- Física Interessante
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- Física Interessante
A Parábola no Oriente Etnofísica, Psicogénese e Multiculturalidade * Renato P. dos Santos Resumo Segundo Piaget & Garcia, cada um de nós passa por um percurso de construção do racional em que partimos de um nível pré-lógico e em que poderemos atingir uma estrutura isomorfa das ciências contemporâneas. E, de acordo com esses mesmos autores, pelo menos no que respeita à Física, é possível estabelecer uma analogia entre as quatro etapas dessa psicogénese e quatro fases da história da Física. No entanto, o desenvolvimento histórico estudado por Piaget & Garcia foi, como usual, o europeu, desde Aristóteles até Newton, ignorando os desenvolvimentos no resto do mundo como meros ‘primórdios’, embora a Física Chinesa fosse mais adiantada que a Europeia até a Idade Média. O autor procura respostas a várias perguntas: Há uma única Física universal à qual todas as Etnofísicas coalescem? Todas as Físicas passam por fases históricas equivalentes? As crianças orientais desenvolvem-se em analogia com a ‘sua’ história da Ciência ou com a ‘universal’? Teriam as outras Físicas sido colonizadas e subjugadas pela Física europeia? A Física actual seria diferente se o Renascimento tivesse ocorrido na China ou em África? * incluído nas Actas do 1º Colóquio Intercultural - “A Comunicação entre Culturas”, ADECI - Associação Portuguesa para o Desenvolvimento, a Formação e a Investigação em Comunicação Intercultural, Almada, Portugal, 9-10/05/2002, CD-ROM, registrado sob o proc. 3478/2002 – IGAC, Lisboa, Portugal. 1. Psicogénese e História da Ciência Segundo Piaget & Garcia1, cada um de nós passa por um percurso de construção do racional em que partimos de um nível pré-lógico e em que poderemos atingir uma estrutura isomorfa das ciências contemporâneas. E, de acordo com esses mesmos autores2, pelo menos no que respeita à Física, é possível estabelecer uma analogia entre as quatro etapas da psicogénese e quatro fases da história da Física, de Aristóteles até Newton. No entanto, um ponto que recentemente nos chamou a atenção foi o seguinte: a história da Ciência à qual Piaget & Garcia encontraram correspondência no desenvolvimento psicogenético foi a história da Ciência europeia, que vai dos gregos a Newton; como se processaria, então, esse desenvolvimento psicogenético nos países não-europeus? Seguiria essa mesma história europeia ou seguiria uma história diferente que se iniciaria com seus próprios precursores e passaria por suas próprias fases, eventualmente diferentes da europeia? A esta, junta-se outra pergunta inevitável: existe uma Ciência Universal ou há uma Ciência Ocidental que prevaleceu sobre as outras Ciências? Needham é da opinião que a Ciência sempre foi universal, apesar do acaso histórico que levou a que o grande desabrochar da ciência moderna tenha ocorrido na Europa no século dezassete e que foi transmitido aos demais países3. No entanto, Bernal4 enfatiza que os avanços técnicos da Europa medieval só foram possíveis graças a invenções que vieram todas do Oriente, em sua maioria, da China, ao que Emeagwali5 dá vários exemplos: a vela ‘latina’, a balança ‘romana’, o estribo, o ábaco, o pêndulo, o jogo de xadrez, o eixo, o arco de torneiro, o cinzel, os moinhos de vento e de água, o vidro, o cimento, o esmalte, a porcelana, o prego, a serra, a impressão, a bússola, o cheque, etc.. Emeagwali argumenta6 que Gerber de Aurillac Adelardo de Bath, Leonardo de Pisa e Alberto, o Grande, formaram parte de uma longa linhagem de pioneiros europeus na transferência de tecnologia para a Europa. Aikenhead7 denuncia estar disseminado um conceito de superioridade da civilização cristã ocidental baseado numa ‘arrogância ignorante’ (sic) do resto do mundo. Vale a pena aqui lembrar a carta que o padre Matteo Ricci escreveu da China em 1595, mencionando as ‘absurdas’ ideias chinesas: “não acreditam no empíreo cristalino”, “acreditam que o céu é vazio”, “acreditam em 5 elementos em vez de 4”, etc.8. Chattopadhyaya9 denuncia que é assumido que os Indianos eram um povo místico, dado a especulações metafísicas e contemplação espiritual, cuja principal contribuição teria sido os Upanishads, enquanto é pouco conhecido