os movimentos anti-sistêmicos hoje
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os movimentos anti-sistêmicos hoje
O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas Planeta Terra: Os movimentos anti-sistêmicos hoje1 Carlos Antonio Aguirre Rojas “Cidadão do mundo, Che nos lembra o que já sabíamos desde Espártaco e que às vezes esquecemos: a humanidade encontra na luta contra a injustiça um degrau que a eleva, que a faz melhor, que a converte em mais humana”. Subcomandante Insurgente Marcos, Discurso de Inauguração da Reunião Americana Preparatória do Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, seis de abril de 1996. Sobre as distintas formas e expressões do protesto social O protesto social e a luta dos oprimidos contra a exploração, a humilhação, as vexações, a discriminação, o despotismo e a submissão, em todas as suas formas, é tão velha como a existência de sociedades divididas em classes sociais. Pois, frente ao domínio e o subjugação que implica qualquer tipo de hierarquia e de desigualdade social, desenvolvemse igualmente, de uma maneira imediata e necessária, a paralela e persistente insubordinação e rebelião de diversos setores, classes e grupos submetidos à dita dominação e avassalamento. Desse modo, a história da humanidade, desde tempos remotos, ainda que não desde suas origens, e até a situação atual, tem sido não somente a história da luta entre as classes sociais, mas também e concomitantemente, a história das diferentes formas e figuras do protesto social. Já que, a partir da complexa e variada dissolução das formas comunitárias da organização social, dissolução que caminha por distintas vias e que origina as diferentes sociedades divididas em classes sociais começa a desdobrar também, junto à nascente luta de classes, o igualmente diversificado leque das formas de rebelião e do protesto social2. Protesto social milenar e constante, que sendo uma das claras estruturas de longa duração da história humana, é também um dos espaços importantes da inesgotável, sempre renovada e florescente, criatividade social das classes populares. Criatividade que, tenaz e incansável, encontra em cada nova circunstância e em cada novo momento, as múltiplas e complexas vias de sua multiforme expressão. Pois, frente ao avassalador poder das classes e 1 Este texto recolhe, sob uma forma mais sistemática, algumas das idéias expostas na Sessão Inaugural do Colóquio Internacional “Planeta Terra: Movimentos Anti-sistêmicos”, celebrado em San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, entre 13 e 17 de dezembro de 2007. Esta Sessão Inaugural, na qual participou também Immanuel Wallerstein e o Subcomandante Insurgente Marcos, desenvolveu-se em 13 de dezembro de 2007. Aos argumentos ali vertidos agregamos nesta versão, além das pequenas mudanças de forma e as notas de rodapé de página, também as reflexões iniciais contidas em nosso primeiro ponto. 2 Em nossa opinião, é a esta idéia, entre outras, que aludem Marx e Engels em seu conhecido e muitas vezes mal interpretado princípio, no célebre texto do Manifesto o Partido Comunista, em Obras Escolhidas, tomo 1, Ed. Progresso, Moscou, sem data de impressão. Sobre este complexo processo de dissolução da comunidade e das múltiplas vias de gestação das sociedades de classes sempre é útil voltar a reler o fragmento do Grundrisse... de Marx, sobre as “Formações econômicas pré-capitalistas”, em Elementos fundamentales para la crítica de la economía política. Grundrisse, tomo 1, Ed. Siglo XXI, México, 1971. Ver também nosso ensaio, Carlos Antonio Aguirre Rojas, “La comuna rural de tipo germânico” em Boletín de Antropologia Americana, num. 17, México, 1988. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas grupos dominantes, que se afirma como riqueza, como hierarquia social, ou como Estado, sob as formas da suposta superioridade intelectual, social, étnica, de gênero, de status, entre várias outras, a criatividade popular sabe também se desdobrar e se multiplicar sob mil formas, descobrindo e inventando, a todo o tempo, os modos de burlar as distintas figuras do poder, os resquícios e espaços de afirmação de sua própria liberdade, as diferentes maneiras de escapar das normas e controles impostos de cima. Mas também, e em outras circunstâncias, os momentos adequados para desafiar abertamente esses poderes, para colocá-los em crise e deslegitimá-los e, inclusive, às vezes, para inverter radicalmente a situação destruindo esses poderes e tentando pôr todo o mundo “de cabeça para baixo”. Pois, desde o ousado grito de Espártaco e da rebelião dos escravos, o qual ameaçava os opressores romanos profetizando com seu “Voltarei e serei milhões!”, até o digno “Já Basta” dos indígenas neozapatistas mexicanos, o que se desdobra é uma larga e heróica cadeia de lutas, protestos e reclames sociais hasteados pelas classes e setores subalternos das distintas sociedades e povos de todo o planeta. Cadeia, que por mil vias diferentes e com mil roupagens distintas, dá vida e conteúdo ao sempre legítimo e ainda vivo sentimento de sublevação frente à injustiça e a exploração ainda reinantes. Larga cadeia de lutas, motins, rebeliões, insurreições e revoluções das classes populares e subalternas da sociedade, as quais abrangem desde gestos individuais de descontentamento e insubordinação, até formas coletivas e massivas do protesto social, sendo, às vezes, expressões subterrâneas e encobertas ou, por outro lado, públicas e abertas. Formas múltiplas do descontentamento social, as quais, em ocasiões, serão somente efêmeras e fugazes, e em outras, duradouras e desenvolvidas por anos, até qüinqüênios e décadas, como formas mais permanentes da luta social. Também poderá ser espontânea e imediata, ou, em outro caso, planificada, organizada e conscientemente programada. Lutas de distinta magnitude, caráter, duração e estruturação, que algumas vezes se limitam a expressar a resposta lógica de inconformidade frente ao agravo, ao gesto despótico, ao ato de exploração ou a atitude discriminatória, mas sem transcender o horizonte do sistema social então imperante, e, em outras ocasiões, na mudança, vão mais além do horizonte intra-sistêmico, para projetar expectativas, objetivos e lógicas realmente anti-sistêmicas e muito mais profundamente revolucionárias3. Enorme pluralidade das formas e manifestações do protesto social milenar e ubíquo, que nos mostra também a imensa dificuldade para caracterizar e definir com mais precisão a qualquer destas figuras da rebelião social. Pois, essa diversidade não somente se desdobra ao longo dos séculos, cobrindo várias etapas da evolução histórica das sociedades humanas, mas também se afirma a todo o amplo do nosso Planeta Terra, abarcando com amplitude os povos, as sociedades e as civilizações mais diversas. 3 Para constatar a imensa diversidade de formas de expressão do protesto social, assim como seus distintos graus de maturação, vale a pena revisar o muito interessante e agudo trabalho de Renajit Guha, Elementary Aspects of Peasant Insurgency in Colonial India, Ed. Duke University Press, Durham, 1999, obra que inexplicavelmente ainda não foi traduzida para o espanhol. Complementariamente, ver também, do mesmo Renajit Guha, Dominance withhout Hegemony History and Power in Colonial India, Ed. Harvard University Press, Harvard, 1997. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas O que se torna ainda mais complexo quando observamos estas figuras da rebelião social de maneira dinâmica. Introduzindo-nos na grande pergunta de quais são as razões e as dialéticas concretas que nos levam desde o gesto rebelde individual ou de um pequeno grupo, o qual se afirma no início somente como uma forma de resistência passiva, ou como um modo encoberto e subterrâneo de insubordinação, até o pequeno motim que se transforma em uma primeira forma aberta de descontentamento, ainda de um pequeno coletivo. Para então, começar a crescer e crescer, convertendo-se primeiro em um movimento mais vasto que se multiplica e diversifica suas formas de luta e de manifestação, para ser capaz de gerar, mais adiante, uma rebelião de alcances gerais, que luta, retrocede, avança e retoma seu impulso para atingir uma escala regional ou, às vezes, nacional, inclusive. E tudo isso, como ante-sala de uma insurreição aberta, pacífica ou não, que se confronta, radical e explicitamente, com os poderes dominantes, e que afirma claramente objetivos anti-sistêmicos, a culminar em uma revolução total da antiga “ordem das coisas”. Dinâmica complexa da insubordinação social, a qual cresce e matura lenta, mas continuamente, e que nos remete sempre à sua mais adequada explicação, ao específico “estado de ânimo” dos oprimidos em cada momento e circunstância histórica, ao grau de desenvolvimento do seu descontentamento e de sua consciência, ao ponto de concreção e também de maturação da luta de classes e do conflito social em geral, assim como das experiências e heranças prévias dos oprimidos e explorados da história. Em síntese, a todo o leque de fatores complexos que Edward P. Thompson resumiu em seu conceito de “economia moral da multidão” 4. Complexidade das dinâmicas gerais da economia moral das classes exploradas e subalternas da sociedade, a qual não é nada linear, mas pelo contrário, é múltipla e multidirecional. Então é claro, que o que nos mostra à milenar e secular história das lutas sociais dos subalternos é a figura de uma complicada árvore de muitos ramos, onde alguns deles ficaram truncados por uma brutal repressão das classes dominantes, e outros, bifurcaram-se várias vezes para gerar tentativas diferentes de oposição e de rebeldia frente a essa mesma dominação. A prolongar-se em ocasiões como sólidos esforços que mantém certa direção global e, em outras, com recorrentes mudanças de direção, buscando o melhor caminho. Assim, avançando e retrocedendo alternadamente, dão também expressão a persistente e inesgotável resistência social dos de baixo. A explicar, desse modo, que na história dos protestos sociais vemos movimentos sociais que nascem como movimentos não anti-sistêmicos, mas que, em virtude de sua própria experiência e maturação, transformam-se e convertem-se em sólidos movimentos realmente anti-sistêmicos. E o inverso. Pois, é também um caso real, o de movimentos genuinamente anti-sistêmicos que, por exemplo, uma vez alcançado e conquistado o poder 4 A obra de E. P. Thompson é especialmente interessante nesta lógica de resgatar as curvas evolutivas do protesto social, desde suas manifestações mais primárias e elementares até suas formas mais abertas e contundentes. A respeito, cfr. seus livros Costumbres en Común (o qual contém essencial ensaio sobre „a economia moral da multidão‟, e seu complemento „a economia moral da multidão revisitada‟), Ed. Grijalbo, Barcelona, 1995, Tradición, revuelta y consciencia de clase, Ed. Grijalbo, Barcelona, 1979 e o clássico La formación de la clase obrera en Inglaterra, 2 vols., Ed. Grijalbo, Barcelona, 1989. Sobre o conceito de “economía moral da multidão‟ cfr. nosso libro, Carlos Antonio Aguirre Rojas, Antimanual del mal historiador, Ed. Contrahistorias, México, Oitava edição, 2005. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas do Estado, muda radicalmente em movimentos simplesmente intra-sistêmico e até defensores do status quo, ligeiramente modificado. O que naturalmente implica que possam existir também movimentos, que em alguma fase do seu desenvolvimento ou maturação, combinem, ao mesmo tempo, certos gestos e posturas anti-sistêmicas com outras mais limitadamente intra-sistêmicas. O que nos mostra que cada movimento ou forma de protesto e de luta social, deve sempre ser estudado em seu contexto particular, em sua especificidade histórica, em sua linha evolutiva concreta, e em suas circunstâncias e curvas de desenvolvimento determinadas. O que, então, nos permitirá distinguir claramente, por exemplo, uma mobilização social de um verdadeiro movimento social. Pois, mesmo que a primeira possa ser muito vasta e até massiva, e muito impactante a partir do ponto de vista de seus efeitos sociais imediatos, não deixa de ser uma manifestação bem mais efêmera e constituída em torno de um objetivo pontual e igualmente limitado. Por exemplo, como o caso de uma vasta mobilização contra um ato claramente arbitrário de parte do poder presidencial, ou como no caso de uma clamorosa e escandalosa fraude eleitoral5. Mobilização social que pode ser de grandes dimensões, mas que se distingue claramente de um verdadeiro movimento social. Este é algo permanente, organizado, que trabalha de modo constante e planificado, nos quais se projetam explicitamente objetivos não somente imediatos, mas também de médio e até de longo prazo. E se, um movimento social pode gestar-se, em sua origem, a partir de uma mobilização social, também é claro que se trata de duas expressões distintas da mesma e subjacente inconformidade social das classes e setores subalternos da sociedade. Movimento social, distinto da mobilização social, que por sua vez pode adquirir diferentes figuras e variantes de sua própria concreção. Porque o caráter, o sentido, os limites e as possibilidades que definem um movimento social qualquer, dependem, como é lógico, das classes, dos setores, dos grupos e dos atores sociais que sustentam e dão corpo concreto ao dito movimento social. Desse modo, será muito distinto um movimento estudantil de um movimento campesino ou de um movimento operário, o mesmo que diferirá um movimento urbano popular de um movimento indígena ou de um movimento étnico em geral. Pois, a dinâmica de um ator social transclassista não é igual à de outro claramente classista, como não é, tampouco, a postura de um setor da classe média ou das classes dominantes igual à posição das classes populares em geral. Mas dado que todo ator, ou grupo, ou classe social pode constituir um movimento social que o expresse, então é importante diferenciar os movimentos sociais, em geral, dos movimentos sociais populares, quer dizer, daqueles que se envolvem diretamente e 5 Pensamos que este é o caso, por exemplo, da monumental fraude eleitoral que padeceu o México em julho de 2006, e que gerou uma vasta mobilização social, a qual, contudo, foi freada e pouco a pouco decepcionada pelo próprio Andrés Manuel López Obrador, com suas tépidas e contraditórias medidas de resposta a essa fraude. E é claro, que até hoje, essa mobilização social ainda não logrou converter-se em um verdadeiro movimento social. Sobre esta mobilização de 2006 no México, e sobre o contexto em que se desenvolve, ver nossos ensaios “La crisis poselectoral mexicana y La Otra Campaña” e tambem “Mexico en el 2007, el camino más rápido hacia el 2010”, ambos incluidos no nosso livro Chiapas, Planeta Tierra, Ed. Desde Abajo, Bogotá, 2007. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas expressam os setores e classes populares da sociedade. Pois, no outro extremo, existem movimentos sociais das classes dominantes, por exemplo, o das oligarquias proprietárias de terra da América Latina, que resistem a serem expropriadas, mesmo quando a imensa terra que possuem se mantêm ociosa e improdutiva, ao lado de milhares e milhares de campesinos pobres e totalmente despossuídos de terra6. E se não é igual movimento social e movimento social popular, também é importante aclarar que um mesmo ator social, por exemplo, o setor estudantil, pode ter, em distintos momentos do desenvolvimento histórico, ou diferentes espaços do planeta, diferentes configurações próprias. E com elas, também, diversas formas de constituir-se como movimento social. Pois, enquanto que, até a segunda guerra mundial, o setor estudantil no mundo inteiro era um setor minoritário socialmente, e, em geral, proveniente das classes dominantes, a partir de 1968 e até hoje, se converteu, em muitos países, em um setor plural e amplamente popular. O que implica, às vezes, que o movimento estudantil tenha sido somente um movimento social, talvez com um grande impacto social e intelectual, mas um movimento não popular. Para converter-se, mais recentemente, em um verdadeiro movimento social de caráter também popular. Assim, ainda é preciso ter claro que há movimentos sociais populares que são progressistas, mas ainda intra-sistêmicos, e outros que, muito mais radicais e avançados, são genuinamente anti-sistêmicos. Porque, como mencionamos antes, o legítimo protesto social pode expressar-se, às vezes, em fortes reclames e denúncias contra a injustiça, a opressão, a humilhação e a exploração, porém sem localizar a raiz de todos estes males na natureza do sistema social imperante, e sem transcender o horizonte dos seus próprios limites e de sua validade histórica. Enquanto que, em outras ocasiões, pode afirmar-se já conscientemente como uma luta que persegue destruir radicalmente ao sistema social ainda vigente, para substituí-lo por outro, alternativo e completamente diferente. Pensar então os movimentos anti-sistêmicos hoje, neste ano de 2008, não é possível, em nossa opinião, sem assumir estas fundas raízes de longa duração do milenário protesto social, o qual encontra nestes mesmos movimentos, uma de suas mais recentes expressões. Como não é possível, tampouco, entender adequadamente os movimentos antisistêmicos atuais sem compreender tanto a complexa diversidade das figuras do dito protesto social, como as múltiplas dinâmicas de sua evolução, juntamente, às variadas formas de sua multifacetada expressão, e, também, de sua singular concreção. 6 É o caso, em nossa opinião, de um dos processos que hoje vive agudamente a Bolívia e o governo de Evo Morales. Pois, apesar do caráter tíbio e limitado das medidas do governo socialdemocrata de Morales, as oligarquias rurais das províncias do sul boliviano organizam-se contra, em um movimento social retardatário das classes dominantes dessa nação sul-americana. Sobre o contexto que precedeu a instalação do governo de Evo Morales, cfr. nosso ensaio, Carlos Antonio Aguirre Rojas, “Bolivia rebelde: las lecciones de mayo y junio de 2005 en perspectiva histórica” em Contrahistorias, num. 5, México, 2005. Também, e para uma caracterização mais ampla deste governo de Evo Morales, como parte de uma tendência mais global da América Latina, cfr. nosso livro, Carlos Antonio Aguirre Rojas, América Latina en la encrucijada, Ed. Contrahistorias, quarta edición, 2007. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas Pensar os movimentos anti-sistêmicos hoje Assumindo então essas vastas perspectivas como necessário fundo de nosso problema, concentraremos, neste ensaio, na questão de quais são alguns dos traços originais e mais característicos que apresentam hoje os distintos movimentos anti-sistêmicos de nosso, cada vez menor, Planeta Terra. Traços singulares dos movimentos anti-sistêmicos contemporâneos, os quais começaram a definir-se lentamente, mas de modo muito evidente, a partir da enorme fratura histórica que representa a revolução cultural mundial de 1968. Pois, é claro, que é precisamente a partir dessa simbólica data de finais dos anos sessenta do século XX cronológico, que começam a decair e colapsar-se os velhos movimentos antisistêmicos, os quais tiveram vigência durante mais de cem anos, aproximadamente entre 1848 e 1968, ao mesmo tempo em que nascem e começam a afirmar-se lentamente os novos movimentos anti-sistêmicos que ainda hoje povoam o panorama geral das lutas anticapitalistas em todo o planeta7. Caracterização adequada dos movimentos anti-sistêmicos atuais, que sendo um tema imenso e de múltiplas arestas, pode ser abordado e desenvolvido a partir de distintas perspectivas. Diferentes aproximações possíveis a esse complexo e amplo problema, o qual nós tentaremos concretizar somente em três direções básicas, as quais não obstante, consideramos como centrais para dita adequada caracterização. Primeiro, em torno da importante pergunta: de que consiste a novidade específica desses novos movimentos antisistêmicos, novidade, que já referimos ao fato de que eles são precisamente os movimentos que começaram a gestar-se lentamente, no México, na América Latina e em todo mundo, depois do “acontecimento-ruptura” que foi a revolução cultural planetária de 1968. O que, então, nos leva, obrigatoriamente, a comparação da história e da natureza dos movimentos anti-sistêmicos. De um lado, na etapa anterior a 1968, e de outro, nos anos posteriores a essa mesma data. Em segundo lugar, é importante explorar a questão do caráter e do papel singular que hoje apresentam, em particular, os movimentos anti-sistêmicos de nossa América Latina, os quais constituem claramente a frente de vanguarda mundial dos movimentos antisistêmicos de todo o planeta. Função de frente de vanguarda da América Latina dentro da vasta e complexa família dos movimentos anti-sistêmicos atuais de todo o planeta, a qual necessita ser explicada e refletida de uma maneira muito mais detalhada e sistemática do que tem sido até agora. Reflexão maior, a qual não somente nos conduz a perguntarmos acerca dos motivos imediatos, mas também conjunturais ou de médio alcance, e, inclusive e mais além, igualmente de longa duração do singular protagonismo recente da América Latina para as lutas anti-sistêmicas de todo o planeta. Mas também, interrogarmos a respeito das lições principais que esses movimentos anti-sistêmicos latino-americanos estão agora 7 Para tentativa então dessas caracterizações dos ditos movimentos anti-sistêmicos contemporâneos, tratamos de apoiarmo-nos, entre outras fontes, tanto nas lições contidas em vários textos de Immanuel Wallerstein, os quais referendaremos mais adiante, como também nos importantes ensinamentos gerais que agora mesmo nos dá o digno movimento indígena neozapatista mexicano. Lições fundamentais e diversas, sobre as quais podem ser vistas em nosso livro, Carlos Antonio Aguirre Rojas, Mandar Obedeciendo. Las lecciones políticas del neozapatismo mexicano, Ed. Contrahistorias, Segunda edición, México, 2008. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas mesmo a produzir para todo o conjunto desses combates anticapitalistas das restantes regiões do globo terrestre. E por último, em terceiro lugar, é também problema essencial, quais são as razões profundas e históricas e os motivos complexos e diversos, que nos explicam os enormes e contínuos impactos mundiais do neozapatismo mexicano ao longo dos seus quase quinze anos de vida pública. Lições universais que constitui um referente central para todos os movimentos anti-sistêmicos do mundo nestes três qüinqüênios referidos, e que hoje se prolongam no interessante esforço de gerar, também a partir da experiência neozapatista, mais muito mais além dela, o também importante movimento nacional mexicano, A Outra Campanha. Três direções básicas do problema global que são os movimentos anti-sistêmicos hoje, que vale a pena analisar com mais detalhe agora. Então, quando falamos da história dos movimentos anti-sistêmicos dentro da etapa da história capitalista, podemos remontar suas principais origens ao momento histórico, também decisivo, representado pela emergência da Revolução Francesa de 1789 8. Pois, é claro, que os movimentos anti-sistêmicos então nascentes, mantiveram toda uma série de traços característicos e fundamentais desde os distantes tempos de 1789, e, mais claramente, a partir das revoluções européias de 1848, até o ano emblemático de 1968. De modo que, se 1968 representa uma evidente ruptura de longa duração de muitas das estruturas culturais, econômicas, sociais e políticas do capitalismo, cumpre a mesma função também, no que diz respeito à história da estrutura e configuração dos movimentos antisistêmicos de todo o planeta. Pois, é claro, que os movimentos anti-sistêmicos pós-68 têm um caráter radicalmente distinto dos movimentos anti-sistêmicos pré-68. Em que consiste, então, a novidade dos movimentos anticapitalistas posteriores a revolução de 1968? Sem pretender esgotar esse tema, que pode ter alcance muito amplo, podemos assinalar, a modo de pistas iniciais, somente alguns poucos traços novos e fundamentais dos movimentos pós-68, traços que não somente são diferentes dos movimentos sociais anteriores dentro da própria história capitalista, mas que também, estabelece sua específica novidade e originalidade frente à, muito mais ampla, família das diversas formas do milenar protesto social, ao qual aludimos antes. Porque, 1968 não é somente o momento de início da crise terminal do capitalismo, mas também, e em um registro ainda mais profundo, é o início da crise de toda forma classista possível de organização das sociedades humanas, em geral. A implicar que, os novos movimentos antisistêmicos dos últimos três ou quatro qüinqüênios – que lentamente começaram a gestar-se e a despontar a partir da data crucial de 1968 –, são diferentes, não somente dos movimentos anticapitalistas do período de 1789 a 1968, e nem sequer somente dos movimentos sociais dos últimos quinhentos anos, mas também, e mais além, de todas as 8 Sobre essa tese, elaborada por Immanuel Wallerstein, cfr. seu interessante ensaio “Histoire et dilemmes des mouvements antisystémiques” no livro Le grand tumulte? Les mouvements sociaux dans l’economie-monde, Ed. La Découverte, Paris, 1991. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas formas de protesto social que tenha acompanhado, por séculos e milênios, as formas classistas de organização social9. Novos movimentos anti-sistêmicos, filhos diretos da revolução mundial de 1968, que definem, então, parte dos seus perfis essenciais, em contraposição aos movimentos antisistêmicos ainda vigentes até os fins dos anos sessenta do século passado. Movimentos pré68, que durante grande parte do século XIX e, sobretudo, durante o século XX, estiveram reagrupados em torno de amplos subconjuntos globais, que eram a das famílias dos movimentos anti-sistêmicos principais. De uma parte, os movimentos socialistas, os quais se desenvolveram, sobretudo, no centro e na semi-periferia do sistema-mundo, e de outra parte, os movimentos de libertação nacional, que se desdobraram, fundamentalmente, dentro dos diversos países e nações da ampla periferia do sistema-mundo capitalista. Duas famílias de movimentos10, nas quais os primeiros, os movimentos socialistas, impugnavam, centralmente, a relação capital-trabalho, quer dizer, a relação de exploração econômica do capital que produzia o trabalho assalariado. Enquanto que, os segundos, os movimentos de libertação nacional, vão questionar em troca, fundamentalmente, as distintas formas de manifestação da relação entre centro e periferia, quer dizer, entre as nações centrais e as nações periféricas. Desse modo, enquanto os movimentos socialistas lutaram explicitamente pela abolição do capital e da sociedade capitalista, os movimentos de libertação nacional, por sua vez, deveriam combater também a dependência econômica de suas nações em relação às nações centrais, ou pela independência política, cultural ou social de seus respectivos países. Matiz importante de diferenciação entre ambas as famílias de movimentos, o que não impedirá, no entanto, o feito de que, durante essa longa etapa que vai desde 1789 até 1968, os movimentos de libertação nacional tendam, em muitos sentidos, a imitar o modelo dos movimentos socialistas do centro. Pois, os movimentos socialistas do centro, ao impugnar fundamentalmente a relação capital-trabalho, declaram, logicamente, que o ator central dos movimentos anti-sistêmicos e da luta anti-sistêmica era a classe operária. Inclusive, em ocasiões, esse rol central se reduzia ainda mais e se afirmava que correspondia, exclusivamente, à classe operária industrial. E é interessante observar, que não se falava do “proletariado”, apesar da célebre ordem da Primeira Internacional, que proclamava: “Proletários de todos os países, uni-vos!”, mas somente da classe operária, e, às vezes, exclusivamente, da classe operária constituída pelos operários de colarinho azul, quer dizer, da classe operária industrial. 9 Em nossa opinião, essa é a razão pela qual os ditos movimentos anti-sistêmicos pós-1968 se coincidem, por exemplo, com o processo atual da verdadeira „morte da política‟ na atividade humana em geral, ou também com o final histórico da „democracia‟ delegativa e derivativa que conhecemos nos últimos dois mil anos. Problemas que lamentavelmente não podemos abordar aqui com profundidade. A respeito, cfr. nossos ensaios, Carlos Antonio Aguirre Rojas, “La „Otra Política‟ de La Otra Campaña”, na revista Contrahistorias, num. 6, México, 2006, y “Una otra democracia para el Programa Nacional de Lucha” en Contrahistorias, num. 10, 2008. 10 Sobre a caracterização mais ampla destas duas famílas de movimentos anti-sistêmicos, cfr. o ensaio de Immnuel Wallerstein, “Las nuevas rebeliones antisistémicas: ¿un movimiento de movimientos?” en Contrahistorias, num. 1, México, 2003. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas A partir desta perspectiva, a classe operária era o pivô central do movimento antisistêmico, e qualquer outro grupo que se desenvolvesse na luta anti-sistêmica, era considerado, no melhor dos casos, como um possível aliado secundário, e, por isso, um ator social subordinado ao ator central que era a classe operária. Então, além das claras diferenças entre as duas famílias de movimentos, também podemos observar que, nesses mesmos anos dos séculos XIX e XX, anteriores a 1968, os movimentos de libertação nacional tenderam, recorrentemente, a copiar este esquema. Porque, estes movimentos se autoproclamavam como movimentos da “nação oprimida” ou, em outros casos, do “povo da nação oprimida”, mas sempre, aclarando de imediato que suas lutas e seu movimento estavam nucleados em torno da classe operária, a qual, permanentemente, era concebida como a obrigatória e imprescindível vanguarda dos movimentos de libertação nacional, e de toda possível luta dos povos oprimidos ou das nações dependentes contra os países do centro do sistema-mundo capitalista. De modo que, além de certos matizes e diferenças evidentes, os movimentos de libertação nacional seguiam os passos e o modelo dos movimentos socialistas. Além de impugnar as relações de dependência de toda ordem das nações periféricas frente aos centros do sistema, estes movimentos também lutavam, às vezes, pelo socialismo, e de qualquer forma, outorgavam as suas respectivas classes operárias, um protagonismo central dentro da estruturação dos movimentos, e dentro das diferentes lutas, tanto contra os inimigos “externos”, como também, e eventualmente, os inimigos “internos”. Outro traço importante dos movimentos anti-sistêmicos, tanto os socialistas como os de libertação nacional, é que estavam estruturados sempre a partir de organizações piramidais e hierárquicas, que apresentaram, sem questionamentos, uma estrutura e uma lógica quase militares. O que se reflete de maneira muito clara nas metáforas que se utilizavam então, ao falar do “exército do proletariado”, ou ao qualificar o Partido da classe operária como seu “Estado Maior”, ou, ao exaltar a férrea disciplina dos militantes e seu dever de obediência incondicional aos níveis superiores da organização, etc. Metáforas de tipo ou de origem militar, as quais se correspondiam harmonicamente com as estruturas das organizações, hierárquicas e piramidais, mas também, com uma muito particular concepção que implicava que os diferentes líderes eram parte ativa, dominante, definidora e depositária do saber e da claridade sobre o destino e sobre os caminhos do movimento. Enquanto que as “bases”, formadas pela imensa maioria dos militantes ou dos participantes do movimento, eram a parte passiva, puramente receptiva, dominada e externamente determinada em relação as suas tarefas e responsabilidades, em virtude, da falsa suposição de que eram carentes de saber e de claridade, somente possuída pelos ditos líderes. Concepção, limitada e errônea, referente ao vínculo entre bases e lideranças, que não obstante, foram característica e distintivo de todos os movimentos antisistêmicos pré-68. Um terceiro traço, de muitos outros que poderíamos assinalar, é que aos movimentos anti-sistêmicos anteriores a 1968, correspondem, como complemento, o desenvolvimento de distintas variantes de uma esquerda, que, de maneira abruptamente dominante, tem sido mais bem dogmáticas, manualesca, que funciona também dentro de O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas lógicas organizativas claramente autoritárias e hierárquicas, e que tem sido em termos históricos, uma esquerda fundamentalmente reformista e pró-sistêmica11. Até o ponto, mais que significativo, de que todas as revoluções que pretenderam ser socialistas durante o século XX, não se fizeram nunca graças ao apoio, impulso, direção, ou trabalho das organizações dominantes de esquerda, mas, pelo contrário, apesar delas. Assim, com é bem sabido, a revolução russa se fez, apesar da opinião contra de praticamente todos os Partidos Comunistas da socialdemocracia européia, e de todo o marxismo reformista europeu, o qual sempre expôs que num país atrasado econômica e socialmente, como era a Rússia czarista de fins do século XIX e princípios do século XX cronológicos, era impossível desenvolver uma verdadeira revolução socialista. Ou também, o caso de Cuba, no qual o movimento guerrilheiro cubano triunfa apesar da aberta oposição do Partido Comunista Cubano, triunfo que ademais envolve, entre outras de suas estratégias, um método que para aquelas épocas é considerado como algo absolutamente heterodoxo, e que é precisamente o da guerrilha popular, que se instala e se afirma