capitães da areia

Transcrição

capitães da areia
Jorge Amado
CAPITÃES DA AREIA
´ DA OBRA
ANALISE
JOSÉ DE PAULA RAMOS JR.
APRESENTAÇÃO
Jorge Amado iniciou a redação de seu sexto romance, Capitães da Areia, na cidade de Estância, interior do Estado de Sergipe, em março de 1937, para terminá-la em pleno Oceano Pacífico, a caminho
do México, no mês de junho do mesmo ano. Os exemplares da primeira edição da obra, disponíveis
no mercado e no estoque da Editora José Olympio, que a lançara, foram apreendidos pouco após a
instalação do Estado Novo (1937-1945). Em novembro, oitocentos exemplares do livro foram incinerados publicamente em Salvador, por ordem do comandante da 6ª- Região Militar.
A ditadura Vargas, enquanto durou, pode ter impedido a circulação desse romance, mas, a partir
de sua segunda edição (1944), ele vem mostrando tal vitalidade, que já ultrapassou a marca de 120 edições em língua portuguesa, tendo sido traduzida para o alemão (Herren des Strandes, 1954), espanhol
(Los capitanes de la arena, 1956), francês (Capitaines des sables, 1952), inglês (Captains of the sands, 1988),
italiano (Banditi del porto, 1952), russo (Piestchânie capitâni, 1976) e tcheco (Kapitâni z písku, 1951). Trata-se da obra mais lida do autor, também difundida por meio de adaptações para teatro, cinema e história em quadrinhos.
Os molecotes atrevidos, o olhar vivo, o gesto rápido, a gíria de malandro, os rostos chupados de fome, pedem
esmola. Praticam também pequenos furtos. Há quarenta anos escrevi um romance sobre eles. Os que conheci naquela
época são hoje homens maduros, malandros do cais, com cachaça e violão, operários de fábrica, ladrões fichados na
polícia, mas os Capitães da Areia continuam a existir, enchendo as ruas, dormindo ao léu. Não um bando surgido ao
acaso, coisa passageira na vida da cidade. Não, são um fenômeno permanente, nascido da fome que se abate sobre as
classes pobres. Aumenta diariamente o número de crianças abandonadas. Os jornais noticiam constantes malfeitos
desses meninos, que têm como único corretivo as surras na polícia, os maus tratos sucessivos. Parecem pequenos ratos
agressivos, sem medo de coisa alguma, de choro fácil e falso, de inteligência ativíssima, soltos de língua, conhecendo
todas as misérias do mundo.
AMADO, Jorge. Guia das ruas e dos mistérios da cidade do Salvador da Bahia.
Rio de Janeiro: Som Livre, 1997, faixa 5, disco 2.
JORGE AMADO
(Ferradas, 1912- 2001, Salvador)
Filho de fazendeiro produtor de cacau, Jorge Amado nasce na
zona rural do município de Itabuna, sul da Bahia, em 1912. Passa a
infância em Ilhéus até mudar-se para Salvador, onde realiza os
estudos secundários. Forma-se advogado pela Faculdade Nacional
de Direito, no Rio de Janeiro, em 1935, ano de publicação de seu
quarto romance: Jubiabá.
Perseguido pelo Estado Novo getulista, devido a sua militância
política, é obrigado a viver no exílio entre 1941 e 1944. De volta ao
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
• 150 •
ANGLO VESTIBULARES
Brasil, elege-se deputado constituinte, em 1945,
pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Deve-se
ao seu trabalho parlamentar a garantia constitucional à liberdade religiosa que vigora no país. Dois
anos após, com a cassação de registro e a declaração de ilegalidade de seu partido, Jorge Amado
segue para novo período de exílio, que se estende
até o ano de 1952. Outra vez em sua pátria, o escritor
deixa a militância política, em 1955, mas sem romper com suas convicções ou com o PCB, para dedicar-se integralmente à literatura.
Jorge Amado se consagra como o escritor brasileiro de maior sucesso nacional e internacional no século XX, com obras publicadas em inúmeros países e
traduzidas para cerca de 50 idiomas. A eleição para a
Academia Brasileira de Letras, em 1961, ratifica o reconhecimento popular de que já gozava o escritor desde seus primeiros romances, lançados na década de
1930. Esse prestígio se expandiu ainda mais com as
inúmeras adaptações de sua produção literária para
teatro, cinema e televisão. Falece em Salvador, em 2001,
poucos dias antes de completar 89 anos de idade, o
amado Jorge do povo brasileiro.
Depoimento de Claude Guméry-Emery
(professora de literatura e cultura
brasileira na Universidade Stendhal
de Grenoble, França)
Ler Jorge Amado num país estrangeiro é entender pela
literatura como se formou o Brasil, é tornar presente e patente o que o sociólogo Gilberto Freyre e o historiador Sérgio
Buarque de Holanda explicaram. É compreender a história
do Brasil além de Salvador e da Bahia.
(...)
Nos romances de Jorge Amado, vivenciamos os resultados da colonização portuguesa (mas não só; também da
francesa, da inglesa, da holandesa, da espanhola, em outras
terras) e da escravidão; quem lê Seara vermelha compreende
o Movimento dos Sem-Terra; quem lê Os pastores da noite
entende a violência urbana de hoje. Jorge é a articulação
entre a herança do passado e a construção do futuro. Conta
a epopeia da conquista das terras, denuncia o latifúndio nos
“romances da terra”, defende os menores abandonados,
reabilita a mulher negra e mestiça nos romances urbanos,
explica como se estruturou e hierarquizou a sociedade brasileira, mostra como é longo o caminho a ser percorrido.
In: A literatura de Jorge Amado – caderno de leituras. São Paulo:
Companhia das Letras, novembro de 2008.
ROMANCES DO AUTOR
• O país do Carnaval (1931)
• Cacau (1933)
• Suor (1934)
• Jubiabá (1935)
• Mar morto (1936)
• Capitães da Areia (1937)
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
Fac-símile da capa da 1a edição
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
Terras do sem-fim (1943)
São Jorge dos Ilhéus (1944)
Seara vermelha (1946)
Os subterrâneos da liberdade: Os ásperos tempos;
Agonia da noite; A luz no túnel (1954)
Gabriela, cravo e canela (1958)
O capitão-de-longo-curso (1961)
A morte e a morte de Quincas Berro D’água (1961)
Os pastores da noite (1964)
O compadre de Ogum (1964)
Dona Flor e seus dois maridos (1966)
Tenda dos Milagres (1969)
Tereza Batista cansada de guerra (1972)
O gato malhado e a andorinha Sinhá (1976)
Tieta do Agreste (1977)
Farda, fardão, camisola de dormir (1979)
Tocaia Grande (1984)
O sumiço da santa (1988)
A descoberta da América pelos turcos (1992)
O milagre dos pássaros (1997)
CAPITÃES DA AREIA (1937)
Elementos do Enredo
O romance se divide em quatro partes, intituladas: “Cartas à redação”, “Sob a lua, num velho trapiche abandonado”, “Noite da grande paz, da grande
paz dos teus olhos” e “Canção da velha Bahia, canção
da liberdade”. A primeira é constituída por uma suposta reportagem de jornal, seguida da transcrição de
cinco supostas cartas de leitores que se haveriam manifestado sobre a mencionada reportagem; a segunda
• 151 •
ANGLO VESTIBULARES
parte contém onze capítulos; a terceira e a quarta, oito
capítulos cada. Ao todo, são 27 capítulos mais ou menos curtos, antecedidos pela hipotética reportagem e
pelas pseudocartas.
A história se passa, sobretudo, na cidade de Salvador, capital da Bahia, numa época imprecisa, mas
que se pode situar, aproximadamente, entre o final da
década de 1920 e meados do decênio seguinte.
A narrativa se inicia com a descrição de um velho
trapiche abandonado. O casarão em ruínas, que servira outrora de armazém e atracadouro de embarcações, tornara-se moradia e esconderijo para um grupo de crianças e adolescentes abandonados que, para
sobreviver, dedicavam-se a furtos e assaltos.
Os Líderes
Mais de cem meninos compõem o bando dos
chamados “Capitães da Areia”, dos quais uns quarenta dormem regularmente no trapiche. Seu líder é Pedro Bala, rapaz entre quatorze e quinze anos de idade, órfão desde os cinco, cujo pai, estivador conhecido
pelo apelido de “Loiro”, fora fuzilado pela polícia nas
docas, quando discursava aos companheiros em greve.
Pedro Bala conquista a chefia após vencer Raimundo, o antigo líder, numa célebre briga. Numa luta anterior, Raimundo cortara o rosto de Pedro Bala com
uma navalhada, de que resultara grande cicatriz. Vencido, Raimundo abandona o grupo. Pedro Bala é aceito como chefe por tácito e unânime reconhecimento
de suas qualidades: a inteligência, a lealdade, o senso
de justiça, a habilidade no trato com os outros. Conforme assinala o narrador, Pedro Bala “trazia nos olhos e
na voz a autoridade de chefe”1. Sob a nova liderança,
o grupo se organiza melhor e ganha fama na cidade.
Pedro Bala comanda as atividades com a ajuda de
alguns companheiros mais próximos, reconhecidos
pelo bando como maiorais. Entre eles, destaca-se
João Grande, negro de treze anos que se distingue
não pela inteligência, mas pela enorme força, pela
bondade natural e pela proteção que devotava aos
menores e mais fracos.
Outro líder é João José, o “Professor”, muito respeitado pela inteligência. Alfabetizado, lê vorazmente
os livros que furta e coleciona, cujas histórias ele narra à noite aos companheiros. O Professor possui, também, grande e espontâneo talento para o desenho,
com que costumava ganhar algum dinheiro, retratando os transeuntes a giz nas calçadas da cidade. “Pedro Bala nada resolvia sem o consultar e várias vezes
1
AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008, p. 29. As citações do romance sempre remetem a
essa edição. As próximas serão identificadas pelo respectivo
número de página entre parênteses.
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
foi a imaginação do Professor que criou os melhores
planos de roubo” (p. 32).
É importante o papel de Sem-Pernas, garoto coxo
que se vale da deficiência física e da habilidade em
fingir-se bom menino para ganhar a simpatia das famílias e ser acolhido em suas casas, com a finalidade
de observar os hábitos dos moradores, verificar onde
se guardavam os objetos de valor e indicar a melhor
maneira de roubá-los. Apesar de respeitado, poucos
gostavam dele no grupo. Tinha fama de cruel e de malvado, costumava ridicularizar a todos, era dos mais
briguentos e nutria um grande ódio contra o mundo,
sobretudo após ter sido preso e espancado pela polícia. As humilhações sofridas na delegacia tornaram-se
um pesadelo que o atormentava, fazia com que tivesse medo de dormir e o deixava cada vez mais rancoroso, especialmente contra os policiais e os ricos
considerados culpados pelas misérias que o angustiavam. No fundo, sentia enorme carência de afeto, o
que alimentava seu sentimento de ódio e desejo de
vingança.
Pirulito, Gato, Boa-Vida e Volta Seca completam a
cúpula dos Capitães da Areia. O primeiro se distingue
pelo sentimento religioso e pela vocação para o sacerdócio; o segundo e o terceiro, pela propensão à vida
de malandro, adversa ao trabalho regular. Gato, o
“elegante” do bando, antes de completar quatorze
anos, torna-se amante da bela prostituta Dalva e desenvolve a aptidão para trapacear em jogos de baralho; Boa-Vida revela talento para sambista, arruaceiro
e vagabundo. Volta Seca, por sua vez, é um menino
sertanejo, afilhado do cangaceiro Lampião, que aspira a voltar para o sertão e incorporar-se ao bando de
seu padrinho, por quem nutre imensa admiração.
Adultos Amigos
A cidade os teme, a polícia os persegue, mas os Capitães da Areia têm a amizade de alguns adultos, todos pobres. Um deles, conhecido como Querido-deDeus, o mais respeitado mestre de capoeira da Bahia,
luta que ensina a Pedro Bala, Gato e João Grande, vive da pesca e demonstra verdadeira simpatia e respeito pelo bando, confraterniza com os líderes e manifesta solidariedade aos meninos abandonados nos
momentos mais difíceis.
