnas em 2008? O sejam um mau presságio para a reeleição eleitor das presidenciais e o eleitor das inter de Obama em 2012. “Se o crescimento [da calares é diferente, nota Michael P. McDonald, economia] atingir os três por cento ou mais professor de Ciência Política da George e começarmos a ter uma subida real do Mason University. “A ironia nestas eleições emprego, se o desemprego baixar para oito é que as pessoas que foram mais afectadas por cento [a média actual do país é 9,5 pela crise económica não são as pessoas que por cento], é bastante provável que Obama vão aparecer para votar. Os desempregados seja reeleito. Se entrarmos num período de não vão aparecer para votar.” estagnação terrível, nem Franklin Roosevelt conseguia ser reeleito.” E isso é o mais 3. Em quase dois anos, Obama tem vindo longe que um presidente consegue ir em a cumprir as promessas de campanha e popularidade. conseguiu vitórias legislativas consideradas * Correspondente do jornal Público em Washington DC ‘ ’ 23 POLÍTICA Transatlantic Trends 2010 NATO é uma aliança estável O Transatlantic Trends Survey é um dos inquéritos de opinião pública mais discutidos pelas elites da Europa e dos EUA. Até porque não há muitos, disse Pedro Magalhães, politólogo (ICS– UL), um dos especialistas convidados para comentar os resultados da sondagem de 2010, juntamente com Carlos Gaspar (IPRI– UNL), Bruno Cardoso Reis (IPRI– UNL) e as jornalistas Luísa Meireles (Expresso) e Teresa de Sousa (Público). Por Carla Baptista 24 atitudes reais partilhadas pela generalida de das opiniões públicas de um ou outro lado do Atlântico”. As diferenças também são estáveis: os resultados do Transatlantic Trends corrobo ram a ideia de que os americanos são mais “falcões” e os europeus mais “pombas”, isto é, 77 por cento de americanos acredi tam que o poder militar é mais importan te que o poder económico e que a guerra Rachel Cooke, Public Affairs Section, U.S. Embassy Kabul As percepções das pessoas sobre assuntos de segurança internacional e política exter na são desvalorizadas pelos decisores, que as consideram voláteis, moldadas pelas posições das elites e assentes numa base cognitiva frágil. Mas o Transatlantic Trends Survey, que se realiza já há nove anos nos EUA, na Turquia e em 11 países da UE (incluindo Portugal desde 2003, graças ao apoio da FLAD) demonstra que “os temas de política internacional têm mais impor tância para os eleitores do que se julgava e as atitudes em relação à política externa são mais estáveis do que se presumia”, segundo Pedro Magalhães. A sondagem, quando olhada em continui dade, identifica padrões nas opiniões públi cas europeias e americanas, com as ressalvas de pensarmos que não existe uma opinião pública europeia mas sim realidades nacio nais distintas, e que ainda passou pouco tempo para podermos enraizar estas dife renças. Mas há traços comuns nestes nove anos: os americanos e os europeus são bons amigos, encorajam lideranças mútuas fortes, apoiam a NATO (embora menos do que em 2009) e concordam inclusivamente que a Aliança Atlântica possa actuar fora da Europa para defender os membros de ataques à sua segurança (opinião de 77 por cento de ame ricanos e 62 por cento de europeus). Pedro Magalhães conclui que o “antia mericanismo” europeu e o “isolacionis mo” americano “estão mais perto de serem invenções de comentadores do que Acção diplomática dos Estados Unidos na provincia de Badghis no Afeganistão. 41 por cento dos americanos (mais 11 por cento que no ano passado) defendem a redução e retirada de tropas deste país. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 POLÍTICA é por vezes necessária para obter justiça no sistema internacional. Apenas 27 por cento de europeus partilham esta crença. Na mesma linha, e embora a “fadiga de guerra” também atinja os Estados Unidos, este país continua a apoiar maioritariamen te (52 por cento) o aumento ou manuten ção do número de tropas no Afeganistão (embora 41 por cento tenham preferido a redução e retirada de tropas, mais 11 por cento do que em 2009), enquanto esta posi ção é minoritária na Europa (uma maioria de 64 por cento prefere a retirada). O “pacifismo” europeu, em crescimento até mesmo no Reino Unido, tradicional mente o mais “bélico” aliado na UE dos EUA, levou Teresa de Sousa a assinalar a diminuição “do que restava da capacidade militar da Europa”. O Irão é outro pólo de divergência entre os dois lados do Atlântico. Embora todos os países (com excepção da Turquia) este jam “muito preocupados” com a possibi lidade de o Irão adquirir armas nucleares, preconizam soluções diversas: os ameri canos preferem as sanções económicas (40 por cento), apoiar a oposição (25 por cento) e, em último recurso, “usar a força”; os europeus elegem os incentivos económicos (35 por cento), desvalorizam o apoio à oposição (apenas 13 por cento) e recusam o recurso à força. No cenário hipotético das medidas polí ticas e económicas se esgotarem e ser necessário escolher entre aceitar um Irão com poder nuclear ou recorrer à acção militar, 64 por cento dos americanos e 43 por cento de europeus admitem a acção militar. Apenas dois países são maioritaria mente favoráveis à opção de aceitar um Irão nuclear: o Reino Unido (57 por cento) e a Turquia (53 por cento). Bruno Cardoso Reis sublinhou a dificul dade em implementar “boas soluções para o Irão”: a guerra é indesejável, as sanções não funcionam “e certamente não resulta rão as medidas de incentivo económico, pelo menos com o actual regime liderado pelo Presidente Mahmoud Ahmadinejad”. Os resultados do inquérito de 2010 acentuam o distanciamento entre a maio ria dos valores e opiniões partilhados pela Turquia, UE e EUA. Apenas 38 por cento dos turcos consideram positiva a adesão à UE (esse valor era de 74 por cento em 2004), mais 10 por cento do que em 2009 acham que a Turquia deve cooperar estreitamente com os países do Médio Oriente em questões internacionais (20 por cento) e menos nove por cento con sideram a cooperação com a UE prioritá ria (13 por cento). As relações com os EUA são escolhidas apenas por seis por cento e 34 por cento opinam que a Turquia ‘ O “antiamericanismo” europeu e o “isolacionismo” americano estão mais perto de serem invenções de comentadores. ’ 100 A adesão à UE foi/ seria boa para a economia 90 A utilização do euro tem sido/ seria boa para a economia 80 75 75 Percentagem 70 69 69 68 60 64 67 63 62 61 54 52 50 63 45 40 47 44 40 45 40 38 33 32 30 28 20 (€) Países da Zona Euro. gá Bu l o Un id ) Re in o nç a (€ (€ ) Fr a lia Itá EU 11 ) (€ Ro m én ia a( nh a pa Es vá q ui ga l lo Es tu €) ) (€ ) (€ Po r an ha ón ia Al em (€ ) an da Ho l Po l 0 ria 14 10 Q29, 30 ‘ 77 por cento de americanos acreditam que o poder militar é mais importante que o poder económico. ’ deve agir por conta própria em assuntos internacionais. Considerando que a maioria dos inquiridos em todos os países considera que a Turquia “não tem suficientes valores em comum para fazer parte do Ocidente”, Carlos Gaspar disse, meio a sério, meio a brincar, que “estamos perante uma construção recíproca de identidades: nós dizemos aos turcos que não são europeus e eles respondem que não querem ser europeus”. Portugal em crise apoia Obama, a NATO e o reforço da UE Portugal é o país europeu com as mais altas taxas de aprovação da actuação do Presidente Obama no plano internacional, seja relativamente à política do Afeganistão, na gestão das relações com a Rússia ou das tensões no Médio Oriente. A opinião pública portuguesa também é uma das mais alinhadas com os Estados Unidos em alguns temas de segurança, nomeada‑ mente o apoio ao reforço do papel da NATO, a disponibilidade para aumentar ou manter o nível de tropas no Afeganistão e para recorrer à força no caso do Irão. No plano económico, os resultados do Transatlantic Trends sugerem que a crise chegou tarde mas chegou feia a Portugal (teremos de aguardar pelo inquérito de 2011 para vermos como se fecha este ciclo, já que as respostas de 2010 antecedem as medidas de austeridade accionadas pelo Governo de José Sócrates). Os por‑ tugueses são dos respondentes mais direc‑ tamente afectados pela crise económica (78 por cento), apenas abaixo da Roménia e da Bulgária. Em 2009, 47 por cento (uma das percentagens mais baixas da média europeia) de portugueses respondiam da mesma forma. Apesar da percepção nega‑ tiva sobre o euro, Portugal é dos países onde mais cidadãos defendem que a res‑ posta à crise exige a construção de uma União Europeia mais forte. Adesão à União Europeia vs euro. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 25 POLÍTICA Perigosas aventuras do novo super‑herói americano No princípio foi a incredulidade: se alguns sonhavam que era possível, outros deixavam assomar o cinismo porque os EUA e o mundo ainda não estavam preparados para o novo super‑herói. Mas na eleição presidencial de Novembro de 2008, uma outra versão da divisa de uma célebre banda desenhada poderá ter passado pela cabeça de muitos: “É um político? É um Presidente? Não, é Barack Obama!”. Uma conferência internacional organizada pela Fundação Res Publica e pela Fundação Friedrich Ebert discutiu “o efeito Obama”. Por ISabel Marques da Silva* Na intervenção que fez sob o mote “Salvemos o soldado Obama”, o ensaísta Eduardo Lourenço classifica a eleição do primeiro Presidente negro dos EUA como um “milagre fantástico e uma grande sur presa, que grande parte da humanidade recebeu como um momento de entusias mo, sobretudo na Europa”. O director da revista Finisterra, publicação da Fundação Res Publica, que organizou com a Fundação Friedrich Ebert a conferência internacional “O Efeito Obama e o Futuro da Democracia Planetária”, em Maio passado, no Instituto Alemão, em Lisboa, disse que se tratava de um acontecimento comparável ao da elei ção de Nelson Mandela na África do Sul, “mas não é exactamente a mesma coisa, porque a África era percebida pela opinião pública ocidental como um continente de condição racial negra”. A subida ao poder de Obama é, assim, para Lourenço “um acontecimento da História universal de tipo novo”, não fora a pior crise mundial desde a Grande Depressão (EUA, anos 30 do século XX) ter desde logo toldado esse tempo que se adivinhava luminoso. Recordando que o maior pecado da civilização ocidental foi a escravatura, o ensaísta considera que a “legitimidade e dignidade que a popula ção negra sentiu não apagou séculos de opressão” já que as actuais circunstâncias geopolíticas e económicas fizeram com que os imperativos práticos rapidamente se sobrepusessem aos devaneios humanis tas e filosóficos. 26 “Ocidente de alcance mundial” Tal como Lourenço, outros oradores real çaram o facto de Obama ter protagoniza do um momento seminal face às barreiras políticas e ideológicas que se erguiam, granjeando um estado de graça que a sua condição algo “messiânica” fazia prever mais longo do que o habitual. Mas a crise económica e as guerras que os EUA travam no Iraque e no Afeganistão constituem uma frente difícil de trabalho para Obama, que terá de gerir a dicotomia internacio nalismo/isolacionismo na política externa da livemente por “Ocidente de alcance mundial”, num trocadilho com o concei to “wold wide web” (rede de alcance mundial proporcionada pelas novas tec nologias de comunicação de que a Internet é paradigmática). A resposta poderá ser uma “NATO Global” em competição com a ONU por que “os EUA estão preocupados com as ameaças dos Estados emergentes em falên cia e com organizações apátridas como a Al‑Qaeda e não com quezílias inter ‑Estados”, considera Braml. O “soldado ‘ Do soldado, o messias, o super‑herói mostrou moderação ideológica e contenção da força num novo século duramente marcado pela resposta ao terrorismo do 11 de Setembro de 2001. que divide os norte‑americanos. “Obama defende uma abordagem multilateralista, mas nos EUA isso significa partilhar o fardo. Contudo, os EUA consideram que os instrumentos actuais (FMI, Banco Mundial, NATO) estão ultrapassados e que precisam de ser reformados”, defendeu Josef Braml, do think tank Conselho Alemão de Relações Externas (Berlim). Braml for matou a sua intervenção sobre a eleição de Obama com base no conceito “the world wide west”, que pode ser traduzi ’ Obama”, como lhe chamou Lourenço, poderá estar mais predisposto para con vencer os aliados da necessidade de uma “soberania condicionada” em que a comu nidade internacional, numa “aliança glo bal de democracias” pode intervir nos Estados que não “cumprem as suas fun ções soberanas”, na visão do analista do Conselho Alemão de Relações Externas. Braml deu como exemplo a acção da NATO na Jugoslávia, nos anos 90, face à hesitação da ONU no primeiro conflito Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 POLÍTICA Nobel antes do tempo Carlos Gaspar também reconhece uma “mudança radical na visão do mundo sobre os EUA” que ficou bem patente na sua algo extraordinária selecção para Prémio Nobel da Paz, em 2009. O analis ta do Instituto Português de Relações Internacionais (Lisboa) crê, contudo, que os norte‑americanos não deixarão de exigir que o Presidente “garanta a hege monia e credibilidade necessárias para manter a ordem à escala internacio nal”. Gaspar aludiu a uma redescoberta confiança nos EUA pela Europa e pela África, mas Obama herdou fardos pesados da década republicana: as guerras no Iraque e Afeganistão no contexto da acção terrorista da Al‑Qaeda e do jihadismo talibã; o isolamento da revolução iraniana para controlar a nuclearização e o fundamentalismo islâmi co no golfo Pérsico e Médio Oriente; e lidar com o “dra gão” político e económico que é a China. O professor de Jornalismo e administrador da Fundação Luso‑Americana, Mário Mesquita, explica a “entrega desconcertante do Prémio Nobel” a Obama com a “descompressão” criada pelos apelos deste ao bipar tidarismo, na frente domés tica, e pela apologia do multilateralismo, na frente externa. O soldado, o mes sias, o super‑herói mostrou moderação ideológica e contenção da força num novo século duramente marcado pela resposta ao terrorismo do 11 de Setembro de 2001. “Mas a questão das guerras religio sas não esgota as problemá ticas geoestratégicas do Barack Obama nosso tempo pois há um Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 potencial de crescimento económico e geopolítico da China, da Índia e do Brasil enquanto novas potências”, advertiu Mário Mesquita. “Vivemos numa época em que o caos se impõe como o estado normal das coisas”, e a eleição de Obama não pode alterar “magicamente” esse “domí nio da instabilidade”, acrescentou. O “Tea Party” dos republicanos (em que partici param democratas mais conservadores), as cedências para aprovar a nova legislação do serviço nacional de saúde ou a polé mica manutenção da prisão de Guantánamo mostram uma “ambiguidade que não cola com um mundo binário como os EUA o gostam de ver”, refere Mesquita. Um mundo perigoso, que não se reco menda nem para os heróis, mesmo que tão inacreditáveis e necessários como o super‑homem ou Obama. * Jornalista da SIC EPA/ LISE ASERUD NORWAY OUT aberto no seio da Europa pós‑Guerra Fria. No que ao futuro da democracia planetá ria diz respeito, os EUA não estão interes sados em organizações abrangentes que albergam países totalitários, “como é o caso da ONU”, disse. e a mulher Michelle à chegada ao banquete em Oslo por ocasião da entrega do Nobel da Paz 2009. 27 POLÍTICA Preocupação climática já chegou aos militares Por Michael Werz* ‘ Em 2010, o maior consumidor de energia do mundo começou, pela primeira vez, a levar em conta as alterações climáticas nas suas estratégias a longo prazo. O Departamento de Defesa americano apre sentou ao Congresso o seu relatório Quadrennial Defense Review, ou QDR, um documento de estratégia em que o Pentágono descreve a sua visão das suas missões e da sua estrutura de forças perante as ameaças pre vistas. Mais claramente do que jamais o fez, o rela tório deste ano identifica as alterações climáticas como um factor de desestabilização, examinando a forma como as operações militares devem responder a catástrofes causadas pelo clima e a forma como as alterações climáticas poderão afectar as operações militares. Por último, o Pentágono avalia o custo do seu enorme consumo de energia, não só em termos de dólares mas também como desvantagem estraté gica – qualifica a eficiência energética como um “multiplicador de força”. Existe uma boa razão para isso: o abastecimento fiável de energia é extrema mente importante em missões militares, razão pela qual as tropas protegem as rotas de abastecimento de energia e os comboios de apoio são frequente mente alvo de ataques. Além disso, os custos dos combustíveis representam aproximadamente um terço do custo anual de manter um militar no ter reno, no Afeganistão. O Pentágono identifica as alterações climáticas como um factor de desestabilização. ’ A maior atenção dedicada pelo Pentágono à efici ência não é surpreendente dada a sua importância, mas o relatório reconhece que as Forças Armadas americanas têm participado progressivamente na resposta a catástrofes, o que alarga o âmbito das responsabilidades dos militares para além das ope rações tradicionais. Em 2006, o Center for Naval Analysis convocou um conselho de oficiais que con cluiu que as alterações climáticas são “um multipli cador de ameaças”, contribuindo para um aumento 28 da instabilidade política em várias regiões. O novo QDR leva estes argumentos um pouco mais longe, reconhecendo a necessidade de se adoptar uma abor dagem abrangente em relação à segurança energé tica, à estabilidade climática e mesmo ao reforço de governos debilitados em zonas particularmente vul neráveis aos efeitos das alterações climáticas. Os autores do QDR mencionam também o “impac to geopolítico significativo” que as alterações climá ticas terão no mundo inteiro, “contribuindo para a pobreza e a degradação ambiental e enfraquecendo ainda mais governos já de si frágeis”. O reconheci mento deste facto constitui um passo importante no sentido de se abordar os desafios complexos das próximas décadas nos domínios da segurança e humanitário. E prepara também o terreno para um outro passo na direcção certa: a noção de que não existe uma resposta militar para todas as ameaças à segurança. O relatório afirma claramente que “as alterações climáticas contribuirão para a escassez de alimentos e de água, aumentarão a propagação de doenças e poderão incentivar ou exacerbar a migração em massa”. Os climatologistas têm apresentado muitas projecções que prevêem a intensificação das tem pestades, furacões mais devastadores e o agravamen to das secas e da escassez de água que irão afectar a capacidade e a produção agrícolas no mundo intei ro, bem como o acesso aos alimentos e aos recursos hídricos, pondo em risco a subsistência económica de milhões de pessoas. Os peritos calculam que, até 2050, 200 milhões de pessoas poderão tornar‑se “migrantes climáticos” em casos extremos e que o mundo inteiro, desde o Bangladesh à zona do Sahel em África, será afectado. Segundo um relatório recente do director dos Serviços de Informações Nacionais dos Estados Unidos, os impactos das alterações climáticas nas Caraíbas e na América Central podem fomentar a migração para o México e para os Estados Unidos, e os movimentos migratórios crescentes no Sudeste Asiático estão a “aumentar as fricções entre diversos grupos sociais que já estão a sofrer as pressões dos efeitos das alterações climáticas”. O referido relató Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 POLÍTICA social ou governamental e crises humani tárias. As alterações climáticas irão prova velmente aumentar a migração já substancial de habitantes do Norte de África para a Europa. A região tornar‑se‑á também uma rota de transmigração para os habi tantes da África Subsariana que procurarem fugir ao stress climático extremo.” Um relatório recente do Potomac Institute for Policy Studies conclui também que o trânsito de migrantes através do Magrebe – Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Mauritânia – com destino a outros locais contribui para a desestabilização das socie dades do Norte de África. Esta instabili UN Photo/Evan Schneider rio considera que as perspectivas na região são especialmente preocupantes: “Os efeitos das alterações climáticas no Norte de África irão provavelmente exacer bar os riscos que já estão a ameaçar os recursos alimentares e hídricos da região, bem como as suas economias, infra ‑estruturas urbanas e sistemas sociopolíti cos. As cidades terão provavelmente de enfrentar uma deterioração das condições de vida, níveis elevados de desemprego e tensões civis frequentes. O stress climático, aliado a crises socioeconómicas e a respos tas ineficazes por parte dos governos, pode rá gerar situações localizadas de ruptura A destruição do tsunami de 2004, no Sri Lanka. Na cidade de Galle foram encontrados 7275 cadáveres durante a limpeza e remoção dos escombros. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 dade, por sua vez, cria um ambiente propício às operações do ramo regional em rápido crescimento da Al‑Qaeda, que desenvolve operações na Argélia, Marrocos, Tunísia, Líbia, Mauritânia, Mali, Chade e Níger. “Desde o seu ponto mais baixo a seguir aos ataques de 11 de Setembro, os incidentes terroristas no Magrebe e no Sahel atingiram um nível impressionante – 204 incidentes em 2009, um novo nível de intensidade. Esta escalada representa um aumento de 558 por cento nas operações terroristas, que mataram mais de 1500 pessoas e deixaram feridas outras 6000”, escreve Yonah Alexander no relatório. Mas o Magrebe não é o único local onde a migração causada pelo menos em parte por alterações ambientais se dá em regiões caracterizadas pela volatilidade e instabili dade, onde movimentos substanciais de pessoas podem dar origem a conflitos. Por conseguinte, é essencial introduzir estes efeitos mais subtis das alterações climáticas, como a migração, na equação da seguran ça nacional e reconhecer a realidade de que muitas das suas consequências só poderão ser resolvidas através de abordagens inova doras, assentes numa estratégia de segu rança sustentável que conjugue a segurança nacional, a segurança humana e a segurança colectiva. A análise do Pentágono sobre as alterações climáticas contida no QDR representa um primeiro passo significativo. A Administração americana está actualmente a tentar con jugar os processos de análise existentes no Pentágono, no Departamento de Estado, na USAID e noutros organismos com vista a desenvolver esforços abrangentes entre organismos, sob uma liderança civil. * Senior Fellow do Center for American Progress em Washington DC e professor adjunto na School of Foreign Service da Universidade de Georgetown. 29 Embaixador americano na NATO em entrevista antecipa Novas alianças para combater novas ameaças Investigador de política externa na Brookings Institution em Washington, até ao ano passado, Ivo H. Daalder foi nomeado embaixador americano na NATO (North Atlantic Treaty Organization) pela Administração Obama. Rui Ochôa Por Sara Pina e Simão Martins Ivo H. Daalder: “As parcerias e o reforço das alianças estão no centro da política de guerra de Obama”. 30 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Rui Ochôa Por ele passou parte da responsabilidade da organização da Cimeira da NATO, em conjunto com o novo embaixador ameri cano em Portugal, Allan J. Katz (também em entrevista nesta edição da Paralelo). Assim, por várias vezes, Daalder deixou o seu gabinete em Bruxelas e trabalhou por alguns dias em Lisboa. “Com esta luz, bem podíamos pensar em mudar os escritórios para aqui”, ironizou o embaixador termi nado o nosso encontro na Lapa, pouco passava das oito horas da manhã. ‘ Para se estar seguro em Madrid, Londres ou Lisboa tem que se combater no Afeganistão. ’ [Paralelo] Escreveu pouco antes da eleição de Obama que “o mundo precisa de um novo tipo de liderança − em que seja claro como, quando e com quem a América lidera”. Com quem é que a América quer exercer liderança? Devemos esperar novas par‑ cerias com a deslocação de poder para outros con‑ tinentes e outros países? [Ivo H. Daalder] Eis como o Presidente Obama olha para o mundo: ele vê um mundo que é muito mais complicado do que era, em que a interconectividade e a globalização permitem que alguém, em qualquer parte do mundo, cause impacto quase imediata mente noutro local do globo, incluindo nos Estados Unidos. E, nesse mundo, é importante compreender que nenhum país, nem sequer uma aliança, por si só, conse gue resolver todos os problemas. É neces sário trabalhar com outros. Dessa forma, as parcerias e o reforço das alianças estão no centro da política de guerra de Obama. De que parceiros estamos à procura? 