O conhecimento coletivo e a filosofia open source

Transcrição

O conhecimento coletivo e a filosofia open source
MURILO BANSI MACHADO
O conhecimento coletivo e a filosofia open
source: estudo de quatro comunidades de
software livre no Brasil
Monografia apresentada ao centro
interdisciplinar de pesquisa da Faculdade Cásper Líbero, como iniciação
científica, sob a orientação do Prof. Dr.
Sergio Amadeu da Silveira
São Paulo
2008
2
AGRADECIMENTOS
Algumas pessoas foram determinantes para a realização deste trabalho.
Cabe, portanto, agradecer com especial apreço a:
► meus pais, Mª Valdenize e Nilson, e a minha irmã, Mirela. Assim como outros
familiares, eles, em especial, foram fundamentais durante este meu 2008.
Desde o primeiro momento, compreenderam quão importante era desenvolver
uma pesquisa científica e me forneceram todos os apoios imagináveis. Espero
conseguir ser para o meu filho ao menos uma parcela do que vocês são para
mim. Muito obrigado!;
► meu orientador, o Prof. Dr. Sergio Amadeu da Silveira. Para mim, não foi
fácil aceitar a idéia de ser guiado por um dos acadêmicos pelos quais tenho
mais respeito e admiração. Por todos os ensinamentos, pela paciência e pela
liberdade que sempre me concedeu: obrigado!;
► o ex-coordenador do CIP, o Prof. José Eugenio de Oliveira Menezes. Muito
além de acreditar em mim e em meu projeto, ele foi (e é) uma fonte de
inspiração a todos os pesquisadores, dada a paixão que tem por seu trabalho e
a seriedade com que o desempenha. Muitíssimo grato, professor!;
► todas as monitoras do CIP – Andressa Umbelino, Juliana Machado (prima!) e
Priscilla Coradete. Monitoras, amigas consoladoras e detentoras de um ramal:
obrigado =);
► todos os colegas de CIP, sobretudo a Daniella Fernandes, cuja dedicação
muito me inspirou durante o ano e por quem minha admiração vai além das
questões acadêmicas;
► todos os pesquisadores da LP1 do CIP, sobretudo à Prof.ª Ms. Eliany
Salvatierra, que conduziu tão habilmente nossas discussões. A professora
compreende na exata medida os anseios dos jovens pesquisadores;
3
► os caros amigos que aceitaram fazer parte de minha banca de qualificação –
a colega de curso Mariana Brasil e o Prof. Dr. Liráucio Girardi Júnior. Pelas
sugestões, pelas considerações e, sobretudo, pela amizade: obrigado!;
► todos os colegas de curso que me apoiaram durante a pesquisa, sobretudo
aos imprescindíveis amigos Juliana Ranciaro e Marcelo Cabrera. Deixo também
meu abraço especial aos amigos Camila Mamede e Rodrigo Russo. Valeu
mesmo, pessoal!;
► todos os professores que fizeram parte de minha trajetória acadêmica até
então. Em especial, agradeço ao Prof. Dr. Dimas A. Künsch e à Prof.ª Dra. Mª
Ivoneti Ramadan pelo indispensável incentivo inicial;
► todos aqueles que colaboraram com este trabalho concedendo entrevistas,
fornecendo explicações ou mesmo indicando bibliografia. Obrigado a todos.
4
A meus pais, Mª Valdenize e Nilson, a
minha irmã, Mirela, e a todos aqueles
que, assim como eu, acreditam na
liberdade do conhecimento
5
RESUMO
Esta pesquisa propôs-se a analisar as peculiaridades da dinâmica organizacional
de trabalho em comunidades on-line de distribuições brasileiras de software
livre – em especial, no caso das comunidades Slackware, Ubuntu, Debian e
Fedora. Por meio de participações em fóruns, listas de discussão, redes sociais;
de visitas a blogs e a páginas pessoais; bem como de entrevistas com membros
das comunidades e usuários das distribuições, constatou-se a existência de uma
nova natureza de engajamento e de organização que compreende elementos
próprios. Impulsionados pelas novas plataformas que remetem às tecnologias
digitais, voluntários ocupam-se com afinco na elaboração de um programa de
computador que, quando finalizado, é disponibilizado gratuitamente na rede
mundial de computadores. Trabalhando com conceitos como inteligência
coletiva, cultura hacker e produção entre pares, e com autores como Pierre
Lévy, Yochai Benkler, Eric Raymond e Pekka Himanen, investigou-se como se
estabelece nas comunidades: a barreira de entrada e o processo de
recrutamento de novos colaboradores; a existência da figura do “porta-voz”; a
comunicação interna e externa; as hierarquias e as relações de poder; o peso
do trabalho brasileiro frente aos esforços dos colaboradores internacionais; o
tempo que os membros dedicam à colaboração e o conceito de “liberdade” sob
a ótica de algumas distribuições.
Palavras-chave: comunidades on-line, software livre, cultura hacker
6
SUMÁRIO
Apresentação.........................................................................................7
Módulo I...............................................................................................10
1. Sociedade da informação e cibercultura.................................................11
1.1 O programa da cibercultura......................................................14
1.2 Sociedade da informação..........................................................15
1.3 Ideário ciberpunk.....................................................................16
2. Software livre: história e conceitos........................................................19
Módulo II..............................................................................................25
1. Das práticas.........................................................................................26
1.1 A inteligência coletiva................................................................26
1.2 A natureza das práticas.............................................................29
1.2.1 O novo modo de produção............................................31
1.2.2 Hierarquias e meritocracia.............................................32
1.2.3 As novas plataformas: tecnologias digitais......................34
2. Do hackerismo......................................................................................38
2.1 Histórico...................................................................................40
2.2 Motivações................................................................................42
2.3 Ética hacker..............................................................................43
2.3.1 Ética do trabalho...........................................................43
2.3.2 Ética do dinheiro...........................................................45
2.3.3 Ética da rede................................................................46
2.4 Universo(s) hacker....................................................................48
MÓDULO III...........................................................................................50
Das comunidades......................................................................................51
1. Breve histórico............................................................................54
1.1 Slackware Linux...............................................................54
1.2 Ubuntu Linux...................................................................57
1.3 Debian GNU/Linux............................................................61
1.4 Fedora.............................................................................65
2. Análise........................................................................................68
2.1 a barreira de entrada e o processo de
recrutamento de novos colaboradores.....................................68
2.2 O porta-voz das comunidades.................................71
2.3 A comunicação interna e externa.............................73
2.4 Hierarquias e relações de poder...............................75
2.5 O peso do trabalho brasileiro frente
à comunidade internacional..........................................78
2.6 O tempo dedicado à colaboração.............................82
2.7 O conceito de “liberdade” sob a ótica
de algumas comunidades..............................................83
Considerações finais..............................................................................87
Referências............................................................................................89
7
APRESENTAÇÃO
Considera-se que exista uma vasta literatura tentando dar conta das
transformações sociais que se estabelecem com base no advento das novas
tecnologias da informação e da comunicação e, entre os fenômenos que têm
sido constantemente analisados como frutos de novas formas de comunicação,
de organização e de relacionamentos pessoais, está o software livre. Esses
programas de computador, elaborados na maior parte dos casos por voluntários
e disponibilizados gratuitamente na internet, já foram alvos de pesquisas das
mais diversas áreas e já renderam estudos de excelência.
Tudo isso porque compreender como se organizam as comunidades de
distribuições de software livre é fundamental para se lançar à compreensão da
dinâmica que se verificou no surgimento da própria rede, bem como de boa
parte de suas atribuições mais relevantes. Neles, o espírito dominante – que
passa pelo julgamento e produção entre pares, configurando-se em uma
grande inteligência coletiva e se fundamentando em certos princípios, tal qual
liberdade de conhecimento e de informação –, grosso modo, é muito parecido.
Dessa forma, muitos foram os estudos sobre a dinâmica de trabalho do Linux,
assim como sobre as especificidades do modo de organização específico de
determinada comunidade. Este trabalho, pretensiosamente, dedicou-se a traçar
um mapa de quatro grandes distribuições, levantando alguns aspectos que,
assim se julgou, poderiam ajudar a compreender a dinâmica interna de uma
comunidade de software livre.
Optou-se por dividir esta pesquisa em três módulos. O primeiro deles, de
caráter introdutório, divide-se em dois grandes tópicos: “Sociedade da informação e cibercultura” e “Software livre: história e conceitos”. Neles, traçamos
um breve histórico da cibercultura, que caminhou de mãos atadas às da
microinformática; abordamos os seus planos, levantados por Lévy (1999);
discorremos sobre a sociedade da informação pós-industrial e sobre o ideário
8
cyberpunk; situamos historicamente o software livre e o sistema operacional
Linux.
O segundo módulo, em que trabalhamos mais com os referenciais
teóricos do trabalho, foi subdividido em “Das práticas” e “Do hackerismo”. Nele,
tratamos da inteligência coletiva (Lévy 1998) e da natureza das práticas
colaborativas – produção entre pares (peer production), cultura meritocrática,
plataformas digitais como potencializadoras das ações humanas (Benkler,
2006). Igual destaque se deu à cultura hacker – histórico, motivações e éticas
(do trabalho, do dinheiro e da rede) –, para a qual utilizamos os estudos de
Pekka Himanen (2001).
Já o terceiro módulo traz o tópico “Das comunidades”, em que foram
levantadas as principais características de cada uma delas (Slackware, Ubuntu,
Debian e Fedora), além dos principais fatos de suas histórias. Por fim, dispostos
em sete itens, estão os resultados da pesquisa, conseguidos por meio de
observações (em listas de discussão, fóruns, IRC, blogs, planetas, zines, redes
sociais) entrevistas, visitas a eventos etc.
Para encerrar esta apresentação, talvez seja oportuna uma breve
explicação do motivo pelo qual se revela necessária uma pesquisa na área de
Comunicação (e não das Ciências Sociais ou da Ciência da Computação)
envolvendo “comunidades” e “softwares”. Pois bem: que grande parte da
comunicação feita hoje se dá por meio de softwares – uma mídia intermediária,
de transporte de informações e, ao mesmo tempo, constituída de informações
(códigos) –, todos sabemos. No entanto, muitas vezes, escapa à nossa
compreensão – seja por falta de conhecimento ou por achar que isso não nos
diz respeito (a nós, os comunicadores) – quão determinantes são os códigos
sobre o conteúdo das informações. Os formatos de códigos podem, muito além
de interferir na mensagem (o que outros meios já fazem), limitar a
comunicação, quando não miná-la. Por isso, consideramos imprescindível o
estudo dos softwares, de seu modo de produção e distribuição, bem como dos
princípios e valores que regem seus agentes – sobretudo quando falamos de
um software livre, que, por ter seu código livre (aberto), a depender das
9
circunstâncias e do nível de conhecimento de quem o opera, pode implicar uma
comunicação mais livre.
10
MÓDULO
I
11
1. Sociedade da informação
e cibercultura
“A tecnologia, que foi durante a modernidade um
instrumento de racionalização e de separação, parece
transformar-se numa ferramenta convivial e comunitária” André Lemos
Dado que a tecnologia se fez objeto de segregação, racionalismo
instrumental, produção desenfreada e mecanização da sociedade no mundo
moderno, questões e reflexões relativas a ela ainda são alvos de visões
anacrônicas ou apocalípticas. Enquanto as máquinas consolidaram a noção de
tempo cronológico linear, os meios de comunicação de massa corroboraram o
individualismo e a dificuldade de interação, as tecnologias digitais do pósmoderno podem-se revelar um meio fundamental para a integração e a
convivência, constituindo-se como o ponto de partida para o surgimento de
novas formas de relações que implicam uma nova cultura: a cibercultura, à qual
dedicaremos certa atenção neste primeiro capítulo.
Segundo Lemos (2002), a cibercultura está inserida em um contexto
mais abrangente caracterizado fundamentalmente pela relação entre técnica e
sociedade. Dessa maneira, para compreender seu nascimento, as etapas
históricas e as relações sociais dela decorrentes, é necessário associá-la aos
impactos socioculturais deflagrados pela micro-informática. Sobre os aspectos
técnicos, a fim de estruturar a cronologia de avanços científicos relevantes, o
autor recorre a Philippe Breton para apontar três fases desse processo: a
informática e a cibernética entre os anos 1940 e 1960; os minicomputadores e
os sistemas centralizados em universidades e em instituições militares nos anos
1960 e 1970; as redes telemáticas e os microcomputadores a partir da década
de 1970. Ainda propõe outras três fases, já que a análise de Breton parou nos
anos 1980: a popularização do ciberespaço, com sua inserção na cultura
12
contemporânea (meados da década de 1980); a fase do computador
conectado, vigente desde os anos 1990 até os dias atuais; e a fase dos
computadores coletivos móveis que, no início do século XXI, deram início à “era
da conexão” com a assim chamada computação ubíqua sem fio.
Nesse cenário, a cibercultura nasce nos anos 1950, populariza-se nos
anos 1970 com a micro-informática (PCs, os personal computers) e se
estabelece em definitivo nos anos 1980 e 1990 com os computadores
conectados (CCs). Por certo, uma fase não anula a anterior, mas agrega seus
pontos condicionantes e introduz novas ferramentas, deflagrando outras
transformações. Por isso, revela-se arbitrária qualquer tentativa de associar
indiscriminadamente uma transformação social a uma fase específica. Porém,
de maneira geral, é possível afirmar com certo grau de sucesso que as grandes
modificações se deram a partir da consolidação da micro-informática. Desde
então, foi preciso reexaminar com fortes fundamentações um sem-número de
conceitos-chave, entre eles: “proximidade”, “distância” e “mobilidade”, visto
que a desterritorialização promovida pelo advento do virtual trouxe uma
reconfiguração do espaço e do tempo. Fazem-se necessárias, assim, novas
formas para que se possam definir o “público” e o “privado”, tanto no on-line
quanto no off-line.
Igualmente relevantes são as transformações ocorridas nas próprias
práticas sociais e na vivência do espaço urbano. Sobre as práticas, convém
ressaltar a expansão dos contatos por meio da relação telemática, que
corrobora a simbiose entre os espaços físico e eletrônico. Isso implica um
processo turbulento de emissão generalizada de informações e de trabalhos em
conjunto – peer to peer, fóruns, blogs, chats e, é claro, software livre, o grande
tema deste trabalho –, que se realizam sobre ferramentas técnicas específicas.
Quanto à vivência do espaço urbano, chama-se a atenção quando se fala da
radicalização do nomadismo provocada pelos dispositivos móveis, que fazem da
cibercultura um espectro onipresente. Em outras palavras, não é mais
necessário que as pessoas se dirijam até a rede, pois esta passa a ter a
capacidade de envolver seus usuários, constituindo uma verdadeira esfera
pública interconectada da qual transbordam informações – é o ciberespaço
13
completamente infiltrado nos meandros da nova era.
De acordo com Lévy (1999), ciberespaço é:
o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos
computadores e das memórias dos computadores. Essa definição
inclui o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos (aí
incluídos os conjuntos de redes hertzianas e telefônicas básicas),
na medida em que transmitem informações provenientes de fontes
digitais ou destinadas à digitalização
Esse meio é capaz de colocar em sinergia todos os dispositivos que
produzem informações, bem como interfaceá-los. É, além disso, um desejo de
comunicação recíproca. Mas, mais do que um novo espaço de comunicação
(caracterizado por acessos a distância e transferências instantâneas de dados,
arquivos e mensagens), o ciberespaço é um ambiente de troca, de relações, de
formas de sociabilidade, sendo que sua emergência é produto de um
movimento social liderado pela juventude metropolitana escolarizada, cujos
representantes
ansiavam
por
mais
um
ambiente
de
troca,
de
compartilhamento. Eles o encontraram na internet, o maior dos expoentes do
ciberespaço, uma virtualização da colaboração. Criada por meio de pequenas
inciativas locais e de maneira descentralizada – envolvendo universidades,
instituições de pesquisa, militares e sobretudo a cultura popular – a grande
rede mudial de computadores caracterizou-se pela possibilidade de intervenção
por parte de qualquer um de seus usuários e os jovens já a encaram como seu
hábitat natural.
Neste trabalho, não se tem a intenção de detalhar a história da internet
ou mesmo da cibercultura em seus pormenores. Nas linhas a seguir, trataremos
de algumas diretrizes básicas que, de uma forma ou de outra, condicionaram
os primeiros passos do ciberespaço. Trata-se do programa inicial da
cibercultura.
14
1.1 O programa da cibercultura
Para Lévy (1999), o crescimento inicial do ciberespaço tem três grandes
princípios, que são, basicamente: a interconexão, a criação de comunidades
virtuais e a inteligência coletiva. Eles, em especial, formam o programa da
cibercultura, que se estabeleceu de uma forma na qual foi capaz de prescindir
tanto de objetivo como de conteúdo. Não se trata, naturalmente, de um
programa tradicional, já que não é dotado de uma finalidade explícita. O
programa da cibercultura é, portanto, “universal sem totalidade” – chega a
todos, mas mantém a heterogeneidade, a multiplicidade de fontes, a
diversidade de agentes. Para compreender melhor, passemos aos três
princípios.
Interconexão diz respeito à comunicação universal em um mundo
enredado, no qual cada aparelho ou máquina esteja interligado à grande rede
mundial e nela possua um endereço eletrônico. É o repúdio ao isolamento e a
ode ao fluxo informacional oriundo de todas as partes e capaz de atingir a
qualquer pessoa em um espaço comunicacional que envolve a tudo e a todos,
tornando-se um metacanal interativo. A interconexão tende a ser mundial e
plena, com todos em uma só rede.
Assentadas na “interconexão”, estão as “comunidades virtuais”. Nelas,
pessoas compartilham informações, interesses, contatos e projetos e se unem
por afinidades diversas. Interconectados, os membros se valem do ambiente de
cooperação sem precisar se preocupar com fronteiras geográficas, vínculos
partidários ou institucionais. Cada comunidade tem suas próprias leis e normas,
assim como sua própria dinâmica interna, que não está documentada nem é
declarada abertamente. Em geral, sua lógica é a da reciprocidade entre os
membros, que não prescindem das relações tradicionais de contato físico. Por
meio da comunicação corrente, eles exploram novas formas de opinião pública.
Já a “inteligência coletiva” configura-se como a finalidade última da
cibercultura. No ambiente interconectado, a expectativa é a de que cada
15
pessoa possa oferecer aquilo que faz de melhor e o somatório de todas as
habilidades pessoais seja capaz de se traduzir em um grande coletivo
inteligente
no
qual
o
fluxo
de
perguntas
e
respostas
fomente
o
desenvolvimento da espécie, que passará a uma “nova etapa da hominização”.
Lévy acredita que “o melhor uso que podemos fazer do ciberespaço é colocar
em sinergia os saberes, as imaginações, as energias espirituais daqueles que
estão conectados a ele” (Lévy, 1999, p. 131).
Como veremos, o objeto de estudo deste trabalho relaciona-se
diretamente com os três grandes princípios da cibercultura apontados por Lévy.
As comunidades de software livre, que são um gênero de comunidade virtual,
apóiam-se na interconexão generalizada e só se mantêm ativas graças à
inteligência coletiva. E, por certo, essas comunidades também estão imersas no
dilúvio de informações das sociedades contemporâneas, aspecto da cibercultura
que também merece seu destaque.