o facto de que cultivaram fortemente as ciências experimentais. Denuncia10 ainda que essa forma de apresentar as tendências místico religiosas do passado como a quinta-essência da cultura asiática e a ciência como um monopólio da Europa ocidental presta um serviço ao conservadorismo nos países asiáticos, levando as pessoas a ignorar a ciência em favor de seus obscurantismos locais, preservando castas e alimentando fanatismos. Esse conservadorismo chega mesmo a lamentar a fascinação dos novos pela ciência e pelo racionalismo. Também não é abonadora a atitude de vários historiadores da ciência em desvalorizar a contribuição dos povos não-europeus. Por exemplo, os livros de história da Ciência omitem o facto de que Tales era Fenício por parte de mãe12, atribuindo-lhe um papel na ciência europeia ao mesmo tempo em que o exclui da ciência africana. Embora Needham14 tenha mostrado que a função seno da trigonometria recebeu seu nome de Āryabhaţa (circa 510 d.C.), passando seu trabalho para os árabes e chegando à Europa apenas no século doze e não tendo nunca sido antes disso mencionado pelos gregos, Tannery14 preferiu assumir que os indianos o teriam aprendido dos gregos. Também Berthelot16, ao encontrar indicações da preparação de álcalis no Susruta-samhita, preferiu acreditar que essa passagem só poderia vir de uma interpolação posterior ao contacto com químicos europeus. Por outro lado, artefactos tecnológicos africanos acabam indo parar a museus de arte antiga e não de ciência13. Curiosamente, a Física é pouco presente no que nos resta da produção chinesa 17 antiga e a Mecânica, menos ainda, sem menção a trajectórias de projécteis ou a queda livre de corpos que tanto ocuparam a Física medieval, o que é estranho, considerando-se a tecnologia militar chinesa do período, superior à Europeia até o século 14. Não há traços de ‘precursores de Galileu’. Embora apenas fragmentos tenham sobrevivido daqueles períodos, sendo assim difícil avaliar a extensão do conhecimento da Física Chinesa antiga, o que resta é tão notável que pode-se acreditar que se mais houvesse se preservado, encontrar-se-iam discussões sobre esses problemas18. O nome que se destaca na Mecânica Chinesa é Mo Ching (ou Mo Tzu), contemporâneo de Demócrito, Hipócrates e Heródoto19, e que escreveu proposições físicas verdadeiramente ‘newtonianas’ tais como: “o peso é uma força”20, “força é a causa da aceleração”21, “o movimento deve-se à ausência de oposição”22, “se não houver oposição, o movimento dura para sempre”23, “uma esfera perfeita não pode resistir a uma força”24. Assim, o movimento inercial, absurdo para os pensadores ocidentais medievais, era perfeitamente aceitável para os filósofos chineses, já que o Tao era um princípio de movimento incessante, de eterna mudança25. E se não tinham um termo técnico para ‘impetus’ também não desperdiçaram esforços em estranhos conceitos tais como ‘lugar natural’ e ‘antiperistasis’26. Também, para o pensamento chinês, sempre em termos de contínuos e não de partículas, nunca foi difícil a ideia da acção à distância, ao contrário do pensamento europeu que só o foi aceitar no século 1727. É interessante ressaltar que os filósofos Chineses antigos estavam tão mais avançados que os Europeus em Óptica e em Magnetismo que Needham28 ousa especular que se as condições social houvessem sido favoráveis, a Física poderia ter evoluído numa sequência diferente, do Magnetismo e Electricidade à Física de Campos sem passar pela Física das ‘bolas de bilhar’ (Mecânica). 2. Etnofísica Etnomatemática, Etnofísica, Etnogeografia, Etnomedicina, Etnohistória, Etnobiologia, etc. são termos que já aparecem, uns mais frequentemente que outros, na literatura científica. Segundo Garfinkel, o prefixo ‘etno’ sugere que um membro dispõe do saber de senso comum de sua sociedade enquanto saber do que quer que seja29. No entanto, tal como as outras etnodisciplinas acima, a Etnomatemática não se constitui em uma Etnociência restrita à Matemática. O conceito de Etnociência é bem anterior ao de Etnomatemática, sendo utilizado pela Antropologia desde o final do século passado, sendo primariamente um método que faz uso da análise linguística para o estudo de sistemas tradicionais ou folclóricos de conhecimento e