A mãe de santo Don’Aninha tem a amizade dos
Capitães da Areia porque, nas palavras do narrador,
“são amigos da grande mãe de santo todos os negros
e todos os pobres da Bahia” (p. 97). Líder e conselheira espiritual, guardiã dos cultos religiosos de origem africana, Don’Aninha “cura doenças, junta amantes” e mata “homens ruins” com “seus feitiços”. “Era
alta e magra, um tipo aristocrático de negra (...). Tinha
o rosto alegre, se bem bastasse um olhar seu para
inspirar profundo respeito” (p. 97). A mãe de santo recebe socorro dos Capitães da Areia num importante
episódio da narrativa, quando seu terreiro é invadido
• 152 •
ANGLO VESTIBULARES
pela polícia, que apreende e leva para a delegacia uma
imagem sagrada de Ogum.
O padre José Pedro fora operário cinco anos em
uma tecelagem e conseguira entrar para o seminário
com a promessa do patrão, feita ao bispo que visitava
a fábrica, de custear os estudos de “alguém que quisesse estudar para padre” (p. 73). De seu tear, José
Pedro ouvira a conversa, declarara-se interessado na
oferta e, assim, fora admitido no seminário. Embora o
diretor da fábrica só honrasse o compromisso nos dois
primeiros anos, o estudante pôde seguir seus estudos
até ordenar-se, trabalhando como bedel no próprio
seminário. Ali, fora discriminado pelos colegas, por
sua baixa origem social e por seu baixíssimo desempenho nos estudos, o que era compensado pelo seu comportamento exemplar, bem como pela sincera devoção e pela legítima vocação para o sacerdócio. Após
ordenar-se, enquanto espera a designação para uma
paróquia, acerca-se dos Capitães da Areia, com o “grande desejo” de “catequizar as crianças abandonadas da
cidade, os meninos que, sem pai e sem mãe, viviam
do roubo, em meio a todos os vícios. O padre José Pedro queria levar aqueles corações a Deus” (p. 74).
Com carinho e bondade, conquista a confiança do bando liderado por Pedro Bala, mas, apesar do respeito
obtido, sua ação catequética não prospera muito,
exceto pela conversão de Pirulito. Em defesa dos menores abandonados, padre José Pedro denuncia à imprensa os maus tratos sofridos por eles quando presos no reformatório, e é complacente com os vícios
das crianças do bando, que ele protege a despeito da
orientação de seus superiores e, às vezes, até mesmo
ao arrepio da lei. Por isso, sofre a hostilidade das beatas que frequentavam a igreja onde oficiava, é criticado pela imprensa, que divulga uma carta do diretor do
reformatório, desmentindo as acusações e difamando
o sacerdote, além de receber ásperas reprimendas de
seus superiores eclesiásticos, como a de um cônego que
o chamara de comunista.
João de Adão, um dos mais velhos estivadores em
atividade no porto de Salvador, líder de sua categoria
profissional, antigo companheiro de Loiro, pai de Pedro Bala, também goza de prestígio junto aos Capitães
da Areia, especialmente de seu maior chefe. Distingue-se pela consciência e pela militância política, em
que exerce o papel de organizador de greves e membro de uma “organização” clandestina.
Na parte final da narrativa, ganha ainda destaque
um estudante universitário chamado Alberto, ativista
político de esquerda, que age em solidariedade aos
trabalhadores nas suas lutas. Apresentado por João de
Adão a Pedro Bala, Alberto contribui para a transformação do chefe dos Capitães da Areia em líder e organizador do proletariado.
Episódios e Peripécias
O enredo entrelaça ações circunstanciais que se
encerram em si mesmas, sem fazer avançar a narrati-
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
va, e ações que dinamizam as situações, modificam o
modo de agir das personagens e articulam os acontecimentos que definem a história central numa relação de causalidade. As ações circunstanciais constituem episódios; as dinâmicas, peripécias.
Os episódios, sobretudo, caracterizam a vida coletiva dos meninos abandonados ou configuram perfis individuais das personagens importantes. Servem,
ainda, para compor a imagem da cidade dividida entre ricos e pobres.
Os onze capítulos da segunda parte do livro –
“Sob a lua, num velho trapiche abandonado” – são,
sobretudo, episódicos. “O Trapiche”, por exemplo,
desenha a miséria e a promiscuidade do ambiente físico e moral em que vive o bando e traça o primeiro
retrato de Pedro Bala. “Noite dos Capitães da Areia”,
segundo capítulo dessa parte, prossegue com a função
de apresentar líderes do grupo – João Grande, o Professor, Pirulito, Sem-Pernas, Boa-Vida, Gato e Volta
Seca –, fixando-lhes os traços de caráter por meio de
pequenas sínteses biográficas. O capítulo seguinte,
“Ponto das Pitangueiras”, destaca a astúcia e a habilidade dos Capitães da Areia, ao mostrar como alguns
de seus líderes conseguem entrar numa casa, substituir um objeto por outro de igual aparência, burlando
a vigilância de um cão e de um homem, e sair sem serem sequer percebidos. Na sequência, justapõe-se o
capítulo “As luzes do carrossel”, talvez o melhor exemplo de acontecimento episódico do livro, uma vez que
a ação nele contida apresenta-se como que encapsulada, aparentemente autônoma em relação a anteriores e posteriores. Nem por isso esse capítulo é desprovido de importância, pois introduz o retrato moral
do padre José Pedro, que em passagens anteriores só
fora mencionado ligeiramente, e elabora uma alegoria decisiva para a construção do sentido do romance,
como veremos mais adiante, além de agregar elementos para a caracterização psicológica de duas
personagens de destaque: Volta Seca e Sem-Pernas.
Os demais capítulos da segunda parte do romance apresentam-se, em maior ou menor grau, também
como episódios, com as mesmas funções mencionadas acima. No quinto, “Docas”, Pedro Bala e Boa-Vida
vão passear na zona portuária e encontram por acaso
o velho estivador João de Adão, líder dos doqueiros.
Numa conversa, de que também participa uma velha
negra chamada Luísa, vendedora de laranjas e cocadas, Pedro toma conhecimento de suas origens. Luísa
conhecera os pais do rapaz: Raimundo, apelidado de
Loiro, fora operário em uma fábrica de cigarros antes
de tornar-se doqueiro; a mãe, de família rica, fugira
de casa para casar-se com Raimundo, mas morrera
quando Pedro tinha cerca de seis meses de vida. João
de Adão, que fora companheiro do pai de Pedro, ressalta a coragem de Loiro, que morrera na luta “pelo
direito da gente. Era um homem e tanto. Valia dez destes que a gente encontra por aí.” (p. 86). João de Adão
• 153 •
ANGLO VESTIBULARES
garante a Pedro Bala um lugar nas docas, quando e
se ele quisesse seguir os passos do pai. Essa conversa
provoca reflexões no líder dos Capitães da Areia, que
são como um vago despertar de consciência política
revolucionária, mesclada com sentimento de vingança pessoal:
O navio apitava nas manobras de atracação. De todos os cantos surgiam estivadores que se iam dirigindo
para o grande armazém. Pedro Bala os olhou com carinho. Seu pai fora um deles, morrera por defesa deles. Ali
iam passando homens brancos, mulatos, negros, muitos
negros. Iam encher os porões de um navio de sacos de
cacau, fardos de fumo, açúcar, todos os produtos do estado que iam para pátrias longínquas, onde outros homens como aqueles, talvez altos e loiros, descarregariam
o navio, deixariam vazios os seus porões. Seu pai fora um
deles. Somente agora o sabia. E por eles fizera discursos
trepado em um caixão, brigara, recebera uma bala no dia
em que a cavalaria enfrentou os grevistas. Talvez ali mesmo, onde ele sentava, tivesse caído o sangue de seu pai.
Pedro Bala mirou o chão agora asfaltado. Por baixo daquele asfalto devia estar o sangue que correra do corpo
de seu pai. Por isso, no dia em que quisesse, teria um lugar nas docas, entre aqueles homens, o lugar que fora de
seu pai. E teria também que carregar fardos... Vida dura
aquela, com fardos de sessenta quilos nas costas. Mas
também poderia fazer uma greve assim como seu pai e
João de Adão, brigar com polícias, morrer pelo direito
deles. Assim vingaria seu pai, ajudaria aqueles homens a
lutar pelo seu direito (vagamente Pedro Bala sabia o que
era isso). Imaginava-se numa greve, lutando. E sorriam
os seus olhos como sorriam os seus lábios. (p. 87).
Além desse, há outro episódio que arremata o
capítulo em questão. De volta das docas para o
trapiche, na praia quase deserta, Pedro Bala sodomiza à força uma jovem negra, apesar de ela implorar
para que ele a poupasse. Tal episódio, aparentemente
desconexo de tudo, caracteriza a bestialidade dos
instintos sexuais do protagonista e tem a função de
servir de contraponto ao futuro comportamento dele
em relação a outra jovem, Dora, personagem decisiva
na terceira parte do romance, como será explicitado
em outro momento deste estudo.
5a edição (1954) de Capitães da Areia.
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
O capítulo seguinte tem muito de episódico, mas
se aproxima da peripécia na medida em que determina, embora de modo fantástico, acontecimentos vindouros. Trata-se de “Aventura de Ogum”, capítulo em
que a imagem desse orixá é retirada de seu altar no
candomblé de Don’Aninha e levada pela polícia para
uma delegacia. A mãe de santo recorre a Pedro Bala,
que se faz prender para resgatar e restituir a imagem
ao seu lugar sagrado. Nesse capítulo, patenteia-se a
intolerância e a perseguição religiosa que, na época em
que transcorre a história, afligiam os praticantes dos
cultos religiosos de origem africana no Brasil. Além
disso, reforça-se a imagem de Pedro Bala como herói
solidário, dotado de rara inteligência, coragem e habilidade.
Seguem-se três capítulos – “Deus sorri como um
negrinho”, “Família” e “Manhã como um quadro” –
protagonizados, respectivamente, por Pirulito, SemPernas e Professor. São três episódios que também
servem de suporte para a configuração da psicologia
dessas personagens. No primeiro, Pirulito rouba uma
imagem de Menino Jesus exposta em uma loja. O narrador expõe as hesitações do menino nos momentos
que antecedem o roubo, de modo que o leitor possa
acompanhar o fluxo de sentimentos e pensamentos contraditórios, entre o temor e o amor de Deus, que o levam a meditar sobre os exemplos e as idéias de padre
José Pedro e do estivador João de Adão sobre justiça
e culpa:
Sua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado, de
furtos quase diários, de mentiras nas portas das casas
ricas. Por isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com os
olhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom
(mas não tão justo também…) pelos seus pecados e os dos
Capitães da Areia. Mesmo porque eles não tinham culpa.
A culpa era da vida...
O padre José Pedro dizia que a culpa era da vida e
tudo fazia para remediar a vida deles, pois sabia que era a
única maneira de fazer com que eles tivessem uma existência limpa. Porém uma tarde em que estava o padre
José Pedro e estava o João de Adão, o doqueiro disse que
a culpa era da sociedade mal organizada, era dos ricos.…
Que enquanto tudo não mudasse, os meninos não poderiam ser homens de bem. E disse que o padre José Pedro
nunca poderia fazer nada por eles porque os ricos não
deixariam. O padre José Pedro naquele dia tinha ficado
muito triste, e quando Pirulito o foi consolar, explicando
que ele não ligasse ao que João de Adão dizia, o padre
respondeu balançando a cabeça magra.
— Tem vezes que eu chego a pensar que ele tem razão, que isso tudo está errado. Mas Deus é bom e saberá
dar o remédio... (pp. 111-112)
O capítulo “Família” relata a aventura em que
Sem-Pernas se infiltra na casa de um casal rico de
Salvador, Dona Ester e seu marido, Dr. Raul, um
advogado de grande reputação. Fingindo-se bom
menino, Sem-Pernas é acolhido com muito afeto.
Tratado como filho, ele também se apega ao casal e
sofre pelo desgosto que daria quando cumprisse sua
missão de espionagem e informação para o roubo.
Hesita e, continuando a fingir, prolonga sua per-
• 154 •
ANGLO VESTIBULARES
manência na casa até não poder mais. Enfim, decidese pela lealdade devida ao bando, foge do lar acolhedor e volta a viver no trapiche, ainda mais amargurado do que já era.