1.2 Sociedade da Informação
O termo “Sociedade da Informação” foi criado no final do século XX para
designar
um
mundo
que
teria
superado
o
estágio
das
sociedades
industrializadas. Até então, o pós-industrialismo tem-se solidificado aos poucos,
visto que se estabelece como um processo de formação e expansão do qual
emergem constantemente modelos políticos, econômicos e sociais, sendo que
as novas tecnologias são as principais responsáveis pela maior parte das
mutações – ou possibilidades de.
Tendo em vista que a chamada sociedade informacional, identificada
pela
convergência
tecnológica
e
pela
informatização
das
sociedades
contemporâneas, provocou o enfraquecimento de características marcantes da
modernidade – tais como linearidade, racionalismo, progresso, dualidade, etc –,
e as constantes possibilidades tecnológicas que vêm condicionando a pósmodernidade contribuíram para o surgimento de uma nova cultura:
16
A cibercultura forma-se, precisamente, da convergência entre o
social e o tecnológico, sendo através da inclusão da socialidade na
prática diária da tecnologia que ela adquire seus contornos mais
nítidos (Lemos, 2002, p. 95)
Tal simbiose entre o técnico e o social pode ser comprovada por meio de
diversos exemplos de formação de comunidades on-line específicas de gêneros
distintos: desde cyberpunks e fanáticos por gráficos avançados e interatividade
dos jogos eletrônicos até membros de redes de relacionamentos, fóruns,
newsgroups, chats. A combinação também está presente nos termos que se
apropriaram, de maneira ou de outra, do prefixo “ciber1”: cibermundos, cibersocialidade, cibereconomia, cibercafé, ciberespaço, ciberarte e até mesmo
ciber-sexo. Outro grande exemplo se estabelece no tema deste trabalho: as
comunidades que se formam em torno da programação, documentação,
tradução e divulgação de softwares livres.
Surge, com isso, a nova sociedade contemporânea que, munida de seus
traços dispersos, efêmeros e não-lineares, permite que se solidifiquem novas
formas de informar, entreter, produzir, interagir e colaborar. Mais do que isso,
emergem novas concepções de espaço e de tempo: eliminam-se fronteiras
geográficas e políticas, bem como a cronologia racional do tempo. Nesse
cenário, verifica-se uma atitude sociocultural que se apropria de uma natureza
já vivida, dominada e transformada pela modernidade, mas que assume no
pós-moderno uma atitude que não se contenta com uma mera leitura ou
representação. Os novos atores que habitam o ciberespaço traduzem a
natureza não apenas por meio de sua digitalização (em mera substituição de
átomos por bytes), mas de sua re-transformação constante, automatizando a
informação e os processos dela decorrentes. Eis o que fazem os cyberpunks.
1.3 Ideário Cyberpunk
Uma dessas atitudes marcantes para a cibercultura e que poderia
1
O prefixo tem raiz no grego “kubernaô”, que significa “governar”, “dirigir”.
17
traduzir alguns de seus ideais é a cultura cyberpunk, que surgiu em meados
nos anos 1970 e foi influenciada pela contracultura2 americana. O termo
(combinação entre “cibernética” e “punk”) é originário de um movimento de
mesmo nome no campo da ficção-científica, mas que está presente também no
chamado underground high-tech3. Trata-se de uma manifestação contrária aos
desmandos característicos de um inimigo em comum: a tecnocracia dominante.
Para isso, prega-se o uso amplo e irrestrito das novas tecnologias. Segundo os
cyberpunks, a informação deve ser livre e o acesso aos computadores e à
internet deve ser universal. Nessa luta contra o poder, primam pelo “faça você
mesmo”, como sujeitos de suas realidades:
O imaginário cyberpunk impõe, assim, uma visão ao mesmo tempo cínica
e distópica em relação às possibilidades abertas pelas novas tecnologias.
Aqui, o futuro não faz mais sentido e as grandes meta-narrativas
desabaram (Lemos, 2002, p. 202).
Ao tentar compreender melhor o ideário cyberpunk, pesquisadores da
pós-graduação da FACOM/UFBA, liderados por André Lemos, conversaram com
membros do Pirate of Network, grupo de brasileiros que invadem sistemas:
<Curs3> algumas páginas hackeadas (eu
monitoro
semanalmente esta atividade para a pesquisa) possuem
mensagens anticapitalistas. vcs tem algum tipo de ideologia por
traz da atuação?
<AkFare> ideologia não exatamente
<CuRs3> ai esta
<AkFare> temos frases sobre temas que nos irritam no
momento..
<lapton> possuem algum objetivo com esta prática?
<H3LL_Cr0w> afe galera.. sinto muito mas num to conseguindo
nem digitr direito...to saindo fora!!! falow ai
<AkFare> expor o que sentimos e o que imaginamos no
momento
<AkFare> e ao mesmo tempo expor falhas grosseiras
<Tw1STer> falows
2
Diferentemente dos protagonistas da contracultura, que viam as tecnologias como formas de
repreensão e legitimação de poderio, os cyberpunks se usam dela como um meio para se
expressar.
3
Underground high tech é justamente essa expressão política que luta por meio da tecnologia
contra a tecnocracia. Seus membros são os cyberpunks como hackers, crackers, phreakers,
warez etc, dos quais falaremos adiante.
18
<AkFare> falowz, ooo, troca esse 286 seu ai Hell
<H3LL_Cr0w> ahaauauaahau...quem dera
<H3LL_Cr0w> fui
<Tw1STer> alertar os admin sobre as ridiculas falhas nos
servidores e aproveitamos para expor o que pensamos...4
Em um dos sites invadidos pelo grupo, há, entre outras, a seguinte
mensagem: “Aí para todos os grupos e pessoas que nos criticam, só queria
dizer uma coisa: FUCK YOU! Antes de nos criticar tente nos superar”.
O software livre – bem como outras revoluções trazidas pela cibercultura
– nasceu do ativismo político como subversão, que é parte marcante do ideário
cyberpunk. No capítulo seguinte, dedicaremos atenção à história e aos
conceitos relativos aos programas de computador de código aberto.
4
Conversa realizada em 09 de Junho de 2001 pelo IRC. Disponível em
http://www.facom.ufba.br/CIBERPESQUISA/CYBERPUNK/. Acesso em junho de 2008.
19
2. Software Livre: história e
conceitos
“Dados olhos suficientes, todos os erros são triviais”
ERIC S. RAYMOND
Software é “um programa de computador composto por uma seqüência
de instruções, que é interpretada e executada por um processador ou por uma
máquina virtual”5. Tal programa pode ser um sistema operacional – software
básico que faz a máquina trabalhar, interage com o computador e periféricos,
controlando dados, diretórios, arquivos e execução dos demais softwares – ou
um software de aplicativo – programa usado para tarefas mais básicas, como
editor de texto, navegador, comunicador instantâneo etc. Neste trabalho,
trataremos dos sistemas operacionais livres6.
Inicialmente, nas décadas de 1950 e 1960, os softwares eram
distribuídos gratuitamente e sem qualquer restrição entre empresas, centros de
pesquisas e universidades. Como havia poucos computadores comercializados,
as empresas fabricantes entregavam gratuitamente os programas com o
código-fonte aberto, juntamente com as máquinas. Nas décadas seguintes, com
o aumento de usuários e da concorrência, os softwares passaram a ser
vendidos separadamente e com o código fechado.
Em 1969, Ken Thompson, a serviço da Bell Laboratories da AT&T,
elaborou, o UNIX, um sistema operacional robusto que teve o código-fonte
disponibilizado quando inicialmente distribuído. Por ser compatível com quase
todos os tipos de sistemas, o UNIX permitia que programadores se livrassem da
5
Wikipédia, verbete “software”. Acesso em abril de 2008.
Sistema operacional livre, bem como qualquer software livre, é um programa cujo códigofonte é aberto, ou seja, qualquer pessoa pode executá-lo, copiá-lo, distribuí-lo, modificá-lo e
aperfeiçoá-lo segundo seus interesses e necessidades.
6
20
incumbência de criar linguagens próprias para cada máquina em que fossem
trabalhar. Isso facultou, em 1979, a possibilidade de estudantes da
Universidade de Berkeley da Califórnia criarem seu próprio sistema operacional
– e o mais avançado até então: o Berkeley System Distribution (BSD), software
livre que existe até os dias atuais.
A AT&T, entretanto, resolveu fechar o código do UNIX a fim de torná-lo
um produto comercial (modelo de software proprietário), requerendo seus
direitos de propriedade. A partir daquele momento, para usufruir do UNIX seria
preciso pagar para adquirir uma licença de uso.
Assim sendo, o programador do Laboratório de Inteligência Artificial do
Massachusetts Institute of Technology (MIT) Richard Stallman, em reação à
decisão da AT&T, decide elaborar um outro sistema operacional chamado GNU
– nome de um mamífero nativo da África e também acrônimo recursivo para
“GNU is Not UNIX” -- com o objetivo de rodar todos os aplicativos do UNIX,
mas que fosse totalmente livre. Dessa maneira, Stallman dava início a um
movimento de cunho político e bases tecnológicas que culminaria com a criação
da Free Software Foundation (FSF) em 1984 e a elaboração da General Public
Licence7 (GPL), que foi usada pelo GNU e atualmente grande parte dos
softwares livres são registrados por essa licença8. Ao iniciar o projeto GNU,
Stallman declarou:
Por que eu tenho que escrever o GNU? Eu considero ser uma
regra de ouro: se eu gosto de um programa, eu tenho que
compartilhá-lo com outras pessoas como eu. Eu não posso, com a
7
A GPL é uma licença (contrato que define as opções de uso de um programa) que utiliza os
próprios princípios do direito autoral para garantir quatro liberdades relativas ao software: de
uso, cópia, adaptação e redistribuição. A GPL também assegura que o software final também
seja livre.
8
Existem outras licenças no mundo do software livre, chamadas comumente de copyleft, termo
empregado para indicar oposição ao copyright (licença que protege os direitos autorais). Como
exemplo, podem-se citar a OSD – Open Source Definition, criada em 1997 pela OSI (Open
Source Initiative), que não obriga a publicação das alterações realizadas no código-fonte,
possibilitando projetos integrados por softwares livres e proprietários – e a BSD, cujo sistema
operacional já foi citado. A BSD impõe pouca restrição para uso, cópia e distribuição do
software, e também não obriga que as mudanças no código sejam divulgadas. O Sistema
operacional da Apple, o MAC OS X, utiliza a base do sistema FreeBSD para realizar operações
3D.
21
consciência limpa, assinar um contrato de não-divulgação de
informações ou um contrato de licença de software. De modo que
eu possa continuar a usar computadores sem violar os meus
princípios, eu decidi juntar uma quantidade suficiente de software
livre, de modo que eu possa continuar sem utilizar nenhum
software que não seja livre9.
Em agosto de 1991, Linus Torvalds era um estudante de Ciências da
Computação que queria usar em seu computador pessoal um sistema do tipo
UNIX. Dada a falta de recursos para tal, resolveu desenvolver seu próprio
kernel10 baseado em Minix (um pequeno sistema Unix) como trabalho de
conclusão de curso da faculdade. Quando começaram a surgir as inequívocas
dificuldades desse tipo de atividade, Linus divulgou o código-fonte de seu
kernel em um grupo de discussão na internet (usegroup11) e pediu a
colaboração de outros programadores que tivessem acesso à rede:
Você sente falta dos dias do Minix/1.1 quando homens eram
homens e escreviam seus próprios drivers? Você está sem nenhum
projeto legal e está ansioso para mexer num sistema operacional
que você possa modificar para atender às suas necessidades?
Você está achando chato quando tudo funciona no Minix? Não
ficar mais a noite inteira tentando arrumar um programa legal?
Então esta mensagem pode ser para você.
Como eu disse há um mês (?) atrás, eu estou trabalhando numa
versão grátis dum similar para o Minix, para computadores AT386. Ela finalmente atingiu o estágio onde já é usável (apesar de
talvez não ser, dependendo do que você quer), e eu estou a fim
de colocar (on-line) o código fonte para uma distribuição melhor. É
apenas a versão 0.02 (com mais um patch) mas eu já rodei
bash/gcc/gnu-make/gnu-sed/compress dentro dela.
Códigos fontes para este hobby meu podem ser encontradas em
nic.funet.fi (128.214.6.100) no diretório /pub/OS/Linux. O diretório
também contém alguns arquivos README e um conjunto de
arquivos para permitir trabalho no Linux (bash, update e GCC, o
que mais você queria? :-). O código-fonte do kernel está
disponível por inteiro, porque nenhum do código do Minix foi
9
Disponível no site da Free Software Foundation: http://www.fsf.org
Kernel (tradução literal: cerne) é o núcleo de um sistema operacional. Trata-se da mais
próxima do hardware – isto é, a parte física do computador – que gerencia os recursos de todo
o sistema.
11
Uma espécie de mural de avisos on-line para discussões.
10
22
usado. Os códigos-fontes das bibliotecas são apenas parcialmente
abertos, portanto não podem ser distribuídos. O sistema pode
compilar "como está" e é provado que funciona. (hehehe) Códigofonte dos programas (bash e gcc) podem ser encontrados no
mesmo FTP em /pub/gnu.
PERIGO! AVISO! NOTA! Este código fonte ainda precisa do
Minix/386 para compilar (e o gcc-1.4.0, ou o 1.3.7, não testei) e
você precisa do Minix para configurá-lo, então ele ainda não é um
sistema por si só para vocês que não têm o Minix. Eu já estou
trabalhando nisto. Você também precisa ter um jeito hacker (?)
para configurá-lo, então para aqueles torcendo por uma
alternativa ao Minix/386, me esqueçam. Ele é atualmente para
hackers com interesse no 386 e no Minix.
O sistema precisa de um monitor EGA/VGA e um disco rígido
compatível (IDE serve). Se você ainda está interessado, pegue no
FTP o readme/relnotese/ou me mande um e-mail para saber mais.
Eu posso (bem, quase) ouvir vocês perguntando para si mesmos:
por quê? O Hurd vai sair em um ano (ou dois, ou em um mês,
quem sabe), e eu já tenho o Minix. Este é um programa feito por
e para hackers. Eu gostei de fazê-lo, e alguém pode começar a
olhá-lo e até mesmo modificá-lo às suas necessidades. Ele ainda é
pequeno para entender, usar e modificar, e eu estou otimista em
relação a algum comentário que vocês tenham a fazer.
Eu também estou interessado em alguém que tenha escrito alguns
dos utilitários/bibliotecas para o Minix. Se o seu trabalho pode ser
distribuído publicamente (registrado ou mesmo domínio público),
eu gostaria de ouvir comentários de vocês, e para que eu possa
adicioná-los ao sistema. Eu estou usando o Earl Chews studio
agora mesmo (obrigado, Earl, por um sistema que funciona), e
trabalhos similares seriam bem-vindos. Seus (C)'s obviamente
serão mantidos. Me deixe uma mensagem se você quer deixar que
a gente use seu código12.
Embora tenha dito que o projeto não era tão sério nem tinha as
dimensões do GNU, o resultado foi impressionante: montou-se, em torno do
Linux13 (nome final do sistema, na junção de “Linus” e “UNIX”), uma
comunidade massiva de programadores de várias partes do planeta.
Em sua primeira versão, o Linux já fornecia suporte a disco rígido,
teclado, portas seriais e tela e, em função da vasta rede de colaboradores, os
aprimoramentos surgiam constantemente. Segundo Eric S. Raymond:
12
Disponível em http://www.infowester.com/linux5.php
O nome foi criado por Ari Lemmke, o administrador do servidor em que o Linux estava
inicialmente disponível. Segundo Castells, Torvalds havia chamado seu projeto de “Freix”.
13
23
Naqueles tempos (por volta de 1991), não era estranho que ele
liberasse um novo kernel mais de uma vez por dia! E, porque ele
cultivava sua base de co-desenvolvedores e alavancava a
colaboração pela internet como nenhum outro, isso funcionou14
Nascia ali não apenas a gênese de um sistema operacional estável e
seguro, mas uma nova forma de produção inspirada no conceito de inteligência
coletiva, pois unia as práticas colaborativas à voluntariedade. A máxima “Dados
olhos suficientes, todos os erros são triviais”, formulada por Raymond, explica
em parte o sucesso do sistema: quando se tem uma ampla comunidade de
desenvolvedores que também são usuários ávidos por desafios, a probabilidade
de que uma falha no sistema (bug) seja encontrada e solucionada é muito
grande – bem maior do que no modelo proprietário de produção de software.
Segundo Silveira (2004), não seria um exagero afirmar que, sem a
internet e a comunicação aberta mediada por computador, dificilmente se teria
um ambiente de tal forma propício e necessário às práticas colaborativas. As
potencialidades da rede com relação a esse aspecto também são descritas por
Castells (2003):
Só uma rede de centenas de milhares de cérebros trabalhando
cooperativamente, com divisão do trabalho espontânea, e
coordenação maleável, mas eficiente, poderia levar a cabo a tarefa
extraordinária de computadores cada vez mais potentes
interagindo por meio da internet (CASTELLS, 2003, p.41).
Tempos depois, o projeto GNU se juntaria ao Linux, formando o sistema
operacional GNU/Linux, que, em 1999, já contava com cerca de 7,5 milhões de
usuários e, dois anos mais tarde, pelo menos 30 milhões. Segundo o sociólogo
Francisco Coelho dos Santos:
14
Trecho do texto A Catedral e o Bazar, disponível em
http://firstmonday.org/issues/issue3_3/raymond
24
Em agosto de 2001, ao completar seus dez anos de existência,
Linux é capaz de atrapalhar o sono dos executivos da Microsoft. É
que, aperfeiçoado pelo trabalho no mais das vezes dadivoso de
milhares de programadores de grande capacidade técnica,
atuando em toda parte do mundo, o software hoje disponível é
absolutamente eficiente e confiável, além de ser modulável e de
poder ser adquirido a bom preço15 (SANTOS, 2002)
De tempos em tempos, são lançadas novas distribuições de núcleo
GNU/Linux e, malgrado cada uma tenha suas próprias normas e dinâmicas
internas, os princípios maiores que as regem são os mesmos que fizeram parte
de toda a história do Linux aqui descrita. No próximo módulo, discorreremos
sobre as práticas colaborativas das quais se valem as comunidades e sobre a
cultura hacker, elemento central para compreender a natureza dessas práticas.
15
Trecho do texto Peripécias de Agosto, disponível em
http://www.comunica.unisinos.br/tics/textos/2002/T4G4.pdf. Acesso em maio de 2008.
25
MÓDULO
II
26
1. Das práticas
O processo de produção de um software livre se dá por meio de práticas
colaborativas que se arregimentam em comunidades cujos membros se pautam
por princípios diretamente relacionados à coletividade e à voluntariedade. Em
tais comunidades, hackers dedicam seu tempo livre a um trabalho muitas vezes
desafiador e que pode exigir alta concentração para ser realizado de maneira
precisa. O produto final oriundo dos esforços pessoais é um programa de
computador (no caso do objeto de estudo deste trabalho, uma distribuição de
software livre16) que será disponibilizado gratuitamente àqueles que quiserem
usá-lo, alterá-lo, distribuí-lo, ou até mesmo aprimorar suas propriedades. Este
capítulo dedica-se a compreender como se estabelecem essas práticas que
instituem o caráter de uma nova relação de trabalho continuamente mais
plausível e presente na sociedade contemporânea graças às novas tecnologias
de redes digitais que se inserem.
