Revista Brasileira de Zootecnia Criação em cativeiro de capivaras

Transcrição

Revista Brasileira de Zootecnia Criação em cativeiro de capivaras
Revista Brasileira de Zootecnia
© 2011 Sociedade Brasileira de Zootecnia
ISSN 1806-9290
www.sbz.org.br
R. Bras. Zootec., v.40, p.44-47, 2011 (supl. especial)
Criação em cativeiro de capivaras na Venezuela
Martín R. Alvarez1
1 Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Departamento de Ciências Biológicas (DCB) – Ilhéus (BA, Brasil).
RESUMO - A capivara (Hydrochoerus hydrochaeris), o maior dos roedores viventes, é um recurso natural utilizado sob
três sistemas de manejo: caça de subsistência, caça comercial e criação em cativeiro. Desde 1968, é praticada uma exploração
sustentável de populações silvestres na Venezuela. Nesse país, na década de 1970, iniciaram-se as pesquisas sobre a criação em
cativeiro, mas foi no Brasil e na Argentina que esta atividade foi desenvolvida comercialmente. Após décadas de exploração
da espécie na Venezuela, houve marcado declínio das populações silvestres. Concomitantemente, uma nova visão ideológica
reclamou a necessidade de democratização do recurso e a otimização do uso dos produtos. Tudo levou as instituições a reiniciar
pesquisas relacionadas à criação em cativeiro de capivaras na Venezuela, dando-se origem ao projeto “Desarrollo de la cría
intensiva del chigüire (Hydrochaeris hydrochaeris) y el aprovechamiento integral de sus productos”. Entretanto, o marco
político e institucional afeta o sistema, pois frequentemente são impostas novas regras que burocratizam o desenvolvimento
do projeto e ameaçam o sucesso da criação em cativeiro de capivaras na Venezuela.
Palavras-chave: América do Sul, desenvolvimento sustentável, Hydrochoerus hydrochaeris, sistemas de manejo,
soberania alimentaria, zootecnia de animais silvestres
Capybara farming in Venezuela
ABSTRACT - The capybara (Hydrochoerus hydrochaeris) the largest of living rodents, is a natural resource used under
three management systems: subsistence hunting, commercial hunting and farming. Since 1968 is practiced sustainable
exploitation of wild populations in Venezuela. In this country, in the 1970s began the research on captive breeding, but it was
in Brazil and Argentina where this activity was developed commercially. After decades of exploitation of the species in
Venezuela, began to observe a marked decline of wild populations. Concomitantly, a new ideological vision called for the need
to democratize the use and optimization of products. Everything has led to the institutions to resume searches related to captive
breeding capybaras in Venezuela and the project “Desarrollo de la cría intensiva del chigüire (Hydrochaeris hydrochaeris)
y el aprovechamiento integral de sus productos” started. However, the policy and institutional framework affects the system,
are often imposed new rules that bureaucratize project development and threaten the successful holding of captive breeding
of capybaras in Venezuela.
Key Words: animal husbandry of wildlife, Hydrochoerus hydrochaeris, food sovereignty, management systems,
South America, sustainable development
Introduction
Em cativeiro, a capivara (Hydrochoerus hydrochaeris)
pode atingir 50 kg e longevidade de 10 anos (Ojasti, 1973;
Alho, 1986; Mones & Ojasti, 1986). É uma espécie
amplamente distribuída na América do Sul, desde o Panamá
até o sul da província de Buenos Aires, Argentina (Mones
& Ojasti, 1986; Alvarez, 2002). Os produtos principais
obtidos da espécie são carne e couro.
Essa espécie foi indicada como potencial recurso para
implementar um esquema de desenvolvimento sustentável,
em função de suas características, tanto biológicas como
produtivas (Ingrand & Hostache, 1993; Kyle, 1994; Feron,
Correspondências devem ser enviadas para: [email protected]
1995; Alvarez, 2002). Existem no mínimo três estratégias
diferentes para o aproveitamento sustentável das capivaras
(sensu Ojasti, 1991).
A caça de subsistência tem por objetivo a obtenção de
carne para consumo e geralmente é desenvolvida por
populações tradicionais, rurais ou marginalizadas
economicamente em toda a área de distribuição geográfica
da espécie, independentemente das normas legais de
proteção à fauna silvestre vigentes em cada país.