“Manhã como um quadro”, por sua vez, relata o
episódio em que o Professor, acompanhado de Pedro
Bala, ganha alguns trocados a desenhar a giz, nas
calçadas da Cidade Alta, retratos dos transeuntes. Um
destes, que era poeta, fica impressionado com o talento do menino, puxa conversa com ele e se oferece
para ajudá-lo.
Seguem-se mais dois capítulos, “Alastrim” e “Destino”, que encerram a segunda parte do romance. O
primeiro tem a aparência de outro episódio isolado,
que relata as atribulações da cidade em decorrência
de uma epidemia de varíola. Esta se apresenta como
se fora castigo do orixá Omolu aos ricos de Salvador.
Todavia, quem mais sofre são os pobres e, entre eles,
os Capitães da Areia. Nesse capítulo, há uma cena
importante, carregada de crítica contra a postura da
Igreja católica, que seria desfavorável às classes baixas. Trata-se do diálogo travado entre um cônego,
apresentado como porta-voz das posições oficiais da
instituição, e o padre José Pedro, que é recriminado
por seu comportamento solidário aos pobres e refratário às adulações e expectativas dos ricos. No decorrer da conversa, o cônego se comporta de modo duro
e áspero ao dizer:
— Cale-se — a voz do cônego era cheia de autoridade. — Quem o visse falar diria que é um comunista que
está falando. E não é difícil. No meio dessa gentalha o
senhor deve ter aprendido as teorias deles… O senhor é
um comunista, um inimigo da Igreja…
O padre o olhou horrorizado. O cônego levantou-se,
estendeu a mão para o padre:
— Que Deus seja suficientemente bom para perdoar seus atos e suas palavras. O senhor tem ofendido a
Deus e à Igreja. Tem desonrado as vestes sacerdotais que
leva. Violou as leis da Igreja e do Estado. Tem agido como um comunista. Por isso nos vemos obrigados a não
lhe dar tão cedo a paróquia que o senhor pediu. Vá (agora sua voz voltava a ser doce, mas de uma doçura cheia
de resolução, uma doçura que não admitia réplicas), penitencie-se dos seus pecados, dedique-se aos fiéis da
igreja em que trabalha e esqueça essas ideias comunistas, senão, teremos que tomar medidas mais sérias. O
senhor pensa que Deus aprova o que está fazendo? Lembre-se que a sua inteligência é muito pequena, o senhor
não pode penetrar nos desígnios de Deus… (p. 155)
O derradeiro e curtíssimo capítulo da segunda
parte — “Destino” — limita-se a reproduzir uma conversa de bar, em que um velho freguês afirmara que
o destino era algo imutável, pré-determinado pelo
céu, para ser contraditado por João de Adão e por
Pedro Bala.
Dora
A terceira parte do livro, como já se sabe, intitulase “Noite da grande paz, da grande paz dos teus
olhos” e contém oito capítulos. Neles, uma nova e
importantíssima personagem dinamiza a narrativa e
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
imprime aos elementos da ação um caráter mais de
peripécia do que de episódio. Isso quer dizer que tais
capítulos se articulam, sobretudo, por relações de
causalidade.
O primeiro, “Filha de bexiguento”, introduz a personagem mencionada acima. Trata-se da menina
Dora, cujos pais, muito pobres, sucumbem na onda
de varíola que, enfim, passara, deixando a cidade
retornar à normalidade. Antes de completar quatorze
anos de idade, a menina vê-se órfã com o irmão menor, Zé Fuinha, de seis anos, sem ter o que comer
nem onde morar. Despejadas pelo dono do barracão,
que já o alugara a um novo inquilino, as duas crianças
caminham descalças até a casa de uma antiga patroa
da mãe delas, onde esta trabalhara como lavadeira de
roupa. Dora se oferece para servir como copeira, mas
a dona da casa, que outrora a convidara exatamente
para isso, muda de idéia ao saber da causa da morte
dos pais da menina. Esta ainda tenta empregar-se em
muitas outras casas, sempre com o mesmo resultado,
devido ao medo que os possíveis patrões sentiam da
varíola.
Com uma esmola recebida, Dora compra pães
amanhecidos. Ao comê-los com o irmão, dois meninos
se aproximam com olhar de fome e ela oferece-lhes
os pães que restavam. Dora conta a sua história aos
novos conhecidos. Estes, que eram Zé Grande e Professor, compadecidos, convidam a menina e seu irmão a acompanhá-los ao trapiche, onde poderiam
dormir.
Meninas não eram admitidas no bando dos Capitães da Areia, que se alvoroçam com a presença de
Dora e tentam estuprá-la. O bando ataca Zé Grande e
Professor, que a defendiam, quando chega Pedro Bala e, após um primeiro momento em que dera razão
ao bando, muda de opinião perante os apelos dos
defensores e o comovente pavor evidenciado nos
olhos da menina. O líder do bando impõe sua autoridade e decreta que ninguém molestaria Dora. Esta
decide permanecer no trapiche com o irmão e tornarse membro do bando.
Os dois capítulos seguintes, “Dora, mãe” e “Dora,
irmã e noiva”, como os próprios títulos sugerem, relatam o processo em que Dora vai conquistando rapidamente a simpatia de todos os Capitães da Areia,
que passam a nutrir por ela sentimentos filiais, ou
fraternos ou, no caso de Professor e de Pedro Bala, de
puro amor. Dora também ama Pedro Bala e, assim, os
dois se declaram noivos.
No quarto capítulo dessa parte do romance, intitulado “Reformatório”, Pedro Bala e Dora são presos
pela polícia, em flagrante de roubo numa casa que
haviam invadido, com mais quatro meninos do bando. O líder dos Capitães da Areia arma grande confusão, permitindo a fuga dos companheiros. Dora, porém, não consegue escapar. Na delegacia, Pedro Bala
é brutalmente espancado e chicoteado para revelar
• 155 •
ANGLO VESTIBULARES
onde o bando se escondia, mas nada diz. Dora é conduzida a um orfanato; o rapaz, para a instituição referida no título. Lá, ele é encarcerado numa cafua.
Ouviu o bedel Ranulfo fechar o cadeado por fora.
Fora atirado dentro da cafua. Era um pequeno quarto,
por baixo da escada, onde não se podia estar em pé,
porque não havia altura, nem tampouco estar deitado ao
comprido, porque não havia comprimento. Ou ficava
sentado, ou deitado com as pernas voltadas para o corpo
numa posição mais que incômoda. Assim mesmo Pedro
Bala se deitou. Seu corpo dava uma volta e seu primeiro
pensamento era que a cafua só servia para o homem-cobra que vira, certa vez, no circo. Era totalmente cerrado o
quarto, a escuridão era completa. O ar entrava pelas frestas finas e raras dos degraus da escada. Pedro Bala,
deitado como estava, não podia fazer o menor movimento. Por todos os lados as paredes o impediam. Seus
membros doíam, ele tinha uma vontade doida de esticar
as pernas. Seu rosto estava cheio de equimoses das pancadas na polícia […] (p. 203)
Pedro permanece oito dias na cafua, alimentado só
com uma caneca de água e um prato de feijão ralo como ração diária. Ao sair dali, passa a cortar cana na
plantação que havia no reformatório; trabalho obrigado aos internos, sob a vigilância de bedéis violentos.
Trabalhando no roçado, Pedro vê, para além da
cerca, na estrada, a figura de Sem-Pernas, que rondava a região desde a prisão do chefe. Este consegue
passar um bilhete ao amigo, pedindo que ele, à noite,
escondesse uma corda no canavial. No dia seguinte,
Pedro se vale do alvoroço causado por um detento,
que atacara um bedel com uma faca, e da simultânea
confusão provocada pela fuga de outro interno, para
levar a corda ao dormitório e escondê-la debaixo do
colchão, sem ser visto. À noite, Pedro Bala foge do reformatório.
Os próximos quatro capítulos, que encerram a
terceira parte do romance, são bem curtos. Em “Orfanato”, relata-se de modo sumário que Dora passara
um mês na instituição e ficara muito doente, com uma
febre que não cedia. Pedro Bala, com alguns companheiros, invade o prédio e resgata a amada, tirando-a da enfermaria e levando-a para o trapiche. “Noite de grande paz”, curtíssimo, equivale a um quadro
em que os Capitães da Areia, em silêncio, contemplam a agonia serena de Dora, enquanto Pedro Bala
lhe dá a mão e a mãe de santo Don’Aninha reza para
espantar a febre. Segue-se “Dora, esposa”, em que a
enferma revela ao amado que se tornara moça no orfanato, insistindo para que ele a possuísse. A união dos
corpos tem o significado de um casamento in extremis. De fato, na manhã seguinte, Dora está morta. Querido-de-Deus, Don’Aninha e padre José Pedro juntam-se aos Capitães da Areia para velar o corpo, até
que Querido-de-Deus o leva em seu saveiro para sepultá-lo no mar. Padre José Pedro aceitara esse funeral em desacordo com a lei e com a fé católica, apesar
de suas convicções religiosas, para que o esconderijo
do bando não corresse o risco de ser descoberto pela
polícia. No derradeiro capítulo da terceira parte, “Co-
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
mo uma estrela de loira cabeleira”, Pedro Bala lançase ao mar e nada até esgotar a força. Boiando com os
olhos voltados para o céu, Pedro vê um cometa de
longa cabeleira loira, como a de Dora, riscar e iluminar a noite. Para Pedro Bala, o fenômeno se apresenta
como transfiguração de Dora em cometa, de acordo
com certas crenças populares na Bahia. Querido-deDeus, que voltava após lançar ao mar o cadáver, encontra Pedro Bala e o leva a terra.
Pedro Bala se joga n’água. Não pode ficar no trapiche, entre os soluços e as lamentações. Quer acompanhar Dora, quer ir com ela, se reunir a ela nas Terras do
Sem-Fim de lemanjá. Nada para diante sempre. Segue a
rota do saveiro do Querido-de-Deus. Nada, nada sempre.
Vê Dora em sua frente, Dora, sua esposa, os braços estendidos para ele. Nada até já não ter forças. Bóia então,
os olhos voltados para as estrelas e a grande lua amarela
do céu. Que importa morrer quando se vai em busca da
amada, quando o amor nos espera?
Que importa tampouco que os astrônomos afirmem
que foi um cometa que passou sobre a Bahia naquela
noite? O que Pedro Bala viu foi Dora feita estrela, indo
para o céu. Fora mais valente que todas as mulheres,
mais valente que Rosa Palmeirão, que Maria Cabaçu. Tão
valente que antes de morrer, mesmo sendo uma menina,
se dera ao seu amor. Por isso virou uma estrela no céu.
(p. 224-225)
Desenlaces
A quarta e última parte do romance intitula-se
“Canção da Bahia, canção da liberdade” e compreende oito capítulos.
O primeiro, “Vocações”, relata o desligamento do
bando de três de seus membros destacados — Professor, Boa-Vida e Pirulito —, bem como a transferência do padre José Pedro para uma paróquia no sertão
da Bahia, para onde ninguém mais queria ir, com
medo dos cangaceiros que aterrorizavam a região.
Todavia, padre José Pedro se alegra com a oportunidade, embora lamentasse ter que se afastar dos Capitães da Areia, que, assim, não teriam quase ninguém
que lhes desse um pouco de carinho e devotasse
algum sentimento de solidariedade. Consola-se com
a idéia de que poderia se esforçar na missão de chamar para perto de Deus os cangaceiros, que o padre
considera “como crianças grandes”. Antes de partir,
porém, padre José Pedro consegue que Pirulito seja
admitido como frade na irmandade dos capuchinhos.
O rapaz deixa o trapiche para entregar-se à sua vocação religiosa, ensinando catecismo a crianças numa
igreja do bairro da Piedade em Salvador.
• 156 •
Boa-Vida torna-se
um malandro completo, um daqueles mulatos que amam
a Bahia acima de tudo, que fazem uma vida perfeita nas
ruas da cidade. Inimigo da riqueza e do trabalho, amigos
das festas, da música, do corpo das cabrochas. Malandro. Armador de fuzuês. Jogador de capoeira navalhista,
ladrão quando se fizer preciso. De bom coração, como
canta um abc que Boa-Vida faz acerca de outro malandro. Prometendo às cabrochas se regenerar e ir para o
trabalho, sendo malandro sempre. Um dos “valentões”
da cidade. (p. 235)
ANGLO VESTIBULARES
Traumatizado com a morte de Dora, que amara
em segredo, Professor é o primeiro a deixar o bando.