1 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Sobretudo países que foram, desde sempre, nossos parceiros e que estiveram sempre ao nosso lado: as sólidas democracias na Europa e na Ásia. A Europa é um parceiro central. Está com os Estados Unidos desde os anos 40. No futuro, continuará ao lado dos Estados Unidos. Mas não é suficiente ter apenas os Estados Unidos e a Europa a cooperar. […] A grande diferença, nos últi mos 18 meses, é a decisão da Administração Obama em cooperar com a NATO e de o fazer de uma forma bastante aberta e con sultiva. Com uma estratégia comum… [P] … Um exemplo dessa estratégia comum? [IHD] Devo dizer Afeganistão. Antes de o Presidente ter decidido enviar mais tropas, em Março de 2009, encarregou o Vice ‑Presidente de falar com os embaixadores da NATO e perguntar: “Como encaram esta situação, o que acham ser necessário?". A Administração fez a sua revisão estraté gica no fim do Verão de 2009, recorrendo consistentemente ao envio de várias pes soas de Washington, com bastante experi ência, para se reunirem com membros da NATO para saber como viam a situação e para onde se encaminhava, perceber se enviariam mais tropas se nós enviássemos mais tropas… [P] A intervenção no Afeganistão, apoiada nos esta‑ tutos, teve consequências na instituição NATO pro‑ priamente dita? [IHD] Sim, teve que ter. Esta é a maior ope ração militar que a NATO alguma vez enca beçou, com o maior número de tropas dos EUA e de fora dos EUA sob o comando da organização, a cinco mil quilómetros de Bruxelas, por isso a NATO teve de mudar a sua visão dos acontecimentos. Mais importante, é necessário um entendimen to no seio de toda a NATO de que a segu rança na Europa, EUA e Canadá já não tem simplesmente que ver com o que se passa dentro da Organização do Tratado do Atlântico Norte, mas também com o exte rior. Portanto, para que estejamos seguros em casa, por vezes é necessário combater a cinco mil quilómetros de distância a par tir do exterior. […] A Europa deve aperceber ‑se de que para se estar seguro em Madrid, Londres ou Lisboa tem que se combater no Afeganistão. [P] Uma força europeia de segurança e defesa é compatível com a NATO? [IHD] Eu não vejo a Europa a preparar uma força militar que é europeia, como se fosse portuguesa, espanhola ou belga. Cada país tem apenas um exército, uma marinha e uma força aérea. Por vezes, usá‑las‑ão no âmbito do compromisso com a União Europeia, outras vezes com a NATO. O que precisamos de tornar claro é que, quando decidirmos iniciar operações militares, esta remos coordenados e que cooperaremos. E, além disso, como cada organização requer recursos, não duplicaremos aquilo que já existe. Que não precisamos, por exemplo, que a União Europeia possua grandes recur sos aéreos se esses meios já existirem na NATO. Vinte e um países europeus são mem bros da NATO, 21 países da NATO são mem bros da União Europeia, e mesmo assim possuem apenas um exército, que podem usar de uma ou de outra forma. [P] Mas acha então que não pode haver uma polí‑ tica de defesa e segurança europeia que seja diver‑ gente da norte‑americana? [IHD] É bastante improvável. Gostava de ver uma cooperação muito mais próxima entre a NATO e a UE, intensos diálogos para que possam estar juntos e discutir não só a Bósnia, o que fazemos hoje, mas o Afeganistão e o resto do mundo. Mas a realidade é que ainda estamos a falar sobre os mesmos países, os mesmos 21 países que terão de tomar as suas decisões em ambas as organizações que sejam compa tíveis com os seus interesses. 31 [P] Por que razão a cooperação União Europeia ‑NATO não é a melhor? [IHD] A razão principal é política. Há membros numa organização que não reco nhecem membros na outra organização. E como lidamos com consensos, tanto na UE como na NATO, por vezes é difícil abordar essas dificuldades. Uma coisa é a política outra é a realidade. Nos bastidores, actualmente, a cooperação é muito melhor. No Afeganistão, é a NATO quem protege, caso necessário, as polícias da UE; coope ramos juntos e activamente no Kosovo, onde se encontra uma grande operação de ambos. Portanto, no terreno, corre tudo bem. Na prática é óptimo. Em teoria não está a funcionar. ‘ Gostava de ver uma cooperação muito mais próxima entre a NATO e a União Europeia. [P] Quais serão as maiores mudanças do conceito estratégico? [IHD] O mais importante é perceber que será “todos por todos”, em que atacar um deles será como atacar todos os outros. Os tipos de ameaças que enfrentamos são difí ceis. Não estamos preocupados, acima de tudo, com exércitos a atravessar fronteiras. Preocupamo‑nos com milícias, cibercódigos a entrar pelos nossos computadores, para lisando infra‑estruturas civis ou até militares. Estamos preocupados com os mísseis balís ticos e com a proliferação de armas de des truição maciça, em que o terror nos chega através dos céus. Preocupamo‑nos com ter roristas que podem ou não possuir essas armas mas que mesmo com armas de fogo conseguem causar um dano terrível. ’ Portanto, essas são as ameaças que agora enfrentamos e contra as quais temos que possuir a capacidade de reagir. Por isso, a NATO, no século XXI, terá que reconhecer os novos tipos de ameaças e desafios que enfrenta. Será uma NATO diferente. Do meu ponto de vista, a NATO tem duas tarefas fundamentais no encontro de Lisboa. A primeira é compreender que os perigos mudaram e que agora temos novas formas de nos defendermos. A segunda é perceber que não é possível fazê‑lo sozinha. A NATO não consegue lidar com essas ameaças ape nas através de 28 países. Precisa de parcei ros, precisa de aliados para trabalhar em conjunto. Assim, a segunda coisa que tere mos que decidir é fortalecer as nossas par cerias com a Rússia, mas também com @ NATO [P] Como será o alargamento da NATO? [IHD] O artigo 10.º é muito claro. Qualquer país europeu que preencha os padrões da adesão à NATO pode ser convidado. Por isso, em teoria, o mapa da NATO poderia ser o mapa da Europa. Na prática, isso depende rá, sobretudo, de se os países que não são membros gostariam de ser membros. Há vários países na Europa que se quisessem aderir à organização amanhã, seriam membros. Há outros que não têm esse interesse sob qual quer circunstância. A Ucrânia, por exemplo, não pretende fazer parte de qualquer aliança. Portanto, no fim de contas, depende muito do que os países desejam. Reunião Informal dos ministros da Defesa da NATO. Da esquerda para a direita: o secretário‑geral da NATO, general Anders Fogh Rasmussen, o embaixador americano da NATO, Ivo H. Daalder, e o secretário da Defesa, Robert Gates. 32 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Rui Ochôa outros países em todo o mundo. Alguns desses serão os mesmos que participam nas relações bilaterais com os EUA, ou seja, uma relação com a Rússia, Austrália e Japão. Mas pensamos que a NATO precisa de par ceiros em todo o globo, não só nos países vizinhos, não só no Mediterrâneo (que é importante), não só na Europa Central, de Leste e na Ásia Central, mas em todo o mundo, para lidar com as ameaças e desa fios que enfrentamos. [P] Como serão as relações com a Rússia? [IHD] Creio que a Rússia ainda está a tentar perceber o que pretende exactamente da sua relação com a NATO. Por um lado, per cebe que os tipos de desafios que enfrenta são semelhantes aos da NATO. Por outro, claro, há uma longa história de antagonis mo e oposição com a NATO e deverá levar algum tempo a construir a confiança e a convicção necessárias para fazer desta par ceria não apenas algo sobre o qual falamos mas para pôr em prática. Esperamos que os líderes dos 29 países da NATO/Rússia compareçam em Lisboa e que estabeleçam uma ponte onde consigam lançar a sua nova parceria, direccionada para a frente. Não que os desentendimentos não sejam importantes, a NATO e a Rússia discordam sobre a Geórgia e noutros assuntos. Mas essas divergências não podem impedir‑nos de cooperar no futuro. ‘ A NATO, no século XXI, terá que reconhecer os novos tipos de ameaças e desafios que enfrenta. Será uma NATO diferente. ’ [P] As conversações entre os EUA e o Irão poderiam ser feitas através da NATO? [IHD] Não, não será através da NATO. O Presidente deixou muito claro, desde o momento em que foi eleito, que preten de lidar directamente com o Irão, no sen tido de abordar as diferenças que são muito reais e outros problemas. Ele sem pre disse: “O Irão tem uma escolha.” Poderá cooperar com a comunidade inter nacional, sentar‑se com a comunidade internacional e aderir aos seus padrões. E tudo é possível. Ou poderá escolher não cooperar e ficará cada vez mais isolado do resto do mundo. Essa escolha já foi repe tida nas Nações Unidas e o Presidente repeti‑la‑á até que, numa determinada altura, o Irão fará a sua escolha. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Ivo H. Daalder: “Estamos preocupados com os mísseis balísticos e com a proliferação de armas de destruição maciça”. [P] Mas porque é que a NATO não pode mediar? [IHD] Em parte, o Presidente quis realmen te que a China e a Rússia fizessem parte das conversações. E se fizermos da NATO o pilar central do envolvimento norte ‑americano, a cooperação com a Rússia e a China será menor. Aqui trata‑se do P5, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança – mais a Alemanha –, terão que se empenhar, juntos, no tema do Irão. Acreditamos que é uma boa forma de o fazer, se isso significar que o Irão irá seguir em frente. É essa a forma, mais do que colocar a NATO no centro, o que traria um quadro militar para a relação. [P] Como é que o Presidente Obama avaliou as negociações com o Irão encetadas pelo Presidente Lula da Silva? [IHD] O Presidente mostrou‑se a favor de qualquer esforço para fazer com que o Irão cumprisse as obrigações internacionais, mas não achou suficiente. Decidiu portan to pressionar a comunidade internacional, que acabou por concordar, como resultado final, com a adopção de novas sanções. O Presidente dos EUA é profundamente pragmático. Ele quer resolver o problema. Isto não resolveu o problema. [P] O Comando da NATO em Oeiras poderá ser deslocado? [IHD] Estamos no meio de um processo a tentar perceber como vamos adaptar a estru tura de comando para lidar com novas ame aças e desafios. É algo que, num sentido genérico, esperamos concluir em Lisboa. O que estamos à procura é de uma estru tura de comando que seja capaz de reagir, destacável no terreno, e que consiga lidar com as ameaças e desafios do amanhã, mais do que com os desafios de ontem. 1. Daalder, Ivo H., E. Slaughter, Anne‑Marie (2008), “America’s new global challenge”, in Boston Globe. 33 marco leitão silva As parcerias internacionais da Aliança Atlântica Por Carlos Gaspar* ‘ Espinosa demonstrou que “a validade de uma alian ça só dura enquanto existir o motivo que levou à sua conclusão”. Para os que entendiam que a Aliança Atlântica se resumia à necessidade de conter a União Soviética, a sua sobrevivência depois do fim da Guerra Fria continua a ser um contra‑senso. Mas a aliança das democracias ocidentais também asse gurou a resolução da questão alemã e não só con seguiu evitar uma escalada na competição entre as duas superpotências, como se tornou o principal garante da estabilidade internacional durante a “longa paz” da Guerra Fria. Nesse sentido, a razão A necessidade de intervir “fora‑da‑área”, para lá das fronteiras do espaço euroatlântico, reclama formas específicas de legitimação e a articulação com novos parceiros. @ NATO ’ O secretário‑geral da NATO, general Anders Fogh Rasmussen, recebido na Casa Branca pelo Presidente Barack Obama no passado mês de Setembro. Os Estados Unidos querem acumular parcerias heterogéneas, bilaterais e multilaterais na NATO. 34 de ser da Aliança não desapareceu com a dissolução da União Soviética e, no pós‑Guerra Fria, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) continuou a ser crucial para garantir a nova balan ça do poder. A natureza da OTAN não se alterou e os seus ini migos continuam a ser todos os que ameaçam os equilíbrios internacionais. A mudança está na defi nição desses agentes, uma vez que se multiplicaram as ameaças, regionais ou periféricas, estatais e não ‑estatais, simétricas ou assimétricas, que podem perturbar a balança do poder. A parceria euroatlântica Para responder à nova configuração das ameaças no pós‑Guerra Fria, a OTAN transformou‑se e procurou encontrar novas doutrinas, novas capacidades e, tam bém, novas parcerias. A reconciliação com os inimi gos tornou‑se uma prioridade na redefinição do “espaço euroatlântico” de “Vancouver a Vladivostock”, como uma “comunidade de segurança”. A dissua são nuclear não perdeu a sua relevância, mas não é eficaz na luta contra os talibãs ou a Al‑Qaeda. As forças convencionais que mantêm os equilíbrios no teatro europeu foram reduzidas para se desenvol verem as forças expedicionárias e as capacidades de projecção de poder indispensáveis para intervir no Afeganistão ou controlar as costas da Somália. A necessidade de intervir “fora‑da‑área”, para lá das fronteiras do espaço euroatlântico, reclama formas específicas de legitimação e a articulação com novos parceiros globais. As parcerias – um termo deliberadamente ambí ‑guo – são uma inovação política e institucional que caracterizou a transformação da Aliança Atlântica no pós‑Guerra Fria. A sua primeira forma, criada em Dezembro de 1991 – o Conselho de Cooperação do Atlântico Norte (NACC) – ainda incluiu a União Soviética. Mais tarde, em 1994, os Estados Unidos e a Aliança Atlântica criaram os programas da Parceria para a Paz (PfP), aos quais aderiram os países da Europa Central e Oriental e as antigas repúblicas da União Soviética, incluindo a Rússia. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 A segunda geração Nos anos seguintes, com os novos alarga mentos da Aliança Atlântica e a integração das democracias pós‑comunistas, os mem bros da OTAN passaram a ser maioritários do Conselho de Parceria Euroatlântica. Em minoria, os “Partner Countries” dividiram ‑se entre os parceiros que podiam encarar a sua adesão à OTAN, como os Estados neutrais, a Ucrânia e a Geórgia, e os que não estavam interessados nessa possibili dade, como a Rússia ou as repúblicas da Ásia Central. A segunda geração de parcerias revelou os problemas da projecção da OTAN para lá da área definida pelo Tratado de Washington e, nomeadamente, a recentragem vertical dos conflitos internacionais no “Grande Médio Oriente” e no Índico. Desde os anos 1990, a OTAN começou a desenvolver relações com os países mediterrânicos e, em 2004, na Cimeira de Istambul, os membros do Diálogo Mediterrânico (MD) – o Marrocos, a Argélia, a Tunísia e a Mauritânia, bem como o Egipto, a Jordânia e Israel – foram elevados à cate goria de “parceiros”. Na mesma altura, formou‑se a Iniciativa de Cooperação de Istambul (ICI), à qual aderiram Estados membros do Conselho de Cooperação do Golfo – o Koweit, o Bahrein, o Qatar e os Emirados Árabes Unidos. Essas novas parce rias eram claramente exteriores ao espaço tradicional da Aliança Atlântica e nunca houve qualquer intenção de integrar os seus membros na OTAN. Mais importante, a principal missão inter nacional da OTAN – a Força Internacional de Assistência à Segurança no Afeganistão (ISAF) – pôde contar com a participação militar da Austrália, da Nova Zelândia, da Coreia do Sul e do Japão. Paradoxalmente, as quatro democracias da Ásia e do Pacífico aliadas dos Estados Unidos, que partilham com as democracias ocidentais os mesmos valores e os mesmos objectivos de segu rança internacional, não têm um estatuto formal de parceria com a Aliança Atlântica, Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 que os designou inicialmente como “Países de Contacto” e, mais tarde, como “partners across the globe”. acumular parcerias heterogéneas, bilaterais e multilaterais, com a União Europeia, a União Africana e a Organização do Tratado de Segurança Colectiva, e com a Rússia, a China e a Indonésia, sem um critério claro – no limite, correndo o risco de duplicar as Nações Unidas. A linha minoritária pro põe uma valorização específica das relações entre a Aliança Atlântica e as potências democráticas. A terceira geração de parcerias vai comple tar a transformação da Aliança Atlântica e a institucionalização específica das parcerias estratégicas com as potências democráticas pode reforçar a sua capacidade para garan tir a balança do poder num momento crí tico da transição internacional. A Aliança Atlântica e os parceiros democráticos A questão posta para a definição de uma terceira geração de parcerias depende da definição dos objectivos inscritos no Novo Conceito Estratégico, cuja aprovação está na ordem de trabalhos da Cimeira de Lisboa. A Aliança Atlântica é uma aliança regional com responsabilidades internacionais. A OTAN não vai abrir as suas portas às potências democráticas não‑europeias, como a Índia, o Japão ou o Brasil, para se transformar numa “Global NATO”. Mas * Director do IPRI – UNL persiste uma divisão entre duas linhas políticas no Persiste uma divisão entre duas debate sobre a sua evolução e a procura de parceiros linhas políticas no debate sobre estratégicos internacionais. a sua evolução e a procura A linha dominante, expres sa no Relatório do Grupo de parceiros estratégicos de Peritos dirigido por internacionais. Madeleine Albright, quer ‘ ’ @ NATO O sucesso da primeira geração das parce rias ficou demonstrado em 1997, quando a Polónia, a Hungria e a República Checa foram convidadas para aderir à Aliança Atlântica, a Rússia e a Ucrânia concluíram acordos bilaterais próprios com a OTAN e se fundou o Conselho de Parceria Euroatlântica (EAPC), com a participação de todos os membros da Aliança Atlântica, dos antigos membros do Pacto de Varsóvia, dos novos Estados independentes formados com a decomposição da União Soviética, e dos Estados neutrais europeus. Uma “terceira geração” de parcerias estratégicas da NATO será definida na Feira Internacional de Lisboa, o local escolhido para a cimeira. Aqui durante uma visita de Rasmussen. 35 NATO Um por todos, todos por um A missão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN, ou NATO, na sigla em inglês), sofreu profundas alterações ao longo dos últimos sessenta e um anos. Mas mantém-se a premissa desta aliança militar: cooperação estratégica em tempo de paz e auxílio mútuo em caso de ataque a um dos países-membros. Países fundadores da NATO Actuais países-membros 70 000 militares envolvidos em intervenções da NATO 2 200 militares mortos Canadá (2 100 no Afeganistão) Principais missões da NATO Jugoslávia (1993) Bósnia-Herzegovina (1994-2004) Sérvia (1995) Jugoslávia (1999) Kosovo (desde 1999) Macedónia (2001-2003) Costa do Mediterrâneo (2001) Afeganistão (desde 2003) Costa da Somália (2008-2009) O C E A N O TEXTOS Patrícia Fonseca INFOGRAFIA Álvaro Rosendo FONTE NATO, Ministério da Defesa Nacional, Estado-Maior General das Forças Armadas, Coalition Casualty Count 11 de Setembro, Nova Iorque (2001) O artigo 5.º do tratado, que estipula que um ataque a um dos membros da NATO é um ataque a todos, foi accionado pela primeira vez na sequência dos ataques terroristas contra as Torres Gémeas. Nova Iorque Washington Estados Unidos da América Fundação da NATO, Washington (1949) O Tratado de Washington foi assinado a 4 de Abril de 1949 por 12 países ocidentais, para “salvaguardar a liberdade e a segurança de todos os seus membros”. A liderança norte-americana marcou, desde o início, a história da NATO. E foram os EUA que contribuíram com a maior parte dos fundos económicos, tropas e armas para suportar as intervenções da Aliança, até aos dias de hoje. Bahamas México Cuba Haiti Jamaica Belize Guatemala El Salvador 36 A T L Â N T I C O Rep. Dominicana Puerto Rico Honduras O C E A N O Trindade e Tobago Nicarágua Costa Rica A T L Â N T I C O | OUTONO | INVERNO 2010 Panamá Paralelo n.o 5 Venezuela Colombia Guiana Pacto de Varsóvia (1955) Em resposta à formação da NATO, sete países socialistas do Leste europeu (Albânia, Alemanha Oriental, Bulgária, Hungria, Polónia, Checoslováquia e Roménia) uniram-se à União Soviética na criação de uma nova aliança militar. O Pacto de Varsóvia foi extinto a 31 de Março de 1991, data que acabou por simbolizar o fim da Guerra Fria. Gronelândia (Dinamarca) Islândia Suécia Finlândia Queda do Muro de Berlim (1989) Originalmente, a NATO visava defender o Ocidente da União Soviética. A partir dos anos 1990, e com a dissolução do bloco socialista, a sua continuidade chegou a ser posta em causa. Noruega Estónia Sede da NATO em Bruxelas, Bélgica Letónia Dinamarca Lituânia Rússia Reino Unido Irlanda Holanda Portugal em missões NATO Bruxelas Foi ao aliar-se à NATO que Portugal quebrou a tradição de não intervenção em conflitos, que mantinha desde a I Guerra Mundial. Nos últimos . vinte anos, o País empenhou mais de 20 mil homens em 15 intervenções diferentes, na Europa, no Mediterrâneo, na Ásia e na África. Alemanha Bélgica Luxemburgo França Guerra nos Balcãs (1995) A primeira intervenção militar da história da NATO é lançada na Bósnia, com o bombardeamento de posições sérvias. Varsóvia Rep. Checa Eslováquia Áustria Suiça Moldávia Hungria Ucrânia Roménia Eslovénia Croácia Bósnia e Herz. Sérvia Bulgária Itália Montenegro Kosovo Geórgia Macedónia Arménia Albânia Portugal Turquia Grécia Espanha Açores Tunísia (Portugal) Malta Madeira (Portugal) Bielorrússia Polónia Berlim Missões em curso com participação portuguesa: Kosovo (KFOR) – 300 militares Afeganistão (ISAF) – 247 militares Marrocos Mar Mediterrâneo Chipre Canárias Sara Ocidental Irão Síria Líbano Israel Palestina Líbia Argélia (Espanha) Rússia Iraque Jordânia Kosovo (1999) A NATO conduz onze semanas de bombardeamentos Egipto contra a ex-Joguslávia para forçar o fim do conflito no Kosovo. É a primeira missão lançada sem a aprovação das Nações Unidas. Arábia Saudita Mauritânia Mali Niger Cabo Verde Chade Afeganistão (2003) A NATO aceita tomar o controlo das operações no Afeganistão, assumindo a primeira intervenção militar fora da Europa. Iéman Senegal Sudão Gâmbia Guiné-Bissau Paralelo n.o 5 Burquina-Faso Guiné | OUTONO | INVERNO 2010 Serra Leoa Benin Costa do Marfim Nigéria Togo Gana Camarões Rep. Centro Africana Etiópia37 Somália SARA PINA Do tratado aos conceitos Por josé Medeiros Ferreira ‘ É natural que do alargamento da NATO e da condução de certas operações na península balcânica, ou no Afeganistão, resulte uma maior ênfase no processo de consulta colectivo previsto no artigo 4.º do Tratado. @ NATO ’ Se a NATO não existisse, alguém reclamaria hoje a sua constituição e, se sim, em que moldes? Esta parece ser a pergunta fundamental que persegue Madeleine Albright e o seu grupo de trabalho para um novo conceito estratégico da Aliança Atlântica. Com efeito, caso o Tratado do Atlântico Norte tivesse sido concebido para enfrentar um só pos Reunião bilateral NATO/Rússia. Da esquerda para a direita: o secretário‑geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, a cumprimentar o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov. 38 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 ‘ Um novo conceito estratégico para a NATO também abre um espaço para a Rússia. […] Portugal, em termos da NATO, tem navegado entre os Açores, o Comando de Oeiras e as operações militares na península balcânica e no Afeganistão. sível inimigo, ele estaria obsoleto. Mas procurar‑se‑á em vão, nos seus 14 artigos, a determinação específica de um só. A história da GuerraFria como foi conta da apontou o “perigo soviético”, o expan sionismo russo ou o “comunismo” como os adversários dos co‑signatários do Tratado depositado em Washington. Lord Ismay, com o sentido da fórmula, apontou em breves palavras o primeiro conceito polí tico da Aliança: “Keep the americans in, the Germans down and the Russians out” Era muito mais do que uma boutade. Fosse como fosse, a NATO assistiu como vencedora à reunificação alemã, ao retrai mento soviético na Europa de Leste e, depois, ao próprio desmembramento da URSS, se bem que talvez não esperasse tanto duma só vez. Caso a NATO tivesse na sua génese apenas esses objectivos históricos, teria então ter minado a sua existência. Ora, antes pelo contrário, será no período posterior a 1989 que o Tratado do Atlântico Norte, então com quarenta anos, ganha novo vigor. Dota‑se de dois novos conceitos estratégicos, em 1991 e 1999, ainda com Washington vira da para as condições da segurança transa tlântica. Se esses conceitos eram um tudo nada barrocos e múltiplos nos seus propó sitos, espelhados por mais de 50 artigos, o certo é que os EUA forçam, com natura lidade e com êxito, o alargamento da NATO, primeiro à Polónia, República Checa e Hungria em 1999, depois aos países bálti cos e aos da Europa Oriental em 2004. Ouso opinar que só então se cumpriu o grande objectivo da Aliança Atlântica vista da capital onde está depositado o Tratado. Um outro acontecimento veio demonstrar as virtualidades do Tratado de 1949, para além das circunstâncias europeias: os EUA são vítimas de actos de guerra no seu próprio território com os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. Uma eventualidade muito remota em 1949 e nem sequer pre vista nos 65 artigos do então fresco concei to estratégico da NATO de 1999. O que se mantinha ático e firme era o artigo 5.