A caça comercial das capivaras tem como principal
objetivo a comercialização do couro (Ojasti, 1991) e tem sido
praticada principalmente na Argentina e no Uruguai (Gruss
& Waller, 1988; Bolkovic et al., 2006). Comumente os
Alvarez
caçadores realizam suas atividades em terras públicas; a
carne é vendida em mercados locais e o couro a curtumes,
para industrialização e produção de artigos de couro. No
Brasil, essa atividade é proibida pela Lei de Proteção à
Fauna Nativa (Lei Nº 5.197/1967 e posteriores
normatizações).
Na Venezuela, e em menor medida na Colômbia, há
longa tradição na exploração, em grande escala, da carne
deste roedor (Ojasti, 1973; 1991; Fuerbringer, 1974; González
Jiménez, 1995), que é consumida salgada, principalmente
durante a Semana Santa. Desde 1968, é praticada na
Venezuela a exploração sustentável das populações
silvestres desse roedor, por meio da coleta controlada.
Quando as populações atingem densidades iguais ou
superiores a 0,6 indivíduo por hectare, autoriza-se a captura
anual de até 30% da população (Ojasti, 1973; Herrera, 1992).
Estima-se que, entre 30 e 50 mil animais são abatidos
legalmente a cada ano na Venezuela.
A criação de capivaras em cativeiro é uma prática
zootécnica na qual as condições do habitat são, em maior
ou menor grau, controladas pelo produtor. Assim,
distinguem-se sistemas semi-intensivo e intensivos.
Essas técnicas de produção foram pesquisadas na
década de 1970 por uma equipe do Instituto de Zoologia
Agrícola da Universidad Central de Venezuela – Campus
Maracay (Parra et al., 1978; González Jiménez, 1995), mas
foram o Brasil (Alho, 1986; Lavorenti, 1989; Nogueira Filho,
1996; Andrade et al., 1998; Hosken, 1999) e a Argentina
(Kravetz et al., 1997; Cueto, 1999; Alvarez, 2002; Allekotte,
2003; Alvarez & Kravetz 2006, 2009) os países que
desenvolveram sistemas de criação intensiva com sucesso
produtivo e comercial desta espécie.
Na Venezuela, provavelmente devido ao sucesso do
programa de manejo sustentável de populações silvestres,
não houve mais tentativas de implantação de sistemas de
produção em cativeiro. Entretanto, na última década,
houve confluência de diversos fatores, geralmente
externos ao programa, que afetaram significativa e
negativamente as capturas anuais, discutidos por Velasco
et al. (2008). Em 1981 foi abatido um máximo histórico de
92.734 capivaras, logo os abates decresceram até 6.237
animais em 2005 (Velasco et al., 2008), acarretando marcada
diminuição dos lucros dessa produção (Hoogesteinjn &
Chapman, 1997). Além disso, fatores relacionados ao
domínio da terra e ao acesso à exploração da fauna
silvestre, que restringem os benefícios exclusivamente
aos proprietários de grandes fazendas, têm provocado a
45
busca de alternativas visando à democratização do
recurso. E, finalmente, o entendimento do uso subótimo
do produto, que visava apenas ao comércio de carne
salgada, levou as instituições ao reinício de pesquisas
relacionadas à criação em cativeiro de capivaras na
Venezuela.
Nesse marco, em 2007, iniciou-se o projeto “Desarrollo
de la cría intensiva del chigüire (Hydrochaeris
hydrochaeris) y el aprovechamiento integral de sus
productos”, com financiamento da Organização das Nações
Unidas para Agricultura e Alimentação – FAO e apoio da
Fundación para el Desarrollo de las Ciencias – FUDECI e do
Ministerio del Poder Popular para el Ambiente – MPPA.
Esse projeto tem enorme relevância, tanto científica quanto
tecnológica, pois promove o desenvolvimento de novas
produções e produtos, democratiza o acesso a este recurso
e tende a consolidar a soberania alimentaria dos
venezuelanos. Além disso, pode revitalizar as pesquisas
sobre a criação da espécie em cativeiro, abandonadas
desde a década de 1980 na Venezuela.
Durante 2008 foram construídas as instalações do
criatório na Estación Experimental del Amazonas (EEA)
em Puerto Ayacucho (Estado Amazonas, Venezuela),
adaptando o sistema de manejo mais bem sucedido em
Argentina (Alvarez & Kravetz, 2006). Desde setembro de
2009, depois de um período de quarentena, seguindo as
exigências do Instituto Nacional de Salud Agrícola
Integral (INSAI), foram transladados 35 indivíduos desde
a Fazenda Hato Santa Luisa, Estado de Apure até o
criadouro (Figura 1).