Aceita a proteção de um poeta que se impressionara
com o talento do menino para o desenho e conseguira mandá-lo ao Rio de Janeiro para aprender pintura. Na capital do país, acaba por rejeitar o academismo do mestre e passa a “pintar por sua conta quadros que, antes de admirar, espantam todo o país” (p.
232), pelo conteúdo de crítica social contido em sua
arte singular.
O segundo capítulo da última parte em que se divide o romance intitula-se “Canção de amor da vitalina2” e narra uma aventura protagonizada por SemPernas. Trata-se de outro episódio isolado, que não
faz progredir a ação. O rapaz se faz admitir como empregado na casa de uma rica solteirona, no intuito de
espioná-la e preparar um novo roubo. Todavia, a mulher se aproveita de Sem-Pernas para satisfazer um
reprimido desejo sexual. Mas ela não consente a “posse completa” e tal proibição deixa o rapaz perturbado
e com um ódio maior ainda “contra o mundo todo”
(p. 241).
Segue-se o capítulo “Na rabada de um trem”, em
que Gato e Volta Seca desligam-se do bando. O primeiro parte para Ilhéus, acompanhado da amante, a
prostituta Dalva, atraído pela abundância proveniente
da exploração do cacau, que proporcionara a prosperidade de bordéis de luxo. Lá ele se torna gigolô e jogador. Volta Seca despede-se do bando e segue de
trem para o sertão baiano, para tornar-se cangaceiro
do bando de seu padrinho Lampião.
O quarto capítulo intitula-se “Como um trapezista
de circo” e se refere à morte de Sem-Pernas. Encurralado na rua pela polícia, após uma tentativa frustrada
de roubo, joga-se de um penhasco, para não ser preso outra vez e passar pelas mesmas humilhações e
torturas que o fizeram odiar o mundo.
Segue-se o capítulo “Notícias de jornal”, em que,
como sugere o título, a imprensa baiana, representada no romance por um fictício Jornal da Tarde, dá informações sobre alguns ex-membros do bando. O
Professor, agora referido pelo nome (João José), expõe com sucesso no Rio de Janeiro suas telas de marcante conteúdo social. Gato aparece em notícias policiais como vigarista notório da região de Ilhéus, que
vendera terras inexistentes a fazendeiros inadvertidos. Também no noticiário policial, o Jornal da Tarde
informa sobre um “fuzuê tremendo numa festa na Cidade de Palha”, armado pelo malandro Boa-Vida, que
“abrira a cabeça do dono da casa com uma garrafa de
cerveja e estava sendo procurado pela polícia” (p.
253). Sobre Volta Seca, o periódico publica duas grandes reportagens: uma, sobre a ação do jovem cangaceiro “temido em todo o sertão como um dos mais
2
No Nordeste do Brasil, o vocábulo “vitalina” é sinônimo de
“solteirona”.
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
cruéis do grupo” (p. 254); a outra, uma série de matérias a propósito da prisão, julgamento e condenação
de Volta Seca a trinta anos de prisão.
Os três últimos capítulos são dedicados a Pedro
Bala. Em “Companheiros”, a pedido de João de Adão,
Pedro lidera os Capitães da Areia, que auxiliam grevistas da empresa de bondes, impedindo a ação de
fura-greves. João de Adão apresenta Pedro a Alberto,
um estudante universitário que militava numa “organização” política revolucionária nacional, a que o velho doqueiro também pertencia. Não se revela o nome da “organização”, mas depreende-se que seja o
Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em “Os atabaques
ressoam como clarins de guerra”, passada a greve
dos bondes, o estudante Alberto passa a frequentar o
trapiche, convencendo Pedro Bala a ingressar na
“organização” e transformar os Capitães da Areia
numa brigada de choque:
Agora [Pedro Bala] comanda uma brigada de choque formada pelos Capitães da Areia. O destino deles
mudou, tudo agora é diverso. Intervêm em comícios, em
greves, em lutas obreiras. O destino deles é outro. A luta
mudou seus destinos. (p. 265)
A “organização” determina que Alberto passe a
orientar os Capitães da Areia e que Pedro Bala parta
para Aracaju, a fim de organizar o bando dos Índios
Maloqueiros, transformando-o também em brigada de
choque. Na despedida, Pedro passa o comando para
Barandão, recomenda a todos que sigam a orientação
de Alberto e é saudado pelos punhos fechados e
erguidos — típica saudação comunista — dos meninos do bando.
O último capítulo do livro – “… Uma pátria e uma
família” — arremata a narrativa em três parágrafos,
que reproduzimos integralmente:
Anos depois os jornais de classe, pequenos jornais,
dos quais vários não tinham existência legal e se imprimiam em tipografias clandestinas, jornais que circulavam nas fábricas, passados de mão em mão, e que eram
lidos à luz de fifós3, publicavam sempre notícias sobre
um militante proletário, o camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela polícia de cinco estados como organizador de greves, como dirigente de partidos ilegais,
como perigoso inimigo da ordem estabelecida.
No ano em que todas as bocas foram impedidas de
falar, no ano que foi todo ele uma noite de terror, esses
jornais (únicas bocas que ainda falavam) clamavam pela
liberdade de Pedro Bala, líder da sua classe, que se encontrava preso numa colônia.
E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros lares, na
hora pobre do jantar, rostos se iluminaram ao saber da
notícia. E, apesar de que lá fora era o terror, qualquer daqueles lares era um lar que se abriria para Pedro Bala, fugitivo da polícia. Porque a revolução é uma pátria e uma
família. (p. 270)
3
• 157 •
Fifó (reg. BA): lampião a querosene.
ANGLO VESTIBULARES
ANÁLISE DA OBRA
Neorrealismo Regionalista
Após alguns anos de estudo nos Estados Unidos
e na Europa, o jovem Gilberto Freyre volta ao Brasil,
em 1923, e dá início a uma intensa militância cultural
em Pernambuco, com o objetivo de promover o estudo do país na perspectiva dos conceitos de tradição e
região.
Convencido de que a divisão política em estados
era artificial e de que o país real era composto por regiões, Freyre propõe o critério regional como orientação para os estudos sociais e culturais interessados
no conhecimento da realidade brasileira. Além disso,
o então futuro autor de Casa-grande & senzala (1933)
considerava que o Brasil corria o grave perigo de
dissolução de sua identidade cultural, por esta se ver
ameaçada pelo avanço da modernização capitalista
em curso, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, que impunha padrões culturais estrangeiros em
desfavor das genuínas tradições brasileiras. Estas,
segundo Gilberto Freyre, deveriam ser estudadas em
suas mais variadas manifestações tradicionais, como
a culinária, o folclore, as práticas sociais, os usos e os
costumes regionais, para que fossem conhecidas e
reafirmadas, de modo a servir de antídoto à ameaça
de descaracterização.
Ilustração de capa da 1a edição de
Capitães da Areia
Essa linha de pensamento leva o sociólogo pernambucano, no campo artístico, a opor-se ao movimento modernista, que se expandia nacionalmente
desde seu ruidoso lançamento na Semana de Arte
Moderna (1922). Para Freyre, o Modernismo se afigurava como um movimento paulista e carioca que
transpusera artificialmente as formas estéticas da
vanguarda européia para o Brasil:
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
Enquanto isto, os chamados Modernistas do Rio e
de São Paulo é para a França, para a Europa, alguns para
os Estados Unidos, como Ronald de Carvalho, que se
voltam como para mundos ideais, dando as costas ao
Brasil: ao que no Brasil há de verdade digna de ser
descoberta ou redescoberta (...)4
No Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo, realizado em Recife, em 1926, Gilberto Freyre lança o Manifesto regionalista, que teria desdobramentos
culturais importantes, sobretudo com a formação da
corrente ou movimento literário conhecido como
Neorrealismo Regionalista.
A bagaceira, romance de José Américo de Almeida, lançado em 1928, constitui a obra inaugural dessa
corrente, que inclui autores de tendência saudosista
ou conservadora, como o próprio José Américo, José
Lins do Rego e Jorge de Lima, mais próximos das
propostas de Gilberto Freyre, mas também escritores
como Raquel de Queirós, Graciliano Ramos e Jorge
Amado, que imprimem ao regionalismo um caráter
crítico, ideologicamente associado a ideais revolucionários ou, ao menos, reformistas.
Fenômeno de grande prestígio na literatura brasileira da década de 1930, o romance neorrealista, como sugere o adjetivo, retoma e atualiza procedimentos do romance realista ou naturalista do século XIX,
cujos paradigmas são, respectivamente, os de Machado de Assis e Aluísio Azevedo. Desse modo, as narrativas valorizam a observação e a análise objetiva da
realidade, e se esforçam na criação de um forte efeito
artístico de imitação da vida, quer no âmbito das relações sociais, quer no da vida interior das personagens.
O que há de novo nesse realismo dos anos 1930
são os temas, os instrumentos de análise e a linguagem, todos afinados com a época, cujo espírito não
mais correspondia ao do final do século XIX, que se
prolonga até a eclosão do Modernismo, mas a uma
nova configuração histórica, conceitual e estética.
O romance dos anos 1930 propende à valorização
de temas associados à decadência da velha aristocracia
açucareira do Nordeste, ao cangaço e à continuidade
da miséria social provocada pela seca e pela estrutura
fundiária, arcaica e autoritária, no contexto histórico
associado à Revolução de Outubro de 1930. Do ponto
de vista conceitual, o romance de 1930 valeu-se de
contribuições como as de Gilberto Freyre, ou de Sérgio Buarque de Holanda ou, ainda, do pensamento
marxista que, então, passava a influenciar de modo
nítido as análises e interpretações da realidade de escritores importantes não só da prosa de ficção, como
os já mencionados Graciliano Ramos e Jorge Amado,
mas também da poesia, como Carlos Drummond de
Andrade. Sob a perspectiva estética, em vez da prosa
academizante do Realismo oitocentista, o Neorrealismo assimilou conquistas do Modernismo, a despeito
4
• 158 •
FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1975, p. 135.
ANGLO VESTIBULARES
de certa aversão a esse movimento, sobretudo quanto
à valorização da linguagem coloquial brasileira (no
caso, regional), estilizada literariamente não como
exemplo de pitoresco, mas como rico, legítimo e autêntico instrumento de comunicação e criação artística, diversa da elocução culta lusitanizante.
A noção de regionalismo na literatura brasileira é
um tanto vaga e ampla. Suas origens encontram-se no
Romantismo, cuja inclinação nacionalista não se limitou à representação artística da vida da Corte, depois
capital da República, mas das cidades e do sertão das
províncias (mais tarde, estados). Ao lado do romance
urbano, o romance dito regionalista ou sertanejo encontrou boa acolhida na literatura oitocentista, em
obras como Inocência, de Taunay, O garimpeiro, de
Bernardo Guimarães, O sertanejo e O gaúcho, de José
de Alencar. O Realismo-Naturalismo do século XIX e
seu prolongamento na prosa do chamado Pré-Modernismo também contribuíram para o enriquecimento do regionalismo literário, em livros como O
mulato, de Aluísio Azevedo, Sertão, de Coelho Neto,
os contos de Urupês, Cidades mortas e Negrinha, de
Monteiro Lobato, ou mesmo Os sertões, de Euclides
da Cunha. De modo amplo (e impreciso), essas obras
são chamadas regionalistas em oposição à noção de
romance urbano, cujas narrativas transcorrem na cidade do Rio de Janeiro e, já no século XX, também na
de São Paulo.
Assim, mesmo após o advento do Modernismo,
histórias localizadas fora dessas duas metrópoles, embora em capitais estaduais onde a modernização já se
evidenciava, continuaram a ser rotuladas de regionalistas, como é o caso de Angústia, de Graciliano Ramos,
que se passa em Maceió, e, especialmente, do romance em foco, Capitães da Areia, cuja ação tem como espaço a cidade de Salvador, caracterizada como bem
moderna, para os padrões da década de 1930, com problemas típicos dessa condição.
nos atermos ao romance que estamos a estudar, o
problema social das crianças abandonadas, abordado
pelo autor, não é uma questão regional, mas uma mazela nacional, típica das grandes cidades brasileiras.