º do Tratado que considera que um ataque armado contra uma das partes, “na Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 ’ Europa ou na América do Norte” será con siderado um ataque a todas. Assim, esse artigo foi accionado pela primeira vez só depois do fim da Guerra Fria e por causa de um ataque ao território dos EUA, con trariamente a toda a doutrina militar e ao sistema de forças instalado. É ainda por causa desse ataque que as forças da NATO estão empenhadas no Afeganistão há oito anos. Assente‑se pois que a NATO venceu sem condições a Guerra Fria mas só accionou o artigo da defesa colectiva militar depois dela e para enfrentar outro tipo de ameaças. Deste modo, faz todo o sentido prolongar a vida da NATO, sobretudo depois dos seus alargamentos ambivalentes no teatro euro peu. Que sentido faria o seu alargamento de 16 para 28 membros, já no século XXI, caso o seu fim estivesse próximo? Elabora‑se pois o projecto de um novo conceito estratégico para a NATO que deverá ser discutido na próxima cimeira em Lisboa. Embora tendo presente que nenhum conceito altera a letra do Tratado do Atlântico Norte, trata‑se de um exercí cio fundamental depois das experiências na Bósnia, no Kosovo, na Macedónia e no Afeganistão, e das novas ameaças como elas se estão desenhando nestas duas pri meiras décadas do século XXI. Nota‑se uma tendência geral para recen trar a estratégia da NATO na sua missão principal de garantir a defesa colectiva de todos e de cada um dos seus membros, nos termos do artigo 5.º. Ora é natural que do alargamento da NATO e da condução de certas operações na península balcânica, ou no Afeganistão, resulte uma maior ênfase no processo de consulta colectivo previsto no artigo 4.º do Tratado sobre a percepção das ameaças à integridade territorial, à segurança e à independência de cada um dos Estados membros. Essas consultas podem servir para redu zir o âmbito das surpresas internacionais que têm caracterizado os últimos tempos. O campo dessa cooperação é vasto, desde a avaliação das novas ameaças até à imple mentação de um quadro de segurança marítima que pode interessar Portugal. Mas o projecto de um novo conceito estratégico para a NATO também abre um espaço para a Rússia e essa é, de facto, uma das grandes variáveis para o futuro. Paradoxalmente, o conceito de Ocidente só se refaz caso Moscovo venha a aderir a uma espécie de pacto tripolar entre a Rússia, a União Europeia e os Estados Unidos da América que ajude todos a criar um ambiente de segurança com as potên cias emergentes. O comportamento da Rússia – nas ques tões do desarmamento nuclear, no policia mento das actividades antiterroristas, no respeito pela integridade territorial dos Estados representados nos organismos inter nacionais, o seu compromisso de facilitar o acesso das tropas NATO, ou norte ‑americanas, ao teatro do Afeganistão, a sua entrada no mercado mundial da energia e do gás – será determinante para a seguran ça do nosso mundo. Aliás, a diplomacia dos EUA tem estado muito activa, estabelecendo conversações bilaterais com a Rússia sobre a redução do arsenal nuclear, a abertura de vias de aces so ao Afeganistão e o tratamento da questão do Irão. Essas questões, tratadas bilateralmente, ou dentro do quadro da parceria atlântica, indicam uma passagem da Rússia de par ceiro de segurança concorrencial para parceiro de segurança cooperativa. Curiosamente, o “pilar europeu da Aliança”, pujante no conceito estratégico da NATO em 1999, perdeu gás nos últimos anos. A criação da moeda continental, as prioridades estabelecidas pelo Pacto de Estabilidade e, agora, a crise das “dívidas soberanas” atenuaram o ímpeto da iden tidade europeia de segurança. A reentrada da França nos comandos militares da NATO fez o resto, e ainda terá outras con sequências, inclusivamente para Portugal. Esta é a realidade, por muitos artigos que o novo conceito estratégico venha a dedi car ao tópico. E Portugal? Portugal, em termos da NATO, tem nave gado entre os Açores, o Comando de Oeiras e as operações militares na península bal cânica e no Afeganistão. No novo conceito só pode querer aumentar o lado colegial da Aliança, reforçar as suas relações estra tégicas com a América do Norte, manter as suas forças militares operacionais, ser no pilar europeu um parceiro credível e escu tado nesta nova fase de segurança coope rativa. Sem a NATO seria bem pior. * Professor da UNL 39 Presidentes americanos em Portugal: sempre VIP’s, mas uns mais amados do que outros As relações políticas e diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos foram sempre boas, nunca foram muito intensas. A América era o país novo e rico, Portugal antigo e pobre. Por Carla Baptista Espanha oferecia em troca do apoio por tuguês. A resposta americana traduziu‑se na assinatura de três acordos comerciais e mais três acordos sobre arbitragem, naturalização e emigração no período que decorre entre 1899 e 1910. Foi sempre a guerra, ou a sua iminência, a determinar a visita dos presidentes ame ricanos a Portugal. O relato feito pela imprensa da época dessas visitas dá‑nos conta de uma profunda alteração no modo de relacionamento com a potência estran ARQUIVO DN Na última década da monarquia, os con tactos entre os dois países aumentaram, favorecidos pela decisão de D. Carlos declarar a neutralidade face à guerra hispano‑americana, em 1898, embora aliciado pelas “vantagens substanciais” que “I like Ike”. Foi com esse diminutivo carinhoso e informal que o Diário de Notícias anunciou a chegada a Lisboa de Eisenhower, a 19 de Maio de 1960. 40 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 geira, com matizes que vão desde o puro fascínio até à declarada hostilidade, senão do Estado, pelo menos de parcelas da opi nião pública. Roosevelt nos Açores e um mapa para as crianças A primeira visita de um putativo presiden te, então subsecretário da Marinha, foi a de Franklin Delano Roosevelt, que viria a ser eleito para a Casa Branca em 1932 por uma esmagadora maioria de votos popu lares e no colégio eleitoral, motivada pelo descontentamento gerado pelo crash bolsis ta de 1929 e pelo desgaste que a Grande Depressão causou no seu rival e antecessor no cargo, Herbert Hoover. Da passagem de Roosevelt pelos portos de Ponta Delgada e do Faial, em 13 e 14 de Julho de 1919, a bordo do destroyer USS Dyer, com o objectivo de visitar a base naval que os americanos tinham instalado meses antes em Ponta Delgada, não ficou grande registo histórico. A base fora mon tada meses antes pelos americanos para fazer face à campanha submarina alemã no Atlântico e foi desactivada após o fim da I Grande Guerra, ficando as autoridades militares portuguesas com algumas peças de artilharia. Existe uma pintura a óleo do barco, um discurso proferido no Almirantado Americano em Ponta Delgada, sublinhando a importância estratégica das ilhas para o transporte das tropas através do Atlântico (reproduzido pelo jornal República, de Ponta Delgada, a 20 de Julho de 1918), e uma curiosa passagem no seu diário, dirigida à mulher Eleanor, recomendando‑lhe que diga aos três filhos do casal, Ana, James e Elliot, para procurarem no mapa “estes lugares dos Açores”, cenário do “famoso combate entre o corsário John Armstrong e os barcos de guerra britânicos, na guerra de 1812”. Banhos de multidão em Lisboa para receber Eisenhower A honra de inaugurar a primeira visita ofi cial de um presidente dos Estados Unidos a Portugal coube a Dwight Eisenhower, um estadista cuja elevada popularidade se ficou a dever também ao facto de a sua eleição para o segundo mandato, em 1956, ter coincidido com a entrada em força da tele visão nas campanhas eleitorais. Eisenhower foi o inventor de um dos primeiros grandes slogans políticos da era moderna, o “I like Ike”, e foi com esse diminutivo carinhoso e informal que o Diário de Notícias anunciou a sua chegada a Lisboa, a 19 de Maio de 1960. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 ‘ Naquela época, recebia‑se à grande e à portuguesa, A honra de inaugurar a primeira visita tanto mais que oficial de um presidente Eisenhower vinha de um cenário tem dos Estados Unidos a Portugal pestuoso em Paris, coube a Dwight Eisenhower, um estadista capital que abando nou um dia antes, cuja elevada popularidade se ficou obrigando o proto a dever também ao facto de a sua eleição colo luso a uma canseira imensa para o segundo mandato, em 1956, para ter prontos, ter coincidido com a entrada em força vinte e quatro horas mais cedo do que o da televisão nas campanhas eleitorais. previsto, os sump tuosos preparativos, incluindo “decoração esplendorosa do aero mesmo grafado] em Paris”. Em oposição, porto”, “tolerância de ponto, da parte da a conferência de imprensa no Hotel Ritz manhã, para todos os estabelecimentos serviu até para que o adido de imprensa públicos e organismos corporativos” para americano, James Hagerty, fizesse algumas poderem assistir ao cortejo presidencial, o confissões de foro pessoal: o Presidente navio Pocono, da Armada americana, anco Eisenhower estava “fed up”, “disgusted”, rado no Tejo, e um banquete na Sala dos “farto e cheio do clima criado em Paris Espelhos do Palácio de Queluz. por Kruschef [este, por sua vez, dera no O relato do DN destes dois dias segue a Palácio Chaillot uma conferência de fórmula grandiloquente habitual na cober imprensa épica, em que se “exaltou, ameatura jornalística das vindas de políticos çou e deu socos na mesa, enquanto a assis estrangeiros durante todo o Estado Novo: o tência assobiava, gritava e aplaudia] e ficou avião que trouxe o Presidente americano muito emocionado com a recepção portu (um Boeing 707) “rolou na pista, os jactos guesa, especialmente das crianças que entoando uma estranha sinfonia […] o povo, “delirantemente o aclamaram”. que se aglomerava aos milhares, nas varan das do aeroporto e nos passeios do largo fronteiro, irrompeu em longos aplausos, Nixon na ilha Terceira tornados mais calorosos com o entusiástico para resolver crise monetária agitar das bandeiras portuguesas e norte A visita do Presidente Richard Nixon à ilha ‑americanas […] estalejaram foguetes”. Terceira, em 11 de Dezembro de 1971, O jornal titulou que “o presidente onde se encontrou com o Presidente Eisenhower fez o elogio de Salazar” duran Charles Pompidou para discutir a crise te o banquete em Queluz, acrescentando monetária internacional (o 37.º Presidente o delicioso pormenor de, durante as foto dos EUA suspendeu unilateralmente o acor grafias oficiais, vendo Salazar tímido e dis do de Bretton Woods, cancelando a con tante das objectivas dos fotógrafos, ter versibilidade directa do dólar em ouro, e abandonado a companhia da Sra. D. adoptou uma série de outras medidas pro Gertrudes (mulher do almirante Américo teccionistas), decorreu num ambiente polí Tomás), estendendo‑lhe a mão “num gesto tico e jornalístico bastante diferente do de cortesia e amizade”: “Senhor Presidente, quadro salazarista anterior. venha fotografar‑se ao meu lado”. A dupla Nixon‑Caetano esforçou‑se por A passagem por Lisboa não teve um gran desanuviar a tensão que estalara durante o de impacto político e foi mais importante tempo dos respectivos antecessores, Kennedy pelo que a antecedeu – o malogro da e Salazar, em virtude da posição americana cimeira de Paris entre Eisenhower, na guerra com as colónias portuguesas. Khruchtchev, De Gaulle e MacMillan e o John Kennedy e os seus conselheiros início de um período de enorme tensão tentaram convencer Salazar a aceitar a entre os dois blocos, motivado pela Guerra autodeterminação de Angola, Moçambique do Vietname, iniciada em 1959, e pelo e Guiné‑Bissau. Salazar, enfurecido pela abate pelos russos, apenas uns dias antes, ingerência e inamovível, recusou renovar de um avião espião americano – do que o Acordo Suplementar de Defesa, assinado pelos seus efeitos práticos. em 1957 e com data de expiração em 31 O DN sublinhou que “Portugal foi um de Dezembro de 1962, que previa a uti oásis depois da atmosfera de irritação e de lização sem restrições do aeroporto de ódio estabelecida por Kruschef [assim Santa Maria e do aeródromo das Lajes, ’ 41 ARQUIVO DN Richard Nixon à chegada à ilha Terceira, em 11 de Dezembro de 1971, para se encontrar com o Presidente Charles Pompidou e discutir a crise monetária internacional. O presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, recebeu-os nas Lajes. na Terceira. Desse impasse, resultou a par tir de 1964, uma posição muito precária dos Estados Unidos relativamente à utili zação das facilidades das Lajes. O governo de Marcelo Caetano foi mais realista: evitou o confronto ideológico e procurou obter o máximo de cooperação, incluindo a exigência de contrapartidas materiais, que até aí não existiam. Este foi exactamente o ponto central de uma colu na de opinião escrita por Manuel Magro, um dos quatro jornalistas que o Diário Popular enviou para a intensa cobertura do encontro entre Nixon e Pompidou: “A ajuda económica agora negociada nos ter mos do acordo de Bruxelas faz‑nos, porém, pensar em como parece incrível que o nosso país tenha durante tantos anos permitido a utilização da base sem que por isso fosse devida qualquer taxa ou renda […] Fidalgo sim, mas não tanto.” António Rego Chaves, outro dos jorna listas do DP, traçou o perfil de Nixon (num artigo de opinião chegou a escrever que o secretário de Estado do Tesouro norte ‑americano da altura, John Connally, aban donou na Terceira a sua linguagem “imperativa e nacionalista, substituindo‑a por um tom menos aparentado com o esti lo texano”, uma avaliação impensável na imprensa portuguesa durante a época sala zarista): “O presidente dos Estados Unidos é uma estrela: surgiu sempre rudemente maquilhado perante as objectivas dos fotó 42 grafos e o olhar indagador dos repórteres; o seu passo, o seu sorriso, os seus gestos foram sempre idênticos, resvalando para o movimento mecânico do autómato. Este é o aspecto exterior, que oculta o talento político de um dos mais notáveis chefes de estado que Washington abrigou.” Mas se Nixon ganhou em vedetismo, e se passeou de helicóptero pela ilha, Pompidou tinha o “brinquedo” mais admirado: o mag nífico Concorde, o último grito da indústria aeronáutica europeia, a primeira coisa que Nixon viu ao aterrar na Terceira, segundo o próprio, e que fez questão de visitar, depois de o embaixador americano em Paris, que viajou com o Presidente francês, lhe ter dito que a comitiva francesa partiu mais tarde e chegou três horas antes do que a americana. À saída do Concorde, segundo o DP, Nixon desabafou: “Não o digo com inveja, mas gostaríamos de ter sido nós a construir este avião.” Uma passagem relâmpago de Carter por Lisboa A vinda de Jimmy Carter a Lisboa, em 26 de Junho de 1980, por umas escassas sete horas – bastante atarefadas, pois deu tempo para visitar os Jerónimos, o Palácio da Ajuda, o Palácio de Belém e discursar na Assembleia da República – não teve os banhos de mul tidão das anteriores. Foi discreta, como o seu protagonista, um construtor de paz (os EUA devem‑lhe o restabelecimento das rela ções diplomáticas com a China e o início das negociações com a então União Soviética, posteriormente abortadas, para limitar a proliferação de armas nucleares), inábil na gestão das crises violentas que teve de enfrentar ao longo do seu único mandato. Carter falhou a reeleição em 1980 e os seus últimos catorze meses de governação foram atormentados pelas notícias perma nentes acerca dos 52 funcionários feitos reféns pelo Irão, depois do assalto à Embaixada americana naquele país (liber tados no exacto dia em que deixou a Casa Branca). Dos governantes portugueses, Carter con versou com o Presidente, Ramalho Eanes; o primeiro‑ministro, Sá Carneiro; e o secretário‑geral do PS, Mário Soares (concedeu‑lhe uma audiência de vinte minutos). O País, ainda jovem aprendiz da democracia, já tinha espaço para as mani festações de repúdio que costumam pautar a passagem dos presidentes americanos pelo mundo. A UDP, com o apoio do PCP, liderou uma concentração de pessoas junto à Praça José Fontana (onde, na altura, fica va situada a Embaixada americana) e o deputado Mário Tomé chamou Carter de “abutre e chefe de fila do imperialismo”, responsabilizando os Estados Unidos “pelos horrores do Vietname, Chile, Camboja, Laos e São Salvador”. Os capitalistas portugueses ajudaram a reforçar a antipatia pois, nesse dia, segun do Mário Tomé disse ao Diário Popular, “a multinacional Standard Eléctrica despediu 212 trabalhadores por motivos políticos, num brinde a Carter”. Reagan, “grande comunicador” e amigo de Mário Soares Foi ainda o Presidente Ramalho Eanes quem recebeu Ronald Reagan, a 8 de Maio de 1985. Desta vez, o Presidente america no chegou no “Air Force One” e demorou ‑se dois dias, uma largueza de tempo que deu para esticar o protocolo, por exemplo, indo ao Palácio de São Bento para se encontrar com Mário Soares (o semanário O Jornal ironizou que, “um pouco à manei ra das histórias de esposos e amantes, é ao primeiro‑ministro que estão reservados os carinhos especiais, ainda que todas as apa rências estejam salvaguardadas na recepção oficial de Eanes a Reagan) e recebendo, em audiência privada, o líder do CDS, Francisco Lucas Pires. Manuela Eanes, que já tivera um papel importante na organização do programa Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Clinton, o mais europeu dos americanos A visita de Bill Clinton, a 30 de Maio de 2000, foi a primeira da era realmente moderna: Portugal na UE desde 1986, mais cosmopolita e, portanto, pouco povo e muita segurança para receber “um presidente ame ricano que foi bom para a Europa”, nas palavras de Teresa de Sousa no Público. A vinda Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 enquadrou‑se no âmbito da cimeira entre a Europa e os Estados Unidos e houve muito business para discutir, nomeadamente um diferendo que hoje parece bizarro mas na altura fez correr muita tinta, relacionado com o embargo europeu à importação de carne americana com hormonas. Clinton, porém, não se ocupou dessa ques tão. Numa conferência de imprensa com o cenário singelo da Torre de Belém atrás e um sol primaveril que o fez colocar os Ray Ban, falou no processo de autodeterminação de Timor, da cooperação científica entre os dois países e fez de Lisboa o primeiro porto de um périplo que o levaria ainda à Alemanha, à Rússia e à Ucrânia. O Presidente americano estava a sete meses do fim do seu mandato e procurava cumpri ‑los com estilo. Ao longo dos oito anos de Casa Branca, realizara já 69 visitas oficiais (um recorde, sobretudo se comparadas com as 24 de Reagan, seis das quais ao México e cinco ao Canadá) e o número ainda subi ria, passando a incluir o Japão, a Irlanda do Norte, a Inglaterra, o Brunei e o Vietname. O editorial do Diário de Notícias, assinado por Carlos Magno, notou que “já não se via um Americano tão europeu desde que Vincent Minelli filmou Gene Kelly a dançar nas ruas de Paris” e todos os jornais por tugueses lhe fizeram o “elogio fúnebre”, reconhecendo que, com Clinton, o mundo mudou para melhor. Naqueles gloriosos anos, o euro estava a subir contra o dólar, a OCDE fez previsões excepcionais para as duas maiores economias do mundo, havia “confiança e optimismo”, como disse o anfitrião Jorge Sampaio. Bush e os ventos de Guerra Se Clinton viera colher os frutos e os títu los – foi‑lhe concedido o de “cidadão honorário” – da sua viragem europeia – Bush chegou à Terceira (mais uma vez, a plataforma das Lajes no centro das relações transatlânticas) trazido pelos ventos da guerra. Duas horas bastaram, entre as 12 e as 16 do dia 16 de Março de 2003, para que George W. Bush, Tony Blair, José María Aznar e Durão Barroso concertassem um discurso a quatro vozes: o tempo da diplo macia para o regime de Sadam Hussein no Iraque estava por horas e, caso o líder iraquiano não se retirasse, haveria, como veio a acontecer, invasão. Foi uma decisão pouco consensual, veta da pelo Conselho de Segurança da ONU, e a imprensa portuguesa reflectiu as con tradições internas geradas pelo apoio do então primeiro‑ministro, Durão Barroso, em contraste com a maioria dos restantes governantes, incluindo o Presidente Jorge Sampaio. A Visão, por exemplo, transfor mou a edição de 13 a 19 de Março de 2003 num autêntico manifesto antiguer ra, cujo título diz tudo: “Bush, és fixe. E o Sampaio que se lixe”. EPA PHOTO INACIO ROSA/LUSA paralelo para a mulher de Jimmy Carter, Rosalyn (ela e uma filha loirinha passearam no Castelo de São Jorge com a então primeira‑dama e o filho mais velho, com um ar muito enfastiado nas fotografias, talvez chateado por medir menos uns três palmos do que a amiguinha ianque) ocupou‑se desta vez de entreter Nancy Reagan: as duas receberam uma associação de pais de toxicodependentes (o combate à droga foi uma das bandeiras de Nancy a partir de 1982, em torno da frase que ela própria inventou: “Just say no”) e visitaram o Colégio Ramalhão em Sintra. O ousado perfil que O Jornal fez do Presidente americano reflecte o ambiente da imprensa portuguesa dos anos 80: extre mamente politizada e sem grandes preo cupações com conceitos como objectividade ou rigor. Mas, ainda assim, bem escrita e com graça: Reagan, “o gran de comunicador”, actuou no plateau portu guês e o jornal denunciava “a fragilidade de certos raciocínios reagonianos, como aquela dos contras anti‑sandinistas serem combatentes da liberdade e os guerrilhei ros salvadorenhos a incarnação do mal”. A política americana para a América Latina provocou, em Portugal, reacções ainda mais violentas do que as motivadas pela visita do pacifista Jimmy Carter: o grupo parlamentar do PCP abandonou o hemiciclo quando Reagan entrou na Assembleia da República e houve mani festações na rua com gigantones represen tando Soares e Reagan. Na interpretação feita por O Jornal, Reagan seria tão soarista que Ramalho Eanes ficou enciumado e o pressionou para dar maior importância protocolar ao banquete final (o título de uma das peças do dia 10 foi “Belém puxou as orelhas à delegação americana”). Aquele semanário brincava ainda com as dúvidas dos jornalistas americanos que integravam a comitiva, alguns dos quais tinham enviado previamente para a Embaixada portuguesa em Washington perguntas como: “Em Portugal é aceite o uso das barbas? O bikini não era chocante? É costume dar beijos?”. O Presidente Bill Clinton, o primeiro‑ministro António Guterres e o presidente da Comissão Europeia Romano Prodi no Palácio de Queluz. 