1.1 A inteligência coletiva
Primeiramente, convém notar que uma comunidade de software livre é,
em essência, uma grande inteligência coletiva dotada das ferramentas que
habitam
as
esferas
do
ciberespaço
e
são
capazes
de
fomentar
o
compartilhamento de informações, de maneira a possibilitar que o acesso ao
conhecimento se verifique livre e irrestrito. Partindo-se do pressuposto de que
esse conhecimento não tem efetivamente um dono, tornam-se mais
elementares os proveitos que podem ser extraídos de um pensamento
conjunto, encarado, dessa forma, como o fruto de ações recíprocas destinadas
16
Vale ressaltar a diferença entre um programa comum de computador – como um editor de
texto ou um navegador para acessar a Internet – e uma distribuição, que equivale a um
sistema operacional, isto é, o software básico capaz de controlar dados, arquivos, periféricos e
programas de todo o sistema.
27
a fazer valer um ideal comum – ou até mesmo, em estágio preliminar, a
realização de discussões, argumentações e trocas de idéias a fim de levar à
prática determinado projeto. Afinal, a cada um lhe é familiar um assunto, uma
idéia, uma aptidão, uma inteligência, e o conhecimento de fato deve considerar
o somatório das múltiplas experiências pessoais. A isso se soma o importante
fato de que, em plena era digital, revela-se extremamente difícil manter
qualquer tipo de informação, seja ela geral ou específica, científica ou popular,
sob os domínios de poucos peritos e conferir a eles o poder de conduzir as
tomadas de decisões.
Ao contrário, muitas das atividades da chamada Sociedade da
Informação se estabelecem propriamente nas sólidas bases que fundamentam
a coletividade e a troca de conteúdos. Conforme Pierre Lévy (1998) – que
almeja um mundo pós-mídia no qual as técnicas de informação poderão filtrar o
fluxo de informações, possibilitando à humanidade pensar coletivamente –, é
fundamental admitir o aprendizado recíproco como mediação das relações entre
os homens.
Quem é o outro? É alguém que sabe. E que sabe coisas que eu
não sei. [...] Mas como nossas zonas de inexperiência não se
justapõem ele representa uma fonte possível de enriquecimento
de meus próprios saberes. Ele pode aumentar meu potencial de
ser, e tanto mais quanto mais diferir de mim. Poderei associar
minhas competências às suas, de tal modo que atuemos melhor
juntos do que separados (LÉVY, 1998, p. 27).
Dessa maneira, é por meio do reconhecimento e da valorização dos
indivíduos que suas competências, habilidades e experiências ganharão voz
ativa em determinada comunidade (ou, como no pensamento de Lévy, na
grande e singular comunidade dos habitantes do mundo), tornando possível
que as novas tecnologias da comunicação forneçam as ferramentas necessárias
à organização das interações, à interligação das inteligências, já que a
produção e a disseminação do conhecimento dependem, já de início, da forma
28
de organização de um grupo e, em um segundo momento, dos instrumentos de
comunicação de que se dispõe. Isso faria do ciberespaço um “espaço móvel das
interações entre conhecimentos e conhecedores de coletivos inteligentes
desterritorializados” (Lévy, 1998, p. 29), em que não há hierarquias definidas e
as pessoas não são consideradas números ou forças a serem exploradas, mas
seres dotados de competências especiais – o que culminaria em um novo
Humanismo, ou uma nova “hominização”, dada velocidade com a qual a
sociedade se transforma.
Quaisquer que forem as propostas lançadas à ação efetiva em uma
comunidade que age pensando coletivamente, nenhum feito se mostrará
definitivo ou completamente estabilizado. Diferente disso, as obras sempre
estarão abertas à espera de novas informações para aprimorar ou substituir as
anteriores. Assim como na maioria dos processos vigentes no mundo,
reiterações e recapitulações são fundamentais para o acompanhamento da
evolução
de
novos
mecanismos
técnicos,
sociais,
da
espécie,
etc.
Analogamente, as comunidades de software livre estão em constante
movimentação para otimizar a próxima versão de uma distribuição. De maneira
geral, elas se fundamentam na seguinte dinâmica: a princípio, é liberada na
internet a distribuição em versão beta, ou seja, em desenvolvimento, devendo
passar por inúmeros testes para ser implementada. Os vários desenvolvedores
– que, diga-se de passagem, também são usuários – saem à caça de problemas
que poderiam inviabilizar o uso do software, corrigindo bugs, verificando a
estabilidade, testando a eficiência da segurança e até mesmo elaborando
interfaces ou outros modos de facilitar determinado acesso, de tornar mais
simples certa aplicação. Nesse ponto, usuários comuns que não possuem o
conhecimento das linguagens de programação para alterar as linhas de código
do sistema também podem ajudar reportando problemas ou falhas que
encontrarem pela frente17. Depois de todo o trabalho da comunidade, o fruto
17
Isso tudo pode ser exemplificado com um acontecimento recente. O Firefox, programa
mantido pela Mozilla Fundation, é o maior navegador desenvolvido em software livre no mundo.
Sua versão de nº 3 entrou para o Guines Book sob o título de software mais baixado em 24
horas – no dia de seu lançamento, 18 de Junho de 2008, mais de oito milhões de usuários
fizeram o download do programa. Mas, cerca de 5 horas após ser lançado, pesquisadores de
29
desse conjunto de esforços é uma versão segura, estável e pronta para uso de
uma distribuição, que será hospedada em um servidor na rede e estará à
disposição de todos para download. O ciclo se completa logo em seguida,
quando se disponibiliza uma nova versão beta, igualmente passível de
sugestões para seu aprimoramento.
Durante todo o processo, existe, é claro, certa dose de hierarquia entre
os membros colaboradores, uma vez que é necessária a ação de alguns
responsáveis para organizar as ações, implementar ou não alguma proposta de
um colaborador ou então decidir quais os rumos serão tomados pela
comunidade. Mas, como veremos, trata-se de uma hierarquia radicalmente
diferente daquela verificada nas formas tradicionais de organização.
Entendido, pois, o modo como operam as comunidades quanto à
participação de seus membros, passaremos à análise da natureza das práticas
colaborativas.
1.2 A natureza das práticas
Embora já vastamente disseminadas nestes primeiros momentos do
século XXI graças aos mecanismos oferecidos desde o advento das tecnologias
digitais, as práticas colaborativas, bem como seus efeitos e potencialidades,
ainda são alvos de desconfiança ou de incompreensão. Para muitos, faz-se
difícil imaginar que um paradigma econômico e organizacional tão sólido –
sendo fundamentado, desde meados do século XVIII, em hierarquias rígidas,
em planejamentos altamente delineados e, sobretudo, nas forças de mercado –
acabe por ceder lugar paulatinamente a um novo modelo de organização da
segurança da empresa Tipping Point encontraram uma vulnerabilidade na segurança do
navegador. Em questão de horas, o erro foi corrigido e o software continuou a ser
disponibilizado.
30
produção. Até mesmo no mundo do software há incompreensões, parte delas
motivada por interesses comerciais18.
O primeiro passo para elucidar a questão talvez seja compreender que a
mudança preponderante esteja na motivação que rege aqueles que se dispõem
a trabalhar como voluntários. Se os projetos de software livre não se sustentam
por regras mercadológicas, seus colaboradores (incluindo programadores,
tradutores, pessoal de arte, de documentação, entre outros) não desempenham
suas atividades porque isso elas lhe foram impostas, tampouco porque estão
sendo pagos por isso ou receberão gratificações monetárias posteriormente19. A
estrutura dominante por trás dessas práticas reside na possibilidade de colher
os frutos que decorrem da construção de relações sociais em meio ao trabalho
e da liberdade de contribuir com qualquer projeto pelo qual haja interesse sem
se preocupar em pedir permissão para tal. Isso, além de desfavorecer a
existência de relações subordinante-subordinado, fomenta as potencialidades
das ações individuais.
Segundo o pesquisador americano Yochai Benkler (2006), ao formar as
relações sociais, encontram-se interesses mútuos que são capazes de
“completar as necessidades emocionais e psicológicas de companheirismo e
reconhecimento mútuo”. Isso se pode comprovar pela cultura arraigada na
meritocracia que permeia o ambiente dos desenvolvedores de software livre de
diversas comunidades. Os participantes têm seus nomes tanto mais conhecidos
quanto admirados à medida que contribuem com mais linhas de código,
respondem a mais dúvidas em fóruns e listas de discussões, solucionam mais
problemas de programação, ajudam na divulgação da comunidade ou do
software, enfim, colaboram continuamente. Além disso, há a questão – como
18
William Henry Gates, co-fundador da Microsoft Corporation, empresa fabricante do sistema
operacional proprietário Windows, publicou em 1976 uma “carta aberta aos hobbistas” em que
divagava: “O Hardware deve ser pago, mas o software é algo a ser compartilhado. Quem se
importa se as pessoas que trabalharam nele foram pagas?”. Texto disponível em:
http://www.blinkenlights.com/classiccmp/gateswhine.html
19
Fazem-se aqui algumas exceções. Há um grande número de empresas de tecnologia que
incentivam, direta ou indiretamente, a produção de software livre e muitas delas, inclusive,
pagam alguns de seus funcionários para trabalhar como desenvolvedores em determinada
comunidade. Como exemplo, podem-se citar a IBM, a Sun (mantenedora do software Open
Solaris) e a Red Hat (mantenedora da comunidade Fedora).
31
veremos no capítulo referente à cultura hacker – do nível de dificuldade das
tarefas: maiores serão os créditos dados a quem se depara com os desafios
mais intrincados e os enfrenta habilmente.
1.2.1 – O novo modo de produção
Benkler (2006) qualifica esse novo modo de organizar a produção –
fundamentado na descentralização do trabalho, nas vontades pessoais e nas
motivações psicológicas – com a alcunha “commons-based peer production”
que, embora não possa ser traduzida literalmente, refere-se à produção entre
pares (voluntários, colaboradores) baseada naquilo que é público, comum a
todos:
Free software offers a glimpse at a more basic and radical
challenge. It suggests that the networked environment makes
possible a new modality of organizing production: radically
decentralized, collaborative, and nonproprietary; based on sharing
resources and outputs among widely distributed, loosely
connected individuals who cooperate with each other without
relying on either market signals or managerial commands. This is
what I call “commons-based peer production.20
A já referida liberdade de interagir de maneira independente com
projetos e pessoas revela-se a base das eficiências singulares na era da
“produção entre pares”. Uma vez que determinado indivíduo age de acordo
com sua própria vontade, forma-se o ambiente mormente descentralizado, em
que as ações se darão de forma coerente e simbiótica porque os próprios
agentes poderão expressar seus intentos e suas áreas de interesse, assim como
tornarão públicos os modos como pretendem desempenhar suas incumbências.
20
Tradução própria: “O software livre oferece uma oportunidade de vislumbrar um desafio mais
básico e radical. Ele sugere que o ambiente de redes torna possível uma nova modalidade de
organização da produção: radicalmente descentralizada, colaborativa, e não-proprietária;
baseada na partilha de recursos e produtos entre indivíduos amplamente distribuídos e
infimamente conectados que cooperam entre si sem confiar em sinais de mercado ou em
comandos de gerência. Isso é o que chamo de “commons-based peer production”. BENKLER,
Yochai. Wealth of networks. Disponível em: http://www.benkler.org/, acesso em 08.08.2008.
32
Assim, compreender-se-ão os desejos alheios e tornar-se-á possível direcionar
os comportamentos para que se coordenem em torno de um objetivo comum.
Saem de cena, por conseguinte, todas as condições materiais de produção, que
cedem lugar a um modelo cujos agentes primam pela posição social e pelo
reconhecimento diante de seus pares.
É certo que muitos se envolvem nesse tipo de voluntariado simplesmente
porque nele encontram um meio interessante e divertido de passar o tempo. Já
outros preferem fazê-lo porque identificam no software livre muitas das causas
humanas e sociais relativas à liberdade de informação e à inclusão digital,
sentindo-se impelidos a colaborar de algum modo. Há, inclusive, quem o faça
para ajudar os amigos que já estão envolvidos em determinados projetos. De
qualquer maneira, uma vez imersos no espírito e na filosofia que envolvem as
comunidades, os indivíduos entram em um universo no qual passam a vigorar
as formas motivacionais de interação social e reconhecimento pelos méritos
pessoais. Ali, encontram uma vasta divisão de tarefas encaminhadas por várias
equipes, que são dotadas de muitas vozes ativas, de modo que é possível
encaixar em alguma delas seu tipo de habilidade, nível de entendimento e,
naturalmente, área de interesse. Entretanto, em meio a essa polifonia, faz-se
necessário algum método de coordenação.
1.2.2 – Hierarquias e meritocracia
Conforme já mencionado, muito embora existam hierarquias internas em
muitos dos projetos de elaboração de software livre, trata-se de uma forma de
organização
particularmente
distinta
daquela
observada
nas
estruturas
tradicionais. Em primeiro lugar, membros têm a liberdade de escolher em quais
atividades trabalharão de acordo com suas afinidades, com o que lhe dá mais
prazer ou com algo sobre o qual já tem prática ou experiência. Além disso, são
livres para passar a fazer parte de determinado trabalho ou de deixá-lo a
qualquer momento. Há, entretanto, regras morais que os inibem a assumir uma
33
conduta irresponsável frente à comunidade, uma vez que ali se estabelece uma
cultura idealizada na hierarquia meritocrática.
A figura de um líder existe pelo fato de haver a necessidade de
coordenar os múltiplos esforços, facilitando os reconhecimentos mútuos de
interesses para integrar as contribuições dos voluntários tendo em vista o
objetivo comum. Para chegar a tal posto, o comandante teve seus méritos
reconhecidos durante a realização dos trabalhos – pode-se estar falando, por
exemplo, do fundador do projeto inicial ou então de seu colaborador mais
assíduo – e em função deles será respeitado.
Trata-se, no entanto, de uma hierarquia sui generis porque seu líder tem
poder limitado, cabendo-lhe unicamente as determinações de incentivar os
desenvolvedores, persuadindo-os a continuar colaborando, e de decidir quais
contribuições serão definitivamente aceitas e incrementadas ao software. Mas,
caso alguma resolução se faça equivocada aos olhos da comunidade, nada
impede que os membros abandonem o projeto e seu líder, passando a
trabalhar em um software independente com base no mesmo código21 –
lembrando que as licenças de registro dão margem a isso –, construindo uma
nova comunidade que satisfaça seus novos anseios. Se, por um lado, essa
possibilidade fragmenta muitos projetos e transforma outros tantos em idéias
descontinuadas, também é capaz de asseverar a liberdade e a democracia
nesse modo de produção.
Porventura o melhor exemplo para tratar da questão hierárquica nas
práticas colaborativas esteja no desenvolvimento do próprio kernel do Linux.
Desde o início das atividades, quando foram publicadas as primeiras linhas de
código em uma lista de discussão da internet, Linus Torvalds, o fundador do
projeto, esteve à frente dos trabalhos – e assim permanece até os dias atuais.
Desde sempre, Torvalds decidiu quais implementações estariam presentes nas
versões seguintes do kernel, bem como desempenhou brilhantemente a tarefa
de engendrar o trabalho dos desenvolvedores, ouvindo-os sempre que se fazia
21
Trata-se de um fork (tradução literal: ramificação): software que tem mesma base de códigos
de um projeto já existente.
34
necessário. Com isso, e sob um clima descontraído e amistoso, instaurou um
ritmo de produção incrivelmente intenso, com colaboradores cada vez mais
motivados, como apontou Eric S. Raymond:
Linus estava mantendo seus usuários/hackers constantemente
estimulados e recompensados – estimulados pela perspectiva de
estar tendo um pouco de ação satisfatória do ego, recompensados
pela visão do constante (até mesmo diário) melhoramento do seu
trabalho.22
1.2.3 – A nova Plataforma: redes digitais
Mesmo antes do advento das redes digitais, que tanto condicionam as
bases do denominado mundo pós-moderno, é certo que se faziam notáveis
muitas práticas colaborativas, bem como havia crescentes índices de atividades
que se sustentavam pelo espírito da voluntariedade. Qual seriam, então, os
fatores sui generis trazidos pelas novas tecnologias no que tange aos atos de
colaboração exercidos por diversos indivíduos?
Sem dúvidas, as plataformas físicas (ou hardwares), que também
ganham aprimoramentos constantes e ininterruptos por parte das empresas de
tecnologia, estão cada vez mais atuantes nas sociedades e se provaram
capazes de potencializar as ações dos homens, permitindo-lhes ampliar os
sentidos, coletar novas informações e, sobretudo, ter certa voz ativa,
comunicar-se. O próprio sentido da comunicação ganha mais força ao passo
que indivíduos também se mostram agentes portadores de informações e
divulgadores de conhecimentos, ou seja, o ciclo comunicacional se completa
quando existe (ao menos) uma possibilidade de estabelecer diálogos,
considerando respostas e experiências dos seres. Aliados a isso, devem-se citar
o encurtamento das distâncias e a otimização do tempo. No ciberespaço, não
22
RAYMOND, Eric. “A Catedral e o Bazar”. Disponível em:
http://www.cultura.gov.br/foruns_de_cultura/cultura_digital/artigos/index.php?p=12650&more
=1&c=1&pb=1, acesso em 14.03.2008
35
existem espaços demarcados e privados, nem tampouco fronteiras definidas,
distorcendo
as
noções
de
território
e
dinamizando
a
velocidade
da
comunicação.
Se as novas tecnologias assim se caracterizam, tanto são impulsionadas
em função da baixa barreira de entrada que impõem àqueles que delas querem
usufruir. No tempo em que computadores estão sendo barateados e conexões
em rede se fazem mais rápidas e eficazes, a produção entre pares é
engendrada pelos mecanismos técnicos e grandes projetos acabam por se
tornar mais complexos, ganhando maior âmbito na escala e praticidade na
realização. Os custos para se manter um weblog, uma página na internet ou
um servidor não são altos, ou seja, o capital físico requerido para ações desse
gênero é ínfimo. Em nações mais desenvolvidas, tecnologias da informação
ganham caráter de ubiqüidade.
Pode-se argumentar, entretanto, que computadores, modems e cabos
compõem uma barreira de entrada considerável a populações cujos índices de
miserabilidade denotam que muitos ainda não têm sequer o que comer e,
portanto, não há como falar em aquisição de aparatos tecnológicos.
Primeiramente, convém considerar que, quando se fala em pequena barreira de
entrada, colocam-se em análise comparativa os elementos necessários para se
usar das mídias anteriores à internet. Levando em conta o preço dos aparatos
técnicos indispensáveis à abertura e à manutenção de um jornal impresso
diário, de uma emissora de rádio ou de uma rede de televisão, as barreiras de
entrada das novas tecnologias se revelam irrisórias. Em segundo lugar,
identifica-se aqui um círculo vicioso: se indivíduos não se beneficiam das novas
mídias porque são miseráveis, a falta de acesso aos computadores conectados
à internet contribui para agravar a situação de pobreza. Em outras palavras,
exclusão digital leva à exclusão social em uma sociedade tecnodependente.