Desse modo, o rótulo de Neorrealismo Regionalista, aplicado ao romance Capitães da Areia, mostra-se
problemático, pois, se se ajusta razoavelmente à noção
substantiva da expressão, mostra-se incerto quanto à
adjetiva, isto é: neorrealismo, sim, embora a idealização
dos pobres e dos marginalizados constituam desvios
dessa corrente, mas regionalista, só se levadas em consideração as restrições apontadas.
Feitas essas observações, é importante enfatizar o
conteúdo político do romance em foco, que dá ao
Neorrealismo, ou Neonaturalismo, um acentuado matiz ideológico de inspiração socialista.
Linguagem e estilo
Jorge Amado valeu-se da linguagem conquistada
pelos modernistas, em que o padrão culto incorpora
elementos da fala popular e os estiliza literariamente.
A linguagem popular em Capitães da Areia, porém, apresenta alguns graus de estilização. Na fala de
personagens populares, como, entre outros, os meninos do bando, o doqueiro João de Adão, o jangadeiro
e mestre de capoeira Querido-de-Deus e alguns policiais, a estilização reproduz em discurso direto o registro quase bruto da oralidade popular, com seus
erros de concordância, suas gírias e seus chavões.
Como exemplo, leiamos a seguinte passagem:
Depoimento de Jorge Amado
CADERNOS: Seu romance Capitães da areia traz à tona
uma questão que hoje está no centro dos debates sobre a
realidade brasileira: os meninos de rua. Quando publicou o
livro, em 1937, o sr. tinha alguma consciência de seu caráter
premonitório?
Jorge Amado: Não, com o tempo, fui acompanhando o
agravamento da situação dos nossos meninos, mas na época
em que lancei o romance eu não tinha consciência de que ali
estava um pro-blema que lamentavelmente se agravaria
tanto.
In: Cadernos de Literatura Brasileira – Jorge Amado.
São Paulo: Instituto Moreira Salles, nº- 3,
março de 1997, p. 48.
Somente por esse critério complacente é possível
considerar Capitães da Areia, assim como os demais
romances urbanos de Jorge Amado, ou de seus contemporâneos gaúchos Érico Veríssimo e Dionélio
Machado, como obras regionalistas. Ademais, para
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
• 159 •
— Tu ainda tem uma peitama bem boa, hein, tia? A
negra sorriu:
— Esses meninos de hoje não respeita os mais velho, compadre João de Adão. Onde já se viu um capetinha destes falar em peito pra uma velha encongrujada
como eu?
— Deixa de conversa, tia. Tu ainda topa a coisa...
A negra riu com vontade:
— Já fechei a cancela, Boa-Vida. Passei da idade.
Pergunta a este… — aponta João de Adão. — Vi quando
ele, quase menino assim como tu, fez a primeira greve
aqui nas doca. Naquele tempo ninguém sabia que diabo
era greve. Tu te lembra, compadre?
João de Adão balançou a cabeça que sim, fechou os
olhos recordando os longínquos tempos da primeira
greve que chefiara nas docas. Era um dos doqueiros mais
velhos, embora ninguém lhe desse a idade que tinha.
Pedro Bala falou:
— Negro quando pinta, três vezes trinta.
A negra mostrou a carapinha toda pintada de branco. Tinha tirado o lenço que enrolava na cabeça e BoaVida chalaceou:
— Por isso tu anda com esse lenço. Ô negra cheia
de prosopopéia...
João de Adão perguntou:
— Tu te lembra de Raimundo, comadre Luísa?
— O “Loiro”, que morreu na greve? Como não me
lembro? Era um que toda tarde vinha dar dois dedo de
prosa comigo, gostava de tirar pilhéria...
— Mataram ele bem aqui, naquele dia que a cavalaria atropelou a gente. — Olhou para Pedro Bala. — Tu
nunca ouviu falar nele, capitão?
ANGLO VESTIBULARES
— Não.
— Tu tinha uns quatro anos. Depois disso tu andou
um ano da casa de um pra casa de outro até que tu fugiu.
Depois a gente só veio saber de tu quando tu já era chefe
dos Capitães da Areia. Mas a gente sabia que tu havia de
te arranjar. Quantos anos tu tem agora?
Pedro ficou fazendo cálculos e o próprio João de
Adão interrompeu.
— Tu tá com uns quinze anos. Não é, comadre? A
negra fez que sim. João de Adão continuou:
— No dia que tu quiser tu tem um lugar aqui nas
docas. A gente tem um lugar guardado pra tu.
— Por quê? — perguntou Boa-Vida, já que Pedro
apenas olhava espantado. (pp. 84-85)
era-lhe fácil ouvir a voz de Deus. Ele estava errado, perdera aqueles dois anos de tanto trabalho. Pensara levar
tantas crianças a Deus... Crianças extraviadas... Será que
elas tinham culpa? Deixai vir a mim as criancinhas... Cristo… Era uma figura radiosa e moça. Os sacerdotes também disseram que ele era um revolucionário. Ele queria
as crianças… Ai de quem faça mal a uma criança… A viúva Santos era uma protetora da Igreja… Será que ela também ouvia a voz de Deus? Dois anos perdidos... Fazia
concessões, sim, fazia. Senão, como tratar com os Capitães da Areia? Não eram crianças iguais às outras… Sabiam tudo, até os segredos do sexo. Eram como homens,
se bem fossem crianças...(p. 156)
O discurso do narrador, bem como o de algumas
personagens que tiveram acesso à educação letrada,
como o padre José Pedro, desenvolve-se dentro do
registro culto, mas coloquial.
Valendo-se de vocabulário e de estruturas sintáticas simples, o registro culto do narrador assimila procedimentos do registro popular, tais como a repetição
de palavras e certa propensão para a ênfase das hipérboles. Todavia, em certas passagens, o narrador, mesmo conservando a simplicidade coloquial, aproxima-se
da prosa poética, impregnando seu discurso de lirismo, tal como pode ser observado no excerto seguinte.
Todos queriam. O sertanejo trepou no carrossel, deu
corda na pianola e começou a música de uma valsa antiga. O rosto sombrio de Volta Seca se abria num sorriso.
Espiava a pianola, espiava os meninos envoltos em alegria. Escutavam religiosamente aquela música que saía
do bojo do carrossel na magia da noite da cidade da
Bahia só para os ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães da Areia. Todos estavam silenciosos. Um operário
que vinha pela rua, vendo a aglomeração de meninos na
praça, veio para o lado deles. E ficou também parado, escutando a velha música. Então a luz da lua se estendeu
sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o
mar ficou de todo manso (talvez que lemanjá tivesse vindo também ouvir a música) e a cidade era como que um
grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os
Capitães da Areia. Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se
sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e
sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música. Volta Seca não pensava com certeza em Lampião
neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia o
chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas
em se jogar no mar, onde os sonhos são todos belos. Porque a música saía do bojo do velho carrossel só para eles
e para o operário que parara. E era uma valsa velha e
triste, já esquecida por todos os homens da cidade. (p. 68)
A estilização literária do coloquialismo popular
não impede, porém, o narrador de valer-se de procedimentos formais sofisticados. Tal é o caso do discurso indireto livre, utilizado em passagens como a seguinte, que representa o fluxo de consciência da personagem engastado no discurso do narrador.
O padre José Pedro ia encostado à parede. O cônego dissera que ele não podia compreender os desígnios
de Deus. Não tinha inteligência, estava falando igual a um
comunista. Era aquela palavra que mais perseguia o
padre. De todos os púlpitos todos os padres tinham falado contra aquela palavra. E agora ele... O cônego era muito inteligente, estava próximo de Deus pela inteligência,
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
Agora, é importante assinalar que a estilização da
linguagem popular é nula nos textos que mimetizam
reportagens ou cartas de certas autoridades, como o
diretor do reformatório, publicadas em jornal. Nesses
casos, a linguagem ostenta uma pompa retórica que
caracterizava o discurso acadêmico então prestigiado.
Contudo, trata-se de uma paródia desse tipo de linguagem empolada, cujo contraste com o registro despojado do narrador gera um efeito de sentido a um só
tempo crítico e, sutilmente, humorístico.
Espaço
A ação transcorre na cidade de Salvador, embora
haja algumas referências a locações sertanejas da Bahia.
O espaço da cidade, porém, divide-se em locais
públicos e privados. Estes também se separam: de
um lado, as confortáveis casas dos ricos, como a do
advogado Dr. Raul e sua esposa, Dona Ester, casal
que acolhe Sem-Pernas e tem a residência invadida e
roubada pelos Capitães da Areia; de outro lado, os
casebres dos pobres, situados no morro, como o barraco em que Dora vivera até a morte dos pais, quando ela e o irmão menor, Zé Fuinha, são despejados
pelo “árabe que era dono dos barracões do morro” (p.
168). Tal detalhe sugere que, mesmo dividido entre
ricos e pobres, o espaço privado pertence todo aos
primeiros. Os pobres não são proprietários do lugar
precário onde moram: os barracos alugados pelo
“árabe”. A força de trabalho é o que lhes resta, mas a
remuneração apenas possibilita uma vida cheia de
privações. As residências dos ricos, caracterizadas
como lugar onde se acumulam bens de conforto e de
luxo, tornam-se alvo dos Capitães da Areia, meninos
enjeitados e despossuídos de tudo, que as invadem
para roubar, uma vez que são compelidos ao delito
pela necessidade de sobrevivência.
É difícil caracterizar o trapiche, pois se trata de um
lugar abandonado e em ruínas. Não é público nem,
propriamente, privado, mas um espaço degradado e
marginal, de que os Capitães da Areia tomam posse.
Todavia, a posse é compartilhada pelos ratos que infestam o lugar, dado que indicia a sub-humanidade a
que os meninos do bando são submetidos. As ruínas
do trapiche são imagens correlatas às das roupas esfarrapadas e das vidas destruídas daquelas crianças
sem amparo.
• 160 •
ANGLO VESTIBULARES
Os locais públicos também podem ser divididos
em dois grupos: o dos espaços abertos e dos fechados.
Os primeiros são constituídos pelas ruas e praças da
cidade, que ora se mostram ameaçadores, como sente Dora antes de juntar-se aos Capitães da Areia, ora
se apresentam como correlatos objetivos do sentimento de liberdade que anima Pedro Bala e seus companheiros.
Dentre os locais fechados, destacam-se a delegacia de polícia, o reformatório e o orfanato. Embora sejam instituições públicas, esses espaços apresentam-se como locais de privação da liberdade,
confinamento a que são sujeitos os que ameaçam e
agridem a propriedade privada e a segurança da elite. Estão, portanto, a serviço dos interesses da classe
dominante e se caracterizam pelo excesso ou abuso
do poder de repressão e da aplicação da violência.
A brutalidade desumana que se pratica neles, porém, é disfarçada por discursos humanitários hipócritas e consentida silenciosamente pela sociedade
discricionária.
No romance, tais discursos são veiculados pelo
jornal, que corresponde ao espaço de comunicação
social e circulação de idéias. Embora suas páginas
acolham textos que denunciam iniquidades ocorridas
no reformatório, como uma carta do padre José
Pedro e, outra, da mãe de um menor lá aprisionado, o
jornal se mostra parcial, francamente favorável aos
pronunciamentos do delegado de polícia e do diretor
do reformatório, quer nos destaques dados às
matérias, quer nos comentários favoráveis aos textos
das autoridades, quer, ainda, nas reportagens publicadas sobre a ação dos Capitães da Areia ou a prisão
de Pedro Bala e Dora. O espaço cultural representado
pela imprensa revela-se, desse modo, associado ou
incorporado ao espaço social ocupado pela elite.
Tempo
A cronologia da narrativa é imprecisa. A reportagem do Jornal da Tarde, sobre a prisão de Pedro Bala
e Dora, registra que o pai do rapaz morrera “na célebre greve das docas de 191…” (pp. 198-199). Esse ano
não seria anterior a 1917, que, historicamente, corresponde à deflagração de greves operárias em várias
cidades do país. Se tal hipótese for válida, a ação central do romance transcorre em 1928, quando Pedro
Bala conta quinze anos de idade, conforme assinala o
velho estivador João de Adão num diálogo do capítulo “Docas” (p. 85). Órfão aos quatro anos de idade, Pedro Bala ingressara aos cinco no bando dos Capitães
da Areia, portanto, em 1918.