43 d.r. A NATO e a dimensão de género nos conflitos armados Por HELENA CARREIRAS* Em Outubro de 2000, o Conselho de Segurança das Nações Unidas adoptou a resolução 1325 sobre mulheres paz e segurança, onde se reconhece o impacto desproporcionado dos conflitos armados sobre mulheres e crianças, a relativa ausência de mulheres nos processos de paz e estabilização, e se exortam os Estados‑membros a promover o papel das mulheres a todos os níveis da tomada de decisão, desde o âmbito da prevenção ao da reconstrução pós‑conflito. Esta resolução foi seguida por três outras resoluções, SCR 1820 (2008), SCR 1888 (2009) e SCR 1889 (2009), que configuram, pela primeira vez na história da organização, uma ver dadeira agenda internacional sobre a dimensão de género nos conflitos e na produção de segurança. do sobre a implementação da resolução 1325 ao nível dos Provincial Reconstruction Teams (PRT) no Afeganistão. No seu conjunto, a avaliação feita no âmbito destas várias iniciativas aponta para a existência de uma grande diversidade de situações e perspectivas em vários lugares da organização e entre os seus Estados ‑membros. Três áreas de intervenção são apontadas como prioritárias: a necessidade de promover, numa lógica compreensiva, a formação de género e intro duzir posições de gender experts e gender‑advisers; respon sabilizar as chefias e comandantes das operações pela monitorização de progresso na implementação da resolução; necessidade de aumentar o número de mulheres nas forças dos vários países e nas forças mobilizadas em operações. Embora todos estes objectivos possam ser parte de uma estratégia Os resultados mostram, pois, que a mudança comum, a sua efectiva concretização ou efi sugere algumas dúvidas quando se toma em direcção a uma maior igualdade nas forças armadas cácia em conta resultados de estudos empíricos não ocorrerá automaticamente como consequência disponíveis sobre processos de integração de género neste universo. do tempo ou do aumento do número de mulheres. No que diz respeito à questão da presença de mulheres em forças militares da Aliança, No âmbito da NATO, e face ao reconhecimento da os dados mostram que, hoje, como há dez anos dificuldade em implementar a resolução 1325, em atrás1, a diversidade entre os países é muito eviden Dezembro de 2007 o Conselho do Atlântico Norte te: enquanto alguns integraram mulheres, conferindo ‑lhes um acesso real (e não apenas formal), outros decidiu desenvolver esforços para construir um qua dro comum de conceitos e práticas, comprometendo reservam‑lhes lugares meramente simbólicos. Entre casos de extrema sub‑representação numérica, segre ‑se a promover o papel das mulheres nas suas operações e aos vários níveis de decisão na Aliança. gação do treino e severas restrições funcionais, até Para além do desenvolvimento de um código de con casos de ampla representação, padrões de carreira abertos, treino integrado e acesso a papéis de com duta destinado ao pessoal militar destacado em ope rações e da colocação de dois gender‑advisers no bate, existe uma pluralidade de situações. Se, por exemplo, países como a Noruega permitiram o aces Quartel‑General da ISAF no Afeganistão, foi publica da, em Setembro de 2009, a directiva Bi‑scD 40‑1, so de mulheres a todas as áreas operacionais, o que Integrating SCR1325 and Gender Perspectives in The NATO possibilitou por exemplo que neste país uma mulher Command Structure including measures of protection during armed tivesse já comandado um submarino, outros mantêm ainda anacrónicas regulações formais limitando o conflict, onde se condensa o essencial da política da acesso de mulheres às academias militares e a várias Aliança nesta matéria. O preexistente Committe on áreas operacionais. Women on the NATO Forces alterou a sua designação O possível impacto de efeitos de disseminação resul para Committee on Gender Perspectives, mandatado tantes da pertença à Aliança, evidente apesar de tudo para apoiar a implementação das várias resoluções, e foi constituído o Office on Gender Perspectives junto na adopção de princípios de doutrina e políticas ao Comité Militar. Neste contexto, foi também comis comuns em determinadas áreas sectoriais, não pare ce ter vindo a reduzir essa diversidade. Apesar do sionado, a oito especialistas internacionais, um estu ‘ ’ 44 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 lo de conscrição; onde as mulheres não atingiram posições “qualificadas” na estru tura social; onde, finalmente, não foram prosseguidas políticas específicas, os níveis de representação e integração de género são bastante mais reduzidos. Os resultados mostram, pois, que a mudança em direcção a uma maior igual dade nas forças armadas não ocorrerá automaticamente como consequência do tempo ou do aumento do número de mulheres. A redução de assimetrias exis tentes dependerá muito mais da existência de políticas específicas e da forma como factores exteriores determinem orienta ções e processos de decisão no interior das forças armadas. E contudo, alguns estudos também revelaram resultados desanimadores no que se refere à eficácia das políticas institucionais na remoção de estereótipos culturais enraizados, que fre quentemente funcionam como poderosos obstáculos à integração. O desenvolvimen to de políticas de integração – incluindo a formação em questões de género a vários níveis da estrutura militar, como agora se pretende promover, não mostrou a eficácia pretendida. Esses trabalhos mos tram que a existência deste tipo de polí ticas pode ser condição necessária mas não suficiente para a integração – que o seu impacto, enquanto positivo na integração formal, pode não sê‑lo necessariamente em termos de integração social – e que as condições para a mudança exigem uma atenção particular à forma como são pen sadas e implementadas as várias medidas de política. Sugerem, designadamente, a necessidade de analisar as condições sob as quais a eficácia das políticas pode variar, considerando tanto variáveis externas (por exemplo, a sua ancoragem institucional, articulação ou conflito com políticas de género noutros contextos) e características internas (flexibilidade vs rigidez, estabili dade vs volatilidade, coerência, coordena ção, formas de implementação e controle). Este objectivo deverá então configurar uma agenda paralela para a Aliança Atlântica, se for séria a sua pretensão de implementar a resolução 1325 e contri buir para os objectivos de promover a igualdade e reduzir a violência de género em contextos de conflito. * Subdirectora do Instituto da Defesa Nacional 1. Carreiras, Helena, (2007), Gender and the Military. Women in the Armed Forces of Western Democracies, London, Routledge; Ver também dados dísponíveis em: http://www.nato.int/cps/ en/natolive/topics_50327.htm @ nato carácter meramente consultivo de estrutu ras como o Committee on Gender Perspectives, cujo objectivo não é o de pro mover articulação de políticas entre os Estados‑membros, poder‑se‑ia esperar que o trabalho de difusão de informação, par tilha de experiências e aconselhamento de quase quatro décadas reforçasse a sincroni zação de processos e práticas. Tal não pare ce ter acontecido de forma significativa. Diversos factores concorrem para expli car as diferenças entre países. Por um lado, a integração de mulheres nas forças arma das atingiu patamares claramente mais elevados em países expostos à democra tização das relações género na sociedade em geral e à existência de pressões exter nas no sentido de promover a igualdade no interior da instituição militar; onde as forças armadas mais se abriram à socie dade devido a mudanças organizacionais no sentido da profissionalização; onde, finalmente, políticas de integração foram propostas e implementadas. Por outro lado, e independentemente do momento em que as mulheres entraram na institui ção, em países onde essas influências externas não se fizeram sentir com a mesma intensidade, onde as forças arma das permanecem próximas de um mode Conferência “Women, Peace and Security”. Da direita para a esquerda: capitão Linda Johansson (conselheira sueca para o género), secretário‑geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, e Margot Wallström, vice‑presidente da Comissão Europeia. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 45 d.r. A NATO, que futuro? Por António de Almeida Santos* Este breve texto é, da minha parte, um colossal atre vimento. Mas como as minhas preocupações mentais dominantes, neste ocaso da minha vida, se vêm cen trando cada vez mais no incerto futuro da Humanidade, o fenómeno militar não escapa a essa minha irresistível devassa. Em livros e outros textos, cada vez mais testa mentários, dei por mim a reflectir predominante mente sobre o fenómeno, ponto de chegada civilizacional do nosso tempo, da globalização. também ser culpado por ele quem o não evitou. Responsabilidades só são possíveis se e quando se recusa essa inevitabilidade, e se não tiram as con sequências dela. Venho também chamando a atenção para o facto de os desacertos deste nosso Mundo serem em larga medida a consequência de se ter querido confinar o fenómeno globalizador a apenas uma parte das consequências das causas desse fenómeno. Exemplifico: globalizaram-se as tecnologias; glo balizaram-se as comunicações e os contac tos; globalizou-se o modelo económico liberal; mas impediu-se a globalização polí Creditemos à globalização a demonstração de que, a globalização social, a globalização ao contrário do que comummente se pensa, o equilíbrio tica, fiscal, e a globalização militar. Resultado: o Mundo é já um só para os económico global, longe de ser favorecido pela guerra, domínios que se globalizaram. Mas perma tem nesta o pior dos inimigos. nece um conjunto de recintos cada vez mais exíguos, e que continuam a reger-se pelos modelos político, social, fiscal e militar do Tem-se reflectido pouco sobre ele. Em resultado século XVIII, quando o já então fenómeno agluti disso, não faltam aí doutos pensadores a responsa nante criou o Estado-Nação. bilizarem a globalização pelo que de mal acontece, As consequências desta globalização por metade, como se se tratasse de uma entidade susceptível de são entre outras a de que a economia global, ao culpa e responsabilidade, e não de uma evolução deixar de estar submetida à disciplina jurídica dos civilizacional tão incontrolável como a sucessão das órgãos políticos nacionais, sem passar a ser tutela estações do ano. da por órgãos políticos nenhuns, ficou a funcionar Parto, nas minhas cogitações, da convicção de que em roda livre, com os competidores mais fortes a a globalização, como processo em movimento, é explorarem, dominarem e esmagarem os mais fra tão antiga como o ser humano. Tão antiga, sobre cos, além dos não competidores – naturalmente tudo, como a domesticação do cavalo e a invenção –, na lógica do máximo lucro e da máxima con da roda. Sempre o homem dilatou o conhecimen centração da riqueza. Daí a explosão do número to e o domínio de mais alargados espaços. O que de pobres, do número de desempregados, dos trá aconteceu na era moderna foi apenas o facto de a ficos ilícitos e da violência que sempre decorre da instantaneidade das comunicações, a velocidade competição sem regras entre o forte e o fraco. Daí supersónica das deslocações, e a domiciliação do as crises económicas e financeiras cíclicas e cada conhecimento, via TV, ter tornado o globo, todo vez mais dificilmente controláveis. ele, conhecido, devassado, pequeno. Daí também a lógica defesa, que venho tentando, Daí a globalização das tecnologias, das comuni da criação de um Super‑Estado Político Global, para cações, dos contactos, e em consequência disso dos o qual se transfiram os poderes políticos necessários mercados. Tudo isso se globalizou, com consequên à criação de uma Nova Ordem Mundial, com uma cias positivas e negativas. Contra os defensores de cúpula política, económica, social, fiscal e militar, que as negativas são da responsabilidade da globa que ordene o caos instalado. lização, venho opondo que um facto, em si, não é À objecção de que é difícil, respondo: que não passível de responsabilidade, e que, quando inevi foi fácil nenhum dos grandes saltos civilizacionais, tável, como é o caso da globalização, não pode nomeadamente o da criação da actual cúpula do ‘ ’ 46 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 de partida da tal unidade militar globali zada, que a um tempo fundisse e substi tuísse os actuais exércitos nacionais sem inimigos e sem meios eficazes de se lhe opor, se vierem a tê-los? A próxima cimeira, de 19 a 20 de Novembro em Lisboa, inclui na sua agenda uma reestruturação da Aliança, visando torná-la mais flexível e mais barata. Parece que um relatório preliminar defende a redu ção do actual número de comandos. É tema sobre o qual não tenho opinião. Mas não resisto a pensar que se trata de um objecti vo pouco ambicioso, e eventualmente lesi vo do interesse nacional, na medida em que pode vir a traduzir-se no encerramento do Comando Conjunto de Oeiras. O que me enchia a alma era algo de mais verdadeiramente inovador: converter a NATO num fórum de reflexão sobre os reflexos da globalização na actual organi zação militar à base das centenas de exér citos – um por cada país – multiplicando as Suíças militares, e reduzindo tenden cialmente a uma possível unidade militar global o irrealismo de um exército por Estado, situação que só favorece o tráfico de armas, sabido como é que a sua simples existência fomenta os conflitos destinados a justificá-las e a consumi-las. Uma polí tica o mais possível globalizada de desar mamento a sério – daí a política de globalização militar que defendo – é assim amiga da paz e terá, entre méritos que hoje não tem, o de canalizar para inves timentos amigos do homem e da paz, colossais investimentos de hoje no fomen to da economia de guerra. Creditemos à globalização a demonstra ção de que, ao contrário do que comum mente se pensa, o equilíbrio económico global, longe de ser favorecido pela guer ra, tem nesta o pior dos inimigos. Dou a quem ler este descolorido arra zoado o direito de achar que não passa de uma soma de dislates. Mas, a isso, objecto que, se há apenas meio século, me tivessem dito que vinham aí a globa lização e a europeização que já vieram, eu diria que isso era um rematado dispa rate. E não foi. E não é! * Jurista @ nato Estado‑Nação; que mais difícil é não fazer nada e esperar pelas consequências; que o que proponho não é diferente, a um nível global, do que a União Europeia fez a nível continental, ou seja, uma europei zação simultaneamente económica e polí tica, sem que ninguém, que eu saiba, tenha batido em ninguém. Quem ler este arrazoado até aqui, per guntará o que tem isto a ver com o futuro da NATO. Talvez nada, talvez tudo. É minha convicção que uma globalização política acarreta necessariamente uma globalização militar, além de uma globalização social, que concretize uma nova síntese entre a liberdade e a igualdade, e uma globalização fiscal, que ajude a resolver os problemas económicos que deixaram de ter solução nacional. Sirva de exemplo a proposta tão generosa da Taxa Tobin, que os interesses hegemónicos condenaram. Será que hoje não passaria? A organização militar actual deste Mundo semiglobalizado é uma irracionalidade. Tantos exércitos quantas as nações para quê? Para que quando é preciso apagar um fogo algures, alguns dos duzentos exércitos mundiais contribuam com um pequeno corpo de bombeiros? A própria União Europeia, precisará mesmo de vinte e sete exércitos? E nós de dois submari nos? Sem um só inimigo? É sabido que o melhor antídoto contra a guerra é a democracia. Não se conhece – o que não é muito realçado – um só caso de guerra entre dois estados genui namente democráticos. E o Mundo, feliz mente, vai-se democratizando. Será que sonho pensando que começa a ser viável a redução, não direi à unidade militar global, mas concentrações defen didas por grandes espaços plurinacionais, sob o controlo de uma unidade militar globalizada? A NATO é um produto da Guerra Fria. Nasceu como um pacto defensivo contra o Bloco de Leste, este tutelado por outro pacto, o de Varsóvia. Essa causalidade recíproca pertence ao passado. Ex-países do Pacto de Varsóvia pertencem, hoje, à NATO. E o próprio Bloco do Leste se desfez. Quer isto dizer que, até certo ponto, a NATO tendencial e parcialmente se globalizou. Será que é sonhar demais conceber uma futura orga nização militar mundial que tenda à gra dual substituição das actuais organizações militares sectoriais, e à progressiva subs tituição de exércitos nacionais sem inimi go pronto a vestir? E já que sonho, será de todo irrazoável admitir que a NATO aceite completar o processo de globaliza ção, para poder constituir a base e o ponto “O melhor antídoto contra a guerra é a democracia”. 47 POLÍTICA Allan J. Katz, o embaixador americano em Lisboa, classifica as relações entre os Estados Unidos e a Europa “Somos uma espécie de primos” Allan J. Katz veio viver para Lisboa há cerca de meio ano, nomeado embaixador dos Estados Unidos para Portugal. O advogado e lobista deu um forte apoio ao Presidente Obama na campanha para a presidência. RUI OCHÔA Por Sara Pina e Simão Martins Allan J. Katz: “A Europa tem sido um grande parceiro dos EUA e ainda estamos a trabalhar com grande proximidade”. 48 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 RUI OCHÔA POLÍTICA Vindo da Florida onde exerceu vários car gos públicos com reconhecido mérito, Katz tem visitado várias regiões de Portugal que acha “lindo”, com pessoas “extraor dinariamente gentis”, com um clima “muito melhor” e sem a humidade e os insectos do estado onde vivia. Considera que “Somos uma espécie de primos”. [Paralelo] Qual a maior diferença que encontra entre a sua cidade, o seu estado e Lisboa? [Allan J. Katz] Vivia em Tallahassee, na Florida, e, primeiro que tudo, aqui o tempo é muito melhor! Depois a diferen ça é que a maioria das nossas famílias veio para os Estados Unidos de outros sítios, nos últimos dez, quinze ou cem anos. Há muito poucos americanos cujas famílias estão nos Estados Unidos desde o seu iní cio. Em Portugal há pessoas de diferentes origens mas, ao mesmo tempo, há um grande número de famílias que estão cá há muito, muito tempo. Assim, há um ponto de vista diferente. É a maior dife rença cultural que vejo. [P] Relativamente à relação do Presidente Obama com a Europa. Acha que apesar de mais europeus gostarem do Presidente Obama que os próprios americanos1 as expectativas europeias foram um pouco frustradas, porque afinal Obama não está assim tão virado para o Atlântico? [AJK] Penso que as pessoas estão a tirar conclusões erradas. O Presidente Obama já esteve em cinco ou seis países europeus desde que tomou posse e agora em Portugal. A Europa tem sido um grande parceiro dos EUA e ainda estamos a tra balhar com grande proximidade, particu larmente no sentido de resolver a crise Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 ‘ em que nos encontramos. O Presidente acredita que a Europa É bastante óbvio que a Europa continua a ser talvez tenha compreendido os EUA muito importante para os muito melhor que o resto do mundo e, EUA. O Presidente acre dita que a Europa talvez por isso, precisou de comunicar mais tenha compreendido os com outras partes do mundo. EUA muito melhor que o resto do mundo e, por isso, precisou de comu nicar mais com outras partes do mundo para ser mais bem compreendido do que no pas [P] Na sua perspectiva, para Portugal é importan‑ sado. De certa forma, vemos a Europa te ficar com o lugar no Conselho de Segurança da como um sítio de onde muitos de nós ONU? viemos [o pai do embaixador emigrou da [AJK] Há várias coisas que cada país, quer Alemanha como refugiado da II Guerra se trate dos EUA ou de Portugal ou de qual Mundial], logo, somos como uma espécie quer outro, consideram vantajosas. Por de primos. E, muitas vezes, esperamos que vezes, identificamos o sucesso com coisas os nossos primos nos compreendam que não são tão importantes como julga melhor do que as pessoas que não conhe mos e nem sempre funcionam. cemos tão bem. [P] Relativamente às eleições americanas. Qual diria [P] Mas outros países ganharam muita importân‑ que são as hipóteses dos democratas. As condições cia… por causa da economia… são piores? [AJK] Houve uma altura em que a Europa [AJK] A situação é muito difícil para todos era, provavelmente, o único continente os detentores de cargos políticos. Neste realmente importante para os EUA. De momento, há um maior número de repu facto, houve outros que também se tor blicanos que perderam nas eleições primá naram importantes mas isso não significa rias. Logo, parece‑me que muito do que a Europa tenha perdido relevância. descontentamento e da irritação é direc Penso que a mesma coisa se passa na cionado para o lado republicano. No fundo, Europa. Fundamentalmente, estavam muito a questão é se os democratas vão estar entu focados na economia americana e, como siasmados com estas eleições. As eleições acontece em Portugal, muito preocupados nos EUA são bastante diferentes das eleições com as suas relações com os EUA. Claro na Europa. Os que, como eu, estão envol que a importância da África ou do Brasil vidos nas eleições consideram isso muito é bastante significativa para Portugal, da frustrante.Trabalhamos muito para incen mesma forma que a Europa de Leste é tivar o voto. As pessoas que aparecem para importante para os EUA. votar [nos EUA] são muito mais ’ 49 POLÍTICA ‘ Tanto a Europa como os EUA, que são aliados próximos, se encontram na pior situação económica possível. ’ importantes, porque não há taxas de par ticipação tão elevadas como na Europa. Portanto, a questão não é só saber em que candidato votam mas que eleitores é que vão às urnas. [P] Como avalia o Recovery Act? [AJK] Penso que tem ajudado. É importante lembrarmo‑nos das circuns tâncias em que se instituiu o Recovery Act – foi elaborado antes de o Presidente Obama tomar posse. Foi o reco nhecimento de que o sistema financeiro estava à beira do colapso. Houve um plano de emergência para a estabilização econó mica do país ainda com o Presidente Bush no poder, em que republicanos e democra tas trabalharam unidos para a sua concreti zação. Impediram que os bancos entrassem em falência, dada a preocupação significa tiva com a situação poder vir a ficar drama ticamente pior – e já estava muito mal. A ironia é que os democratas foram tão bem ‑sucedidos nas eleições que os republicanos precisavam do apoio de todo e qualquer democrata. Não foi uma solução perfeita, nem agradável – foi um conjunto de cortes nos impostos para as pequenas empresas, o que as ajudaria a continuar a contratar e a manterem‑se em funcionamento e, por outro lado, injecções de capital para impedir despedimentos. O que acontece é que demo ra tempo a fazer com que mais dinheiro entre no sistema. [P] Diria que as expectativas de recuperação econó‑ mica foram satisfeitas? [AJK] Penso que houve desilusões por causa de outros factores que contribuíram para o desemprego noutras áreas, o que resultou numa disparidade de números que não eram esperados. [P] Que consequências tem para a Europa a retoma económica nos EUA e as medidas de controle finan‑ ceiro adoptadas? [AJK] Tratou‑se de um fenómeno inte ressante, já que tanto a Europa como os EUA, que são aliados próximos, se encontram na pior situação económica possível. Quando os EUA olham para o passado e se tentam lembrar da pior altura para a sua economia, lembram‑se da Grande Depressão e da deflação. Por outro lado, quando a Europa faz o mesmo exercício, lembra‑se da inflação galopante. Por essa razão, a abordagem americana foi considerar que a inflação não era um problema tão grave quanto a depressão. A única maneira de recu perarmos da depressão foi com a II Guerra Mundial, pelo facto de podermos produzir em grandes quantidades. A Europa, por seu lado, encara a inflação como o maior problema, uma vez que, no fim da década de 1920 e no início da década seguinte, proporcionou o for talecimento da Alemanha e acabou com as reservas de dinheiro. RUI OCHÔA [P] O que acha do Tea Party? [AJK] Em primeiro lugar, há um leque alargado de pessoas distintas. Não existe só um Tea Party e diversas organizações abusaram desse nome. Neste momento, nos EUA, há muita coisa a acontecer. Há as frustrações com a economia e mudan ças que, em qualquer sociedade, levam as pessoas a sentir‑se muito inseguras e insa tisfeitas, e, por vezes, fazem com que associem a sua infelicidade a algo que não está relacionado com a mudança de poder. Na sua grande maioria, o Tea Party repre senta a ala mais reaccionária do Partido Republicano. O que fizeram foi incentivar as pessoas que por vezes não votam, foi nomear candidatos que podem ter influ ência naqueles eleitores que não são nem republicanos nem demo cratas, mas se situam no meio do espectro eleitoral e vão votando num partido ou noutro. Allan J. Katz: “Trabalhamos muito para incentivar o voto. As pessoas que aparecem para votar [nos EUA] são muito mais importantes, porque não há taxas de participação tão elevadas como na Europa”. 50 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 RUI OCHÔA POLÍTICA relevância por causa do Afeganistão e do Iraque. Os aviões não têm necessariamen te de aterrar na base, mas se o fizerem podem chegar a qualquer lado. Tem havi do uma discussão entre os governos por tuguês e americano para que, numa perspectiva a longo prazo, possamos encontrar utilidades adicionais para as Lajes, não apenas para os EUA, mas tam bém para outros países da NATO. Podemos trabalhar com o Governo português no sentido de identificar algumas dessas oportunidades. [P] Os Estados Unidos apoiam a manutenção do Comando Regional Sul da NATO em Oeiras? [AJK] Ainda não foram tomadas decisões concretas relacionadas com a localização mas o que temos tentado levar a cabo é antecipar um plano estratégico geral. Temos que reco ‘ nhecer que a NATO foi criada – e Portugal foi membro fundador da organização – especificamente para impedir o avanço sovi ético na Europa Central. Desde essa altura, houve mudanças estruturais na NATO. O clima actual cria tanto uma oportunidade como uma preocupação: por um lado, exis tem muitas alianças da NATO em diversas partes do mundo e a forma como reagimos como aliados tem de ser distinta da forma como reagimos no passado; por outro, é necessário encontrar mecanismos eficientes e efectivos para lidar com essa situação e parte dessa actuação deverá envolver rees truturação e resultará em mudanças opera cionais da NATO. 1. Dados do mais recente inquérito à opinião pública euro peia e norte‑americana pelo Transatlantic Trends em www. transatlantictrends.org É necessário equilibrar todos os factores de forma a não destruir o crescimento económico. O lado americano está a actuar de forma a não absorver todas as reservas nos merca dos, sob pena de as empresas não poderem contrair empréstimos. Qualquer que seja a abordagem, é útil tanto para os EUA como para a Europa manter as taxas de juro baixas, favorecendo o sector privado de forma a contribuir para o crescimento. [P] Os Estados Unidos foram mais bem‑sucedidos na recuperação da crise? [AJK] Depende da sua definição de suces so. Não estou a tentar evitar a questão, que é justa e pertinente. Penso que os EUA fizeram progressos significativos, consi derando que era impossível calcular a gravidade da situação na altura em que foram tomadas essas decisões. Devemos recordar que foi apenas em Setembro de 2008 que os mercados bolsistas começa ram a colapsar, de modo que não era pos sível prever os acontecimentos tão prematuramente. [P] No que diz respeito à base das Lajes. A base está a perder importância? [AJK] Não. Creio que devemos ver as Lajes como determinantes para os EUA em questões de segurança. O papel que tra dicionalmente desempenhou vai evoluir, tendo em conta que houve uma altura em que era uma base absolutamente essencial, como se fosse a estação de serviço do Atlântico. Neste momento, é da maior Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 RUI OCHÔA Creio que devemos ver as Lajes como determinantes para os EUA em questões de segurança. ’ Allan J. Katz: “Somos uma espécie de primos. Os Estados Unidos e a Europa são ‘uma’.” 