Desse modo, acredita-se que, na elaboração de políticas sociais, é preciso
conceber a necessidade de levar à população desfavorecida o acesso à
informação.
36
Os projetos realizados on-line por meio das práticas colaborativas são
plausíveis, portanto, em razão (entre outros) da pequena barreira de entrada.
Conforme explica Benkler (2006), o modo de produção fundamentado na
descentralização do trabalho, nas relações sociais, no compartilhamento de
experiências e na voluntariedade não se faria viável em projetos cujos capitais
iniciais requeridos para a realização das tarefas fossem elevados:
When use of larger-scale physical capital goods is a threshold
requirement of effective action, we should not expect to see
widespread reliance on decentralized sharing as a standard
modality of production. Industrial mass-manufacture of
automobiles, steel, or plastic toys, for example, is not the sort of
thing that is likely to be produced on a social-sharing basis,
because of the capital constraints.23
Outro fator favorecedor à colaboração on-line está nos novos aspectos
lógicos (isto é, relativos ao código) que se destacam nas redes. A série de
mecanismos em voga – tais como o sistema wiki, as list groups, os fóruns, etc –
são dotados de uma vasta gama de ferramentas colaborativas que possibilitam
coletar os esforços conjuntos de indivíduos dispersos em diversos cantos do
planeta, valorizando suas inteligências e sintonizando seus trabalhos. Essas
ferramentas abrem margem, inclusive, a julgamentos entre pares, o que
viabiliza uma série de realizações sobre os bens comuns.
Além disso, é possível planejar as tarefas de forma a realizar aquilo que
Benkler (2006) chama de “modularização” do trabalho. Em vez de levar à cena
uma grande equipe para desempenhar todas as etapas de um grande projeto,
as ferramentas colaborativas permitem que todo o trabalho seja quebrado em
vários passos, que se transformam em pequenos módulos independentes.
23
Tradução própria: “Quando o uso de bens de capital físico em grande escala é uma exigência
inicial para uma ação efetiva, nós não deveríamos confiar no compartilhamento descentralizado
como uma modalidade-padrão de produção. A manufatura industrial de massa de automóveis,
da roda, ou de brinquedos de plástico, por exemplo, não é o tipo de coisa apropriada para ser
produzida em bases sociais-compartilhadas, em razão das restrições de capital.”. BENKLER,
Yochai. Wealth of networks. Disponível em: http://www.benkler.org/, acesso em 08.08.2008.
37
Dessa forma, é possível que vários indivíduos desempenhem, em pouco tempo,
uma pequena parte de determinada tarefa, independentemente do andamento
geral do projeto. Além de ampliar a autoridade de cada colaborador, o modelo
sugere uma flexibilidade digna de nota, já que exige pouco tempo para sua
realização e pode ser feito em qualquer lugar em que haja um computador
conectado à internet. Se são despendidos muito tempo e dinheiro para se
escrever uma enciclopédia em vários idiomas com uma multiplicidade de
verbetes, melhor permitir que uma comunidade de voluntários os escreva
separadamente, de acordo com sua área de interesse e disponibilidade. Se
elaborar um sistema operacional completo é uma tarefa complexa e laboriosa,
nada mais sábio que dividir o trabalho em espécies de módulos (por exemplo:
documentação, arte, tradução, desenvolvimento, marketing), disponibilizando
todo o código para que uma rede de colaboradores que encontrarão serviços
que completem suas vontades e competências e entrarão na sintonia de uma
comunidade.
Por último, pode-se citar outro fator capaz de fomentar as práticas
colaborativas nas comunidades de software livre: trata-se da GPL (General
Public Licence), a licença sob a qual são registradas as distribuições. Como dito,
a licença assegura que ninguém possa se apropriar dos softwares, tornando-os
proprietários. Isso, é claro, valoriza o esforço dos colaboradores, que sabem
que suas capacidades foram empregadas em um bem público.
Assim, tendo em vista que a maior enciclopédia do mundo é mantida por
meio de práticas colaborativas e que a quase totalidade dos grandes portais da
internet usam software livre em seus servidores24, sustenta-se a afirmação de
que produção entre pares tem-se revelado uma fórmula de sucesso na
sociedade de redes.
24
Há vários outros exemplos que atestam o sucesso da produção entre pares (peer production
ou mesmo peering). Podemos ainda citar: o Youtube, o Slashdot, o Digg, a licença Creative
Commons etc. Em todos eles, qualquer pessoa pode fazer sua contribuição, que tem a
relevância e qualidade comprovada ou não pelos próprios pares.
38
2. Do hackerismo
No dia 20 de maio de 2008, a manchete da editoria de Tecnologia do
jornal O Estado de S. Paulo (versão on-line) era “Hacker brasileiro relata
carreira de crimes on-line”. Ao pesquisar por outros noticiários, observam-se
colocações semelhantes: “Preso hacker mais procurado do país” (Jornal
cearense O Povo, 07/09/2007), “Hacker de SC preso por dar golpe bancário”
(rádio StyloFM, 18/08/2007) e “Hackers bloqueiam site do senado mexicano”
(portal IG, 09/05/2008).
A visão da sociedade em geral sobre a figura do hacker é amplamente
corroborada por diversos meios de comunicação desde a década de 1980,
quando a palavra chegou de fato à mídia: tratava-se a de um ciberpirata,
aquele que rouba informações sigilosas, destrói sistemas, altera dados, enfim,
pratica os mais variados crimes por meio de um computador conectado à
internet. A despeito disso, segundo o Jargon Files25, hacker é “uma pessoa que
tem prazer em explorar os detalhes de sistemas progamáveis e em como
estender suas capacidades, em oposição à maioria dos usuários, que preferem
aprender apenas o mínimo necessário”. Além disso, é alguém que “programa
entusiasticamente (até mesmo obsessivamente) ou que prefere programar em
vez de teorizar sobre programação”.
Em suma, hackers são indivíduos ávidos por conhecimento que
encontram nos emaranhados de códigos da atividade de programar softwares
uma satisfação arrebatadora. Relacionam-se em comunidades on-line para
produzir programas de computador e disponibilizá-los gratuitamente na rede,
pois acreditam que o acesso à informação deve ser livre e irrestrito. São
partidários de uma ética singular, que acaba por se inserir, assim como todos
os outros atributos tratados neste capítulo, em uma cultura própria – a cultura
25
Trata-se de um repositório de gírias hackers iniciado em 1975 por Raphael Finkel na
Universidade de Stanford. O Jargon Files é revisto periodicamente.
39
hacker. Dotados de comportamento lúdico, amistoso e criativo, encaram as
novas tecnologias como meios de comunicação eficazes no combate à
tecnocracia, àqueles que se julgam detentores de informação ou aos
controladores das camadas físicas que tentam estabelecer regras e minar a
privacidade na internet. Se a própria história da microinformática traz consigo a
noção de democratização de acessos, hackers lutam por isso explorando ao
máximo as potencialidades das máquinas.
No universo hacker, segundo Lemos (2003), os computadores são como
instrumento de comunhão e o lugar se socialização é o próprio ciberespaço. Há,
no entanto, uma série de encontros físicos igualmente importantes, nos quais
se compartilham dicas técnicas, códigos, novos programas, jogos e, sobretudo,
histórias. É a chance de muitos hackers se conhecerem, já que passam um
longo tempo trocando informações e trabalhando em conjunto com colegas
com quem nunca conversaram pessoalmente. Porventura a maior dessas
reuniões seja o FISL (Fórum Internacional do Software Livre), evento realizado
no Brasil já há nove anos na cidade de Porto Alegre-RS, em que há, além de
um grande encontro entre várias as comunidades, uma confraternização entre
desenvolvedores de diversas partes do país e alguns do exterior. Além do FISL,
existem eventos promovidos separadamente pelas comunidades com o intuito
de divulgar sua distribuição, disseminando valores e, se possível, conquistando
novos membros.
Compreender o ideário hacker, um dos grandes emblemas da atitude
cyberpunk que permeia a cibercultura, é fundamental para analisar os
progressos técnicos e a evolução das relações tecnologia-sociedade pelos quais
o mundo passou em sua história contemporânea. Afinal, os hackers tiveram
participação direta na criação da internet e dos computadores pessoais, além
de criarem softwares – dos quais a sociedade em rede é essencialmente
dependente. Foram eles, inclusive, os primeiros responsáveis por fomentar a
democratização das tecnologias dos primeiros computadores. No caso das
comunidades de software livre estudadas, o hacker se verifica muito além de
um elemento comum a todas: trata-se do ícone patente que a elas dá vida e
40
nelas se estabelece como um inequívoco promotor. Assim, trataremos de
alguns aspectos relativos ao hackerismo.
Quanto aos cibercriminosos, impõe-se sobre eles a alcunha crackers26
(criada em 1985 pelos próprios hackers a fim de combater o mau uso do termo
pela imprensa), considerando ainda que não possuem nenhum tipo de
reconhecimento positivo diante dos verdadeiros hackers.
2.1 Histórico
Pode-se falar, a princípio, em quatro gerações de hackers. A primeira
delas, que se estabeleceu nos anos 1960, era constituída por jovens estudantes
do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e foi a criadora da designação
“hacker”. Àquela época, desenvolvedores elaboravam os softwares nas
primeiras grandes máquinas – ou então, como em muitos casos, sem contato
direto com os computadores, enviando as linhas de código aos administradores
do
sistema,
que
implementavam
as
modificações
–
e
acreditavam
fundamentalmente na liberdade de informação e no acesso irrestrito às
tecnologias.
Nos anos 1970, enquanto se assistia a um princípio de disseminação da
microinformática (o primeiro computador pessoal data de 1976) em colégios,
universidades, instituições e nas casas, hackers lutavam para livrar as
informações lógicas e os computadores dos cuidados exclusivos de militares e
indústrias. É naquele contexto que despontaram Steve Jobs e Steve Wozniak,
fundadores da empresa Apple e autênticos representantes de uma segunda
26
O Jargon Files traz outras várias terminologias. Entre eles, estão: script kiddies (jovens que
se usam de programas prontos disponíveis na rede para efetuar ataques informáticos. Não se
preocupam em desenvolver nada, apenas pegar o atalho do que está pronto), phreakers
(infiltram-se nas redes telefônicas para fazer ligação ou acessar a Internet sem pagar),
hacktivists (fazem do hacking uma atividade de cunho político, lutando por causas sociais),
lamers (crackers inexperientes – conhecem pouco do assunto, mas se fazem passar por
especialistas), warez (dedicam-se à pirataria de software, quebrando criptografias de proteção),
black hat (crackers de fato – quebram sistemas e alteram ou destroem dados), white hat
(hackers especialistas em medidas de segurança), gray hat (fazem uso de habilidades crackers,
mas agem conforme a lei – muitos fazem testes para segurança), entre outros.
41
geração de hackers. Jobs, Wozniak e alguns de seus contemporâneos tiveram
como objetivo a implementação da open architecture (arquitetura aberta) nas
máquinas, tornando-as mais interativas ao passo que se adicionavam novos
hardwares.
A terceira geração, por sua vez, afirmou-se nos anos 1980 e era
composta por jovens que tiveram seus primeiros computadores ainda na
adolescência. Conforme descobriam as funcionalidades do novo brinquedo,
trocavam idéias e informações com seus colegas, o que resultou em uma
multiplicação de tribos hackers por todo o mundo no período. Já a quarta
geração é a da definitiva popularização do acesso aos computadores pessoais
ocorrida na década de 1990, e ainda comporta a atual prática do hacking.
Interessante notar que, justamente nos anos 1990, surgiram as
primeiras interfaces gráficas para computadores. Nos anos anteriores, qualquer
função a ser realizada nas máquinas era feita através de linhas de comando,
em formato de texto – o que, além de despender mais tempo, causava
problemas a usuários iniciantes ou inaptos. Não raro era preciso digitar duas
linhas de comandos para abrir um simples programa de banco de dados, por
exemplo. Assim, com o lançamento do Windows 4.0 (1995) e de interfaces para
Linux, tais quais KDE (1995) e GNOME (1996), as janelas, menus e barras
passaram a compor as novas máquinas. E, embora muitos hackers abominem
as interfaces pelo fato de elas limitarem as ações dos usuários (ao contrário das
linhas de código, que são completamente editáveis no caso do software livre),
outra grande parte se dispôs a desenvolvê-las a fim de fomentar a
democratização dos sistemas e a inclusão digital. Hoje, como se sabe, a maioria
dos softwares destinados a usuários finais, sejam eles livres ou proprietários,
trazem interfaces muito elaboradas, frutos do aumento constante da
capacidade de processamento das máquinas.
42
2.2 Motivações
No capítulo referente às práticas colaborativas, esboçaram-se algumas
motivações adotadas pelos agentes envolvidos no universo da produção entre
pares. Aqui se pretende traçar mais algumas breves observações verificadas
especificamente no cotidiano hacker das comunidades.
Segundo Pekka Himanen (2001), como princípio geral, aponta-se que
hackers programam principalmente porque os desafios da programação são
interessantes. A atividade de se deparar com problemas em códigos cada vez
mais intricados e improváveis provoca certo fascínio, dado que gera uma busca
incessante pela melhor solução, por sanar curiosidades. Tentativas de novas
codificações, pesquisas em fóruns, trocas de informações com outros membros
da comunidade, novas tentativas... Tudo isso é capaz de manter um hacker
acordado durante horas em frente à tela do computador na busca por uma
resposta ou na criação de determinada ferramenta. Eric Raymond, em “Como
se tornar um hacker”, lembra que “o mundo está repleto de problemas
fascinantes esperando para serem resolvidos”:
Ser hacker é muito divertido, mas é um tipo de diversão que
necessita de muito esforço. Para haver esforço é necessário
motivação. Atletas de sucesso retiram sua motivação de uma
espécie de prazer físico em trabalhar seus corpos, em tentar
ultrapassar seus próprios limites físicos. Analogamente, para ser
um hacker você precisa ter uma emoção básica em resolver
problemas, afiar suas habilidades e exercitar sua inteligência27
É essa emoção básica que se configura como uma verdadeira paixão, em
grande parte proporcionada por um trabalho que carrega uma combinação de
trabalho sério e árduo com grandes doses de uma postura lúdica, alegre,
inspiradora e irreverente, como veremos adiante. Tais motivações combinam-se
com o prazer oriundo das relações sociais estabelecidas nas comunidades on27
Trecho do texto “Como se tornar um hacker”. Disponível em
“www.linux.ime.usp.br/~rcaetano/docs/hacker-howto-pt.html”
43
line, caracterizadas pela cultura meritocrática, como vimos. O ambiente de
troca de informações e de trabalho em conjunto é também um espaço
descentralizado suscetível a brincadeiras e, sobretudo, a um tom amistoso
entre os colaboradores. “Faz dois anos que minha vida é faculdade, comida e
zoar com aqueles caras”, disse um colaborador em uma conversa informal
durante o FISL 2008, referindo-se aos demais participantes de sua comunidade.
2.3 Ética hacker
Talvez uma das melhores formas de se traçar as características gerais da
cultura hacker seja expor como se dão as particularidades de sua ética, que,
segundo Himanen (2001), pode ser desmembrada em três aspectos: ética do
trabalho, ética do dinheiro e ética da rede. Como se verá, os hackers se
fundamentam em uma nova postura diante de maneiras tradicionais de se lidar
com essas questões. No entanto, antes de as expor, convém pontuar que,
muito embora determinadas atitudes aconteçam no âmbito específico de um
universo, vários autores sustentam a posição de que a cultura hacker,
juntamente com seus atributos, especificidades, éticas e relações, pode ser
estendida a diferentes níveis da sociedade, indo muito além do que se
denomina “hackerismo de computador”. Compreender-se-á melhor ao longo
deste item.
2.3.1 – Ética do trabalho
A ética hacker do trabalho configura-se em uma oposição pontual à
“ética protestante do trabalho”, delineada pelo sociólogo alemão Max Weber no
início do século XX. Himanen (2001) assevera que esta última teve origem nos
mosteiros, onde não se devia questionar sobre a natureza de qualquer trabalho,
apenas fazê-lo. Entre as regras monásticas, havia cronogramas rígidos com
todas tarefas a serem desempenhadas com muita disciplina e regularidade
durante o dia pelos trabalhadores, não havendo espaço para brincadeiras ou
44
demais descontrações. Ocorre que, após a Reforma Protestante do século XVI,
essa filosofia transcendeu os muros dos mosteiros e se disseminou pelos cantos
do planeta como a forma correta (se não a única) de se trabalhar, sendo uma
das bases condicionantes para o desenvolvimento do chamado “espírito do
Capitalismo”. Assim, características como a otimização dos processos, do tempo
e do espaço elevaram o trabalho à posição de elemento mais importante da
vida das pessoas.
Já a natureza do padrão de trabalho dos hackers se assemelha (mas não
se iguala) à era pré-protestante, em que a ação de trabalhar não ocupava o
centro das atenções, chegando, inclusive, ao ponto de que um trabalho árduo
poderia representar uma punição. O tempo não era medido precisamente,
assim como não o era o vilarejo em que vivia o trabalhador. De maneira
semelhante, hackers não seguem padrões rígidos de horários. Muitos possuem
certa liberdade para organizar seu tempo, que pode ser otimizado a fim de
sobrarem mais horas ociosas para as brincadeiras – o próprio hackerismo pode
ser encarado, assim, como um misto de trabalho e lazer. Consideram, ainda,
que as pressões deflagradas pela rigidez da demarcação do relógio minam a
criatividade da qual dependem para realizar seu trabalho.
Himanen (2001) sugere que essa relação com o tempo, assim como
outros pontos da ética hacker, tenha origem na academia:
Historicamente, a liberdade para organizar o próprio tempo tem
um precursor na academia, que sempre a defendeu. Platão definiu
a relação da academia com o tempo dizendo que um indivíduo
livre tem skhole, ou seja, tempo de sobra. Quando fala, o faz de
forma pausada e baixa, e seu tempo lhe pertence. Mas skhole não
significa apenas “ter tempo”, mas também uma certa relação com
o tempo: uma pessoa que vive uma vida acadêmica poderia
organizar seu tempo por si só – o indivíduo poderia combinar
trabalho e lazer da forma que melhor lhe conviesse. Embora uma
pessoa livre pudesse se comprometer a realizar alguns trabalhos,
ninguém seria dono de seu tempo. Associava-se a falta de controle
sobre seu próprio tempo – askholia – à prisão (cativeiro)
(Himanen, 2001, p. 42).
45
Desse modo, hackers julgam-se capazes de organizar seu próprio tempo
sem a necessidade de supervisores ou gerentes, mas sem se verem a todo
momento em um grande jogo divertido e irresponsável. Para tornar concretas
as suas paixões, sabem que é preciso desempenhar trabalho sério e árduo.
Trabalho esse que se faz valer, primeiramente, pela própria paixão e, em
segundo lugar, pelo significado maior do objetivo final.