primeiro nas montanhas e no campo, para somente depois descer até as cidades. Ou, a revolução na China, a qual se fez, apesar da clara oposição da Internacional Comunista, e mais além, do apoio que a Rússia lhe deu, não aos maoístas, mas ao Kuomitang. Sendo, igualmente, uma revolução muito heterodoxa, a qual afirma que a revolução deve avançar a partir do campo até as cidades, e não o contrário, como era a tese clássica e consagrada dos marxistas tradicionais, e, apresentando ademais, toda uma série de profundas novidades que constituem muito a originalidade da revolução chinesa durante o período de vida de Mao Tse Tung. Três traços característicos dos movimentos anti-sistêmicos pré-68, de uma lista que poderia se prolongar muito mais, que contrastam radicalmente com os traços próprios dos movimentos pós-68, os quais correspondem a essas mesmas realidades recentemente evocadas. Então, a primeira diferença fundamental, é que a relação entre centro e periferia, na qual a segunda copia e imita o “modelo” apresentado pelo primeiro, inverte-se claramente, para estabelecer uma relação na qual os centros são, agora, os que tentam seguir e imitar o modelo que hoje estão desenvolvendo os movimentos anti-sistêmicos das periferias. Inversão completa da antiga relação, que não somente se conecta com o feito que atualmente os movimentos anti-sistêmicos mais avançados estão desenvolvendo dentro da América Latina, quer dizer, na periferia do sistema, mas também com a profunda crise e desestruturação que vive as próprias relações da organização hierárquica e desigual do sistema-mundo, de atribuição e localização das diferentes nações dentro das relações de centralidade, de periferização e de semiperiferialidade. O que nos últimos qüinqüênios se 11 O que, para o caso mexicano, pode ilustrar-se claramente com o papel e a história do Partido comunista Mexicano, o qual tem sido, precisamente, um Partido dogmático, com uma visão manualesca do marxismo, profundamente autoritário e hierárquico, e que, em termos históricos, cumpriu um papel bem mais reformista e completamente pró-sistêmico. Tal como, o caracterizou agudamente José Revueltas, em seu brilhante trabalho Ensayo de un proletariado sin cabeza, Ed. Era, México, 1983 e também em seus ensaios compilados como Escritos Políticos. El fracaso histórico del Partido Comunista en México, três tomos, Ed. Era, México, 1984. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas expressa, entre outras formas, nessa inversão, na qual a periferia, que antes copiava o modelo de luta anti-sistêmica do centro, agora se converte no novo modelo que é imitado pelo dito centro, para o desdobramento de seus combates anti-sistêmicos específicos. Radical inversão das velhas relações, que somente é entendido, se assumirmos, que depois de 1968, o mundo entrou na etapa da verdadeira crise terminal do capitalismo. Pois, diferente de quem afirma que a etapa atual da história capitalista é a etapa da “globalização”, ou da “mundialização”, ou do etéreo e sempre indefinido “Império”, Immanuel Wallerstein postula que os anos transcorridos desde a quebra fundamental de 1968–1972/73 são bem mais da dita crise estrutural ou terminal do sistema capitalista mundial12. Crise global e civilizatória da inteira ordem social capitalista, a qual, ao começar a afrouxar e desestruturar suas tradicionais estruturas de configuração planetária, divididas em centro, semi-periferia, e periferia, cria também o espaço da mudança de papéis em relação à função exemplar dos atuais movimentos anti-sistêmicos. A natureza particular e as relações que guarda entre si os distintos movimentos antisistêmicos posteriores a 1968, explica-se, então, numa medida importante, por se desdobrar dentro da etapa, que Immanuel Wallerstein chama de o “caos sistêmico”, quer dizer, a etapa final do sistema histórico capitalista. Etapa de caos geral do sistema capitalista, a implicar que agora tudo pareça “estar de cabeça”, o que é muito bem compreendido por parte dos neozapatistas mexicanos, que desde 1995, afirmam contundentemente que o neoliberalismo é “a crise feita teoria e doutrina econômica”, ou também, que é “a teoria dos caos moderno” para complementar afirmando que “No panorama internacional, o caos é a forma que distingue a nova ordem mundial” 13 . Por isso, fica difícil decifrar, com claridade e coerência, a lógica que hoje determina o funcionamento dos governos do México, da América Latina, dos Estados Unidos, porque, o que agora predomina, é o dito caos sistêmico, caracterizado por uma situação de enorme confusão, na qual todas as estruturas estáveis entram em colapso, na qual todas as hierarquias se invertem, na qual todos os processos colocam-se de cabeça para baixo. E, uma das tantas expressões desse caos, é que agora, os modelos gerais das lutas antisistêmicas fundamentais estão a gerar-se dentro das periferias, para logo, serem assimiladas, recuperadas e imitadas por parte dos movimentos anti-sistêmicos das nações que ocupam as posições de centro do sistema. Outra diferença essencial entre os movimentos anti-sistêmicos anteriores e posteriores a simbólica data de 1968, é que, os segundos já não defendem a centralidade obrigatória de uma única e exclusiva classe social ou ator social fundamental e estruturador de toda a luta social, em geral. Porém, é claro, a classe operária ainda segue sendo 12 Sobre a crise terminal do capitalismo cfr. Immanuel Wallerstein, Después del liberalismo, Ed. Siglo XXI, México, 1996, e também La crisis estructural del capitalismo, Ed. Contrahistorias, México, 2005. Para a crítica das explicações simplistas do mundo atual, recentemente mencionadas, cfr. nosso livro, Carlos Antonio Aguirre Rojas, Para comprender el siglo XXI, Ed. El Viejo Topo, Barcelona, 2005. 13 Sobre essa caracterização dos neozapatistas mexicanos, cfr. os Comunicados do Subcomandante Insurgente Marcos de 17 de março e de 29 de setembro de 1995, ambos incluídos em EZLN. Documentos y Comunicados, tomo 2, Ed. Era, México, 1995. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas fundamental em qualquer possível projeto de transformação social global – e por isso, ainda “vai ao paraíso”, como afirmava aquele brilhante e agudo filme italiano. É também evidente que agora o leque dos distintos atores sociais constitutivos dos novos movimentos antisistêmicos inclui, junto à classe operária que ainda vai ao paraíso, também os campesinos, assim como, os indígenas, os jovens, as mulheres, os homossexuais e todos os grupos que os neozapatistas qualificam dentro do conjunto dos “cada qual ao seu modo”. A significar, que depois de 1968, o sujeito social, ou ator social, dos movimentos anti-sistêmicos têm-se multiplicado, pluralizado e diversificado, para configurar um vasto espectro ou arco-íris de setores, classes e grupos subalternos, no qual ninguém é aliado ou subordinado de ninguém, e todos são igualmente importantes e fundamentais. E, em tom com esta pluralização dos sujeitos sociais dos novos movimentos antisistêmicos, multiplicam-se, simultaneamente, as demandas dos mesmos movimentos, deixando de lutar exclusivamente nas frentes econômica e política, para abordar também, agora, diversos combates nas frentes culturais, sociais, étnicos, do meio ambiente, das relações de gênero, ou até civilizatórios, entre vários outros. Assim, depois de 1968 e também conectado com o caos sistêmico e com a condição terminal do capitalismo, mas, ao mesmo tempo, com o feito de que agora vivemos nos umbrais da possível abolição de toda forma concebível de organização classista das sociedades humanas, é que se começou a desdobrar as diferentes lutas anti-sistêmicas de caráter cultural, em torno da reivindicação de uma determinada identidade, ou os combates frontais contra o racismo e a discriminação racial, a luta contra o machismo e a estrutura patriarcal da família, junto às lutas pelo reconhecimento da diversidade sexual, entre muitas outras14. Junto às diferenças já mencionadas, outro dos traços que caracterizam os novos movimentos anti-sistêmicos, em oposição a seus antecessores prévios a revolução de 1968, é o de ter negado radicalmente seu antigo caráter piramidal, hierárquico e quase militar. O que explica, então, que as novas formas de organização dos movimentos anti-sistêmicos pós-68, sejam, agora, formas muito mais horizontais, e em geral, também, muito mais lassas e descentralizadas. O que tem feito proliferar as figuras das Frentes Amplas, ou das Confederações de movimentos, das Coordenadorias de Luta de organismos diferentes em torno de um combate comum, ou também a configuração sob o esquema da chamada “rede de redes” ou de um “movimento de movimentos”, como o exemplifica precisamente, o importante movimento mexicano atual, A Outra Campanha. Novas formas de organização dos movimentos anti-sistêmicos atuais, que também se expressa, logicamente, no plano da relação entre os líderes e as bases. Pois agora, estes líderes deixaram de ser concebidos como os depositários exclusivos do destino dos movimentos, para antes, converter-se, em companheiros, que devido a sua especial entrega e esforço, são encarregados de certas responsabilidades importantes do movimento, ou são seus voceros, seus mediadores com o exterior, seus coordenadores e responsáveis de certas 14 Segundo Immanuel Wallerstein, um dos méritos importantes dos neozapatistas consiste, precisamente, em ter reivindicado, centralmente, a luta plural levada a cabo por múltiplos atores sociais e desdobrada em todas as frentes da realidade social. A respeito, cfr. seu ensaio “¿Qué es lo que los zapatistas han logrado?”, en Contrahistorias, número 10, México, 2008. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas tarefas fundamentais, tal como sucede nas Juntas de Bom Governo neozapatistas, e no movimento neozapatista em geral. Mutação radical da relação entre líderes e bases, que se expressam na proliferação recente, no seio dos novos movimentos anti-sistêmicos, de novas lideranças, que agora são coletivas, e também, muitas vezes, lideranças rotativas, a partir de uma lógica distinta dos movimentos pré-68, na qual todos os militantes se consideram como iguais, onde o exercício de um cargo qualquer não outorga superioridade alguma a quem o exerce, na qual os “líderes” são, antes, parte da base, e não estão em nenhuma cúpula estranha, crendo-se os detentores de todo o saber, iluminados, que com sua enorme sabedoria e grande capacidade intelectual, analisam a realidade nacional e internacional para criar o Programa Nacional de Luta por si mesmo. Pois, como postulam agora os companheiros neozapatistas, e com eles todo o vasto movimento mexicano, A Outra Campanha, nas circunstâncias atuais, os Programas Nacionais de Luta são criados “a partir de baixo e a esquerda”, por parte de todos nós, e num amplo exercício coletivo de reflexão, discussão, elaboração, análises e decantação, que envolve diretamente a todo o fundamento da pirâmide do movimento, quer dizer, a todas as “bases” do mesmo. Em consonância com todas essas mudanças já mencionadas, também se desenvolvem as novas esquerdas pós-68, as quais deixaram de ser solenes, hierárquicas e parcimoniosas, para se tornarem, em todo o mundo, muito mais festivas, prazerosas, tolerantes, e, também, absolutamente plurais, abertas ao outro, completamente dialógicas. Esquerda pós-68, que ao abandonar a antiga rigidez, dogmatismo e repúdio de seus predecessores, puderam, então, inventar, recriar, repensar, renovar radicalmente os discursos, os símbolos, os referentes, os atores, as estratégias15, os métodos, os caminhos, as táticas, mediante as quais, se afirmam e desdobram os novos movimentos anti-sistêmicos mais contemporâneos. América Latina como frente de vanguarda da atual luta anti-sistêmica mundial Como é lógico, todos esses traços mencionados dos novos movimentos antisistêmicos pós-68 no mundo, vão também se reproduzir na América Latina e no México. O que nos leva a necessária pergunta de por que agora a nossa América Latina representa esta função honrosa de ser o espaço civilizatório, no qual se desenvolve, nos últimos três ou quatro qüinqüênios, os movimentos anti-sistêmicos mais avançados de todo o planeta? E, penso que não é tão difícil aceitar que hoje a América Latina constitui a frente de vanguarda da luta anti-sistêmica mundial, quando observamos que aqui, dentro do semi-continente latino-americano, temos, pelo menos, cinco movimento anti-sistêmicos tão complexos, 15 Sobre a mudança de estratégias dos movimentos anti-sistêmicos, ver o ensaio de Immanuel Wallerstein, intitulado “Estados Unidos, América Latina y el futuro de los movimientos antisistémicos” en Contrahistorias, núm. 10, México, 2008. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas massivos, ativos, inovadores e criativos que não parecem ter um equivalente nem dentro da Europa, nem da Ásia ou África16. Visto que, em termos dos seus impactos sociais globais dentro de suas respectivas nações, o mesmo em relação aos seus ecos internacionais, mas também em virtude de sua enorme riqueza experimental quanto à geração de novos paradigmas mundiais dos modos e das formas gerais do atual protesto anti-sistêmico, ou da criação dos claros embriões do que pode ser os novos mundos e muitos outros que o capitalista, em todos esses sentidos, parece ser evidente o maior avanço dos movimentos anti-sistêmicos latino-americanos a respeito de seus restantes homólogos dos outros rincões da geografia do Planeta Terra. Pois não é uma simples casualidade a clara concentração, que se dá em anos recentes dentro dos territórios e países da América Latina, de tantos e tão variados movimentos sociais fortes, ativos e protagonistas, que se mostram como capazes de derrubar governos e de derrocar Governadores, Presidentes, ou Partidos que permanecem muito tempo no poder, uma vez que põem em xeque as estruturas e os personagens dominantes, a nível local ou regional, mas muitas vezes também, a nível de um país inteiro. Movimentos que ao serem analisados a partir da escala mundial, chamam a atenção não somente por essa enorme força e impacto social e pela presença contundente dentro da vida política e social de suas respectivas nações, mas também pela riqueza, complexidade, diversidade e profundas novidades das suas ações e de seus discursos principais17. Quantidade, qualidade e medida específica dos novos movimentos sociais latino-americanos, que seria necessário abordar e explicar com mais profundidade. Vasta família dos novos movimentos sociais da América Latina, dentro da qual se destacam, em nossa opinião, como movimentos genuína e claramente anti-sistêmicos, cinco deles, que incluem naturalmente o digno movimento indígena neozapatista mexicano, junto ao Movimento dos Sem Terra no Brasil (a pensar, neste caso, muito mais nas bases campesinas do movimento, do que em muitos dos seus líderes atuais), ao setor mais radical e mais “autonomista” dos Piqueteros Argentinos (o que exclui sem dúvida aqueles que têm compactuado e negociado com os Kirchner, antes com Néstor e agora com Cristina), ao movimento indígena boliviano mais conseqüente e radical, quer dizer, por exemplo, ao povo da comunhão da cidade de El Alto na Bolívia, e não o tíbio e acomodado Movimento para o 16 Sobre as múltiplas razões de longa duração, mas também conjunturais e imediatas, que explicam o atual rol da América Latina como frente de vanguarda mundial dos movimentos antisistêmicos de todo o mundo, cfr. nosso livro, Carlos Antonio Aguirre Rojas, América Latina en la encrucijada, já citado antes. Também vale a pena ver a entrevista a Immanuel Wallerstein, “Chiapas y los nuevos movimientos antisistémicos de América Latina”, em Contrahistorias, núm. 5, México, 2005. 17 Sobre o caráter que em geral apresentam os movimentos anti-sistêmicos nas zonas da periferia do sistema capitalista, vale a pena reler o ensaio de Immanuel Wallerstein, “El CNA y Sudáfrica: pasado y presente de los movimientos de liberación en el sistema-mundo”, revista Chiapas, núm. 7, México, 1999. A respeito de alguns dos traços gerais que compartilham os novos movimentos antisistêmicos da América Latina, cfr. o ensaio de Raúl Zibechi, “Espacios, territorios y regiones: la creatividad social de los nuevos movimientos sociales en América Latina” em Contrahistorias, núm. 5, México, 2005, y nosso ensaio, Carlos Antonio Aguirre Rojas, “Los nuevos movimientos sociales en América Latina. Una breve radiografía general” em Contrahistorias, núm. 9, 2007. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas Socialismo de Evo Morales, e também os movimentos indígenas mais de esquerda dentro da CONAIE18 no Equador. E, vale a pena voltar a recordar a distinção apresentada antes, entre o que é somente um movimento social e o que é, por outro lado, um movimento social antisistêmico. Pois, somente são movimentos anti-sistêmicos na atualidade aqueles que se projetam de maneira consciente e explícita a eliminar de maneira radical o sistema social capitalista hoje imperante, para substituí-lo por outro sistema social novo e completamente diferente. Por isso, consideramos que hoje na América Latina temos, pelo menos, e de maneira muito clara, os cinco movimentos mencionados como movimentos que são claramente anti-sistêmico, sendo, como já mencionamos movimentos sociais muito potentes e desenvolvidos. Movimentos robustos e em ascensão, que não por casualidade, se encontram também na origem da gestação da importante iniciativa de organização dos, até agora, oito Fóruns Sociais Mundiais, os quais, em sua maioria, têm sido celebrados em terras precisamente latino-americanas19. Movimentos, que como já referimos, são quase capazes de dominar países e nações inteiras, cercando e assenhoreando-se de cidades em sua totalidade, fazendo-se presentes, pressionando e determinando, por exemplo, a derrubada de regimes de partido único que duraram mais de setenta anos. Pois, hoje parece ser claro que foi, sobretudo, graças à ação e aos efeitos da luta do digno movimento neozapatista, aos seus impactos gerais sobre a sociedade mexicana, sobre a consciência política e a consciência geral de todos os mexicanos, que o PRI perdeu o poder nas eleições mexicanas do ano 2000. Derrota histórica do que então era o mais velho partido de Estado do mundo, que não é atribuível nem a Vicente Fox, nem tampouco ao PRD, mas sim a este importante movimento neozapatista e aos múltiplos e complexos impactos que desencadeou no México, após sua salutar irrupção pública em primeiro de janeiro de 1994. Força impressionante e efeitos fundamentais dos movimentos anti-sistêmicos latinoamericanos recentes, que sendo então a clara frente de vanguarda anti-sistêmica mundial, apresentam-nos a grande pergunta acerca das razões principais desta centralidade e do rol de avanços dos ditos movimentos. Tema, vasto e complicado, que é impossível esgotar aqui, na medida em que a adequada solução envolve tantas razões imediatas, como também razões conjunturais, mas, igualmente, razões de verdadeira longa duração, razões múltiplas, cuja complexa imbricação é parte dessa difícil explicação. Razões variadas, das quais podemos mencionar, somente a modo de pistas, duas. Que neste caso, inscrevem-se, ambas, dentro dos registros específicos da longa duração. A primeira alude ao fato da América Latina, vista a partir da longa história do capitalismo, ter sido, e é ainda, a civilização mais explorada, mais oprimida, mais perseguida 18 19 CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador). N.T. Immanuel Wallerstein tem insistido no papel central gerador que teve o movimento neozapatista para todo o ciclo atual de lutas anti-sistêmicas, incluindo as manifestações de Seattle em 1999 e as posteriores em Gênova ou Praga, etc., e esta iniciativa importante do Fórum Social Mundial. A respeito, cfr. seus ensaios, “Los zapatistas: la segunda etapa”, em Contrahistorias, núm. 5, México, 2005 e “Los dilemas de un espacio abierto: el futuro del Foro Social Mundial” em seu livro La crisis estructural del capitalismo, Ed. Contrahistorias, México, 2005. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas e mais saqueada de todo o Planeta Terra. Por isso, entre outras razões, hoje segue sendo a zona do mundo na qual a desigualdade social é maior. Pois, dado que a dinâmica capitalista produz, como um dos seus inevitáveis frutos, uma desigualdade social crescente, então, é lógico que aquela parte do planeta que sofreu o saqueio e o despojo capitalista por mais tempo, seja também a zona na qual a dita disparidade do ingresso social de seus distintos grupos e classes constitutivas apresentem as diferenças e distâncias mais marcantes de todos. Pois, esse maior saqueio, perseguição, exploração e repressão se explicam pelo fato conhecido de que a história universal do capitalismo começou precisamente aqui, com o mal chamado “Descobrimento da América”, mediante o qual a Europa conquistou e subjugou a América Latina, desde as longínquas datas do século XVI cronológico, para construí-la como um espaço claramente periférico e dependente dos centros, situação que já se prolonga durante mais de cinco séculos. Desse modo, a dinâmica do saqueio e do despojo capitalista se instaurou na América Latina antes que em qualquer outra parte, provocando a situação de uma maior polarização social e de uma maior desigualdade em relação a todas as restantes civilizações. E, ainda que depois venha o falido e somente parcial domínio da Ásia, ou a conquista inglesa da Índia no século XVIII, e o esquartejamento e partilha da África no século XIX, permanece o fato de que a submissão de nossa América Latina inaugura, realmente, a construção da rede do mercado mundial capitalista e com ele o processo efetivo da verdadeira história universal. Porém, junto aos cinco séculos de opressão, exploração, vexação, humilhação e de discriminação, temos também meio milênio de resistência, de rebeldia, de luta e de tentativa de romper radicalmente as estruturas de dependência econômica e da dependência em geral. Por isso, quando o sistema capitalista como um todo entra na etapa de crise terminal e então começa a desestruturar-se em todas as suas ordens, e a colapsar em todo o conjunto de suas principais relações, nesse momento começa a afrouxar também a condição secular da situação de dependência da América Latina em relação às zonas ou países do centro do sistema20. E, então, nesse semi-continente, que foi o mais explorado, saqueado, humilhado e subjugado de todo o globo terrestre, prosperam também, os novos e muito radicais movimentos anti-sistêmicos latino-americanos antes referidos. Uma segunda pista explicativa vincula-se ao fato de que a América latina levou mais de cem anos a padecer do domínio norte-americano. Pois, os Estados Unidos consideram a América latina, desde o século XIX, em termos reais, tal como expressou com nitidez a sinistra e premonitória Doutrina Monroe, como seu verdadeiro traspatio. E é assim que durante décadas e décadas nosso semi-continente foi seu mercado privilegiado, seu depósito de matérias primas, seu provedor de força de trabalho barato, e até seu lugar de turismo, de refúgio ou de retiro para os trabalhadores aposentados. A significar, que a vasta América que se localiza ao sul do Rio Bravo, está oprimida durante mais de um século por parte dos Estados Unidos. 