Do início da ação até a entrada de Dora para o bando, não há marcadores precisos de tempo que permitam afirmar se o período compreende dias, semanas
ou alguns meses. Dora é presa, adoece e morre no inverno do suposto ano de 1928, após permanência de
quatro meses entre os Capitães da Areia. Esse dado
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
permite, então, conjecturar que a ação nuclear tem início no verão de 1928. Após a morte de Dora, a narrativa salta um ano, conforme as palavras do narrador:
“Passou o inverno, passou o verão, veio outro inverno,
e este foi cheio de longas chuvas, o vento não deixou
de correr uma só vez no areal.” (p. 232). Agora, resta
saber se os nomes das estações são empregados em
sentido próprio ou na acepção regionalista do Norte e
do Nordeste do Brasil, caso em que se invertem os significados de “verão” e “inverno”.
Seja como for, até a morte de Dora a cronologia
segue o ritmo de dias, semanas ou meses; após, ela
primeiro dá o mencionado salto de um ano para,
depois, saltar mais três, a julgar do marcador temporal contido na seguinte passagem: “Gato não fizera ainda dezoito anos. Fazia quatro que amava Dalva.” (p. 243). Assinale-se que Gato torna-se amante
de Dalva assim que ingressa no bando dos Capitães
da Areia, no início da ação romanesca. Quase aos
dezoito anos, Gato despede-se dos Capitães de Areia
para tornar-se gigolô e jogador em Ilhéus, como vimos. Nessa mesma época, dá-se a transformação
final de Pedro Bala, de chefe do bando para revolucionário, condição com que termina sua trajetória
no fim do romance, cujo último capítulo apresenta
mais um salto cronológico, agora de “alguns anos”.
Essa indefinição, porém, não impede a conjectura de
que a narrativa se encerre em 1935, uma vez que o
narrador alude ao “ano em que todas as bocas foram
impedidas de falar” (p. 270), numa referência cifrada
às perseguições políticas desencadeadas pelo governo Vargas contra a esquerda, após o episódio histórico conhecido como “Intentona Comunista”.
Assim, a narrativa abrange um período que, historicamente, corresponderia aos anos de 1928 a 1935,
em que a decadente República Velha se esgota, dá-se
a Revolução de Outubro (1930) e a era Vargas se precipita, após a “Intentona” (1935), para a ditadura do
Estado Novo, que viria com o golpe de 1937, mesmo
ano em que Jorge Amado escreve e publica a primeira edição de Capitães da Areia.
A cronologia, todavia, não é completamente linear,
pois, em alguns momentos, a narrativa alude a acontecimentos ocorridos até mesmo antes do nascimento
de Pedro Bala, por meio de flashes do passado.
A linearidade cronológica também se esgarça
nos momentos em que o tempo exterior dá lugar à
manifestação do tempo interior ou psicológico, que
irrompe nos momentos de devaneio, fantasia ou sonho das personagens, ou, ainda, naquelas passagens
em que o narrador flagra monólogos interiores ou
fluxos de consciência, nos quais a subjetividade alonga, acelera ou confunde a sensação de passagem do
tempo, como é o caso do episódio em que Pedro Bala perde a noção exata dos dias passados na cafua do
reformatório.
• 161 •
ANGLO VESTIBULARES
Personagens
Segundo a clássica divisão de personagens em planas e redondas5, proposta pelo escritor inglês E. M.
Forster, os caracteres que se delineiam em Capitães
da Areia devem ser classificados como planos, uns
mais, outros menos. Isso significa que as personagens do romance de Jorge Amado não têm muita densidade ou profundidade psicológica. Seus perfis morais são um tanto esquemáticos e podem ser agrupados em duas esferas: a dos ricos e a dos pobres.
A essa polaridade social corresponde uma genérica caracterização moral: os ricos são maus, exceto
alguns poucos, e os pobres, geralmente, são bons, a
despeito de seus possíveis defeitos.
Na esfera dos ricos, excetuam-se, basicamente, o
casal constituído por dona Ester e o Dr. Raul, que acolhe Sem-Pernas como um filho, e o poeta que protege
e encaminha Professor para estudar pintura no Rio
de Janeiro. Todavia, o narrador não se detém na composição psicológica desses caracteres. Alguns deles
são esboçados sumariamente. Do poeta, por exemplo,
o narrador informa o nome — Dr. Dantas —, e se limita a registrar o interesse dele pelo talento artístico
do Professor, bem como a generosa ajuda prestada ao
menino, cujo destino se altera em decorrência desse
empenho desinteressado. Ao invés de um possível
marginal adulto, o Professor se torna um pintor importante, e suas telas, além do reconhecido valor artístico, são apreciadas também pelo conteúdo social.
Os ricos, em geral, mostram-se egoístas, preconceituosos e intolerantes, quando não pervertidos ou
francamente cruéis. Seus perfis são delineados segundo modelos típicos, ou seja, generalizantes. A
avidez dinheirista do “árabe”, proprietário dos barracos do morro, que despeja Dora e Zé Fuinha do casebre em que viviam, assim que lhes morre a mãe, para
alugá-lo a outro inquilino, sem nenhuma compaixão
pelos órfãos, ilustra o egoísmo dos ricos. O comportamento da mulher a quem Dora pede emprego, que
despacha a menina, ao saber que os pais dela haviam
morrido na epidemia de varíola, sem mais impulso de
solidariedade que a parca esmola depositada sobre o
muro do jardim, para evitar qualquer contato físico,
poderia ser também compreendido como egoísta, embora o egoísmo seja, nesse caso, misturado ao medo
e à ignorância. Preconceituosas mostram-se as beatas
que se escandalizam com a atenção dada pelo padre
José Pedro às crianças esfarrapadas, e reclamam disso aos superiores dele. Estes, que representam a suposta voz institucional da Igreja católica, mostram-se
favoráveis à demanda das beatas contra o padre, cuja
atitude é acusada de “comunista” pelo cônego que o
repreende asperamente. Pervertida mostra-se a “vita5
FORSTER, E. M. Aspects of the Novel, London: Penguin Books,
1990 (1ª- ed., 1927), p. 73: “we may divide characters into flat and
round.”
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
lina” que acolhe Sem-Pernas como empregado, mas
para satisfazer um apetite sexual que a lei, rigorosamente, consideraria criminoso, por ser ele menor de
idade. As autoridades estatais agem de modo discricionário, como no episódio em que a polícia invade
o candomblé da mãe de santo Don’Aninha, apreende
a imagem de Ogum e a leva para a delegacia. A intolerância religiosa dos ricos, a cujo serviço a polícia
estaria, é denunciada nessa profanação do que a religiosidade afro-brasileira, apresentada no romance
como manifestação cultural dos pobres, considera sagrado. A encenação da violência do delegado, de policiais, do diretor e dos bedéis do reformatório, em
várias passagens, simboliza o caráter desumano do poder público, e o teor dos noticiários jornalísticos pode
ser interpretado como representativo da opinião dos
ricos, destituída de qualquer sensibilidade social e conivente com a repressão brutal da criminalidade infanto-juvenil.
Os pobres, em geral, são trabalhadores explorados
ou lumpens, cuja vida, destituída de qualquer conforto, confina-se em espaços materiais e espirituais miseráveis. Contudo, revelam-se solidários, como demonstra o comportamento caridoso da mãe de santo
Don’Aninha, que auxilia os necessitados com seus conhecimentos de medicina popular e os aconselha e
ampara espiritualmente nos momentos mais difíceis;
ou como ilustra o sacrifício do pai de Pedro Bala, que
morrera em defesa de sua classe; ou a amizade do jangadeiro e mestre de capoeira Querido-de-Deus, devotada aos Capitães da Areia; ou, ainda, a deferência
afetuosa demonstrada pelo líder dos estivadores, o
velho João de Adão, a Pedro Bala. Além da solidariedade, os pobres também se caracterizam pela esperança de um futuro melhor, numa sociedade mais justa, e pela alegria de viver, apesar de todo sofrimento a
que estão sujeitos.
A criminalidade dos pobres, como a dos cangaceiros do bando de Lampião ou dos Capitães da Areia, é
frequentemente escusada pelo narrador, que a considera consequência do sistema injusto. Desse modo,
o crime se apresenta como inelutável necessidade de
resistência ou de sobrevivência. Os cangaceiros, apesar dos estupros, roubos e assassinatos, são reiteradamente apresentados como “crianças grandes” e,
até mesmo, heróis vingadores dos pobres sertanejos
contra os ricos latifundiários. Em discurso indireto
livre, a voz do narrador se confunde com a do protagonista, quando este se encontra preso na cafua do
reformatório, sugerindo certa concordância de pensamento entre ambos: “Lampião mata soldado, mata
homem ruim. Pedro Bala neste momento ama Lampião como a um seu herói, a um seu vingador. É o braço armado dos pobres do sertão.” (pp. 203-204, grifo
nosso). Em outra passagem, em que também comparece o discurso indireto livre, agora fundindo a voz
narrativa ao pensamento de Volta Seca, essa heroicização mostra-se mais acentuada:
• 162 •
ANGLO VESTIBULARES
Homens magros que lavram a terra para ganhar mil
e quinhentos dos donos da terra. Só a caatinga é que é
de todos, porque Lampião libertou a caatinga, expulsou
os homens ricos da caatinga, fez da caatinga a terra dos
cangaceiros que lutam contra os fazendeiros. O herói
Lampião, herói de todo o sertão de cinco estados. Dizem
que ele é um criminoso, um cangaceiro sem coração,
assassino, desonrador, ladrão. Mas para Volta Seca, para
os homens, as mulheres e as crianças do sertão é um novo Zumbi dos Palmares, ele é um libertador, um capitão
de um novo exército. Porque a liberdade é como o sol, o
bem maior do mundo. E Lampião luta, mata, deflora e
furta pela liberdade. Pela liberdade e pela justiça para os
homens explorados do sertão imenso de cinco estados:
Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia. (p. 247)
Assim como a dos cangaceiros, a imagem dos Capitães da Areia, a despeito dos defeitos, é idealizada
logo no início do romance, para ser reiterada ao longo
dele como um leitmotiv:
Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro,
eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam
totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas.
(p. 29)
Vão alegres. Levam navalhas e punhais nas calças.
Mas só os sacarão se os outros puxarem. Porque os meninos abandonados também têm uma lei e uma moral, um
sentido de dignidade humana. (p. 194)
Os Capitães da Areia furtam, roubam, estupram e
agridem, mas não são vistos como culpados desses
delitos, como transparece na visão do padre José Pedro ou do doqueiro João de Adão, em uma passagem
já citada (pp. 111-112 do romance), na qual o narrador
se vale, mais uma vez, do discurso indireto livre, então para apresentar o fluxo de consciência de Pirulito.
A culpa seria da vida, na opinião do padre, ou, conforme o velho estivador, “da sociedade mal organizada,
[a culpa] era dos ricos…”.
Comentário de Antonio Candido
Dos meninos vadios de Jubiabá, do bando de Antônio
Balduíno, nascem e crescem os Capitães da Areia, e dos seus
saveiros, do oceano, nasce Mar morto. Os meninos vadios, por
sua vez, são certamente uma necessidade imposta por Suor,
pelo desejo de mostrar a gênese daquelas vidas esma-gadas de
cortiço. O cacau, lançado no romance deste nome, fica latente
muitos anos. Perpassa nas histórias do negro velho de Ilhéus,
em Jubiabá. Aparece de modo fugaz em Capitães da Areia, já
sob o aspecto pioneiro e far-west que constitui a trama das
Terras do sem-fim, onde se expande e se realiza, definitivo. O
“Diário de um negro em fuga”, de Jubiabá, apresenta os personagens de Mar morto e a vida dos trabalhadores do fumo,
irmãos dos de cacau.
Narrador
CANDIDO, Antonio. “Poesia, documento e história”
(1945). In: Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Editora
Unesp, 1992, p. 50-51.