2.3.2 – Ética do dinheiro
A ética protestante teve como princípio de que o maior bem que se
poderia atingir era simplesmente ganhar dinheiro, sendo o trabalho apenas um
meio para se alcançar tal objetivo. Na nova economia mundial estampada nos
cenários contemporâneos, o que se vê é uma maior autonomia do trabalho,
que, no entanto, ainda é altamente subordinado ao dinheiro, e os mercados
ainda regem grande parte da sociedade.
Associada ao dinheiro está a idéia de propriedade, que, embora tenha
sido a idéia central do velho capitalismo, mantém-se vigorosamente presente
dos meandros da nova economia mundial, sobretudo no que diz respeito ao
campo da informação. Hoje, grandes corporações geram riqueza à medida que
detêm informações – seja por meio de direitos autorais, patentes ou contratos
de sigilo. No que tange aos softwares proprietários, todo o seu código-fonte é
mantido a sete chaves pelas empresas desenvolvedoras, restando aos
consumidores a possibilidade de adquirir uma licença de uso – ou seja, não se
está comprando um produto, mas apenas uma autorização para usá-lo.
Como vimos, a postura dos hackers se pauta pelo compartilhamento
irrestrito de informações, em um ambiente de trabalho descentralizado que
favoreça a livre iniciativa e a crítica, a criatividade e a auto-correção. O próprio
compartilhamento é encarado como um bem poderoso pelas comunidades –
atitude que tem precedentes, como observa Himanen (2001), na ética
acadêmica ou científica, em que o conhecimento obtido como resultado de
qualquer pesquisa é livremente compartilhado em seu meio. Analogamente, no
46
hackerismo o resultado da criatividade de inúmeros desenvolvedores é
distribuído livremente.
De modo geral, pode-se dizer que hackers são contrários à afirmação
social pelo dinheiro, que, ao contrário do que acontece em outros setores da
sociedade, não é determinante para a realização dos projetos28. Ao contrário,
consoante o que se afirmou no capítulo anterior, as atividades dos
colaboradores se fundamentam nas relações sociais, isto é, na necessidade de
pertencer a um determinado grupo e, outrossim, no reconhecimento do valor
de seu trabalho diante dos demais membros. Dessa maneira, levarão consigo “a
paixão e o desejo de criar, juntos, algo que seja valioso em termos sociais”
(Himanen, 2001, p. 58) – igualmente relevante para a comunidade em que se
inserem.
2.3.3 – Ética da rede
A ética da rede relaciona-se ao modo como hackers, de maneira geral,
encaram a internet, a rede e as tecnologias digitais.
O espírito que sustenta as bases dessa ética liga-se à busca pela
democratização das tecnologias a fim de disseminar ao máximo as informações,
garantir voz e maior liberdade de expressão, bem como cooperar na promoção
das inclusões social e digital dos indivíduos. Nesse aspecto, hackers lutam,
inclusive, por privacidade e liberdade no ciberespaço, tendo como alvos de
crítica e de combate os donos da chamada camada física da internet – no caso,
as grandes empresas de telecomunicações que fornecem os acessos à conexão
em rede.
28
Assim como foi dito em outros pontos deste trabalho, faz-se aqui uma caracterização geral,
correndo o risco de ser, em muitos aspectos, reducionista e, sobretudo, caricatural. A intenção,
no entanto, é descrever em linhas gerais as formas de conduta que moveram o trabalho de
inúmeros colaboradores ao tornarem possível, por exemplo, projetos como a Internet e o
sistema operacional Linux. Evidentemente, muitos hackers estão a serviços de empresas e não
vêem o menor problema em ganhar dinheiro realizando seu trabalho honestamente, seja em
“empresas livres” (que trabalham com software livre) ou não.
47
Tais valores surgiram, como é de se imaginar, juntamente com o próprio
hackerismo nos anos 1960 e, apesar de ganharem força com a propagação da
microinformática – que, por si só, já tem efeito democratizante –,
consolidaram-se definitivamente com o advento da internet, criada com base
nos princípios dos hackers. Entre os grandes defendores contemporâneos desse
ideário, podem-se citar Mitch Kapor e John Perry Barlow que, juntos com John
Gilmore, criaram a Eletronic Frontier Foundation (EFF), organização sem fins
lucrativos cujo objetivo preponderante é asseverar a liberdade de expressão da
rede. É de autoria de Barlow, diga-se, a notável Declaração de Independência
do Ciberespaço, publicado (na internet, evidentemente) em 1995. Nele, afirmase:
Governos do Mundo Industrial, vocês, gigantes aborrecidos de
carne e aço, eu venho do espaço cibernético, o novo lar da Mente.
Em nome do futuro, eu peço a vocês do passado que nos deixem
em paz. Vocês não são bem-vindos entre nós. Vocês não têm a
independência que nos une. Os governos derivam seu justo poder
a partir do consenso dos governados. Vocês não solicitaram ou
receberam os nossos. Não convidamos vocês. Vocês não vêm do
espaço cibernético, o novo lar da Mente. [...] Vocês não nos
conhecem, muito menos conhecem nosso mundo. O espaço
cibernético não se limita a suas fronteiras. Não pensem que vocês
podem construí-lo, como se fosse um projeto de construção
pública. Vocês não podem. Isso é um ato da natureza e cresce por
si próprio por meio de nossas ações coletivas. Estamos criando um
mundo onde qualquer um em qualquer lugar poderá expressar
suas opiniões, não importando quão singular, sem temer que seja
coagido ao silêncio ou conformidade. [...] Precisamos nos declarar
virtualmente imunes de sua soberania, mesmo se continuarmos a
consentir suas regras sobre nós. Nos espalharemos pelo mundo
para que ninguém consiga aprisionar nossos pensamentos.
Criaremos a civilização da Mente no espaço cibernético. Ela poderá
ser mais humana e justa do que o mundo que vocês governantes
fizeram antes29.
Reações desse gênero são a quintessência da ética da rede e se revelam
uma oposição a algumas empresas que, depois de se mostrarem altamente
29
Disponível em: http://www.cultura.gov.br/site/2006/10/23/declaracao-de-independencia-dociberespaco/, acesso em Agosto/2008.
48
interessadas pelo potencial emanado pela internet, decidiram tentar apropriarse dela para atingir seu público. A resposta não demorou a chegar. Muitos
hackers juntaram-se em grupos e organizações para fazer frente a isso,
desenvolvendo, por exemplo, softwares para criptografar mensagens que
transitam no ciberespaço, intencionando livrá-las da vigilância de agências,
governos e serviços de inteligência. Para eles, o ambiente de redes não deve
possuir nenhum tipo de proprietário ou responsável, já que, na condição de
meio descentralizado e igualitário, a internet precisa continuar livre, assim como
a maioria dos protocolos que a permeiam – protocolos esses que não foram
arquitetados e produzidos nos escritórios de uma grande corporação, mas
através da ação colaborativa de inúmeros voluntários. É desse modo que
“hackers conscientes chamam a atenção para o fato de que a tecnologia de
codificação não deve apenas satisfazer às necessidades dos governos e
empresas, mas também os indivíduos contra os governos e empresas”
(Himanen, 2001, p. 86).
2.4 Universo(s) hacker
Conforme se apontou, muitos autores – entre os citados, Pekka Himanen
e Eric S. Raymond – identificam uma possível extensão da cultura hacker a
outros níveis da sociedade. Em face do que já se abordou aqui sobre o assunto,
podem-se traçar algumas breves observações.
Um profissional “dotado de cultura hacker” é um indivíduo que tem
paixão e fascínio por seu trabalho, seja ele simples ou complexo; desempenhao com certa dose produtiva de obsessão e acredita que o melhor modo de
gerar conhecimento consiste no compartilhamento de quaisquer espécies de
informações com seus colegas, somando todas as habilidades ao formar uma
grande inteligência coletiva capaz de se autocompletar quando necessário;
realiza suas tarefas com certa descontração e não as dissocia completamente
do lazer, pois encontra nelas uma mágica própria que diverte, encanta e
apaixona, já que, assim, sua criatividade pode fluir melhor; prima pela
49
liberdade e busca um entendimento que vai além da superficialidade que lhe é
proposta. Além disso, é capaz de estabelecer uma relação própria com o
tempo, de maneira a desafiar os preceitos arraigados na ética protestante que
se fazem dominantes na sociedade contemporânea.
É possível, portanto, encontrar hackers, os de fato e os por extensão,
entre vários níveis da sociedade, sejam eles os mais elevados ou humildes,
intelectualizados ou desinstruídos – por exemplo, na academia, no meio
artístico, entre artesãos, profissionais da informação, etc. Afinal, “a ética dos
hackers não é compreendida apenas como a ética dos hackers de
computadores, mas como um desafio global de modo geral” (Himanen, 2001,
p. 30).
50
MÓDULO
III
51
Das comunidades
Antes de dar início às análises de fato das comunidades, devem-se traçar
algumas linhas a respeito do critério utilizado para a escolha de quatro
distribuições em meio a uma vastidão delas – segundo o site Distro Watch
(http://www.distrowatch.com), um dos maiores catálogos de distribuições
Linux, funcionando como um observatório e trazendo informações sobre elas,
suas atualizações e lançamentos –, existem mais de 1000 distribuições em
atividade por todo o mundo30.
Convém observar, inclusive, que esse número elevado é alvo constante
de controvérsias em meio ao universo do Software Livre. Muitas pessoas (entre
elas, membros-colaboradores ativos de distribuições ou então meros usuários)
argumentam que essa diversidade é positiva e reflete o próprio espírito do
movimento, que é calcado na liberdade de expressão e de informação, sendo
que duas das liberdades necessárias para que um software seja considerado
livre são justamente a de cópia e a de modificação – ou adaptação às próprias
necessidades. Já outros acreditam que isso não diz respeito à liberdade: tratase de uma questão de união de esforços. A multiplicidade de distribuições,
consideram estes, acaba por trazer sistemas muito semelhantes (inclusive com
os mesmos bugs). O ideal seria, portanto, que mais pessoas se concentrassem
na colaboração de menos distribuições, já que assim seria possível manter um
foco coerente: a excelência -- mesmo que, para isso, elas sofressem uma
redução em seu número. Trata-se da velha história quantidade não é
qualidade.
Como, então, estabelecer um critério plausível para selecionar quatro
distribuições a fim de analisá-las? Em primeiro lugar, buscou-se trabalhar com
comunidades cuja representatividade no Brasil fosse alta. Entende-se por “alta”
30
Acesso em agosto de 2008.
52
não apenas um grande número, mas grande participação e envolvimento.
Assim, pode-se afirmar que cada uma das comunidades estudadas, com seus
respectivos traços peculiares, atende a esse requisito31.
Outra preocupação consistiu na escolha de comunidades de naturezas
divergentes a fim de realizar, antes de tudo, uma análise comparativa.
Evidentemente, embora sejam de mesmo núcleo (GNU/LINUX), cada qual terá
suas especificidades técnicas, afinal, trata-se de um sistema altamente
personalizável. Contudo, trataremos aqui de aspectos relativos a sua natureza,
algo que remete à estrutura de fundação, consolidação e funcionamento das
comunidades. Dessa forma, ao passo que Ubuntu e Fedora fazem-se
distribuições comerciais – isto é, são mantidas por grandes empresas que dão
apoio
aos
trabalhos
prestados
pelos
colaboradores
das
respectivas
comunidades –, Slackware e Debian são os maiores exemplos de distribuições
não-comerciais, nas quais pesam apenas a força das intensas atividades de
seus voluntários. Por vezes, isso faz considerável diferença e, em determinados
momentos, as lógicas se mostram semelhantes, como veremos.
Além disso, entre os usuários dessas distribuições, foi possível encontrar
peritos e leigos, iniciantes e iniciados. A começar pelo Ubuntu, em que os
novatos costumeiramente sentem-se mais à vontade, até chegar ao Slackware,
no qual os mais experientes se comprazem aprendendo mais a cada dia, essa
diversidade possibilitou uma melhor compreensão dos elementos próprios e
extrínsecos de cada comunidade.
Nas passagens que se seguem, fez-se, em um primeiro momento, um
breve histórico dos grupos, dos projetos e das distribuições. Ao final,
levantaram-se alguns tópicos para uma análise comparativa, em que são
31
Ainda sobre o número de usuários: muito se tentou, ao longo deste trabalho, quantificar
usuários, colaboradores, desenvolvedores etc. Isso acabou por revelar-se, no entanto, uma
tarefa extremamente complexa, por vários motivos. Em primeiro lugar, simplesmente não há
um controle do número de usuários. Os softwares estão inteiramente disponíveis para
download e qualquer um pode fazê-lo – não é preciso preencher cadastros nem se registrar.
Igualmente difícil é quantificar os colaboradores, uma vez que qualquer um pode sê-lo a
qualquer momento. O simples fato de divulgar determinada distribuição para um amigo já é
considerado uma grande forma de colaboração pelas comunidades. Assim sendo, são poucas as
vezes em que se falou sobre números neste módulo.
53
explorados elementos considerados chave para compreender a dinâmica interna
de uma comunidade de software livre – mesmo sob os inequívocos riscos de
incorrer na superficialidade inócua, dados o pouco tempo de pesquisa e o alto
volume de conteúdo a ser levado em conta.
54
1. Breve Histórico
1.1 Slackware Linux
“Só Slackware é Linux e Patrick Volkerding, o seu profeta”. A frase,
encontrada em muitos fóruns, listas de discussão, comunidades do Orkut, blogs
e páginas pessoais de usuários, descreve o espírito que está solenemente
incutido na mente de grande parte de seus colaboradores.
Slackware é a mais antiga distribuição Linux mantida por uma
comunidade e uma das primeiras a serem lançadas, sendo que sua criação data
de 16 de Julho de 1993, quando o estadunidense Patrick Volkerding graduou-se
em Ciências da Computação pela Universidade Estadual de Minnesota e lançou
a versão 1.0.0. Volkerding é um mito para usuários e desenvolvedores da
distribuição (slackers), que se referem a ele como “o homem” (the man) e
BDFL (Benevolent Dictator For Life, ou Ditador Vitalício Benevolente). Tais
alcunhas, assim como a frase-tema que inicia este tópico, sintetizam todo o
respeito e admiração que Volkergind inspira. Nas primeiras versões da
distribuição, ele trabalhou sozinho no projeto, e apenas em um segundo
momento aceitou a ajuda de outros desenvolvedores, que ainda hoje são
55
poucos. Já o nome que escolheu é originário do próprio termo “skack” que,
embora seja uma designação em inglês para “preguiçoso” ou “folgado”, deriva
de um conceito cunhado pela Igreja do Sub-gênio32 comumente traduzido por
“senso de liberdade, independência e originalidade para alcançar suas metas
pessoais”.
Movidos pelo princípio KISS (acrônimo para “Keep it simple, stupid”, isto
é, “mantenha-o simples, estúpido”), os slackers se habituaram a manter um
sistema com interfaces gráficas para poucas funções, algo que se pretende
assemelhar ao UNIX33 original – simplicidade, nesse caso, não diz respeito à
facilidade de uso, mas ao design. Isso, além de conferir rapidez e leveza,
significa que o usuário não conta com a ajuda de barras, menus e ícones
intuitivos para realizar grande parte dos comandos, que são realizados, em sua
maioria, por meio de linhas de código, pois os membros da comunidade
acreditam que os gráficos ocultam o verdadeiro sistema. Por isso, diz-se que
“só Slackware é Linux”, expressão que remete a uma distribuição “pura”,
“original”: nela, esse “verdadeiro sistema” está plenamente à disposição de
quem opera a máquina, que pode assegurar a segurança e o bom andamento
de quaisquer aplicações. Hoje, nem mesmo o próprio processo de instalação do
Slackware é totalmente gráfico, o que seguramente dificulta a realização de tal
feito por um iniciante. Muitos crêem que a distribuição exige muito tempo dos
usuários nessa dificuldade de aprendizado imediato, mas os verdadeiros
slackers acreditam que o sistema é simples à medida que é compreendido e
que seu uso é singularmente vantajoso em função da experiência angariada
durante o processo de pesquisa a que o iniciante se submete nos primeiros
momentos. Aliás, a quase totalidade dos usuários da distribuição é bastante
experiente em sistemas operacionais de núcleo Linux.
Além de simples e, portanto, leve, o Slackware tem por característica
preponderante a estabilidade, razão pela qual é amplamente usado em
32
Igreja do Sub-gênio (Church of the SubGenius) é uma religião fictícia da qual Patrick
Volkerding é “membro”. Trata-se de um grupo pseudo-religioso que satiriza, além das religiões,
a teoria da conspiração, os extra-terrestres e aspectos da cultura popular.
33
Sistema operacional criado por Ken Thompson.
56
máquinas que cumprem o papel de servidores de sistema e devidamente
aproveitado por mais de 50 outras distribuições que dele se fazem derivadas.
Todas as suas versões lançadas à internet são, desse modo, completamente
estáveis, sendo que aqueles que se propõem a acompanhar o desenvolvimento
e a trabalhar nas versões ainda incompletas não encontrarão uma imagem
ISO34 para download na página do projeto. No Slackware existem, portanto,
duas “árvores”: uma, já citada, estável e disponível para download, e outra
current, isto é, em andamento, destinada àqueles que querem contribuir com a
distribuição testando aplicativos ou para meros curiosos e admiradores que
querem ter o sistema completamente atualizado sem precisar esperar pela
próxima versão. Tais pacotes precisam ser baixados em separado diretamente
da pasta “current”, localizada nos repositórios da distribuição. Depois disso,
devem ser instalados manualmente, um por vez. Quando sairá a próxima (ou as
próximas) versão(ões) do Slackware? Patrick Volkerding responde: “o novo
Slackware vai ser lançado quando estiver pronto35”.
No Brasil, a comunidade Slackware mais expressiva está em órbita do
Gus-br, o Grupo de Usuários Slackware Brasil. O Gus-br surgiu no dia 8 de
dezembro de 2000 como fruto da vontade de um grupo de amigos cujo objetivo
era promover a troca de informações sobre a distribuição e ser uma referência
diante das comunidades nacionais e internacionais. Pode-se dizer que, até certo
ponto, o projeto de seus fundadores36 tem sido bem-sucedido.
34
ISO é um formato de imagem, uma cópia literal de um CD ou DVD
Diferentemente de outras distribuições, nas quais são estabelecidas certas periodicidades
para o lançamento da próxima versão, sendo mais comum a de seis meses. Nessa corrida
contra o tempo, algumas coisas podem ficar por fazer. No Slackware, contudo, a noção de
tempo é relegada a segundo plano em detrimento da busca por aquilo que julgam ser um
sistema perfeito. Por isso, a periodicidade pode variar: no ano de 1993, foram lançadas 5
versões. Em 1994, quatro versões. Nos anos de 1995, 1997 e 1999, três novas versões foram
lançadas. Em 1998, 2003 e 2005, duas versões. Em 1996, 2000, 2001, 2002, 2004, 2004, 2006,
2007 e 2008 (até agora), apenas uma versão.
36
Entre os fundadores, estão: Alessandro Martins, Antonio Marcelo, Bruno Henrique, Jarbas
Celante, João Alexandre, Marcelo Samsoniuk, Marcos Tadeu, Ricardo Carrano e Rodrigo Graeff.