O sistema modular de manejo adotado permitirá a
democratização do recurso, desenvolvendo a produção em
cativeiro com fins de subsistência ou comercialização. No
primeiro caso, pode-se imaginar um piquete de reprodução
com 6 fêmeas produzindo em torno de 36 animais por ano,
que representariam 720 kg de carne/ano (ou 60 kg/mês). É
possível que o sistema de produção para comercialização
seja encarado em forma associativa ou cooperativa, mas
ambas as possibilidades são viáveis e devem ser vistas
como produções diferentes, com requerimentos
administrativos, comerciais e financeiros diferentes, pois
em uma delas o objetivo é consumo de carne para
subsistência familiar, enquanto na outra é uma produção
comercial. Como já demonstrado por Alvarez & Kravetz
(2004) em estudos na Argentina, é possível a convivência
de diferentes sistemas de manejo de capivaras.
R. Bras. Zootec., v.40, p.44-47, 2011 (supl. especial)
46
Criação em cativeiro de capivaras na Venezuela
Figura 1 - Instalações de piquetes e alguns indivíduos no criatório de capivaras na Estación Experimental del Amazonas (EEA), em
Puerto Ayacucho (Estado Amazonas, Venezuela). Fonte: FUDECI (2009).
Considerações Finais
A produção em cativeiro certamente não substituirá o
manejo tradicional das populações silvestres, mas permitirá
melhor distribuição da riqueza na sociedade, por promover
a democratização de um recurso natural, consolidar a
soberania alimentaria da população, estimular um
relacionamento diferente com a fauna silvestre e possibilitar
o desenvolvimento de novas produções, produtos e
pesquisas.
Entretanto, o marco político e institucional afeta o
sistema, pois são frequentemente impostas novas regras
que burocratizam o desenvolvimento do projeto e ameaçam
o sucesso da criação em cativeiro de capivaras na Venezuela.
Referências
ALHO, C.J.R. Criação e manejo de capivaras em pequenas
propriedades rurais. Brasília: EMBRAPA - DPP, 1986. 48p.
(Documentos, 13).
ALLEKOTTE, R. La cría del carpincho. Buenos Aires: Ediciones
INTA, 2003. 128p.
ÁLVAREZ, M.R.; KRAVETZ, F.O. Propuesta de manejo sustentable
para el carpincho (Hydrochoerus hydrochaeris) en Argentina.
In: CONGRESO SOBRE MANEJO DE FAUNA SILVESTRE EN
LA AMAZONÍA Y LATINOAMÉRICA, 6., 2004, Iquitos, Peru.
Memoria... Iquitos: v.1, p.405-414, 2004.
ÁLVAREZ, M.R. Manejo sustentable del carpincho
(Hydrochoerus hydrochaeris, Linnaeus 1766) en Argentina:
un aporte al conocimiento de la biología de la especie desde la
cría en cautiverio. 2002. 123f. Tese (Doutorado em Ciências
Biológicas) - Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires.
ÁLVAREZ, M.R.; KRAVETZ, F.O. Reproductive performance of
capybaras (Hydrochoerus hydrochaeris) in captivity under
different management systems in Argentina. Animal
Research, v.55, p.153-164, 2006.
ÁLVAREZ, M.R.; KRAVETZ, F.O. Effect of ascorbic acid on food
preference and consumption in captive capybaras
(Hydrochoerus hydrochaeris). Brazilian Archives of Biology
and Technology, v.52, p.593-600, 2009.
ANDRADE, P.C.M.; LAVORENTI, A.; NOGUEIRA-FILHO, S.L.G.
Efeitos do tamanho da área, da dieta e da idade inicial de
confinamento sobre capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris
hydrochaeris l. 1766) em crescimento. Revista Brasileira de
Zootecnia, v.27, n.2, p.292-299, 1998.
BOLKOVIC, M.L.; QUINTANA, R.D. et al. Proyecto carpincho:
Propuesta para el uso sustentable del carpincho (Hydrochaeris
hydrochaeris ) en la Argentina. In: BOLKOVIC, M.L.;
RAMADORI, D. (Eds.). Manejo de fauna silvestre en la
Argentina: programas de uso sustentable. Buenos Aires:
Dirección de Fauna Silvestre, Secretaría de Ambiente y
Desarrollo Sustentable, 2006. 168p.