Ao que parece, o narrador compartilha a opinião
de João de Adão. Nessa medida, depreende-se que
para ele, narrador, se Pedro Bala sodomiza brutalmente a negrinha virgem no areal próximo ao trapiche, a
culpa seria da sociedade; se Sem-Pernas odeia e agri-
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
de todo mundo, a culpa seria da sociedade; se Barandão é sodomita, a culpa seria da sociedade; se Gato se
torna gigolô e golpista, a culpa seria da sociedade; se
Boa-Vida vira malandro, a culpa seria da sociedade;
se Volta Seca se transforma no mais cruel dos cangaceiros, a culpa seria da sociedade. Enfim, a criminalidade e os desvios de comportamento dos meninos do
bando seriam sempre culpa da sociedade, ou seja,
dos ricos.
Desse modo, os dois grupos de personagens — os
ricos e os pobres — apresentam-se de acordo com
uma caracterização nitidamente maniqueísta, em que
os primeiros são intrinsecamente maus e os segundos, bons, uma vez que seus defeitos seriam isentos
de culpa.
Nessa visão, avulta o pressuposto ideológico segundo o qual os excluídos seriam a força de resistência contra a alienação e reificação das pessoas e, em
última análise, os portadores dos legítimos valores
humanos, sendo que o maior deles seria representado pelo sentimento de liberdade, atribuído aos Capitães da Areia, aos trabalhadores espoliados e à “organização” — vocábulo cifrado que se refere ao Partido
Comunista Brasileiro (PCB) — como traço mais característico dessas personagens coletivas.
Observe-se que a imagem de tal “organização”,
representada, sobretudo, pelo estivador João de Adão
e pelo estudante universitário Alberto, é a de uma
força transformadora e revolucionária, investida de
generosidade e desinteresse pessoal, capaz de mudar
a realidade mesquinha em um mundo de justiça e liberdade.
Como dissemos, as personagens do romance são,
em geral, mais ou menos planas, sendo que boa parte
das mais importantes (sobretudo Pedro Bala, Professor, Sem-Pernas, Volta Seca, Pirulito e o padre José
Pedro) recebe um tratamento mais complexo na caracterização psicológica, que os aproxima da noção
de personagens redondas.
A história é contada, em terceira pessoa, por um
narrador onisciente. Isso significa que ele conhece a
totalidade do universo narrado e permite que se
movimente com desenvoltura no tempo e no espaço.
Ele traz ao leitor informações do passado (flash back)
ou antecipações de fatos futuros (flash forward), sempre com a capacidade não só de mostrar com nitidez
os acontecimentos exteriores, mas também de revelar
a vida interior das personagens, seus pensamentos,
sentimentos e fantasias.
O ponto de vista é dinâmico: ora se posiciona no
alto, ora se movimenta para baixo, ora se distancia,
ora se aproxima. Decorre daí a sucessão de enquadramentos que variam de acordo com a necessidade
de proporcionar visões mais amplas ou mais concen-
• 163 •
ANGLO VESTIBULARES
tradas: imagens panorâmicas para as mobilizações
coletivas; imagens aproximadas, como em close cinematográfico, para as cenas mais pessoais e íntimas.
O lugar social do narrador evidencia-se na linguagem culta, que se diferencia claramente do registro popular presente nos diálogos travados entre personagens do grupo dos pobres. Todavia, o registro
culto do narrador não é o mesmo que se vê nas manifestações linguísticas de personagens do grupo dos
ricos, especialmente as que se mostram em textos
publicados no jornal, sejam eles notas editoriais, reportagens ou cartas enviadas para a redação pelo delegado de polícia ou pelo diretor do reformatório.
Esses textos são vazados em uma linguagem de sabor
acadêmico, com sua retórica um tanto pomposa e
protocolar, que sugere certa mediocridade intelectual. Tais textos, mais propriamente, constituem estilizações da linguagem de uma elite pretensiosa, com
intuito satírico. O discurso do narrador, embora deva
ser considerado como de registro culto, apropria-se
das conquistas do Modernismo, que combatera o
academicismo e forjara uma linguagem mais próxima
do registro coloquial, inclusive popular. Todavia, não se
pode confundir essa prática linguística com a de personagens iletradas do romance. O narrador, por exemplo, não comete erros de concordância, comumente
praticados pelos meninos do bando ou personagens
como João de Adão, a velha negra Luísa e Queridode-Deus. A linguagem do narrador, em última análise, é uma criação culta que assimila e mimetiza artisticamente a simplicidade e a espontaneidade da expressão coloquial. Portanto, do ponto de vista cultural, o narrador se pronuncia e se posiciona na esfera
letrada dos intelectuais, e, do ponto de vista social,
Depoimento de Mario Vargas Llosa
Eu o [Jorge Amado] conheci como leitor quando era estudante universitário, na Lima dos anos 50, e me lembro, inclusive, dos dois primeiros livros que li: seu romance de juventude
Cacau e a biografia romanceada do líder comunista brasileiro
— figura mítica da época — Luís Carlos Prestes, O cavaleiro da
esperança. Naqueles anos — os da guerra fria no mundo e das
ditaduras militares na América Latina, não nos esqueçamos —
sua figura pública e sua obra literária se identificavam com a
idéia do escritor engajado, que usa sua pena como uma arma
para denunciar as injustiças sociais, as tiranias e a exploração, e
conquistar adeptos para o socialismo. Os escritos de Jorge
Amado, como os de seus contemporâneos hispano-americanos
na época, o Pablo Neruda, de Canto geral ou o Miguel Angel
Asturias, de Weekend na Guatemala, Vento forte e O papa
verde, pareciam animados por um ideal cívico e moral (revolucionário seria a palavra mais correta) e ao mesmo tempo
estético — embora, muitas vezes, como nos livros citados, o primeiro comprometia este último. O que salvou o Jorge Amado
de então, da armadilha em que caíram muitos escritores latinoamericanos “militantes”, que se converteram, como queria
Stalin, em “engenheiros de almas”, ou seja, em meros propagandistas, foi que em seus romances políticos um elemento intuitivo, instintivo e vital prevaleceu sempre sobre o ideológico,
superando os esquemas racionais.
In: Cadernos de Literatura Brasileira – Jorge Amado. São Paulo:
Instituto Moreira Salles, nº- 3, março de 1997, p. 38.
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
grosso modo, na esfera ocupada pelas elites. Todavia,
do ponto de vista ideológico, o narrador deixa transparecer francamente que se encontra num campo oposto ao da classe dominante.
Assim, o narrador rompe com sua classe de origem, mas não se converte, propriamente, num
membro da classe inferior, assumindo a posição de
intelectual orgânico do proletariado, para valer-nos
da noção forjada por Gramsci6, isto é, aquele que,
embora sua classe de origem possa ser outra, superior, assume a perspectiva orientada para a conquista da hegemonia política do proletariado. Tratase de uma noção próxima à de intelectual engajado,
no sentido preconizado por Sartre, ou seja, aquele
que intervém nos acontecimentos de modo a conciliar pensamento, ética e ação política, sendo os três,
no caso, de orientação socialista.
O narrador de Capitães da Areia, de fato, assume a defesa da luta socialista para a transformação
revolucionária da sociedade. Porém, tal defesa se
configura como uma deformação da realidade, na
medida em que esta é reduzida ao maniqueísmo
típico do chamado marxismo vulgar, conforme o
viés estético do realismo socialista promovido internacionalmente pela política cultural de Stalin na
década de 1930. Imbuído de uma visão profética da
história, o narrador simplifica de modo um tanto
grosseiro as complexas relações sociais, como que
demoniza as classes superiores e idealiza romanticamente a personalidade e a ação de proletários e
marginais, considerados intrinsecamente bons e autênticos construtores da sociedade justa e livre a
que o futuro estaria necessariamente destinado. Tal
idealização, conforme dissemos, implica a atribuição de responsabilidade dos vícios e defeitos morais dos pobres aos ricos, além de favorecer a defesa de uma ação política como a figurada na instrumentalização dos Capitães da Areia pela “organização”, que os convertem em “brigada de choque” do
movimento revolucionário.
CONCLUSÃO
Capitães da Areia vincula-se à tradição do romance de aprendizagem ou de formação (Bildungsroman),
gênero literário que tem Lazarillo de Tormes (1554)
como precursor e Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister (1807), de Goethe, como modelo consagrado.
Dessas duas obras exemplares, a de Jorge Amado revela maior afinidade com a primeira.
6
• 164 •
GRAMSCI, Antônio. “A formação dos intelectuais”. In: Obras
escolhidas. Lisboa: Editorial Estampa, 1974 , pp. 189-214, vol. 2.
ANGLO VESTIBULARES
Capa da primeira edição (2008) de
Capitães da Areia pela Companhia das Letras
Lazarillo de Tormes, narrativa anônima espanhola
do século XVI, também se destaca na história da literatura como fundadora da tradição da novela picaresca. Esse gênero da prosa de ficção surgiu como paródia das epopeias e novelas de cavalaria prestigiadas
no Renascimento. Ao inverter ironicamente as narrativas heroicas, Lazarillo de Tormes inventa o pícaro —
anti-herói cujas aventuras revelam a realidade social
sórdida em que vivem os pobres e marginalizados —,
personagem de vida atribulada, cuja trajetória, narrada na forma de uma pseudoautobiografia, constitui uma
espécie rebaixada de epopeia, mais exatamente, uma
irônica epopeia dos miseráveis. Daí o brutal naturalismo com que a realidade, transfigurada pela ficção, é
duramente castigada pela sátira, sempre associada a
uma intenção moralizante. Lazarillo de Tormes preconiza o romance de aprendizagem na medida em que
se observa no relato o processo de desenvolvimento
físico e moral do narrador-protagonista, desde a infância até a maturidade.
O narrador de Capitães da Areia, como sabemos,
pronuncia-se em terceira pessoa, de fora do mundo
miserável que se apresenta na ficção, e não de dentro,
como supõe Zélia Gattai em comentário posposto ao
texto da edição publicada pela Companhia das Letras,
que serve de base a este estudo.
Respeitosamente, discordamos da escritora, que
fundamenta sua opinião no fato de que “Para escrever Capitães da Areia, Jorge Amado foi dormir no trapiche com os meninos”, deduzindo daí que “Isso ajuda a explicar a riqueza de detalhes, o olhar de dentro
e a empatia que estão presentes na história” (p. 271).
A objeção se restringe ao “olhar de dentro”. Mesmo se
desconsiderássemos a distinção ontológica entre
autor e narrador, e supuséssemos a narrativa não co-
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
mo ficção, mas um depoimento de Jorge Amado sobre fatos reais, mesmo assim, a enunciação se perfaz
de fora, por meio do pronunciamento de um enunciador em terceira pessoa, distinto, quer pela cultura
superior, quer pela posição ocupada pelos intelectuais
na hierarquia social, das personagens cujas histórias
ele relata. Quanto à “riqueza de detalhes” e à “empatia”, não há como discordar de Zélia Gattai. E empática é, precisamente, a atitude do narrador em relação
às personagens miseráveis, cujas pseudo-biografias dá
a ver, sem confundir-se com elas. Seja como for, para
este estudo, importa assinalar que o foco narrativo em
terceira pessoa já estabelece uma diferença entre a picaresca tradicional, narrada em primeira pessoa na
forma de pseudoautobiografia, e Capitães da Areia.
Agora, sem ser propriamente um romance picaresco, essa obra de Jorge Amado também pode ser
entendida como uma espécie de epopeia dos miseráveis, em que a denúncia das mazelas sociais (por exemplo: a exploração do trabalho reificador, o preconceito de classe, a discriminação cultural e a fome), contém um sentido moral que castiga as elites da sociedade e é portadora de uma mensagem política. Aqui,
Capitães da Areia se afasta outra vez da picaresca, pois
esta se caracteriza pelo pessimismo e pelo desengano
do mundo, enquanto o romance de Jorge Amado
apresenta, em última análise, uma visão otimista, fundamentada na fé revolucionária e na convicção do poder humanizador do socialismo. Desse modo, a epopeia dos pobres readquire a aura das legítimas epopeias, e o anti-herói é restituído à genuína condição
de herói. Pedro Bala adere à luta do proletariado, elevada à condição épica na perspectiva ideológica
socialista. A vida das crianças de rua, aparentemente,
evidencia-se como o tema principal de Capitães da
Areia. A esse tema vinculam-se os demais, como o da
violência, da intolerância religiosa, da miséria e exploração dos pobres pelos ricos, da criminalidade infanto-juvenil, do cangaço e de outros examinados neste
estudo. A eles todos, porém, subjaz o da luta heroica
do proletariado, compreendida ideologicamente como força histórica de resistência contra a reificação do
homem e portadora dos dignificantes ideais de liberdade e justiça.