35
57
1.2 Ubuntu Linux
Se, nos dias atuais, a imagem que se consolidou quanto ao fato de os
sistemas de núcleo GNU/Linux serem manipulados e compreendidos apenas por
hackers ou grandes peritos em informática está em grande parte superada, isso
muito se deve ao surgimento, primeiramente, de interfaces gráficas livres
amigáveis – sendo os grandes expoentes o KDE, em 1996, e o GNOME, em
1997 – e, em segundo lugar, ao aparecimento do Ubuntu Linux, cuja primeira
versão (4.10) foi lançada aos 20 de outubro de 2004 sob o codinome “warty”37.
Baseada na distribuição Debian, o Ubuntu é mantido pela empresa
Canonical Ltd, fundada pelo sul-africano Mark Richard Shuttleworth com sede
na Ilha de Man e voltada à promoção de softwares livres. Programador bemsucedido, Shuttleworth fez-se milionário ao passar sua empresa de “segurança
na internet”, a Thawte, aos cuidados da também empresa de segurança
VeriSign, dos Estados Unidos. Com o dinheiro da venda, ele viajou no mundo
37
A escolha do número “4.10” não foi ao acaso. A regra, que segue até os dias de hoje,
consiste em dedicar o número da esquerda ao ano de lançamento e o da direita, ao mês. A
versão atual, lançada em 24 de abril de 2008, é de número “8.04”. Quanto aos codinomes,
trata-se de uma prática muito comum associar um apelido a cada versão lançada. A versão
8.04, por exemplo, é chamada de “heron”.
58
da lua – literalmente. Por 20 milhões de dólares, tornou-se o segundo turista
espacial do mundo a bordo da nave russa Soyuz TM-34, em 2002. De volta ao
plano terreno, criou a Canonical Ltd, que sustenta o Ubuntu (assim como as
derivações Kubuntu, Xubuntu, Edubuntu e Gobuntu38) de diversas formas –
desde o financiamento de desenvolvedores e mantenedores do sistema em
diversos cantos do mundo até o envio gratuito de mídias (CDs) contendo o
sistema operacional para qualquer parte do planeta, bastando fazer um pedido
por meio do site. Entre os fatores que fazem do Ubuntu a distribuição de núcleo
GNU/Linux mais usada no mundo atualmente, estão os investimentos maciços
em publicidade nos primeiros meses do lançamento inicial, assim como o envio
gratuito dos Cds. O sistema também está, é claro, assim como todas as
distribuições aqui estudadas, disponível para download na internet.
Não é à toa que o slogan do Ubuntu é “Linux for human beings”, ou
seja, “Linux para seres humanos”. O sistema, cujo nome é um conceito sulafricano que poder ser traduzido como “humanidade para com os outros”, é
projetado para que qualquer pessoa seja capaz de usá-lo, independentemente
do nível de conhecimento em informática ou da nacionalidade. Esse espírito de
tentativa de universalização fizeram do Ubuntu um sistema deveras intuitivo,
desde o processo de instalação até a utilização das mais variadas funções,
contando, inclusive, com vastíssima documentação oficial e extra-oficial capaz
de satisfazer tanto as dúvidas de um iniciante quanto as de um iniciado. Tratase, por sinal, de uma literatura completa: é muito comum, ao baixar os manuais
mais usados, encontrar capítulos introdutórios alusivos à história do software
livre e às filosofias em jogo, sempre em linguagem acessível e com analogias
fáceis de serem compreendidas. Ademais, a nacionalidade do usuário também
não costuma ser uma barreira, já que o sistema é traduzido para muitos
idiomas através dos esforços de inúmeros colaboradores, que também
traduzem e elaboram novas documentações. Por ser assim, intuitivo, o Ubuntu
38
Trata-se, como dito, de derivações do mesmo sistema. “Kubuntu” nada mais é do que o
Ubuntu sob a interface gráfica KDE (por padrão, o Ubuntu vem com GNOME). “Xubuntu” traz a
interface Xfce, ao passo que “Edubuntu” traz o núcleo do Ubuntu aprimorado especificamente
para ambientes educacionais e o “Gobuntu” é uma variante mais leve e com menos recursos,
contendo apenas por software livre em todas as aplicações.
59
pode até ser usado com algum sucesso por alguém que não seja
completamente alfabetizado.
Mapa de usuários Ubuntu no Brasil
Com uma nova versão a cada seis meses, o Ubuntu é geralmente lançado após
decorrido, em média, um mês do lançamento do novo GNOME, sua interface
gráfica. É digna de nota, além disso, a estreita ligação dos desenvolvedores do
Ubuntu com a distribuição Debian, na qual o sistema sul-africano é baseada:
muitos contribuem para alterações no código-fonte dela, e alguns são
mantenedores de seus pacotes.
No Brasil, a comunidade Ubuntu segue à risca a filosofia com a qual o
sistema foi elaborado e na qual sustenta toda a sua base. Da Equipe Oficial,
brotam vários sub-times que trabalham para aprimorar a distribuição. Entre
eles: Conselho Brasil (órgão máximo que representa oficialmente a
comunidade brasileira, atualmente com três membros), Documentação,
Tradução, Planeta (ferramenta que agrega as informações postadas em
blogs de membros da comunidade), Segurança, Ubuntu Games, Fóruns,
Distros (para cuidar das questões alusivas às distribuições derivadas Kubuntu
60
e Xubuntu) e os Grupos Regionais, que são as representações nos estados39.
Todos esses sub-times se comunicam e desempenham seus trabalhos no
chamado Launchpad40 – um conjunto de aplicações na plataforma web usado
no desenvolvimento de programas de código aberto, controlando tarefas e
facilitando todo o processo de colaboração. Para que um indivíduo comece a
participar da comunidade ajudando ativamente, basta criar, como veremos,
uma conta no Launchpad.
39
Até então, existem grupos regionais nos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Mato Grosso,
Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de
Janeiro, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e no Distrito Federal. Nada impede, entretanto, que
algum usuário reúna um grupo de pessoas e crie um novo grupo regional onde não houver
nenhum.
40
O Launchpad, assim como o Ubuntu, foi desenvolvido e é mantido pela Canonical Ltd.
61
1.3 Debian GNU/Linux
Contando atualmente com mais de mil desenvolvedores espalhados por
todo o mundo, a comunidade Debian (leia-se “Débian”) se destaca das demais
aqui estudadas, a princípio, por não ser comercial, isto é, patrocinada ou
apoiada por uma grande empresa (como no caso de Ubuntu e Fedora), e por
ter um grande número de pessoas trabalhando ativamente no software. Além
disso, destaca-se por sua organização bem definida, dotada de normas muito
claras e precisas.
Essa distribuição de núcleo GNU/Linux é o carro-chefe do Projeto Debian,
oficialmente fundado em 16 de agosto de 1993 pelo estadunidense Ian
Murdock, que juntou as três letras iniciais do nome de sua mulher, Debra, com
as de seu nome a fim de formar o nome do software. Inicialmente com apoio
do projeto GNU e da Free Software Foundation (entre os meses de novembro
de 1994 e 1995), a distribuição começou com um pequeno grupo de hackers
cujo ideal era bem semelhante ao do próprio Linux no que diz respeito a
manter um desenvolvimento aberto, abrangente e coletivo.
Para disciplinar todas essas pessoas na elaboração de um sistema de alto
padrão, o Projeto Debian tem – além de documentos com políticas de
organização,
comunicação,
conduta,
etc,
bastante
comum
às
outras
62
comunidades – uma “Constituição” interna (na versão: 1.4) e um “Contrato
Social” (na versão: 1.1). Enquanto este impele o membro a assumir um
compromisso com a comunidade declarando, entre outras coisas, que “o
Debian permanecerá 100% livre”, “iremos retribuir à comunidade software
livre”, “não esconderemos problemas” e “nossa prioridade são nossos usuários
e o software livre”, aquela trata da estrutura organizacional para a tomada de
decisões na comunidade, dividindo-a em grupos cuja composição e poderes são
claramente postulados. Vale ressaltar, inclusive, que a Constituição não exerce
regulações sobre os trabalhos individuais. Pelo contrário, ela assegura sua
independência.
Tais agrupamentos dizem muito sobre a comunidade. A estrutura geral
consiste
em
Oficiais41
(incluindo
líder,
comitê
técnico
e
secretário),
trabalhadores ligados à Distribuição (relacionados a pacotes individuais,
repositórios FTP, gerência de lançamento, documentação, etc), à Publicidade
(imprensa, eventos, parceria, marketing) e à infra-estrutura (suporte a idiomas,
acompanhamento dos bugs, mantenedores de chaveiros, equipe de segurança,
site na web, etc) e Distribuição Personalizada – Debian Jr, para crianças,
Debian-Med, para pesquisa médica, Debian-Edu, para educação, Debian-Lex,
para escritórios legais, Denian-NP, para organizações sem fins lucrativos e
Debian Acessibility, para pessoas com deficiência.
Quanto ao exercício do poder na comunidade, é estabelecida a seguinte
hierarquia: 1. Os desenvolvedores42, por via de resolução geral ou de uma
eleição; 2. O líder do Projeto; 3. O comitê técnico e/ou seu presidente; 4. O
desenvolvedor individual trabalhando em uma tarefa particular; 5. Delegados
41
Cabe ao líder do Projeto Debian, entre outras coisas, tomar decisões urgentes e comandar
discussões. Ele é eleito pelos desenvolvedores em um processo complexo, que leva em conta
tanto o grau de aceitação quando de rejeição do candidato (para saber sobre o processo
eleitoral Debian, consultar RUOSO (2006)). Já o Comitê Técnico é o único órgão que tem poder
sobre as decisões individuais dos desenvolvedores, sendo que a comunidade prefere usá-lo
apenas como última alternativa.
42
Os desenvolvedores são os membros “oficiais” da comunidade. Para alcançar tal posto, eles
devem ter uma chave GPG (espécie de assinatura digital) assinada por alguém que já é
desenvolvedor (chamado de “padrinho”), passar por provas de habilidade técnica e
compreensão ética e moral com relação ao software livre e à comunidade Debian. Ao final,
ganham um e-mail com o domínio “debian.org”, uma página na Internet e o acesso ao
repositório central da distribuição.
63
apontados pelo líder para tarefas específicas; 6. O secretário – responsável,
entre outras coisas, por pegar os votos entre os desenvolvedores, determinar
seu número e identidade e resolver disputas com relação à interpretação da
Constituição. Dessa forma, evidencia-se uma estrutura fundamentada, mais do
que na meritocracia, de acordo com RUOSO (2006), na “pisticracia”, isto é, na
relação de confiança entre os pares.
Além disso, um usuário deve ter grande envolvimento nos trabalhos para
conseguir determinados postos – o que, diga-se, acaba por valorizá-los.
Quando perguntado, no FISL 2008, sobre os requisitos para se tornar um
desenvolvedor, um aspirante a tal posto disse: “É muito melhor assim, esse é o
espírito da comunidade. É um teste para ver se o cara quer realmente seguir
colaborando, diferente de outras distros: a pessoa faz pouco, já recebe um email com o nome do projeto e se acomoda”. Além dessas estruturas
institucionais, que se verificam, em geral, um pouco mais rígidas do que nas
demais comunidades (mas que, de fato, não exercem grande pressão sobre a
comunidade), está a busca obsessiva pela estabilidade dos pacotes por parte
dos mantenedores43. No Debian, nada do que não esteja completamente
finalizado, estável e funcionando perfeitamente bem pode entrar no sistema
final disponibilizado aos usuários – e isso, muitas vezes, implica abrir mão de
uma versão mais atual para dar lugar a algo mais antigo, porém estável. Mas
isso tudo não se traduz em um problema: a comunidade gosta de ressaltar que
“a Debian vai lançar quando estiver pronto”, isto é, não há datas previamente
marcadas para isso acontecer.
No Brasil, a comunidade Debian se faz representativa não pelo número
de desenvolvedores ou de pessoas que trabalham mais ativamente no software
final – tal número, aliás, é considerado baixo quando comparado à quantidade
de desenvolvedores europeus e norte-americanos, o que é comprovado pelo
mapa:
43
Mantenedores são responsáveis por pacotes específicos, assegurando a estabilidade dos
softwares. Para isso, não precisam ser desenvolvedores, mas freqüentemente se candidatam ao
posto. É como se fosse um processo de aprendizado: o desenvolvedor deve servir como
mantenedor por um tempo até provar sua capacidade.
64
mapa dos desenvolvedores Debian
No entanto, o número de entusiastas, evangelizadores e outros vários
colaboradores elevam a comunidade Debian brasileira a um posto muito
significativo no mundo do software livre.
65
1.4 Fedora
O Projeto Fedora teve início em 2002, quando a empresa Red Hat, criada
oficialmente no ano 1995 e trabalhando com serviços relacionados com
software livre e distribuição Linux, decidiu voltar seus esforços para o mercado
corporativo oferecendo soluções open source. Dessa forma, dividiu sua
distribuição em duas: Red Hat Enterprise Linux e Fedora Core, criando, assim, o
Projeto Fedora, que passou a ser conduzido em boa parte pela comunidade.
Patrocinado pela Red Hat, o Projeto teve investimento inicial em pessoas,
divulgação e eventos e é considerado um laboratório de inovação, pesquisa e
desenvolvimento, segundo Max Spevack, seu líder até fevereiro de 2008.
Encarado como uma parceria entre comunidade e empresa, o Projeto, que
lança uma nova versão da distribuição a cada seis meses, tem como uma das
finalidades testar e aperfeiçoar aplicações que serão implementadas no
software oficial da Red Hat, lançado a cada dezoito meses. Assim, o Fedora
geralmente traz o que há de mais recente e corre o risco, em nome da
inovação, de portar uma aplicação passível de bugs. A comunidade, é claro, se
responsabiliza prontamente por eles. Não é raro, por exemplo, encontrar uma
grande quantidade de atualizações com correções pouco tempo depois da data
de lançamento.
66
O Projeto é gerido pelo FamSCo (Fedora Ambassadors Steering
Committee), um comitê de 7 embaixadores44 eleito a cada seis meses por
embaixadores espalhados pelo mundo. O comitê é responsável pelas
estratégias de marketing da distribuição e pela organização da comunidade
mundial, orientando a atuação dos embaixadores e fornecendo os recursos
necessários para as comunidades locais. Atualmente, o brasileiro Rodrigo
Padula de Oliveira é um de seus membros. Nas eleições de Janeiro de 2008,
recebeu o maior número de votos (41 do total de 69), o que corroborou a
credibilidade e a representatividade da comunidade brasileira diante do Projeto.
Além disso, Padula também assumiu, em abril de 2008, o cargo de Community
Manager do Fedora na América Latina (Fedora LATAM), órgão que pretende
realizar na região atividades semelhantes às desempenhadas pelo FamSCo.
Acima do FamSCO, existe um órgão máximo de decisões: trata-se do
Fedora Board, considerado um time executivo constituído – até meados de
2008 – por 5 membros indicados pela Red Hat e 4 membros eleitos pela
comunidade. No entanto, após o lançamento do Fedora 9.0, de codinome
“Sulphur”, em 13 de maio de 2008, a força da comunidade aumentou
substancialmente e o quadro foi revertido: 5 membros passaram a ser eleitos e
os outros 4, indicados pela empresa. Abaixo do FamSCO, estão os
embaixadores
comuns
e
os
líderes
de
cada
sub-projetos,
que
são:
Documentação, Tradução, Marketing, Embaixadores, Arte, Infra-estrutura,
Internacionalização, Websites, Notícias, Distribuição e SIGs – Special Group
Interests ou Grupo de interesses Especiais, grupos que desenvolvem e
aprimoram softwares voltados, por exemplo, para quem se interessa por rádio
amador ou astronomia. Já os projetos em que há grande representatividade
são: Grupos Regionais, Tradução, Documentação, Marketing, Mídia Grátis
(distribuição gratuita do CD de instalação), Educação (voltada ao uso
44
Como ser um embaixador? Cabe aos embaixadores representar o Fedora perante o público,
ajudar a disseminar a distribuição e o software livre em geral, ser um intermediário na
comunicação entre membros da comunidade e ajudar a recrutar novos membros. Ser
embaixador exige, portanto, grande comprometimento com a filosofia da comunidade. Há
embaixadores brasileiros nos estados de AM, BA, CE, MT, MG, PB, PR, RJ, SC, SP, TO e no
Distrito Federal.
67
acadêmico e científico), Empacotamento e OLPC (ligado ao programa One
Laptop Per Child).
Uma das grandes bandeiras do Fedora é a facilidade de uso. Para isso, o
DVD de instalação vem com várias interfaces gráficas, como GNOME, KDE,
XFCE, WindowMaker, etc, cabendo ao usuário escolher entre uma ou mais
delas. Há, inclusive, uma vasta documentação em inglês e em português que
atende demandas de usuários iniciantes e experientes, além da atividade
constante dos fóruns, lista de discussões e sites pessoais daqueles que
colaboram com a distribuição.
68
2. Análise
2.1 A barreira de entrada e o processo de recrutamento
de novos colaboradores
Muitos usuários iniciantes no mundo do Software Livre costumeiramente
crêem que, para ajudar determinada distribuição ou comunidade, é necessário
fazer parte ativamente dos projetos, estar em constante contato com seus
líderes, angariar várias responsabilidades e realizar trabalhos regularmente. Por
certo, isso tudo se faz de grande relevância, mas as comunidades deixam claro
que uma atitude colaborativa exige muito menos. A princípio, a melhor forma
de ajudar é usando a distribuição e testando o sistema, o que é amplamente
salientado nos websites de vários projetos:
Debian: “You can simply test the operating system and the programs provided in it and report
any not yet known errata or bugs you find using the Bug Tracking System”45
Fedora: “Utilizar o Fedora é a maneira mais simples de participar! [...] Mais usuários -> mais
bugs resolvidos -> sistema operacional de melhor qualidade -> maior número de usuários”46
Slackware: “The most obvious way you can help with Slackware is to use it! The more people
that use it, the more people that can find and report bugs. This will make Slackware even more
stable than it is now”47
Embora a idéia de “recrutamento” seja válida e adotada pelos chamados
“evangelizadores” – ou seja, aqueles que têm por ideal promover o uso e a
disseminação do Software Livre em todas as esferas da sociedade, não
medindo esforços para tal –, há muitos membros nas comunidades estudadas
que pensam de outra forma. Igor Pires Soares, chefe de tradução e embaixador
do Fedora, prefere deixar que a iniciativa de querer participar venha do usuário
e, após saber do interesse do indivíduo, fornece todo o apoio necessário para
45
Disponível em http://www.debian.org/intro/help. Tradução: você pode simplesmente testar o
sistema operacional e os programas nele disponíveis e reportar quaisquer erros ou bugs ainda
não conhecidos usando o “Bug Triage System”.
46
Disponível em http://www.projetofedora.org/portal/participe
47
Disponível em http://www.slackware.com/faq/do_faq.php?faq=general. Tradução: a maneira
mais óbvia de você ajudar o Slackware é usando-o! Quanto mais pessoas usarem, mais pessoas
poderão encontrar e reportar bugs. Isso tornará o Slackware ainda mais estável do que é
agora.