51 PORTEFÓLIO Impressões fotográficas dos EUA João de Vallera, durante quatro anos Embaixador de Portugal em Washington, captou em imagens fotográficas muitas das suas experiências nos Estados Unidos. Acedemos a uma pequena amostra deste particular olhar português sobre a América que publicamos nestas páginas. O autor. 52 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 PORTEFÓLIO Obelisco de Washington DC e Capitólio. Convenção democrata em Denver. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Tomada de posse do Presidente Obama, 10 de Janeiro de 2009. No jardim do Museu Hirschorn. 53 PORTEFÓLIO Linha do horizonte com nevoeiro, Nova Iorque. Casamento na Florida. Pormenor do monumento à Guerra da Coreia. 54 Grand Canyon. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 PORTEFÓLIO Manhattan. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 55 PORTEFÓLIO Nova Iorque, Little Italy. 56 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 PORTEFÓLIO Passeio a dois no zoo de Washington DC. Encontro de Ron Mueck com John Currin. Dia de Portugal em Bethlehem, Pensilvânia. Embaixada portuguesa em Washington com (muita) neve. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 57 SOCIEDADE Médicos portugueses em Harvard Maria Inês Sousa e José Sandoval foram escolhidos entre 36 estudantes de Medicina de todo o país. Passaram mais de um mês entre ratos de laboratório e o tu‑cá‑tu‑lá dos cérebros brilhantes da Harvard Medical School. A oportunidade foi única, a experiência incrível. Por Joana Carvalho Fernandes por David E. Golan e Tomas Kirchhausen, em Harvard. Ela em Junho e Julho, ele em Agosto e Setembro. Inês explica que o júri considerou três vectores para chegar aos nomes dos dois alunos: “Tinham em atenção a experiência laboratorial prévia de cada candidato, o seu currículo e a carta de motivação.” “Enquanto frequentava o curso fiz inves tigação no Instituto Gulbenkian de Ciência, ‘ O que se tira deste estágio é a vivência em laboratório, o contacto com diferentes maneiras de fazer ciência, identificamos os nossos pontos fortes e os fracos, para podermos melhorar, crescer. ’ Depois de três angustiantes fases de selecção, Maria Inês e José estagiaram em Harvard. 58 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Rui Ochôa Ela tem 23 anos, foi aluna da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Ele tem 25, estudou na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Candidataram‑se ao Programa Harvard Medical School, iniciativa sugerida pela Associação Nacional de Estudantes de Medicina e bem recebida por Harvard e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, e apadrinhada pela Fundação Luso‑Americana. Depois de três angustiantes fases de selec ção, Maria Inês e José estagiaram durante mais de um mês nos laboratórios liderados Rui Ochôa SOCIEDADE Voltam ambos fascinados com o tu‑cá‑tu‑lá dos nomes importantes dos cérebros de Harvard. no grupo de Biologia Evolutiva, e parti cipei em vários projectos em que estudei, sobretudo, a evolução de células humanas in vitro”, acrescentou. José trabalhou durante o último ano no Centro de Investigação de Doenças Crónicas da Faculdade de Ciências Médicas, a estudar tráfego intracelular. Os percursos de cada um até chegar aqui são diferentes mas, sobre esta experiência, as vozes confundem‑se muitas vezes. Um fala, o outro assente, trocando depois sor riso sempre partilhado. Foram sete semanas dedicadas a um tema que era completa mente novo. Nenhum dos dois teria esco lhido a área em que trabalhou, mas ambos consideram que a oportunidade foi única e que aprenderam muito. “Quando cheguei eles tinham um pro jecto bem definido, já tinham delineado o que eu ia fazer. Fui estudar hematopoiese [o processo de formação, desenvolvimen to e maturação dos elementos do sangue] e isolar algumas células da medula óssea de um rato para que pudessem ser utiliza das noutros estudos”, conta Inês. O projecto em que José participou tinha que ver com a observação de células ao microscópio para caracterizar a entrada do vírus influenza, o vírus da gripe, em células: “Não tivemos um resultado claro, mas tive mos indicações de que a forma como até agora se julgava que o vírus entrava nas células e se movimentava dentro delas pode não ser a correcta. As conclusões do traba Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 ‘ mente à vontade, desenvolvi todo o traba lho sozinha, senti uma responsabilidade enorme”, diz. José concorda. “Sentíamos uma respon sabilidade enorme, o material de investi gação é todo muito caro, deixar cair alguma coisa é um prejuízo impensável, mas em momento algum nos disseram que não podíamos pedir alguma que entendês semos necessária para o nosso trabalho”, acrescentou. “Mas matámos muitos rati nhos”, riem. Ambos mantêm ligações com os investi gadores dos laboratórios onde estagiaram, mantêm‑se a par dos projectos. Inês e José ficaram alojados em casa de famílias onde havia estudantes de outros países. Ela alugou uma bicicleta que peda lava 25 minutos para chegar ao laboratório “muito mais depressa do que se fosse de autocarro”. Ele ia de autocarro. Fora do laboratório riram, passearam por ali perto, foram à praia, fizeram amigos. Antes de sentirem vontade de voltar para Harvard ambos sentiram, em Harvard, von tade de não voltar para Portugal. Uma das perguntas que o júri da entre vista fez aos candidatos foi onde se viam lho são um contri buto para tornar o Fomos para uma das melhores combate ao vírus mais eficaz”, disse. universidades do mundo “O que se tira deste estágio é a vivência e não assistimos ao “doutor para cá, em laboratório, o doutor para lá”. contacto com dife rentes maneiras de fazer ciência, identificamos os nossos pon no futuro, “daqui por dez anos”. E também tos fortes e os fracos, para podermos melho aqui concordam. Querem exercer medici rar, crescer. E aprendemos muito, as áreas na, não querem deixar de investigar. de conhecimento não são estanques. Em Por agora, Inês vai fazer o exame de espe dado momento do nosso trabalho este cialidade e depois fará o ano comum. Segue conhecimento será útil”, acrescentam. ‑se o doutoramento, enquanto exercer a Voltam ambos fascinados com o tu‑cá‑tu‑lá especialidade. Nos poucos tempos livres dos nomes importantes dos cérebros de pratica desporto e prefere não ler notícias, Harvard: “Fomos para uma das melhores não gosta. universidades do mundo e não assistimos José segue para um doutoramento em ao ‘doutor para cá, doutor para lá’. Os Oncologia em Cambridge, onde ficará investigadores são mais acessíveis, apesar durante os próximos quatro anos. Depois de serem pessoas importantíssimas. São quer voltar para Portugal e escolher uma pessoas muito solícitas, muito acessíveis. especialidade médica. No tempo que sobra É muito diferente das experiências que gosta de estar atento ao mundo que o temos aqui”, diz Inês. rodeia. E, dizem, tiveram sorte por não sentir Gostaram, repetem, muito, muito da dentro dos laboratórios em que trabalhavam experiência. Viram a participação no pro o clima de competitividade que sentiam grama como antecâmara de projectos futu alguns investigadores da Universidade. ros. Os dois querem sair do País para Inês sentiu também diferença na forma estudar e trabalhar, mas nenhum deles como trabalhou: “Com muito mais inde arrisca dizer que não volta: “A experiência pendência, tive total liberdade no labora inspirou‑nos e é verdade que ser investi tório. Durante dois ou três dias gador neste país é pior do que ser médico, ensinaram‑me algumas técnicas que eu mas também não é tão mau como pintam”, ainda não sabia, depois estive completa concordam. ’ 59 SOCIEDADE Boas histórias salvam vidas Foi com Henry James (autor sobre o qual está a escrever um livro) que Rita Charon, médica e docente no College of Physicians and Surgeons of Columbia University, em Nova Iorque, encontrou um caminho para tornar os cuidados de saúde mais eficazes. Por Isabel Marques da Silva* [Paralelo] Henry James, e depois Marcel Proust, impressionaram‑na pela capacidade de “não só colocar no papel as palavras das pessoas mas tam‑ bém de captar cada nuance dos seus sentimentos”. Como é que isso a levou até esta nova disciplina? [Rita Charon] Henry James foi, de facto, um instigador. Eu licenciei‑me em Biologia, não em Literatura. Depois fui estudar medicina em Nova Iorque e comecei a trabalhar no hospital. Lia muito, mas não sabia muita coisa sobre como ler bem. Lia romances sem perceber o que fazer com eles. Um dia alu guei uma casa na praia para uma semana de férias e, literalmente, peguei no primei ro romance de Henry James que me apa receu. Li As Asas da Pomba todas de um fôlego e dei‑me conta que não sabia que alguém podia captar de forma tão precisa o que acontece na consciência. Havia diá logos, factos, uma história, mas era tudo apresentado com uma enorme precisão e compreensão do que se passava na mente das personagens. Era como aqueles relógios de pulso com bracelete expansível. Quando a puxamos vêem‑se as ligações elásticas. Ele expunha tudo o que estava nos interstícios das ligações mentais a partir das quais as personagens pensavam, faziam ou diziam. Rui Ochôa Saber captar a história do doente pode ser vital para que este leve a bom termo o tra tamento e que a cura seja mais rápida e duradoura. A Medicina Narrativa é um pro grama interdisciplinar, onde se combinam ferramentas da literatura, psicologia e filo sofia, que Charon vem desenvolvendo desde 2000. O colóquio internacional “Doença e Diálogo”, organizado pelo Centro de Estudos Anglísticos e pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, em parceria com o Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, convidou a autora de Medicina Narrativa: Honrar as Histórias da Doença. Saber captar a história do doente pode ser vital para que este leve a bom termo o tratamento. 60 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Rui Ochôa SOCIEDADE [P] Isso é uma forma de protecção do médico que não quer mergulhar na vastidão dos problemas da pessoa? [RC] É, de facto, uma defesa face a coisas que não sabem resolver: “Não me diga que o seu filho está preso”, “não me diga que tem pesadelos em que está a ser violada”, “eu sou só um cardiologista”. Mas é também uma protecção contra algo mais profundo: é sabido que quem trabalha com pessoas doentes e que estão a morrer tem mais pro babilidades de se tornar numa pessoa triste, com mais sofrimento psicológico. “Para trabalharem bem juntos, médico e doente precisam de uma ligação”. [P] Como é que percebeu que essa maneira de escre‑ ver a podia ajudar na sua prática médica? [RC] Além de trabalhar no hospital, eu tinha o meu pequeno consultório num bairro de Nova Iorque onde recebia os meus doentes, só meus. Eram pessoas pobres de Upper Manhattan e eu era a sua médica de família. Demorou algum tempo até que eu percebesse que o que estes doentes preci savam era que os ouvisse com muita aten ção. Que fizesse alguma coisa com os seus relatos, os dos médicos das urgências onde iam, os dos familiares que os acompanha vam. Havia ainda os relatos dos exames e análises. Relatos em palavras, imagens, números, outros em silêncios e linguagem corporal. Eu era a leitora que dava coerên cia a esses pedaços, mesmo que eles se contradissessem – o que acontecia sempre. Precisava de lhes dar um sentido, mesmo que provisório e mesmo que se provasse que estava errado. Mas tinha de fazer essa tentativa. Sabia que não tinha as ferramen tas para isso e tinha consciência que pre cisava de aprender mais sobre narrativa, sobre compreender histórias. [P] A eficácia do tratamento aumenta quando, além dos dados quantificáveis, são levados em conta fac‑ tores como as histórias dos doentes? [RC] Exacto, mas temos de mudar a men talidade dos meus colegas. Eles diziam muitas vezes: “Rita, essa não é a tua função, isso cabe ao assistente social.” Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 [P] E escondem‑se atrás da técnica, da ciência? [RC] É algo feito de forma consciente mas não de forma maliciosa. Pensam que essa frieza ajuda na capacidade de fazer um melhor julgamento clínico do caso. Vão convencendo‑se de que isso é necessário e que os protege. O que eles não sabiam é que essa protecção também os impedia de aceder à alegria. É uma “alegria negra” em que sabemos que a nossa presença ajudou, que aquela pessoa teve uma morte “melhor” porque foi ouvida. [P] Como é que escrever as histórias ajuda o médi‑ co, por um lado, a compreender melhor os pacien‑ tes e, por outro, a lidar melhor com essa tristeza? [RC] Para trabalharem bem juntos, médico e doente precisam de uma ligação. Não é que os médicos tenham de “se dissolver” no doente. Mas é preciso realçar a noção de que têm de trabalhar no mesmo senti do. O médico é activado por o que o doen te diz, como se fosse uma ignição. Penso que as histórias do doente têm esse efeito no médico: animam‑no, dão‑lhe vida e despoletam os seus conhecimentos, perícia, sensibilidade de forma a convocar uma resposta e a colocá‑la ao serviço dessa pes soa em particular. [P] Porque é que os médicos devem escrever as histórias, seguindo os cinco blocos de construção da narrativa de que fala no seu livro (temporali‑ dade, singularidade, causalidade, intersubjectivida‑ de, ética)? [RC] Essa é apenas a forma de treinar até chegar ao ponto de estar disponível para integrar as histórias do doente, todos os pormenores de que falámos. Quero que os meus alunos e colegas sejam capazes de reconhecer o que é emanado pelo doente. Que sejam capazes de ler nas entrelinhas, no tipo de linguagem escolhida, nas metá foras que usam, no cronograma dos factos. A maneira mais rápida de ensinar alguém a ser um “ouvinte próximo” é ser um “leitor próximo”, no sentido de estar interessado na forma como é comunicada a mensagem. Se os médicos não escreverem, não há nada de material sobre o qual possam reflectir. Mas o objectivo é que usem as técnicas nar rativas quando estão a ouvir os doentes, tornando o tratamento mais eficaz. [P] De que forma a interdisciplinaridade ajuda à eficácia? [RC] A narratividade na medicina cria uma espécie de clareira na floresta. É um espaço de comunhão. Quando comecei a fazer seminários, os médi cos e enfermeiros que se nos junta vam partiam de pontos de vista muito diferentes porque habitual mente eles não se dão muito bem uns com outros. Numa sessão de escrita tinham de descrever o que os comovia na situação de um doente. Quando liam os textos, davam‑se conta de que não sabiam quase nada sobre o que os outros faziam. Agora entendiam de forma mais completa a função de cada um, eram mais transparentes. Havia muitas divisões no meio hospitalar entre as pessoas e elas estão muitas vezes em compe tição ou em oposição. As narrativas criam essa clareira de entendimento onde o que interessa é unir‑se de forma a acabar com o sofrimento do doente. E nessa clareira podemos entrar com todo o nosso ser: não é só o médico, sou eu, a pessoa! * Jornalista da SIC 61 SOCIEDADE Conferência dos Oceanos Em busca da Dow Jones dos oceanos Lisboa faz a ponte entre EUA e UE no primeiro encontro de especialistas dos oceanos. O objectivo? Cruzar informação para alcançar políticas de sustentabilidade viáveis. Por Joana AZEVEDO Viana* mais alto nível, que vão cruzar dados sobre os oceanos para chegar a consen sos”. A explicação é de Charles Buchanan, administrador da Fundação e um dos organizadores do evento, que adianta à Paralelo: “Com a História que Portugal tem, é de lamentar que as questões do mar não sejam ainda o forte do País.” Recorrer ao tempo dos descobridores parece saudosista, mas Buchanan sabe do que fala. O especialista em ciência e tecnologia do ambiente é o primeiro a reconhecer a importância Talvez o primeiro esforço que Portugal teve no des bravamento dos recursos desta importância na História. ‘ ’ do mar, que precisam actualmente de atenção extra ao nível político. “A verda de é que, se cada especialista seguir o seu caminho, sem compararem resultados entre si, as conclusões não serão úteis para chegar a novas políticas do mar”, explica Buchanan. “Precisamente por isso”, adianta à Paralelo, é que especialistas de todas as partes do mundo, dos Estados Unidos à Suécia, da França às Bermudas, foram convidados a juntar‑se em Lisboa para um momento histórico de decisão do futuro dos oceanos, no que Buchanan garante ser “talvez o pri meiro esforço desta importância na História”. d.r. Lisboa tornou‑se o centro dos oceanos, num encontro histórico de especialistas da área, acolhido pela FLAD e pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA). Organizado em colaboração com a Universidade de Maryland e a National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), o evento foi baptizado de Conferência dos Oceanos, ainda que seja “mais um encontro de investigadores do Actualmente, os mares enfrentam riscos absurdos. As últimas estatísticas dos efeitos da actividade humana nos oceanos dão conta de 18 mil itens de plástico por quilómetro quadrado. 62 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Políticas para que vos quero O encontro aconteceu a mês e meio da Cimeira da NATO e a proximidade das datas não é aleatória. Apesar de as políti cas da Aliança relativamente ao mar se concentrarem em questões estratégicas, o facto é que há muito que pode ser alcan çado neste encontro com um olho na Cimeira. O biólogo marinho Emanuel Gonçalves explicou à Paralelo como “A Aliança do Atlântico Norte trata o mar numa perspectiva mais militar, mas se pudermos juntar processos a nível mun dial e conseguirmos formar pontes entre as observações dos oceanos pelos cientis tas e as áreas de governação, estaremos a dar um passo muito importante” para garantir a sustentabilidade deste recurso. Actualmente, os mares enfrentam riscos absurdos. As últimas estatísticas dos efeitos da actividade humana nos oceanos dão conta de 18 mil itens de plástico por quilómetro quadrado, da mesma forma que as alterações climáticas provocam uma cada vez maior acidificação dos oceanos. “Com a absorção do CO2, a água fica mais ácida, o que impe de que os organismos se desenvolvam. São impactos brutais nos oceanos, e não são um problema longínquo, são um problema do dia‑a‑dia”, sublinha Gonçalves. Dow Jones dos oceanos Portugal é a casa do encontro, mas as pro postas de políticas que dele surgirem não se vão limitar às relações bilaterais com os Estados Unidos. A verdade de La Palisse aqui é que a água é, mais do que o recur so que existe em maior quantidade no planeta, aquele do qual mais dependemos. E as más políticas marítimas, aliadas ao aquecimento global e às alterações climá ticas, têm contribuído, sem conta, peso nem medida, para a degradação de todos os recursos que os mares albergam. “Temos d.r. SOCIEDADE "É necessário definir como é que os Estados usam o seu território aquático". problemas sérios de insustentabilidade dos oceanos e é necessário criar um índice que acompanhe a evolução dos acontecimen tos”, explica o biólogo marinho, que não esconde as altas expectativas postas no encontro. “Acima de tudo, trata‑se de uma questão de governação”, explica. “Em terra tudo é território, tudo tem jurisdição, mas no mar não é assim. É necessário definir como é que os Estados usam o seu terri tório aquático e, sobretudo, como é que podemos gerir os oceanos de território aberto, ou seja, a maior parte deles. Temos um longo caminho a percorrer.” O objectivo final do encontro, repete o biólogo, é chegar a um consenso para a criação de um índice para a sustentabili dade, “uma espécie de Dow Jones para os oceanos”, brinca. E de que forma é que se pode alcançar esse índice? “O ideal seria que o encontro resultasse num documen to que resolva o falhanço dos mecanismos de gestão dos recursos marítimos. A ver dade é que há preocupações a esse nível: a caça à baleia levou à necessidade de se criar uma convenção num órgão de alto nível, mas a pesca, por exemplo, continua sem grande controlo e isso leva ao desa parecimento de vários recursos”, sublinha Gonçalves. ‘ Temos problemas sérios de insustentabilidade dos oceanos. ’ d.r. Pelas mãos dos cerca de 35 participantes do encontro, Lisboa torna‑se o palco importante que acolhe projectos em desen volvimento na área da sustentabilidade dos oceanos. “Vêm juntos para ganhar uma melhor sinergia de esforços, para comparar processos e assegurar mais qualidade aos projectos. É ambicioso, mas é uma tenta tiva, e acima de tudo uma esperança, de criar uma ponte para o futuro”, explica Charles Buchanan. Emanuel Gonçalves completa: “Sei que vamos conseguir criar um statement, um documento com recomen dações que permitam tomar decisões e articular os diferentes dispositivos para um melhor investimento na área.” * Jornalista do jornal I Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 63 SOCIEDADE Explorar, explorar, explorar Cheguei a Cambridge, EUA, em Agosto de 2009 com duas malas médias, dez anos de jornalismo cultural e uma nova vida por vir. Não consigo pensar em melhor altura no meu percurso para gozar em pleno a Nieman Fellowship for Journalists at Harvard. Estava numa fase de transição e ser uma Nieman Fellow justamente nesta altura foi daqueles privilégios que uma pessoa sabe logo serem irrepetíveis. D.R. Por Joana Gorjão Henriques* "Jornalismo não falta na sede da Nieman, uma casa branca com um jardim maravilhoso, impecavelmente cuidado. Mas é mais na vertente académica". Aqui retratado o grupo de 2009–2010. Joana Gorjão Henriques é a segunda sentada da esquerda para a direita. 