20 Sobre o papel da América latina na história capitalista, visto a partir da longa duração, cfr. nosso ensaio, Carlos Antonio Aguirre Rojas, “América Latina hoje: um olhar na longa duração”, no livro América Latina: História e Presente, São Paulo: Ed. Papirus, 2004. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas Porém, é claro, que faz aproximadamente trinta e cinco ou quarenta anos, depois da ruptura histórica de 1968-1972/73, que os Estados Unidos começaram a declinar como potência hegemônica do sistema capitalista mundial. Decadência lenta, mas continuada e muito óbvia da hegemonia norte-americana, que se fez evidente pela primeira vez quando em 1975 os Estados Unidos são derrotados pelo heróico povo do Vietnã. Derrota histórica de grande significado, pois começa a redefinir o papel geopolítico norte-americano no mundo, mudando a anterior preponderância indiscutida sobre a definição exclusiva da geopolítica por parte dos governos estadunidense, por uma nova situação, na qual os Estados Unidos se vê obrigado a consultar e entrar em consenso em relação ao desenho geopolítico do mundo com as outras potências ricas do planeta, como por exemplo, dentro do chamado “G7” ou “G8”, ou em outra vertente no seio mesmo da ONU. Declive lento, mas continuado, da dita hegemonia norte-americana, que entre suas múltiplas expressões, conhecerá também a do relativo afrouxamento do domínio dos Estados Unidos sobre a América Latina, e por isso, a abertura de maiores espaços para tentar certos processos diversos de libertação desta última em relação ao domínio secular do primeiro. Uma libertação que nos últimos tempos, se expressa na ascensão ao poder de vários tíbios governos socialdemocratas, pretensiosamente de esquerda, como o de Hugo Chávez na Venezuela, o de Evo Morales na Bolívia, os governos de Lula no Brasil, o governo de Rafael Correa no Equador, ou o que deveria ter sido o governo de Andrés Manuel López Obrador no México, governos que em nossa opinião são somente um dos efeitos indiretos e colaterais da cada vez maior força e presença dos movimentos anti-sistêmicos latino-americanos. Efeitos ou manifestações deformadas e indiretas do protesto social que aumenta a cada dia, que em nada satisfazem os profundos reclames populares, sendo na realidade somente uma espécie de uma possível “válvula de escape” que as classes dominantes propõem para conter e desviar o descontentamento popular. Mas, que vistos a partir de uma perspectiva histórica mais ampla, podem, talvez, ser somente um elo ou passo intermediário de transição até a próxima e futura conformação de verdadeiros governos populares, realmente de esquerda, e que no dia de manhã governarão a partir do princípio do “Mandar Obedecendo”, e realmente apoiados e sustentados nos movimentos anti-sistêmicos de toda a América Latina21. Novos movimentos anticapitalistas latino-americanos que compartilham uma realidade fundamental, que os irmana e aparenta profundamente, além de suas claras peculiaridades e diferenças, que é o fato de que todos eles não poderiam nem existir nem afirmar-se, como têm feito nos últimos qüinqüênios, sem o surgimento das condições, próprias à etapa anterior ao ano de 1968. Pois, vale à pena recordar que, por exemplo, toda a esquerda mundial oficial e institucional condenou, em geral, em todas as partes, os diversos movimentos estudantis de 1968. E, esta condenação proveio quase unanimemente de praticamente todos os Partidos Comunistas daquela época, sem exceções. 21 Sobre a caracterização mais ampla de vários dos casos dos governos aqui referidos, dentro da situação geral que hoje vive a América Latina, cfr. Os treze ensaios de Immanuel Wallerstein incluídos na Seção intitulada “América Latina en la crisis terminal del capitalismo” dentro de seu livro La crisis estructural del capitalismo, Ed. Desde Abajo, Bogotá, 2007. Também, nosso livro já citado, Carlos Antonio Aguirre Rojas, América latina en la encrucijada. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas Desse modo, o Partido Comunista Mexicano – que mais tarde ainda assim tentou, sem êxito, “montar-se” no movimento e até dirigi-lo – do mesmo modo que o Partido Comunista Francês, e que quase todos os Partidos Comunistas do mundo, condenaram os movimentos de 1968, sob o argumento de que eles eram desenvolvidos por estudantes, e posto que os estudante não produzem mais-valia, então, por mais que se propague, eles não podem atacar de maneira realmente decisiva o coração do sistema, por não poder interromper de maneira eficaz o dito processo de valorização da acumulação continuada do capital. Em troca, e em aberto contraste com essas posturas da velha esquerda pré-68, é interessante observar, por exemplo, os cinco movimentos anti-sistêmicos que antes mencionamos. Entre eles está o movimento de uns campesinos brasileiros que são os campesinos Sem Terra. Mas então, se eles não têm terra, como podem afetar o mecanismo econômico produtivo dominante e a produção constante da mais valia que é o motor central de todo o sistema? Ou, também, o caso dos piqueteiros argentinos, que é um movimento dos trabalhadores desocupados, quer dizer, dos sem trabalho. Então, uma vez mais, como poderiam afetar esse mecanismo econômico produtor de mais valia, aqueles que nem sequer tem trabalho? Sucede o mesmo com os movimentos indígenas que se desenvolveram recentemente na Bolívia, no Equador ou no México. Porque todos esses movimentos, tal como apresentam claramente os próprios companheiros neozapatistas, são os movimentos de quem viu ser regateado por parte dos poderes dominantes, durante séculos e décadas, tanto o reconhecimento, como o verdadeiro exercício de sua cidadania, ou de seus direitos, também de sua cultura e até de sua identidade. Desse modo, os movimentos indígenas são os movimentos dos “sem” cultura, “sem” identidade, “sem” direitos e “sem” reconhecimento de sua condição de cidadãos e até os “sem” existência legal, já que, às vezes, os meninos indígenas morriam sem ter sido sequer registrados no Registro Civil. Assim, em ocasiões, não têm existido nem sequer para as estatísticas gerais dos nossos países da América Latina. Nesse sentido, resulta curioso comprovar como, de uma maneira indireta e talvez involuntária, mas muito evidente, a velha esquerda pré-68 se fez eco na negação dos ditos movimentos indígenas. Pois, para esta esquerda, os indígenas somente eram importantes em sua específica condição de campesinos, mas nunca em sua própria condição de indígenas22. Então, não poderiam existir demandas em torno da cultura ou da identidade indígenas, nem lutas de reconhecimento de suas línguas ou de seus “usos e costumes”, mas somente demandas em relação ao seu ser ou condição de campesinos. Ainda, como já mencionamos, tais campesinos poderiam ser, no melhor dos casos, tão somente aliados secundários da classe operária, e nada mais. Agora, em compensação, todos os movimentos, que são os dos sem terra, sem trabalho, sem cidadania, sem reconhecimento de sua identidade, somente se explicam, uma 22 Uma notável exceção a essa regra são os interessantes trabalhos de José Carlos Mariátegui, por exemplo, seu conhecido livro Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana, en Obras Completas, vol. 2, Ed. Biblioteca Amauta, Lima, 1969. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas vez mais, a partir da situação, tantas vezes referida, de crise terminal do capitalismo. Pois, é esta última que nos explica porque hoje o protesto anti-sistêmico já não vem somente dos centros, mas também das margens do próprio sistema. Pois, ao começar a se desmoronar por todas as partes o sistema-mundo capitalista, e ao apresentar-se como força a pergunta acerca do novo sistema histórico que estará muito pronto para substituí-lo, as possíveis respostas se multiplicam e começam a gerar-se dentro e fora do sistema e também a partir de todas as partes internas constitutivas. E então, os diretamente excluídos pela lógica desse sistema, os quais, em virtude da sua própria dinâmica global, ficam sem trabalho, ou sem terra, juntamente com aqueles que são excluídos pelo sistema porque não encontra a maneira de integrar-se dentro do projeto da decadente modernidade dominante, como as dignas comunidades indígenas de Chiapas, da Bolívia ou do Equador, são os novos sujeitos sociais que hoje estão protagonizando as também novas revoltas contra o sistema, quer dizer, os novos movimentos anti-sistêmicos tão ativos e presentes dentro da geografia da nossa América Latina. Pois, o que reivindicam e defendem todos esses movimentos é uma modernidade anticapitalista, e também pós-capitalista. Porque, ao terem sido excluídos das lógicas de reprodução dessa modernidade capitalista, somente poderiam afirmar, em geral, sua identidade e até seu próprio ser, apresentando outra modernidade, a qual terá que situar-se necessariamente fora e mais além do sistema agora vigente. O que é evidente no caso dos movimentos indígenas recém citados, os quais, ao longo de cinco séculos, lograram até hoje, de uma maneira exitosa, desenvolver seu próprio projeto de modernidade. Que tem sido, necessariamente, uma modernidade de resistência, e que nos últimos trinta anos se transformou claramente numa modernidade, que sendo ainda uma estrutura e espaço dessa mesma resistência secular, é também uma modernidade agora alternativa ao próprio capitalismo. Pois, contra certas visões, às vezes, ingenuamente repetidas, é importante enfatizar o fato de que os indígenas mexicanos, bolivianos, equatorianos, e de toda a América Latina, não são indígenas pré-modernos, nem arcaicos, nem são tampouco “ressaibos” de um determinado passado pré-capitalista, mas que são indígenas, campesinos e membros de diversos países latino-americano, que viraram modernos a sua maneira, dentro de sua muito específica via, por seus próprios e exclusivos caminhos, quer dizer, através do desenvolvimento de uma singular modernidade sua, a qual foi durante meio milênio uma modernidade de resistência a modernidade barroca latino-americana que dominou nosso semi-continente, durante os últimos quinhentos anos transcorridos23. Essa mutação, de uma trans-secular modernidade de resistência a outra modernidade alternativa ao próprio capitalismo, se desdobra depois da simbólica data de 1968. Pois, todas as populações indígenas, que durante meio milênio foram ignoradas, 23 Sobre a caracterização dessa modernidade barroca latino-americana, fruto da mestiçagem cultural posterior a conquista espanhola, cfr. Bolívar Echeverría, La Modernidad de lo Barroco, Ed. Era, México, 1998. Sobre a modernidade indígena de resistência, logo transformada em modernidade alternativa ao capitalismo, cfr. nosso livro, Carlos Antonio Aguirre Rojas, Mandar Obedeciendo. Las lecciones políticas del neozapatismo mexicano, antes já citado. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas marginalizadas, silenciadas e excluídas de distintas formas dos processos essenciais da reprodução da modernidade capitalista dominante, assumem agora, radicalmente, as implicações dessa permanente exclusão. Para reivindicar, então, não uma falsa e empobrecida “integração” a modernidade capitalista hoje em crise, mas a construção de uma alternativa social diferente e muito outra, de uma modernidade anticapitalista radical. E isso, junto aos outros grupos também excluídos pelo capitalismo da América Latina, como os desempregados e os campesinos sem terra. Nesta linha, chama a atenção o fato de que a condição de exclusão das lógicas centrais da reprodução capitalista começa a ser algo que, também nos países ricos e mais capitalistas do centro do sistema, vira o suporte e o espaço principal das novas rebeliões anti-sistêmicas em curso. E uma vez mais, neste rubro também, parece que os países centrais voltam a imitar o modelo marcado pelos países periféricos. Já que, quem está protagonizando os mais importantes protestos sociais recentes nos Estados Unidos, são justamente os imigrantes, quer dizer, aqueles que são privados de direitos, de cidadania, de trato igual e de iguais oportunidades laborais e sociais em geral. O movimento dos imigrantes, tanto mexicanos como de toda a América Latina, que sofrem a exclusão de seus direitos a educação, direito ao voto, direitos sindicais de associação e de protesto, direito de expressão, entre muitos outros, é o movimento que desenvolveu as revoltas sociais mais importantes dentro dos Estados Unidos nos últimos tempos. E o mesmo sucede, por exemplo, na França, onde os excluídos sociais dos subúrbios parisienses, excluídos por critérios puros e escandalosamente racistas, vinculados a sua origem ou a sua condição étnica árabe, turca, argelina ou senegalesa, etc., são os que desenvolvem agora as novas formas de protesto anti-sistêmico dentro da França, e inclusive, provavelmente, dentro de pouco tempo, dentro de toda a Europa. Sobre a originalidade e a importância mundial do neo-zapatismo mexicano Por último, é importante perguntar também as razões que explicam o fato de que, dentro da vasta, complexa e diversa família dos movimentos anti-sistêmicos de todo o mundo, o neo-zapatismo mexicano tenha logrado obter um verdadeiro e notável impacto mundial. O que não somente se desdobrou de imediato a todo o largo de nosso pequeno Planeta Terra, mas que, ademais, se consolidou e se manteve ao longo dos, até agora, quinze anos de vida pública. Assim, forma-se uma ampla e importante rede mundial de solidariedade com este digno movimento indígena das montanhas do sudeste mexicano. E isso, não somente no sentido limitado da atenção permanente desta rede mundial para os ganhos, os sucessos, as peripécias e os avanços da luta neo-zapatista, nem tampouco, exclusivamente, do desenvolvimento de ações explícitas de apoio a esta causa importante, ou de protesto frente aos assédios e repressões que a mesma tem sofrido. Mas também, e em termos mais vastos, no sentido de considerar a experiência neo-zapatista como uma verdadeira fonte de inspiração e de lições fundamentais para o desenvolvimento das próprias lutas locais e nacionais de cada um dos membros da ampla rede mundial de apoio ao movimento. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas Pois, após três qüinqüênios de sua saudável irrupção, agora é mais claro que a experiência neo-zapatista possui claramente um valor de vigência universal para todos os movimentos anti-sistêmicos do mundo, os quais, não por casualidade, primeiro discutem, estudam, observam e analisam a dita experiência e as lições essenciais que a mesma acarreta, para, num segundo momento, tratar de recriar e replicar de maneiras distintas e com suas singularidades, as lições e ensinamentos do digno neo-zapatismo dos indígenas mexicanos. Por isso, a partir do impacto planetário e da funda influência global do movimento neo-zapatista24, que levou Immanuel Wallerstein a afirmar que o atual ciclo do protesto antisistêmico mundial dentro do qual estamos todos imersos, começaram precisamente em 1º de janeiro de 1994 em Chiapas, é possível precisar ainda mais a periodização antes proposta em relação à história recente dos movimentos anti-sistêmicos do mundo em seu conjunto. Pois, se é claro, como já temos desenvolvido, que a revolução cultural mundial de 1968 representou uma quebra de longa duração na história das lutas anti-sistêmicas planetárias, também é evidente que a dita quebra não se realizou de uma maneira súbita e intempestiva, mas, como todo processo social complexo, de uma maneira difícil, acidentada, com avanços e retrocessos, e cheia de vicissitudes complicadas. O que nos permite entender que a etapa que corre desde 1968 até hoje, pode então ser subdividida em duas sub-etapas distintas, quando observamos, novamente, o conjunto de toda a família mundial dos movimentos anti-sistêmicos dos últimos quarenta anos. Pois, quando falamos do corte estrutural simbolizado no ano de 1968, não pretendemos, simplesmente, que os velhos movimentos anti-sistêmicos possuíam um caráter determinado até o último mês de 1967, enquanto que a partir de primeiro de janeiro de 1968 adquiriram já, completa e perfeitamente, o caráter de novos e totalmente diversos movimentos antisistêmicos pós-68. Porque, processos desse tipo são processos que somente se realizam e se desdobram, lenta e acidentalmente, durante vários anos e às vezes vários qüinqüênios. Desse modo, é possível postular a existência de uma primeira sub-etapa. Uma clara etapa de transição dos movimentos anti-sistêmicos no México, na América Latina e em todo o mundo, e que abarcaria, aproximadamente, de 1968 até os começos de 1994. E então, como em toda época ou processo de transição, também na história dos movimentos antisistêmicos planetários, mesclam-se os traços e os elementos dos velhos e dos novos movimentos, na medida em que, pouco a pouco, vão caindo os velhos movimentos antisistêmicos anteriores a 1968, e com eles, começam também a entrar em colapso as velhas organizações de esquerda que acompanham e são correspondentes desses movimentos. Por outro lado, lenta, mas continuamente, vão emergindo simultaneamente os novos movimentos anti-sistêmicos e junto a eles as novas esquerdas pós-68. 24 Sobre o impacto mundial do neo-zapatismo mexicano, e sobre suas prolongadas e profundas influências sobre todos os movimentos anti-sistêmicos do planeta, que nos seja permitido remeter uma vez mais ao conjunto de ensaios incluídos no livro, Carlos Antonio Aguirre Rojas, Chiapas, Planeta Tierra, anteriormente citado. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas Algo que no México tem se manifestado de maneira muito clara, quando assistimos ao processo, mediante o qual, os velhos movimentos operários começam a entrar em colapso e a declinar, precisamente depois da data importante de 1968. Ao mesmo tempo em que se esboçam os esforços pela construção de um novo e diferente movimento operário, que de um lado derivaram, lamentavelmente, tão somente na construção de um novo charrismo sindical ou neocharrismo, mas que de outro gestaram também a certo movimento operário independente, realmente de esquerda e socialista, que com múltiplos avatares se manteve até nossos dias. E isso, junto aos diferentes processos, aos quais também se relacionam o movimento campesino, igualmente renovado e diverso, que coexiste com a aparição e primeiro desenvolvimento realmente orgânico de um amplo movimento feminista, ainda bem mais difuso. E, sobretudo, de uma crescente e cada vez mais onipresente sensibilidade feminista. Juntamente à irrupção de potentes e também novos movimentos urbanos-populares, ou também, movimentos estudantis, que crescem e avançam a passos acelerados, a afirmar claramente um novo protagonismo social, inédito até antes dos anos que rodeiam 1968 tantas vezes referido25. Mas também, junto a todos os novos movimentos sociais recentemente mencionados, irá se firmar no México a presença de um importante movimento indígena, o qual em 1974, e ainda dentro das seqüelas imediatas do 1968 mexicano, irá celebrar, justamente na cidade de San Cristóbal de Las Casas, seu Primeiro Congresso Nacional. Ao mesmo tempo, acompanhando, logicamente, a renovação geral de todos os movimentos sociais de protesto no México, desenvolve-se também a etapa de transição da esquerda mexicana, na qual veremos conviver às organizações da velha esquerda, com os grupos e tendências das múltiplas novas esquerdas. Convivência complexa, dentro de um processo, no qual, por exemplo, o velho Partido Comunista Mexicano se transforma várias vezes, na linha de ir perdendo cada vez mais seus supostos perfis socialistas, para terminar integrando-se como uma suposta “ala esquerda” interna do também cada dia mais desbotado e oportunista Partido da Revolução Democrática. E isso, junto ao florescimento de todo tipo de maoísmo, trotskismo, anarquismo e posições libertárias diversas, por meio das quais se expressam justamente as novas esquerdas em vias de gestação. Etapa de transição cujo fim, não somente no México, mas em todo o planeta, podemos localizar, com bastante claridade, a partir do primeiro de janeiro de 1994, emblemático e fundamental. O que, uma vez mais, tem caráter de data simbólica, e não de data literal ou cronológica. Pois, a partir do início de janeiro de 1994, o ciclo mundial do protesto anti-sistêmico dentro do qual agora mesmo estamos vivendo avança. Ciclo que responde de maneira contundente aos efêmeros efeitos negativos que provocou a queda do Muro de Berlim de 1989, e que depois de Chiapas, se manifesta sucessivamente em Seatle, 25 Sobre alguns dos efeitos importantes do 68 mexicano, para a história posterior do México, ver nosso ensaio “1968: la gran ruptura”, incluído em nosso livro, , Carlos Antonio Aguirre Rojas, Para comprender el siglo XXI, antes citado. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas Gênova, Praga, Porto Alegre. E, a partir daí, outra vez, em praticamente toda a vasta geografia de nosso pequeno Planeta Terra. Portanto, é importante sublinhar o fato de que foi precisamente o digno movimento indígena neo-zapatista, o qual, num primeiro momento, devolveu a verdadeira esperança a toda esquerda mundial, e também a todos os movimentos anti-sistêmicos do planeta, depois da desilusão e da confusão que provocaram, em um setor importante dessas esquerdas e desses movimentos, os acontecimentos importantes de oito e nove de novembro de 1989 em Berlim. Restauração da esperança a nível planetário, que sem dúvida deve ser considerado como um dos muitos elementos que explicam o impacto mundial e a profunda vigência universal do neo-zapatismo mexicano sobre os movimentos anti-sistêmicos em geral. Por outro lado, hoje parece ser claro, também, que foi graças aos neo-zapatistas, e em particular, a sua irrupção pública de primeiro de janeiro de 1994, que os movimentos indígenas de toda a América Latina adquiriram uma visibilidade e um protagonismo geral que não tinham antes dessa data mencionada. Porque, ao atrair a atenção mundial, de um modo inteligente e radical, mas também dramático sobre a secular e persistente exclusão social dos indígenas dentro da história e dentro da situação atual do México, os neo-zapatista abriram, ao mesmo tempo, o espaço geral para a percepção clara dessa mesma exclusão em todo nosso semi-continente latino-americano, abrindo o espaço para uma muito maior afirmação e visibilidade de todos os movimentos indígenas da América Latina. Pois, é claro, que esses movimentos existem há quinhentos anos, como o movimento indígena mexicano, assim como no Equador, Bolívia, Peru, Colômbia ou Guatemala, para mencionar somente alguns deles. Mas também, é certo que todos esses movimentos mudam profundamente seu rol dentro de seus respectivos países a partir da data simbólica de 1994. Passando de uma atitude bem mais defensiva e de uma condição de enorme invisibilidade para uma postura muito mais protagonista e ofensiva, que não somente incrementa consideravelmente sua presença e sua visibilidade social, mas que também os recoloca no centro do novo e mais recente protesto social em geral. E tudo isso, outra vez e em certa medida, graças à benéfica e salutar irrupção do movimento neo-zapatista de começos de janeiro de 1994. Relançamento importante e mudança do rol de todas as lutas indígenas da América Latina, que são também outras das razões essenciais do impacto mundial e da vigência universal do neo-zapatismo mexicano. Ainda que, os graus de crescimento e de capacidade de ação que hoje apresentam os diversos movimentos indígenas latino-americanos não sejam homogêneos. Sendo distintos, por exemplo, os de Chiapas e da Guatemala, ou também, os do Equador e da Colômbia. E isso, apesar das proximidades geográficas das regiões e dos países mencionados. O que, obviamente, se deve as distintas circunstâncias históricas do desenvolvimento de cada nação, na qual, por exemplo, os movimentos indígenas da Guatemala sofreram uma repressão e ataque constantes durante as várias décadas das ditaduras e dos governos militares, repressão que arrasou seriamente o movimento indígena guatemalteco, e que em compensação não esteve presente no caso dos indígenas mexicanos. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas Ou também, o caso da Colômbia, em que o fato da presença demográfica mais minoritária da população indígena, somada a difícil política desenvolvida pelo direitista e autoritário governo de Alvaro Uribe e as várias décadas de uma guerra permanente contra os movimentos campesinos, configuram um cenário complicado que reduz as margens de ação e de influência do movimento indígena colombiano, bastante organizado e avançado, apesar de tudo. O que, então, contrasta com seu homólogo equatoriano, que existindo nessa nação contigua a Colômbia, possui, ao contrário, uma centralidade e uma presença muitíssimo maior. Finalmente, é importante assinalar também que dentro do México, foi, igualmente, graças ao neo-zapatismo que todos os movimentos sociais em geral começaram a reativarse, precisamente depois do ano importante de 1994. Pois foi esse levante indígena chiapaneco que, em poucos anos, incitou a fundação do Congresso Nacional Indígena, criando assim uma instância de coordenação e de encontro de todos os movimentos indígenas do território mexicano. E o mesmo sucedeu com o movimento estudantil, o qual ao reativar-se a partir da construção das brigadas de trabalho e das caravanas de solidariedade que viajavam o tempo todo para Chiapas desde o ano de 1994, logrou rearticular-se e continuar, por exemplo, a longa greve de quase um ano da Universidade Nacional Autônoma Do México, greve que somente terminou mediante uma brutal repressão policial em fevereiro do ano 2000. E o mesmo sucedeu com todos os demais movimentos sociais mexicanos, os quais, ao mesmo tempo dos indígenas e dos estudantes, encontraram depois de 1994, e graças aos espaços conquistados pelo protesto social neo-zapatista, as condições propícias para se afirmar e se fortalecer, como os novos movimentos operários, ou urbano populares, campesinos, de devedores, aposentados e pensionistas, de afirmação do respeito à diversidade sexual, em defesa da terra e do território, pela autonomia e o autogoverno das comunidades, contra um governo tirano, ou de outro governador pederasta , entre muitos outros. Novos e renovados movimentos sociais que hoje configuram o espectro das múltiplas lutas do povo mexicano, em Oaxaca, Chiapas, Guerrero, na Cidade do México, em Puebla, e em todo o país, e que se reanimou enormemente depois do emblemático primeiro de janeiro de 1994. Assim, formam hoje, e não casualmente, o corpo fundamental que é esse crescente e cada dia mais relevante movimento nacional mexicano, A Outra Campanha26. O movimento A Outra Campanha, que se no México é hoje, sem dúvida alguma, o mais importante movimento social anti-sistêmico do país, é também e, em muitos sentidos, um tipo de possível “modelo a seguir” para os movimentos anti-sistêmicos de outras nações, e, igualmente, para a iniciativa global concentrada nos Fóruns Sociais Mundiais. Pois, pensamos que é válido postular a tese de que o Fórum Social Mundial podia talvez sair de seu atual e complicado impasse, se adotar parte das lições da Outra Campanha neo- 26 Sobre este importante movimento, A Outra Campanha, cfr. o ensaio de Immanuel Wallerstein, “La Otra Campaña en perspectiva histórica”, e também nosso ensaio, Carlos Antonio Aguirre Rojas, “Ir a contracorriente: el sentido de La Otra Campaña”, ambos na revista Contrahistorias, número 6, México, 2006. O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas zapatista. Pois, não seria muito interessante, que uma comissão desse Fórum corresse o mundo inteiro, somente para escutar as experiências, as demandas, os pontos de vista, as reclamações e as concepções de absolutamente todos os movimentos anti-sistêmicos de nosso pequeno Planeta Terra? E, sobre a base desse percurso, começar a tender pontes práticas entre experiência similares, conectando lutas campesinas de todos os lados, movimentos operários de todos os rincões, experiências de luta de todo tipo de minorias sociais, lutas urbanas populares de todos os tipos de cidades e urbes, balanços e êxitos de todos os movimentos indígenas possíveis, ou grupos e movimentos estudantis e de resistência, e logo uma vasta rede de redes da luta anti-sistêmica mundial. Rede de redes das lutas, das experiências e dos balanços positivos e negativos de todos estes movimentos anti-sistêmicos, que depois poderia projetar a construção, a partir de baixo e à esquerda, de um verdadeiro Programa Mundial de Luta Anticapitalista. Não imposto a partir de cima, nem criado ou concebido por nenhuma minoria de iluminados ou de líderes autonombrados de movimentos. Mas sim, a partir de suas demandas concretas, de suas experiências de lutas particulares, de suas descobertas e percepções derivadas de seus distintos combates. Sintetizados a partir do horizonte e da vocação de reunir, primeiro, todos nessas redes específicas, e logo, nessa rede universal. Lições então importantes da experiência neo-zapatista da A Outra Campanha, generalizantes a nível mundial, quiçá em uma eventual prática futura do Fórum Social Mundial, que também são possíveis de reproduzir, em escala local, em cada uma das distintas nações de todo o Planeta. Pois é algo universal, agora, a necessidade de escutar novamente as bases dos movimentos, devolvendo-lhes o protagonismo direto. Uma vez que se impõe essa exigência de construir todas as decisões e definições essenciais concernentes ao destino global do movimento, a partir de baixo e a esquerda, quer dizer, a partir dessas mesmas bases e em uma perspectiva sempre anticapitalista e emancipatória. O que, uma vez mais, é talvez outro dos elementos que explicam a influência mundial e a validez universal da experiência neo-zapatista mexicana. Por que então o neo-zapatismo tem esse impacto mundial? E por que suas lições têm muitas vezes um valor universal? Em parte, consideramos nós, pelas três séries de razões recentemente aludidas, mas também por muitas outras causas e elementos que ainda falta continuar investigando muito mais e ainda no futuro imediato. * * * Para concluir, vale à pena recordar uma entrevista feita por Manuel Vázquez Montalbán em 1999 ao Subcomandante Marcos, na qual, ao perguntar-lhe sobre o que em essência era a rebelião neo-zapatista e como seria vista no futuro, Marcos respondeu: “Bem, vamos ganhar, disso não há dúvida”. Ao que Vázquez Montalbán lhe replica: “Ganhar tudo? Entre o tudo e o nada existe um território”. E Marcos insiste e aclara: “Não, ganhar quer O Olho da História, n. 15, Salvador (BA), dezembro de 2010. Carlos Antonio Aguirre Rojas dizer ganhar, porque ainda que percamos ganhamos”27. Trata-se, como é óbvio, mais um dos bastante recorrentes oximoros aos quais são tão afeitos os companheiros neo-zapatistas mexicanos, oximoros que são exemplo magistral de uma visão realmente crítica e profundamente dialética da absurda e irracional realidade capitalista na qual ainda vivemos. “Ainda que percamos, ganhamos”, o que em minha pessoal interpretação bem poderia significar que a envergadura dos logros até agora conquistados pelo neo-zapatismo, já é de tal magnitude que, além de seu possível destino futuro, os neo-zapatistas já venceram, quando localizamos e pensamos sua experiência e suas lições tanto em termos históricos universais, como também a partir da ótica da verdadeira longa duração histórica. Pois, se somarmos o fato de que o neo-zapatismo tem devolvido a esperança ao mundo inteiro e a todos os movimentos anti-sistêmicos do pequeno Planeta Terra, juntamente à situação de que esse mesmo neo-zapatismo logrou tornar muito mais visível e impulsionou o protagonismo fundamental recente de todos os movimentos indígenas e também de todos os novos movimentos anti-sistêmicos na América Latina – os quais, em seu conjunto, formam a frente de vanguarda da luta anti-sistêmica mundial, que já falamos antes – e, lhe agregamos também que a experiência neo-zapatista é a que centralmente tem permitido voltar a retomar a ofensiva a todos os movimentos sociais da nação mexicana, os quais agora se reagrupam abaixo da grande iniciativa da A Outra Campanha, se somarmos todos esses elementos, podemos talvez pensar que, além de qual possa ser o futuro imediato, e inclusive o futuro mediato do movimento neo-zapatista, ainda que passe o que passe mais adiante, nesse sentido e sem dúvida alguma, já ganhamos. Por isso, ainda que percamos, sem dúvida alguma ganhamos. 27 Sobre este diálogo, cfr. o livro de entrevista ao Subcomandante Marcos, de Manuel Vázquez Montalbán, Marcos: el señor de los espejos, Ed. Aguilar, Madrid, 1999, páginas 185 – 186.