cognição30. O termo ‘Etnomatemática’ foi criado em 1975, pelo matemático brasileiro Ubiratan D’ambrósio para designar “a arte ou técnica (techné = tica) de explicar, de entender, de se desempenhar na realidade (matema), dentro de um contexto cultural próprio (etno)”31, isto é, seria “a união de todas as formas de produção e transmissão de conhecimento ligado aos processos de contagem, medição, ordenação, inferência e modos de raciocinar de grupos culturalmente identificados”32. Mas já naquela altura, D’Ambrósio terá utilizado o prefixo etno com um significado mais amplo do que o restrito à etnia, incluindo também qualquer grupo cultural identificável, tais como grupos sindicais e profissionais, crianças de uma certa faixa etária, etc., e a memória cultural, códigos, símbolos, mitos e até maneiras específicas de raciocinar e inferir presentes na Matemática praticada por categorias profissionais específicas, em particular pelos matemáticos, a Matemática escolar, a Matemática presente nas brincadeiras infantis e a Matemática praticada pelas mulheres e homens para atender às suas necessidades de sobrevivência33. Como consequência, Aikenhead34 afirma que a Física Newtoniana, a Física que conhecemos, num certo sentido, é, também uma Etnofísica pois emergiu de uma subcultura dentro da sociedade europeia, a partir do intercâmbio de várias culturas, grega, romana, inglesa, etc. Destaca também35 que cada estudante vive e coexiste com várias culturas identificadas por nação, linguagem, sexo, classe social, religião, etc., e que sua identidade cultural pode chocar em um grau variável com a cultura da Ciência Ocidental. Outra forma de dizer isto é que o estudante pode ter de cruzar uma fronteira cultural36 quando passa do seu mundo quotidiano da ciência do senso comum para o mundo da ciência oficial da escola, isto é, aprender ciência é um evento intercultural e multicultural. Estudos recentes37 sugerem que a aculturação implica na desvalorização do seu conhecimento tradicional. Ao contrário, a ‘enculturação’ refere-se, na definição de Bishop38, ao processo de “iniciação dos jovens em sua própria cultura”. De Abreu39 correlaciona: de modo geral, as crianças que adquiriram mais conhecimento matemático prático, fora da escola, terão piores resultados na escola. Por outro lado, Smith40 aponta que o problema não é apenas de uma oposição entre a física infantil e a física adulta. Parece haver uma multiplicidade de sistemas de física intuitiva entre as diferentes culturas humanas, em diferentes lugares e épocas históricas. É aqui que a Etnofísica tem sido de valor. Assim, há projectos em andamento de investigar a Etnofísica dos nativos norte-americanos por Aikenhead e seu Rekindling Traditions Project Team41 e a dos nativos brasileiros pela APITU - Associação dos Povos Indígenas do Tumucumaque42. 3. Perguntas em aberto Do material acima exposto, recolhido em sua investigação recém-iniciada, o autor resultou em várias perguntas, às quais busca resposta: − Há uma única Física universal à qual todas as Etnofísicas coalescem? − Todas as Etnofísicas passam por fases históricas equivalentes? − A Física actual seria diferente se o Renascimento tivesse ocorrido na China ou em África? − Teriam as outras Etnofísicas sido colonizadas e subjugadas pela Física europeia? − As crianças não-europeias desenvolvem-se em isomorfismo com a história da ‘sua’ Etnofísica ou com a da Física ‘universal’? 4. Referências 1 PIAGET, Jean; GARCIA, Rolando, Psychogenèse et Histoire des Sciences, Flammarion, Paris, 1983, trad. port.: Psicogénese e História das Ciências, Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 20. 2 PIAGET, Jean; GARCIA, Rolando, Psychogenèse …, op. cit., pp. 37-38. 3 NEEDHAM, Joseph, Science and civilisation in China: History of Scientific Thought, vol. 2 (sec. 8-18), , Cambridge University Press, Cambridge, 1956, note d, p. 335 4 BERNAL, J.D., Science in History, 1954, Penguin, p. 311, cited in CHATTOPADHYAYA, Debiprasad, History, Science and Technology in Ancient India, Firma KLM Private Limited, Calcuta, 1986, p. 44. 5 EMEAGWALI, Gloria T., Eurocentrism and the History of Science and Technology, http://members.aol.com/sekglo/racism.htm, acedido 2002/04/01, modified updated version of EMEAGWALI, Gloria T., in Science and Public Policy, Surrey, 16(3),1989. 