69
tirar suas dúvidas e direcioná-lo à área de seu interesse. Já um dos líderes do
Ubuntu-SP, Paulo F. Christiano, prefere que as pessoas, em primeiro lugar, “se
encantem” pela distribuição. Segundo ele, isso fará com que esses usuários
busquem por respostas e se empenhem. Em um momento posterior, Christiano
também fornece toda a ajuda necessária, empenhando-se na inserção dos
novatos. Além disso, nos fóruns e listas de discussão de todas as distribuições,
há tópicos destinados a usuários iniciantes e com pouca experiência. Recrutar
colaboradores não é, portanto, regra geral.
Quando à barreira de entrada nas comunidades, há um choque maior
das filosofias das distribuições. Grosso modo, os slackers aparentam (o que,
como veremos, não corresponde à realidade) usar-se de uma postura arrogante
quando se deparam com usuários principiantes48. De fato, não é raro observar
nos fóruns da comunidade a breve resposta “RTFM” para determinadas
perguntas. Trata-se de um acrônimo para “Read the fucking manual”, isto é,
“leia a porcaria do manual” (em uma tradução bem polida, diga-se). Outra
resposta muito comum é “procura no google”:
(14:02:21)
(14:02:46)
(14:03:29)
(14:03:39)
KlebChaos: onde consigo manual dos comandos do slackware?
atha: KlebChaos no google
Plebeo saiu da sala (quit: "BitchX: a new fragrance for men, by Calvin Klein").
KlebChaos: atha, blza!
O fragmento acima, extraído do canal #slackware-br da rede Freenode
no IRC no dia 4 de setembro de 2008, pode igualmente trazer a idéia de que os
slackers não se dão ao trabalho de responder a perguntas e ignoram os
novatos. No entanto, é perfeitamente possível um usuário ser muito bem-vindo
à comunidade. Tudo o que se pede é que, antes de fazer qualquer pergunta,
ele leia todos os artigos, tutoriais e dicas a respeito do assunto e realize todas
48
Durante o FISL 2008, os slackers ficaram, na maior parte do tempo, sentados ou deitados no
chão do grande saguão no qual várias comunidades e empresas instalaram seus estandes. Em
sua maior parte, os slackers se divertiam com jogos ou programavam algum software –
diferentemente de outras comunidades, que se empenhavam em trazer a seus estandes o
maior número possível de visitantes. Todavia, sempre que surgia algum usuário com dúvidas ou
dificuldades, os slackers dedicavam seu tempo e esforço para tentar resolver as questões.
70
as tentativas imagináveis. Depois disso, será respeitado por seus pares, que
seguramente o ajudarão a resolver os mais variados problemas – a lista de
dúvidas do “slack-users-br” movimenta cerca de 20 e-mails diários, por
exemplo.
Desfeito o mito Slackware, passemos às outras distribuições, cujas
barreiras de entrada variam muito. Em linhas gerais, membros do Ubuntu e do
Fedora têm por princípio fornecer qualquer tipo de auxílio, mesmo que as
dúvidas apresentadas já tenham sido esclarecidas ou até documentadas. Como
essas distribuições declaradamente se preocupam com a facilidade de uso e
com o amplo apoio ao usuário leigo, alguns membros chegam a passar um bom
tempo respondendo dúvidas nos e-mails pessoais, o que é contra o consenso
geral de que as perguntas devem ser respondidas nos fóruns para que mais
pessoas se beneficiem das respostas. No entanto, esses membros argumentam
que muitos usuários não freqüentam fóruns – seja por falta de tempo ou de
prática – e tudo o que querem é uma resposta simples e rápida. Tudo em nome
da universalização do acesso.
Quando aos membros do Debian, verificou-se uma postura intermediária
entre as distribuições comerciais e o Slackware. Como há uma vasta e
detalhada documentação em português abordando vários aspectos do sistema
operacional e os sites da distribuição e da comunidade, embora um pouco
desatualizados, são muito explicativos e reveladores para quem está disposto a
ler seu conteúdo, é difícil que alguém se sinta perdido na comunidade Debian.
Ademais, muitos de seus representantes brasileiros são facilmente encontrados
no IRC e freqüentemente se disponibilizam a conversar e a ajudar os usuários.
Em suma, a resposta mais comum obtida quando se indagou algum
membro das comunidades estudadas sobre “o que é preciso para se entrar na
comunidade” foi simplesmente “boa vontade”. Malgrado cada distribuição siga
suas próprias filosofias e preceitos, assinala-se que o espírito de comunidade
está presente em todas elas que, por diversas vezes, preferem relegar a
segundo plano suas divergências para se curvarem diante de um princípio
considerado maior: o uso e a promoção do Software Livre.
71
2.2 O porta-voz das comunidades
Este tópico consiste na tentativa de buscar nas comunidades uma grande
voz ativa – alguém que, ao passar pelos desafios e provas inerentes à cultura
meritocrática e fundamentar suas atividades nas relações sociais em meio ao
grupo, conseguiu angariar um capital simbólico tão significativo a ponto de ter
as qualificações necessárias para responder pela comunidade. Não se está
falando aqui, é claro, simplesmente do desenvolvedor mais ativo ou do tradutor
mais eficiente, por exemplo. Trata-se de encontrar um símbolo, uma figura cuja
conduta se identifique pontualmente com a filosofia das distribuições ao
incorporar seus traços elementares, estando, assim, apto a representar seus
membros. Enfim, um porta-voz.
Observou-se que, na maioria dos casos, esses representantes não
estavam se usando de algum cargo oficial ou institucionalizado para
desempenhar suas atividades. Vamos aos exemplos: O nome (alcunha) mais
influente da comunidade Slackware no Brasil é o de “Piter PUNK”, alcunha de
Roberto Freires Batista. Ele, além de ser o único brasileiro que contribui
ativamente no desenvolvimento do sistema operacional e um dos mais antigos
usuários da distribuição, é o responsável pela Slackware Zine (espécie de
revista eletrônica) e organiza eventos e palestras relacuinados ao Slackware –
como o SlackShow, ocorrido em agosto de 2008. Apesar de tudo, Roberto
garante que não fala de “forma oficial” pela distribuição.
Quanto à comunidade Debian, a maior parte dos usuários da distribuição
e membros da comunidade designam o paranaense Felipe Augusto van de Wiel
(ou simplesmente “faw”) como seu porta-voz. De fato, Felipe não é um dos
membros mais antigos (teve seu primeiro contato com sistemas de núcleo
GNU/Linux em 1998 e com o Debian em 2002), mas seu envolvimento com a
comunidade e sua habilidade ao falar sobre ela facultaram a ele a possibilidade
concreta de representar a os adeptos da distribuição. Durante o FISL 2008, por
exemplo, Felipe foi responsável pelo estande do Debian e ministrou palestras
72
sobre a distribuição. Ele já representou a comunidade em eventos como o
Latinoware (Conferência Latino-americana de Software Livre) e no Conisli
(Congresso Internacional de Software Livre). Sua presença nessas ocasiões,
bem como seu acompanhamento das listas de discussões conferiram a ele a
referida visibilidade.
No Projeto Fedora, o nome em destaque é o de Rodrigo Padula. Um dos
primeiros embaixadores, hoje ele é membro do FamSCo (Fedora Ambassadors
Steering Committee) e exerce a função de Community Manager do Fedora
LATAM (órgão do Fedora na América Latina). Além disso, são vários os casos
em que Rodrigo ajudou pessoalmente na inserção de novos membros ou na
permanência dos antigos. Juntamente com o embaixador baiano Cristiano,
ajudou na oficialização de um grupo local do Fedora em Sergipe, convidando o
usuário Otávio para coordenar o projeto. Em outra oportunidade, ao lado de
Diego Zarcarão, outro embaixador, Rodrigo cuidou para que Igor Pires Soares,
hoje chefe da tradução, saísse do Projeto Fedora.
Como as coisas apertaram na faculdade, talvez eu tivesse
saído do projeto, já que o meu tempo livre praticamente
não existia mais, mas foi aí que Rodrigo Padula e Diego
Zacarão me convidaram para entrar no grupo de
embaixadores. Depois disso, não teve como sair mais, pois
eu realmente queria fazer um trabalho de longo prazo e as
condições de contribuição dentro do projeto eram
totalmente favoráveis49
Com relação ao Ubuntu, não foi possível identificar um único porta-voz
capaz de falar abertamente em nome da comunidade. O que se observam, no
entanto, são fortes líderes locais, que ajudam a fomentar o uso e a
disseminação da distribuição em suas áreas de influência. Por exemplo, na
Bahia e em Minas Gerais, estados em que a comunidade Ubuntu é muito
significativa, os nomes mais influentes são os de Fábio Nogueira e o de Licio
Fonseca, respectivamente (ambos são, inclusive, membros do Conselho Ubuntu
Brasil).
49
Depoimento colhido em entrevista com Igor Pires Soares.
73
2.3 A comunicação interna e externa
Evidentemente, o ciberespaço é o grande ponto de encontro das
comunidades de Software Livre estudadas. Muito embora cada distribuição
promova encontros presenciais por meio de eventos comemorativos ou fomente
a participação de seus membros em congressos, palestras, fóruns e
conferências cuja temática orbite em torno das questões gerais alusivas ao
Software Livre ou às tecnologias da informação e da comunicação, a imensa
maioria das tarefas dos membros das comunidades se dá através de (não
necessariamente na ordem de relevância ou quantidade):
- Listas de discussão (mailing lists): Trata-se de mecanismo que roda na
plataforma de correio eletrônico comum. Os participantes enviam mensagens
uns aos outros contendo dúvidas, opiniões, esclarecimentos. É o modo mais
simples de comunicação, e também o mais usado, já que exige apenas um
endereço de e-mail. De modo geral, existem listas de discussão para cada subprojeto (documentação, tradução, desenvolvimento, zine, etc), assim como
para cada tipo de usuário (iniciante, desenvolvedor, etc). Tais listas são, na
maior parte dos casos, abertas ao público. Todas as comunidades se utilizam
das listas de discussão.
- Fóruns: Ambiente mais propício à solução de dúvidas e troca de informações.
Ao contrário das listas de discussão, as mensagens não circulam no ambiente
de correio eletrônico, mas por meio de postagens nos websites. Recomenda-se
que, antes de lançar qualquer pergunta em um fórum, o usuário faça uma
busca a fim de verificar se a questão já não foi esclarecida. Todas as
comunidades se utilizam dos fóruns.
- IRC: Trata-se de um protocolo usado para programas (scripts) de chat.
Através do IRC, é possível fazer a conexão com servidores de todo o mundo.
Cada servidor possui canais, isto é, salas em que se pode conversar
abertamente ou em particular. As comunidades estudadas mantêm canais
ativos na rede Freenode (irc.freenode.net), nos quais usuários trocam
74
informações, dados, solucionam dúvidas, realizam reuniões ou simplesmente
conversam sobre assuntos triviais. Durante a pesquisa, foi possível participar de
uma reunião da comunidade Fedora no IRC na qual se pretendeu discutir a
definição e a criação dos Grupos Regionais de Usuários. O encontro, idealizado
e conduzido por Rodrigo Padula, deu-se às 23h (horário de Brasília) do dia 4 de
junho de 2008 e contou com a presença de embaixadores, usuários e curiosos
em geral:
Canal #fedora-br da rede Freenode
- Blogs: Os usuários mais representativos comunicam seus feitos ou os rumos
tomados pela distribuição em seus blogs pessoais, que, em determinados
casos, são hospedados pelos servidores da própria distribuição.
- Planeta: Também chamado de “blog dos blogs”, ou seja, um website
agregador de todos os blogs que têm alguma ligação com a distribuição, com o
Software Livre ou com questões relacionadas à tecnologia de um modo geral. À
75
medida que o usuário escreve um post em seu blog, a mensagem é direcionada
ao “Planeta”, onde estarão os posts de outros blogueiros. As comunidades
Ubuntu e Debian têm seu próprio Planeta Brasil, ao passo que a comunidade
Fedora tem apenas o Planeta do projeto internacional.
- E-mail: Em geral, não é recomendável que se tirem dúvidas ou se troquem
informações por meio dos e-mails pessoais. Parece ser um consenso entre os
membros das comunidades que, quanto mais pessoas se beneficiarem das
respostas, melhor terá sido o trabalho realizado pelos voluntários. Contudo,
alguns poucos membros ainda se dispõem a responder dúvidas pelos e-mails,
pois acreditam que é uma forma válida de auxiliar a comunidade.
- Zines: São espécies de revistas eletrônicas dedicadas à comunidade da
distribuição, contendo, na maioria dos casos, artigos técnicos com resolução de
problemas ou dicas para otimizar certas características do sistema. As
comunidades brasileiras Slackware e Debian possuem sua própria zine e a
comunidade Fedora mantém uma revista eletrônica completa, contando com
notícias, tutoriais, textos opinativos, referências à comunidade, informações
sobre jogos, perguntas e respostas, etc.
Os mecanismos tratados até então tratam mormente da comunicação
interna, isto é, realizada pelos próprios membros da comunidade. Contudo,
nada impede que alguém que não faça parte das atividades da distribuição
deles participe ativa ou passivamente, uma vez que os fóruns, as listas de
discussões, o IRC, os blogs e as zines estão abertos à leitura de qualquer
internauta. Dessa maneira, pode-se dizer que esses meios também se verificam
um canal de comunicação externa, ou seja, entre as comunidades e a
sociedade em geral, que é representada, neste caso, por diversos agentes.
2.4 Hierarquias e relações de poder
Como já se pontuou no capítulo referente às práticas colaborativas
vigentes no ciberespaço, os preceitos de liberdade apregoados pelos membros
76
das mais variadas comunidades de Software Livre não se traduzem, de maneira
alguma, em uma forma irrestritamente anárquica de organização. De maneira
geral, as comunidades estão envolvidas em relações de poder fundamentadas
na cultura meritocrática e a liderança que nelas se estabelece está sujeita a
avaliações pessoais por parte dos colaboradores – afinal, estamos falando de
voluntários. Caso um líder tome uma atitude que não corresponda com os
anseios e vontades da comunidade, os colaboradores podem resolver contribuir
com outro projeto ou não mais contribuir.
Genericamente, as hierarquias se dão, em nível mais elevado, nos
“conselhos” dos respectivos projetos. Nas distribuição comerciais Fedora, tais
conselhos são influenciados diretamente pelas empresas mantenedoras – no
caso do Fedora Board, quatro dos nove membros pertencem à Red Hat. Já nas
comunidades das distribuições não-comerciais, os conselhos são compostos,
evidentemente, apenas por colaboradores. No caso do Debian, conforme
abordamos no início deste módulo durante o breve histórico da comunidade,
existe uma estrutura de organização muito precisa. O projeto tem um líder, um
comitê técnico (com seu respectivo presidente), um secretário e delegados,
mas o grau máximo de poder está nas mãos dos desenvolvedores, que podem
exercê-lo por meio de uma Resolução Geral ou pelas próprias eleições internas.
Em nível inferior ao dos conselhos, existem os líderes específicos de casa
sub-projeto, que coordenam aquilo que se poderia classificar como cada célula
das
atividades
básicas
da
tradução,
documentação,
grupos
regionais,
divulgação, etc. A esses líderes cabe, além de manter regularmente a realização
dos trabalhos, assegurar a atividade das listas, cumprir os prazos determinados
(isto é, quando o projeto se compromete a estipular datas para a disponibilizar
uma nova versão, como é o caso de Fedora e Ubuntu) e incentivar novos
colaboradores.
Na maioria dos casos, esses líderes, sejam os que estão em nível
máximo ou os que têm atividades mais locais, chegaram a seus atuais postos
em função das próprias competências. Um dos códigos morais que atuam como
força motriz de sua filosofia recomenda veementemente que, se determinado
77
líder não conseguir desempenhar suas funções da melhor maneira possível
(seja por falta de tempo, por excesso de trabalho, por perda de identificação
com o trabalho, etc), esse indivíduo deve passar seu cargo aos cuidados de
quem efetivamente possa fazê-lo. Assim, um bom líder não deve deixar de sê-lo
até mesmo quando decidir que deixará seu projeto.
No que se refere às relações líderes-liderados, também foi possível
observar certas divergências entre as comunidades. Enquanto no Ubuntu se
verificou maior independência dos colaboradores – que podem desenvolver
livremente seus projetos locais ou pessoais sem a necessidade de reportar o
que estão fazendo a quem quer que seja –, no Projeto Fedora, há um
acompanhamento um pouco maior por parte dos embaixadores com relação às
atividades gerais em que os membros da comunidade se envolvem. Já no
Debian a questão central não está tão ligada à relação entre líderes e
colaboradores quanto ao maior vínculo que estes têm com a distribuição. Em
geral, o “modo Debian de organização”, segundo aqui descrito, exige maior
comprometimento dos voluntários.
Por fim, o leitor mais acurado pôde notar que não se falou neste tópico,
até então, do Slackware. Explica-se: a distribuição foge um pouco às regras
gerais. A princípio, a garantia de excelência do sistema está, acreditam os
slackers, no desenvolvimento de certo modo fechado. Além de poucas pessoas
contribuírem ativamente para a distribuição (ao todo, são menos de quinze
desenvolvedores, segundo Piter PUNK, o único brasileiro desse time), nada é
implementado no sistema sem a aquiescência de seu fundador e grande
“ditador benevolente vitalício”, Patrick Volkerding. Ademais, não há muito
espaço para questionamentos considerados tolos, isto é, de quem não se
preparou o suficiente para fazê-los. Aqui existe, portanto, hierarquias e relações
de poder visivelmente definidas.
78
2.5 O peso do trabalho brasileiro frente à comunidade
internacional
Diante do que se explorou até então, está mais do que claro que as
quatro comunidades estudadas – Ubuntu, Fedora, Slackware e Debian – fazemse muito expressivas sob diversos aspectos no mundo do Software Livre. Além
de contarem com uma vasta gama de colaboradores espalhados por todo o
mundo, as distribuições produzidas pelas comunidades revelam-se, a cada nova
versão, trabalhos de excelência técnica, fato que é comprovado por sua ampla
aceitação em instituições educacionais, organizações governamentais e nãogovernamentais e no próprio mercado (através de empresas que, em muitos
casos, dedicam-se apenas aos trabalhos open source) – isso sem mencionar a
grande quantidade de servidores nos quais se usam essas distribuições de
núcleo GNU/Linux. E, malgrado a presença de sistemas operacionais livres não
seja tão pronunciada (quando comparada à dos softwares proprietários) entre
os assim chamados “usuários domésticos”, as distribuições que nos serviram de
referência têm grande participação também nesse meio. Diante desse relativo
sucesso, deve-se enaltecer, enérgica e justamente, a atuação de seus
protagonistas que, por meio de constantes esforços coletivos, tornam possível a
realização dos trabalhos mencionados. Neste tópico, discutiremos quão
expressivos se mostram os atores brasileiros que se lançam à colaboração em
duas distribuições.