CUETO, G.R. Biología reproductiva y crecimiento del
carpincho (Hydrochoerus hydrochaeris) en cautiverio: Una
interpretación de las estrategias poblacionales. 1999.
151f. Tese (Doutorado em Ciências Biológicas) - Universidad
de Buenos Aires, Argentina.
FERON, E.M. New food sources, conservation of biodiversity and
sustainable development: can unconventional animal species
contribute to feeding the world? Biodiversity and
Conservation, v.4, n.3, p.233-240, 1995.
FUNDACIÓN PARA EL DESARROLLO DE LAS CIENCIAS FUDECI [2009]. Memoria 2009. Disponível em: <http://
www.fudeci.org.ve/memoria2009.pdf> Acesso em: 30/3/2011.
R. Bras. Zootec., v.40, p.44-47, 2011 (supl. especial)
Alvarez
FUERBRINGER, J. The capybara: a practical manual for raising
them in captivity in Colombia. Temas Orientación
Agropecuaria, v.99, p.5-59, 1974.
G ON Z Á L E Z J I M É N E Z , E . E l c a p y b a r a ( H y d r o c h o e r u s
hydrochaeris) - Estado actual de su producción. Roma:
FA O , 1 9 9 5 . 11 0 p . ( E s t u d i o FA O P r o d u c c i ó n y S a n i d a d
Animal, 122).
GRUSS, J.; WALLER, T. Diagnostico y recomendaciones sobre
la administración de recursos silvestres en la Argentina:
La década reciente (un análisis sobre la administración de la
fauna terrestre). Buenos Aires: WWF - Traffic Sudamérica,
1988. 113p.
HERRERA, E.A. The effect of harvesting on the age structure and
body size of a capybara population. Ecotropicos, v.5, n.1, p.2025, 1992.
HOOGESTEINJN, R.; CHAPMAN, C.A. Large ranches as
conservation tools in the Venezuelan Llanos. Oryx, v.31, n.4,
p.274-284, 1997.
HOSKEN, F.M. Criação e manejo de capivaras. Cuiabá: Edição
Sebrae. Coleção Natureza & Negócios, 1999. 135p.
INGRAND, S.; HOSTACHE, G. L’elevage en Guyane. Bilan des
travaux realises sur les especes domestiques et sur deux especes
sauvages autochtones. INRA Productions Animales, v.6, n.5,
p.319-332, 1993.
KRAVETZ, F.O.; ALLEKOTTE, R.; ÁLVAREZ, M.R. et al. Un
aporte a la divulgación de la cría del carpincho. Buenos
47
Aires: INTA, 1997. 9p. (Serie Diversificación, 9).
KYLE, R. New species for meat production. Journal of
Agricultural Science, v.123, p.1-8, 1994.
LAVORENTI, A. Domesticación and potencial for genetic
improvement of capibara. Revista Brasileira de Genetica,
v.12 (2supl), p.137-144, 1989.
MONES, A.; OJASTI, J. Hydrochoerus hydrochaeris. Mammalian
Species, v. 2 6 4 , p . 1 - 7 , 1 9 8 6 .
NOGUEIRA-FILHO, S.L.G. Manual de criação da capivara. Viçosa,
MG: Centro de Produçoes Técnicas - CPT, 1996. v.1. 50p.
OJASTI, J. Estudio biológico del chigüire o capibara.
Caracas: Fondo Nacional de Investigaciones Agropecuarias
(FONAIAP), 1973. 275p.
OJASTI, J. Human explotation of capybara. In: ROBINSON,
J . G. ; R E D F O R D , K . H . ( E d s . ) N e o t ro p i c a l w i l d l i f e u s e
and conservation. Chicago: The University of Chicago
Press, 1991. p.239-252.
PA R R A , R . ; E S C O B A R , A . ; G O N Z Á L E Z J I M É N E Z , E . E l
chigüire, su potencial biológico y su cría en
confinamiento. Maracay: Universidad Central de
Venezuela, 1978. p.83-94. (Informe Anual del Instituto de
Producción Animal).
VELASCO, A.B.; DE SOLA, R.; MARIN, E. El chigüire en
Ve n e z u e l a ( H y d ro c h a e r u s h y d ro c h a e r i s ) y s u p l a n d e
manejo. Memoria de la Fundación La Salle de Ciencias
N a t u r a l e s , v. 6 8 , n . 1 6 9 , p . 1 0 7 - 1 2 2 , 2 0 0 8 .
R. Bras. Zootec., v.40, p.44-47, 2011 (supl. especial)