64 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 SOCIEDADE Um dos objectivos deste programa é pre cisamente que os jornalistas parem um ano para pensar, aprofundar ou experimentar outros interesses através de aulas em Harvard – e que ganhem uma nova frescura. Mas também que convivam com os seus fellows, o que eu e os meus colegas fizemos ques tão de levar à letra. Um dos meus profes sores, o teólogo Harvey Cox – que apesar de reformado continua a dar uma aula sobre Religião na América – dizia para a turma inteira que ser um Nieman Fellow era a melhor coisa do mundo. Ele próprio, brincava, que ria ser um depois de morrer. Harvey Cox era assim enfático porque a Nieman Fellowship é, de facto, um luxo. Durante um ano, um grupo de jornalistas – metade americanos, metade internacio nais – forma uma classe. A minha, a classe de 2010, tinha 23 repórteres dos mais variados estados americanos e países, da África do Sul à Inglaterra. O lado especial de ser um Nieman que Cox sublinhava é que cada fellow escolhe o seu próprio programa em Harvard, vai às aulas em qualquer uma das faculdades, mas, salvo algumas excepções, não tem obrigações para cumprir. Ou seja, um Nieman Fellow senta‑se nas salas de aula, ouve, participa, só que não tem a ansiedade dos exames. Isto é a regra, porque há excep ções, como na cadeira de Public Narrative que tirei, dada pelo “community organizer” Marshall Ganz, e em que tive de escrever ensaios todas as semanas e apresentar tra balhos finais. Na Fundação só exigem que o jornalista leve a sério pelo menos uma cadeira semes tral. Há, assim, um voto de confiança do curador Bob Giles nos jornalistas para eles aproveitarem Harvard como quiserem. Também não há um trabalho ou uma tese – nada – para entregar à Fundação no final do ano. Aquilo que nos pedem é que vamos aos seminários e palestras que organizam, a uma das aulas de jornalismo narrativo ou de escrita para ficção na Fundação (estas sim, têm trabalhos de casa semanais) e pouco mais. E claro, que façamos a cha mada sounding onde, a cada segunda‑feira, um dos fellows organiza um jantar na Lippmann House, a sede, e faz uma apre sentação de si durante uma hora, seguida de perguntas dos colegas – e de dança e copos nalguns casos. Nada do que fiz em Harvard teve a ver com artes. Não porque tivesse perdido o prazer da cultura, mas porque o meu objec Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 ‘ tivo era descobrir Na fundação só exigem que o jornalista outras áreas e fazer justamente aquilo leve a sério pelo menos uma cadeira que este ano mais semestral. Há, assim, um voto de confiança estimula: explorar, explorar, explorar. do curador Bob Giles nos jornalistas para É fácil perdermo eles aproveitarem Harvard ‑nos no mundo que passa por como quiserem. Harvard. Difícil é fazer as escolhas, porque seguir uma aula implica muitas vezes não seguir outra lhoso, impecavelmente cuidado. Mas é mais que acontece à mesma hora. Acho que na vertente prática que académica, com nunca ouvi tantas vezes a palavra overwhelmed jornalistas de carne e osso a entrarem e a como na primeira semana de aulas. saírem dali todos os dias. Apesar de ir com um plano definido na Harvey Cox já conheceu muitos destes cabeça – concentrar‑me nos estudos afro Nieman Fellows ao longo dos quarenta e cinco ‑americanos – quis também ir a aulas sobre anos que ensina na Harvard Divinity School, liderança, religião, política americana, polí e sabe bem o que é o programa. O que ele tica internacional, política económica ou não viveu foi a intensidade da vida de grupo jihad global. A ideia era não só aprofundar – que varia conforme os anos e os fellows, o meu interesse por questões de diversi claro – e que foi, sem dúvida, uma das expe dade racial e cultural como chegar a riências mais fortes da minha fellowship. Portugal com um melhor retrato da Não me senti apenas esmagada pelos miú América, dado por alguns dos maiores dos de 18 anos nas salas de aula, senti‑me especialistas na sua área. esmagada também pelos percursos dos Fascinante foi viver a vibração intelectual meus amigos, pessoas que arriscaram mui de uma cidade tão pequena, Cambridge, tas vezes a vida quando foram cobrir guer que, com Harvard e o MIT, terá uma das ras, desceram às mais sombrias histórias maiores concentrações de cérebros do humanas ou largaram um trabalho fixo para mundo, sentar‑me nas salas de aula com a serem freelancer noutro país. Confirmei assim maior diversidade racial que vi numa uni uma ideia que sempre tive – e que conti versidade e ser esmagada pelo nível inte nuarei a tomar como credo até prova em lectual de miúdos de 18 anos – sim, porque contrário: a de que o jornalismo é feito de se vai tanto a aulas de licenciatura como pessoas de carne e osso, inteiras, e estou a de pós‑graduação, não há barreiras. falar tanto das pessoas que são os rostos Quando digo que esta foi uma experi das histórias como de quem as conta. ência decisiva é porque de facto aquilo Talvez por isso tenhamos abandonado que fiz em Harvard está‑me a levar, rapidamente os imensos projectos iniciais enquanto escrevo, a uma pós‑graduação para discutir o futuro do jornalismo e pre em Sociologia na London School of ferido, em vez disso, partilhar o nosso Economics para me dedicar aos estudos quotidiano de pessoas nas piadas sobre o raciais (tenho a sorte de trabalhar num próximo evento social, no barbecue no jardim jornal que considera a formação dos jor de alguém, na sala de estar do hotel quan nalistas importante e que me deu mais um do fomos à neve, na desorganização da foto ano de licença sem vencimento). de grupo tirada já na praia, na gargalhada Mas no meio disto, onde fica o jornalis entre dois copos de vinho, no embirrar mo? Harvard não tem escola de com o barulho das trincas nas bolachas Comunicação Social, por isso é que tem a que nos davam nos seminários, no ter Nieman Foundation for Journalism – nas imensas ideias e fazer só algumas. ceu de uma doação de Agnes Wahl Nieman, Vários antigos Nieman Fellows disseram para que queria que o dinheiro fosse para criar nos gozarmos bem uns aos outros. Acho a escola que faltava, mas na altura, 1938, que foi das poucas coisas que resolvemos a direcção da Universidade decidiu em vez fazer exactamente como nos disseram. disso criar este programa sabático. * Fellow 2009-2010 da Nieman Fellowship for Journalists, Jornalismo não falta na sede da Nieman, programa financiado pela FLAD e pela Fundação Calouste uma casa branca com um jardim maravi Gulbenkian e jornalista do Público ’ 65 Patrícia Fonseca CARTA BRANCA Boston: “Education is my business” Manuel Anta ‘ A frase “a educação pode tudo: até faz dançar os ursos”, da autoria de Leibniz, corre o risco de eternizar o seu prazo de validade na parte mais britânica da América do Norte. Em Boston, os ursos primam pela ausência. Se ali vivessem, muito poucos se espantariam se a cidade e arredores se transformassem, num ápice, numa gigantesca pista de dança. Com Miami a vender turismo, Hollywood a vender sonhos, Nova Iorque a vender de tudo e Washington a privilegiar a política, Boston clama aos quatro ventos: “education is my business”. Em Boston, que acredita que quanto mais se sabe mais longe se vai, e num raio de poucos quilómetros, convive‑se ao longo do ano com o ritmo trepidante de uma densidade universitária sem paralelo nos Estados Unidos da América. Nela se juntam vários institutos ou estabelecimentos de ensino de primeira água. Entre eles, três símbolos mundiais da arte de bem ensinar: Universidade de Boston, que se espreguiça ao longo da Commonwelth Avenue, e em Cambridge, do outro lado da bacia do Charles River, Massachusetts Institute of Technology (MIT) e Universidade de Harvard. Nesse diálogo, com o rio de permeio, o que mais chama a atenção é a organização espacial: o campus, situado e inserido na vida da cidade. Faculdades, bibliotecas, centros de investigação, piscinas, restaurantes, apartamentos ou residenciais, minimercados, tudo na mesma área. A facilidade de contactos impressiona. A gestão do tempo é mais fácil. A biblioteca é logo ali, a 100 metros. Professores e alunos circulam num espaço amplo que renega a quilometragem. Com o sistema de créditos a funcionar, o estudante de Economia pode, se assim o desejar, frequentar uma cadeira de Medicina numa facul dade plantada ao virar da esquina. E se quiser frequentar uma aula de Filosofia, no problem – é só andar mais uns 100 metros. 66 ’ Tudo somado, a conclusão é óbvia: o campus gera uma atmosfera de concentração e produtividade intelectuais. A filosofia primordial das universidades é a de facilitar a vida a professores e estudantes e criar programas que garantam a inserção do estudante no mundo do trabalho e satisfaçam as necessidades do mercado. Para tal, quebram o isolamento. Saem das suas fron teiras, contactam empresas, perguntam‑lhes o que necessitam, criam projectos comuns, frequentemente apoiados financeiramente pelas empresas envolvidas. Entre universidades e empresas, o diálogo é constante. Ingressar neste paraíso académico tem custos quase tão elevados como os benefícios. As propinas (tuition) rondam actualmente os 30 a 35 mil dólares. Acrescente‑se alojamento, comida, dinheiro de bolso e o total sobe facilmente para os 55 mil dólares. Para fazer frente aos custos, várias soluções: pais com carteira bem recheada, trabalhar antes ou depois das aulas, ajuda conce dida pela universidade que frequenta, de acordo com a situação económica da família do candidato. No MIT, por exemplo, cerca de 60 por cento dos alunos que ali fazem uma licenciatura bene ficiam de ajuda financeira. Essa ajuda pode, em média, rondar os 17 mil dólares/ano. O MIT bem pode ajudar quem nele pretende formar‑se. Estudos recentes indicam que as invenções nele reali zadas dotam, anualmente, a economia americana com mais de 20 biliões de dólares e 150 mil empregos. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 Bolsas para jornalistas nos Estados Unidos da América «Nieman Journalism Fellowship» Universidade de Harvard A Fundação Luso-Americana e a Fundação Calouste Gulbenkian asseguram o financiamento de uma bolsa destinada a um participante português, no ano lectivo 2011-2012. A selecção é efectuada directamente pela Nieman Foundation sem qualquer interferência das fundações portuguesas. Candidaturas abertas até 15 de Dezembro de 2010 em www.nieman.harvard.edu (Seleccionar “Nieman Fellowships” e de seguida seleccionar “How to Apply”) A bolsa da Nieman Foundation oferece aos jornalistas a oportunidade de cumprirem um ano académico na Universidade de Harvard e de reflectirem sobre a sua carreira, renovando a curiosidade intelectual e enriquecendo a compreensão das matérias que são objecto da cobertura jornalística. Destinatários Jornalistas portugueses a tempo inteiro ou freelancers com um mínimo de cinco anos de experiência profissional que trabalhem em qualquer órgão de Comunicação Social (imprensa, rádio, televisão, fotografia e conteúdos digitais). Informações adicionais: [email protected] Tel. (+001) 617 495 22 38 Informações adicionais: [email protected] Tel. (+001) 617 495 22 38 SOCIEDADE Portugal em Nova Iorque “Destination Portugal” é o nome do projecto que levou, durante cerca de dois meses, vários produtos de designers portugueses até às lojas do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMa). O balanço é tão positivo que foi decidido manter à venda mais de uma dezena de produtos e fazer a divulgação para os mais de dois milhões de sócios do museu através da sua revista. Por Inês Sousa “Destination Design Series” é uma inicia tiva que anualmente promove e dá a conhe cer novas tendências de design. Em cada edição, é seleccionado um país e são dis ponibilizadas, nos espaços comerciais do MoMa, peças de designers conceituados ou em ascensão desse país. Nos últimos anos, estiveram em destaque a Finlândia, a Dinamarca, o Brasil e o Japão. Este ano, foi a vez de o nosso país ser o anfitrião do projecto. Pelo MoMa passaram diversos acessórios de moda, nomeadamente: famosos chapéus de chuva, relógios e malas em cortiça, loiça inspirada em cerâmica portuguesa e azu lejaria, jóias contemporâneas com filigra na e croché, livros, aventais, sacos, malas feitas com teclas de computador, pins de Lego, loiça Bordalo Pinheiro e até o típico galo de Barcelos. Muitos destes produtos nunca estiveram à venda fora de Portugal e alguns dos materiais usados causaram impacto e surpresa nos visitantes, como foi o caso da cortiça. O MoMa descreveu a colecção portuguesa como “fresca, com interpretações contem porâneas das cores, formas, materiais e tra dições do País”. Segundo Lauren Solotoff, do MoMa, esta foi das melhores iniciativas já feitas com 68 produtos de outros países. Dos sete eventos para compor o leque de objectos que levou já realizados este foi o que teve mais suces para os EUA. so e o que alcançou melhores níveis de Quem não viu a colecção em Nova vendas. Após a exposição, o MoMa decidiu Iorque pode fazê‑lo na loja do Museu de integrar mais de dez produtos no portfolio Serralves, no Porto, onde estarão alguns permanente, cinco com grande destaque na dos objectos. revista do museu que tem mais de dois milhões de assinantes. Entre os produtos mais ven Entre os produtos mais vendidos didos esteve o serviço de chá “Whistler”, feito de cerâmica esteve o serviço de chá “Whistler”, pintada e cortiça, as colheres feito de cerâmica pintada e cortiça, “Goa”, em inox e resina, um vaso de porcelana, uma mala as colheres “Goa”, em inox e resina, de ombro em cortiça, as taças um vaso de porcelana, uma mala “Bordalo Pinheiro” em forma de melão e os lápis Viarco. de ombro em cortiça, as taças O cenário foi semelhante em “Bordalo Pinheiro” em forma de melão todas as lojas. Na loja em Tóquio os produtos em cor e os lápis Viarco. tiça foram particularmente bem‑sucedidos. A escolha destes objectos trouxe a Portugal uma delegação do MoMa no final de 2009 que regressou aos Estados Unidos com as mãos cheias de design luso. Lauren Solotoff, responsável do museu, escolheu‑os a dedo, visitou ateliês, contactou com designers e fabri cantes, conheceu o mercado português através das exposições organizadas pela Fundação de Serralves em parceria com o Ministério da Cultura, Aicep, Ministério da Cultura e TemaHome, ‘ ’ Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 DR SOCIEDADE Portugal‑EUA Uma relação económica bilateral renovada Por Rui Boavista Marques* Um novo patamar de qualidade Mais de dois anos e meio após o início dos primei ros sinais de recessão nos EUA, os economistas pre vêem finalmente que a economia crescerá este ano à taxa de 3,3 por cento, mas que a retoma será atenuada até 2015 projectando‑se um valor nesse ano de 2,6 por cento de crescimento real do PIB. É neste contexto que as relações bilaterais Portugal ‑EUA ganham uma nova dinâmica, nas várias ver tentes de exportação portuguesa, de investimento português, de investimento directo americano e de parcerias de I&D voltadas para resultados no mer cado e de inovação de produto. Portugal mantém, desde 1997 até esta data, uma balança comercial positiva com os EUA, apesar de ter registado durante o período de 2007 a 2009 uma quebra significativa das suas exportações. No entanto, durante os primeiros seis meses deste ano, as expor tações, reagindo às novas oportunidades da retoma económica, aumentaram 43,6 por cento (relativamen te ao mesmo período no ano transacto). Para além desta renovada tendência, identificamos como provavelmente a maior alteração no relaciona mento bilateral, a visão e capacidade empreendedora de algumas empresas portuguesas através do investi mento directo português nos EUA. A nível do sector da energia, e após o investimento da EDP Renováveis na aquisição da Horizon e posterior expansão comer cial, verificou‑se a entrada no mercado da EFACEC e da Martifer. Nas infra‑estruturas e em novos conceitos industriais e de serviços, chegaram ao mercado a Brisa, a Soares da Costa e a Logoplaste, enquanto que a Sovena já tinha efectuado investimentos significativos em Roma e Nova Iorque. A nível da credibilidade de Portugal como destino de investimento directo americano, temos assistido aos recentes reforços de investimento da CISCO, da IBM, da HP e da Microsoft em operações de outsour cing ou de desenvolvimento de novas aplicações de software e de serviços, que confirmam o reconheci mento do nível de competitividade e patamar de excelência existente em Portugal. A acrescentar às dimensões anteriores, existe uma outra componente, que é a das parcerias internacio nais estabelecidas pelo Governo português entre universidades e empresas portuguesas com institui Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 ções americanas líderes mundiais da investigação científica aplicada: o Massachussets Institute of Technology, a Carnegie‑Mellon University, a University of Texas in Austin e a Harvard Medical School, estan do mais duas parcerias a ser analisadas. A manter‑se este ritmo e intensidade de interesse dos agentes económicos portugueses pelas oportu nidades geradas pela retoma económica, pela dimen são e características de inovação do mercado americano, estaremos seguramente num ano de vira gem do relacionamento bilateral. Um evento português de sucesso em Nova Iorque O evento “Destination Portugal”, que se realizou de meados de Maio a finais de Julho de 2010 nas três lojas do MoMa em Nova Iorque, enquadrou‑se numa série que o museu iniciou há seis anos, com regu laridade anual e retratando um país em termos de novidades de design mundial. O facto de Portugal ter sido convidado a seguir à Dinamarca e ao Japão, eleva o país a um nível de reconhecimento de “país de design” que é uma novi dade para o grande público e líderes de opinião americanos, sendo Nova Iorque uma das cidades líderes das tendências mundiais de consumo. A escolha das marcas portuguesas foi feita por um grupo de curadoras do MoMa que durante três visi tas a Portugal se actualizaram com o design contem porâneo português. Segundo as suas próprias palavras, ficaram muito bem impressionadas com os produtos e com a qualidade e nível de resposta dos produtores e designers, reconhecendo que foi um dos melhores eventos da série. De facto, em termos de resultados, nunca aconteceu passar da inexistência total de mar cas, a decidirem ficar com 15 produtos no portfolio de Outono, correspondendo a nove marcas, algumas delas com relevo especial na revista semestral do MoMa que é enviada a 2,5 milhões de sócios do museu. As marcas que tiveram bons resultados e que ficaram no catálogo do MoMa são a Viarco, a parceria Amorim Cork/Matceramica, a Bordalo Pinheiro, a Pelcor, a Cutipol, a Spal, a João Sabino, a Alentejo Azul e a TemaHome. * Director coordenador para a América do Norte Aicep Portugal Global, Nova Iorque 69 CULTURA Novo Museu do Côa A região do Vale do Côa, internacionalmente reconhecida pela importância da sua arte rupestre e classificada pela UNESCO como Património da Humanidade, tem mais um local de visita obrigatória: o Museu do Côa. Por João Silvério* do Ambiente Dulce Pássaro, Gonçalo Couceiro e João Pedro Cunha Rodrigues, do IGESPAR, a directora do Parque Arqueológico do Vale do Côa, Alexandra Cerveira Lima e Fernando Real, coordenador do projecto do Vale do Côa, o presidente da Câmara de Vila Nova de Foz Côa e Maria de Lurdes Rodrigues, presidente do Conselho Executivo da Fundação Luso‑Americana. A cerimónia inaugural, que contou, também, com a visi ta da nova embaixatriz americana em Lisboa, juntou, ainda, os habitantes de Vila Nova de Foz Côa e cerca de quinhentos convidados de diversas áreas da cultura, da política e da sociedade civil. O projecto do museu, dos arquitectos Camilo Rebelo e Tiago Pimentel, teve em conta a relação com a paisagem sendo a sua implantação localizada num dos pontos mais altos, o que permite, ao visitante, des D.R. Localizado num dos pontos mais altos da zona é incontornável ver o novo edifício, usufruir a sua magnífica vista sobre o rio Douro e as encostas do vale e aproveitar para visitar a exposição que encerra em Janeiro de 2011. O Museu do Côa foi inaugurado no pas sado dia 30 de Julho com a presença do primeiro‑ministro José Sócrates, a ministra da Cultura Gabriela Canavilhas, a ministra O museu está localizado num dos pontos mais altos, o que permite aos visitantes desfrutar de uma magnífica vista do rio Douro. 70 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 D.R. CULTURA frutar de uma magnífica vista sobre o rio Douro e as encostas do vale. A região do Vale do Côa, internacionalmente reconhe cida pela importância da sua arte rupestre, foi classificada pela UNESCO em 1998 como Património da Humanidade. Esta classificação distintiva esteve na origem da criação do Parque Arqueológico do Vale do Côa, para ser um elemento dinamizador de um plano de desenvolvimento integra do da região, combinando o património e a economia, o lazer e o conhecimento, a investigação e o turismo, multiplicando por essa via o emprego e renovando em todos os aspectos a vida dessa região. ‘ É incontornável ver o novo edifício, usufruir a sua magnífica vista sobre o rio Douro e as encostas do vale. Obras de Alberto Carneiro (desenho), Julião Sarmento (pintura), Michael Biberstein (pintura) e Pedro Cabrita Reis (escultura) ao centro. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 D.R. ’ O museu apresenta uma vasta área expo sitiva com equipamento audiovisual dedi cando várias salas à introdução histórica e interpretação do legado museológico que se encontra ao longo do Vale do Côa, numa extensão de aproximadamente 20 quilóme tros. Este museu, o segundo maior em Portugal, conta também com um núcleo de três salas para exposições temporárias onde se encontra instalada a mostra “Gesto e Inscrição – Obras da Colecção da Fundação Luso‑Americana para o Desenvolvimento”. A exposição resulta de um protocolo assi nado entre esta instituição e o IGESPAR/MC, no sentido de promover e dinamizar este tipo de iniciativas ampliando a actividade do museu às práticas artísticas contemporâ neas. É de salientar que o projecto do museu inclui obras de dois artistas plásticos, Alberto Carneiro e Ângelo de Sousa, convidados a realizar intervenções permanentes no espa ço interior do museu, que criam uma pecu liar relação com as gravuras do Vale do Côa e com a arquitectura do museu. É neste contexto museológico que ao conceber a exposição “Gesto e Inscrição”, tomando como ponto de partida a ligação entre dois tempos históricos, já inscrita no projecto museológico. A exposição tem como primeiro objectivo dar a ver obras de arte contemporânea de artistas relevan tes no panorama nacional e internacional, e que pertencem a uma colecção institu cional, à população de Foz Côa e aos visi tantes do parque e do museu. Esta iniciativa, em colaboração com o IGESPAR, vem na continuidade de um programa de Dulce Pássaro, ministra do Ambiente, Gabriela Canavilhas, ministra da Cultura, Maria de Lurdes Rodrigues, presidente da FLAD, e José Sócrates ouvindo a explicação do curador da colecção da FLAD, João Silvério. exposições da colecção da FLAD que tem permitido o acesso a autores e obras que frequentemente encontram outros públicos nos grandes centros urbanos. Esta selecção abrange três gerações de artis tas com obras de Michael Biberstein, Pedro Cabrita Reis, Fernando Calhau, Alberto Carneiro, José Pedro Croft, Carlos Figueiredo, Julião Sarmento, Ângelo de Sousa e Francisco Tropa, mostrando o seu trabalho em diver sas técnicas e suportes tais como o desenho, a gravura, a fotografia, a pintura, a encáus tica e a escultura/instalação. A exposição propõe orientar o olhar do espectador para a relação do corpo com a obra enquanto presença performativa na produção artística. Esta prática, sempre pre sente na criação humana, está intimamen te ligada ao acto de fazer e assim à gestualidade. A inscrição pode ser compre endida num duplo sentido – como incisão sobre o suporte e como metáfora do pro cesso artístico – estabelecendo uma relação com o lugar e a sua memória, com a arqui tectura do museu e com a paisagem. * Curador, Fundação Luso‑Americana 71 CULTURA Um livro que voltou às origens Chegou, primeiro aos Açores, depois ao continente, o primeiro livro de uma colecção que revelará ao público alguns dos nomes mais significativos da cultura luso‑americana. “Portugal na América” estreia‑se com um best‑seller do mercado americano, assinado por um português. RUI OCHÔA Por Clara Pinto Caldeira Da esquerda para a direita: Rui Zink, Francisca Cortesão, Mário Mesquita e Frank Sousa, no lançamento do livro de Alfred Lewis Minha Ilha, Minha Casa. “Uma obra literária regressa a casa”. Foi assim que a editora da Edel Portugal, Emília Madureira, falou da publicação de Minha Ilha, Minha Casa, de Alfred Lewis, durante a sua apresentação em Lisboa, no auditório da FLAD, em Junho passado. Escrito originalmente em inglês, publi cado pela primeira vez nos EUA, em 1951, pela prestigiada editora Randon House, este livro nunca tinha chegado a Portugal na língua da saudade. Mas a saudade que atravessa estas páginas impressionou o público e a imprensa americanos da época. Merecedor de cerca de 80 recensões em alguns dos mais influentes jornais da época, destaca‑se o elogio do New York Times e de Patricia Highsmith, a célebre autora de policiais psicológicos, cujo texto serve 72 de posfácio a esta edição: “O mundo já quase se esqueceu de ler livros como este. É bom que haja escritores que ainda não se tenham esquecido de os escrever.” Quem o escreveu foi Alfred Lewis, nasci do na ilha das Flores em 1902, que partiu para os Estados Unidos com 19 anos de idade, em 1922. Exerceu o cargo de juiz municipal, tendo tido um papel de relevo junto da comunidade emigrante. Mas foi enquanto homem das letras que se desta cou, como o primeiro português a con quistar a atenção do público de língua inglesa. Romancista, poeta e dramaturgo, é também autor de contos publicados numa revista literária americana, Prairie Schooner – relatos que descrevem uma sociedade mul tirracial, composta por mexicanos, portugueses, arménios e anglo‑americanos que mereceram referência na prestigiada antologia The Best American Short Stories, dois anos seguidos, em 1949 e 1950. Minha Ilha, Minha Casa é o primeiro livro da série “Portugal na América”, uma iniciativa do Center for Portuguese Studies and Culture (http://www.portstudies.umassd.edu/), University of Massachusetts, Dartmouth, com o apoio da Fundação Luso‑Americana para o Desenvolvimento. De acordo com Mário Mesquita, administrador da Fundação, a iniciativa “inscreve‑se na política da FLAD de estreitar laços culturais entre Portugal e os Estados Unidos”. Mário Mesquita subli nhou ainda a ligação especial da FLAD com a região autónoma dos Açores (onde se rea lizou a primeira apresentação do livro em Portugal) e destacou as Flores como uma ilha literária, que viu nascer poetas como Roberto Mesquita e Pedro da Silveira. Frank Sousa é o responsável, do outro lado do Atlântico, por esta publicação. Coordenador do Center for Portuguese Studies and Culture em Massachusetts, ele próprio emigrante açoriano desde os nove anos, contou ao público presente na apre sentação de Lisboa o percurso de Alfred Lewis, que começou por se empregar numa plantação de batata‑doce, ao chegar ao país do El Dorado. Uma tuberculose afastou‑o dos campos e acabou por determinar o seu futuro, porque a família do médico que o tratou apoiou a sua educação. Partilhando com o autor a experiência da emigração e a origem, Frank Sousa sublinhou o carácter universal e simultaneamente autobiográfi co do livro, um regresso claro a uma infân cia bucólica e sonhadora, com a terra prometida em pano de fundo. “Na verda de, a pessoa escreve com a vida que teve. No momento, transcreve‑a”, disse Rui Zink, responsável pela revisão literária da obra em português e coordenador da tradução de Francisca Cortesão. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 CULTURA O elo dourado Minha Ilha, Minha Casa é o primeiro livro da nova colecção que a Edel, em colaboração com a Universidade de Massachusetts, e com o apoio – indispensável – da FLAD, começa agora a publicar. Seguir‑se‑á Vasco da Gama, Cary Grant e as Eleições de 1934, de Charles Reis Felix. Por Rui Zink* Fico sempre espantado, mas não devia ficar espantado (bem sei), quando vejo o trajec to de gente como Alfred Lewis, que parte do nada em busca do eldorado e faz fortu na. Fico ainda mais espantado, mas (bem sei) não devia ficar espantado, quando essa fortuna é feita na literatura. Fico ainda mais espantado (e aqui há mesmo razão para ficar) quando essa fortuna na literatura é feita construindo um romance musical, cali brado, onde quase não acontece nada mas onde tudo acontece, que nos dá o mundo sem no‑lo impor, um tempo sem lhe que brar o cristal, beleza sem arrastar o salto alto. Aos 20 anos, Alfred Lewis descobriu uma língua nova na Califórnia − o inglês − e a ela se mol dou. Nela viveu dois terços da sua vida e nela morreu, juiz de paz, homem de paz, de letras, de cultura. E nessa língua decidiu devolver um percurso, uma origem, tanto à comunidade luso ‑americana da qual fazia parte como à comunidade mais vasta para quem esta comunidade era invisível − ou menos que isso. É uma devolução a dois imaginá rios, no fundo: ao público america no − e este romance foi um best‑seller, ou seja, chegou a muita gente − para o qual os descendentes de portugue ses não têm sequer a dúbia aura do crime para se tornarem distintos; como já foi dito e ainda não desmen tido, a comunidade portuguesa tem sido um grande invisível; e uma devolução ao público português, que só agora, volvidos sessenta anos, tem acesso a uma tradução − ou a uma retroversão? − de Home Is an Island. Na abertura, um jovem nas Flores à espera do vapor para a América reen contra a mulher que, literalmente, pri meiro o viu: Tia Maria, a parteira da aldeia. Nos capítulos seguintes teremos Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 a história de José, linear, sem mais cortes temporais, analepses ou prolepses, desde o berço até ao corte com o cordão umbilical da ilha e da comunidade. A partir daí, o jovem talvez passados uns anos regresse a Portugal − o autor sabemos que não, até ao fim da vida. E porquê? Porque não voltou Alfred Lewis à Fajãzinha? Talvez porque, na verdade, nunca de cá tenha saído. Embora o estilo seja simples, e a história de uma limpidez poética, como sublinhou Patricia Highsmith, muita coisa acontece neste livro. A bem dizer, tudo: vida, morte, ‘ Embora o estilo seja simples, e a história de uma limpidez poética, muita coisa acontece neste livro. ’ amor, dor, felicidade, descoberta, estranheza, o mundo, enfim. E há mudança, no mundo e na percep ção no mundo, de capítulo para capítulo. Nunca estamos parados porque, se o lar é uma ilha, apren der é uma viagem. Seguimos o herói ao longo da primeira infân cia e da juventude, sempre em metamorfose − porque uma crian ça de cinco anos não tem exacta mente os mesmos motivos que um jovem de dezasseis. Este livro não é o relato da des coberta do eldorado. O romance é que é um verdadeiro elo dou rado: uma dádiva para o leitor americano, a paga de uma dívida para com o mundo que o viu nascer e, agora, um presente para o leitor português. Alfred Lewis compreendeu como fazer um romance universal: não saindo de casa. Mas isso já o uni verso, que não nasceu ontem, sabe há muito tempo: é preciso sair de casa para regressar a casa. Welcome home, mr. Lewis. * Escritor 73 CULTURA A casa das histórias “Parece um barco a vapor” dizem muitos dos visitantes da casa onde viveu Sam L. Clemens com a mulher e as três filhas. Mais conhecido como Mark Twain, escreveu, muitas vezes, no escritório do último andar, alguns dos livros que o conservam ainda entre nós, apesar dos cem anos passados da sua morte. Por Sara Pina “Para nós, a nossa casa tem um coração, e uma alma, e olhos que nos vêem”, escreveu Clemens. Com as filhas Susy, Clara e Jean, Livy e Sam viveram aqui até 1891 muito perto da casa de uma amiga, também escritora, Harriet Beecher Stowe, autora do livro A Cabana do Pai Tomás, escri to contra a escravatura e que inspirou o abolicionismo e a guerra norte‑sul. Abraham Lincoln chamou a Harriet “a pequena mulher que escreveu o livro que começou esta grande guerra”. Nos anos em Hartford, Clemens ganhou muito dinheiro com os seus livros mas per ‘ A prosperidade é a melhor protectora dos princípios. Mark Twain ’ deu ainda mais com o investimento que fazia nas suas invenções. Junto da casa principal, havia uma oficina onde ele chegou a traba lhar na concretização de ideias para novos produtos. Algumas patenteadas, como um jogo para as crianças aprenderem história ou um acessório de vestuário que substituía os suspensórios. Outras que lhe roubaram muito do seu tempo e economias como um sistema de impressão que nunca resultou. O primeiro telefone na América foi para a casa dos Clemens. Geralmente era aten dido pelo fiel mordomo George Griffin que trabalhou com a família cerca de dezoito anos. Clemens ironizava que o telefone era frustrante porque só permitia ouvir um dos lados da conversa. Das vezes que aten dia uma chamada no moderno aparelho gritava‑lhe vários insultos por não ter paci ência para a fraca qualidade da comunica ção telefónica da época. D.R. As Aventuras de Tom Sawyer, A Vida no Mississipi ou as Aventuras de Huckberry Finn (a que Hemingway chama a raíz de toda a literatura america na moderna) foram escritas na casa de Farmington Avenue, em Hartford, no Connecticut. A casa-barco foi mandada construir à beira de um rio (que agora já não existe), que lembraria Sam Clemens das primeiras décadas da sua vida dura mas apaixonada no Mississipi enquanto piloto de barcos. Ser steamboater foi o seu sonho desde criança e nesse trabalho conheceu muita gente, viveu muitas aventuras que o marcaram para sempre e inspiraram toda a sua obra. Olivia, ou carinhosamente Livy, a mulher de Sam, preparou muitos dos desenhos para inspirar o arquitecto na construção da casa da família. Em 1874, ainda com as obras por concluir, a família Clemens mudava‑se para a casa de 25 quartos. “Para nós, a nossa casa tem um coração, e uma alma, e olhos que nos vêem”, escreveu Clemens. 74 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 D.R. D.R. CULTURA As histórias contadas ao serão entre os membros da família Clemens tinham início no gato e acabavam em Emmeline – dois quadros pendurados na parede da sala de estar. O gato e a Emmeline O piso de entrada da casa tem várias salas praticamente iguais ao que eram quando os Clemens a habitaram. Nestas salas eram rece bidos muitos amigos. Livy, a mulher de Clemens, tocava piano e toda a família can tava espirituais. Era o sempre fiel mordomo George que servia o jantar e permanecia junto à porta, perto de um biombo à entrada da cozinha. Durante a refeição, Clemens con tava histórias e anedotas aos seus convidados, Ainda no primeiro piso fica a sala onde a família se reunia a seguir ao jantar. Junto de uma estufa, Sam Clemens, a mulher Livy e as três filhas, Susy, Clara e Jean, sentavam ‑se perto da lareira para ler e contar histó rias. Muitos dos contos que partilhavam eram inventados no momento e, por regra, tinham de ter início no gato, com uma farfalhuda gola renascentista, retratado na parede, e acabar numa pintura impressio nista, também pendurada, comprada em Itália, reproduzindo uma jovem mulher a quem a família chamava de Emmeline. Não há coisa mais triste No segundo andar da casa estão do que um jovem pessimista, os quartos de dormir e os para as crianças estudarem e brinca excepto um velho optimista. rem. O casal Clemens dormia Mark Twain com os pés para a cabeceira da cama que compraram em Veneza, muitas vezes interrompidas pelos risos do por 200 dólares – uma fortuna na época. mordomo que como já as conhecia de cor Toda gravada de anjos, a cabeceira é a parte ria‑se antes destas chegarem ao fim. Clemens mais trabalhada e Livy e Sam preferiam ficava furioso com as interrupções e, por adormecer a olhar para a parte da cama isso, dezenas de vezes despediu o mordo que achavam mais bonita. Sam costumava mo, voltando a contratá‑lo logo a seguir. dizer que isso lhe trazia bons sonhos. ‘ ’ Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 ‘ Viajar é fatal para os preconceitos. Mark Twain ’ Para escrever, Sam Clemens usava uma sala no último andar, o escritório era tam bém a sala do bilhar onde fumava muitos charutos e cachimbo. A única regra que tinha, dizia, era não fumar mais do que um ao mesmo tempo. Nas férias de Verão, a família mudava‑se para casa da irmã de Livy que fez um escritório só para Sam Clemens escrever. Para ele, era o sítio mais inspirador, onde era capaz de escrever nove capítulos segui dos. Mas em Hartford, a sala do bilhar foi muito usada para trabalhar nos seus livros e, de vez em quando, relaxar com um jogo de bilhar. A mesa de bilhar era, também, muito útil para espalhar textos e cortar e colar frases e parágrafos. Uma espécie de antepassado do sistema copy‑paste dos nos sos computadores usado por Clemens que sempre escreveu à mão. 75 CULTURA Mark Twain: o homem que ensinou o romance americano a falar No centenário da sua morte, Mark Twain é canonizado como ícone fundamental da cultura norte‑americana, cujos génio e actualidade são reinterpretados dentro e fora de portas. D.R. Por Filipa Melo A Mark Twain talvez todo este alarde pare cesse tão “francamente exagerado” como a notícia da sua morte, anunciada por um jornal em 1897, três anos antes de ocor rer de facto. O escritor sempre foi terra‑a ‑terra, mestre de uma mordacidade risonha, mas demasiado sarcástico e crí tico até para se conceder a si mesmo uma importância desta ordem. Ou… talvez não. ‘ Na ordem do dia da análise da obra de Mark Twain estão, de facto, as suas contemporaneidade e transnacionalidade. Um retrato clássico de Mark Twain com 71 ou 72 anos (tirado em 1907). 76 ’ Pelo mundo fora, comemora‑se em 2010 o centenário da sua morte. Com enorme expectativa, aguarda‑se a edição do pri meiro dos três volumes do texto integral da Autobiography of Mark Twain, prevista para Novembro pela University of California Press. Para alguns dos que já as espreita ram, nestas páginas de opinião, que Twain desejou que só agora fossem reveladas na íntegra, o escritor surgirá mais franco, mais coloquial e com uma acutilância e um arrojo políticos tão intensos que se diria proféticos. Renovar‑se‑ão, pois, os sinais do génio criador de Huckleberry Finn, o livro que Jorge Luis Borges disse ter “ensinado todo o romance americano a falar” e ao qual Ernest Hemingway atri buiu a origem de “toda a literatura ame ricana moderna”. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 D.R. CULTURA ‘ A voz moral de Twain, objectiva e independente, talvez até seja mais apreensível hoje, passados cem anos sobre o tempo em que o [enorme] sucesso e popularidade do escritor “advinha da comédia, e não do criticismo social”. ’ Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 bate contra a expansão imperialista, uma posição actualíssima, defende Peter Messent: “O que ele escreveu genericamente sobre o assunto e concretamente sobre o envolvi mento dos EUA nas Filipinas reverbera for temente no Ocidente pós‑Iraque.” A voz moral de Twain, objectiva e independente, talvez até seja mais apreensível hoje, passa dos cem anos sobre o tempo em que o [enorme] sucesso e popularidade do escri tor “advinha da comédia, e não do criticis mo social”. Mas será essa voz escutada em todo o mundo? Shelley Fisher Fishkin responde com iro nia. No início da carreira, Twain tinha D.R. Inocentes acontece nos Açores, cujas gentes e hábitos não deixam a melhor das impres sões no escritor. Ainda assim, esta é a mais célebre referên cia de Twain aos portugueses e mais um dos múltiplos exemplos da sua inventivi dade crítica: intrépida e sagaz e com um inimitável wit cómico. Em que sentido Mark Twain próximo da idade em que embarcou é que se mantém actual? no cruzeiro Innocents. Para Peter Messent, é evi dente a premência das con siderações de Mark Twain sobre como a whiteness (a Na ordem do dia da análise da obra de supremacia branca) “foi – e, por vezes, Mark Twain (pseudónimo literário de ainda é – uma norma assumida na Samuel Langhorne Clemens, nascido na América em detrimento de outras expe localidade de Flórida, no Missouri, em riências culturais e grupos raciais”. O 1835) estão, de facto, as suas contempo radicalismo do ataque do escritor aos raneidade e transnacionalidade. Assim o preconceitos raciais comprova‑se em con justificaram os especialistas Shelley Fisher tos como “A True Story” e representa um Fishkin e Peter Messent durante o coló dos muitos sinais do seu progressivo quio, ocorrido a 8 de Outubro último, desencanto com os EUA e, genericamen em Lisboa, com o qual a Fundação Luso te, com o mundo. Em 1900, com 65 ‑Americana prestou tributo ao escritor anos, Twain escreve: “A minha ideia da (iniciativa organizada, em parceria, por nossa civilização é a de que se trata de Teresa F. A. Alves e Teresa Cid, do Centro uma pobre coisa gasta e cheia de cruel de Estudos Anglísticos da Universidade de dades, vaidades, arrogâncias, despropó Lisboa, Isabel Caldeira, da Faculdade de sitos e hipocrisias. Quanto ao mundo ele Letras da Universidade de Coimbra, e mesmo, odeio o seu som, porque ele Mário Mesquita e Miguel Vaz, pela FLAD). encobre uma mentira; quanto à coisa ela Para os leitores portugueses, a celebração mesma, eu queria mesmo é que ela fosse de Twain inclui ainda a tradução de para o Inferno a que pertence.” A Viagem dos Inocentes, assinada por Margarida Ainda que este Twain dos últimos anos de Vale de Gato e recém‑editada pela Tinta vida revele uma “misantropia profundamen ‑da‑China, com apoio da FLAD. Primeiro te irónica”, o escritor nunca abandonou “o grande sucesso da carreira de Mark Twain, impulso moralista e reformista que também este livro de viagens relata o mergulho deu forma à sua escrita”. Um impulso que “inocente” de um grupo de americanos deriva, em grande parte, da influência da na cultura europeia e na Terra Santa, ins mulher, a liberal nova‑iorquina Olivia pirado nas notas e cartas escritas pelo Langhton, que lhe apresenta, entre outros, repórter Twain durante a viagem que fez Harriet Beecher Stowe, Frederick Douglas e à Europa, em 1867, a bordo do paquete o socialista William Dean Howells. À luta Quaker City. A primeira escala d’A Viagem dos contra o racismo, Twain acrescentará o com Ilustração retirada da obra The Innocents Abroad com Mark Twain a bordo. 77 CULTURA A Viagem dos Inocentes, inspirada nas notas e cartas escritas pelo repórter Twain durante a viagem que fez à Europa, em 1867, a bordo do paquete Quaker City. ‘ Para os leitores portugueses, a celebração de Twain inclui ainda a tradução de A Viagem dos Inocentes. tudo para não ser apreciado fora de portas. O privilégio da linguagem dialectal torna va os seus livros por vezes impenetráveis para os leitores europeus e, para mais, o jovem autor, já mestre da linguagem humo rística, insistia em encontrar novas formas de os ofender de cada vez que publicava um novo livro. E, no entanto… Fisher Fishkin despeja exemplos. Charles Darwin mantinha A Viagem dos Inocentes na mesa‑de ‑cabeceira, para lhe pegar rapidamente quando queria desanuviar a mente e rela xar antes de dormir. Por seu turno, o chan celer Otto von Bismarck aprendeu de cor passagens deste livro para poder partilhá‑las com os netos. Friedrich Nietzsche adorava enviar Tom Sawyer como presente para os melhores amigos. Joseph Conrad reflectia muitas vezes nas experiências de Twain como piloto de barcos a vapor (descritas em Life on the Mississipi) enquanto conduzia um através do Congo. Jorge Luis Borges e o nobel Kenzaburo Oe inspiraram‑se em Twain para escrever os primeiros livros. E, após ler A Connecticut Yankee in King Arthur’s Court, o cubano José Martí ficou tão comovido 78 ’ com o indignado sentido de justiça social do escritor norte‑americano que quis conhecê‑lo pessoalmente “para lhe apertar a mão”. “Leitores de todo o mundo maravilharam ‑se com a arte de Twain forjada a partir do discurso das pessoas comuns, cuja anterior presença na literatura havia sido sobretudo ridicularizada”, justifica Shelley Fisher Fishkin. Em Huckleberry Finn, Borges garante que “pela primeira vez um escri tor americano usou a linguagem da América sem afectação”. O exemplo con tagiou escritores como, por exemplo, Johannes V. Jensen e Lu Xun, os primeiros grandes modernistas dinamarquês e chi nês. A força da linguagem singularíssima de Twain prevaleceu até sobre a duvidosa qualidade de muitas das suas traduções. Talvez tenha ajudado, e muito, o facto de Twain ter visto “mais do mundo do que qualquer outro escritor norte ‑americano antes dele” e de, nos EUA, ter sido “um dos primeiros genuínos cidadãos do mundo”. No ano em que se comemo ra o centenário do seu nascimento, sobe à cena na Roménia uma peça escrita por ele em 1898, dedicam‑lhe um importan te congresso em Yokahama e uma gigan tesca enciclopédia da sua obra é publicada em Tóquio, em japonês. Twain transnacional? Sem dúvida. Mas depois de que percurso entre os académicos? Shelley Fisher Fishkin aponta a Guerra Fria como a principal causa de duas visões radicalmente distintas sobre a obra de Twain nos EUA e na China e na União Soviética, da década de 40 à de 70. Em simultâneo “castrados” e “reabilitados” (Maxwell Geismar), o génio de Twain e o seu papel como crítico social e cultural foram distorcidos pelos imperativos polí ticos dos contendores. Enquanto escritores e críticos chineses e soviéticos exaltavam uma visão corrosiva sobre os EUA, os seus pares norte‑americanos desvalorizavam esta faceta da obra de Twain como fruto de mera propaganda comunista e enalteciam o escri tor enquanto humorista. Para Fisher Fishkin, os americanos “deitaram o bebé com a água do banho quando desvalorizaram a validade das críticas de Twain em relação ao seu país – que era também o deles – e, infelizmente, em muitos aspectos, ainda válidas para a América actual”. Teresa F. A. Alves defende: “É interessan te constatar que, no percurso de passagem Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 CULTURA na tradição literária erudita e estabeleceu na e se devolve ao leitor como o cenário um novo modelo de tradição literária. adequado às realidades e aos paradoxos de Estamos de regresso ao caudal do Mississipi uma cultura em transição”. A viagem será de As Aventuras de Huckleberry Finn. o tema central em toda a obra de Twain, do Desde 1958, quando se dá a reorganiza Mississipi da infância até ao tempo do rei ção dos currículos das Humanidades na Artur revisitado do futuro. “A viagem como Faculdade de Letras da Universidade de metáfora da própria vida, numa escrita Lisboa e é instituída uma cadeira anual de essencialmente autobiográfica.Twain propõe Literatura Americana (no então curso ‑nos uma viagem literária e humana radi de Filologia Germânica), esta obra marca calmente ligada à mudança. Na verdade, presença obrigatória nos programas. “Ela ainda estamos todos a bordo e a viagem presta‑se, talvez como nenhuma outra do parece estar longe de terminar.” autor, a funcionar como obra de iniciação à diferen ça territorial e linguística da literatura americana, a uma Charles Darwin mantinha cultura que se estrutura em função de complexas duali A Viagem dos Inocentes dades e de difíceis concilia na mesa‑de‑cabeceira, ções.” Huck encarna “a para lhe pegar rapidamente aventura ao sabor da Terra Prometida”. Foi na compa quando queria desanuviar nhia de outro jovem, Tom a mente e relaxar antes de dormir. Sawyer (“este correspon dendo ao que um leitor europeu familiarizado com romances de cavalaria e de novelas românticas esperaria encontrar num juvenil aven tureiro”) que Huck deu a Mark Twain a maior popu laridade e maior difusão entre os leitores portugue ses. Estávamos na década de 1940 e, antes disso, era como contista que Twain surgia nos periódicos e folhetins portugueses de finais do século XIX – iní cios do século XX. Depois, Tom conquistou os jovens, Huck conquistou todas as faixas etárias, – “não só pela novidade estilística das suas aventuras, mas também pela representação de uma nova percepção da experiência humana”. Efectivamente, “no seu fluir por entre as realizações humanas precárias – repre sentadas pelas comunidades que habitam as suas margens – e a multiplicidade das metamorfoses observadas ao vogar de uma jangada tripu lada por um adolescente branco e um homem negro, o Mississipi como que sim bolicamente se apropria das profundas contradições que A visão dos peregrinos, retirado da obra The Innocents Abroad. assinalam a existência huma ‘ ’ a autor canónico, Twain abriu caminho a outros escritores que, como ele, começa ram a escrever à margem das convenções dominantes, deixando‑nos o testemunho de uma literatura que se processa justa mente no recorrente intercâmbio entre modos periféricos e canónicos.” Ao des denhar das convenções suas contemporâ neas, o autor oitocentisa abriu uma brecha Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 79 CULTURA Portugal e EUA: repúblicas com paralelo As repúblicas portuguesa e americana tiveram génese revolucionária, institucionalizaram‑se por via constitucional, consagraram direitos fundamentais, separaram Estado e religião e acreditaram no homem novo. De resto, mais de um século e um oceano as separam. Por Carla Martins Auditório da FLAD, 21 de Maio. Em discus são o tema “Repúblicas em Paralelo: Portugal e EUA”, no contexto das comemorações do centenário da República Portuguesa, com as sessões “A génese política e o legado das constituições americana e portuguesa (1911)” e “O conceito de República e a sua dimensão política e religiosa”. Alexander Keyssar, professor da Universidade de Harvard, foi o primeiro orador, debruçando‑se sobre a génese e o legado da Constituição redigida em segredo no longo e quente Verão de 1787, em Filadélfia. A nova nação precisava, então, de um texto constitucional que fosse “um fra mework for eternity” e esse documento viria a caracterizar‑se pela brevidade e flexibilidade. Os artigos eram em número reduzido e apenas “vieram a ser completados com o Bill of Rights, acrescido da conhecida parci mónia das restantes emendas constitucio nais”, descreve José Esteves Pereira, professor da Universidade Nova de Lisboa, no comen tário no final das comunicações. A Lei Fundamental foi concebida para “limitar o poder do governo nacional” e para “tornar o Povo soberano”, explica Keyssar. Mas soberano q.b., porque havia também de “limitar” o poder do povo (lembra Keyssar que “democracia” tinha na altura um sentido negativo). Os Pais Fundadores preocupavam‑se em proteger os direitos das minorias – religiosas e a minoria dos proprietários de grandes lati fundiários – e por isso eram ambivalentes em relação a um governo popular. John Adams, o segundo Presidente dos EUA, 80 ‘ confessava ter terror das elei ções, pela hipótese de eleva Seria impensável abordar a génese ção ao poder das “classes da República sem incorporar mais baixas”. Sendo um texto tão curto, o fenómeno da secularização “a Constituição resistiu ape e a relação de forças entre nas porque tem sido interpre tada de forma maleável”, o político e o religioso. observa Alexander Keyssar, apontando o papel exegético fundamental do Supremo Tribunal. Não obstante, tem servido bem o povo americano? O profes Optimismo em 1910 sor de Harvard concentrou boa parte