Tal como qualquer reflexo dos desafios inerentes a uma pesquisa
qualitativa, a atividade de medir a relevância de uma comunidade faz-se de alto
risco. Como apontar, sem incorrer em infeliz arbitrariedade, o quê ou quem é
relevante? Não convém, evidentemente, tratar apenas do número de membros
e, a partir daí, qualificar os pesos com base em simples análises
comparativas50.
50
É possível notar que, até então, não se falou em número de membros das comunidades ou
número de usuários das distribuições. Como afirmamos na introdução desde módulo, é muito
difícil mensurá-los. Primeiro, porque não há como postular exatamente quais os requisitos
necessários e suficientes para que alguém se torne um membro de qualquer das comunidades.
79
Conforme observamos, por exemplo, o fator número não é muito levado
em conta pela comunidade Slackware – ao menos no que diz respeito aos
desenvolvedores diretos do sistema. Se é possível afirmar que os slackers
acreditam que o número reduzido de desenvolvedores confere maior excelência
ao processo, também é fato que sua comunidade é muito vasta e expressiva no
Brasil. Dois fatos assim permitem inferir. O primeiro deles, já citado, diz
respeito ao fato de que existe um brasileiro nesse seleto grupo de
desenvolvedores Slackware. O segundo, que está relacionado ao primeiro, deuse nos anos de 2004 e 2005, quando o grande ditador benevolente e vitalício
Patrick Volkerding passou por graves problemas de saúde e não pôde dedicar
seus esforços à manutenção da distribuição. Àquela época, muito se especulou
sobre o fim do Slackware, dada a importância da atuação de Volkerding.
Rapidamente, a comunidade se mobilizou. Piter PUNK enviou a seguinte
mensagem à lista de usuários da distribuição:
“Povo,
Dessa vez o e-mail não é para passar uma mensagem
divertida. Acho que todo mundo sabe mas, para quem não
sabe, Patrick Volkerding é o criador e mantenedor do
slackware. E ele está doente. Ele escreveu uma longa
carta com a descrição da doença:
ftp://ftp.slackware.com/pub/slackware/slackware-current/PAT-NEEDSYOUR-HELP.txt
Quem tiver contato com centros de pesquina ou médicos
na área de patologia, poderia passar essa mensagem para
eles. Sei que tem vários assinantes da lista que trabalham
em universidades, as vezes um pulinho na faculdade de
medicina e conversar com algum amigo possa quebrar um
galhão e ajudar o Patrick a melhorar. Para ele colocar isso
no ChangeLog do current, com certeza não está bem.
Falous,
Um simples simpatizante de alguma das filosofias que a promova, mesmo que de forma bem
modesta, pode ser considerado um membro, a depender das concepções que disso se faça.
Quanto aos usuários, a situação é semelhante. Não é necessário pagar nem tampouco se
cadastrar para pode usufruir de qualquer uma das distribuições. Existem, portanto,
80
Piter PUNK
PS/1> Quem não conhecer médicos, centros de pesquisa
e patologia, etc com certeza pode ajudar com a torcida e
orações pela melhora do patrick
PS/2> Se vc não gosta da palavra "orações", substitua por
rezas ou pensamento positivo, o que ficar melhor para as
suas crenças51”.
No entanto, a grande prova da relevância da comunidade brasileira está
no fato de que Volkerding a designou o GUS-BR (Grupo de Usuários Slackware
Brasil) para dar continuidade aos seus trabalhos enquanto se recuperava.
Segue a notícia do (PSL-BR) Projeto Software Livre Brasil de 24.11.200452:
Comunidade GUS-BR passa a auxiliar o
Slackware.com Oficialmente
Por algum tempo Patrick Volkerding estará cuidando mais
da sua saúde e para não deixar os fãs preocupados
incubiu ao GUS-BR de verificar e validar security-fixes e
BugFixes no Slackware-Current além do Slackware-10.0.
Toda a informação pode ser obtida no site
www.slackware.org.br e todos usuários do GUS-BR podem
auxiliar informando problemas e remendos diretamente na
lista slack-users.
Outra comunidade brasileira muito expressiva quando levada ao cenário
internacional está em torno do Projeto Fedora. Assim como Piter PUNK lidera os
trabalhos no Slackware, Rodrigo Padula de Oliveira traduz-se no grande
expoente do Fedora, sendo que seus esforços para com a comunidade
estabelecem uma relação de troca mútua e salutar. À medida que desenvolve
51
Disponível em: http://osdir.com/ml/user-groups.linux.brazil.slackware/200411/msg00268.html
52
Disponível em: http://www.softwarelivre.org/news/3353
81
seus trabalhos, Rodrigo traz maior notoriedade para a comunidade do Projeto
Fedora Brasil que, por sua vez, lhe dá todo o apoio e incentivo para representálo – o que, diga-se, merece o reconhecimento da comunidade mundial.
Conforme apontamos, o nome de Rodrigo foi o mais mencionado nas
eleições de janeiro de 2008 para o FamSCO (Fedora Ambassadors Steering
Comitee, o comitê internacional de embaixadores da distribuição), com quase
60% do total de votos. Também assumiu, em abril do mesmo ano, a liderança
do Community Manager do Fedora na América Latina (Fedora LATAM), que
dará apoio às comunidades regionais latinas. Há, é claro, outros brasileiros
muito ativos, tais como Diego Zarcarão e David Barzilay (que também é
funcionário da Red Hat), mas essa notoriedade de Rodrigo, em especial, é uma
forma de a nação Fedora, cujos membros estão espalhados por todo o mundo,
reconhecer a expressão da comunidade no Brasil. Em entrevista à 1ª edição do
1º ano da Fedora Zine, em março de 2008, Rodrigo assinalou:
A minha reeleição para o Comitê Diretivo de Embaixadores
Fedora, demonstrou não somente a credibilidade do Projeto
Fedora Brasil devido a sua organização, participação e
resultados, mas a união em que os embaixadores brasileiros
e latinos em geral se encontram. Com a criação do
http://proyectofeodora.org, que agrega vários países da
América Latina, como Paraguai, Brasil, Argentina, Chile,
México, Peru, Venezuela e Uruguai, houve uma integração
muito forte entre esses países, que em grande parte me
apoiaram na reeleição... Além, claro, de outros países que
acreditam no meu trabalho e em tudo que estamos
desenvolvendo aqui. Vejo não somente como mérito pessoal,
mas como mérito de toda a equipe do Projeto Fedora Brasil
[...] O Brasil serve como um modelo. Como somos a maior
comunidade da América Latina e um pouco mais madura
devido ao tempo de participação, passamos muitas
experiências para eles e constantemente trocamos
informações através da lista de embaixadores latinos e de
eventos como a I Conferencia Latino Americana de
Embaixadores e Usuários Fedora, realizada no Latinoware
em 2007, com a participação do Paraguai, do Brasil, da
Argentina e da Venezuela.
82
Outro fator merecedor de destaque: além de ser numerosa – a maior da
América Latina, contando com embaixadores em vários estados brasileiros (AM,
BA, CE, MT, MG, PB, PR, RJ, SC, SP, TO e no Distrito Federal) –, a comunidade
brasileira é muito ativa. Não são raras as vezes, por exemplo, em que as
traduções para o idioma “português do Brasil” são uma das primeiras a serem
concluídas, quando não as primeiras.
2.6 O tempo dedicado à colaboração
Pensou-se em chegar a algumas posições sobre o tempo que os
membros das quatro comunidades dedicam à colaboração, especialmente pelo
fato de que o processo de produção do Software Livre, nessas circunstâncias,
verifica-se uma atividade fundamentada basicamente no voluntariado. Os
resultados obtidos, embora muito genéricos e superficiais, mantiveram certa
relação com as inúmeras bibliografias que tratam da questão da cultura hacker.
Pode-se, dizer, em primeiro lugar, que a imensa maioria dos
colaboradores desempenha suas funções durante seu tempo considerado livre,
apesar de muitos admitirem que também o fazem durante alguns momentos
em que deveriam estar ocupados com outros compromissos – como trabalho ou
estudo. Em qualquer um dos dois casos, a opção por colaborar, evidentemente,
implica relegar a segundo plano qualquer outra atividade, seja ela uma
obrigação iminente ou um tempo de puro lazer.
Quando se tentou chegar a uma conclusão sobre a quantidade de tempo
despedido com os mais variados tipos de trabalho, verificou-se, por vários
motivos, que se tratava de uma tarefa quase impossível. Um desses motivos
está no fato de que muitos dos colaboradores estão envolvidos com o mundo
do Software Livre em tempo integral. Divide-se aqui, mais uma vez, duas
esferas de trabalhos que podem estar voltados a uma determinada distribuição:
primeiro, aquelas atividades que estão ligadas diretamente ao software, tais
como desenvolvimento, programação, tradução, documentação etc.; segundo,
todo e qualquer trabalho indireto que faça alusão à distribuição, sendo os mais
83
comuns a divulgação, o incentivo ao uso, a promoção de eventos, palestras e
seminários ou a postagem de conteúdos em fóruns e listas de discussões,
tirando dúvidas, trocando informações, direcionando os principiantes. Assim,
em função da existência do que se chamou de segunda esfera de trabalhos,
muitos colaboradores estão envolvidos praticamente durante todo o tempo com
suas distribuições. E, de um modo geral, observa-se que a quantidade de
tempo despendida é muito variável de entre os membros, e isso se dá, entre
outras razões, pelas diferentes posturas que se assumem, ou seja, pelos
diferentes níveis de comprometimento – e, nesse aspecto, também se notaram
muitas diferenças: desde usuários que não fizeram questão de repassar as
respostas que obtiveram em fóruns até militantes que passaram horas
respondendo a e-mails pessoais com dúvidas de usuários.
Por fim, a despeito de todas as considerações sobre tempo dedicado à
colaboração, cabe fazer um parêntese. De fato, os esforços pessoais são muito
valorizados nos modos da produção entre pares, assim como o tempo que se
despende para corroborar tais esforços. No entanto, inferiu-se que, em meio à
cultura meritocrática, mais importante do que o tempo é a eficiência do
trabalho final. De nada adianta, portanto, empenhar-se durante horas na
programação de uma ferramenta que se apresenta com muitos erros.
2.7 O conceito de “liberdade” sob a ótica de algumas
comunidades
É bem verdade que este tópico não fazia parte da proposta inicial para a
realização da pesquisa, o que, por certo, não impediu que a ele se dedicassem
algumas linhas ao passo que se fez digno de nota.
Há vários motivos pelos quais alguém opta por usar um software livre
em detrimento de um software proprietário, mas três deles merecem certo
destaque – os motivos técnicos, os sociais e os financeiros. Estes últimos são
bem compreensíveis, mas não se aplicam em muitos dos casos estudados:
84
algumas pessoas não querem ou não podem pagar pelo alto preço das licenças
e, por isso, passam a usar softwares livres, que estão gratuitamente disponíveis
na rede. Isso, no entanto, acomete mais as grandes empresas, em que o
número de computadores é elevado e, portanto, é preciso adquirir muitas
licenças.
Nos casos mais elementares de usuários finais e membros das
comunidades de Software Livre, os dois primeiros discursos (a saber, os
aspectos técnicos e os sociais) costumam prevalecer – ora se complementam,
ora são antagônicos. Dessa maneira, permeia os “aspectos técnicos” uma visão
que se baseia unicamente na excelência técnica do software, sendo que
aqueles que a defendem apregoam que se deve usar Software Livre
simplesmente porque é melhor. Para esses indivíduos, o conceito de “liberdade”
está em poder acessar alterar o código-fonte dos programas a fim de assegurar
maior excelência técnica. No entanto, segundo eles, não existe o menor
problema em se usar software proprietário nos casos em que ele funciona
melhor ou garante facilidade de uso.
Por outro lado, há aqueles que consideram que a liberdade que move
aqueles que estão focados apenas nos aspectos técnicos é inexistente – ou,
quando muito, incompleta. Esses usuários estão mais preocupados com as
questões sociais implícitas no ato de usar um Software Livre – ato que, por
essência, denotaria independência (seja das licenças proprietárias defendidas
pelas grandes corporações, das atualizações remuneradas que são exigidas ou
do código-fonte fechado) e altivez. Eles estão, em grande parte dos casos,
envolvidos
em
vários
projetos
de
inclusão
digital
em
comunidades
desfavorecidas e acreditam que a inclusão social está diretamente relacionada à
própria inclusão digital – e esta, diga-se, não poderia se realizar com softwares
proprietários, que deveriam ser abolidos por completo. Assim, a “verdadeira”
liberdade vai muito além das razões técnicas e o Software Livre é, dentre
muitos outros, um instrumento em que se pode inculcar uma ideologia capaz
de mobilizar pessoas e comunidades.
85
Esses dois discursos, que já receberam várias alcunhas – talvez as mais
conhecidas tratem o primeiro como “OSI53” ou “open source” e a segunda como
“Free Software” ou “xiita” –, só fazem por evidenciar que o universo do
software livre está longe de ser homogêneo e irredutível.
Além dessas divergências, há pequenos embates de ordem técnica que,
por fim, também acabam se tornando questões de liberdade. Em princípio,
contudo, dizem respeito a certas peculiaridades técnicas de cada distribuição.
Isso pode ser facilmente ilustrado pelos sistemas Debian e Slackware: no
primeiro, quando um usuário decide baixar determinado programa por meio do
modo texto, isto é, usando linhas de comando, basta recorrer ao APT
(Advanced Packaging Tool), um gerenciador de pacotes que faz o download
não apenas do aplicativo solicitado, mas de todas as suas dependências,
facilitando o trabalho do usuário. No caso do Slackware, o aplicativo
correspondente é o Slackpkg, que busca apenas o arquivo solicitado, sem suas
dependências54. Muitos usuários das distribuições derivadas do Debian (ou
mesmo daquelas derivadas do Fedora, em que o gerenciador é o Yum, com
função semelhante à do APT no que diz respeito à busca por dependências)
defendem o uso de seu gerenciador pelo fato de ele proporcionar facilidade de
uso. Já grande parte dos slackers, em contrapartida, acreditam que isso fere a
liberdade do usuário, uma vez que ele não tem pleno controle sobre o sistema.
O depoimento de um usuário Slackware durante uma conversa no canal
#slackware-br da rede Freenode.net no IRC é muito esclarecedor:
A diferença é que nos Debians da vida, ou nos Redhat da
vida, programas desse tipo fazem checagem de
53
Em alusão à licença Open Source Iniative (OSI), que não obriga a publicação de alterações
realizadas no código-fonte de algum software, possibilitando a existência de projetos integrados
por softwares livres e softwares proprietários
54
É como se, em analogia bem rudimentar, um indivíduo precisasse cozinhar arroz. Quando
usar o APT, o gerenciador do Debian, não precisará se preocupar com qualquer ingrediente: o
gerenciador buscará pelos grãos, pela água e pelos temperos, combinando tudo o que for
necessário para que o arroz fique pronto. Quando usar o Slackpkg, o usuário terá em suas
mãos apenas os grãos, devendo, portanto, buscar os ingredientes por conta própria.
86
dependências. Como o Slackware por natureza não tem essa
política, o slackpkg também não o faz. Quer baixar o
apache? [Digite] "slackpkg install apache" e pronto. Ele não
vai baixar nada alem do que vc ordenar. Um “apt-get” já
checa se o apache depende de alguma outra coisa e vai
querer baixar essa outra coisa tb. Os usuários dessas distros
vêem isso como facilidade. Nós usualmente vemos isso como
"perda de controle" por parte do usuário pq se, por exemplo,
vc manda remover o postfix num debian/redhat, ele vai
querer remover outras coisas junto, mas não foi isso que vc
mandou, certo?
87
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aproveita-se este espaço, então, para traçar algumas considerações
finais acerca do estudo que se apresentou nas páginas anteriores. Neste
momento, não convém repetir à exaustão o conjunto de hipóteses e
explicações levantadas ao longo da pesquisa, mesmo porque se acredita que
todas as descrições aqui reveladas possam fornecer, com certo grau de sucesso, algumas respostas e interpretações à grande questão inicial: como se dá a
dinâmica interna de uma comunidade de software livre?
Passemos, pois, aos fatos. É possível atestar que, quando remeter aos
aspectos sociais e de comunidade, a expressão “open source” deverá ser
empregada com certo cuidado. Embora este trabalho tenha tratado apenas de
uma ínfima parcela desse universo, constatou-se um grande número de divergências ao longo dos vários elementos de análise nos quais nos focamos. A
começar pela natureza das distribuições – duas comerciais e duas nãocomerciais –, observaram-se, de um lado, modos de trabalho um tanto rígidos e
fiéis a um tipo de hierarquia e, de outro, sistemas um pouco mais descentralizados. Fizeram-se notar, inclusive, diferentes estruturas de organização,
ora com Conselhos, ora com Líderes e Constituições, e ora com um “ditador
benevolente vitalício”. Enquanto, para uns, a idéia de “liberdade” está associada
ao aprimoramento das interfaces gráficas a fim de tornar o sistema mais user-
friendly possível e, assim, universalizar o acesso, para outros, ser “livre”
depende de qual poder o usuário tem sobre o código-fonte e, por isso, convém
trabalhar para sua excelência, mantendo a fidelidade dos velhos membros. Em
suma: o mundo open source está longe de ser homogêneo. As comunidades de
distribuições de software livre parecem ser pequenas esferas públicas, cada
qual com suas distinções, e todas fazendo parte da grande esfera pública
interconectada.
88
No entanto, a lógica que as mantém (as comunidades) é, há muito, a
mesma: todas se valem de um modelo aberto e colaborativo, dinâmico e
flexível, calcado na espontaneidade e na voluntariedade. Nele, fazem-se
presentes a cultura meritocrática e a produção entre pares (peer production),
elementos-chave da cultura hacker. Os mais diversos colaboradores, motivados
pela busca do conhecimento, pela necessidade de se relacionar e pela vontade
de serem reconhecidos em função de seus feitos, expressam seus desejos à
comunidade e se empenham nas tarefas nas quais são mais hábeis e que mais
lhes dão prazer. Depois de se tornarem colaboradores fixos e se mostrarem
aptos para tal, passam a assumir trabalhos que exigem mais responsabilidade e
empenho, sendo que sua ascensão depende de sua competência e do nível de
relacionamento com seus pares. Esse novo modelo de trabalho, que se impõe
graças, entre outros, às possibilidades trazidas pelas tecnologias digitais,
desafia de forma consistente as limitações do paradigma neoliberal dominante
porque seus trabalhadores não têm perspectiva de um retorno que possa ser
lucrativo e suas ações não são respaldadas por leis ou contratos –
prevalecendo, portanto, um ambiente de troca, e as comunidades só se tornam
um projeto possível em função disso.
Por fim, deve-se apontar que os exemplos das comunidades de software
livre configuram-se como uma parte de algo muito maior que se faz notar na
sociedade em rede pós-industrial. E esse novo modo de produção, de avaliação
e de distribuição de informações – do qual fazem parte, além da própria
internet, vários projetos consolidados a partir da rede, tais como o YouTube, o
Slashdot, o Digg, a Wikipédia, o Seti@Home, a licença Creative Commons etc. –
parece estar influenciando diretamente os velhos paradigmas da sociedade,
que, por sua vez, passam por constantes processos de revisão e de adaptação.
Que a filosofia open source possa ajudá-los.
89
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