6 EMEAGWALI, Gloria T., Eurocentrism …, op. cit. 7 AIKENHEAD, Glen, Stories from the Field: Experiences and Advice from the Rekindling Traditions Team, http://capes.usask.ca/ccstu/stories.html , Acedido em 22/02/2002 8 NEEDHAM, Joseph, Science and civilisation in China: Physics and Physical Technology, vol. 4 (sec. 26), Cambridge University Press, Cambridge, 1937, p. xxxii. 9 CHATTOPADHYAYA, Debiprasad, History, Science and Technology in Ancient India, Firma KLM Private Limited, Calcuta, 1986, p. 7. 10 CHATTOPADHYAYA, Debiprasad, History…, op. cit., p. 7. 11 GRAY, B.V.; ROGAN, J.M., Science Education as South Africa's Trojan Horse, J. Res. Sci. Teach. 36(3):375-385, 03/1999. 12 EMEAGWALI, Gloria T., Eurocentrism …, op. cit. 13 EMEAGWALI, Gloria T., Eurocentrism…, op. cit. 14 NEEDHAM, Joseph, Physics …, op. cit., pp. 49-50. 15 FILLIOZAT, J., The Classical Doctrine of Indian Medicine, Delhi, 1983, pp. XIX-XX, cited in CHATTOPADHYAYA, Debiprasad, History…, op. cit., pp. 44-45, as quoted from NEEDHAM, J., in Nature 168, pp. 64ff. 16 CHATTOPADHYAYA, Debiprasad, History…, op. cit., pp. 44-45. 17 NEEDHAM, Joseph, Physics …, op. cit., p. 1. 18 NEEDHAM, Joseph, Physics …, op. cit., p. 58. 19 NEEDHAM, Joseph, History …, op. cit., p. 165 20 NEEDHAM, Joseph, Physics …, op. cit., p. 19. 21 NEEDHAM, Joseph, Physics …, op. cit., p. 19. 22 NEEDHAM, Joseph, Physics …, op. cit., p. 56. 23 NEEDHAM, Joseph, Physics …, op. cit., p. 56. 24 NEEDHAM, Joseph, Physics …, op. cit., p. 56. 25 NEEDHAM, Joseph, Physics …, op. cit., pp. 61-62. 26 NEEDHAM, Joseph, Physics …, op. cit., p. 58. 27 NEEDHAM, Joseph, Physics …, op. cit., p. 60. 28 NEEDHAM, Joseph, Physics …, op. cit., p. 1. 29 VOTRE, Sebastião Josué; FIGUEIREDO, Carlos, Etnometodologia e Educação Física, http://www.geocities.com/Athens/Styx/9231/etnometodologia.html, acedido em 22/02/2002. 30 ASCHER, Maria, Ethnomathematics: A Cultural View of Mathematical Ideas, Brooks/Cole, Pacific Grove, 1991, p. 192, citado em KNIJNIK, Gelsa, Exclusão e Resistência: Educação Matemática e Legitimidade Cultural, Artes Médicas, Porto Alegre, 1996, nota 1, p. 89 31 D’AMBRÓSIO, Ubiratan, Etnomatemática: Um Programa, A Educação Matemática em Revista, Blumenau 1(1):5-11, 1993, p. 9, citado em KNIJNIK, Gelsa, Exclusão e Resistência: Educação Matemática e Legitimidade Cultural, Artes Médicas, Porto Alegre, 1996, pp. 73-74. 32 MTETWA, David Kufakwami, “Mathematics” & Ethnomathematics: Zimbabwean Sudents’ View, ISGEm Newsletter, Albuquerque, 7(1):1-2, 01/1992; FRANKENSTEIN, Marylin, Incorporating Race, Gender and Class Issues into a Critical Mathematical Literacy Curriculum, Journal of Negro Eduction, Wavard University, 59(3):336-347, 1990, citados em KNIJNIK, Gelsa, Exclusão e Resistência: Educação Matemática e Legitimidade Cultural, Artes Médicas, Porto Alegre, 1996, p. 74. 33 KNIJNIK, Gelsa, Exclusão e Resistência: Educação Matemática e Legitimidade Cultural, Artes Médicas, Porto Alegre, 1996, pp. 68, 73 e 74. 34 AIKENHEAD, Glen, Stories from the Field: Experiences and Advice from the Rekindling Traditions Team, http://capes.usask.ca/ccstu/stories.html, acedido em 22/02/2002 35 AIKENHEAD, Glen, Stories …, op. cit. 36 AIKENHEAD, Glen, Cross-cultural science education: A cognitive Explanation of a Cultural Phenomenon, J. Res. Sci. Teach. 36(3):269-287, 03/1999. 37 WALDRIP, B.G.; TAYLOR, P.C., Permeability of Students' Worldviews to Their School Views in a NonWestern Developing Country, J. Res. Sci. Teach. 36(3):289-303, 03/1999 38 BISHOP, Alan, Mathematics Education in its Cultural Context, Studies in Mathematics Education, UNESCO, Paris, 1989, v.8, p. 187, citado em KNIJNIK, Gelsa, Exclusão e Resistência: Educação Matemática e Legitimidade Cultural, Artes Médicas, Porto Alegre, 1996, nota 12, p. 91 39 de ABREU, Guida, Mathématiques Paysannes, Recherche 26(278):800-802, 07-08/1995, p. 802. 40 SMITH Barry, The Structures of the Common-Sense World, Acta Philosophica Fennica, 58: 290- 317, 1995, http://ontology.buffalo.edu/smith/articles/scsw.html, acedido em 22/02/2002. 41 Ver http://capes.usask.ca/ccstu/stories.html, acedido em 22/02/2002. 42 Ver http://www.gtli.locaweb.com.br/projedind.htm, acedido em 22/02/2002.