da António Reis, professor da Universidade sua comunicação em “alguns dos legados Nova de Lisboa, dirigiu idêntica reflexão mais prejudiciais e negativos” do documen à génese e legado da Constituição Portuto. Por exemplo, a arquitectura da eleição guesa de 1911. A República Portuguesa, presidencial permite que um p residente mais do que um novo regime político, seja eleito sem maioria dos votos (o que personifica “um ideal, uma mística, uma aconteceu por quatro vezes na história do ética que, na sua essência, assentou numa país). Os Pais Fundadores não tencionaram filosofia da História e do cosmos e se tra “ter um presidente eleito pelo povo”. duz institucionalmente numa determina O especialista argumenta ainda que, em da concepção da democracia e do Estado”. boa parte dos estados, os resultados das O positivismo está entre as influências eleições presidenciais não revelam surpre mais marcantes da matriz ideológica do sa e que as campanhas se tornaram “num republicanismo, também afectada por um desporto para espectadores”, o que repre “complemento nacionalista da herança senta “um problema sério da nossa vida romântica, que introduz o finalismo na política contemporânea”. A Constituição evolução da história pátria”. permite ainda que os diferentes estados O republicanismo português emergiu, designem quem pode, e não pode, votar, assim, no quadro “de uma filosofia da pelo que podem efectivamente discriminar história que seculariza o providencialismo as suas próprias minorias. teológico no molde de um humanismo Análise crítica que não impede Keyssar prometeico, fundado num optimismo, de concluir que “a nossa Constituição tem a um tempo determinista, na sua base ‑nos servido bem”. A eternidade continua científica, e messiânico, no seu impulso no seu horizonte. afectivo de expressão nacionalista”. ’ Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 CULTURA DR Library of Congress Propugna‑se uma moral independente da religião, com “expressão viril, assente no culto da vontade, do trabalho e ener gia”, a que se soma uma vocação solida rista e associativista. A ética republicana é ainda caracterizada pelo culto da pátria e da humanidade, em substituição do culto de Deus. O Estado republicano – e a ética cívica que neste húmus se forma – caracteriza‑se, segundo António Reis, pela laicidade (ou pela “quase laicidade”, como viria a acentuar Fernando Catroga na ses são seguinte). A Constituição de 1911 embebeu este mosaico de influências e ideário. Porém, o documento, como a I República, viriam a denunciar, na prática, fragilidades. O seu legado projecta‑se na Lei Fundamental de 1976. Directamente, no capítulo dos direi tos, liberdades e garantias, e indirectamen te, na introdução de um “correctivo presidencial”, para impedir uma “tónica excessivamente parlamentarista”. A insta bilidade governativa da I República estava na mente dos deputados constituintes – como o próprio António Reis e Mário Mesquita, moderador da sessão. tica e religiosa da República. Se os comen tadores e estudiosos conferem um peso relevante ao religioso na sociedade e polí tica americanas, tanto Mewes como Catroga questionaram a existência de um “excepcionalismo” americano nesta maté ria. Na verdade, cada caso é um caso. Segundo Fernando Catroga, na Europa católica a religião institucional era vista como um obstáculo à modernidade, pelo que em países como a França o laicismo Recuo dos valores públicos foi consagrado constitucionalmente (o que Seria impensável abordar a génese da hoje é visto com alguma preocupação República sem incorporar o fenómeno da pelos conflitos étnico‑religiosos no país). secularização e a relação de forças entre Na América, ao invés, a religião contribuía o político e o religioso. Horst Mewes e para a fundação da modernidade e a cria Fernando Catroga foram os oradores da ção de uma esfera política autónoma. segunda sessão, dedicada à dimensão polí O professor da Universidade de Colorado explica que o princípio da separação entre Igreja e Estado durante a Revolução Americana deve ler‑se num contexto de luta pela liberdade religiosa, sem que nela pudesse haver interferência e controlo pelo governo. Na actualidade, os dados sobre o religioso na América são surpreendentes. Por um lado, Mewes aponta a ameaça potencial para o político repre sentada pelas religiões funda mentalistas. Por outro, as estatísticas mostram que a reli gião está menos presente na vida das pessoas, sobretudo dos jovens, e manifesta‑se sobretudo no Sul do país. Porém, o professor não iden tifica “a perda de bases religio sas” como o problema maior da democracia americana actu al mas sim a “privatização da vida”, o “reforço do individu alismo privatizado por muitas formas de religiosidade”, à custa das liberdades públicas. Hoje, as religiões são assunto privado, não norteiam ou impulsionam os valores públicos, algo que O Triunfo da Liberdade desenhado por John Francis Renault em 1795 representado pela deusa Minerva (à esquerda) Tocqueville já prenunciava em com um escudo com as armas dos Estados Unidos e a bandeira. O génio da liberdade aponta para a Declaração de Independência e o livro a Constituição americana. A Democracia na América. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 81 CULTURA Gente de escrita Miller ou a obscena inércia Com intervalos de decénios ou séculos, surge um escritor que mergulha dentro de si próprio, transformando a cratera do seu ser em linguagem. Por Ana Marques Gastão* Amiúde, é ignorado, esmagado, escarnecido e, não menos frequentemente, embrulhado em meia dúzia de linhas ou frases que o arrastam para uma verdade que não é a sua. A Henry Miller (1891‑1980) chamam‑lhe pornográfico. Haverá passagens da sua obra – que inclui os célebres Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio ou a trilogia The Rosy Crucifixion (Sexus, Plexus e Nexus) – em que o será, mas até que ponto a sua obscenidade tem sido contextualizada? 82 Sendo uma lenda – como as de Hemingway ou Fitzgerald –, a verdade é que o seu nome transporta um “horror obsceno”, por vezes alucinante e não menos distante de uma verborreia mítico‑metafísica, que choca as cabeças bem‑pensantes. Camuflada fica, quase sempre, a sua vasta dimensão enquan to autor erudito de prosa poética e apoca líptica, maldito ou profético. Em Trópico de Câncer, pouco antes de definir a Terra como “uma grande fêmea esparra mada, com torso de veludo ondulante como vagas oceâni cas”, parecia ele que anuncia va/denunciava esta tendência caverniculamente tenebrosa de os homens destruírem o que não entendem, escrevendo: “Se de vez em quando encontra mos páginas que explodem, páginas que ferem e cauteri zam, que arrancam gemidos, e lágrimas, e pragas, sabei que provêm de um homem de cos tas direitas, de um homem a quem restam como únicas defesas as suas palavras, e que as suas palavras são sempre mais fortes que o peso esma gador do mundo, mais fortes do que todas as rodas e tortu ras que os cobardes inventam para esmagar o milagre da per sonalidade.” Há uma fisiologia quase mís tica ignorada no prosar deste escritor de excessos e fatalis mos mecânicos e convulsivos, algo que surge de um com plexo cultural onde se ani nham o Egipto e a Grécia ‘ Escreveu a aço e granito, fazendo nascer “do nada o sinal do infinito”, do adubo morto “uma canção contagiante” porque o mundo “é uma jaula” que, ao agir, pensa. ’ como se se tratasse de restaurar as forças solares de uma terra que a Miller serve de útero e centro de um movimento de ideias. Para o autor norte‑americano, mesmo no seu individualismo feroz, o ser humano é traído pela melhor parte da sua natureza, ele que desejava, incontido, o ressurgimen to de oceanos como Shakespeare ou Dante, minérios da alma. Sendo o homem vítima de preconceitos, de ilusões idealistas, do sofrimento, da humilhação e da pobreza, restam, a seu ver, ao artista duas tarefas: uma certa ordenação do caos e a reconstrução dos valores exis tentes, porque a verdadeira obscenidade é a da inércia. Confessou, um dia, que a sua maior aspiração não tinha sido a de viver, mas a de exprimir‑se, reatando, ciclicamen te, o ritmo existencial num esforço titube ante. Escreveu a aço e granito, fazendo nascer “do nada o sinal do infinito”, do adubo morto “uma canção contagiante” porque o mundo “é uma jaula” que, ao agir, pensa. E faz pensar. * Poeta e crítica literária. Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 LIVROS True Compass Autobiografia de Edward Moore Kennedy (1932–2009) 2009, 532 páginas, Twelve Memórias do “Leão do Senado” Por Paulo Pena Jornalista da revista Visão Um homem pode viver durante quinze meses condenado a uma morte certa. Mas só um homem excepcional consegue apro veitar essa derradeira etapa, os quinze meses que lhe sobraram depois do diag nóstico fatal de um tumor no cérebro, para escrever um livro de memórias como True Compass. Edward M. Kennedy aproveitou a oportunidade de uma forma shakespeariana, rindo‑se da morte: “Respeito a seriedade da morte – em bastantes ocasiões pude meditar nas suas intrusões.” Nesta curta e surpreendente forma de pôr as coisas, o mais novo dos quatro irmãos Kennedy redimensiona uma tra gédia épica (que marcou profundamente a política norte‑americana) à sua própria escala. Edward revela, neste livro, como cresceu e aprendeu com os seus irmãos, e como a morte destes marcou a família e esculpiu o seu carácter. A escala mede‑se por vitórias pessoais. “A atitude derrotista não faz parte do meu ADN”, afirma. Foi assim que pôde dar a notícia da morte do seu irmão Jack ao pai, convalescente de um ataque cardíaco; foi assim que ultrapassou o diagnóstico de can cro a dois dos seus três filhos (Teddy Jr e Kara); foi assim que soube dimensionar os seus sonhos políticos depois das derrotas. Um exemplo recente é aquele que evoca no prólogo (p. 10), recordando como uma pedra no rim quase o impediu de discursar na Convenção do Partido Democrata, em Agosto de 2008, em Denver, três meses antes Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 da chegada vitoriosa de Barack Obama à Casa Branca: “Inacreditavelmente, depois de ter sobrevivido a uma cirur gia ao cérebro, à radioterapia, à qui mioterapia, e estando pronto para cumprir o meu objectivo de falar aos delegados em Denver, tinha sido ata cado, de repente, e pela primeira vez na vida, por uma pedra no rim.” Kennedy sabia que este seria o seu último discurso numa convenção. E queria repetir, quase palavra por palavra, a frase final do seu discurso de derrota, de 1980, quando abdicou da corrida pela nomeação, benefician do Jimmy Carter. Ao perder a nomeação, Kennedy desistiu, de vez, do destino presidencial que se lhe impu nha (mais do que um desejo próprio era um destino que tentou combater). Desta vez, em 2008, Kennedy endos sou a Obama o “sonho”. E o seu sonho estava a meio caminho. Depois da vitória nos direitos civis, faltava a reforma da saúde: “O trabalho come ça de novo, a esperança volta a nascer e o sonho vive outra vez.” “Eu aguento”, revela na sua autobiografia, era a frase que ia repetindo, entre o hospi tal e a convenção. Uma frase que se habituou a repetir desde muito novo. Sempre com humor, recorda Nixon: “Eu fazia parte da sua infame ‘lista de inimigos’. Uma vez que o alcance dessa lista rondava os 47 mil, nunca pude verdadeiramente saborear o sentimento de prestígio da minha inclusão” (p. 314). Sério e abalado, recorda a noite em que o seu carro se despistou numa ponte na ilha de Chappaquiddick, em 1969, quan do regressava de um encontro com jovens que trabalharam na campanha do seu irmão Bobby. Edward conseguiu libertar‑se enquanto o carro submergia, mas a sua acompanhante, Marie Joe Kopechne, acabaria por morrer. Kennedy só comunicou o acidente à polícia no dia seguinte: “Sofri várias vezes perdas violentas e súbitas […] mas desta vez foi diferente. Nessa noite eu fui o res ponsável. Foi um acidente, mas eu fui o responsável.” (p. 292) ‘ A escala mede‑se por vitórias pessoais. “A atitude derrotista não faz parte do meu ADN”. ’ Talvez o trecho que melhor resume a sin ceridade que Kennedy quis emprestar a este livro é aquele que descreve os seus prazeres: “Sou um apreciador da vida. Gostei de ser senador; gostei dos meus filhos e dos meus amigos; gostei de livros, de música e de boa comida; gostei da companhia das mulheres. Gostei de uma, ou duas ou três, bebidas duras, e rendi‑me aos prazeres de um bom vinho. Por vezes, apreciei estes prazeres em demasia…” (p. 421). True Compass foi publicado menos de um mês após a morte do seu autor, em Setembro de 2009. Escrito em colaboração com Ron Powers, baseia‑se em diários que o autor manteve ao longo dos últimos cin quenta anos e em depoimentos que gravou, nos últimos cinco anos, para a Universidade da Virgínia. 83 LIVROS Histórias da Casa Branca – Como o Fenómeno Obama Está a Mudar a América e o Mundo Germano Almeida 2010, Prime Books Um bom livro para europeus Por José Manuel Ribeiro Deputado à Assembleia da República O livro do jornalista Germano Almeida constitui um autêntico roteiro não só para uma boa compreensão dos primeiros doze meses da presidência de Barack Hussein Obama II, o imprevisto novo presidente norte‑americano que resgatou para a América o respeito e admiração do mundo livre e democrático, mas igualmente para os próximos anos da era Obama. Trata‑se de uma publicação que junta e organiza diversos artigos de opinião do autor, centrados no primeiro ano da “governação em prosa” de Obama, não esquecendo ao longo do livro as necessárias referências a períodos da “campanha elei toral em poesia”, como bem lembra o autor quando cita a “receita” para o suces so no exercício de cargos políticos na América, deixada pelo antigo governador democrata de Nova Iorque, Mario Cuomo. Da histórica e difícil aprovação da refor ma da saúde até ao início do debate da reforma financeira, da atribuição do Prémio Nobel da Paz ao reforço da presença dos EUA no Afeganistão, das questões internas da raça aos gigantescos problemas da eco nomia norte‑americana, do seu percurso pessoal e familiar à escolha da equipa pre sidencial, nenhum dos mais relevantes acontecimentos fica excluído da “lupa” deste escritor jornalista. 84 O autor deixa‑nos pistas sobre alguns dos próximos desafios que pairam e ameaçam o “sonho” dos milhões, na América e no mundo, que acreditam na mudança com este Presidente, do desejado e tão necessário crescimento económico à crescente contra‑ofensiva dos sectores mais conservadores da sociedade norte‑americana contra a sua presidência, entre outros. O trabalho do autor é muito marcado pelo seu interesse e fascínio pela política e pelos políticos americanos, o que saltando à vista da leitura do livro não deixa de entusiasmar o leitor da primeira à última palavra. É notória a preocupação de querer transmitir toda a informação útil ao leitor, acrescentando‑lhe conheci mento, pelo que este livro constitui também um ins trumento pedagógico e muito útil para a compre ensão do sistema político dos Estados Unidos da América, com os seus Aborda os principais e mais simbólicos mecanismos de pesos e momentos do “novo tempo” de Obama contrapesos, que não dei na Casa Branca. xando de ser fascinante pela sua imprevisibilidade, como referido pelo autor, possui alguma complexida Aborda os principais e mais simbólicos de sobretudo quando comparado com os momentos do “novo tempo” de Obama na sistemas políticos europeus. Casa Branca, com o método e rigor do bom Este é um bom livro para europeus, entre jornalismo e o talento e inspiração de um outros, sobretudo para os que ainda acre escritor que observa com paixão a vida ditam nas virtudes do caminho das reformas política norte‑americana, e muito em par no exercício do poder político, com a ticular do político que “aparentemente, “assunção clara da cooperação e da nego surgiu na hora certa, como portador de ciação como modalidades de acção a privi novos modos de encarar e resolver os pro legiar” como bem refere o general Loureiro blemas dos EUA e do mundo”, como refe dos Santos no seu prefácio, e que se sentem re o general Loureiro dos Santos no profundamente inspirados pelo discurso de prefácio. mudança de Barack Obama. ‘ ’ Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 LIVROS À Procura da Grande Estratégia. De Roosevelt a Obama Coord.: Mário Mesquita, Sara Pina e Susana Neves 2010, Lisboa, Tinta‑da‑China The New Deal and The Real Deal Por Tiago Moreira de Sá Professor da Universidade Nova À Procura da Grande Estratégia. De Roosevelt a Obama é o resultado das várias conferências apre sentadas durante o I Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt, um evento organi zado em 2008 pela Fundação Luso ‑Americana para o Desenvolvimento e o Governo Regional dos Açores, destinado a homenagear o Presidente Franklin Delano Roosevelt e a assinalar a importância dos Açores no âmbito das relações euroatlân ticas e luso‑americanas. É um livro com várias histórias, dividi das em seis grandes temas, que corres pondem às partes estruturantes da obra. A primeira parte é consagrada à impor tância dos Açores para o espaço atlântico, em geral, e para as relações Portugal‑Estados Unidos, em particular. A este respeito refira‑se o texto de António José Telo que insere os Açores nas três estratégias seguidas pelas grandes potências desde 1917: as estratégias glo bais de negação; as estratégias globais de preempção; as estratégias globais activas. Merece também destaque o texto de José Medeiros Ferreira sob o lugar de Portugal nas relações luso‑americanas. O autor recua até às guerras napoleónicas e con cluiu que dessa data até à I Guerra Mundial existiu uma coincidência nos percursos na política internacional de Portugal e dos Estados Unidos – ambos os países manti veram no essencial uma linha de neutra Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 lidade nos grandes conflitos do período. A segunda parte é sobre a transição polí tica em curso nos EUA, nomeadamente no contexto da eleição de Barack Obama para a Presidência e da mudança em curso no sistema internacional. Refira‑se desde logo o texto de Pierre Hassner que defende que a ordem inter nacional em construção não deve ser pós ‑americana, mas sim neo‑rooseveltiana. Para além desta perspectiva académica, merece ainda destaque nesta parte do livro a visão política de Mário Soares sobre a tran sição da Administração Bush para a Obama, e que, segundo o ex‑Presidente da República, parece ter despertado “a consciência políti ca, o sentido de responsabilidade, o pionei rismo e o idealismo americanos”. A terceira parte dedica‑se às dimensões políticas mais conhecidas da presidência Roosevelt: o New Deal. Um ponto comum percorre os três tex tos deste terceiro capítulo: a comparação entre a crise económico‑financeira dos anos 1930 e a actual. E, ainda que com perspectivas muito distintas, Álvaro Dâmaso, Manuel Porto e Eduardo Paz Ferreira coincidem num ponto: o New Deal de Roosevelt foi um programa de combate à crise bem‑sucedido e assente em três pilares: reestruturação do sistema financeiro; recuperação da economia; cor recção das desigualdades. A quarta parte analisa a comunidade transatlântica e a sua importância no actual contexto geopolítico, destacando‑se aqui o papel da NATO num momento de revisão do seu conceito estratégico. Este é um dos capítulos mais interes santes do livro, sendo constituído por textos de Adriano Moreira, Carlos Gaspar, Loureiro dos Santos, José Cutileiro e Stephen Schlesinger (fellow da Century Foundation). Sob a forma de conclusões sobre o pro blema em apreço, podemos destacar as seguintes ideias: • A possibilidade de existência na actua lidade de uma “mudança na ava liação das ideias paradigmáticas de Ocidente, de Atlântico, de identidade cultural, de aliança global das democracias, de apoios estruturais da aliança militar con tra uma ameaça comum” (Adriano Moreira). • O fim da Guerra Fria está a pôr em causa o papel da Aliança Atlântica num mundo de uma só superpotência (Loureiro dos Santos). • Apesar das crises ainda recen tes – e.g., a crise do Iraque – exis tem actualmente boas condições para “consolidar a comunidade transatlântica como centro de estabilidade do sistema interna cional” (Carlos Gaspar). A quinta parte é sobre uma das questões centrais da agenda tran satlântica actual – as alterações climáticas. Finalmente, a última parte trata da comunidade luso‑americana e o seu poder nas relações tran satlânticas. 85 COLECÇÃO FLAD Ângelo de Sousa linhas de aço Perseguindo a autenticidade, renovando‑se constantemente, as tiras de metal sugerem apenas linhas em movimento, como a obra de Ângelo de Sousa abrange diferentes técnicas e suportes: o se a matéria viva trabalhasse por si, indicando as possibilidades desenho, a pintura, a escultura, a fotografia e o vídeo, tornando‑se do seu manuseamento, impondo os limites da sua utilização. possivelmente uma das mais intrigantes do nosso tempo e certa À semelhança de outras esculturas, também esta obra parece sur gir da realização de maquetas onde o autor explora a plasticidade mente uma das mais difíceis de catalogar. A escultura Sem título (1968), que aqui se procura abordar, dos materiais, a contaminação das linguagens neles contidas, apresenta‑se como um desenho tridimensional no espaço, neste realizando experiências, como que procurando dar forma a um rasgando aberturas tal como um lápis abre incisões num plano vocabulário abstracto. Mas então como pensar a obra de Ângelo de Sousa se ela enforma bidimensional. Mas porquê falar em desenho, em inscrições e registos deixados numa superfície, se esta obra se impõe pela sua e destrói simultaneamente todo o tipo de categorização? O que ela formula são as tensões contidas no material antes e presença física, pela ocupação de espaço tridimensional? depois de um momento. Assim, ela não é isto nem aquilo mas Em princípio, qualquer escultura ocupa o espaço inerente à sua condição material, mas esta obra parece distinguir‑se particular um tempo de transição que condensa o antes e o depois. Ela é, mente pela sua qualidade de traço, podendo mudar de disposição, enfim, uma obra que, mais que oferecer desenho, pintura, escul adquirindo diferentes configurações no espaço, o que lhe confere tura, mostra desdobramentos do pensamento plástico tornando visível o movimento do próprio pensamento como se o pudesse, leveza e fluidez. Como pensar então a fluidez no âmbito da escultura, se a sua con momentaneamente, fixar. Deixando‑nos atravessar pelo movimento que lança no corpo e no dição convencional é a de imobilidade? Estamos, por assim dizer, no pensamento humanos, induzindo e fazendo propagar neles as suas campo do pensamento plástico, território das virtualidades. É talvez nesta zona que se pode localizar a escultura de Ângelo ressonâncias, deixando que desorganize o mundo e a sua forma de de Sousa, particularmente, a obra Sem título (1968), proveniente aparência, as esculturas de barras de aço inoxidável, parecendo fluir do conjunto de esculturas realizadas em barras de aço inoxidável, no espaço, colocam assim ao espectador novas leituras para os luga presas a uma ou duas charneiras, a partir das quais os elementos res que habita, uma revisão radical da nossa relação com o espaço. podem girar assumindo variantes. Mas que zona é esta, excedendo Sara Antónia Matos simultaneamente o espaço bi e tridimensional? É o espaço onde o desenho já passou, onde está sempre livre a correr; onde a pintura tal Nasceu em Moçambique, em 1938. assinalam‑se as exposições antológi‑ vez tenha deixado composições de ritmos e Licenciou‑se na Escola Superior de ca, em 1993, no Museu de Serralves, manchas, ensinando os elementos a organizar Belas‑Artes do Porto, em Pintura, no Porto e, em 2006, duas mostras o espaço da representação; onde a escultura se com a nota máxima de 20 valo‑ centradas em escultura na Fundação libertou de formas fixas, onde a forma perene res, faculdade onde posteriormente Gulbenkian e na Cordoaria Nacional, parece ser sempre a da leveza. foi convidado a integrar o corpo em Lisboa. Participou em várias bie‑ Se, num momento, a escultura se assemelha docente. De um percurso extenso nais e foram‑lhe atribuídos diversos ao desenho de uma onda, no outro pode assu e consequente, abrangendo mos‑ prémios no âmbito da arte, testemu‑ mir a configuração de uma página dobrada, no tras em Portugal e no estrangeiro, nhando o seu percurso singular. seguinte, o de uma superfície reflectora, mem brana golpeada. Observada de outro ângulo, 86 Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 COLECÇÃO FLAD Sem título, 1968, Aço inoxidável, dimensões variáveis Paralelo n.o 5 | OUTONO | INVERNO 2010 87 | Ground Zero Project. 88 Este é o projecto aprovado para a zona do Ground Zero, em Nova Iorque | Silverstein Properties, Inc. | www.wtc.com Paralelo n. 5 | OUTONO | INVERNO 2010 o