EXERCÍCIOS
1. (CEFET-BA/2007) Entre os Capitães da Areia, vivia apenas uma mulher, Dora. Esta personagem
a) tem um papel importante, encarnando, em momentos diversos, a figura de mãe, irmã e esposa.
b) representa a força feminina, nas obras de Jorge Amado, a partir da questão da prostituição
e da marginalização social.
c) provoca uma série de problemas entre o grupo, que perduraram até a sua morte, por causa
da varíola.
• 165 •
ANGLO VESTIBULARES
d) traz alívio para os pequenos que faziam parte
do grupo, porque, enquanto os outros saíam
para os roubos, ela se responsabilizava pelos
que ficavam.
e) tenta conseguir emprego de empregada doméstica, mas não conseguiu, porque tinha contraído varíola, epidemia que assolou a cidade,
provocando óbitos e medo.
Texto para as questões 2 e 3.
Certa hora Nhozinho França manda que o
Sem-Pernas vá substituir Volta Seca na venda de
bilhetes. E manda que Volta Seca vá andar no carrossel. E o menino toma o cavalo que serviu a
Lampião. E enquanto dura a corrida, vai pulando
como se cavalgasse um verdadeiro cavalo. E faz
movimentos com o dedo, como se atirasse nos
que vão na sua frente, e na sua imaginação os vê
cair banhados em sangue, sob os tiros da sua
repetição. E o cavalo corre e cada vez corre mais,
e ele mata a todos, porque são todos soldados ou
fazendeiros ricos. Depois possui nos bancos a
todas as mulheres, saqueia vilas, cidades, trens de
ferro, montado no seu cavalo, armado com seu rifle.
Depois vai o Sem-Pernas. Vai calado, uma estranha comoção o possui. Vai como um crente
para uma missa, um amante para o seio da mulher
amada, um suicida para a morte. Vai pálido e coxeia. Monta um cavalo azul que tem estrelas pintadas no lombo de madeira. Os lábios estão apertados, seus ouvidos não ouvem a música da pianola. Só vê as luzes que giram com ele e prende
em si a certeza de que está num carrossel, girando
num cavalo como todos aqueles meninos que têm
pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os
ame. Pensa que é um deles e fecha os olhos para
guardar melhor esta certeza. Já não vê os soldados que o surraram, o homem de colete que ria.
Volta Seca os matou na sua corrida. O Sem-Pernas vai teso no seu cavalo. É como se corresse sobre o mar para as estrelas na mais maravilhosa
viagem do mundo. Uma viagem como o Professor
nunca leu nem inventou. Seu coração bate tanto,
tanto, que ele o aperta com a mão.
(Jorge Amado. Capitães da areia.)
2. (UEA/2007) Assinale a alternativa com comentário pertinente à leitura do texto.
a) O trecho se coaduna com os ideais da primeira
fase modernista e suas intenções de construir
uma prosa antipassadista, em busca de ruptura
formal com a liberdade.
b) Encaixa-se na segunda fase do Modernismo e é
exemplo da literatura de caráter social com ambientação na Bahia.
c) Corresponde ao Modernismo de segunda fase
e incorpora as relações de poder no ciclo do
cacau, no sul da Bahia.
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
d) Revela plena intenção de seu autor de extrapolar as formas convencionais de composição ao
criar personagens representativos da seca no
Nordeste.
e) Constitui exemplo de literatura pré-modernista, que, ao lado das obras de Euclides da Cunha, busca construir um retrato definitivo do
povo brasileiro.
3. (UEA/2007) Predominam no texto as seguintes
funções da linguagem:
a) emotiva e apelativa.
b) fática e metalinguística.
c) referencial e conativa.
d) poética e metalinguística.
e) referencial e poética.
4. (UFMS/1999). Sobre o romance Capitães da Areia,
é correto afirmar que
(01) há o predomínio do discurso indireto livre,
observando-se a intenção do narrador de colocar em destaque o íntimo das personagens
e o afloramento constante dos desejos femininos.
(02) ao enfatizar a naturalidade e a espontaneidade da fala cotidiana, o narrador incorpora ao
texto a linguagem popular, registrando a fala
das personagens tal como ela parece ser produzida.
(04) o assunto da obra em questão são os marinheiros, e ela inaugura um verdadeiro ciclo
marítimo na produção de Jorge Amado, projeto que se irá completar com outras obras,
como: Mar morto, Jubiabá e Velhos marinheiros.
(08) é uma obra regionalista, cuja preocupação
central é registrar costumes, crenças, tradições e linguagem típicas do litoral da Bahia.
(16) dentre as personagens que povoam seu universo ficcional, há que se destacar Pixote,
figura que inspirou um filme com o mesmo
nome.
Soma das asserções corretas:
5. Observe as asserções e assinale a alternativa correta.
I. As personagens de Capitães da Areia, geralmente planas e típicas, podem ser agrupadas
em duas esferas sociais: a dos pobres e a dos
ricos. Todavia, Pedro Bala, Professor, Sem-Pernas, Volta Seca e o padre José Pedro apresentam maior complexidade psicológica, aproximando-se da categoria das personagens redondas.
II. O narrador de Capitães da Areia pronuncia-se
em terceira pessoa, é dotado de onisciência e
mantém uma relação empática com as per-
• 166 •
ANGLO VESTIBULARES
sonagens marginalizadas. Frequentemente, o
mundo interior das personagens mais importantes é revelado por meio da técnica do discurso indireto livre.
III. Quanto ao gênero literário, Capitães da Areia
é um romance que pode ser vinculado à tradição do romance de aprendizagem ou de formação (Bildungsroman), além de apresentar
algumas conexões com a novela picaresca, na
medida em que a narrativa contém a biografia
de Pedro Bala, cujo processo de desenvolvimento físico e moral o leitor acompanha desde a infância até o início da vida adulta.
São corretas
a) Somente I.
b) Somente III.
c) Todas.
d) Somente I e II.
e) Nenhuma.
Textos para a questão 6.
“Lampião mata soldado, mata homem ruim.
Pedro Bala neste momento ama Lampião como a
um seu herói, a um seu vingador. É o braço armado dos pobres do sertão.” (pp. 203-204).
“E pensando em Deus [Pirulito] pensou também nos Capitães da Areia. Eles furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas
ou punhal homens e polícias. Mas, no entanto,
eram bons, uns eram amigos dos outros.” (pp.
110-111).
6. O romance Capitães da Areia, tradicionalmente, é
vinculado à corrente do neorrealismo literário
que se destacou na prosa de ficção da chamada
segunda geração modernista (1930-1945). Nos
dois excertos apresentados acima, as passagens
assinaladas em caracteres itálicos estariam ou
não de acordo com as propostas do neorrealismo? Justifique brevemente a sua resposta.
7. Por que o romance Capitães da Areia pode ser considerado uma espécie de epopeia dos miseráveis?
8. Caracterize brevemente as diferentes visões do
padre José Pedro e do velho estivador João de
Adão quanto à solução para o problema social da
miséria.
9. Em Capitães da Areia, a cidade de Salvador é
considerada “a mais misteriosa e bela das cidades
do mundo”, enquanto Dora é exaltada como “a
mais valente de quantas mulheres já nasceram na
Bahia, que é a terra das mulheres valentes”. Que
recurso estilístico ou figura de linguagem comparece nas duas citações e qual o seu efeito de
sentido?
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
Texto para a questão 10.
Fora sempre infeliz para o lado de mulher.
Quando conseguia uma negrinha no areal era
com a ajuda dos outros, era à força. Nenhuma
olhava para ele, convidando com os olhos. Outros
eram feios, mas ele era repulsivo com a perna
coxa, andando feito caranguejo. Demais terminara
por se fazer antipático e a se acostumar a possuir
negrinhas a pulso. Agora vinha uma mulher branca e com dinheiro, velha e feiúsca era verdade,
mas bem comível ainda, e se deitava com ele. Acariciava seu sexo com a mão, juntava coxa com
coxa, deitava sua cabeça nos seus seios grandes.
Sem-Pernas não podia sair dali, se bem cada dia
estivesse mais bruto e mais inquieto. Seu desejo
reclamava uma posse completa. Mas a vitalina se
contentava em colher as migalhas do amor.
(AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, pp. 240-241.)
10. O excerto contém características que o aproximam da estética naturalista. Identifique três dessas características.
RESPOSTAS
1. A.
2. B.
3. E.
4. Soma das asserções corretas:
2
5. C.
6. Consideradas em si, as passagens em itálico contrariam o estilo neorrealista, pois sugerem uma
visão idealizada, em vez de objetiva, da criminalidade dos cangaceiros e do bando dos Capitães da Areia.
7. A heroicização dos Capitães da Areia, dos cangaceiros e dos proletários, cuja luta se apresenta
dignificada pelos valores de que eles seriam supostamente portadores (liberdade e justiça), permite considerar o romance de Jorge Amado
como uma espécie de epopéia dos miseráveis.
8. O padre José Pedro desejava que a pobreza fosse
atenuada por meio de reformas sociais que proporcionassem casa, escola e carinho às crianças
pobres, mas sem mudar a estrutura de classes da
sociedade, sem acabar com os ricos. Trata-se de
uma visão humanitária inspirada no espírito de
caridade cristã. João de Adão não concorda com
o padre e considera que somente a revolução
socialista resolveria a questão social da pobreza,
por meio da abolição das classes sociais, que acabaria com a divisão entre ricos e pobres. Resumidamente, trata-se da oposição entre uma visão reformista e uma revolucionária.
• 167 •
ANGLO VESTIBULARES
9. Nas duas citações verifica-se o uso de adjetivação
em grau superlativo, que constitui hipérboles. Por
meio desses mecanismos da linguagem, estabelece-se um efeito de intensificação máxima, respectivamente, do mistério e da beleza da cidade
de Salvador e da valentia de Dora.
10. São características que se associam ao Naturalismo: a apresentação do sexo como um instinto
imperioso, de modo que o apelo fisiológico domina a vontade racional; a ênfase em aspectos desagradáveis, grotescos ou chocantes, que configuram uma espécie de estética do feio; a linguagem
brutal e grosseira; o zoomorfismo, que transparece na comparação de Sem-Pernas com um caranguejo.
BIBLIOGRAFIA
AMADO, Jorge. Guia das ruas e dos mistérios da cidade do Salvador da Bahia. Rio de Janeiro: Som Livre, 1997, faixa 5, disco 2.
SISTEMA ANGLO DE ENSINO
AMADO, Jorge. Depoimento. In: Cadernos de Literatura Brasileira — Jorge Amado. São Paulo: Instituto Moreira Salles, nº- 3, março de 1997, p. 48.
AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
CANDIDO, Antonio. “Poesia, documento e história”
(1945). In: Brigada ligeira e outros escritos. São
Paulo: Editora Unesp, 1992, p. 50-51.
GUMÉRY-EMERY. Claude. Depoimento. In: A literatura de Jorge Amado — caderno de leituras. São
Paulo: Companhia das Letras, novembro de 2008.
FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1975.
FORSTER, E. M. Aspects of the Novel. London: Penguin
Books, 1990.
GRAMSCI, Antônio. Obras escolhidas. Lisboa: Editorial Estampa, 1974, 2 vol.
VARGAS LLOSA, Mario. Depoimento. In: Cadernos
de Literatura Brasileira — Jorge Amado. São Paulo: Instituto Moreira Salles, nº- 3, março de 1997, p.
38.
• 168 •
ANGLO VESTIBULARES

Documentos relacionados

Jorge Amado de Faria Nascimento: 10 de agosto de

Jorge Amado de Faria Nascimento: 10 de agosto de Professor parte para o Rio de Janeiro onde se torna um pintor de sucesso, entristecido com a morte de Dora; Gato se torna um malandro de verdade, abandonando eventualmente sua amante Dalva, e passa...

Leia mais

Capitães da Areia

Capitães da Areia pai. João-de-Adão tinha conhecido o loiro Raimundo, estivador que tinha morrido, baleado na greve, lutando em prol dos trabalhadores. A mãe de Pedro falecera quando ele tinha seis meses; era uma mu...

Leia mais